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CENTENÁRIO NIETZSCHE

A crítica
“A consciência de si é uma ficção” (VPI: 258)
“O eu subjuga e assassina” (VPII: 384)

nietzscheana
“O supremo amor para com o eu é correlato ao prazer
com a perda de si...”(Ser e tempo)

da subjetividade1 QUE O EU (entendamos por tal a consciência


individual) não forma o centro ou o núcleo
RESUMO do sujeito, nem o princípio que determina
O ensaio destaca a ruptura com os conceitos modernos de o pensamento; que o eu não possa servir
sujeito e indivíduo que, defende, põe em ação o pensamento de fundamento ao sistema de conhecimen-
nietzscheano. O filósofo não somente consagra o primado do to; que, ao contrário, ele se descubra sem-
corpo sobre a mente mas o do gregarismo vital sobre o indi- pre e já inextrincavelmente fundido às coi-
vidualismo ocidental. O resultado é a geração de uma nova sas, ao mundo e aos outros egos; enfim,
visão de mundo, na qual o social passa a ser visto a partir que o eu reflexivo, que pretende chegar à
do cosmos em sua totalidade. universalidade, à independência, ao senho-
rio e à certeza de si não é senão uma cons-
ABSTRACT trução metafísica, frágil e ilusória: eis um
Michel Haar stresses the significance of the Nietzschean dos temas que, depois de Freud, Heide-
rupture with the modern concepts of subjetc and the indivi- gger ou Merleau-Ponty, são familiares e
dual, showing the way he established the primacy of the como que “evidentes” à nossa Modernida-
body over the mind, as well as that of the collective vitalism de. Depois da psicanálise, nós não cremos
over Western individualism. The author thinks the mais na autonomia do eu, essa pobre coisa
philosopher is committed to the creation of a new world “esmagada” entre as exigências contraditó-
vision, according to which the social point of view, which rias do inconsciente e do superego. Heide-
prevailed until then, is subsumed into a cosmic vision of gger nos ensinou, entre outras coisas, que o
Being. que é “próprio” não nos chega inicialmente
senão sobre a forma abstrata de uma “pos-
PALAVRAS-CHAVE (KEY WORDS) sessividade” (Jemeinigkeit) impessoal e que,
- Interpretação (Interpretation) como tal, ele jamais é adquirido através
- Subjetividade (Subjectivity) das primeiras palavras ou dos primeiros
- Filosofia contemporânea (Contemporary philosophy) gestos, totalmente prisioneiros das manei-
ras do “se” impessoal. Nós sabemos que
em relação ao ser no mundo e ao cuidado -
essa grife da temporalidade – o eu não é
uma estrutura fundamental do ser humano.
O eu pode ser entendido, por exemplo,
como um efeito lingüístico do cuidado:
“com o eu o cuidado se exprime inicial-
mente e na maioria das vezes no dizer eu
da preocupação”. Nós sabemos também
que Merleau-Ponty reabilitou a abertura
anônima da percepção, essa coação silenci-
osa onde ainda não há nenhum sujeito, mas
onde cada eu fixa suas raízes pré-individu-
ais e compartilha com todos os outros uma
afinidade mais profunda que a da simples
“luta das consciências”, sempre posterior.
Michel Haar Ora é pouco assinalado que em suas
Filósofo, Professor da Universidade Paris I análises da subjetividade, Nietzsche não

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apenas pertence totalmente a essa moderni- fundamento do conhecimento, o eu não
dade mas além disso a ultrapassou em di- pode se definir como necessário e univer-
versos aspectos. Aparentemente fascinado sal senão à medida que se identifica com o
seja pela fachada mais ontológica que psi- poder lógico do sujeito. Em Descartes, o eu
cológica da vontade de potência, seja pela está restrito e se identifica com o entendi-
problemática da má consciência ou do res- mento ou a razão: “Falando de maneira
sentimento, Heidegger como primeiro co- precisa, eu não sou, portanto, senão uma
mentador de Nietzsche, está pouco interes- coisa que pensa; quer dizer, um espírito,
sado na sua teoria do sujeito e na dimensão um entendimento ou uma razão”.3 Em
crítica que ela carrega.2 Em Heidegger, em Kant, “o princípio da unidade sintética da
particular, o desprezo pela psicologia de apercepção” ou, em termos menos escola-
Nietzsche é tão grande quanto o seu inte- res, o poder unificador da consciência “é o
resse pelo “último metafísico”, este que princípio supremo de todo o uso do enten-
conduziu a metafísica pós-cartesiana da dimento”.4 Isso quer dizer que a unidade
subjetividade a seu acabamento absoluto. do eu é a condição primeira do fundamen-
Nietzsche teria trazido ao sujeito hegeliano to mesmo da nossa faculdade lógica. A uni-
“ainda inacabado” o complemento necessá- dade do eu torna possível a unidade do
rio para elevá-lo à “subjetividade finalmen- conceito, a própria operação da conceituali-
te acabada” (Nietzsche II: 241), uma espécie zação. O eu é a unidade primordial, arque-
de animalidade absoluta, muito mais que típica: “Para o eu, diz Kant,... não há ne-
racionalidade. Esta interpretação oculta to- nhuma diversidade” (ibidem). Ao contrário,
das as objeções tanto quanto as mutações “a unidade originalmente sintética da aper-
que Nietzsche introduz no conceito clássico cepção”, quer dizer: a consciência transcen-
de sujeito. dental não é apenas “o ponto mais eleva-
Aliás, proviriam as análises nietzsche- do” ao qual é preciso voltar toda lógica,
anas da psicologia ao invés da filosofia mas “é esse poder [unitário] o próprio en-
pura? Chamando a si mesmo antes de mais tendimento (ja dieses Vermögen ist der Vers-
nada psicólogo, o próprio Nietzsche sem tand selbst). Portanto é preciso dizer não que
nenhuma dúvida embaralhou as pistas. o eu puro condiciona o entendimento, mas
Aforismos como os seguintes: “não existem que ele é o entendimento. Desta identidade
mônadas” (KGW VIII 2, 11[73]); “o homem, do eu e do entendimento, Kant não fornece
pluralidade de vontade de potência” (VP I: nenhuma prova que não negativa, ou atra-
258); “nós somos uma multiplicidade que vés de uma fórmula absurda: “Sem isso, eu
construiu para si uma unidade imaginária” teria um eu muito diverso e teria tantas co-
(VP I: 255) – são todas proposições incon- res quanto existem representações do que
testavelmente metafísicas, que recolocam eu tenho consciência” (ibidem). A essência
de maneira direta o problema da unidade do eu é de um ser único, idêntico a si mes-
transcendental do sujeito tanto quanto o da mo, não contraditório, quer dizer: lógico,
relação entre um e o múltiplo no seio da de modo que o “eu” se revela a própria
subjetividade. lógica!
[Na verdade] O ponto exato sobre o Ora a crítica Nietzscheana do eu passa
qual Nietzsche ataca e tenta reverter a dou- em primeiro lugar por uma crítica da lógi-
trina tradicional do sujeito não é outro que ca, sobre a qual repousam as doutrinas ra-
o da idéia de uma essência lógica do eu. cionalistas do eu. “A crença no eu se sus-
Ora, essa idéia se encontra na base das te- tenta e se desmancha ao mesmo tempo que
ses metafísicas de Descartes e de Kant so- a crença na lógica” (WM § 519). A crença
bre o ego, teses às quais Nietzsche se pren- comum nessas duas crenças é a crença na
de de maneira explícita. Para o racionalis- existência de identidades estáveis. Significa
mo, que se preocupa acima de tudo com o que, para Nietzsche, isso equivale à crença

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platônica no ser, àquilo que é igual a si mo as unidades lógicas. Desse modo, a crí-
mesmo. Por que crença? Porque a experiên- tica à unidade do eu, o despedaçamento, a
cia não fornece nenhum dado que seja es- pluralização do eu teriam por finalidade
tritamente idêntico, estritamente único em última confessa recuperar a pluralidade do
si mesmo. Nada no mundo, no real, é ape- ser, “os graus do ser”, como ele diz, por
nas um. Portanto o um é imaginário, irreal, exemplo, nos fragmentos abaixo: “O con-
fictício. “A lógica está ligada a essa hipóte- ceito de substância, conseqüência do con-
se: a suposição que há casos idênticos” (VP ceito de sujeito, e não o inverso! Se nós re-
I: 73). Que a identidade seja fictícia não sig- nunciamos à alma, ao “sujeito”, a condição
nifica, porém, que ela seja vã ou ilegítima. prévia de uma substância desaparece total-
A lógica não se regula sobre os fatos, mas mente. Há graus no ser, nós perdemos o ser”
impõe certos esquemas semelhantes aos de (VP I: 82).
uma ficção reguladora, que permite res- “Renunciar à alma, ao sujeito” significa
ponder às necessidades práticas (previsões, em primeiro lugar renunciar à universali-
cálculos, planos de ação) e de dominar a dade abstrata desses conceitos e afirmar a
realidade. A lógica é imposta por uma von- individualidade do eu. Não há eu senão
tade que tem a necessidade de que as coi- individualmente. Como o confessa implici-
sas sejam idênticas e de que exista uma tamente Descartes (mais prudente nisso do
unidade, para sua própria seguridade. Ora que Kant): “Eu sou um entendimento, uma
o eu é tal unidade, ao mesmo tempo útil e razão; e não o entendimento em geral, a ra-
fictícia. A importância da crença no eu é zão”. Mas num segundo momento, signifi-
fundamental para a lógica, na medida em ca renunciar ao sujeito; quer dizer: é reco-
que os conceitos de “substância”, de “coi- nhecer que o indivíduo não é um, que a
sa”, de “causa” e de “efeito” e, finalmente, unidade individual é fictícia; é recuperar a
aqueles de “realidade” e de “ser” são de- pluralidade intra-individual. Trata-se não
duzidos de nosso conceito de “sujeito”. tanto de repensar mas sim de reaprender a
Nós não cremos na identidade porque nós experimentar essa pluralidade. Uma vez
tenhamos “em nós” o modelo de toda iden- rompida a unidade lógica do sujeito e sua
tidade possível: o eu. Todavia, a crítica unidade moral, a “pessoa”, “outra máscara
desse conceito de “sujeito” e de suas “fa- a arrancar”, será preciso deixar agir as po-
culdades” deveria engendrar a ruína do tências múltiplas do eu, todos seus papéis,
sistema metafísico de categorias, totalmen- seus diversos estados corporais e anímicos.
te derivado das propriedades atribuídas ao Aqui o ideal do filósofo–Versucher, experi-
sujeito. Em outros termos, as crenças lógi- mentador, se insinua insensivelmente na
cas, isto é, que a substância subsiste como o eu, descrição quase fenomenológica do eu
que a causa produz seu efeito assim como o eu múltiplo. A finalidade é em primeiro lugar
produz seus atos, se desmanchariam se fosse experimentar a plenitude da subjetividade e,
demonstrado que a figura do eu não se a experimentando, a recriar, se interrogan-
sustenta, que ele não é a causa única de do sobre sua verdadeira essência. O ho-
seus atos. mem mais humano será capaz de passar
Mas por que destruir essas ficções ló- por diversos ideais, diferentes personagens
gicas sendo elas úteis? Nietzsche deseja re- ou papéis, “ver por cem olhos, através de
duzir a lógica a uma simples função instru- diversas pessoas” (VP II: 82).
mental, operatória. A justificativa de sua Tendo-se dado conta da leitura heide-
crítica é a confusão estabelecida corrente- ggeriana, a questão que se coloca a partir
mente entre as “identidades lógicas” e os de então é saber se Nietzsche logrou reali-
princípios da própria realidade. A ilusão zar um “acabamento da subjetividade”. É
transcendental da lógica consiste em sem- muito cedo para arriscar uma resposta.
pre projetar novamente no ser em si mes- Tudo o que se pode dizer é que a plenitu-

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de do sujeito individual vista por Nietzs- der que ele faz parte do fatum universal,
che, plenitude transitória, não tem nada a que ele é esse fatum. Ego factum: “Todo o
ver com a totalização “conservadora” de indivíduo colabora no conjunto do ser cós-
momentos ultrapassados, que caracteriza o mico – conscientemente ou não, de bom ou
sujeito universal em Hegel. A autenticida- mal grado” (VP II: 384). “O indivíduo é
de nietzscheana, se se ousa utilizar esse ter- sempre um fragmento de fatum, qualquer
mo, se situa do lado oposto à da autentici- que seja o ângulo que o consideremos”
dade heideggeriana. Para Heidegger, a di- (GD 6). Entretanto, o eu cósmico deve ser
versidade das preocupações cotidianas, compreendido como uma etapa preparató-
com as interpretações estabelecidas pelo ria do amor fati, da afirmação do eterno re-
ser, é necessariamente “má”, ao menos alie- torno? A subjetividade não é abolida nessa
nante: o ser aí é ameaçado de decair na “cu- forma extrema, e talvez impensável, de fa-
riosidade” ou na “preocupação”; o homem talismo? Toda a crítica da subjetividade
para ser homem deve corresponder à doa- não tem por motivo último senão cair
ção simples que lhe dirige o Ser. Para Niet- numa afirmação pânica que põe em eclipse
zsche, ao invés, o eu não se encontra senão todo o ego?
quando nos esquecemos de nós como Quebrar a identidade lógica do sujei-
pseudo-unidade, quando nos prendemos à to, recuperar a pluralidade intra-individu-
ronda dos papéis e das perspectivas. Em al, desenvolver a dimensão cósmica do eu:
termos nietzscheanos, o movimento mais é certo que essas tarefas da crítica não são
autentico, o mais afirmativo e o mais arris- marcadas pela preocupação especulativa
cado comanda a maior diferenciação do eu, do “conhecimento de si”, mas por uma pre-
e não mais a sua maior simplificação. O ocupação prática, surpreendentemente am-
“espirito livre” é definido como aquele que biciosa, que consiste em modificar a pró-
sabe evitar o aprisionamento de suas cren- pria essência da subjetividade.
ças ou de suas certezas “pelas suas cons-
tantes variações”, até o ponto de parecer
“uma massa de nuvens pensante” (WM, § 1 Quebrar a identidade lógica do
637)! Para realizar o ideal do “viajante” em sujeito
Humano, demasiado humano, Nietzsche de-
fende que é preciso progredir “através da “A consciência de si é uma ficção” (VPI, p.
variedade dos partidos, traindo nobremen- 258). “Não há nem espírito, nem razão, nem
te todas as coisas ...”(ibidem). “Nobres”, pensamento, nem consciência, nem alma,
tudo está aí: não é de fato preciso muita nem vontade, nem verdade: tudo isso não
nobreza, quer dizer: de afirmação generosa e passa de ficções inutilizáveis” (WM § 480).
rigorosa, para atravessar essa variedade Precisamente o que quer dizer aqui ficção?
sem dissolver o eu na inconstância e na fri- Ilusões certamente, mas também “invenção
volidade? poética”, “sonho de poeta”, porque Nietzs-
A experimentação das “variedades do che emprega freqüentemente, no lugar de
eu”, como dirá Valéry (Cahiers I, p. 861), Fiktion, os termos Eradichtheit, Eradichtung
não fecha a individualidade sobre ela mes- ou, pura e simplesmente, Dichtung. Ainda
ma, mas a realça e a transporta para fora de que sem pôr em causa a posição nietzsche-
si e para dentro do mundo. O eu capaz de ana, que faz com que as categorias lógicas
apreender e de viver a diversidade das das unidades ilusórias se projetem sobre a
condições e das filosofias é o mais apto multiplicidade do real, uma objeção se
também a sentir o “laço cósmico”; isto é, apresenta muito naturalmente. Como Niet-
não somente a se sentir inseparavelmente zsche pode ao mesmo tempo conferir um
ligado a toda a linha dos seres vivos e a sentido pejorativo à ficção lógica e conce-
toda a ascendência histórica, mas a enten- der à ilusão poética, como a arte em geral,

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o valor mais alto? Esta aparente contradi- mo uma unidade imaginária” (VP I: 255). O
ção se resolve se nós nos recusarmos a nos perigo não está tanto nessa unidade como
referir ao que é dito da poesia, e em parti- tal, mas no efeito de encobrimento e de
cular no capítulo do Zaratustra intitulado obstaculização ao desenvolvimento da
Os poetas. “Os poetas mentem muito.” Nós multiplicidade interna por ela produzida.
sublinhamos a palavra muito, porque tudo É importante mostrar quais são esses
está nesse “muito”. A mentira poética não efeitos de ocultamento e quais são as rela-
vale senão se escapa à pretensão de ser ções de dependência entre unidade lógica,
uma substituta da verdade. Os poetas men- consciência e o sujeito “total” ou, em todo
tem demasiadamente, quando eles esque- caso, não lógico. Fiel nesse ponto à tradição
cem que eles mentem, quando eles preten- metafísica, Nietzsche não pode com efeito
dem dizer a verdade em si mesma, por re- reconhecer à consciência o caráter de um
velação direta. Somente a ficção que sabe sujeito, na medida em que o sub-jectum, o
ser tal é bemfeitora; senão, ela é uma espé- que se supõe subjacente, deve poder forne-
cie de automistificação. “O poeta que sabe cer uma base ou fundamento, ou deve po-
mentir com conhecimento de causa, volun- der receber os atributos os mais diversos. A
tariamente, é aquele que pode dizer a ver- consciência não pode sustentar, suportar a
dade” (Gedichte, KTA 77, p. 574). Existe em subjetividade ! “ Nós chegamos à fase onde
Nietzsche uma apologia da mentira franca, a consciência se torna modesta” (VP I : 278). A
como é o caso da arte. Os filósofos, os lógi- consciência será reportada à modéstia por
cos, ao contrário, estão muito longe de pen- meio de seu confronto com as “instâncias”
sar produzir ficções. Eles são mentirosos mais complexas e mais poderosas: o corpo,
mistificadores: sua mistificação consiste em o pensamento não-conceitualizante, os sen-
querer fazer crer que suas categorias, suas timentos, o mundo exterior, a linguagem e
“viagens poéticas”, exprimem a essência a comunicação social.
mesma das coisas. Acima de tudo, porém, está o corpo.
Sempre guardando como ponto de Por que é preciso filosofar “tomando o cor-
partida a definição platônica da verdade po como fio condutor”? (VP I: 262) Porque
como sendo o um, o idêntico e o não-con- é ele que merece ser chamado de sujeito,
traditório, Nietzsche não pode, em sua re- ou que mereceria tal selo, se esse conceito
versão do platonismo, escrever sua própria unificante não arriscasse dissimular a plu-
definição da “verdade” (a mentira não dis- ralidade que ele abriga: ele é chamado de
simulada, reconhecida como tal) que, por uma “coletividade não ligada de seres vi-
assim dizer, entre aspas! Para ele, o “verda- vos” (VP I : 265), uma competição de “inú-
deiro” está do lado do múltiplo e da con- meras inteligências” (VP I: 265), como “um
tradição. A “aparência” ou a “ilusão” estão edifício coletivo de diversas almas” (VP I :
no lugar do único e da identidade. 267). A unidade da integração viva e inata
Desse modo sua própria “verdade” ao corpo humano é “o milagre dos mila-
não é uma verdade que o homem possa gres” (ABM, § 19). Em relação a ela “a cons-
conhecer, mesmo inadequadamente, por- ciência não é senão um instrumento a mais
que conhecer consiste em transplantar o – no mesmo sentido em que o estômago é
múltiplo para o único, e portanto a negar o um instrumento de milagre idêntico” (ibi-
múltiplo. Assim, não é tanto a característica dem). A coordenação, a coesão, a sabedoria,
fictícia do sujeito que Nietzsche critica mas a seleção, a crítica, a prudência, etc., podem
sim o esquecimento ou a ignorância desse ser compreendidas inicialmente como qua-
caráter fictício. Crendo em sua própria uni- lidades do corpo, e não da consciência. A
dade, o sujeito faz de si mesmo uma ima- identidade consciente do eu não é senão
gem mutilada e diluída. “O sujeito é uma uma transposição, uma imitação frágil, se-
multiplicidade que construiu para si mes- não um sintoma da sólida unidade e da co-

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erência fisiológica. Se “o corpo é nosso eu” ela não faz senão registrar, executar. Ela
(VP I: 253), esse eu orgânico não é uma atribui os diferentes estados psíquicos a
simples unidade conceitual, mas possui uma causa única, que é ela mesma. Ela pre-
uma unidade real, quer dizer múltipla, que julga a continuidade dessa causa através
é freqüentemente comparável àquela de do tempo. Ela crê inclusive – é a ilusão su-
um grupo, “grupo de dirigentes à frente de prema – que ela é um substrato que “con-
uma coletividade” (VP I: 268), uma “aristo- trola” a totalidade do sujeito, determina e
cracia” de forças habituadas a comandar e a guia com tranqüilidade as funções corpo-
governar um conjunto na condição de “um rais. A substancialização metafísica do eu
comitê diretor”. É inútil procurar a razão resultaria assim da vaidade e do cegamen-
de ser lógica dessa coordenação de “célu- to sem limites da consciência, que crê a
las” e das diversas forças orgânicas, pois a tudo “supervisionar” e reger e, finalmente,
consciência só poderá fazer delas uma in- chega até mesmo a crer que comanda os
terpretação deformada. pensamentos.
Assim ocorre porque a consciência Entretanto, se de fato a consciência
deve se manter ignorante do que se passa não produz nem a unidade do corpo, nem
no plano do corpo. Ela é comparável – ou- sua própria unidade, ela está bem longe de
tra metáfora política – a uma monarca cons- poder ser senhora dos pensamentos (Ge-
titucional, que reina mas não governa. Ela danken). Nietzsche retira o privilégio do
deve ser mantida à parte, protegida dos pensamento (Denken) da consciência. Não
conflitos que agitam a “sociedade” das apenas é o corpo que pensa, mas “o pensa-
pulsões; se ela devesse ser informada de mento consciente não é senão uma forma
todas as sensações e de todos os aconteci- grosseira e simplificada desse tipo de pen-
mentos do mundo que no entanto a tocam, samento que está necessariamente em nos-
ela seria sufocada, anulada. Resumidamen- so organismo” (VP II: 280). O eu é coloca-
te ela deve, por isso, ser protegida do múl- do, construído por esse pensamento in-
tiplo, e não ter acesso senão às grandes consciente (cf. KGW VII 3, 35). Ele não é o
simplificações que mantêm a ordem e a po- autor do pensamento, pois o pensamento o
lícia da realeza. “Uma certa ignorância na ultrapassa. A evidência cartesiana do eu
qual se mantém o monarca em relação às consciente como algo consubstancial,
operações de detalhe, e mesmo dos proble- “igual ao pensamento”, e como causa dos
mas da coletividade, faz parte das condi- pensamentos se encontra invertida a partir
ções que lhe permitem reinar” (ibidem). Es- de um duplo ponto de vista. De um lado
ses problemas, que resultam da redistribui- essa evidência contradiz a experiência que
ção incessante do equilíbrio interno das me ensina que os pensamentos chegam a
forças, constituem a face oculta (à consciên- mim quando “eles” querem, e não quando
cia) do dinamismo psíquico. Fenômeno su- “eu” quero (ABM, § 16-17). “Eu” não sou o
perficial, terminal, derivado e inclusive senhor do desdobramento de meus pensa-
“supérfluo”, a consciência algumas vezes mentos: esse se impõe ao eu. De outro
é, perigosamente, capaz de se importar, lado, a idéia de que o eu é um substrato
quando ela se emancipa radicalmente dos permanente idêntico ao pensamento impli-
instintos, ignorando a origem e o sentido ca numerosas pressuposições inverificá-
mesmo da atividade (“a grande e principal veis, como a de “que eu sei o que significa
atividade é inconsciente” (VP I : 267). pensar” (ibidem), ou a de que há uma rela-
Faculdade inibidora da ação, a consci- ção de causa e efeito entre o eu e a ativida-
ência – para perpetuar sua ilusão – deve a de do pensamento. Ora essa última crença,
cada instante inverter, “como num espe- segundo a qual o eu “produz o pensamen-
lho” (VP I: 279), o desenvolvimento da vida to”, não é senão um efeito da “rotina gra-
psíquica. Ainda que ela creia dar ordens, matical” que identifica o sujeito gramatical

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de um verbo com o autor de uma ação. É a mento acontece independentemente
mesma ilusão que existe na frase: “o claro de minha vontade, habitualmente cer-
ilumina”, que poderia nos conduzir a con- cado e obscurecido por uma multidão
ferir ao claro uma realidade substancial, in- de sentimentos, de desejos, de recu-
dependente do fato do iluminar. sas, com relação a outros pensamen-
O pensamento é, como o corpo, de na- tos; muito freqüentemente é com difi-
tureza múltipla, muito antes de ser algo culdade que se pode distingui-lo de
que possa se identificar com o eu. No nível um querer ou de um sentir. Extraímo-
mais superficial, nós lidamos com o pensa- lo desta confusão, limpamo-lo, o colo-
mento consciente, lógico, simplificador, fal- camos sob seus pés, vemos como ele
sificador, mas ignorante de suas falsifica- tem seu início, marcha, como o todo
ções. Trata-se de um pensamento tautológi- forma um surpreendente presto e, no
co, um pensamento da identidade, fechado entanto, sem sentirmos sua rapidez:
sobre ele mesmo, que crê se mover na pura quem faz tudo isso – eu o ignoro, e
liberdade de sua autoprodução, na pura nisso tudo seguramente eu sou muito
transparência consigo mesmo. No outro ex- mais um espectador do que um cria-
tremo, o pensamento do corpo nos é ina- dor do processo.” (KGW VIII 3, 38[1])
cessível diretamente, nós não podemos
perceber senão seus sintomas, de modo A interpretação a qual o pensamento
que, sobre essa matéria, só podemos fazer (Denken) se conduz não exige a presença de
conjecturas. Por exemplo: certamente há no um intérprete “por de trás” da interpreta-
inconsciente uma simultaneidade de idéias ção. Isso ainda seria uma ficção (VP I: 274).
que nos é incompreensível, porque nós não A interpretação ocorre muito bem na au-
podemos pensar senão por via de suces- sência do eu: ela é “automática”. Tudo o
são. A única maneira de corresponder a que nós podemos dizer é o seguinte: a in-
este pensamento é se limitar a esse terreno terpretação interpreta.
intermediário que é o terreno da interpreta- A dependência da consciência em re-
ção. A interpretação se apóia nos pensa- lação ao mundo exterior é difícil de avaliar,
mentos tais como eles nos vêm a mente, sobretudo do ponto de vista da consciên-
permanecendo atenta a seu lugar sintomá- cia, porque a ilusão própria à consciência
tico juntamente com os sentimentos e os faz com que ela não conheça o que é esse
instintos (cf. GC § 179), mas deve-se saber “mundo exterior”, senão sobre a forma de
também que toda interpretação é redutora uma construção (o fato, por exemplo, de
e falsificadora na medida em que é consci- que esse mundo seja concebido como uma
ente. Nenhum desses três graus do pensa- totalidade), um arranjo em função de suas
mento que são a consciência, o inconsciente próprias necessidades, e que, por conse-
e a interpretação se deixam iniciar pelo eu. guinte, ela seja incapaz de mensurar a ex-
A descrição surpreendente que Nietzsche tensão das influências que sofre. No entan-
dá do nascimento de um pensamento em to é certo que as categorias lógicas não per-
um sujeito insiste sobretudo sobre a passi- tencem a uma estrutura autônoma da sub-
vidade do eu, “muito mais um espectador jetividade, mas sim que sejam respostas às
do que um criador desse processo”. ameaças provindas do mundo. A invenção
dos “casos idênticos”, a redução do conhe-
“O pensamento (Gedanke), tal como cido ao desconhecido, a casualidade, etc.,
como surge um pensamento
acontece, é um signo plurívoco que são também instrumentos de previsão, de
exige uma interpretação, mais exata- seguridade, de dominação que traduzem a
mente um recolhimento e uma limita- potência do perigo pressentido pela consci-
ção arbitrários, até o ponto em que ele ência, quer dizer: a potência da dominação
se torne finalmente unívoco. O pensa- do mundo sobre essa consciência. Por de

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trás de sua inventividade lógica, a consci- à coletividade: é preciso que ela seja “retra-
ência não é senão “um instrumento de duzida na perspectiva do rebanho”. Por
transmissão” das ações que por trás de nós isso Nietzsche pode dizer, numa inversão
e de nossas ações sobre o mundo externo; aparentemente biológica, a propósito da
“ela não é essa transmissão” ... “mas um consciência, que ela não é a forma mais alta
órgão dessa transmissão”, sublinha Nietzs- da idealidade, mas “o gênio da espécie”.
che (VP I : 274). Quanto à sucessão e ao Ser consciente, experimentar-se em termos
encadeamento dos fenômenos no mundo e de consciência, falar, escrever, não é traba-
dos pensamentos em nós, eles também nos lhar por conta própria mas, por um tipo de
são perfeitamente ocultos e impenetráveis, astúcia nietzscheana da razão, pelo benefí-
sendo nisso da mesma forma que, em Kant, cio da espécie humana. Naturalmente é
os são as coisas em si. Em relação aos mes- preciso isentar dessa palavra e dessa escri-
mos, a consciência sempre dá explicações ta aquelas que justamente subvertem a es-
“imaginárias”: “Toda nossa pretendida sência convencional da linguagem, como
consciência não é senão um comentário acontece na escrita aforística e fragmentá-
mais ou menos fantasioso de um texto des- ria. Mas essa exceção confirma a regra, se-
conhecido” (VP I: 265). O mundo nos é des- gundo a qual é graças à linguagem que a
conhecido. Nós inventamos todas as “cau- consciência persegue ainda e sempre seu
sas”, “depois de tê-las em mãos”: “O frag- trabalho de dissimulação.
mento do mundo exterior do qual nós to-
mamos consciência é posterior ao efeito
que foi produzido sobre nós; ele é projeta- 2 Reencontrar a pluralidade intra-
do após ter provocado esse efeito como subjetiva.
sendo então a sua causa” (VP I: 272). Desse
modo, a consciência - longe de nos ensinar Se a unidade lógica do sujeito é oculta,
sobre o mundo tal como ele é - não é senão como o são as “faculdades” do sujeito
a soma do que nele há de útil para saber. (vontade, razão, imaginação, sentimento),
Mas essa visão estreita e deformadora pro- isso é assim sobretudo na medida em que
va até que ponto a consciência é determina- cada uma dessas unidades dissimula a
da por sua posição no mundo e pelo pró- pluralidade (de forças, de motivos) que
prio mundo. concorre em toda ação e em todo o pensa-
Fazendo a consciência ao mesmo tem- mento. No entanto, seria igualmente ilusó-
po um instrumento e um produto da co- rio pretender restituir como tal essa plura-
municação social e, ainda, alegando a su- lidade, pois ela releva do inconsciente; e o
perficialidade e a abstração da linguagem simples fato de a transpor para a lingua-
ao fenômeno da consciência, Nietzsche des- gem significa a transpor em uma unidade.
taca os prejuízos da consciência em sua li- O desdobramento efetivo dos fenômenos
gação com o eu, com a individualidade. psíquicos nos permanece sempre impene-
“No fundo a consciência não pertence à trável, desconhecido. “Nós não temos ne-
existência individual do homem...” (GC, § nhum órgão sutil o bastante para apreen-
354). Essa proposição não é senão a consci- der esse mundo interior, se bem que nós
ência da tese seguinte e segundo a qual “o sintamos como uma unidade a complexidade
corpo é o nosso eu”. A consciência e a lin- mais multiforme, e que nós introduzamos
guagem transpõem esse eu em termos não uma causalidade imaginária em um domí-
individuais, porque não é de “meu interes- nio onde todos os motivos do movimento e
se” deixar aparecer na coletividade a origi- da mudança nos permanecem invisíveis...”
nalidade funcional ou não-lógica dessa in- (VP I: 274). Todavia, restam duas vias aber-
dividualidade e que, de outro lado, essa tas à análise. De um lado, a demarcação re-
individualidade como tal possa não ser útil gressiva que consiste em mostrar a unida-

30 Revista FAMECOS • Porto Alegre • nº 13 • dezembro 2000 • semestral


de psicológica, qualquer que ela seja (a foi suplantada ao nível inconsciente; quer
consciência, as faculdades), como uma uni- dizer: quando uma certa hierarquia provi-
dade superficial, derivada, um “termo der- sória de pulsões se estabelece. A “vontade”
radeiro”, uma “conclusão” e, portanto, algo não é invocada senão quando nós espera-
que deve ser reposto a suas condições mos poder ter sucesso, quando existe a
inaugurais, aos acontecimentos que estão possibilidade efetiva iminente, ou em vias
“por trás” dela sem no entanto pretender de se concretizar, de agir; em outros ter-
restabelecer o encadeamento “causal” e ori- mos, quando nós temos o sentimento de
ginal. Será suficiente que o que era consi- que nós estamos obedecendo a nós mes-
derado como causa apareça claramente mos. É impossível de dissociar o sentimen-
como um efeito. De outro lado, a análise to de passagem de um estado dado a outro,
fará aparecer uma diversidade de motivos como algumas das sensações musculares
latentes, assim como de motivos concorren- que o acompanham, de um projeto calcula-
tes, entrecruzados e concomitantes. Então, do e refletido de mudança. Mas esse proje-
será suficiente poder mostrar a imbricação, to pode ser a racionalização de uma explo-
a solidariedade absoluta desses motivos, são de força ou de uma mudança que prece-
de modo a que todas as divisões das anti- de o projeto. Apenas parece que nosso cor-
gas faculdades sejam relativizadas. Desse po mudou, que nós “queremos” mudar.
modo aparecerá que não há afetividade Nietzsche chama os diferentes prota-
sem intelecto, não há emoções - nem mes- gonistas dessa luta interior – que apenas de
mo sensações - que não contenham julga- maneira muito fraca pode ser entendida
mentos (cf. VP I : 316), que não há nenhuma como um debate – (quer dizer “aquele que
vontade racional sem emoção. comanda”, “aquele que obedece”, “aquele
Porém, é precisamente o conceito de que sente uma satisfação”), no seio do su-
“vontade” que é o objeto privilegiado des- jeito que quer de: “sub-vontades” ou “sub-
sa desconstrução nietzscheana. A “vonta- almas” (ibidem). De fato trata-se de partes
de” não é apenas um princípio coerente, do inconsciente ou do corpo, “um edifício
uma força simples, uma causa determinada de almas múltiplas” (ibidem). Então por que
e focalizada que engendra efeitos. A análi- falar de “almas”? A usurpação ou a inver-
se revela nesta “unidade puramente ver- são que atribui o nome “nobre” de alma ao
bal” (ABM, § 19) um resultado consciente, que a tradição considera como inferior está
que surge da convergência de uma plurali- destinada a designar os verdadeiros “prin-
dade composta de sentimentos ou de sen- cípios ativos”: as pulsões, os instintos.5
sações, de idéias ou de raciocínio, de algo No entanto, a pluralidade subegótica
quase como personagens interiores. Afinal não se reduz simplesmente às forças do in-
de contas, aquele que procede a um ato de consciente corporal, da mesma forma que
vontade deve poder comandar a si próprio, ela não pode ser assimilada à diversidade
se desdobrar em um mestre e em um exe- dos sentimentos ou das idéias. A identida-
cutor de alguma coisa. E, deve ser bem en- de lógica do eu, ou a identidade moral da
tendido, esse ato de comando não se pro- pessoa se estabelece às expensas da pre-
duz em uma atmosfera de serenidade, mas sença de múltiplas “pessoas”, quer dizer:
em clima emocional. A “paixão de coman- na maioria das vezes, os papéis que se su-
dar”, com os sentimentos que a acompa- cedem ou coexistem no psiquismo indivi-
nham – prazer de se infringir uma coação, dual. Nietzsche não deixa de sublinhar que
prazer de vencer em si mesmo a resistência “a pessoa” não é senão a acentuação, devi-
– não é a causa dos atos voluntários, mas da às circunstâncias, de múltiplas “pesso-
apenas um sintoma correlativo. O “eu que- as”, personagens ou personalidades, que
ro” aparece à consciência quando a “hesita- nós carregamos em nós no estado mais ou
ção” (o conflito de numerosas tendências) menos virtual. Mais freqüentemente acon-

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tece que uma persona, quer dizer um perso- pulsões pré-individuais. Enquanto tais,
nagem dramático, “mascarado”, mais ou eles não relevam nem do nós nem do eu. O
menos arbitrariamente”, nos cola à pele e papel, como sem dúvida o próprio sujeito,
ocupa um lugar único na cena da consciên- não é nem anônimo nem único: é “um efei-
cia, às expensas das máscaras que nós car- to do mundo exterior sobre nós, mundo em
regamos “no corpo”. relação, ao qual nós concedemos nossa
‘pessoa’ como nós afinamos cordas para to-
“Somos mais ricos do que nós pensa- car” (KGW VII 2, 25[374]). O papel constitui
mos: carregamos no corpo o estofo de a matriz do indivíduo: ele fornece um texto
numerosos personagens, carregamos que não é escrito por um “eu”, do qual os
por caráter o que de fato pertence à outros são os autores mas dos quais meu
personagem, a uma de nossas másca- corpo aprendeu as palavras. Daí a idéia de
ras. A maior parte de nossas ações não que o homem é um ator, mas que todo ator
nos vem do nosso interior mais pro- tem numerosos papéis:
fundo, mas é algo superficial, como a
maior parte das erupções vulcânicas; “Em que medida o homem é um ator.
é preciso não se deixar levar pelo ba- Admitamos que o indivíduo receba
rulho violento.” um papel para desempenhar: ele se
encontra pouco a pouco nele. Final-
“Contemos em nós o esboço de nume- mente chegam julgamentos, desgos-
rosas pessoas: o poeta é traído através tos, as inclinações que correspondem
de seus personagens. As circunstânci- a seu papel, e mesmo o grau de inteli-
as exigem de nós uma certa figura gência que com ele se relaciona ordi-
(Gestalt); quando as circunstâncias nariamente: – Primeiro a criança, o
mudam muito, cada um descobre em adolescente, etc., depois o papel liga-
si duas ou três figuras. – A partir de do à sexualidade, depois aquele que
cada instante de nossa vida, há nume- releva a posição social, em seguida o
rosas outras possibilidades: aí o acaso da profissão, em seguida o das obras.
sempre contribui!”. (VP I : 264) Mas que a vida lhe dá ocasião de mu-
dar, ainda que lhe atribua assim um
“Todo personagem é acima de tudo outro papel. Freqüentemente os pa-
um papel” (KGW VII 3, 34 [57]): isso signifi- péis em um mesmo homem são dife-
ca que o indivíduo não possui um fundo rentes de acordo com os dias, por
substancial original que vem à luz e que exemplo o inglês durante o domingo
ele é capaz de objetivar, como é o caso, por e o inglês durante a semana. Em um
exemplo, em Hegel. O indivíduo não é mesmo dia nós somos muito diferen-
uma substância, mas existe, ao entrar cons- tes, na medida em que nós estamos
titutivamente em seus papéis. Mas o que é despertos e que nós dormimos. E no
um papel? De onde vêm os papéis? Como sonho nós repousamos talvez do can-
eles podem pertencer ao corpo? Um papel saço que nos dá o papel diurno – e
não é apenas uma função social totalmente nós nos metemos em outros papéis”
exterior, que exige uma certa conduta pre- (KGW VII 2, 25{374]).
determinada, mas um acordo íntimo que a
sociedade solicita de nós, sob o plano da Os papéis que determinam a psicolo-
família, da profissão, das obras... As pul- gia individual cotidiana são impostos a
sões “coletivas” interiorizadas pelo indiví- partir do interior. Eles são condições de
duo são muito mais antigas e muito mais fato, e portanto eles produzem toda a ri-
poderosas do que as pulsões individuais. queza da interioridade (julgamentos, gos-
Os “papéis” representam as máscaras das tos, inclinações, inteligência). Ora a consta-

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tação maior que daí decorre é a de que se o mais homem, mas o super-humano (sur-hu-
acaso das circunstâncias (“a ocasião”) ofe- main).
rece ao homem poucos papéis, ele terá A afirmação da pluralidade dos pa-
uma outra psicologia. Partindo daí, Nietzs- péis não é ela uma transição para o super-
che sugere que se passe do fato ao ideal, da humano? Em todo caso, certos fragmentos
mudança sofrida à mudança desejada: não nietzscheanos sublinham que a pesquisa
aceitar passivamente os papéis, mas ver ou a aceitação da pluralidade dos papéis de-
como decorrem dos papéis todos os tipos veria facilitar a afirmação do eterno retor-
de conduta, pesquisar espontaneamente no. “Nós não devemos (dürfer nicht) querer
novos papéis. “Considerar nosso modo de um estado único, mas nós somos forçados
viver e de agir como um papel a jogar – (müssen) a querer nos tornar seres periódi-
compreendidas aí as máximas e os princí- cos = semelhantes à existência (fragmento in-
pios...” (VP I: 263). O homem ativo é aquele titulado “A filosofia do retorno”) (KGW VII 1,
que não passa por ator, mas assume o tanto 1 [70]). A pluralidade dos papéis não seria
de ator que ele é. Por aí ele reivindica como senão aquela que possuímos como homens
pertencente a toda a vida a conotação de em estado de vigília, e nossos papéis de
ilusão e de mentira associadas tradicional- sonhador nos ensinariam sobre o caráter cí-
mente ao jogo do comediante a parte da clico da existência. Por outro lado o francês
inautenticidade. Mas ao mesmo tempo, ele “rôle”, como no alemão “Rolle” (Nietzsche
torna mais leve essa parte de inautenticida- não o indica mas seria próprio da lógica
de, livrando-a da pesada responsabilidade nietzscheana tirar as conseqüências), deriva
da escolha moral. O homem ativo seria do latim “rótulus”, de “rota”, isto é, roda:
portanto aquele que afirma qualquer con- “pequena roda”.
duta com a qual ele possa desempenhar Nietzsche pergunta se essa pequena
um papel. Por aí é que ele se situa além da roda ou enrolamento sobre si mesmo com
moral. o qual se carrega o texto do “papel” escrito
“Tudo o que é imperativo e imoral se em pergaminho, se cada anel desse enrola-
endereça à pluralidade das máscaras que nós mento, não é como o cubo da grande roda
carregamos em nós e que ordena que nós do eterno retorno, que é o retorno de múlti-
nos mostremos um e nos ocultemos de ou- plos papéis. Toda a existência é papel;
tro modo: portanto, que nós mudemos de quer dizer: a rotação incessante de papéis.
aparência” (ibidem). O processo de “melhora- Em um outro fragmento, que tem por título
mento”, do “progresso moral”: “recriar um “O anel dos anéis”, Nietzsche sugere, sem di-
novo homem”, é indefinido mas ilusório, zer expressamente, que afirmar a “pessoa”
porque não se trata senão de uma mudança como ilusão, como potência metamórfica,
de aparência. Ora como Nietzsche sabe que ensina-nos a deixar de lado a identidade
não há outra coisa além das aparências, o individual substancial e a afirmar o ciclo
homem mais afirmativo será aquele que re- das identidades sempre provisórias, por-
cusará a fixação em um papel privilegiado que indefinidamente ou infinitamente su-
(uma regra devida determinada), mas que cessivas. Mas o ponto de vista da plurali-
desejará passar por uma série de estados e dade interna não é apenas aquele de uma
ideais, viver uma série de pessoas ou de sucessão: trata-se daquele em que há uma
personagens. – Ao vivê-las assim, sucessi- coexistência “social” de pessoas. “O homem
vamente, não seria porém exteriormente se- livre é ... uma sociedade de indivíduos”
melhante àquele que não vive senão alguns (VP I: 248). “O indivíduo é uma sociedade”
poucos papéis ou que os sofre passivamen- (VP I: 268). Efetivamente nós entretemos
te? Ora esse que viveria não em série mas com nós mesmos e em nós mesmos rela-
simultaneamente, numerosas personagens, ções sociais tão complexas e numerosas o
freqüentemente contraditórias, não seria quanto são aquelas que nós entretemos

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com os que nos cercam. A representação da ciedade, mas apenas “o homem livre” é ca-
vida interior como um monólogo ou como paz de perceber essa pluralidade de ma-
um diálogo reflexivo, um simples desdo- neira positiva, como algo digno de ser rei-
bramento de si mesmo, parece ser uma re- vindicada e de ser convertida de fato em
dução intelectualista arbitrária desta vida ideal.
social interior polimorfa que Nietzsche Desse modo, portanto, a origem dessa
descreve: permanênecia do esquema da socialidade
parece se situar na submissão imemorial
“Nós jamais nos tratamos individual- do indivíduo ao rebanho. Se o indivíduo
mente, mas de forma dupla, de forma carrega em si os papéis sociais, é como um
plural; todas as inclinações sociais traço, uma marca profunda de sua depen-
(amizade, vingança, inveja), nós a ex- dência arcaica e total com relação à socie-
perimentamos devidamente em nós dade. “Antigamente o eu se escondia no re-
mesmos. Nosso egoísmo ingênuo e banho, hoje o rebanho se oculta no fundo
animal é gravemente alterado pela do eu” (VP I: 256). Nietzsche levanta a hi-
nossa prática social : nós não temos pótese segundo a qual nas épocas primiti-
condições de sentir a unidade do eu, vas o indivíduo inicialmente vivia inteira-
nós nos encontramos sempre entre mente fundido na coletividade, como se
uma multiplicidade de seres. Nós nos fosse a parte de um organismo. A coletivi-
sentimos em numerosos seres e nós dade se serve durante longos períodos do
nos sentimos sempre novamente. Os indivíduo como se serve de um órgão.
instintos sociais (como inimizade, in- Nesse estágio, onde não havia indivíduos
veja, ódio) que supõem uma multi- independentes, os únicos instintos, senti-
plicidade, nos têm transformado: nós mentos, condutas eram aqueles que concer-
temos transportado em nós a “socie- niam ao homem enquanto membro da soci-
dade”, encolhida à nossa medida; reti- edade. É por isso que, ainda hoje, o ódio
rar-se em si mesmo não é mais uma ou o desgosto de o que prejudica a socie-
maneira de fugir da sociedade mas, dade é, em nós, mais “primitivo”, mais
freqüentemente, uma maneira de pro- imediatamente “nosso” que todos os senti-
longar pelo devaneio e interpretar o mentos egoístas. Mais tarde, quando a soci-
que se passa em nós, segundo o es- edade perde sua potência total sobre os in-
quema de nossas experiências anterio- divíduos, os instintos originariamente cole-
res...” (VP I: 255). tivos entram em conflito com as finalidades
individualistas que lhes são atribuídas. No
Esta “prática social” intra-individual entanto, não é sobre a base de uma livre
não está mais ligada a uma vida social ex- invenção de si, mas a partir de uma modifi-
terior, da qual ela seria, por exemplo, a an- cação dos instintos coletivos que o indiví-
tecipação ou a lembrança, como se esses duo emancipado frente ao organismo soci-
papéis fossem a repetição de discursos que al encontrará sua identidade própria: ele
nós possuiríamos ou que nós houvéssemos virá “a criar sua possibilidade de existência in-
dirigido aos outros. Trata-se, ao contrário, dividual graças a uma reorganização, uma
da interpretação conforme ao esquema da assimilação, uma eliminação dos instintos
socialidade de nossa experiência “solitá- dentro dele” (VP I: 249). Para Nietzsche, o
ria”. Que “nós” dirijamos a nós mesmos o “individual” não tem conteúdo senão deri-
amor, o ódio, a recompensa ou a culpa: eis vado: ele é uma transformação, uma remo-
um dado de fato, observável por todos, vá- delagem, uma nova interpretação dos ins-
lido para todos e que, no entanto, apenas tintos sociais; quer dizer: de práticas sociais
alguns reconhecem. O “nós” da descrição é determinadas e, enfim, de julgamentos que
aqui ambíguo. Todo o indivíduo é uma so- pertencem originariamente a um quadro

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social necessariamente revolucionado do ego é mais geralmente muito pouco eman-
ponto de vista histórico. De fato, é preciso cipado em relação à coletividade e porque
que muito tempo tenha passado para que ele é de toda maneira um anel – consciente
as práticas sociais tenham podido se fixar ou não – da cadeia dos seres vivos, um
sobre a forma de “instintos”. Portanto, é produto – consciente ou não – do passado
sempre contra uma outra sociedade que histórico, a maior parte das ações que nós
não a sociedade atual que o indivíduo se chamamos egoístas é efeito quer das “pai-
revolta. xões gregárias”, quer das necessidades ou
Notemos de passagem que a concep- das tendências que pertencem à espécie ou
ção heideggeriana do Dasein “autêntico” à linha, e não ao indivíduo! O cuidado ao
constitui uma variante desse tema nietzs- se vestir, o desejo de fazer fortuna ou a am-
cheano: o Dasein, para conquistar seu ser bição política não são nem mais nem me-
próprio, deve afirmar como suas as possi- nos egoístas que o instinto de conservação
bilidades que ele teria colocadas no “se”. ou o desejo sexual. Aí falta o verdadeiro
Da mesma forma que o eu se encontra inici- egoísmo. O ego individual desaparece
almente fundido no rebanho, a primeira e quando o indivíduo satisfaz totalmente
mais fundamental identidade do Dasein é uma função, quer ela seja simplesmente bi-
o “se” em si sesmo (Man-selbst). O que se- ológica (o prazer de se alimentar, o prazer
para radicalmente Heidegger de Nietzsche sexual ), ou social e diversificada: os gran-
é o fato de que para o primeiro as possibili- des “papéis”, como são o de príncipe, de
dades são “existenciais”, visadas transcen- profeta, de poeta, implicam com apaga-
dentais e não possibilidades instintivas, mento, uma verdadeira supressão do indi-
isto é: corporais. A margem de liberdade, víduo (KGW V 2, 12[93]).
de livre invenção de si, é muito mais fraca Nietzsche mostra que o imperativo
em Nietzsche, na medida em que a dificul- que comanda aí, sobretudo quando ele é
dade de reinterpretar os instintos sociais – de ordem fisiológica, é praticamente im-
sempre mais imperiosos e rígidos (o patri- pessoal, ainda que de modo paradoxal o
ota ou o homem de partido são capazes de imperativo moral que exige que não se sa-
muito maior paixão ou de maior ódio “ino- tisfaça ou se restrinja os desejos seja incon-
cente”, diz Nietzsche, do que a maior parte testavelmente inspirado pela pesquisa de
dos indivíduos que perseguem fins indivi- uma certa imagem de si mesmo. “No egoís-
duais) - é muito maior que a dificuldade de mo comum, é justamente o não-ego, o pro-
passar do se à própria ipseidade (por fundo ser banal, que domina” (KGW VVV
exemplo do “morreu-se” ao “eu me relaci- 2, 26 [262]). Ainda que a sensualidade seja
ono com a minha morte”). muito banal para definir um verdadeiro
Exatamente essa dificuldade a qual se egoísmo, a moral tem o eu em estima mui-
furta a posição do ego individual é a que to mais alta do que o exige um egoísmo
conduz Nietzsche a uma crítica paradoxal extraordinário.
do egoísmo. Como se pode falar do egoís-
mo, criticar o egoísmo, pois que não há ver-
dadeiro ego? O egoísmo também é algo 3 Desenvolver a dimensão cósmica
inexistente ou tão fraco quanto o próprio do eu
ego. “O egoísmo ainda é de uma fraqueza
infinita” (VP I: 256). “O egoísmo é uma coi- Não basta constatar que o eu não existe se-
sa de algum modo tardio e ainda muito paradamente do mundo. É preciso concluir
rara...” (UW II: 171). Antes de qualificar que o eu é seu mundo e, pouco a pouco, o
uma ação como egoísta, é preciso se per- mundo ou os mundos físicos, biológico e
guntar se um ego, e qual tipo de ego, se natural, histórico e social, intelectual ou es-
encontra no seu ponto de partida. Porque o piritual inteiramente. “Absorvemos em nós

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mesmos não apenas Deus, mas todos os se- vida em sua totalidade, tal qual se desen-
res cuja existência nós reconhecemos, mes- volveu até então, e não o resultado disso
mo que sem os nomear; nós somos o cos- tudo” (ibidem). “Cada ser singular é precisa-
mos, na medida onde nós o compreende- mente o processo inteiro em linha reta ( não
mos ou sonhamos. As oliveiras e as tem- apenas ‘hereditário’ mas ele mesmo...)...”
pestades se tornam parte de nós mesmos; (KGW VIII 2, 9[30]). “O ego vale cem vezes
da mesma forma que a bolsa de valores e o mais que uma unidade na cadeia dos mem-
jornal” (VP I: 255). Como mais tarde em bros; ele é a própria cadeia em sentido absoluto”
Heidegger, não há sujeito diante do mun- (ibidem 199, 10[136]; nós sublinhamos). Em
do, mas um ser no mundo. O homem não toda operação do inconsciente ou mesmo
desenvolve possibilidades próprias senão na medi- em toda percepção, o passado orgânico se
da em que elas lhe são oferecidas por seu mundo. reativa e se prolonga em sua totalidade,
Não há mundo puramente “exterior”, o muito mais do que em cada ato consciente
que não significa ausência de interioriza- refletido: “Em todo o julgamento dos senti-
ção, ausência de uma esfera privada. Niet- dos, toda a pré-história orgânica entre em
zsche zomba da ridícula superestimação jogo...” (VP I: 228). Como “resumo” de
do homem em relação ao mundo e da falsa todo passado da linha biológica, o indiví-
simetria que reside na atual fórmula “o ho- duo é da mesma forma portador de todo o
mem e o mundo” e que age como se hou- futuro desta linha. O indivíduo joga e arris-
vesse a menor igualdade entre os dois ter- ca mais que seu próprio futuro egoísta,
mos. O perigo que ameaça a individualida- mesmo quando ele crê que age por sua
de nietzscheana não é como, em Heide- única conta. “Nós somos mais que indiví-
gger, a da “queda” (o Verfallen); isto é: a duos: nós somos também toda a cadeia,
terrivelmente grande identificação com o com todas as tarefas de todos os futuros
mundo circundante, mas, ao contrário, a desta cadeia” (WM § 687).
percepção muito fraca dos múltiplos laços
de imbricamento do homem com este mun- “O homem, até o presente, foi o em-
do. O ser afirmativo, nobre, aceita e reivin- brião do homem do futuro. Todas as
dica o maior fundamento cósmico possível. forças plásticas que tendem na dire-
O eu se engrandece primeiramente se ção deste futuro estão nele mesmo; e
ligando a toda a linha da evolução, se inte- como elas são prodigiosas, resulta daí
grando à arvore da vida, a partir de suas um sofrimento para o indivíduo exis-
formas mais elementares. Deve necessaria- tente, na medida em que ele contribui
mente existir uma continuidade absoluta, a determinar o futuro. Eis a concepção
com transições ininterruptas, desde a pri- mais profunda do sofrimento: são as
meira fórmula viva até o “eu”. Isso deve forças plásticas em conflito. Não é
bastar para reduzir as absurdas pretensões preciso que o isolamento do indiví-
do indivíduo: este não é um fruto destaca- duo nos iluda: na realidade, há uma
do, mas o resumo, a repetição de toda a corrente comum que atravesse todos
ascendência não apenas da espécie mas do os indivíduos.” (VP I: 390; nós subli-
ser vivo em geral. Cada uma de nossas nhamos - MH)
ações é como uma retomada abreviada de
toda a história da vida. Todo ato é uma Uma das causas mais profundas de
repetição, não de um “eu”, mas do conjun- sofrimento para o indivíduo seria, portan-
to da vida. Em numerosos fragmentos, Ni- to, a desproporção entre sua realidade pre-
etzsche não deixa de sublinhar que “o ho- sente e as forças (que dentro dele mesmo
mem não é apenas um indivíduo, mas a lhe são maiores) que trabalham para prepa-
totalidade do orgânico que continua a vi- rar o nascimento da humanidade futura.
ver nele” (WM § 676). “O indivíduo é a Nietzsche, ao designar essas forças como

36 Revista FAMECOS • Porto Alegre • nº 13 • dezembro 2000 • semestral


uma “corrente comum” lançada em direção tade de potência uma unidade substancial
ao futuro, fornece aqui uma versão aparen- subjacente.
temente substancialista e evolucionista da Mas então por que falar de “corrente
vontade de potência [volonté de puissance] comum”? Nietzsche se deixa entreter pela
enquanto conjunto das forças que, de um metáfora da “corrente” quando ele afirma
lado, forma o substrato biológico comum a uma coisa totalmente distinta da que diri-
todos os indivíduos e, de outro, se conju- am um Schopenhauer ou um Bergson. O
gam em uma nuvem universal e progressi- que afirma ele? Não que uma energia origi-
va em direção a um tipo superior ao do nalmente única se divide em múltiplos in-
homem atual. Uma tal definição “realista” divíduos, quando ela se faz “mundo”,
da vontade de potência não a distinguiria como diria um, ou quando ela “cria”, como
de um vitalismo do tipo do querer viver diria o outro; mas, bem ao contrário, que
schopenhaueriano ou do impulso vital ber- toda formação individualizada participa de
gsoniano. Ora essa definição se encontra de uma estrutura única que se move a partir de
fato constantemente redobrada, compensa- uma única fonte pelo fato de que ela obe-
da, corrigida por uma versão não realista, dece por toda parte a uma mesma lei. Quan-
“perspectivista” da vontade de potência do Nietzsche escreve: “É a mesma força
como interpretação dos fenômenos a partir que se gasta na criação artística e no ato
do ponto de vista de tal ou qual força ou, sexual”, ele acrescenta também: “Não é
melhor dizendo, de tal ou qual relação de apenas um tipo de força” (es gibt nur Einer
forças. Do ponto de vista de um indivíduo Art Kraft) (VP I: 334). A força é do mesmo
que escolhe seus valores, quer dizer sua gênero (Art) por toda parte: ela é o que apa-
maneira de concretizar o imperativo de rece.
“ser mais”, próprio a toda vida, há uma Também se deve lembrar que essa
ruptura, um desvio frente à “corrente co- afirmação de uma unidade não substancial,
mum”: o índice máximo desta ruptura – co- mas estrutural e unificadora, típica, relati-
locada numa linha que se dirige ao futuro – viza a procura da multiplicidade, notada-
é o super-homem [Sur-homme]. Mas não é mente a intra-individual. Esta busca não re-
contraditório apresentar a vontade de po- pousa sobre uma quietude e uma seguran-
tência, por sua vez, como a unidade do ça profundas? Na medida em que se foi tão
meio vivo e como o jogo das forças, disper- longe do lado da divisão do eu, o perigo
sas em múltiplas perspectivas, isto é: ao da dispersão irrecuperável, o caos infecun-
mesmo tempo como identidade infinita e do, não é conjurado pela existência mesma
como diferença infinita? Não há “contradi- desta estrutura unificadora? Nietzsche não
ção” senão para uma lógica que deseja evi- pode se jogar tão alegremente na direção
tar a contaminação do um pelo múltiplo, do múltiplo senão porque ele não duvida
que deseja que de alguma forma subsista que um unificador constitui de uma certa
uma identidade pura. A vontade de potên- maneira o “fundo das coisas”? A pesquisa
cia é ao mesmo tempo una e múltipla, nela incansável da pluralidade e a visão do ca-
mesma e em cada uma das individualida- rácter proteiforme do ego e do mundo seri-
des nas quais ela se divide originalmente. am, então, como a contrapartida da vida
Quando Nietzsche enuncia “a hipótese” se- mesma do um, a respiração, a pulsação (o
gundo a qual se poderia “chamar toda ener- fluxo e o refluxo) de uma identidade que
gia em ação de vontade de potência” (ABM § se furta sem parar e que se reencontra ela
36), ele toma o cuidado de precisar que mesma sem parar. E quando Nietzsche des-
essa definição empresta ao mundo um “ca- creve que “o mundo” como “um mar de
ráter inteligível”, quer dizer, em termos forças envolvido em tempestade e em fluxo
kantianos, ele se pronuncia sobre o “em si” perpétuo, eternamente em vias de mudan-
da realidade. Não se deveria fazer da von- ça, eternamente em movimento de refluxo,

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como grandes anos de retorno regular, um rito absoluto, mas na subjetividade indivi-
fluxo e um refluxo de suas formas, indo dual elevada ao absoluto? Em primeiro lu-
das mais simples às mais complexas, das gar considere-se que o termo “absoluto”
mais calmas, das mais fixas, das mais frias que qualificaria a relação do indivíduo
às mais ardentes, às mais violentas, às mais com a história não designa Nietzsche uma
contraditórias, para voltar em seguida da mul- totalidade, mas uma soberania, no sentido
tiplicidade à simplicidade, do jogo de contrastes à em que o indivíduo tem de decidir sobera-
necessidade de harmonia, afirmando ainda seu namente, quer dizer de modo solitário (ab-
ser nessa regularidade de ciclos e de soluto) em uma relação íntima e particular,
anos...” (VP I : 216; nós sublinhamos), é relativamente à significação do passado
preciso confessar que a relação estabeleci- histórico, jamais objetivamente estabeleci-
da neste texto entre o múltiplo e o um fun- da de uma vez por todas, mas sempre ca-
ciona segundo uma estrutura platônica: o paz de se reafirmar, se transformar ou de
ser (o um e o idêntico) se encontra afirma- ser negado mas – em todo caso – a ser pro-
do através do devir (o múltiplo e o diferen- longado. Isso quer dizer, em segundo lu-
ciável) como o que lhe confere a perfeição, gar, que não há lugar nem no indivíduo,
isto é: a “santidade” (ele mesmo o diz um nem fora dele, onde a história possa se tor-
pouco mais adiante nessa mesma passa- nar universal, quer dizer venha a alcançar
gem). Não há platonismo no sentido em uma síntese conceitual ou retrospectiva. O
que haveria uma transcendência do um, indivíduo não pode se relacionar (fora da
mas no sentido de uma participação – aqui ficção da objetividade historicizante) “ab-
imanente – da pluralidade à unidade. No solutamente” em relação à história senão
entanto é preciso evitar tirar dessas formu- pela identificação ou pela assimilação afeti-
lações conclusões gerais e definitivas sobre va e prospectiva.
o caráter tradicionalmente metafísico da A ausência de totalização, o ponto de
vontade de potência e do eterno retorno, vista experimental e antecipador faz com
porque outras fórmulas, como veremos um que a noção nietzscheana fundamental de
pouco mais abaixo, acabam corrigindo e in- “sentido histórico” escape a qualquer tipo
flexionando aquelas que acabamos de citar. de hegelianismo. Nietzsche opõe constan-
Passando a tratar agora não mais da temente, desde a segunda consideração in-
evolução da vida mas da história humana, tempestiva até a Gaia Ciência e além, a sig-
parece difícil que o indivíduo possa aí se nificação hegeliana do sentido histórico a
dissolver, possa aí se integrar de maneira sua própria, descrevendo esse “sentido” ao
orgânica. Como o homem individual pode- mesmo tempo como a melhor e a pior das
ria recapitular espontaneamente a totalida- faculdades ou disposições do espírito. Será
de ou mesmo uma parte do passado huma- pior se ele for concebido, à maneira hegeli-
no? Uma herança histórica não se recebe de ana, como o sentido do determinismo, do
maneira “automática”, como um capital ge- peso do passado, do movimento irresistí-
nético: é preciso que o passado coletivo pe- vel e inevitável dos acontecimentos, que
netre na consciência, seja avaliado, seja co- nos faz curvar a cabeça e leva a adorar os
nhecido. “Nós temos a consciência de que a “fatos” e “a ordem estabelecida”. Ele é
história tem ela mesma um sentido absolu- igualmente perigoso na medida em que a
to” (Nachlass, 1887-1888, 11[374]). Por “nós”, hipertrofia de um saber que não tem outra
Nietzsche entende todo indivíduo. “Todo finalidade senão a de alcançar o saber e
homem é uma causa criadora de história” que por uma acumulação indigesta de co-
(KGW VII 1, 4[138]). Mas de qual maneira? nhecimento sobre as épocas as mais diver-
Não se trataria de um hegelianismo invertido, sas termina por introduzir o relativismo e o
quer dizer: de uma recuperação da totalida- distanciamento, além de levar à paralisia
de do passado, não no contexto de um espí- de toda a ação. O perigo é, enfim, o de que

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o “sentido histórico” leve ao jogo frívolo tados adquiridos, mas das possibilidades
com os ouropéis e os despoje do passado futuras que nela se descobrem. A Gaia Ciên-
do qual o homem moderno se reveste com cia (§ 337) descreve o que poderia ser um
uma compulsividade desesperada. futuro e um ainda inexistente “sentido his-
O século XIX constitui “a primeira tórico”, um sentimento da história que não
época erudita em matéria de costumes mo- seria mais dominado pela melancolia do
rais, artigos de fé, gostos estéticos, religi- olhar sentimental e retrospectivo, mas pela
ões...” (ABM § 223). O “sentido histórico” alegria ligada à descoberta de nossas novas
que permite situar todos os sentidos mo- possibilidades criadoras. O homem que
rais, intelectuais, artísticos, religiosos, de fosse “capaz de experimentar a história dos
conhecer todas as maneiras, de compreen- homens em seu conjunto como sua própria
der todos os julgamentos de valor passa- história”, que pudesse “condensar em um
dos, torna incapaz de aderir a algum mo- único sentimento” as derrotas e as vitórias
mento ou figura da tradição, não mais do de toda a humanidade, passaria antes de
que em relação ao presente. O homem mo- tudo pela fase – que nós podemos chamar
derno faz um uso niilista da história: não hegeliana – de abatimento, de azedume, de
crendo em nada, ele se serve dela como de cansaço infinito relativamente ao conjunto
uma revista de roupas e de acessórios. Ele do passado. Mas se esses heróis do fim de
se mascara de clássico, romântico, cristão ... tarde tivessem a força para afirmar que
flutua, erra através de todas as máscaras esse passado não existe senão em vista de
possíveis, que assediam os bastidores da um devir, que esse passado não era senão
história universal, esse grande teatro, cuja uma primeira tentativa, um primeiro en-
cena é mantida ocupada por um desfile saio, se pudesse acontecer desses heróis
multicolorido de carnaval. A única saída que, “ao se erguer o segundo dia de bata-
para o desespero que oculta essa frivolida- lha, saúdam a aurora e sua oportunidade”,
de é no sentido de empurrar o jogo até a ele seria preenchido por um sentimento de
sátira, até a paródia: em lugar de sermos felicidade transbordante e quase divino.
comediantes por desespero, trata-se de ser- Esse homem incorporaria toda a história
mos atores deliberados, “parodistas da his- passada como um único dia, apenas por acre-
tória universal” (ibidem). ditar em um “segundo dia”. Longe de ser
Se o projeto de uma paródia da histó- passivamente absorvido pela história, ele a
ria universal ainda pode ser interpretado absorveria, ele a colocaria para trás de si, se
como uma reação anti-hegeliana, há toda apoiando nela pela simples afirmação da
uma outra significação do “sentido históri- oportunidade que representaria um ama-
co” que nada tem de hegeliano e que con- nhã.
siste, para um indivíduo, em ter a força ne- Não está em questão aqui pesquisar o
cessária para considerar todas as experiên- que a segunda intempestiva chamava de
cias humanas como suas próprias experiên- história monumental, os exemplos de gran-
cias. Tal disposição de espírito nada tem a des homens ou de grandes ações a imitar.
ver com o humanismo intelectualista e uni- Assimilar-se à história como sua “própria
versalista, para o qual “nada do que é hu- história” é poder dizer da história e de si
mano me é estranho”. Não se trataria de mesmo ao mesmo tempo: não somente eu
um conhecimento abstrato do homem em fui, eu sou isso, mas isso “morreu” e conti-
geral, mas da participação afetiva e indivi- nua através de “mim”. A fórmula aparente-
dual na história como participação em um mente insensata que citamos freqüentemente:
conjunto de experiências aproximativas (“a “No fundo, todos os nomes da história sou
história é o grande laboratório de ensaios” eu” (Carta a Burkhardt, 6/01/1889) (fórmula
[UW I: 244]). Tratar-se-ia de perceber a his- que pertence efetivamente aos raros escri-
tória do ponto de vista não dos seus resul- tos da fase de “loucura” de Nietzsche) pos-

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sui equivalentes “racionais”: “Quando eu primeira enumeração: Platão, Pascal...
falo de Platão, de Pascal, de Espinosa e de exemplifica uma série de pensadores. Na
Goethe, eu sei que seu sangue corre em mi- segunda lista, onde dominam os fundado-
nhas veias...” (VP I: 386). “Em tudo o que res de religiões e onde figuram duas perso-
comoveu Zoroastro, Moisés, Maomé, Jesus, nagens históricas ligadas a acontecimentos
Platão, Brutus, Espinoza, Mirabeau, eu já violentos (o assassinato de Cesar, a Revolu-
estava presente e ainda que sob diversas ção Francesa), não há senão dois filósofos.
relações é em mim apenas que morre e nas- Não se trata, portanto, de uma ascendência
ce o embrião que teve a necessidade de puramente filosófica, mas de algum ponto
que isso tudo tivesse ocorrido alguns sécu- de semelhança maior, que talvez diga res-
los atrás... - o sentido histórico ainda está peito ao conjunto do horizonte histórico.
por nascer” (ibidem). Não há com efeito nada em comum com
A idéia de que a relação com o passa- essas personagens senão que elas têm,
do, a continuidade histórica, ao menos sob como se disse, “a marca da história”.
o plano da história do pensamento, consti- Nietzsche considera sua revelação do
tui um laço orgânico comparável aos “laços niilismo e do eterno retorno como um
de sangue”, a transmissão de características acontecimento que, “de maneira verossí-
hereditárias (“seu sangue”.... “o embrião mil, quebrará a história em dois pedaços”
que tem a necessidade de alguns séculos”) (O Caso Wagner): “Um dia meu nome será
– essa idéia implica uma assimilação meta- associado à lembrança de alguma coisa
fórica entre a formação de um eu que pensa prodigiosa, a uma crise como jamais houve
particular, através das diversas figuras his- na Terra...” (Ecce Homo, 1). A relação que
tóricas, e a formação de um único organis- seria então transistórica seria a relação com
mo, através de diferentes fases. Um laço o que na história representa o destino. “Eu
mais obscuro, mas mais estreito – um laço sou um destino” (ibidem). Como os nomes
“corporal” de parentesco, de ascendência, da lista, o nome de “Nietzsche” é e será
se encontra substituído por Nietzsche às re- sempre associado a uma crise ou a uma vi-
lações intelectuais habitualmente estabele- rada da história ou do destino; a uma rup-
cidas de precursor, de modelo ou de rival. tura e a um novo começo, o que supõe por
Essa noção de parentesco não significa que sua vez uma continuidade. Em qual medi-
o eu atual do filósofo dela seja o resultado, da e como essa continuidade não somente
o produto racional do desenvolvimento ló- entre os nomes dessa lista, mas também en-
gico desses pensadores anteriores. De fato tre “todos os nomes da história”, quer di-
é apenas “sob algumas relações”, e não to- zer entre todas as figuras que fizeram épo-
talmente, em si e para si, que esse eu atual ca e que são “nomes”, é determinada pelo
se revela como produto de o que se estabe- eu de Nietzsche?
leceu incubadamente entre os seus prede- Revertendo o hábito do pensamento
cessores ilustres. que consiste em identificar a sucessão cro-
Mas de qual “eu” se trata aqui? O que nológica com a causalidade e que consiste
significa “eu já estou presente”? É certo em considerar que o “eu” presente não
que se trata de um eu filosofante, de uma pode ser senão o resultado do desenvolvi-
variedade do ego cartesiano? Notaremos mento anterior, Nietzsche não formula um
que Nietzsche não diz: eu estou presente paradoxo, nem uma idéia delirante de toda
em tudo o que pensou Zoroastro, Moisés a potência divina: sua posição se apóia so-
etc. ... mas sim que esteve presente em bre uma dupla consideração relativamente
tudo o que foi “emitido”: isto é: em tudo ao tempo. De um lado, o passado sobrevi-
que pertence ao corpo de Zoroastro, de ve no presente (o presente começou muito
Moisés, etc.: à vontade de potência que se antes de surgir com o presente); de outro
manifesta neles. De outro lado, apenas a lado, o futuro condiciona certamente o pre-

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sente, mas também até o passado mais re- che, embora não para fundar seu pensa-
cuado (o que acaba modificando o sentido mento, tenha formulado hipóteses nesse
do que foi e de o que é). De um lado, de sentido, sobretudo para procurar confirma-
fato, é preciso transpor ao plano dos indiví- ção nas ciências físicas de seus pensamen-
duos históricos o que vale para o indiví- tos “abissal”). Afinal de contas, o eterno re-
duo biológico: não é somente ele mesmo torno reenvia a uma experiência – singular
seu sentido estreito de atualidade, ele é – de um indivíduo na história, ou a uma
“toda a cadeia” – até chegar até ele – dos experiência feita por um indivíduo em um
momentos da história. Os pensadores com momento particular relativamente a sua
os quais Nietzsche se liga ou contra os história e a história em geral. Essa experi-
quais ele se bate não apenas estão presen- ência na qual “tudo retorna, retornou, re-
tes nele; por sua vez ele está presente neles tornará” - a experiência da eternidade - é
como um desenvolvimento embrionário. intra-histórica, mas aquele que afirma sua
Isso vale para toda relação histórica funda- validade absoluta escapa à história enten-
mental. Napoleão teria podido dizer: na dida como desenvolvimento objetivo, ho-
Revolução Francesa: eu já estou presente. mogêneo e universal.
De um outro lado, essa presença antecipa- Nietzsche situa o anúncio do eterno
da significa: o pensamento que Nietzsche retorno no “centro” da “história mundial”.
torna manifesto – em particular o lirismo, a Ele freqüentemente também o chama de “a
negação dos valores mais altos – já deve virada” da história. “No momento no qual
estar presente, de modo latente, involuído, este pensamento se faz presente tudo toma
mas claro, na posição platônica, cristã, raci- uma outra cor e se trata de uma outra história
onalista, dos valores mais altos. As revela- que começa” (VP II: 28, sublinhado por MH).
ções do futuro rondam, trabalham o “pas- A doutrina do eterno retorno deve modifi-
sado”. Todo pensador estende sua influên- car antes de mais nada a compreensão da
cia não apenas sobre a posteridade, mas história e, paulatinamente, o próprio estilo
para muito longe antes de si mesmo: Niet- de seu transcurso: “A história do futuro –
zsche já rondava Platão, definido-o intima- de mais a mais, é esse pensamento que im-
mente. portará...” (VP I: 287). Nietzsche profetiza
Mas como pôr de acordo essa visão uma lenta impregnação da humanidade
de uma história tecida por linhagens e as- por este pensamento: essa doutrina levará,
cendências secretas, de uma história desli- diz ele, “milhares de anos” para se impor a
gada da cronologia mais estreita, e no en- “toda a humanidade futura” (ibidem). Ela
tanto fundada sobre a idéia de um cresci- joga, portanto, um papel intra-histórico.
mento espiritual que progride através de Mas ela não é menos supra ou extra-históri-
múltiplos indivíduos, com a afirmação car- ca, sobretudo porque ela é supra ou extra-
deal da filosofia nietzscheana, aquela do temporal ( o instante onde se revela o retor-
eterno retorno do mesmo? O retorno do no contrai o futuro no passado, projeta o
idêntico não exclui toda gênese e todo de- passado em um futuro ilimitado); em se-
senvolvimento? Não é preciso crer ou na guida porque ela depende de uma adesão
história ou no eterno retorno? Em realida- tão estreita e tão íntima do indivíduo a seu
de, não existe dilema ou contradição entre fatum (como a qualquer fatum) que ela não
a historicidade e o eterno retorno, senão pode se manifestar sobre a cena da história.
concebendo o eterno retorno como um fato, A consciência histórica não pode senão re-
como um modo efetivo de existência da to- jeitar a idéia de afirmação de um “eu estou
talidade do existente. Ora o eterno retorno no mundo de uma vez por todas”, porque
não é uma dimensão cósmica factual, nem ela não vê aí senão a resignação, o fatalis-
“em si mesmo”, nem como uma lei objetiva mo da fraqueza, a renúncia a todo o pro-
universal da natureza (ainda que Nietzs- gresso. Enfim, a idéia de uma harmonia ou,

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ao contrário, de uma fusão, secreta e sem que prefere crer em sua desaparição para
falta, entre o eu e o mundo (o que se expri- sempre, ao invés de seu retorno). O indiví-
me pela fórmula ego factum) lhe parece si- duo que afirmaria o retorno seria o super-
nônimo de estatismo e escapa por princí- homem [Sur-homme]. Por isso é preciso
pio à dialética histórica, fundada sobre a manter o caráter condicional, hipotético, de
oposição do eu e do mundo e em sua trans- um tal grau de afirmação. Para fazer do
formação recíproca. eterno retorno uma proposição metafísica
Mas essa fusão sempre singular não é clássica, Heidegger deve desviar-se da for-
anunciada senão como uma possibilidade (se ma do condicional e dizer “o eterno retorno
tu crês profundamente que tudo volta, o do mesmo enuncia como é a totalidade do
que disso resultará para ti e para o mun- existente...” (ibidem, p. 32). Ora, o eterno
do?), e não como uma modalidade objetiva retorno enuncia como seria a totalidade para
de existência das coisas. Parece difícil de aquele que a afirmasse sem restrições, sem
seguir aqui a leitura heideggeriana, que in- a menor reserva a respeito de um da capo
terpreta o eterno retorno como provindo da eterno. Se Nietzsche pode distinguir entre
categoria metafísica da existência e em rela- aqueles que não acreditarão em suas pala-
ção à qual a vontade de potência seria a vras e que, portanto, não terão consciência
essência. “O modo segundo o qual o exis- senão de uma existência fugidia e aqueles
tente em sua totalidade – no qual a essentia que, nele crendo, terão sua vida marcada
é a vontade de potência – o modo sobre o pelo sinal da eternidade, é bem porque o
qual o existente em sua totalidade existe, eterno retorno não constitui, como crê Hei-
sua existentia, é o eterno retorno do mesmo”.6 degger, o modo de existência da totalidade
Para conceder essa função ao eterno retor- do existente; é porque, rigorosamente, o
no, Heidegger se baseia principalmente so- eterno retorno escapa à metafísica, porque
bre o fato de que ele a relaciona com a tota- nenhuma metafísica se funda sobre uma
lidade do existente. Ora assim fazendo, ele proposição hipotética, mas, ao contrário,
passa silenciosamente não apenas sobre as procura sempre o incondicionado, o anhypo-
numerosas reservas que Nietzsche associa thèton. Qualquer metafísica é um discurso
a sua formulação de um conceito de totali- sobre a phusis, uma física, um realismo. O
dade (em particular a idéia de que a totali- pensamento do retorno como pensamento
dade do círculo do retorno não deveria ser de uma experiência possível do mundo é
quebrável, lacunar, imperfeita: isto é, não irreal e irrealista.
deveria ser um círculo vicioso), mas a impos- O eterno retorno contém em si mes-
sibilidade de conferir a essa totalidade o mo, por isso, uma crítica implícita da ten-
caráter de objetividade tanto quanto o de dência realista, dirigindo-se no sentido de
subjetividade. O eterno retorno não pode uma ampliação da subjetividade individu-
ser convertido em lei universal e objetiva al pelo lado de seu enraizamento em um
da natureza, pois depende de uma afirma- mundo orgânico e histórico. Desenvolver a
ção singular; mas também não se deveria “dimensão cósmica do eu” representa uma
dizer que “tudo volta” é apenas subjetivo, reconquista da densidade carnal, da terra,
porque isso seria colocar-se no ponto de dos laços que fazem com que o sujeito ja-
vista totalmente fictício de uma objetivida- mais seja insulado. Nesse sentido, a fórmu-
de em si, situada fora de toda perspectiva. la [acima] não deve ser renegada. Mas essa
Para o indivíduo que afirma o retor- conquista continua sendo desprezível em
no, a extrema subjetividade se reencontra comparação com a verdadeira transmuta-
com a extrema objetividade. Mas esse grau ção da subjetividade que consistiria na su-
de afirmação é tão elevado que para ele pressão da velha oposição entre o ego e o
ainda não existe uma humanidade que mundo. Falar de uma “dimensão cósmica
dela seja capaz (o homem é um ser niilista do eu” é sempre e ainda tomar o eu como

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base e como ponto de partida. Nas fórmu- fatum que o compreende se compreenden-
las: ego fatum, amor fati, quem é o sujeito? do nele mesmo.
Não é também o fatum? Porque o amor no Diante das riquezas das análises críti-
amor fati não é, como pensa Heidegger, o cas e das tentativas feitas por Nietzsche
supremo esforço da vontade para querer para responder à questão da subjetividade,
um “objeto mais alto”, a totalidade do exis- não podemos, no término deste percurso,
tente em seu incessante retorno [Nietzsche I aceitar a idéia heideggeriana, segundo a
365]: esse “desejo do destino” não tem ape- qual a filosofia nietzscheana perpetua pura
nas o sentido do genitivo “objetivo”, mas e simplesmente o modelo clássico da meta-
também o do genitivo “subjetivo”, na me- física do sujeito nos tempos modernos e
dida em que é essa totalidade ela mesma, o que ele leva essa última a seu “acabamen-
“fatum”, que assume esse desejo ou essa to”. Certamente Heidegger tem razão ao
vontade. E se existe um querer, trata-se de mostrar que a essência da subjetividade
um querer receber, um querer aderir, que não reside no primado conferido ao eu,
não deveria ser objetivante. A vontade e o mas sobretudo na posição de um sub-jectum
sujeito não são eles metamorfoseados, (Nietzsche II 238), isto é: de um substrato
“neutralizados”, na medida em que eles subjacente que joga o papel de fundamento
são queridos pelo fatum? A afirmação sem último e absoluto. Para ele, Nietzsche teria
reserva do fatum significa que o fatum se conferido à vontade de potência enquanto
afirma através do “eu”. Essa reversão trans- corpo essa função de subjacência fundado-
figura a vontade (Heidegger interpreta o ra e incondicional. Porém, essa interpreta-
“amor fati” como uma “vontade transfigu- ção é redutora em diversos pontos. De iní-
rante de pertencer ao destino” mas não é cio ela negligencia o fato de que a vontade
ela, ao contrário, uma vontade transfigura- de potência não se encontra jamais identifi-
da por seu pertencimento ao destino?) su- cada a uma substância e, sobretudo, não
primindo o primado da subjetividade. constitui uma base sobre a qual se desen-
Mas o que é o fatum? Ele não é apenas volvem os fenômenos, pois é tão-somente a
o encadeamento objetivo, colocado fora do sua estrutura interpretativa.7 De outra parte
eu, de todos os eventos do mundo suscetí- essa leitura não leva em conta a colocação
veis de me conceber e capaz de serem con- em questão radical através da qual Nietzs-
cebidos como inevitáveis e determinados che questiona a oposição sujeito e objeto. A
por princípio. Fatum, de fari – dizer – é “o metafísica tradicional do sujeito implica a
dito” que não provem de mim, a palavra noção de uma representação objetiva ou
entendida – de onde ela viria? De um objetivante. Ora o próprio Heidegger reco-
Deus, de um demônio (GC § 341), de uma nhece que o “estado estético”, tal qual é
potência sobre-humana – que me sussurra descrito por Nietzsche e que, como tal, ma-
na orelha a assustadora e exultante revela- nifestaria “a expressão mais transparente
ção: “Tu és isso, tu o fostes e tu o serás” e, da vontade de potência ”, escapa à duali-
ademais, “tudo retorna, retornou e retorna- dade sujeito-objeto. “A beleza não é exata-
rá”. Na fórmula ego fatum, é impossível se- mente o objeto dado de uma representação
parar o que pertence ao ego como sujeito pura ... O estado estético não é nem alguma
do que pertence ao fatum, que não é um coisa de subjetivo, nem alguma coisa de
objeto, mas algo que de alguma forma é objetivo” (Nietzsche I 116). Da mesma forma
mais sujeito do que o sujeito. Aqui o ego que a beleza, o fatum, qualquer que seja o
não se coloca ele mesmo de maneira total- sentido que lhe atribuamos, não é objetivo,
mente segura e transparente, como na me- nem subjetivo. Pelo menos, é preciso con-
tafísica tradicional da subjetividade: ele fessar que a noção de representação de um
provém de uma palavra, do dizer-se fatum, objeto sobre a cena da subjetividade se en-
e não é compreensível sem a totalidade do contra fortemente abalada. Finalmente, a

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interpretação heideggeriana desconhece o Notas
fato de que o ego fatum não seria senão uma
expressão hipotética do eterno retorno, uma 1 Traduzido por Francisco Rüdiger do original francês pu-
supressão possível das antinomias entre o blicado em Nietzsches-Studien Vol. 12: 80-110 (Berlim:
eu e o não-eu, a liberdade e a necessidade, Walter de Gruyter, 1983). Revisão de Juremir Machado
a atividade e a passividade que leva à ruí- da Silva. VPI e VPII referem-se, no texto, aos volumes da
na do sub-jectum. Pode-se concluir que o su- tradução francesa de Genevieve Bianquis (Paris, 1948, 26ª
jeito soçobra em um abismo, na vertigem ed.) para Der Wille zur macht (A vontade de poder, 1935); WM à
do eterno retorno ou na loucura, mas que edição clássica dessa obra (1906); UWI ou UWII aos volu-
em nenhum caso o sujeito metafísico sub- mes de fragmentos póstumos reunidos sob o título
siste imutável como o fundamento venerá- Unschuld des Werdens da edição de bolso das obras comple-
vel e inquebrantável. tas do filósofo publicadas por Kröner Verlag; KGW aos
Restaria elucidar as razões que fize- volumes da edição crítica das obras completas do filóso-
ram Heidegger explorar uma construção fo organizada por Giorgio Colli e Mazzarino Montinari
tão pouco defensável. Sua própria aspira- (Berlim: Walter de Gruyter, 1967ss); Nietzsche aos volumes
ção a encontrar uma identidade “autêntica” da tradução francesa da obra do mesmo nome, escrita
para o Dasein, uma totalidade definida e por Martin Heidegger (Paris: Gallimard, 1971).
uma finitude acabada, sua desconfiança em
relação à dissipação do sujeito na multipli- 2 Todavia excetuam-se dessa observação comentadores
cidade (das ocupações, por exemplo) segu- mais recentes, como W. Müller-Lauter.
ramente não são estranhas à matéria, mas é
preciso deixar essa interrogação para mais 3 Descartes: Meditation seconde (Ouevres philosophiues, edi-
tarde. ção Alquié, t. II, p. 419).
Pode-se dizer que Nietzsche mudou a
essência da subjetividade? O “eu plural”, o 4 Critique de la Raison Pure (2ª ed., § 17, B 136).
“eu cósmico” não são senão ensaios para
contornar o fato massivo do ego e, no en- 5 Ainda que o uso dos termos traduzidos por nós como
tanto, contra uma longa tradição (à qual o “instinto” e “pulsão” (Instinkt e Trieb) não corresponda a
primeiro Heidegger em parte também per- uma codificação rígida, Nietzsche – desde O nascimento da
tence), que identifica o indivíduo com o fe- tragédia – designa por Trieb as forças “naturais” (perten-
chamento sobre a intimidade consciente, centes a physis mais geral e mais elementar: por exemplo,
contra a procura quase sagrada do próprio, ao apolíneo e ao dionisíaco), reservando a palavra Instinkt
da esfera privada, Nietzsche esboça a pos- aos que, em cada caso, têm um significado especial (ins-
sibilidade, talvez mais oriental que ociden- tinto de conhecimento, instinto de apropriação) e, em,
tal, de um indivíduo aberto, ou em todo o sentido mais limitado, a um sujeito particular (a um tipo
caso cujos limites não sejam definidos nem humano determinado), isto é: mais socializado. Daí a
pela consciência de si, nem pelo autoposi- nuance pejorativa associada à palavra Instinkt (a propósi-
cionamento, nem pela segurança de uma to ver a nota dos tradutores à edição de O nascimento da
identidade indivisível. Retornando a Herá- tragédia das obras completas).
clito além de Platão, ele nos recorda da
sentença do filósofo de Éfeso: “ Tu não de- 6 Heidegger: Hollzeweg (Trad. franc.: Gallimard, p. 196).
verás obedecer os limites da alma a tal
ponto “ (Fragmentos pré-socráticos, § 45). 7 Fazendo essa crítica nós lamentamos não ter tido conhe-
A psiquê é abertura e, essa, sem limi- cimento, antes do término deste trabalho, do notável e
tes. Será o medo da falta de limites que exaustivo estudo de Wolfgang Müller-Lauter, Nietzsche
presidiu ao nascimento do sobre si mesmo Leher vom Willen sur Macht, aparecido nos Nietzsche-
da finitude ? Studiem, vol. 3 (1974): 1-60. Entretanto, devemos assi-
nalar que concordamos em muito com as conclusões
desse estudo, em particular no tocante a dois pontos

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precisos: 1) quando o autor mostra que não se pode
atribuir à vontade de potência a unidade e universalida-
de de uma ¨essência¨ ou de um princípio supremo da-
queles postulados pela metafísica tradicional (cf. a exce-
lente crítica à posição heideggeriana, notadamente na
nota 68 da página 23); a vontade de potência não existe
de fato senão como uma pluralidade não-totalizável de
forças engajadas em relações complexas e variáveis de
oposição, subordinação, comando e obediência; 2) quan-
do se mostra que o perspectivismo nietzscheano, como
filosofia interpretativa, não pode ser reduzido a uma for-
ma de subjetivismo (o que não significa que Nietzsche
seja situável fora de o que Heidegger chama de
metafísica da subjetividade) (vide nota 32 da p. 13 e pp.
43, 44, 59). Tomamos a liberdade de remeter o leitor a
esse importante artigo, que fornece um impressionante
leque de análises textuais nesse sentido e ainda traz
uma sólida contribuição ao esclarecimento da proble-
matização geral do ¨sujeito¨ em Nietzsche [ver trad. bras.
de Oswaldo Giacoia: São Paulo, Annablume, 1997 –
nota do Org.].

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