Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
o desafio da semiologia
0 ) Uma parte deste texto é proveniente de um artigo composto por ocasião de uma in-
vestigação sobre o Futuro da filosofia.
(2) Cf. acima: Heidegger e a questão do sujeito.
231
O G m flito das Interpretações
I. A CONTESTAÇÃO DA PSICANÁLISE
232
.1 Questão do Sujeito
233
O Conflito ias Interprctüy v.;
234
A Qucstíin do Sujeito
235
O Conflito das Interpretações
enuncia no famoso adágio: Wo es war, soll icti werden. "Onde estava o Isso,
deve passar a estar o eu (je)M.
Esta breve revocação dos principais pontos da doutrina freudiana do
sujeito deixa entrever que a psicanálise não eliminou de modo nenhum a cons-
ciência e o Eu; ela não substituiu, mas deslocou o sujeito. Viu-se que cons-
ciência e Eu continuam a figurar entre os lugares e os papéis cujo conjunto
constitui o sujeito humano. O deslocamento da problemática consiste no
facto de que já nem a consciência, nem o Eu estão na posição do princípio
ou da origem. Que exigência de reformulação resulta deste deslocamento?
Partamos do último ponto atingido na exposição precedente: o "eu "
deve passar a estar aí onde o “ Isso" estava. Esta conclusão reune-se a uma
nota anterior sobre a consciência. Freud, dizíamos, substitui o ser consciente
(Bewiisst-seínJ pelo tomar-se-consciente (Bewusstwerden ). Aquilo que era ori-
gem torna-se tarefa ou alvo. Isto compreende-se muito concretamente: a
psicanálise não poderia ter outra ambição terapêutica senão alargar o campo
de consciência, e dar ao Eu um pouco da força cedida aos seus três poderosos
senhores. Esta posição da consciência e do Eu como tarefa e como domínio
continua a ligar a psicanálise à posição do Cogito. Só quef o Cogito que atra-
vessou a prova critica da psicanálise já não é aquele que o filósofo reivindicava
na sua ingenuidade prê-freudiana. Antes de Freud, confundem-se dois mo-
mentos: o momento da apodictiddade e o momento da adequação. Segundo
o momento da apodictiddade, o eu penso - eu sou está verdadeiramente im-
plicado até na dúvida, até no erro, até na ilusão: mesmo se o génio maligno
me engana em todas as minhas asserções, é necessário que eu, que penso,
eu sou. Mas este momento de apodictiddade inexpugnável tende a confundir-
se com o momento de adequação segundo o qual eu sou £ai como me aper-
cebo. O juízo tético, para retomar a expressão de Fichte, a posição absoluta
da existênria, confunde-se com um juízo de percepção, com a apercepção do
meu ser-tal. A psicanálise introduz uma esquina entre a apodictiddade da
posição absoluta de existênda e a adequação do juízo que indde sobre o s*r-
-tal. Eu sou, mas o que sou eu, eu que sou? Eis o que eu já não sei. Por outras
palavras, a reflexão perdeu a segurança da consdênda. Aquilo que eu sou é
tão problemático como é apodíctico que eu sou.
Este resultado podia ser previsto pela filosofia transcendental de tipo
kantiano ou husserliano. O carácter empírico da consciênda permite os
236
A Questão do Suieito
237
( ) Conflito dar Interpretações
é assim que a leitura de Freud se torna ela própria uma aventura da reflexão.
Aquilo que resulta dessa aventura é um Cogito ferido, um Cogito que se põe,
mas que não se possui, um Cogito que apenas compreende a sua verdade ori-
ginária na e pela confissão da inadequação, da ilusão, da mentira da consciên-
cia imediata.
Receberá a filosofia do sujeito, da psicanálise outra lição diferente desta
rectificação crítica? O enraizamento da existência subjectiva no desejo deixa
aparecer uma implicação positiva da psicanálise para além da tarefa negativa
de des-construção do falso Cogito. Merieau-Ponty propunha o título de ar-
queologia do sujeito para esta incarnação pulsional.
Este aspecto do freudismo não é menos importante do que o preceden-
te: a dissolução dos prestígios e dos ídolos do consciente é apenas o inverso
de uma descoberta, a da “ económica", que Freud dizia ser mais fundamental
do que a “ tópica” . É nesta “ económica” que sobressaem os aspectos tempo-
rais do desejo, ou antes a sua ausência de relação com o tempo ordenado do
real. O carácter “ intemporai“ , “ fora do tempo” , dos desejos inconscientes é,
sabe-se, um dos carácteres distintivos do sistema Ics em relação ao sistema Cs.
É ele que comanda o lado selvagem da nossa existência pulsional. É ele,
sobretudo, que inflige os atrasos afectivos que a análise despista no coração
da neurose e em todos os registos de fantasmas, desde o sonho até aos ídolos
e às ilusões. É precisamente este carácter arcaico do desejo que transparece no
plano ético da culpabilidade, como no plano religioso do receio de punição
e do desejo infantil de consolo.
Esta tese da anterioridade, do arcaismo do desejo é fundamental para
uma reformulação do Cogito: como Aristóteles, como Espinosa e Leibniz,
como Hegel, Freud coloca o acto de existir no eixo do desejo. Antes de o
sujeito se pôr consciente e voluntariamente, ele já estava posto no ser ao nível
pulsional. Esta anterioridade da pulsão em relação à tomada de consciência
e à volição, significa a anterioridade do plano ôntico em relação ao plano re-
flexivo, a prioridade do eu sou sobre o eu penso. Resulta daqui uma interpre-
tação menos idealista, mais ontológica, do Cogito; o acto puro do Cogitor
enquanto ele se põe absolutamente, é apenas uma verdade abstracta e vazia,
tão vã como é invencível. Resta-lhe ser mediatizado através da totalidade do
mundo dos signos e através da interpretação desses signos. O longo desvio é
precisamente o da suspeita. Assim, a apodicticidade do Cogito e o seu carácter
238
A Questão do Sujeito
239
O Conflito :hn Interpretações
240
A Questão do Sujeito
241
O Canilito uVb hiterprcia< õth
242
, 1 Questão Jo Sujeito
expressão. Do ponto de vista feno men ológíco, isto é, para o sujeito falante
que usa a sua língua como um meio de comunicação com uma comunidade
viva, a língua reencontra a sua unidade: ela já não é o resultado de um passado
caótico de factos linguisticos independentes, mas um sistema de que todos os
elementos concorrem para um esforço de expressão único voltado para o
presente ou para o futuro, e, portanto, governado por uma lógica actual1'
( Signos, p. 107).
Como se vê o diálogo com o cientista é mal travado; ele até nem é tra-
vado: não é do lado da língua, considerada, como objecto de ciência, que está
o sistema; contra Saussure e as suas definições iniciais, é dito que a linguística
vê "a linguagem no passado" (ibid., p. 107). Seria, pelo contrário, na actuali-
dade da fala que um sistema se instituiria. Tendo colocado a sincronia do lado
do sujeito falante, e a diacronia do lado objectivo da ciência, a fenomenologia
tenta incorporar o ponto de vista objectivo no ponto de vista subjectivo, mos-
trar que uma sincronia da fala envolve a diacronia da língua.
Assim colocado, o problema parece mais fácil de resolver do que se
tornará para a geração seguinte. Ele consiste em mostrar como a língua no
passado habita a linguagem no presente: é a tarefa de uma fenomenologia
da fala mostrar essa inserção do passado de língua no presente de fala; quando
falo, a intenção significativa é em mim apenas um vazio determinado a preen-
cher pelas palavras; é então preciso que ele se encha, ao realizar "um certo
arranjo dos instrumentos já significantes ou das significações já falantes (ins-
trumentos morfológicos, sintáticos, lexicais, géneros literários, tipos de narra-
ções, modos de apresentação do acontecimento, etc.), que suscita no auditor
o pressentimento de uma significação diferente e nova, e inversamente realiza
naquele que fala ou que escreve a ancoragem da significação inédita nas signi-
ficações já disponíveis" (p. 113). Assim, a fala é a reanimação de um certo
saber linguístico que vem das falas anteriores dos outros homens, as quais se
depositaram, "sedimentaram", “instituiram” , até se tornarem esse haver dis-
ponível pelo qual eu posso agora dar uma carne verbal a esse vazio orientado
que é em mim a intenção significativa quando vou falar.
Esta análise de Signos permanece na linha do grande capítulo da Feno-
menologia da percepção onde a linguagem era assimilada a um "gesto” que
emprega um saber-fazer, um poder adquirido. Será a linguagem, tal como os
linguistas a consideram, assim levada a sério? O facto de que a noção de
243
O ( b n flito das Iníerprvraçoeu
244
A Questão cio Sujeito
245
<> C on fliu* da ■
. ffirerpretacôes
246
/I Questão do Sujeito
(1) Cf. E. Benveniste, Problemas de linguística geral: "Para o sentimento ingénuo do fa-
lante como para o linguista, a linguagem tem como função "dizer alguma coisa". O que
é exactamente essa alguma coisa em vista do qué a linguagem é articulada, e como a de-
li mitar em relação á própria linguagem? O problema da significação está posto" (p. 7}.
Ora esta função não é outra coisa senão "a faculdade de representar o real através de um
"signo" e de compreender o signo como representando o real" <p. 26).
247
0 Cí nfl íu ) das ínierprcrações
(1) Sobre a noção da palavra como signo lexical em posição de frase, cf. a Estruturar a
palavra, o acontecimento, acima, p. 79. A palavra, dizemos nesse artigo, é o ponto de
articulação do semiológico com o semântico, da forma com o sentido, em cada instância
òe discurso.
248
A Questão do Sujeito
249
<> ( o nfhu * das Interpretações
que aquele que fala se lhe apropria do sentido para se designar a eie próprio:
a significação eu é de cada vez única, ela refere-se à instância de discurso que
a contém e unicamente a ela. “ Eu é o indivíduo que enuncia a presente ins-
tância de discurso que contem a instância linguística eu” (íJbid., p. 252).
Fora desta referência a um indivíduo particular que se designa a ele próprio ao
dizer eu, o pronome pessoal é um signo vazio de que nâo importa quem pode
apoderar-se; o pronome espera aí, na minha língua, como um instrumento
disponível para converter essa língua em discurso, pela apropriação que eu
faço desse signo vazio.
Surpreendemos assim a articulação língua-fala: ela repousa em parte
sobre signos particulares - ou “indicadores” - de que os pronomes pessoais
são apenas uma espécie, ao lado dos demonstrativos e dos advérbios de tempo
e de lugar. Estes signos não conotam uma classe de objectos, mas designam
a presente instância de discurso; eles nâo nomeiam, mas indicam o eu, o aqui,
o agora, o isto, em resumo, a relação de um sujeito falante com uma audiên-
cia e uma situação. O que é admirável é que “a linguagem está organizada de
tal modo que permite a cada locutor apropriar-se da língua inteira ao desi-
gnar-se como eu” (p. 262).
Seria de retomar o problema do verbo no mesmo sentido. Há, por
um lado, uma estrutura das relações de tempo característica de uma língua
dada; há, por outro lado a enunciação do tempo numa instância de lingua-
gem, numa frase que, enquanto tal, temporaliza globalmente o seu enun-
ciado. É esta enunciação que se designa a ela própria pelo tempo presente
e, por este meio, põe em perspectiva todos os outros tempos. Esta referência
ao presente é totalmente comparável ao papel ostensivo (ou deíctico) dos
demonstrativos (isto, aquilo...) e das locuções adverbiais (aqui, agora...):
“este presente apenas tem como referência temporal um dado linguístico: a
coincidência do acontecimento descrito com a instánda de discurso que o
descreve” (p. 262).
Quer isto dizer que o eu é uma criação da linguagem? O linguista é ten-
tado a dizê-lo (“ só a linguagem, escreve Benveniste, funda em realidade, na
sua realidade, que é a do ser, o conceito de ego” [p. 259]). O fenomenólogo
objectará que a capaddade do locutor para se pôr como sujeito e opor-se a
um outro como interlocutor é a pressuposição extra-linguística do pronome
pessoal. Ele será fiel à distinção do semiológico e do semântico segundo a qual
250
/I
251
fJ C cn 'ïito tias Interpretações
252
A Questão lio Suieito
253
(* ' •w\Jui*'i </(/-. hncrprctQçõi^
254
A Questão do direito
255
OConflift) das Interpretações
256
1 Qutstiio do Sujei!- *
257
O Conflito aat Interpretações
258
1 Questão do Sujeito
259
0 Conflito das Interpretações
signo atinja a coisa, a toque, e morra com o seu contacto. A pertença da lin-
guagem ao ser exige, portanto, que se inverta uma última vez a relação e que a
linguagem apareça ela própria como um modo de ser no ser.
Ora, a psicanálise prepara esta inversão a seu modo: a anterioridade, o
arcaismo do desejo, que justificam que se fale de uma arqueologia do sujeito,
impõem que se subordine a consciência, a função simbólica, a linguagem, á
posição prévia do desejo. Como Aristóteles, como Espinosa e Leibniz, como
Hegel - dizíamos mais acima —, Freud coloca o acto de existir no eixo do
desejo. Antes de o sujeito se pôr consciente e voluntariamente, estava já
posto no ser ao nível pulsional. Esta anterioridade da pulsão em relação á
tomada de consciência e à volição significa a anterioridade do plano ôntico
em relação ao plano reflexivo, a prioridade do eu sou sobre o eu penso. O
que dizíamos há pouco da relação da pulsão com a tomada de consciência,
tem que se dizer agora da relação da pulsão com a linguagem. O eu sou é
mais fundamental do que o eu faJo. É, pois, preciso que a filosofia se ponha
a caminho em direcção ao eu falo a partir da posição do eu sou, que do pró-
prio seio da linguagem se ponha “ a caminho em direcção á linguagem",
como o requer Heidegger. A tarefa de uma antropologia filosófica é mostrar
em que estruturas ônticas a linguagem advém.
Evocava há pouco Heidegger; seria preciso que uma antropologia
filosófica tentasse hoje em dia, com os recursos da linguística, da semiologia
e da psicanálise, refazer o trajecto desenhado por Sein und Zeit, esse trajecto
que parte da estrutura do ser no mundo, atravessa o sentimento da situação,
a projecção das possibilidades concretas e a compreensão, e se projecta em
direcção ao problema da interpretação e da linguagem.
Assim, a hermenêutica filosófica deve mostrar como é que a própria
interpretação advém ao ser no mundo. Há primeiro que tudo o ser no mundo,
depois o compreender, depois o interpretar, depois o dizer. O carácter circular
deste itinerário não deve deter-nos. E bem verdade que é no seio da linguagem
que nós dizemos tudo isso; mas a linguagem é feita de modo que é capaz de
designar o solo de existência donde procede, e de se reconhecer a ela própria
como um modo do ser de que fala. Esta circularidade entre o eu faio e o eu
sou dá alternativamente a iniciativa á função simbólica e á sua raiz pulsional
e existencial. Mas este círculo não é um círculo vicioso; é o círculo bem vivo
da expressão e do ser exprimido.
260
I Quc.ui /<; ti/« - Sujei U '
261