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Estética como Acontecimento

O Corpo sem Órgãos

Daniel Lins

O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente (Fernando Pessoa)

A terra é azul como uma laranja (Paul Éluard)

Desafio. Fazer sair um verbo de um cadáver, não mais se produzindo nas coisas,
mas, ao contrário, querendo ‘que as coisas se produzam para mim’, diz Artaud em
Heliogábalo. Tentar enfim produzir uma escrita como um devir-intensidades em um
corpo que se embriaga com um copo d´água, que faz da folha em branco uma carne e da
carne uma natureza, um corpo vegetal no corpo-escrita, atrelado como um destino
carnal à cena litúrgica do bordel místico. A escrita, pois, como uma prostituta sagrada,
que se entrega ao primeiro hóspede de passagem, num gesto de louvor e oferenda que
supera o ato da orgia para se molhar no amplexo com o divino (Daniel Lins. Antonin
Artaud – O artesão do Corpo sem Órgãos. São Paulo: Lumme, 2011, p. 39).

1
Obrigado ao amigo Antonio Carlos Amorim pelo cuidado e amizade.
Seu entusiasmo marca nossas conversações, e delineia campos abertos às
invenções nômades.

2
Afirmar que a estética é acontecimento nos leva a pensar o inominável, aquilo
que não pode nem deve ser pensado, isto é, o pensamento como pura crueldade. A
crueldade como pensamento, o pensamento sem imagem; o pensamento por vir. O livro
de Deleuze, O bergsonismo, é uma maneira de desconstruir a imagem tradicional do
pensamento e de propor outras vias. Não por acaso Deleuze abre o capítulo “A imagem
do pensamento“ questionando o começo. Ora, a existência de um começo insere-se
numa imagem do pensamento, que impõe uma raiz, um pensamento arborescente, o que
leva Deleuze a engendrar o conceito de pensamento sem imagem, e que se torna ao
longo dos tempos verdadeiras barricadas contra a representação, contra a imagem
dogmática do pensamento. Em parte, o encontro de Deleuze com a filosofia de Bergson,
e sua leitura peculiar, muitas vezes reinventando o próprio autor, impõe a necessidade
de pensar: a efração, o arrombamento. Só se pensa por necessidade. O encontro é um
choque com uma coisa A imagem do pensamento, em contrapartida, é o pensamento
dado antecipadamente como uma série de postulados, sobre os quais o pensador acredita
que começa a pensar.

Mais ainda: o que é um pensamento sem imagem? Não há resposta, mas


aberturas, possibilidades, problemas que surgem como resposta. A filosofia é a arte de
inventar problemas. Diríamos que um dos pontos fortes do pensamento sem imagem é
seu distanciamento da representação. De fato, a representação é a mola mestra do
pensamento com imagem, que leva à aceitação de uma tal imagem do pensamento, da
representação e do que ela representa; e todos seus possíveis pressupostos atestam o
aspecto fundamental de uma filosofia da representação. Todo enunciado, toda
proposição são somente a representação de um setor da imagem do pensamento. A
representação, contudo, supõe um fiel representante. Por certo, pode haver uma
situação em que o representante não aceite a representação; neste caso, o sistema inteiro
da imagem do pensamento e dos pressupostos é desestabilizado, rachado e desmorona
como um castelo de papelão. A ordem, o pensamento com imagem – é isso, é aquilo – o
mestre supremo da representação/significação são postos em situação de perigo:

“O sentido é a gênese ou a produção do verdadeiro, e a verdade é tão-somente o


resultado empírico do sentido. Em todos os postulados da imagem dogmática,
reencontramos a mesma confusão, que consiste em elevar ao transcendental uma
simples figura do empírico deixando no empírico as verdadeiras estruturas do
transcendental.”1 Esta imagem do pensamento, imagem traidora, é justamente chamada
também uma imagem dogmática:

“De qualquer modo, o pensamento é traído pela imagem dogmática e no


postulado das proposições, segundo o qual a Filosofia encontraria um começo numa
primeira proposição da consciência, Cogito. Mas talvez Cogito seja o nome que não tem
sentido, nem outro objeto a não ser a regressão indefinida como potência de reiteração
(eu penso que eu penso que eu penso...)”2

Quem é, porém, o anjo do mal, sem origem, que se revolta? Esta personagem
filosófica se chama o Intempestivo, e que não é nem temporal nem eterno. Ora, o
pensamento, uma vez libertado da imagem tradicional do pensamento e das proposições
que ele experimenta, e alforriado também da palavra de ordem implícita na imagem do
pensamento moral, caminha, então, não mais de A a A, mas, partindo de um A
intempestivo, chega a um A ou a um B, daí a ideia de Deleuze, leitor de Nietzsche, de
uma filosofia sem pressupostos:

3
“Quando Nietzsche se interroga sobre os pressupostos mais gerais da Filosofia,
diz serem eles essencialmente morais, pois só a Moral é capaz de nos persuadir de que o
pensamento tem uma boa natureza, o pensador uma boa vontade, e só o Bem pode
fundar a suposta afinidade do pensamento com o Verdadeiro. (...) Assim, aparecem
melhor as condições de uma filosofia isenta de pressupostos de qualquer espécie: em
vez de se apoiar na Imagem moral do pensamento, ela tomaria como ponto de partida
uma crítica radical da Imagem e dos ‘postulados’ que ela implica (...) É em vão que se
pretende remanejar a doutrina da verdade, se antes de tudo não forem arrolados os
postulados que projetam esta imagem deformante do pensamento”.3

A abordagem minuciosa, conduzida por Deleuze à maneira de um espeleólogo,


mostra como o prefixo RE termina por ser alienado na medida em que as palavras que
ele compõe perdem seu real sentido e se submetem às exigências da doxa. Este triunfo
da significação, da representação, em detrimento do sentido, mostra a dificuldade de
fazer emergir o pensamento, de capturar seus começos, confinando-o em um começo do
pensamento. Ora, o começo é, ainda, uma palavra de ordem, um parceiro da
representação. Só há começos, salvo na teologia, cujo saber impõe um dogma, mediado
pela fé. O começo é da ordem do fundado, da fundação, do fundamento. Falaríamos,
antes, de um triunfo – o triunfo da doxa – que aliena na medida em que esse triunfo tem
como axioma essencial o fato de apresentar como o verdadeiro começo algo que não é
senão uma aparência do começo, e sufoca deste modo as tentativas para uma impulsão
intempestiva do pensamento pelo meio. Intermezzo. Entredois. Pensamento rizomático.
Não mais raízes, todavia devires. Razão órfã. Pensamento órfão. Pensamento da
diferença:

“Eis por que o mundo da representação se caracteriza por sua impotência em


pensar a repetição para si mesma, pois esta só é apreendida através da recognição, da
repartição, da reprodução, da semelhança (ressemblance), na medida em que elas
alienam o prefixo RE nas simples generalidades da representação”.4

De fato, a diferença é sacrificada nesta projeção do pensamento à representação


da coisa, à identidade no conceito, à analogia em que a identidade de um conceito
qualquer constitui a forma do Mesmo na recognição, pela equivalência em um Cogito
todo poderoso da unidade de todas as faculdades:

“O Eu penso é o princípio mais geral da representação, isto é, a fonte destes


elementos e a unidade de todas estas faculdades: eu concebo, eu julgo, eu imagino e me
recordo, eu percebo – como os quatro ramos do Cogito. E, precisamente sobre estes
ramos, é crucificada a diferença”.5

Deleuze não poderia ser mais claro, decisivo em sua crítica de um modo de
pensar que se fecha ao novo, que diz a última palavra, que faz da opinião uma forma
protética de razão, uma “ciência”, que sela ou fecha hermeticamente o devenir, o novo,
o que não deve nem pode ser pensado: o pensamento sem imagem. Segundo Deleuze,
na quádrupla – recognição, repartição, reprodução, semelhança (ressemblance) - numa
referência explícita a Foucault na obra As palavras e as coisas:

“Quádrupla sujeição, em que só pode ser pensado como diferente o que é


idêntico, semelhante, análogo e oposto; é sempre em relação a uma identidade
concebida, a uma analogia julgada, a uma oposição imaginada, a uma similitude
percebida que a diferença se torna objeto de representação”.6

4
Dito de outro modo, o pressuposto vence, leva a melhor, pois que o prefixo RE é
limitado a uma função mecânica – e não maquínica – fazendo dos termos o reflexo de
um dado exterior que se interioriza em uma perfeita coincidência. Cabe observar que a
palavra prefixo significa também, afora o uso gramatical, fixado anteriormente;
predeterminado. Do mesmo modo, pressuposto é aquilo que se supõe antecipadamente;
pressuposição, conjectura, suposição, ou ainda, motivo alegado para encobrir a causa
real de uma ação ou omissão.

A diferença torna-se assim uma razão suficiente. Um pensamento régio, uma


“ciência”, uma imagem moral ou ortodoxa do pensamento. Resta recordar que nada
acontece sem uma causa, exemplo simples: algo A que eu me represento, eu me
represento como reflexo de um A que não está em mim; o reflexo é a causa de minha
representação. Reflexo significa, em sua derivação, aquilo que reproduz alguma coisa;
cópia, imitação. Essa heteronomia do prefixo RE permite perceber a que ponto é
impossível pensar a diferença no universo da representação, daí este quase manifesto
em defesa da filosofia alforriada da imagem dogmática do pensamento. A filosofia em
detrimento da misosofia, isto é, ódio e desprezo pelos conhecimentos, pelo pensamento:

“Na verdade, os conceitos designam tão-somente possibilidades. Falta-lhes uma


garra, que seria a necessidade absoluta, isto é, de uma violência original feita ao
pensamento, de uma estranheza, de uma inimizade, a única a tirá-lo de seu estupor
natural ou de sua eterna possibilidade: tanto quanto só há pensamento involuntário,
suscitado, coagido no pensamento, com mais forte razão é absolutamente necessário que
ele nasça, por arrombamento, do fortuito no mundo. O que é primeiro no pensamento é
o arrombamento, a violência, é o inimigo, e nada supõe a Filosofia; tudo parte de uma
misosofia”.7

Não é difícil compreender que em se tratando do pensamento imagético, outra


palavra para dizer a representação, o pensamento antecipado ou dado previamente, o
que nele desaparece é a violência inerente a todo pensamento, à invenção, à arte. É neste
sentido que Deleuze reivindica uma violência feita ao pensamento.

De que violência se fala aqui? A violência para enfrentar o pensamento


determinado, a imagem dogmática do pensamento; a violência, pois, como potência
positiva, como uma vontade de tudo; uma potência que encontra sua força inventiva no
arrombamento. Não é outro o objetivo central da Estética como Acontecimento, donde
sua inserção no pensamento do devir, no pensamento por vir. O que é um pensamento
por vir? Um pensamento sem imagem dogmática, um pensamento alheio ao prefixo RE.
Em síntese, o pensar por vir é aquele que engendra pensamento no pensar, isto é, que
recusa a superstição científica que defende e afirma o pensamento inato. Ora, não há
pensamento inato, é preciso que uma força faça surgir em cada um a energia que emerge
como uma vontade urgente de pensar, sob o signo de uma potência, uma vitalidade, em
forma de necessidade, que não se adia, e em que o amanhã foi ontem, é hoje, agora, já.
Bergson é aqui de grande atualidade e valia, sobremodo a partir da leitura que dele faz
Deleuze. Nossa inteligência não é feita em primeiro lugar para pensar, mas para agir.
Desviamos ou negligenciamos esta faculdade de ação sobre si mesma e nos dedicamos
ao pensamento, não como um jogo nem como a um simples prazer ou a um vício. O
pensamento, uma vez que ele é ativo em nós, faz de cada um o que ele é, a saber,
pensamento. No meio de nossa existência – ou antes, entre um destes pontos centrais –
o pensamento brota, como uma sorte de terceiro olho... O olhar do inventor nutre seu
olho e sua arte, constantemente, sob pena de nada mais fazer do que copiar, afogar-se no

5
ser sensível, em vez de coabitar, entrar em núpcias com o ser do sensível, em encontros
indeterminados que podem abrir para os afectos.

Ao contrário de um pensamento inato, o pensamento sem imagem, o


pensamento selvagem, bravo, arisco, associal, é explicitamente arredio ao conformismo,
a algo antecipadamente dado ou imposto por uma transcendência que desapruma o
pensador como em uma luta, em um trabalho que deve se fazer de um caso
determinado, aquilo que tradição e sociedade, em seus usos e abusos da memória,
apresentam ou impõem, donde a constatação de Deleuze:

“Que é um pensamento que não faz mal a ninguém, nem àquele que pensa, nem
aos outros? O signo da recognição celebra esponsais monstruosos em que o pensamento
‘reencontra’ o Estado, reencontra a ‘Igreja’, reencontra todos os valores do tempo que
ela, sutilmente, fez com que passassem sob a forma pura de um eterno objeto qualquer,
eternamente abençoado.”8

Nas quarenta e sete páginas do capítulo central de Diferença e repetição,


Deleuze aponta os postulados e as astúcias e artifícios da imagem do pensamento. Do
mesmo modo, na conclusão do capítulo III – “A imagem do pensamento” –, em que
Deleuze analisa oito postulados primordiais à compreensão do pensamento sem
imagem, ele afirma:

“Os postulados não têm necessidade de ser ditos: eles agem muito melhor em
silêncio, no pressuposto da essência como na escolha dos exemplos; todos eles formam
a imagem dogmática do pensamento. Eles esmagam o pensamento sob uma imagem que
é a do Mesmo e do Semelhante na representação, mas que trai profundamente o que
significa pensar, alienando as duas potências da diferença e da repetição, do começo e
do recomeço filosóficos. O pensamento que nasce do pensamento, o ato de pensar
engendrado em sua genitalidade, nem dado no inatismo nem suposto na reminiscência,
é o pensamento sem imagem.”9

O pensamento sem imagem não consola nem massageia. Em outras palavras,


não existe Estética como Acontecimento deslocada de sua força inventiva, nômade; de
sua produção movediça, cruel, furiosa, selvagem, mesmo porque só há pensamento
selvagem. Todo pensamento é selvagem. Não por acaso, na leitura que faz da
correspondência entre Rivière e Artaud, Deleuze formula um requisito arcaico,
primitivo, e confere ao conceito a força, ou a vontade de potência, que define o
pensamento selvagem e suas transversalidades inerentes às diversas Sociedades contra
o Estado, admiravelmente elaborado por Pierre Clastres. 10

Não é anódino no presente contexto afirmar que a transversalidade é o eixo


peculiar à construção da Estética como Acontecimento. Terreno fértil, propício ao
exercício de um pensamento rizomático, que se designa como abertura às leituras
plurais da realidade, e como um pensamento não ilhado à experiência e aos
experimentos que supera a supremacia de uma razão única e a dualidade cartesiana –
espírito e corpo – a transversalidade é um rizoma. Neste sentido, o pensamento pode ser
apreendido como movimento de clivagem ou travessia que se atualiza no espaço
mental/físico, segundo ventos e tempestades sobre dunas, que findam por deslocar os
mangues, nomadizando-os, em um movimento mínimo de migração/emigração, mas
que tem a força transformadora do processo de territorialização/desterritorialização ou
transversalidade.

6
Os conceitos, como as ideias, têm uma vida. O conceito de transversalidade,
elaborado por Guattari, ou transversalidade de lutas, noção que ele compartilha com
Foucault, confirma a vida inserida na criação, no pensamento, em todos os seus
movimentos, tramas, e alegria própria ao conhecimento. No fundo, que diz Guattari ao
propor o conceito de transversalidade? Todo conceito novo, a novidade, aquilo que não
se sabe de antemão, ao eclodir em alguns campos se repercute alhures, sob outras
formas. Cada campo tem sua especificidade – a física, a literatura, a arte, a filosofia, a
matemática, a política, a ecologia etc. –, mas todos reagem à aparição de um novo
conceito. O conceito, ao contrário da opinião, encarna uma novidade que assombra,
desmonta certezas, instiga a pensar, provoca a abertura, a quebra de verdades
verdadeiras ou, de modo mais concreto, a vontade de verdade vinculada em toda doxa,
opinião ou pensamento determinado, emergente constituído com base em um discurso
prêt-à-parler, segundo a forte expressão de Pierre Legendre. Nem verdade verdadeira,
puramente intelectual, nem verdade como um ato voluntário e metodológico, mas um
pensamento submetido ao encontro violento por efração, de um signo sensível e
intensivo que o força a inventar e a gerar o pensar no pensamento. O pensamento não é
um parteiro, mas um criador.

Anne Sauvagnargues sublinha o papel determinante do conceito guattariano de


transversalidade em uma nova fase do pensamento de Deleuze. A transversalidade, diz a
autora, permite substituir o modelo de uma organização centrada por um novo tipo de
conexões múltiplas e rizomáticas. A transversalidade é, antes de tudo, uma prática, uma
abordagem pragmática que Guattari elabora durante sua militância e atividade
psicanalítica. Esse conceito concerne à emergência política do pensamento de Deleuze,
como também a uma nova pragmática de discurso que se elabora na obra de Foucault.
Por meio do Fora impessoal de Blanchot, reinterpretado por Guattari e Foucault, a
filosofia deleuziana inscreve-se progressivamente no campo histórico e político. 11

O acontecimento e, simultaneamente, a escrita do desastre, cara a Blanchot, ou


ainda a ética da estética das crueldades cuja singularidade é seu acoplamento ao
acontecimento, ao pensamento “genital”, segundo a expressão de Deleuze. Mas o que é
um pensamento genital? É o pensamento inventivo, indeterminado, aberto, acefálico,
sem cabeça, ou parte anterior, superior ou principal; viagem do pensamento. É, pois, um
pensamento forçado a pensar; impulsivo, compulsivo, impessoal, e que, mediante uma
grande potência, desnorteia o reino da representação, interpondo um pensamento sem
imagem, um pensamento sempre por vir, em um movimento voraz. Invenção,
anormalidade, força do cosmos ou viagem do pensamento transpondo a conclusão
simplória, que identifica o cosmos ao romântico ou ao metafísico, e negligencia que o
cosmos nada mais é que o caos em velocidade lenta. Como imaginar o cosmos sem o
acósmico, definido com o rigor e alegria habituais por René Schérer como designando o
que “não estando submetido às regras de organização do cosmos, do mundo e do eu,
pertence ainda ao caos. O impessoal mergulha nesse caos, nesse abismo; é a partir das
forças que daí retira que ele traça, na superfície, linhas disseminadas de pontos
singulares”.12

Uma filosofia, pois, que não procura em absoluto proteger do caos, mediante a
imagem regrada de um mundo objetivo, mas tão-somente vencer o caos, após ter nele
mergulhado, e que, antecipadamente, elimina toda relação da representação com o real
que faz fluir os possíveis do próprio real, ao acontecimento. Uma Estética como
Acontecimento é uma filosofia que compartilha com a arte outra exigência que a da
representação; é uma estética, pois, dos sentidos; arquipélagos dos sentidos. Sentidos

7
que surgem da interseção entre um problema e o pensamento; o sentido não preexiste
jamais ao acontecimento que o produz, pois que “o real em si” é o caos, uma espécie de
efetividade sem efetuação:

“Atravessar o caos: não explicá-lo ou comentá-lo, mas atravessá-lo, por todos os


lados, em uma travessia que ordena planos, paisagem, marcas, mas que deixa atrás de si
o caos se fechar como o mar sobre o sulco”. 13

Percebe-se, então, porque a Estética como Acontecimento faz do desafio


deleuziano – pensar para além do empirismo simples do idealismo transcendental – o
eixo primordial do presente experimento. Em outras palavras, o acontecimento nunca é
“o que acontece”, um simples estado de coisas empíricas e fatual, mas não é tampouco
uma simples efetuação do pensamento; ele se situa no interstício, na fenda entre o
sensível e o pensamento, lugar de uma gênese do sentido sempre renovada. Uma gênese
ambulante, órfã, nômade, é o jeito deleuziano, seu humor criativo, de revisitar e fazer
respirar os conceitos – como a gênese – enjaulados em um começo, em uma
transcendência; mas, sobretudo, Deleuze usa o estatuto original da dimensão
problemática do sentido, segundo Simondon. Problemática pois força o pensamento a
individuar-se, a singularizar-se a cada vez sob a forma de uma solução inventiva, nova.

Um pensamento, pois, a engendrar no pensamento uma política de desejo e


prazer, isto é, uma ética da estética, e que aqui estamos a chamar de Estética como
Acontecimento, ou ainda, Est-ética, que labora com uma espécie de a-lógica ou trans-
apropriação experimentada, entre outros, por compositores contemporâneos de músicas
urbanas de tradição não clássica ou erudita em inúmeros países. No Brasil, destacamos a
figura de Hermeto Pascoal e sua máquina de guerra musical trans-época, em que as
tradições do nordeste, assim como as do jazz, se juntam em co-presença às vozes de
crianças e animais, sons produzidos por inúmeros objetos aparentemente inofensivos e
fiapos de linguagem cantada/falada, mediada por uma visão ético-estética multiversa
que torna caduca toda e qualquer ideia de universalidade ou consensualidade estilística,
que cria uma proliferação do que Giorgio Agamben nomeia “singularidades quaisquer”
e que Deleuze chama criação transhistórica:

“Não há ato de criação que não seja trans-histórico, e que não pegue ao
contrário, ou que não passe por uma linha liberada. Nietzsche opõe a história, não ao
eterno, mas ao sub-histórico, ou ao sobre-histórico: o Intempestivo, outro nome para
dizer a hecceidade, o devir, a inocência do devir (isto é, o esquecimento contra a
memória, a geografia contra a história, o mapa contra o decalque, o rizoma contra a
arborescência)”.14

Cabe observar que não é apenas o resultado de uma mestiçagem e sim de uma
ressonância – de um devir-ressonância, no caso de Hermeto – uma sorte de
intranquilidade oscilatória que acelera o tempo, o movimento inventivo, apesar da
diversidade ou contraste, luz e sombra, claro/obscuro, zonas opacas bem-vindas,
acolhidos como se acolhe uma diferença que difere, ainda uma repetição do diferente,
conceito deleuziano, retomado por Silvio Ferraz e que, no presente contexto, nos
convém perfeitamente:

“Operar a repetição do diferente é de certo modo ‘imitar a invenção’, imitar a


invenção falsificando a invenção, imitando as forças não formadas da invenção, eis a
nascente de uma nova invenção. Não obstante, cabe observar que no ritornelo, não são

8
as matérias formadas que retornam, mas as forças que põem em conexão simples
transitórios, que não constituem ainda matérias. No mecanismo do ritornelo, a repetição
vai sempre de uma matéria não formada às outras. Segundo esta configuração, é
praticamente impossível encontrar relações de tipo hereditário, hierárquicos, porque são
simplesmente micro pontos dispersos; em compensação, o que se encontra é uma
infestação de micro pontos. O ato da repetição é comparável à proliferação de ervas
daninhas”.15

Aludiríamos, pois, a uma potência de inovação e força criativas em movimento


de vizinhança, abertas à contaminação: um bloco de respirações errantes que se apoiam,
reciprocamente, mas não entram em simbiose. Encontros. Sempre encontros que
produzem novos afectos fora das muralhas do isolamento, apoiando-se na abertura do
sensível ao qual a ressonância não prescinde tanto para subsistir quanto para renascer,
pensar, nutrir a expressão, querer a liberdade, afirmar a potência do devir. A emergência
de objetos, de sons oriundos de objetos e, em consequência, de um mundo de sons que
não pode entrar diretamente na lógica da determinação - quase científica - das alturas e
intensidades, implica uma revolução na lógica musical e, sobretudo, a ideia de uma
forma relacionada à estrutura dos parâmetros, com a qual Hermeto Pascoal coabita em
plena autonomia. Embora os sons sejam desprovidos de ligação ou iniciação com o
objeto sonoro, como acontece com Hermeto, a obra adquire um caráter fragmentário
que quebra a ideia de obra concluída. Não à toa, Pierre Boulez afirma que “O inacabado
é o motor da criação”.16

Trata-se de inserir no pensamento uma linha de liberdade, ou linhas abstratas


mutantes “que se livraram da incumbência de representar um mundo, precisamente
porque elas agenciam um novo tipo de realidade que a história só pode recuperar ou
recalcar nos sistemas pontuais”,17 contrapondo-se à palavra final, à frase final, ao ponto
final –; o final oculta um finalmente. Ponto de exclamação! Ponto de emoção! A
emoção que pode sufocar não apenas o pensamento, conquanto, a mais elementar
reflexão. Ponto, como condenação à masmorra daquilo que não deve ser imprevisto: o
acaso, as surpresas do acaso, o acontecimento. A emoção como palavra de ordem a toda
e qualquer narração. A emoção como espetáculo instantâneo é um vazio que asfixia a
palavra, evacua o pensamento, e pode abrir para terríveis derivas: nazismo, fascismo,
fanatismo religioso, patriotismo delirante, ditadura, lugar hierárquico das diferenças –
“minha diferença é melhor do que a tua” –, ufanismo ou suicídio em massa. Não se sabe
o que pode a emoção, manipulada ou teleguiada. Força deveras positiva, a emoção é
também uma deusa mascarada: o sublime, e o horror do belo, sua natureza velada, os
habitam.

Quando a vida tem medo...

Eis por que pensamos a Estética como Acontecimento, feita arte que exige da
existência algo muito mais forte do que ela nos proporciona. Potente, inventora, a vida,
às vezes, pede socorro! A vida parece estar com medo; preocupação atestada, há tempos
por Baudelaire: La vie a peur! Levá-la ao pico, aos altos arraiais de suas
possibilidades/impossibilidades, instigá-la à invenção de outros possíveis; exigir-lhe o
impossível, acordar a existência da tentação à letargia, ao estatuto de galinha cuja

9
tendência é permanecer de cócoras, já é um começo de revolução. Não deixar, pois, a
existência se asfixiar, sob o signo de um karma, destino, prisão social ou fatalidade –
papai, mamãe, Édipo, psicanálise, mística, confraria, partido, televisão etc. – tornando-a
uma cópia da cópia. Um borrão inspirado no sujeito ou no eu ficcional. Ora, eu é por
definição a ficção da ficção. Todo eu impõe uma raiz, um arquivo. Um tabelião. Um
cartório. Um cartel. Uma boa ou má genealogia que pode abrir para o terrorismo
identitário, isto é para os sistemas de castas. O Um contra todos; o universo aos pés do
Um: não é o sonho do piedoso, do falso perverso, do déspota?

A vida, porém, como uma obra de arte, como uma filosofia da arte cujo universo
é habitado por disparidades e devires artísticos, é uma construção que demanda a se
tornar pensamento/acontecimento; um pensamento, pois, para gerar o pensar. Neste
sentido, a Estética como Acontecimento é a intercessora primordial da vida: a vida
como máquina de guerra positiva, nômade. Em outros termos, a vida como
transvalorização que, ao buscar nas malhas identitárias os devires imperceptíveis ali
camuflados, abre-se à eclosão do inumano do humano. Ao escapar à dominante
biológica e finita, a vida demanda a ser reinventada. Agente primordial, sem o qual a
existência seria somente uma imensa repetição sem diferença, o homem é o artista de si
mesmo. Inacabado, como toda obra de arte, ele tem como tarefa primeira a
autoinvenção sem tréguas. É neste instante criativo que o homem alcança a
imortalidade. Não porque não morrerá. Ele morrerá sim, mas cantando, tão grande é sua
sede do novo, de desejo de transvalorização post-mortem. Sem choro. Sem vela. Morto,
ele continua sendo uma pedra de escândalo. Um grito no deserto dos assentados, dos
acocorados (Rimbaud), dos desmoralizados que fogem ao primeiro ferrão de uma
abelha inofensiva, renunciando ao mesmo tempo ao acontecimento, à partícula mínima
de acontecimento:

“Que haja em todo acontecimento minha infelicidade, mas também um


esplendor e um brilho que seca a infelicidade (…) o brilho, o esplendor do
acontecimento, é o sentido. O acontecimento não é o que nos acontece (acidente), ele é
no que acontece o puro expresso que nos dá sinal e nos espera (…) ele é o que deve ser
compreendido, o que deve ser querido, o que deve ser representado no que acontece”.18

Desejar o acontecimento supõe um querer inserido à ética da estética, orientado,


antes, para as práxis atuais do que para as regressões do passado, um acontecimento,
pois, que nos solicita a dignidade àquilo que nos acontece. Não se trata nunca de uma
apologia da infelicidade ou de danos pessoais, mas de uma estética da existência como
força - virilidade - que não consiste a tomar como seus, de modo derrotista, o infortúnio
e a tragédia:

“Bousquet diz ainda: ‘Torna-te o homem de tuas infelicidades, aprende a


encarnar tua perfeição e teu brilho’. Nada se pode dizer nada mais, nunca se disse nada
mais: tornar-se digno daquilo que nos ocorre, por conseguinte, querer e capturar o
acontecimento e por aí renascer, refazer para si mesmo um nascimento, romper com seu
nascimento de carne. Filho de seus acontecimentos e não mais de suas obras (…) pois a
própria obra não é senão produzida pelo filho do acontecimento. O ator não é como um
deus, antes seja como um contradeus”.19

10
O acontecimento, pois, como o instante; imanente como o Aion, ou ser em devir,
não apenas histórico ou cronológico; antes aquele que apreende o indeterminado, os
jogos do acaso; um ser, pois, não identitário:

“O ator é do Aion: no lugar do mais profundo, do mais pleno presente, presente


que se espalha e que compreende o futuro e o passado, eis que surge um passado-futuro
ilimitado que se reflete em um presente vazio não tendo mais espessura que o
espelho”.20
Clarice Lispector escreve belos fragmentos a este respeito:

“Só para os iniciados a vida então se torna fragilmente verdadeira. E está-se no


instante já: come-se a fruta na sua vigência (...) O instante é este. O instante é de uma
imanência que tira o fôlego. O instante é em si mesmo imanente. Ao mesmo tempo em
que eu o vivo, lanço-me na sua passagem para outro instante”.21

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Dobra I

Puro acontecimento, o puro expresso, puro devir. Em que acepção Deleuze e


Guattari usam o adjetivo ‘puro’, considerando as ambiguidades, preconceitos, sistemas
de castas ou significações assassinas colados na palavra ‘puro’, explicitados na vida e
nos dicionários?

Puro e sua polissemia: Sem mistura; não alterado pela presença ou inclusão de
impurezas ou de elementos estranhos; límpido, claro, transparente; sem mancha ou
nódoa, imaculado, limpo; não conspurcado pelo pecado, pelo mal; virtuoso, reto; sem
malícia ou maldade; cândido, inocente; que desconhece as coisas ligadas ao sexo;
virginal, casto; que não se pode pôr em dúvida ou em questão; genuíno, incontestável,
autêntico; que expressa apenas o que pensa e sente; sincero, franco, verdadeiro; que
apresenta correção e esmero, sem elementos estranhos; correto, castiço, vernáculo; que
transmite paz, enlevo, sublimidade; tranquilo, suave, afetuoso.

Ora, o adjetivo ‘puro’, na filosofia de Deleuze e Guattari, é um conceito denso,


rigoroso, do qual apresentamos alguns fragmentos, remetendo os leitores ao estudo
esclarecedor do ensaio do filósofo David Lapoujade, aqui citado: Puro designa, com
efeito, aquilo que subsiste à redução ou “colocação em parênteses” ou, prossegue
Lapoujade,:

“Puro se diz de todos os vividos considerados de um ponto de vista imanente.


(...) Segundo o que diz Deleuze, em A imanência: uma vida..., um de seus textos mais
densos, é preciso partir de um mundo em que a consciência ainda não esteja revelada,
embora seja coextensiva a todo o campo transcendental. Ainda não se pode praticar aí
nenhuma distinção: nem sujeito, nem objeto (...) Puro não quer mais dizer puro de toda
matéria, mas puro de toda forma – ou, antes, designa uma realidade intermediária
exterior a qualquer relação matéria/forma (...) O mundo da experiência pura apresenta-
se como um mundo tecido de relações entrecruzadas, superpostas, de acontecimentos
que se imbricam (...) Mas, precisamente, essas relações são virtuais; ainda devem se

11
fazer em uma experiência. O que distingue a experiência da experiência pura é
exatamente a atualização dessas relações no interior do material. (...) A experiência pura
é o conjunto de tudo o que está em relação com outra coisa, sem que necessariamente
exista uma consciência dessa relação.”22

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Corpo sem Órgãos como apreensão da Est-ética

O Corpo sem Órgãos, intercessor singular à arquitetura conceitual da Estética


como Acontecimento, tem como função primordial a de guardião dos sentidos, evitando
que eles sejam relegados à significação, à representação, à transcendência ou ao
essencialismo, interpondo-os aos conceitos de uma filosofia aberta, de um pensamento
indeterminado, que engendra conceitos, em detrimento da opinião ou do comentário que
poda a interpretação inventiva. Eis por que, em relação à Estética como Acontecimento,
a heterogeneidade dos conceitos não é excesso ou gasto descontrolado a favor da deriva
identitária, mas, antes, do ser plural, ser em devir, multiplicidade. A multiplicidade é a
coexistência virtual, ideal sem ser abstrata; real sem ser atual, heterogênea, mas
contínua, indivisível sem mudar de natureza. Dança da sedução e eclipses, a est-ética
enfatiza os traços, as marcas; a memória tatuada pondo-se, assim, à escuta de suas
possíveis impaciências, ou atitudes refratárias ao novo, embora aspire ao devir. A
escrita do Corpo sem Órgãos (CsO)1* é como “o pensamento do deserto, escrita que
mutila seus traços: não mais caminho, não mais objetivo, porém, errância de um
fantasma – ataque irremediável ao corpo”.23

Deleuze incumbe à arte a tarefa de dar ao corpo acesso à vida inorgânica. O


CsO é pura amnésia, uma experiência imediata sem conceito e sem forma. O CsO é o
corpo quando perde toda organização, no qual os órgãos são esvaziados de suas
funções, e o fluxo de vida não orgânico passa como uma onda que atravessa todo o
corpo. Uma definição intensiva do corpo, uma imagem de corpo anterior à
subjetividade, à concepção modal do indivíduo, primazia do corpo como força,
vitalidade sobre as funcionalidades dos órgãos agenciados como máquina. Primazia da
força sobre a forma. Individuação é um dos conceito-chaves, elaborado por Simondon,
em sua tese, publicada em 1964: L’individu et sa genèse psychobiologique,
l’individuation à la lumière des notions de forme et d’information. O autor elabora
conceitos que vão funcionar como intercessores singulares à filosofia de Gilles Deleuze:
individuação, modulação, transdução, problemática, ressonância, cristalização,
membrana, pré-individual, entre outros.

A filosofia da individuação se caracteriza como um vitalismo, ainda que se trate


de um vitalismo crítico que se interroga sobre as condições do conhecimento real, no
que ele tem de mais imediato para a consciência. Eis uma pista possível para se
compreender a filosofia de Simondon, segundo um método enciclopédico que unifica os
saberes para pensar a gênese de onde procede toda a realidade.24

* CsO – Fórmula usada do Corpo sem Órgãos, criado por Antonin Artaud em seus escritos, por Deleuze
e Guattari, para dizer do estado de um corpo antes da representação orgânica, isto é, um corpo pleno de
intensidades, limiares ou níveis.

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Pré-individuação e individuação, estes dois conceitos, presentes implícita e
explicitamente na elaboração da Estética como Acontecimento, e seu corolário singular
o corpo sem órgãos, ocuparão de modo privilegiado nossa atenção:

“Pode-se chamar natureza de uma realidade pré-individual que o indivíduo traz


consigo, buscando encontrar nessa palavra natureza a significação que os filósofos pré-
socráticos a ela atribuíam. De fato, os fisiólogos ionianos encontram na natureza a
origem de todas as espécies de ser, anterior à individuação; a natureza é realidade do
possível, sob as espécies deste ápeiron do qual Anaximandro faz emergir toda forma
individuada. A natureza não é o contrário do Homem, mas a primeira fase do ser, a
segunda sendo a oposição do indivíduo e do meio, complemento do indivíduo em
relação ao todo”.25

Em outras palavras, o pré-individual permite perceber uma concepção inédita da


lógica à compreensão do ser como “mais que um”, “mais que uma unidade”: o ser
excede-se, ultrapassa-se no limite de sua interioridade e de sua exterioridade. É sem
dúvida a Deleuze que se deve o mérito de ter melhor compreendido este aporte maior da
filosofia simondoniana. Simondon partilha, de fato, com Husserl a preocupação de um
retorno às próprias coisas, na qualidade de objeto da experiência do sensível e, mais
fundamentalmente, da intuição. Trata-se de superar o dualismo sujeito-objeto, ou ainda
espírito-corpo, que alinhou a história da metafísica ocidental desde Platão até Descartes,
e continuou com Kant, com o dualismo entre o fenômeno objeto da experiência e o
noumène objeto da apercepção transcendental – não é outro o sentido de apercepção:
para o espírito, ato de tomar consciência de si, de seu estado interior. Kant se interroga
sobre as condições de possibilidade da experiência sem jamais chegar às condições da
experiência real: tal e qual o sentido da crítica antikantiana desenvolvida por Deleuze e
Simondon. Desde então, como ultrapassar o racionalismo metafísico? Como advir a
pensar sem reificar a consciência, ou sem oscilar no empirismo cético? Não se pode
definir a invenção do pensamento em sua fonte perceptiva, isto é, como ato emanando
de um sujeito sensível, de uma outra forma de subjetividade que se pode qualificar de
pré-individual?26

Simondon faz um diagnóstico fundamental à compreensão do sentido de seu


pensamento, ao examinar o caráter comum das teses racionalistas e empíricas:

“Poderíamos dizer que a sensação e a percepção são impensáveis em um sistema


em que precisamente o ser se encontra, de antemão, em ato desde o começo: é a
recepção implicando exterioridade e virtualidade, que não pode ser pensado na época
clássica”.27

Por seu turno, Deleuze acrescenta:

“Uma consciência não é nada sem a síntese de unificação, mas não há síntese de
unificação de consciência sem forma do Eu ou do ponto de vista da individualidade
(Ego). O que não é nem individual nem pessoal, ao contrário, são as emissões de
singularidades enquanto se fazem sobre uma superfície inconsciente e gozam de um
princípio móvel imanente de auto-unificação por distribuição nômade, que se distingue
radicalmente das distribuições fixas e sedentárias como condições das sínteses de
consciência. (...) Quando se abre o mundo pululante das singularidades anônimas e
nômades, impessoais, pré-individuais, pisamos, afinal, o campo transcendental”.28

13
Eis pois, explicitamente formulada, a crítica deleuziana ao transcendental
kantiano. Simondon prossegue no mesmo sentido para justificar sua concepção do pré-
individual e, finalmente, o problema da significação:

“Este aparecimento, contudo, de significação supõe também um a priori real, a


ligação ao sujeito desta carga de Natureza, ‘remanência do ser em sua fase original, pré-
individual’”.29

Deleuze, em Diferença e repetição, escreve:

“O ato de individuação não consiste em suprimir o problema, mas em integrar os


elementos da desaparição num estado de acoplamento que lhe assegura a ressonância
interna. O indivíduo encontra-se, pois, reunido a uma metade pré-individual, que não é
o impessoal, mas antes o reservatório de suas singularidades. Sob todos estes aspectos,
acreditamos que a individuação é essencialmente intensiva e que o campo pré-
individual é ideal-virtual ou feito de relações diferenciais. É a individuação que
responde à questão Quem?, assim como a Ideia respondia às questões quanto? como?
Quem? é sempre uma intensidade”.30

O pré-individual define o continuum filosófico que garante o movimento do ser


no devir e, neste sentido, permite pensar o devir sem coisificar ou reificar em um
conceito especulativo, em oposição à eternidade, por exemplo. Simondon afasta estas
alternativas clássicas para pensar a substancialidade do devir, aquilo que devém
enquanto ele é e o que ele é enquanto devém. Dito de outro modo, no fundo, o pré-
individual é um postulado prático que tem como alvo introduzir-nos no olhar daquilo
que muda. Olhar que exprime em um plano lógico o conceito de transdução, que na
física significa o processo pelo qual uma energia se transforma em outra de natureza
diferente, aqui apenas esboçado por Simondon:

“A transdução corresponde à existência de relações que emergem logo que o ser


pré-individual individualiza-se; ela exprime a individuação e permite pensá-la”.31

É sobretudo, no entanto, a teoria simondoniana de individuação que vai


desempenhar uma tarefa prioritária à elaboração da filosofia de Deleuze, em particular,
no novo pensamento da constituição do sensível e na crítica a todo sujeito substancial,
assim definido por Simondon:

“Um indivíduo nunca é dado substancialmente; o indivíduo produz durante um


longo período de individuação, concebido pelo autor sempre como um ato e uma
relação, um processo que permanece constantemente inacabado e que não chega jamais
a um resultado fixo e definitivo”.32

Ao quê acrescentamos: do mesmo modo que nunca se chega ao CsO, pois ele
também não conhece “resultado fixo e definido”, cada encontro é um desencontro,
segundo as forças ordenadas/desordenadas dos diagramas, embora portadores de linhas
de fuga e cantos poéticos: “Os diagramas agarram os gestos em pleno voo, (…) são os
sorrisos do ser”.33

14
Em síntese, pensar a individuação implica, pois, um método genético e releva
concomitantemente de uma abordagem natural que é bastante próxima da dinâmica da
vida e da problemática da sensação, singular, mas não individual, misto de percepto e de
afecto. Qual é, pois, nossa relação com o impensado da subjetividade, o que se pode
desde logo se chamar o pré-individual? O pré-individual ou a liberdade das
singularidades. Simondon considera o pré-individual como a fonte única de onde jorram
todas as possibilidades do ser. Com efeito, o pré-individual é o potencial que comporta
cada indivíduo em sua existência concreta e lhe permite evoluir de maneira inventiva,
segundo uma continuação transdutiva de individuações múltiplas, que são as fases do
ser, um ser pois em devenir, cujo dispositivo intrínseco é capaz de transformar uma
forma de energia em outra. Em síntese, referimo-nos, pois, a um ser como puro
acontecimento; visto que, na verdade, não há solo originário a procurar, mas
acontecimento a inventar, pois que, segundo Ilya Prigogine, o tempo não está por vir,
mas “por devir”.

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Dobra II

Com Prigogine, encontramos Heráclito para quem o devenir é o que é primeiro,


e a identidade, uma ilusão: as coisas não são, mas advêm, transformam-se sem cessar,
mudam ao ponto de poder devir o contrário delas mesmas, e o tempo não é nada mais
do que a forma ou a encarnação deste devenir. Por sua vez, a física contemporânea ou a
“revolução científica” têm muito a dizer sobre este tema, pois ela integrou múltiplas
dúvidas e desafios teóricos ao debate de ideias sobre o estatuto do tempo.

O livro O fim das certezas, de Ilya Prigogine, tomou diversas direções e criou a
dúvida, malgrado os escrúpulos ou as reações canônicas de uns e de outros. O autor, na
linhagem de Heráclito, explica que a física de certo modo se enganou, desde o começo,
pois cometeu o erro de negar o devenir, e também o tempo de assimilá-lo, pelo fato de
que as equações fundamentais da física, aquelas que prevalecem na escala de átomos e
partículas, são todas reversíveis em relação ao tempo. Em outras palavras, pode-se
mudar nestas equações o signo da variável temporal sem que isto tenha o menor efeito:
as equações permanecem invariantes sob esta transformação.

A eficácia da física se tornou tão espetacular na contemporaneidade, que era


possível considerar que sua distinção entre tempo e devenir – ou seja, entre o curso do
tempo e a flecha do tempo – poderia ser exportada... E por que não no âmbito da
filosofia, que muitas vezes a amalgama? Visto que a física não só distingue as duas
noções, mas, não raro, quase as opõem. De certo modo, o curso do tempo é considerado
como algo que escapa ao devenir, no sentido em que ele não muda nunca sua maneira
de renovar o instante presente, ou seu modo de ser o tempo.

A física, porém, ao inverso do senso comum, e da significação das palavras,


encara, no interior do escoamento temporal, a presença de um princípio que permanece
e não muda. No tempo que passa, existe algo que não passa, em suma, que não afeta.
Neste contexto, a leitura de O fim das certezas, do belga prêmio Nobel, é mais do que
recomendável: é um acontecimento, um bom encontro.34

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O CsO: sob os rastros – dentro/fora – de Nietzsche

Sob os rastros, a saber, o dentro/fora de Nietzsche, que fazia do lançar dos dados
o ponto de partida da existência, podemos dizer que o CsO, como pura imanência, abre
os horizontes ao acontecimento, ao virtual, ao fatual, e se erige como fundamento e
plano de consistência, agindo menos como princípio e mais como catalisador ou
dinâmica da existência e de sua individuação, de seu devir. Daí o comentário de
Deleuze e Guattari:

“O único sujeito é o próprio desejo sobre o corpo sem órgãos, enquanto máquina
objetos parciais e fluxos, destacando e cortando uns com os outros, passando de um
corpo a outro, segundo conexões e apropriações que a cada vez destroem a unidade
factícia de um eu possuidor ou proprietário (sexualidade anedipiana)”.35

O CsO, pois, como fundamento material do mundo que culmina com a bela e
incisiva definição de Deleuze e Guattari:

“Mas é sobre o corpo sem órgãos que tudo se passa e se registra, mesmo as
cópulas dos agentes, mesmo as divisões de Deus, as genealogias esquadrinhadas e as
suas permutações. Tudo está sobre esse corpo incriado, como piolhos na juba do
leão”.36

O CsO, potência cósmica, flerta com o caos, e partilha o ronronar, seu devir-
gato, e o canto às mil tonalidades, seu devir-pássaro, é um ovo que habita o cosmos e
convive com o caos e seus afluentes inventivos e mares agitados, sempre resguardado
por ondas e tubos que têm todas as cores e melodias do mundo, mas que se deixa
massagear, afagar, mimar pelos tubos gigantes, fúria e calmaria do mar, misto do
sensível, sem hierarquias nem nomes. Vibração. Expressão. Alfabeto a-gramatical,
cantante como o ritornelo.

CsO como rastros-ondas, com suas dobras e desdobras, em que a memória


aquática de uma gigantesca onda – Pipeline – em atividade com as forças positivas do
caos gera um mundo que reaprende a cantar, que descobre o canto, até mesmo em seu
sentido amplo; som, não necessariamente musical, emitido por alguns povos
ameríndios, pelo mar em tempestade, pelas dunas e desertos, sob a força dos ventos, ou
pelas aves, especialmente no início da época do acasalamento. Tomamos emprestada a
definição de cosmos, dádiva de Silvio Ferraz, em sua rigorosa análise e experimento do
ritornelo, sob o signo de uma invenção interpretativa em que reverbera, mutatis
mutandis, uma aproximação ímpar com o corpo sem órgãos.

“O que o cosmos? Nada mais que o caos em velocidade lenta. O caos é a


presença do transitório, da matéria não formada, a ausência de um mínimo tempo
necessário para fazer nascer um código. A terra, o território é o ponto em que a matéria
nasce onde a forma emerge, em que os códigos se definem e explicam seus meios. O
cosmos seria, pois, a outra forma do caos. O ponto em que os códigos autonomizam-se,
em que não explicam mais os meios, onde eles tornam-se uma pura modulação e em
consequência perdem sua forma, deformam-se, perdem seu código, para poder se

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compor com outros desconhecidos. O cosmos é justamente o que Deleuze chamava o
espaço intensivo, ali onde tem apenas velocidades e densidades. É assim que a arte sai
do caos, passa pela terra, se conecta aos cosmos, e retorna à terra, nas canções de ninar.
Nos cantos populares, nas melodias de criança, nos rituais indígenas, para devir
cosmos”.37

O caos como o desconhecido, como o novo. O caos contra a opinião e seus


clichês ou chavões. Neste sentido, a arte e a filosofia partilham uma finalidade comum.
Ambas se opõem, cada uma a sua maneira, e com seus meios, à doxa ou à opinião, e se
esforçam para reatar com a novidade que não se consegue mais enxergar. A opinião não
é apenas uma proposição, uma crença, um estado de coisa, mas, sobremaneira, o nome
de um processo de recognição que organiza, corta, normatiza o fundo imprevisível de
novidade, e que Deleuze chama “caos”, com o qual a arte, a filosofia, ou a ciência têm
por função nos fazer retomar contato – a arte e a filosofia recortam o caos, o afrontam.

Ora, este confronto, ou luta com o caos, significa, precisamente, que o artista e o
filósofo devem também em seu trabalho encarar frente a frente o caos sem se deixarem
levar por ele. Nunca se trata de entregar-se ou sucumbir, todavia, melhor se expor, a
cada vez, em alguma coisa do caos. Em alguma coisa do CsO... Não é este o
pensamento de Deleuze e Guattari, na página 60, de O que é a filosofia?

O caos como o desconhecido é de suma importância para Deleuze, leitor de


Bergson, um de seus intercessores à produção do novo. Não por acaso na abertura de
Cinéma 1. L’image-mouvement, ele escreve: “Ao colocar a questão do novo, em vez da
eternidade, Bergson transformou a filosofia”.

Ora, se o CsO, o novo por excelência, marca toda a filosofia de Deleuze, e lhe
permite juntar no interior de uma mesma orientação filosófica pensamentos tão
heterogêneos - Espinosa, Leibniz, Bergson Artaud, e Foucault - é talvez porque a
questão do novo é, antes de tudo, a questão de Deleuze, e que favorece uma produção
subjetiva da novidade, isto é, uma criação.2*

Que faz então o CsO? Ele não é apenas a quarta pessoa do acontecimento, mas,
de modo jocoso, a quinta, a sexta, e assim por diante. O CsO é um bloco de
singularidades, ou quarta pessoal do singular; é que “Longe de serem indivíduos ou
pessoas, essas singularidades presidem à gênese dos indivíduos e das pessoas”.38

Em se tratando da filosofia de Deleuze, qual o sentido da palavra gênese, na


contextura do presente ensaio? A gênese não designa a história empírica dos encontros,
mais ou menos ocasionais ou previsíveis, onde se trama uma biografia. A gênese é
necessidade, e a necessidade, engendrada. Tanto uma quanto a outra são portadoras da
mesma ideia que Deleuze chegou a formular, sob a expressão programática do
empirismo transcendental, que consiste em um engendramento necessário do dado no
dado; em outros termos, que exige um distanciamento, mediante o que o dado se abre
para o novo, no entanto, forçado. É o que Deleuze chama o impossível, aqui percebido
num duplo sentido daquilo que não podia acontecer – o imprevisível que excede o
regime de previsão do possível – e algo que é impossível de fazer, o violento que força a
natureza a fazer tudo.

* Cf. Arnaud Bouaniche. Gilles Deleuze, une introduction. Paris: Pocket / La découverte, 2004.

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Em suma, a gênese é por definição transcendental, e a necessidade é tão-
somente problemática. A gênese remete a este movimento de produção que força os
fatos, violenta o dado e entra em conflito com os problemas, em um choque vertiginoso.

Não se trata apenas de uma ideia de gênese, como tema kantiano ou conceito
nodal da filosofia, segundo Deleuze, todavia, de uma prática genética. Nosso ponto de
vista é motivado pela prática filosófica de Deleuze em seus escritos de historiador do
pensamento, ou algo que se poderia chamar seu procedimento ou método.

Ao juntar vitalismo e filosofia crítica, Deleuze acolhe em seu pensamento a


política. Trata-se de um novo aprendizado, um novo campo de pesquisa e estudo
genéticos que permitem – talvez? – em longo prazo, uma filosofia política da educação,
na obra de Deleuze.39

Em síntese, guardamos da gênese, sobretudo, o sentido grego génesis, eós; força


produtora, fonte de vida, invenção.

Sobre a terceira pessoa do acontecimento, em sua leitura de Kafka, Deleuze


escreve: “Mas a literatura segue a via inversa, e só se instala descobrindo sob as
aparentes pessoas a potência de um pessoal, que de modo algum é uma generalidade,
mas uma singularidade no mais alto grau: um homem, uma mulher, um animal, um
ventre, uma criança... As duas primeiras pessoas do singular não servem de condição à
enunciação literária; a literatura só começa quando nasce em nós uma terceira pessoa
que nos destitui do poder de dizer Eu ( o ‘neutro’ de Blanchot)”.40

O CsO tem todos os nomes do universo, mas na pluralidade infinita de nomes –


a terceira pessoa do acontecimento, o inominável, o incriado. O Corpo sem Órgãos
encontra não apenas a calmaria do mar Mediterrâneo, mas também a velocidade traíra
da mudança de tempo, ar e ventos, ondas e tempestades, que despertam o pensamento;
intempéries e intempestivo, mostrando a violência da calma em sua fase exuberante. A
calma, pois, como a violência matreira de um corpo que não aguenta mais seus
organismos.

O CsO tem uma tarefa, um papel? Qual é sua atuação? Ao falar de CsO, não
estamos antes dissertando sobre uma estética nômade, a Estética como Acontecimento?
O CsO não tem nem tarefa nem encargo... Não se trata de falar do CsO como ator – no
sentido tradicional, em que o ator é aquele que representa –; é possível, todavia,
atribuir-lhe a ideia de agente: aquele age e não se deixa agir. Agente, aquele que,
semelhante ao Super-Homem, de Nietzsche, prefere a ação à reação: agir intercala-se ao
CsO, como puro movimento, mas suas ações são de outra (des)ordem conceitual.

Platô I: é cabível, no entanto, afirmar que a “tarefa” do CsO é exprimir a unidade


das múltiplas formas nas quais o ser se exprime, a cada vez que seu devir é submetido à
imprevisibilidade, à surpresa e ao acaso do acontecimento. O devir é a surpresa do ser; é
o indeterminado do ser. Em guerrilha, em combate com sua tática de incursões
ofensivas, atos inventivos de resistência, violência imbuída em toda criação, com seus
blocos de surpresa que deságuam nas ilusões de um ser o devir-engenhar: o ser é o ser
em devenir.

18
Platô II: este mesmo princípio nega a estruturação transcendental do ser; em
consequência, a transcendência perde seu significado, e guarda somente sua
significação, sua representação desprovidas de sentido. Por outro lado, o CsO, como
invenção conceitual, emerge de uma filosofia que refuta a transcendência e pleiteia a
imanência absoluta da vida: A imanência, uma vida! (Deleuze). Em resumo, tudo o que
aí intervém, aparece após a afirmação apodítica da contingência do corpo, e não antes.

Platô III: reconhecer este princípio que chamamos contingência do corpo, e que
atesta a manifestação do corpo no mundo, leva-nos a afirmar sua presença mundana, e a
realçar o problema da finitude e da morte. Em síntese, o princípio de razão contingente
descreve um universo unitário em constante transformação, submisso ao jogo
acontecimental de suas energias. Sob os passos de Nietzsche, leitor de Heráclito, como
sabemos, faz do lance de dados um dos começos da vida, o CsO abre os horizontes ao
acontecimento e ao virtual, e se erige como fundamento e plano de consistência que age
não como princípio, mormente, como catalisador da existência, em contínua
individuação.

Como definir, porém, o vaguear, o deambular do CsO? Trata-se de


deslocamento, em forma de puro movimento que equivale ao nomadismo – é parado
que o nômade anda ainda mais – como desterritorialização e reterritorialização
permanentes, em detrimento de toda estrutura organizada, disfarçada pelo organismo ou
pelo sujeito. A estruturação é tão-somente uma maneira de limitar as conexões e tentar
tornar os devires forças negativas, ou niilistas, do futuro: O futuro a Deus pertence, diz
o crente. Camuflado nesta expressão, há um rosário de interdições e desgostos da
existência que canta.

Produtivo ou improdutivo? Admitir a plenitude intensiva do CsO significa


reconhecer seu aspecto produtivo; por outro lado, reconhecer que a produção é
secundária e se articula na matéria energética do CsO, que representa em última análise
o núcleo de entrelaçamento estabelecido entre a produção e a antiprodução. Neste
quesito, Deleuze e Guattari não deixam ao CsO nem resquício de produção nem mais-
valia. Embora, ainda uma vez, o embaralhamento dos códigos surja como uma a-
metodologia à proposição conceitual:

“O corpo plano sem órgãos é o improdutivo; no entanto, é produtivo em seu


lugar próprio, a seu tempo, na sua síntese conectiva, como a identidade do produzir e do
produto (...) O corpo sem órgãos não é o testemunho de um nada original, nem o resto
de uma totalidade perdida. E, sobretudo, ele não é uma projeção: nada tem a ver com o
corpo próprio ou com uma imagem do corpo. É o corpo sem imagem. Ele, o
improdutivo, existe aí onde é produzido. (...) Ele é perpetuamente re-injetado na
produção. (...) O corpo pleno sem órgãos é antiprodução; mas é ainda uma característica
da síntese conectiva acoplar a produção à antiprodução, a um elemento de antiprodução.
(...) O corpo sem órgãos, o improdutivo, o inconsumível, serve de superfície para o
registro de toda produção de desejo, de modo que as máquinas desejantes parecem
emanar dele no movimento objetivo aparente que as reporta a ele”.41

Deleuze é um filósofo. Neste sentido, injeções de prudência são sempre


operadoras de uma interpretação que escapa ao comentário ou ao efeito de moda. De
fato, a assimilação do CsO ao campo da imanência, logo, aos fundamentos da vida, faz

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com que esse corpo não fique senão no interior, na intensidade “fluida, amorfa,
indiferenciada”.42

Confrontados ao vasto campo de relações possíveis entre o CsO e a


produtividade social, privilegiamos, no presente esboço, o ponto de partida, ou seja, a
intensidade zero, posta na matéria intensiva, fundamental à construção de uma estética
nômade, a Estética como Acontecimento. De fato, o CsO não se revela somente como
corpo impessoal, onipresente e infinitamente modulável, todavia, como fundamento
intensivo, como energia ou poder de agir e materialidade. Daí a pergunta: este corpo
gerador, que parece representar a razão contingente da vida, não é um Corpo Místico?
Como o CsO representa a razão contingente da vida, sem se equivaler à divindade?

“O genealogista-louco traça uma rede disjuntiva sobre corpo sem órgãos. E


Deus, que é apenas o nome da energia registro, pode assim tornar-se o maior inimigo da
inscrição paranoica, o maior amigo na inscrição miraculante. Seja como for, a questão
nunca é a de um ser superior à natureza humana e ao homem. Tudo está sobre o corpo
sem órgãos, tanto o escrito quanto a energia que inscreve estão sobre o corpo sem
órgãos. Sobre o corpo inegendrado, as distâncias indecomponíveis são necessariamente
sobrevoadas, ao mesmo tempo em que os termos disjuntivos são afirmados. Sou a letra
e a pena e o papel (era assim que Nijinsky mantinha seu diário) – sim, fui meu pai e
meu filho”.43

O “divino”, em relação ao CsO, é a potência e a força que o penetram e que o


investem para que ele possa se manifestar ao mundo como corpo objetivo e efêmero:

“As forças de atração e de repulsão, de ascendência e de decadência, produzem


uma série de estados intensivos a partir da intensidade = 0 que designa o corpo sem
órgãos”.44

Não é excesso ou apelação aludir ao “divino”, em relação a Artaud? Ao


contrário; desde que se esteja a falar sem perder de vista o mundo grego. Primeira
observação: ao falar do “divino” em relação ao CsO, conectado ao universo grego,
coloca-nos às antípodas de Descartes:

“Nada mais estranho, e totalmente distante da cultura grega, do que o cogito


cartesiano o Eu penso, posto como condição e fundamento de todo o conhecimento do
mundo, de si e de deus, ou da concepção leibniziana segundo a qual cada indivíduo é
uma mônada isolada, sem porta nem janelas, contendo dentro de si, como na sala
fechada de um cinema, todo o desenrolar do filme que conta sua existência. Para ser
apreendido pelo homem, o mundo não precisa sofrer essa transmutação que faria dele
um fato de consciência. Representar o mundo não consiste em torná-lo presente dentro
de nosso pensamento. Nosso pensamento é que é do mundo e presença no mundo”.45

De modo mais explícito, a percepção que tem o grego do divino não funciona
em uma relação dicotômica – é isso ou é aquilo. Ainda menos sob a ideia de Deus
separado de um universo que, a cada momento, depende inteiramente dele, já que ele o
criou, e criou a partir do nada:

“Os deuses do politeísmo grego, contudo, não possuem as características que


definem o divino dessa forma. Não são eternos, perfeitos, oniscientes ou

20
todo–poderosos; não criaram o mundo; nasceram dele e por ele; surgidos em gerações
sucessivas, na medida em que o universo, a partir de potências primordiais como Caos,
Vazio, Gaia e Terra, ia-se diferenciando e se organizando, eles residem em seu seio”.46

Em síntese, não existe transcendência, “ou em todo caso, não no nível da


religião: existe uma relativa transcendência, é claro, mas ela não é elaborada
intelectualmente para fazer com que Deus seja superior e além de tudo que foi criado,
criado por ele a partir do nada, o que é um absurdo para o grego…”.47

Ao retomar o CsO, é interessante notar como, observado de fora, o corpo


aparece como um dispositivo biológico complexo, objeto de conhecimento positivo, de
observação e de experimentação; no entanto, a filosofia deleuziana fala do corpo vivido,
do viver encarnado ou do CsO, e faz assim referência àquilo que se encontra por trás
das regularidades visíveis do corpo, e do qual a ciência faz o inventário com tanta
ênfase. Isto não quer dizer, em absoluto, que a intensidade que subsiste no CsO o reduza
a uma simples virtualidade ou à imagem do corpo físico. Ao contrário, ele equivale à
materialidade de começos nômades, o oposto da ideia de “materialidade fundadora”. O
fato de o CsO ser principalmente intensivo permite a ancoragem nele de várias
manifestações, contingentes corporais, em pleno uso da experimentação e dos devires.
A definição do corpo CsO, segundo seus usos e funcionamentos, é uma constante em
Deleuze e Guattari, mas é em Mil Platôs, sobremodo, que os autores aprofundam dobras
e desdobras e abrem perspectivas originais e finamente elaboradas.

O CsO é as dobras da dobra. O conceito ‘dobra’ revela, uma vez mais, a intuição
profunda da filosofia deleuziana. Declinar as virtualidades, descrever os agenciamentos,
assinalar as linhas de fenda e traçar a diagonal que é potência de invenção, experiência
do futuro como tempo do pensamento, eis a força intensiva da dobra, que curte as
vizinhanças e contágios como as abelhas curtem o mel... e abrem para novas
mestiçagens e encontros... linhagens, intercâmbios...

“Algo como uma face velada, ou antes, um forro, um revestimento, invertido


subitamente que revelaria uma constelação de nós ou laços subjacentes, (...) é um
princípio genético que distingue uma linhagem leibniziana com a lógica do
acontecimento que rompe com a metafísica do ser e abre para outras operações. Uma
operação é um princípio que leva uma a outra essas duas linhagens. Caravaggio, Gréco,
Bernin, Lanfranc, Rameau, mas também Hantai, Klee, Dubuffet, Gropius, Boulez ou
Cage. Leibniz, mas também Chrysippe, Maimon, Heidegger, Whitehead, Ruyer, e
ainda, Mallarmé, Proust, Leblanc, Michaux, Borges”.48

No presente contexto, priorizamos a vertente estética, a dobra como puro


acontecimento, como experimentação que abre para o infinito no finito, o devir-artista
da própria dobra, o barroco do Barroco. Ora, a operação distintiva do Barroco é
impulsionar duplamente a dobra ao infinito, ao mesmo tempo a ponta côncava do alto e
as compressões empacotadas do baixo, dobra sobre dobra, dobra segundo dobra, de
suma importância para a Estética como Acontecimento, e seu expoente singular o CsO,
como experimentação e acontecimento estético-político:

“A experimentação, segundo Deleuze e Guattari, nada tem a ver com esses jogos
de existência em que a parte do acaso é bastante exígua. Tateante, discreta, em parte
inconsciente, duplicada pelas lutas coletivas por direitos inéditos que permitam sua

21
efetuação, ela se confunde com a própria existência, quando esta lida com um
remanejamento profundo de suas condições de percepção, e com os imperativos afetivos
que dele resultam”.49

Cada um tem seu CsO, um ou vários. Estaríamos, em tal caso, condenados a ter
um CsO? O CsO é um destino? Uma sina? Uma essência? Em todo caso, sem CsO não
existe desejo. E como fazer para si um CsO? A resposta de Deleuze e Guattari não
acalenta nem acalma... Nunca se trata de avançar uma resposta, mas de criar um
problema. Criar problemas, em vez de impor caminhos ou direção lineares.

Trata-se sempre do indeterminado, do mesmo modo que com a Estética como


Acontecimento, atrelada ao CsO, em seus experimentos estéticos e suas produções
inconscientes. Donde sua relação implícita, seu acoplamento com o CsO, sempre
inventando pátrias para ultrapassá-las imediatamente, como o grande artista que, apesar
de todos os perigos, tem um ou vários CsO. O CsO, o incriado, o nômade, pega a
estrada para parir os órgãos, pois o corpo não os aguenta mais – parir ou perecer. O
corpo “quer depositá-los, ou senão perdê-los”.

O Corpo sem Órgãos seria um ovo fecundado, uma espécie de grito primário,
uma imagem/calmante do retorno ao útero?

“O CsO é o ovo. Mas o ovo não é regressivo: ao contrário, ele é contemporâneo


por excelência, carrega-se sempre consigo, como seu próprio meio de experimentação,
seu meio associado. O ovo é o meio de intensidade pura, o spatium e não a extensio, a
intensidade Zero como princípio de produção” (...) O CsO não existe antes do
organismo, ele é adjacente, e não para de se fazer. Se ele está ligado à infância, não o
está no sentido de uma regressão do adulto a criança, e da criança a Mãe, mas no
sentido em que a criança, assim como seu gêmeo dogon, que transporta consigo um
pedaço de placenta, arranca da forma orgânica da mãe uma matéria intensa e
desestratificada que constitui, ao contrário, sua ruptura perpétua com o passado, sua
experiência, sua experimentação atuais”. 50

Semelhante ao CsO, a Estética como Acontecimento conhece todos os paradoxos


ou paroxismo que lhe são inerentes. O CsO funciona em um sistema de pensamento
aberto. Ora, o sistema aberto, indeterminado, labora com conceitos que se remetem às
circunstâncias e não mais às essências. Um abismo separa a essência da circunstância.
Criar conceitos não tem como alvo estabelecer a essência da coisa ou seu caráter
imutável, inalterável, parado, imóvel. A essência nada pode em relação às
circunstâncias, aos devires, aos acasos, às forças andarilhas, teimosas, que não se
comprazem com o espetáculo tetanizado, estacionário, uma espécie de avant-mort da
essência. O CsO é um conceito. Não é nem uma ideia, nem uma crença, nem uma
opinião. Um conceito não demanda a ser “desvendado”, mas experimentado, atuado,
fora do esperado; reinventado.

Para que serve, então, o conceito? Qual é seu alvo? Sem conceito não existe
filosofia. A filosofia é a arte de inventar conceitos. A tarefa primordial do sistema
aberto de pensamento não é, em absoluto, a essência, mas o sentido. Trata-se sempre de
extrair, retirar, libertar, em certas circunstância, o sentido. À essência, interpõe-se o
sentido. Como construir uma Estética do Acontecimento, uma estética nômade com a
imobilidade, ou a imutabilidade da essência? A invenção é o movimento sem o quê não

22
existe arte, menos ainda produção, mas reprodução, cópia. O sentido é a força
primordial do pensamento livre: andante, transeunte, dançarino. Não à toa, Deleuze
considera a filosofia como uma caixa de ferramentas. Nada mais variado, polivalente,
múltiplo, heterogêneo que uma caixa de ferramentas com a qual o sentido se assemelha.
Conferir um sentido final à filosofia seria transformá-la em uma essência. Ora, a
essência, no sentido canônico, se basta a si mesma, é imposição e não engenhamento.
Ora, pensar não é “natural”, o pensamento não anda solto por aí... Todo pensamento,
como a arte, exige violência. Deleuze, leitor de Proust, é de grande valia neste quesito.
O pensamento só pensa quando é forçado a pensar. E o que nos força a pensar? A
violência. Nunca se trata da violência dos desesperados, a violência para nada, mas de
um ato dinâmico capaz de levar à transvalorização de todos os valores massas inertes
ou repetidoras de um mesmo sem diferença:

“Sem algo que force a pensar, sem algo que violente o pensamento, este nada
significa. Mais importante do que o pensamento é o ‘dá que pensar’. Mas o poeta
aprende que o primordial está fora do pensamento, naquilo que o força a pensar. O
leitmotiv do Tempo redescoberto é a palavra forçar: impressões que nos forçam a olhar,
encontros que nos forçam a interpretar, expressões que nos forçam a pensar”.51

Um agenciamento é, ao mesmo tempo, uma noção descritiva dos


processos sociais e o nome de uma intervenção na teoria e no ponto nodal de
um processo de análise dos modos de subjetivações práticas. Eis por que só
se pode falar de “filosofia política e clínica” percebendo-a, em primeiro lugar,
como uma construção conceitual, cujo alvo é a compreensão dos devires de
modo imanente. Em outras palavras, é necessário simultaneamente tornar
sensíveis os movimentos de politização imprevistos, que transtornam e
reconfiguram o campo social, e cartografar suas próprias categorizações
teóricas.

CsO ou a est-ética como horda dos signos

O que é, porém, um signo? Os signos são sempre materiais e intensivos, e


ultrapassam em muito sua simples dimensão linguageira. Para Deleuze, a busca
proustiana é um longo aprendizado dos signos. O encontro dos signos põe o pensamento
em relação com as forças que atravessam seu fora sensível. O encontro do signo que o
força a pensar nunca é um saber abstrato e instantâneo, mas implica uma duração
empírica no limiar do devir do sensível, enquanto intensidade mínima para que o
encontro produza uma resposta-problema, uma contaminação, núpcias e vibrações
migrantes.

A Estética como Acontecimento é uma potência indeterminada, cujos conceitos


são movimentos, expressões com as circunstâncias e não com a essência, sob a força
inventiva que alude ao ser em devir, sempre positivo, sempre em transformação, e
aspira a um humanismo-outro, como meio para aceder ao inumano do humano. Um
inumano, pois, como o sopro, como uma possibilidade de dizer não, de pensar-não e
que empurra o humano, que se consola com o espetáculo ou convenções, ao charme ou
sortilégio contaminador, e às pressões secretas da obra de arte:

23
“A criação, como gênese do ato de pensar, sempre surgirá dos signos. A obra de
arte não só nasce dos signos como os faz nascer; o criador é como o ciumento, divino
intérprete que vigia os signos pelos quais se trai”.52

A leitura de Proust acompanha assim, constantemente, a nova teoria do signo


que Deleuze começou a elaborar na Lógica dos sentidos, mediado pela leitura cuidadosa
e paciente de Nietzsche e de Espinosa. Aqui, a ideia da solidão povoada alcança seu
ápice. A criação é solitária, donde sua busca de uma razão nômade, razão do signo, em
sua procura permanente de sentidos. Não mais um corpo, não mais a expressão corporal,
todavia os sentidos dos signos com os quais reinventa o mundo, insere pensamento e se
deixa acoplar às diferentes miríades de outros signos. Um signo como uma entidade
física, uma potência em variação. É o processo de contaminação que anuncia uma
respiração-pólen, um devir-sopro-pólen-grãos, conteúdos e continentes que não
dependem de uma vontade, de um sujeito, de uma cognição ou antecipação daquilo que
se busca, mas que encontra a vitalidade que se torna, pela força da arte, a violência
desejante, o acaso, o acontecimento:

“Que filósofo não desejaria construir uma imagem do pensamento que não
dependesse mais de uma boa vontade do pensador e de uma decisão premeditada?
Sempre que sonha com um pensamento concreto e perigoso, sabe-se muito bem que ele
não depende de uma decisão nem de um método explicativo, mas de uma violência
encontrada, refratada, que nos conduz, independentemente de nossa vontade, até as
Essências. Pois as essências vivem em zonas obscuras, nunca nas regiões temperadas do
claro e do distinto. Elas estão enroladas naquilo que força a pensar; não respondem ao
nosso esforço, esforço voluntário; só se deixam pensar quando somos coagidos a fazê-
lo”.53

Uma vez ainda, Deleuze desestrutura a essência da essência, revisita o conceito


e, na qualidade de artesão do pensamento, faz uso do vocábulo essência, afora qualquer
transcendência, pondo-a em seu campo conceitual, e tornando-a um intercessor às suas
invenções e deslocamentos na construção do ato de pensar. Deleuze, como sempre, está
onde menos se espera encontrá-lo:

“É preciso ser dotado de signos, predispor-se ao seu encontro, expor-se à sua


violência. A inteligência vem sempre depois; ela é boa quando vem depois, só é boa
quando vem depois. Vimos como essa diferença com relação ao platonismo acarreta
muitas outras. Não há Logos, só há hieróglifos. Pensar é, portanto, interpretar, traduzir.
As essências são, ao mesmo tempo, a coisa a traduzir e a própria tradução; o signo e o
sentido. Elas se enrolam no signo para nos forçar a pensar, e se desenrolam no sentido
para serem necessariamente pensadas. Sempre o hieróglifo, cujo duplo símbolo é o
acaso do encontro e a necessidade do pensamento: ‘fortuito e inevitável’”.54

É, pois, em vão buscar em Deleuze o consolo de um sentido final em sua


filosofia vitalista, andarilha. Podemos agora retomar o que há pouco foi dito sobre o
aspecto paradoxal do CsO, segundo a interpretação de Deleuze e Guattari, cuja nota
dominante é a prudência intrínseca ao experimento, prudência não como sabedoria, mas
como dose, como regra imanente à experimentação – injeções de prudência:

“De todo modo você tem um (ou vários), não porque ele [O CsO] pré-exista ou
seja dado inteiramente feito – se bem que sob certos aspectos ele pré-exista – e ele

24
espera você, é um exercício, uma experimentação inevitável, já feita no momento em
que você a empreende; não ainda efetuada se você não a começou. Não é tranquilizador,
porque você pode falhar. Ou às vezes pode ser aterrorizante, conduzi-lo à morte. Ele é
não-desejo, mas também desejo (...) Ao Corpo sem Órgãos não se chega, não se pode
chegar, nunca se acaba de chegar a ele, é um limite. Diz-se: que é isto – o CsO – mas já
se está sobre ele – arrastando-se como um verme, tateando como um cego ou correndo
como um louco, viajante do deserto e nômade da estepe”.55

Eis, ao mesmo tempo, uma definição possível da Estética como Acontecimento,


sobremodo, se ao fragmento se acrescente a conclusão, numa escrita que também
anuncia o CsO como uma est-ética da alegria – O CsO é pleno de alegria, de êxtase, de
dança – sem retirar do fazer arte, da invenção do novo, da criação como destruição, o
caráter peculiar, sem o quê não há nem arte, nem vitalidade, nem pensamento sem
imagem, nem pensamento nômade, cujo rastro encontra sua força na filosofia
deleuziana da diferença, da invenção, diferença criativa ou imprevisível novidade
bergsoniana. Novidade que passa necessariamente pela criação de zonas de
indiscernibilidade e pelo indeterminado que nutre o acontecimento, a arte e a Estética
como Acontecimento. Em outras palavras, aquilo que no que acontece não pára de
acontecer, e que, ao acontecer já é o acontecido: o acontecimento. Do mesmo modo, na
indeterminação, em uníssono com o CsO, o imperceptível do devenir, em sua
multiplicidade e revelações inesperadas, com suas zonas de suspensão em que as coisas
se tornam inomináveis, acopla-se aos efeitos triunfantes ou arrasadores do CsO, em luta
permanente contra o organismo, ou a organização dos órgãos que se chama organismo,
e não contra os órgãos.

É, pois, sobre o CsO “que dormimos, velamos, que lutamos e somos vencidos,
que procuramos nosso lugar; que descobrimos nossas felicidades inauditas e nossas
quedas fabulosas, que penetramos e somos penetrados, que amamos. No dia 28 de
novembro de 1947, Artaud declara guerra aos órgãos: Para acabar com o juízo de
Deus, ‘porque atem-me se quiserem mas nada há de mais inútil do que um órgão’(...)
Corpus e Socius, política e experimentação. Não deixarão você experimentar em seu
canto” (...) Encontre seu corpo sem órgãos, saiba fazê-lo, é uma questão de vida ou de
morte, de juventude e de velhice, de tristeza e de alegria. É aí que tudo se decide”.56

A expressão artaudiana – corpo sem órgãos – conceito retomado por Deleuze e


Guattari, ainda que prefiram falar de experimento; ou do “corpo pleno sem órgãos”,
espanta pelo seu aspecto eminentemente paradoxal. De um lado, mesmo que o corpo
não possa ser concebido exclusivamente como órgãos postos em movimentos no
mundo, não seria tampouco simples rejeitar sua existência. Por outro, se o corpo não
tem órgãos, uma dúvida paira: como pode ser pleno? Ora, o CsO é compreendido como
pura intensidade; pois que ele é pleno, não deixa de ser intrigante observar que essa
intensidade é igual a zero, observação anteriormente apontada. Implica que o CsO
representa o único ponto de partida concebível, um ponto imóvel e intensivo, ao mesmo
tempo, e em relação ao qual o desejo se exprime ao mundo.

Elaborar, pois, uma carta dos conceitos e noções estéticas, pensar a Estética
como Acontecimento, estética acoplada à potência do CsO, significa instaurar laços
errantes entre o conceito de linha nômade e outros conceitos e noções aproximativas,
traçar linhas que levam de um conceito a outro, em um movimento ondulante que
provoca entre os conceitos relações que constituem um agenciamento, uma invenção

25
artística, um acontecimento. Uma estética atenta aos subterrâneos não lineares da
dodecafonia, e sua divisão de oitava em doze meios-tons sem quaisquer relações tonais,
mas que formam a conclusão da sinfonia, em um caos ordenado, em uma obra-prima.
São pluralidades de forças, o avesso, pois, de um pensamento único ou dicotômico. No
fundo, a Estética como Acontecimento é a estética do desejo, ou, como o CsO, é o
campo da imanência do desejo, o plano de consistência própria ao desejo, é somente aí
que o CsO se revela pelo que ele, “conexões de desejos, conjunção de fluxos,
continuum de intensidades”, daí a prudência, uma vez mais necessária, para não se
deixar pulverizar pelo falso-perverso, pelo traíra do desejo:

“Cada vez que o desejo é traído, amaldiçoado, arrancado de seu campo de


imanência, é porque há um padre por ali. O padre lançou a tríplice maldição sobre o
desejo: a da lei negativa, a da regra extrínseca, a do ideal transcendente”.57

Não se trata, ainda, de cair no discurso simplório de uma “estética ideal” ou


“uma estética das qualidades? Em relação a este quesito, Deleuze e Guattari são de uma
lucidez incomensurável:

“Não militamos absolutamente por uma estética das qualidades, como se a


qualidade pura (a cor, o som etc) contivesse o segredo de um devir, à maneira de Filebo.
As qualidades puras parecem-nos ainda sistemas pontuais: são reminiscências, sejam
lembranças flutuantes ou transcendentes, sejam germes de fantasma. Uma concepção
funcionalista, ao contrário, só considera em uma qualidade a função que ela preenche
em um agenciamento preciso, ou na passagem de um agenciamento a outro. É a
qualidade que deve ser considerada no devir que dela se apodera, e não o devir em
qualidades intrínsecas que teriam o valor de arquétipos ou lembranças filogenéticas”.58

Estética como Acontecimento: um conceito arredio à lógica?

“Como ignorar a lógica, em se tratando da elaboração de um novo conceito?”


Optamos pelas conversações ou diálogos heterogêneos, serpenteados que atravessam
caminhos sinuosos e leituras semeadas de mitos, discursos intensos, intermitentes ou
erráticos, como as vias do pensamento e da criação. O rigor em filosofia nunca é da
ordem moral, todavia, do conhecimento, da alegria nele inserido, logo, da paixão
inventiva, dos saberes, daqueles que passam a vida estudando, amando, produzindo,
plantando, mas sempre deixando algo a ser reelaborado, reinventado.

A parte do acaso, do transbordamento do devir, do fogo da indeterminação, do


involuntário, da força dos signos, das máquinas desejantes, parideiras de sentidos são
caminhos não lineares à produção de conceitos e possíveis, às incertezas vertiginosas
intrínsecas ao conhecimento, como alegria e força revolucionária; eis a que o filósofo se
agarra.. E não é pouco! Não é esta a força do mestre ignorante? Sempre ralar em todos
os sentidos da palavra: passar pelo ralador; moer, triturar; ferir levemente, provocando
um ou mais arranhões, causar tormento a ou sentir tormento; fazer algo com muita
aplicação, com grande seriedade; esforçar-se, diligenciar. Sempre pesquisar. Sempre
aprender. Desaprender. Escrever. Reescrever. Só se pensa por necessidade: Apenas o
convencional é explícito.

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O pensamento nos obriga a descortinar, abrir clareira para melhor enxergar afora
as concreções do cotidiano e solidificações do hábito: tudo é vibração, movimento,
fluxo. Escrever não é, pois, escolher nem tampouco privilegiar o que é bom para si. Não
queremos uma coisa porque ela é boa, é porque nós a queremos que ela é boa. Não é
outra a concepção de paixão proposta por Espinosa, no Terceiro livro da Ética, “As
afecções e os sentimentos”: Se jamais alguém sente como necessário se enforcar,
porque é útil para sua alegria, para sua felicidade, escreve o filósofo, seria insensato
que ele não realizasse seu ato. O mal ou o bem desapareceram como critérios de
escolha. Ao bem e mal interpõe-se o bom ou o mau. Cabe relembrar que a moral é
sempre a expressão de uma norma ou imposição coletiva: ela indica a todos os
indivíduos de um mesmo povo ou de uma mesma cidade o que devem fazer ou não,
segundo o bem ou o mal. Ora, nossa realização passa pela satisfação das necessidades
de todos, e cada um sabe o que é bom para si, isto é, aquilo que nos deixa tristes ou
felizes. Compreender as paixões, sob o ângulo da ética e não da moral, é atribuir a cada
um a liberdade de estabelecer as regras que são aquelas de sua felicidade, e não acatar
imperativos coletivos e impessoais, incapazes de levar em conta as necessidades de
nossa natureza.

De fato, a perfeição não existe na natureza. O bem e o mal, que atribuímos às


coisas, são frutos de nossa identificação às normas majoritárias e de nosso desespero, ou
capitulação ao sujeito da razão. É ainda aqui que a Estética como Acontecimento
encontra pensamentos que são como aliados naturais de uma estética da alegria e da
felicidade, e artefatos singulares do presente esboço. O critério mais importante da
intuição, inserida em todo pensamento, é a alegria e felicidade como forças, como
abertura possível à premissa segundo a qual a alegria torna capaz de discernir o que é
mais importante para cada um, não unicamente em nossos atos e produções artístico-
culturais, mas no âmbito de nossos pensamentos, sempre em devir.

Com efeito, o pensamento não é dado uma vez por todas, salvo na teologia,
ainda que o tempo se ocupe de transformá-la – a passos de tartarugas, é verdade – desde
que a contaminação mínima do novo em nada ameace o poder de controle e censura
inerentes ao dogma. O Brasil conheceu essa fenda mínima, com a teologia da libertação,
logo embargada e naufragada, sem retorno, pelo golpe militar, de 1964, ancorado, em
parte, por forças conservadoras do Vaticano. Nomadizar as certezas, de acordo com as
transformações do mundo e exigência de novas crenças e saberes, não parece, em todo
caso, ainda ser o projeto das religiões, em sua maioria. São duas lógicas díspares; de um
lado, a teologia, que denega a invenção e adota o conhecimento comandado pela fé,
pelo dogma; por outro, a a-lógica como invenção que nomadiza em permanência a
filosofia, o pensamento, a ciência, ao mesmo tempo em que recusa montar um arsenal
ou técnica de prova, tribunal ou juízo. A a-lógica com a qual se esboça a Estética como
Acontecimento, estética nômade por excelência, é antes uma antidemonstração. Não há
nada a provar. Nada a julgar. A invenção de um conceito é um ato filosófico cuja
travessia é formada por areia movediça; logo, prudência para não afugentar os devires.

O aspecto efêmero de todo conceito exige silêncio. Solidão. O contrário, pois, do


mutismo, ou da covardia dos que, soldadinhos de chumbo, desaprenderam a dizer não.
A pensar não. A fragilidade do conceito é uma potência contra a gigantesca barreira à
ação continuada de transformação da filosofia em dogma ou em metafísica da essência,
alimentada por um pensamento com imagem que pensa também a morte da filosofia e o
reino da opinião.

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A Estética como Acontecimento é interação, segundo a física, isto é, qualquer
processo em que o estado de uma partícula sofre alteração por efeito da ação de outra
partícula ou de um campo. Essa alteração pode ser observada no pensamento, na
filosofia, à emergência de um novo conceito, ou de um pensamento sem imagem
dogmática. Um pensamento em devenir, autônomo, resultado de uma engenharia do
sensível e da intuição, o contrário, pois, da dominação, da cognição, ou, ainda, da
antecipação de um pensamento daquilo que deve e pode ser pensado. É neste campo
minado de partículas mínimas de diferenças que diferem, confrontam-se às outras
diferenças hierárquicas, provocando a alteração por efeito de outra partícula mínima de
uma diferença que difere. É o devir faísca do pensamento que altera o efeito de ação de
outra partícula, ou território historicamente transformado em subterrâneo, em que
dormem minas, e em que esperam como cães de guarda a ordem de ataque. Não há
latido. A explosão é imediata.

Eis o aspecto maquínico da Estética como Acontecimento: um pensamento


inventivo, em movimento, que se interessa ao passado para melhor reinventar o
presente, e sente saudades do futuro; consequentemente, a história não é um arquivo de
saber morto, cloroformizado, ainda menos, uma estética das ruínas! Estudar o passado é
retomar, recomeçar; é procurar o que há de novo, é perceber a parte do sensível atuante
nas longas ou curtas travessias históricas, donde a importância de sentir, tocar e não
negligenciar a novidade no seio do objeto retomado, recomeçado. Evidentemente o
sentir, o tocar, o apalpar não se limitam à materialidade do gesto. Existe, de fato, uma
virtualidade do tato, do odor que se passa da simples materialidade, da individualidade e
encontra, na parte do sensível, sensações, individuações espaciais que levam ao que
Whitehead descreve com tanta ciência e mobilidade:

“Cada tipo de sentido conta com seu próprio corpo de entidades discriminadas,
conhecidas enquanto termos relacionados a entidades não discriminadas por tal sentido.
Enxergamos algo que não tocamos e tocamos algo que não enxergamos, e possuímos
um sentido geral das relações espaciais entre a entidade revelada na visão e a entidade
revelada no tato”.59

Não há recomeço ou retomada sem revelação, sem caixa de Pandora, sem o


mínimo novo, camuflado nas cinzas do passado, mas que pode-se manifestar com a
violência de um vulcão, apoiado pelo furor larvar incontrolável, enquanto
acontecimento. Os acontecimentos são lembranças puras que brilham como joias de um
passado que nunca foi presente. O acontecimento como phantastéon, ou ação sublime,
abre para a experiência inventiva e a produção do novo, em um movimento para
encarnar forças. Não só criar, mas cooptar forças, como fazem os gênios… A força tem
uma relação estreita com a sensação: “A sensação é vibração” (Deleuze) e a vibração
não é também uma virtualidade poética?

Eis um dos caminhos que levam a apreender Dioniso/Apolo como operadores de


blocos de sentidos – afectos e perceptos – abertos às visitas, aos recomeços, ao devir-
faísca do pensamento, que não laboram com oposições identitárias, mesmo porque os
pronomes pessoais são criações humanas, gramaticais, flexíveis, fictícias. Não por
acaso, a confluência Dioniso/Apolo, frequentadora de deuses e poetas, rios e
correntezas, opera com sentidos: toque, forças erógenas, embriaguez-abstêmia ou não;

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em todo caso, alheios à significação ou à representação, artífice maior da dualidade, que
faz da diferença um destino, uma determinação, uma sina.

Em consequência, a dicotomia como sistema instaura o pensamento com


imagem, mediado por todos os seus pressupostos que legitimam o aspecto fundamental
de uma filosofia da representação, a saber: a) o pensamento é dado uma vez por todas;
b) todo enunciado e toda proposição são apenas a representação da imagem do
pensamento; c) pensar é uma redundância vazia que instaura o pensamento com imagem
ortodoxa, e que leva a pensar o que pode e deve ser pensado: o pensamento que
massageia, que faz rir (talvez?) mas, letal à alegria imbuída em toda descoberta, em toda
invenção, na inocência do devir do pensamento. O pensamento com imagem é uma
opinião, donde sua aversão e ressentimento à criação, à arte:

“A arte é a linguagem das sensações, que faz entrar nas palavras, nas cores, nos
sons ou nas pedras. A arte não tem opinião”.60

Não à toa, a imagem do pensamento se desloca para a questão fundamental da


representação. Sabemos o lugar que esta ocupa na filosofia deleuziana. Toda a análise
da imagem do pensamento é um ataque direto e sem concessão contra a representação e,
simultaneamente, uma proposição para uma nova maneira de pensar. Deleuze nunca faz
da crítica uma miséria psicológica, um ato ressentido, uma memória das marcas ou
retorno do recalcado. A crítica em Deleuze é sempre uma saúde: crítica e clínica, daí as
proposições e conceitos em profusão que emergem de suas críticas, que são como
pensamentos transeuntes à espera do bom conceito, do devenir do conceito, em
contraparte à representação e ao pensamento determinado, uma espécie que milita pelo
suicídio da filosofia e da autonomia primordial à invenção.

Que opor a (uma) tal determinação, senão uma união imediata obtida desde que
exigida, em que coincidiria com tudo, em uma espécie de felicidade extática sem
começo nem fim, só meio, intermezzo, entredois? Precisamente, este intervalo entre
duas margens, em que a água de um rio escorre não tanto para permitir a passagem de
uma a outra, mas para levar aquele que empreende descer seu curso à direção
desconhecida. Não se trata de afirmar que Apolo é Dioniso e Dioniso é Apolo. Primeiro,
não se trata do ser, mas do devenir, logo, de multiplicidades, singularidades,
acontecimento; de um destino impossível a antecipar, que atesta uma parte não realizada
e não realizável, a que chamaríamos devir: “devir imperceptível”. Como não pensar na
Filosofia Naturalista, no enigma de um em dois, e de dois em um?

Portanto, a Estética como Acontecimento pleno é também obra de


Dioniso/Apolo, sob o signo de um mesmo que não é senão desfiladeiro de diferenças,
mergulhadas em um devir malabarista que atua em um universo torto, que caminha por
linhas sinuosas, sob os rastros serpenteados, ao qual, como ao CsO, nunca se chega. É o
mala, é o malandro poeta, divino com os divinos, mais esperto do que o capeta, é o
gênio do mal, o anjo rebelado, o furor de viver, o intercessor que semeia discórdias nas
mentes sabidas, estranguladas de verdade, cansadas de lutar para querer sempre chegar,
estacionar, semelhantes aos pensadores em pantufas. Ora, chegar é morrer à maneira de
um comum mortal, daí o fato de que o CsO não se presta à idealização, à
glamourização. Querer o CsO é desejar entrar em um devir-talo, em um devir-vegetal
que respira e se alimenta de todo o processo irrigatório, cósmico/terreal, mineral/vegetal
sob o signo do caosmos e sua arte desfilante; uma arte inumana, selvagem, analfabeta,

29
vacinada, anômala, arredia, que causa espanto, desmaio e desassossego, que constata
nos atributos extraterrestres ou divinos a imagem em ruínas de um túmulo vazio.

Dança ou corpo em suspensão

Caso a dança possa ser considerada como uma maneira de desorganizar o corpo
funcional, e de reorganizá-lo de outro modo – desterritorialização/territorialização –
como órgão de seu próprio sentido e não de funções, como comer, respirar, não se pode,
neste caso, compará-lo a uma outra reorganização, a do erotismo, por exemplo, em que
as partes do corpo desempenham outros papéis e tarefas totalmente diferentes daqueles
de suas funções, como sugere Jean-Luc Nancy?

Não perderíamos, então, a representação que se tem do corpo como artefato


natural, o corpo como essência? Se, de fato, o corpo nunca é natural, fica a pergunta:
então, o que é o corpo? Melhor ainda, o que pode o corpo? O corpo pode muito. Para o
dançarino, todavia, o corpo é seu privilégio. E por quê? Porque o corpo é seu corpo.
Como pensar então o corpo que dança – corpo em suspensão – ou o Corpo sem Órgãos
inserido na filosofia dançarina ou na Estética como Acontecimento? Por que aludimos a
um corpo em suspensão? O que é um corpo em suspensão? É um Corpo sem Órgãos
cuja tarefa singular consiste em levar em conta as estradas ou ralis a que são submetidos
máquinas, homens e, sobremaneira, a organização do corpo. De fato, as vias sobre as
quais os órgãos se deslocam nunca são perfeitamente aplainadas. As rodas, em
consequência da carga que suportam, sofrem os deslocamentos verticais repetidos, de
extensão variável, provocando choques e caos. Se a caixa do carro, a alma do corpo com
órgãos, no sentido figurado, é religada rigidamente às rodas ou aos eixos que os unem,
logo cada choque, cada deslocamento vertical é integralmente transmitido ao veículo e a
sua carga, isto é, aos diversos órgãos. Quanto mais a velocidade aumenta, mais esse
fenômeno se repete, podendo mesmo amplificar e, muito rapidamente, suceder à
insegurança, ao desconforto, ao incômodo. É necessário, pois, filtrar e deduzir os
choques provocados pelas desigualdades da estrada.

Eis, pois, a parte primordial da suspensão, em diapasão com esta tarefa coletiva,
com todos os artefatos e sensações, vibrações e vitalidade do corpo sem órgãos, numa
dinâmica marcada pelo encontro. Sempre encontros. Matéria-prima do corpo, tal
asserção nos leva a Espinosa: É só num encontro que um corpo se define.

O corpo com órgãos seria a “interioridade” parasitária do corpo sem órgãos,


donde a missão impossível do dançarino: nutrir em permanência o louco desejo de
recuperar, justamente, o seu fora. O dançarino, enquanto corpo sem órgãos, em
movimentos contínuos e experimentos por vir, almeja ao fora, que não é o exterior,
todavia, o corpo encenação, o fora, a mise en scène como exposição cuja fascinação
consiste no fato de nunca ver seu rosto, pois “o rosto é realmente voltado para o fora; e
todo o resto do corpo é finalmente voltado para o fora, mediado pelas roupas. Um corpo
nu não é nem a transparência nem o fim. Tenho a sensação que o corpo não é uma
essência acabada, é o infinito, e que expõe a intimidade, é o sem fundo. O nu acontece
quando se sai da religião. É tão-somente quando se está na religião que se pode dizer
que se vai desvelar”.61

30
A nudez, no presente contexto, situa-se, pois, muito mais na ideia de leveza, de
despojamento para o voo dançante, para a perda dos órgãos do que para a nudez-strip,
que ganha ao excitar o olho e os sentidos, à contemplação do interdito cristão: o nu é
feio! O corpo sem órgãos não conhece a nudez, pois ele é nudez, antes de Adão e Eva!
É a inocência do devir, ainda não tocado pela consciência, pela noção freudiana de
cultura... E de novo Artaud: O tempo em que o homem era uma árvore! É um corpo que
dança. É um corpo que canta. O corpo, que seria completamente imerso nele. O corpo
sem órgãos, nada tem contra corpo, mas contra o peso, o estilo pesado e atravancado
dos órgãos e seus solavancos desmotivadores e chupadores de energia e leveza dos que
aspiram a voar, a dançar.

Como voar com uma soma tão pesada de órgãos? Órgãos que são tanto reais,
materiais/imateriais, quanto virtuais/fatuais: o virtual sendo mais real do que o real, o
virtual como o possível do real. A virtualidade como a realidade poética, sempre por vir,
sempre acontecendo, em um tempo sem calendário, o tempo do virtual como
acontecimento poético, como uma das formas de atualização do virtual (o sensível), que
se eleva contra sua própria impossibilidade. Que impossibilidade? Experimentar o fora
da linguagem de onde emerge o pensável. O poeta encontra aqui as interrogações
filosóficas naquilo que ele problematiza: o devir poético da linguagem em sua relação
com o pensável: sempre por vir, sempre em devir...

Que quer o dançarino? Diante da constante ingerência dos órgãos, ele batalha
por um corpo sem órgãos, ele se diz que não está aqui para andar, pegar, respirar.
Todas estas funções são instrumentalizadas por outra coisa que não é uma função, mas
antes o corpo-em-devir, o corpo como máquina para de engendrar signos. Corpo sem
órgãos, corpo dançarino, sem tensão, é “massa, sequer nascida”, segundo a expressão de
Jean-Luc Nancy.62

O corpo bailarino é o incriado, o inegendrado, o não concluído, sempre por vir,


já que o corpo pertence ao conjunto dos signos. Não há corpo autêntico, corpo em si, é
sempre algo que se apropria culturalmente. Eis por que a cada passo de dança, a cada
apresentação pensamentos e filosofia bailarina emergem não raro com sacrifício, mas
sem martírio, sob os passos de uma estética rigorosa, ateia que não foge ao sofrimento,
mas que o transforma em força pura, em uma Estética como Acontecimento.

Como evitar, porém, o sufoco, o asfixiamento do discurso filosófico sobre a


dança? Propomos uma filosofia com a dança, intermezzo, entredois; tampouco uma
filosofia da dança, mas uma filosofia que dança! A dança é a arte do efêmero. Neste
sentido, é possível afirmar que o grande encontro da filosofia com a dança, ou vice-
versa, dá-se, justamente, graças à fragilidade que marca a ambas como pensamento,
como movimento. Mas, se o equilíbrio da dança é definido pelo desequilíbrio, isto é,
por uma forma-outra de equilíbrio, esta não poderia ser também uma bela definição da
filosofia? Filosofia como arte do desequilíbrio. Filosofia como dança das palavras e
conceitos, sempre em movimento, atenta às transfigurações e transvalorização.

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Dobra III

Uma lembrança. Uma vibração. O solo de Martha Graham, no filme O balé


Appalachian Spring, uma das obras mais conhecidas de Copland (1944). Um vazio
cênico pleno... Poucas coisas nesse filme: alguns brancos, algumas barreiras aparecem
como uma costura movediça da sombra e da claridade. As coisas brotam num tecido de
duas luzes. Em seu solo, Martha Graham, lentamente, deixa-se possuir pelo movimento
de torções internas suaves, pouco amplas; o levantar das pernas, nunca em extensão
extrema, parece subtenso, como a corda de um arco.

Imagem após imagem, para uma dança tão calma, ela aparenta o tempo todo em
desequilíbrio. O desequilíbrio não suscita tensão. É um desequilíbrio em si. Não se toma
mais seu equilíbrio, vive-se o desequilíbrio apoiado pela velocidade. A velocidade não
pertence ao mesmo mundo que aquele do apoio, de peso e contrapesos. Martha se
desloca no seio do fluxo de volumes, e inventa anglos de fluxo. Aqui a suspensão, a
retomada, o corte entre dois movimentos não podem ser o objeto de uma fixidez por
meio da qual uma forma completa, inteira, parada, apareceria. A aparição é um percurso
em que a velocidade e o desequilibro não oferecem mais ao movimento, ao
deslocamento rápido um obstáculo; a velocidade tira do desequilíbrio novos solos.
Aqueles que fazem a experiência da luz-substância, aparentemente anódina,
experimentam igualmente o desequilíbrio, em um trabalho que não se destina a verificar
um fenômeno físico, mas que o corpo, como um cientista avisado, observa e
comprova... Existem rochedos estranhos no filme, que ganham uma expansão discreta,
penetrados de uma nova substância – uma luz que passa. Uma luz transeunte que, ao
mesmo tempo, aumenta sua densidade e sua porosidade e conduz a uma nova maneira
de andar em um solo que se torna desconhecido, emoldurado por uma espécie de
epifania ou estética bailarina da luz.

Jean-Luc Godard diz que nossas palavras ressoam na matéria, do mesmo modo
que nossos gestos e as coisas sobre as coisas. Michelangelo, por sua vez, afirmava ser o
intercessor de sua invenção; ele lutava arduamente para libertar a pedra de seu sono:
“Eu tirava apenas as sobras, pois a estátua já estava lá”. Sua criação não se limitava a
esculpir o mármore, mas a “libertar os seres aprisionados no interior da rocha”.
Lucrécio evocava a emissão da imagem, de membranas, pelos objetos da existência;
Bergson, bem mais tarde, em Matéria e memória, acentua a projeção de cada um sobre
cada um: Cada imagem é um caminho sobre o qual passam em todos os sentidos as
modificações que se transformam na imensidade do universo.

Martha não diz. Martha dança em desequilíbrio... Com ela a dança se desloca
numa linha de terra que é um devir-animal da linha: o corpo muitas vezes voltado para o
fogo, imperceptível como o olhar, expõe seu corpo na noite da natureza. A arte de
Martha consiste em extrair da terra novos solos. Em Heretic and Lamentation, ela se
afasta rapidamente do conflito das luzes, segundo o impressionismo; às vezes,
reencontra a martelagem dos passos da terra. Martha desenvolve sua descoberta da luz
como massa, volumes que têm as próprias figuras. Para dobrar e desdobrar o corpo às
respirações desses volumes, a bailarina agrega opostos, associa suavidade das tensões
internas e gestos secos, sopros e coluna vertebral. As tensões cegas encontram a
surpresa dos ângulos, os ângulos cegos deparam com a surpresa das curvas, em um

32
malabarismo que abre para o desequilíbrio harmonioso de um corpo inserido às
nervuras efêmeras da alma dançarina.63

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Ao falar, porém, da dança como estética do efêmero ou da fragilidade, não se


está a criar um paradoxo entre as duas artes – filosofia e dança? A filosofia, de fato, não
se inscreve historicamente, numa eternidade, numa verdade verdadeira? Não é outra a
leitura canônica do pensamento trespassada pela História da Filosofia, desde a filosofia
grega, radicalizada mais tarde pela teologia, nela inserida como uma ferida da língua,
desde a emergência do cristianismo. Filosofia e dança não seriam opostos: a
efemeridade ou fragilidade da dança e a suposta eternidade da filosofia? Este modelo de
leitura cria um abismo entre a dança e a filosofia: de um lado, o movimento do
dançarino; de outro, a imobilidade do filósofo. Ora, um pensamento imóvel é uma
filosofia morta, isto é, uma doutrina, uma crença, uma teologia. Um pensamento imóvel
não pertence ao campo do pensar, pois o que move a arte e o pensar são o devir-
ambulante da própria dança, a migração/emigração de signos dançantes.

Por conseguinte, o que mais aproxima a dança e a filosofia é o caráter peculiar


compartilhado por ambas: a alegria, a felicidade, o desejo permanente de novos hábitos.
O homem é feliz não apenas na supressão de uma insatisfação, mas no exercício da
força, da energia, da vontade livre, inventiva. Força como vitalidade, criação constante
de novos olhares e encontros. A felicidade é a arte de não se deixar morrer pelos hábitos
duradouros, em todos os campos da existência. Cabe fazer da felicidade uma força,
riqueza maior de homens plenos, ativos, que não separam a felicidade da ação. Para
eles, como diz Nietzsche, na Genealogia da Moral, ser ativo é parte necessária da
felicidade. Há, pois, uma felicidade que liberta, produz inventores. Na dança, um gesto
morre para dar à luz outro esboço de novos possíveis, sobreviventes das sacralizações
mortíferas. Agir é filho da alegria, do movimento, que é pensamento. Na dança, na vida,
pode-se também dizer que agir não é fazer agir; agir é selecionar, eis que, para a
filosofia como para a dança, a beatitude é um intermezzo, e não um fim; agir é uma
estética dos afectos e não uma moral.

Agir é uma palavra que canta, dança, cria deslocamentos inéditos, adormecidos
nos interstícios preguiçosos do organismo que reluta ao vitalismo do CsO. Pensar,
como dançar, é autorrealização, autocriação que encontra sua concretude na errância, na
autonomia inventiva de uma criatura que se passa do Criador, e que inventa o Criador
para se salvar do Criador, como diz Almafuerte, uma personagem de Borges, em
Ficções.

Por que marcar, então, a diferença ao escrever filosofia e dança? Por que não
escrever filosofia/dança? Ou ainda a filosofia, a dança? Porque ambas são
multiplicidades ambulantes, singularidades férteis que levam coreógrafos a se inspirar
na filosofia, e filósofos a buscar na dança, no teatro, na literatura, na poesia, na física,
nas matemáticas ou nas lendas, ferramentas para elaborar suas práticas e pensamentos –
Platão, Descartes, Hegel, Nietzsche, Nancy, Deleuze, Foucault etc. Neste sentido,
Descartes é exemplar:

33
“As ciências estão agora mascaradas, uma vez, porém, retiradas as máscaras,
elas aparecem em toda a sua beleza”. Ele associa, pois, o trabalho do cientista à visão de
beleza do artista, mediante sua tarefa comum de desvelar a verdade.64

Que verdade? A verdade da arte, sempre em ação; uma verdade que inventa
olhos, uma verdade dançante que pensa com os pés, como o jogador de futebol, e não
entra no império da consciência, inimiga da intuição, da criação, do corpo sem órgãos,
donde sua capacidade de olhar com olhos não domesticados a beleza simples das coisas
da vida. Trata-se do devir-bailarino da própria verdade, um devir-pintor que é capaz de
se extasiar diante do silêncio de um corpo imaterial que ocupa a cena em uma quietude
cujo signo maior é a beleza velada em um devir-imperceptível da própria beleza,
inserida em profundo silêncio e calma, que são ainda passos de dança e traços ou
pintura, em que sopros e invenções fazem enxergar a beleza onde ela parece
imprevisível, sombreada ao olhar colonizado por uma estética da dominação dos signos.

Em seu celebrado Elogio do cotidiano – Ensaio sobre a pintura holandesa no


século XVII, Todorov retoma a questão da beleza despojada. Segundo o autor, a beleza
repousa num mais singelo gesto. Para justificar sua tese, ele nos leva a conhecer a
beleza simples das obras-primas de Steen e Ter Borch, de Hooch e Vermeer, Rembrandt
e Hals, mestres da pintura holandesa que nos fazem descobrir a beleza das coisas, e que
não se comportam como alquimistas capazes de transformar o excremento em ouro, mas
percebem que a mulher que atravessa um pátio e a mãe que descasca uma maçã podem
ser tão belas quanto as deusas do Olimpo e nos incitam a compartilhar esta convicção.
Ensinam-nos a melhor entrever o mundo, e não nos embalam com doces ilusões.
Pintores, bailarinos, poetas, filósofos, físicos, matemáticos, e tantos outros criadores do
cotidiano não encontram a beleza, eles a descobrem, e permitem-nos descobri-la.
Ameaçados hoje pela nova forma de degradação da vida no cotidiano, ao olhar esses
quadros, somos tentados a neles encontrar o sentido da beleza de nossos gestos os mais
elementares ou vulgares. Não é outra coisa que nos revela Todorov:

“A beleza não está afora ou acima das coisas vulgares, mas em seu próprio seio,
basta um olhar para extraí-la e a revelar a todos”.65

Por sua vez, Paul Klee tenta descrever o que sente e experimenta ao se
confrontar à natureza, aparentemente, anódina:

“Em uma floresta, senti diversas vezes que não era eu que olhava a floresta. Eu
senti em alguns dias que eram as árvores que me olhavam, que me falavam (...) Eu
estava ali, escutando (...) Acredito que o pintor deve ser trespassado pelo universo e não
querer transpassá-lo (...) Eu espero ser interiormente submergido, amortalhado. Eu pinto
talvez para emergir”.66

O olhar das coisas, que persegue Paul Klee, não é sem paralelo com James
Joyce, ilustrado pelo famoso parágrafo de Ulisses, em que o autor apresenta o que
chama a “Inelutável modalidade do visível”. Para ambos, a realidade é um sistema de
cores transformadas em signos. Signos que vivificam e abrem à dança para uma
estética-outra do belo, da beleza. Embora a beleza bailarina exceda a beleza única, ela
não é transcendência, menos ainda essência. A beleza bailarina é antes imanência,
nunca representação. Por que não transcendência? Fora da transcendência existiria o
quê?

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“A potência do transcendental solicita ao transcendental uma potência segunda,
própria a bloquear aquilo cuja potência é bloquear. Em si mesmo, o transcendente
impede qualquer novidade, produz a infinita repetição do mesmo, debita pobrezas do
Um-Todo”.67

Deleuze: “O ser, o Um e o Todo são mitos de uma falsa filosofia impregnada de


teologia”.68

É importante notar que é não só na dança, ou no campo das artes em geral, que a
filosofia deleuziana toma corpo; seus conceitos mesclam-se aos movimentos, às cores,
aos sentidos e aos saberes/sabores. Não se trata, em absoluto, para artistas, cineastas,
coreógrafos, de fazer dos conceitos os derivados de sensações, nem, ao contrário, de
traduzir as obras em termo de bula, razão ou verdade verdadeira. Não. O pensamento
de Deleuze ama respirar e se deixar contaminar; detesta a prisão, até mesmo quando
dourada ou maquilada pelos efeitos de moda, ou pela tirania de um modelo ideal, linear,
de uma filosofia régia.

Em Deleuze nunca se trata de moda ou modismo. Não é moda, é a modernidade,


no sentido em que o moderno é a absolutidade irreversível e irrecusável do presente,
um presente que não é “o tempo presente”, a linearidade do tempo, mas uma potência
de devir como desterritorialização. O tempo presente é iônico ou o tempo-criança: devir,
e não apenas história e cronologia. O ser virtual, não só atual. O ser-em-devir, em fuga
indeterminada, que se movimenta continuamente nas areias movediças do desejo. O
devir é sempre devir-outro minoritário, não hierarquizado nem prisioneiro da imagem
ou da identificação, do modelo único estratificado na ideia construída de normalidade,
de tipo humano – homem, branco, habitante de grandes cidades, ou ainda, segundo
Deleuze: majoritário, conforme um modismo ou um imaginário enganador, acoplado a
um real que escapa à vida, pois considera que tudo já foi dado, determinado para
sempre. Um tudo, pois, sem o novo que se faz e emerge ou acontece a cada sopro, a
cada instante. Neste sentido, desde que se trata de uma relação com a vida, existe um
real que nunca é dado antecipadamente, do mesmo modo que o atual:

“O acontecimento não é o que acontece (acidente), ele é no que acontece o puro


expresso que nos dá o sinal e nos espera”.69

Por que esta desatualização do real e do atual? A vida não é totalizada nem
totalizadora, ainda menos totalizável. Alguma coisa escapa. Algo sempre foge ao real,
ao inacessível, ao indeterminado. Algo evade-se, cria a fenda; foge para o
indeterminado, para o que está por vir; virtualidades, intensidades que formam uma
“reserva” isto é, uma parte não realizada, e que demanda virtualização, sempre em
excesso com a realidade atual, sempre impossível a antecipar. É o destino do pensador,
do artista; é o sentido peculiar da Estética como Acontecimento: existe em toda
produção, em toda invenção um tanto que fica, como uma sobra, como uma abertura a
outros intercessores... Algo ficou... e pode ser retomado.

Eis o sentido da palavra ‘reserva’: a parte não realizada do que se produziu da


criação, isto é, o devir da própria invenção, do possível como acontecimento, condição
de sua “existência”. De fato, o possível em si não existe, ele é produção do
acontecimento, por uma vontade derivada do acontecimento, que se alimenta do

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intolerável: “O acontecimento é o próprio ‘potencial revolucionário’, que se esgota
quando rebatido sobre as imagens já feitas”.70

Felizmente, a maioria dos artistas, em todas as áreas tocadas pelo sopro


inventivo da filosofia deleuziana – mas não só – insere-se na filosofia vitalista da arte
para apreender o mundo e seus fluxos de criação permanente. Inventar ou morrer de
inanição. Inventar ou correr o risco de se enclausurar em um saber transformado em
conhecimento, detentor de uma só verdade. Ora, a história da verdade é a história de um
erro, mesmo porque a verdade não suporta ser confrontada à realidade. A verdade é a
teologia; a realidade é o experimento, próximo do pensamento sem imagem. Neste
universo, os fragmentos do pensamento filosófico e, sobremodo, alguns textos de
Deleuze alimentaram, desde os anos 1980, as obras de coreógrafos situados às margens
de sua arte. Aqui, Balzac encontra sua atualidade: Só existe vida nas margens.

Uma plêiade de coreógrafos consagrados, dançarinas, dançarinos, faz da


filosofia um intercessor maior de suas pesquisas, invenções ou experimentações,
inseridas implicitamente na Estética como Acontecimento. Entre outros, Alain Buffard,
Jérôme Bel, Xavier Le Roy, Maria Donato d’Urso, Laurent Goldring, Maura Baiocchi,
sem falar da relação de Carolyn Carlson com a filosofia. Uma das maiores expressões
da dança, nos últimos quarenta anos, chamada pelos franceses “Rainha da Dança”, suas
mais recentes apresentações, em março e junho de 2010, respectivamente, Poetry Event,
em Lyon, e Blue Lady, em Paris, no Théâtre National de Chaillot, atestam presença
marcante da filosofia e paixão pela dança como pensamento.

O devir-criança da dança

Pensar, dançar são produções marcadas pelo risco, pelo perigo, pela audácia cujo
traço maior é a força imperceptível do equilibrista, do dançarino, do filósofo, sempre em
devenir; fluxos inventivos e imaginação-criança, o devir-criança. O devir-criança da
dança, palcos abertos às invenções sem as quais não há movimento nem vida pensante,
dançante, é força inorgânica alheia à representação simplória ou piedosa que se faz da
criança. Cabe sublinhar que o devir não é uma substância, uma essência, uma
representação/imitação física ou psicológica. Um dos aspectos peculiares do devir
consiste na primazia da indeterminação sobre um propalado começo ou determinação.
Que almeja Deleuze? Desfazer a forma acabada, concluída, estável e organizada do
homem em proveito dos devires compreendidos como potências da indeterminação.
Indeterminação não é outra palavra para dizer desejo? Sim. Eis por que não se trata de
um simples exercício de oposição ou substituição. É justamente porque criança, mulher,
animal ou homem não representam “estados feitos ou concluídos”, que a ideia de
substituição é o oposto do conceito de devir:

“Seria absurdo ou idiota querer o ‘devir’, a partir da mudança da forma do


homem contra outras formas concorrentes (...) Com efeito, a indeterminação é a
potência anterior e superior às formas acabadas, estáveis, organizadas. A escolha do
devir é indissociável da (escolha) da indeterminação. Logo, devir não consiste em se
identificar a uma mulher, a uma criança, a um animal, nem mesmo a imitá-los.
Confundir devir com substituição, é o mais terrível contrassenso, a não comentar, pois,
uma vez comentada, a doutrina de Deleuze naufraga na estupidez.3*

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Devir-criança não é, pois, se tornar criança. Devir-mulher não é imitar a mulher,
mesmo porque tanto a criança quanto a mulher são produções contínuas,
indeterminadas, abertas aos devires, ao imperceptível do devir. O devir-criança se
acopla a um conceito, é um devir, eis todo seu sentido. O devir é acontecimento, ora
como imaginar o devir-criança fora do que Deleuze chama o on – o se, terceira pessoa
do singular - das singularidades pessoais e pré-individuais, o on do acontecimento
puro: morre-se, chove? Pois

“O esplendor do on é a do acontecimento mesmo ou da quarta pessoa. É por isso


que não há acontecimentos privados e outros coletivos; como não há individual e
universal, particularidades e generalidades. Tudo é singular e por isso coletivo e privado
ao mesmo tempo, particular e geral, nem individual nem universal”.71

O devir não se identifica tampouco com uma imagem. Nada imita. Devir-criança
não é fazer como uma criança, o que seria grotesco e desolador. Não é calco nem
decalcomania. Deleuze, preocupado com este equívoco, escreve, nas primeiras páginas
de Diálogos, que o devir não é tampouco se conformar com um modelo com o qual nos
identificamos. Entrar em regressão ao escrever sobre o devir-criança, ignorando a força
do conceito e suas mil possibilidades, tornando-o objeto de substituição, uma espécie de
prêt-à-parler esvaziado de sentidos. Fazer do conceito devir um corpo biológico e, em
alguns casos, não raros, um objeto delirante de desejo, é um exercício que se repete em
experiências e escritos apressados. Tornar-se o proprietário, o defensor, o protetor, o
viciado ou dependente de sua ficção – biológica – sob a denominação conceitual devir-
criança, devir-mulher, devir-revolucionário reduzida a uma essência, denota a
dificuldade à compreensão do conceito, embora não justifique a leviandade e ausência
de rigor ao menear conceitos sofisticados que perpassam a história da filosofia, de
Heráclito aos nossos dias. Todo devir supõe um processo de
desterritorialização/reterritorialização ou indeterminação. É uma intensidade, algo por
vir, do campo da invenção, da reinvenção; são estados de experimentação,
transformações e nunca identificação.

Tomar o devir-criança como representação da criança é comprazer-se com um


território minado de um imaginário dominador que beira, muita vezes, não apenas o
equívoco, mas o ridículo. Ora, um dos aspectos mais extraordinários do devir é sua
vibração ou sensação contínua, sua reserva de indeterminação, seu aspecto itinerante,
desejante, o oposto da identidade, do nome, da nomeação parasitária, do estigma. O
devir-criança é forma que se move no meio das coisas, sem origens nem fim, nem
substância nem moral, nem circunscrição nem condenação, mas desterritorialização que
abre para além das formas determinadas ou leituras canônicas que louvam a imitação e
o começo, sem levar em conta a transvalorização vivida pela viagem ou travessia da
produção – o oposto da reprodução, da representação.

Estética como Acontecimento: uma filosofia que dança

* Cf. Philippe Mengue. Comprendre Deleuze. Paris: Max Milo Éditions, 2012. Trata-se de um pequeno
livro introdutório ao pensamento de Gilles Deleuze, bastante didático e instigante. Infelizmente, tivemos
acesso ao texto quando da finalização do deste estudo. Agradecemos, em todo caso, a gentileza de
Philippe, sobremodo, nosso longo diálogo.

37
“Pode-se continuar a submeter as regras e os métodos da interpretação e do
comentário universitário (embora tão particularmente rigoroso e sensível às rupturas, às
crises, às variações) a uma filosofia que não cessa de preconizar a experimentação e de
se abrir em direção de outros campos disciplinares e de outras práticas?”.72

Dois nomes são nossos intercessores no presente experimento Duas dobras.


Duas singularidades que transformam, como tantos outros, à sua maneira, a dança
contemporânea.

Platô I:

Hervé Diasnas, francês, nascido em 1957. Em 1977, inicia sua formação em


Mudra, escola fundada por M. Béjart, e estreia sua primeira peça Seuil (Limiar), na
Companhia Nourkil, antes de começar a trabalhar, em 1978, com Elionor Ambasch,
Félix Blaska e Carolyn Carlson, na peça Os Arquitetos, na Ópera de Paris. Seguindo a
tradição de jovens coreógrafos dos anos 1980, Diasnas continua seus estudos nos
Estados Unidos. Sua escolha é, contudo, peculiar para a época, em que a maioria
escolhia estudar a dança contemporânea, ele elege a clássica. Ao voltar à França, em
1980, encontra François Verret, aceita seu convite para dançar Fin de parcours, e se
dedica à coreografia de O fio de Ariana.

Autor de cerca de trinta criações de altíssimo nível; como muitos dançarinos, o


talento, a erudição, o conhecimento das artes e da filosofia, os estudos realizados com
os grandes mestres da dança, tudo isso faz com que Diasnas, mais do que um nome
mundialmente reconhecido na dança contemporânea, seja um mestre, um estudioso, um
conceito dançante. Um artista que pensa “com os pés de dançarino enraivado”, como
diz Zaratustra.

Duas criações, entre outras, atestam a presença implícita da filosofia e da dança


como conceitos. Se é exato que a coreografia deixa um vasto espaço ao acaso, ao
indeterminado, ao devir, Diasnas não abre mão do conhecimento das teorias filosóficas,
tornando-as ora leves, ora pesadas, leves/pesadas, horizontais/verticais.

Naï ou cristal qui songe – Naí ou cristal que sonha é uma inovadora coreografia
apresentada, em 1983, em Paris, no Théâtre de la Ville. O solo causou imenso sucesso e
trouxe um ar fresco à dança parisiense. A dança imóvel e a nudez apolínea atestam o
estilo inovador de Diasnas. O movimento não se define mais em função de uma origem,
de uma zona de constância, de uma identidade; todavia, funde-se no fluxo que o
perpassa. Inspirado por Deleuze, a carne do bailarino se coloca no entredois da
experiência e, nele, busca se magnificar. A rigidez emerge, então, não mais como
suspensão, quietismo niilista ou mimetismo psicótico, deveras, como movimento
nômade. É parado que o nômade corre mais, sob a força de uma velocidade dançarina,
até mesmo quando se desloca lentamente.

A familiaridade com o pensamento deleuziano pode nos levar a citar em cada


movimento, em cada respiração, em cada passo, na correria estática do dançarino um
conceito do filósofo. A erudição de Diasnas, porém, faz com que nunca haja imitação
ou decalque em seu uso da filosofia. A cultura e a formação constituem antídotos contra

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a cópia ou uso caricatural dos conceitos. Com Deleuze, o efeito de moda nada pode, o
novo supõe o pensamento contra a opinião, como força propulsora da invenção
constante do ato dançante. Não se trata, apenas, de admirar o balé, de gostar de dançar.
Dançar é sempre da ordem do sacrifício, mas nunca do martírio. O sacrifício sem
martírio não é o quinhão do gênio?

Em 1985, Primeiro Silêncio é dueto entre um dançarino e uma marionete, jogo


entre dois indivíduos, universos que criam uma multiplicidade de universos; a cena é
habitada por tantos personagens ausentes e alcança uma dimensão rizomática, sem
passado, mas com o porvir nas veias e nos passos. O jogo mimético sai da imitação e
confunde a cópia, levando os dançarinos à malícia e à crueldade, isto é, à produção de
um pensar que dança. Para além do “casal esquisito”, a surpresa que sua virtuosidade
provoca impõe uma dança que supera suas qualidades altamente atléticas e intrigantes,
para plantar um universo poderoso e violento, mas também terno, vadio.

De Diasnas a Boris Charmatz, do torso ao ânus, do sopro às miríades de


intensidades vagabundas, são blocos de sensações inseridas à corporeidade que
estremecem na dança dos fluxos, na dança do esperma maluco, tão longe e tão próximo
de Antonin Artaud. Ao acolher a imaginação, a intuição, o imaginal, Diasnas faz da
abertura do corpo um apelo ao movente, dunas ritmadas pelo sopro da carne e veias
salientes, cria uma sinergia de apoio aos movimentos, num balé que privilegia a linha e
a duração do instante. O coreógrafo não se “inspira” apenas em Deleuze, ele o rouba, o
reinventa, tornando os passos ondas bailando entre fusões de intensidades múltiplas,
pondo a carne, como proclamava Deleuze, no meio do experimento, no corpo que
dança. Carne? Outra palavra para dizer alma: nervuras do corpo atravessado pelos
fluxos e refluxos, numa onda por devir:

“O fundamental é como se fazer aceitar pelo movimento de uma grande onda, de


uma coluna de ar ascendente, ‘chegar entre’ em vez de ser origem de um esforço”.73

Platô II

Boris Charmatz nasceu em 1973. Dançarino e coreógrafo francês, é considerado


como um dos líderes da Nouvelle Vague Française e do Movimento da não-dança, que
surgiu em meados de 1990. Formado pela École de Danse de l´Opéra de Paris, e pelo
Conservatoire National Supérieur de Musique et de Danse de Lyon, Boris Charmatz,
potente, carismático, cria suas primeiras coreografias e funda a Associação Edna.

Aos vinte anos, seus experimentos múltiplos e abordagens agonísticas da dança


e pesquisa cenográfica, relacionada diretamente com o corpo, fazem dele uma
celebridade precoce. Próximo da Antiguidade greco-romana, em sua encenação de
prática dos combates ou lutas corporais, por ele revisitadas ou reinventadas, o fato é que
suas coreografias subvertem, convulsionam, produzem desassossego, sob o impacto de
uma estética à qual não faltam nem a dominante política nem as crueldades do corpo
sem órgãos.

Sua primeira peça À Bras le corps, criada em 1993, põe dois dançarinos no meio
da cena, ladeados pelo público com o qual agem. Sempre agir. Interagir. Não reagir.
Mais que uma divisa, é uma técnica baseada na ação, e não na reação; neste sentido, sua
estética se aproxima do Super-Homem de Nietzsche. Em 1994, Les disparates é um

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solo “bicéfalo” para um dançarino e uma escultura de Toni Grand. No mesmo ano,
Charmatz assina algumas produções nas quais interroga a nudez, a liberdade, o
indivíduo, a dança, sua relação com a política e o poder. Participa, como intérprete, com
Régine Chopinot, Odile Doboc, Olivia Grandville, Xavier Marchand e Meg Stuart.

A maioria de suas criações choca, comove o meio da dança. Laureado, na França


e no estrangeiro, é consagrado e acolhe o reconhecimento do público. Muito jovem,
marca os espíritos e se afirma como personagem iconoclasta no âmbito da dança
contemporânea francesa e internacional. Propõe encontros atípicos com o público,
contato direto/indireto, até um espetáculo dançado por um só espectador. Não há,
porém, simbiose. Não há projeto com o público. Nem enganação social, nem promessa
de continuação. O que aqui se vive é forte demais para cair nas armadilhas de uma
estética do social, de uma dança “com fins sociais”. A dança, como a arte, é resistente,
inclusive quando, aparentemente, ela não resiste. Ele leva a dança para um terreno
político e polêmico, confrontando-a sempre ao perigo. Próximo de Artaud, ainda mais
de Carmelo Bene, embora não tenha sugerido tais filiações, é um jogador que ri de si e
dos outros.

Em 1996, Boris recebe o Prêmio de Autor, com o espetáculo Aatt...enen...tionon,


apresentado no teatro Halle aux Grain, em Blois, e no Festival de Outono, no Centro
Beaubourg, em Paris. Aos 23 anos, é consagrado na França e no exterior.
Aatt...enen...tionon, recebe os dançarinos em uma estrutura vertical, em três níveis. Na
parte inferior, o coreógrafo, na parte superior, Julia Cima, no meio Vincent Druguet. A
cena é dominada por um bloco coreográfico, com cinco metros de altura, numa área
exígua, limitada a dois metros por dois. A confinação é, contudo, anunciadora de vagas
de intensidades carnais, sensuais – um sexo sem sexo, uma quase dança, fragmentos de
órgãos, sob o signo de uma estética do furor, uma Estética como Acontecimento.
Seminus, usam apenas uma camiseta. O espetáculo começa: vergas, vulva, nádegas,
seios, orifícios à vista, a nudez exposta num poderoso corpo a corpo leva-nos ao
profano/sagrado do nu renascentista. A debandada da carne e dos sentidos encontra aqui
seu ápice. O dramaturgo Joris Lacoste escreve a este respeito:

“É fácil pressentir que todos os fluxos boca-ânus-sexo, literalmente, e, em todos


os sentidos, estão a laborar. E é por aí que passa a dança.”74

Eis-nos, pois, em companhia de Gilles Deleuze: “Um órgão pode ser associado a
diversos fluxos segundo conexões diferentes; ele pode hesitar entre múltiplos regimes,
inclusive tomar para si o regime de outro órgão”.75

O corpo dançante mistura todos os signos, foge das estratificações cimentadas, e


confere sentidos às parcelas de órgãos. A dança não é uma gramática, mas um alfabeto
nômade, aberto ao novo, ao que não pode nem deve ser pensado, dançado.
Aatt...enen...tionon, é belo. E fala de nossa nudez-vestida. Aqui a beleza é totalmente
desterritorializada: pesa muito o que Rilke diz a respeito do belo:

“Pois o belo/ é tão-somente este começo do terrível que ainda/ suportamos/ e o


admiramos tanto porque incansável ele desdenha/ nos destruir”.76

Junte-se à dissidência rilkeniana a estética apodítica de Deleuze que percebe a


cor e a beleza, em geral, como emergente de um metabolismo, de uma gênese imanente,

40
verdadeira criação do mundo por si, autoengendramento capaz de dar o “ser mesmo do
sensível”, aquilo que Deleuze chama “contemplação”. A estética apodítica é, de fato, a
“sentença de morte” da concepção milenária da Beleza – o belo é o bem, é o bom,
segundo Platão – cujo limiar o poeta Rimbaud ousou denunciar à tenaz ilusão, em sua
obra-prima Uma temporada no inferno:

Outrora, se bem me lembro, minha vida era um festim onde se abriam todos os
corações, onde corriam todos os vinhos.

Uma noite, sentei a Beleza em meus joelhos. — E encontrei-a amarga. — E


insultei-a.

Levantei-me em armas contra a justiça. Fugi.

Ó bruxas, ó miséria, ó ódio, é a vós que meu tesouro foi confiado!

A mesma beleza que subjuga, transporta, dá cambalhotas, derruba ou levanta


aqueles que cruzam seu caminho, não é para Stendhal, em sua obra Do Amor, um
processo de felicidade? Repare-se, porém, que o belo não é o bom: kalos kai agathos,
conforme a clássica formulação grega. O belo não é o bem, nem pode, tampouco, ser
limitado a uma ideia, pois é do campo do sensível, das puras sensações, percebido pelo
corpo que dança como aquele maravilhoso mais que a matéria contém. A emoção,
constitutiva da beleza, do belo, é laborada pela experiência (sensibilidade) e pelo
experimento (sensível) dos quais que a literatura revela os segredos e a filosofia e a
dança interrogam suas dobras e desdobras. A cada vez que a dança das palavras, como
precioso guia de viagem, ilumina a beleza num país sem fronteiras (o corpo), pode-se
falar de uma viagem aberta, de uma beleza às mil conexões e experimentos. O que se
sente é o que se vê, a visão se passa, pois, do olhar burocratizado que impede e
emergência do novo, da invenção. Carolyn Carlson:

“Não danço para os olhos, danço para a alma” (Poetry Event).

O fogo do amor. O corpo que dança é aqui carne desejante que queima a
memória para nela instalar um esquecimento ativo, móvel; um esquecimento amoroso,
cigano, nutrido por linhas de fuga que são como o olhar que vê além da visão. O tato
não seria o olho do dançarino e do filósofo? A dançarina não é definida por Mallarmé
como “o ponto filosófico”?

Furor de Charmatz: na cavidade do corpo, nos ocos das dobras, surgem os


“estados intensivos”, corpos dançantes destroem a unidade fictícia de um eu ideal.
Literalmente nus, os três bailarinos jogam na cara do público, surpreso, o devir-animal
das personagens cuja vontade maior consiste em provocar o íntimo e os sentidos –
sensualidade, erotismo –; na gestão dos fluxos do corpo o projeto artístico confere uma
imensa vitalidade na intensidade do gesto. Nem passagem ao ato nem cenas tristes de
masturbação ou apelo escatológico. Arte. A arte da dança. O pensamento bailarino
voador, como o herói trágico.

Em 2003-2004, Bocal (École nomade), coreografia aplaudida pelo público e pela


crítica, é uma alusão à filosofia deleuziana. Em 2006, ele faz a coreografia de Regi, com
Raimund Hoghe, como também improvisações ao vivo com os músicos Archie Shepp

41
ou Otomo Yoshihidé. Nomeado diretor do Centro coreográfico de Rennes, Bretanha,
em 2008, ele propõe transformar esse lugar em um Museu da dança ou Dancing
Museum.77

Com efeito, a dança torna-se intercessora da filosofia ao conduzir o filósofo à


surpresa peculiar diante da multiplicidade e da complexidade do mundo. Emergem aqui
alianças. De certo modo, neste movimento, neste encontro entre intercessores, nas dunas
e oásis do deserto, a dança nos leva a pensar o real, do mesmo modo que a filosofia nos
empurra para o abismo, nos dá encontrões, força o real a pensar. Pensar: máquina para
inventar novos reais, novos possíveis. Se a dança é hoje um modo singular de
investigação do real é porque ela oferece um terreno propício ao exercício desta
transversalidade que impregna o pensamento contemporâneo. A transversalidade se
designa como uma abertura a leituras plurais da realidade, sempre em movimento,
movediças, abertas às sensações, às vibrações e aos sentidos.

Pensar com Deleuze é correr risco... Nós o encontramos sempre onde menos se
espera que surfe. Sempre de passagem, sempre às margens, ou no fundo de coral raso,
ou em Pipeline, pico de ondas tubulares, translúcidos, inesperados solavancos, vagas
impiedosas que curtem tanto as tempestades e intempéries quanto a doce crueldade da
calma, das mais cultuadas ondas do planeta...

E, como um pensador da aurora, Deleuze continua seu pensamento sem fim, do


mesmo modo que se diz: Bob Dylan, septuagenário, ao começar uma série sem fim de
concertos nos Estados Unidos, e em inúmeros países, enveredou em um projeto que
nunca termina.

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Dobra IV

Uma liberdade sem muros. O tempo em que homens e mulheres eram vegetais
sexuados, canibais amorosos, sem raízes… apenas talos, veias salientes, sem crédito
nem débito! Felizes de não obedecerem. Eram os sem-nomes, porque tinham todos os
nomes da terra, curados do arquivo, da raiz que tanto cala quanto amaldiçoa, tanto
condena quanto perdoa, em uma relação constante de poder, macros ou micros – o
poder que salva é o mesmo que mata. A inclusão que inclui, não é a mesma que exclui?
Seu corolário fundamental não é o resgate, às vezes, ao preço da vida?

O tempo em que o homem era uma árvore sem órgãos nem função, mas vontade
de vontade, e árvore de vontade que anda, voltará.
Existiu, e voltará (Antonin Artaud).78

Sentir-se animal, pedra, flor, água, mineral, sol… não é o apanágio dos
primitivos, mas o destino de poetas, filósofos, cientistas ou loucos que geram sentidos e
abrem as portas da percepção, ao mesmo tempo em que provocam o rapto da
representação calcinada na nomeação como imposição. Imaginação e invenção de novos
possíveis não constituem o desejo peculiar dos dadaístas? Para alguns escritores e
pensadores não foi uma experiência perpassada pela escrita, como experimento extremo
que fez emergir o inumano do humano? Humano, ser humano, categorias recentes, mas

42
que sofrem o seu cansaço, e deliram como se comessem o ventre, e os ventos de seu
ventre por dentro, como diz Artaud.

Que espera Artaud com seu CsO e seu teatro da crueldade? Fazer dançar as
pálpebras, pôr em movimento o sensível das flores, frutos, minerais, árvores e mares
numa orgia gestual em que os sentidos, os poros e a sensualidade inseridos nas pétalas,
águas, rizomas e luminosidades geram a dança do esperma louco. O CsO, do tempo em
que o homem era puro vegetal, não condenado aos grilhões do organismo, como cordão
umbilical que enforca maluco, com seus nós de pescadores, nós do coração, e seu juízo
assassino.

Artaud, aquele que pariu o CsO como se fabricasse sua própria crucificação. Ei-
lo no estrado da Sorbonne:

“Tinha o rosto em convulsões de agonia e os cabelos ensolarados em suor. Os


olhos dilatavam-se, enrijava os músculos, os dedos lutavam para conservar a
flexibilidade. Transmitia-nos a secura e o odor da sua garganta, o sofrimento, a febre, o
fogo das suas entranhas. Estava em plena tortura. Berrava. Delirava. Representava a sua
própria morte, a sua própria crucificação. As pessoas começaram por não mais poder
respirar, por ficar de respiração cortada. Depois começaram a rir. Toda a gente ria!
Assobiava. Por fim, as pessoas foram saindo uma a uma, no meio de um grande ruído, a
falar alto, a protestar. Ao saírem, batiam com a porta. (...) Mais protestos. E vaias
também. Mas Artaud continuava, até ao ultimo suspiro. E ficou no chão”.79

Trapo. Olhos trêmulos, semi-abertos, bicho ferido que recusa a fuga; Artaud,
quando a sala se esvaziou, e só restava um pequeno grupo de amigos, pede para ir ao
bar tomar um café.

Ao auscultar o texto ou hieróglifo do corpo-vegetal, do cosmos ao caosmos, do


prazer estético à estética da existência, deparamo-nos com uma escrita do CsO,
dançarina, sempre em deslocamento, numa dodecafonia espacial que atesta a energia da
imagem transmutada numa escrita das forças, sob o signo de um caos que é desordem
dançante. O rosto inumano do humano. Dança do ventre das flores. Movimentos
sensuais. Fluxo/refluxo. Restos imateriais, que são tanto os orifícios, ou as dobras do
orifício, como linha e não ponto. Encontros sincopados.

O dia em que o homem era um vegetal... Os sem-terra, os sem domicílio fixo,


não porque pobres ou desvalidos ou párias do sistema, mas porque tinham todas as
terras do mundo, todas as moradias da terra, campos, vales, estepes, desertos e oásis a
céu aberto. Utopia! Dirão alguns. Ao quê é respondido: Não. Antes uma antiutopia em
que prevalece a máquina de guerra nômade, sempre contra o poder, de olho na
autonomia inventiva, fora do controle do Estado, contra o Estado. A autonomia, pois,
como produto de uma situação, inserida em um agenciamento coletivo em que as ideias
eclodem entre elas, se estimulam simultaneamente. A autonomia não existe em si, daí a
ideia de uma autonomia que não para de se refazer. Sua força primordial é a mudança, a
transformação sem repouso. Não se trata nem de uma impostura, menos ainda de uma
substância, de uma essência. É uma atitude permeada pela arte de agir que se exerce
com trabalho, esforço ou, simplesmente, uma capacidade de energia livre dos costumes
impostos pelo poder unificador de produção, reprodução, desejos, gozo e prazeres,
ideias e vontades.

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Khatibi ou a proliferação dos signos

Haja vista a relação do CsO com a Estética como Acontecimento e a inserção


das artes e da escrita à construção da est-ética, pode-se falar de uma escrita CsO? Corpo
e escrita assemelham-se, de certo modo, às entidades em núpcias contínuas regidas por
afectos intercambiáveis. A delicadeza, o movimento dançante estão de tal modo
presentes que o filósofo/escritor, diante de uma horda de signos, sente-se confuso,
atropelado pela força do sensível que o deixa trêmulo em presença da linguagem do
corpo e do aspecto mágico da escrita como acontecimento, esvaziada das amarras das
representação, pois o conceito de acontecimento é a síncope da representação, a
pulverização da representação. Ou melhor, a subversão a favor de sua multiplicidade, da
reinvenção da coisa nomeada: a morte, por exemplo.

Toda reinvenção é uma invenção, todo intérprete é um iniciador que abre fendas
para o devir, para os sentidos, isto é, para o acontecimento. A paciência da
representação, da repetição do mesmo, emerge como a peste; a impaciência do
acontecimento, que é também, a sua maneira, uma paciência, eclode como a
paciência/impaciência dos signos. Uma paciência, pois, mordida pelas intensidades
inseridas no acontecimento que não cria nada de imortal, de fixo; é que a eternidade do
acontecimento se materializa intensivamente no instante de imortalidade. O instante
como imortalidade faz emergir uma est-ética, ou ética da estética, sem comum medida
com a duração convencional, todavia com o ato inventivo. Só os organismos morrem,
afirma Deleuze. É a arte que eterniza o que não morre: como matar Michelangelo?
Como matar Nietzsche? Como matar Deleuze ou Foucault? Eis a vibração de uma
estética ateia: a Estética como Acontecimento, que concede ao signo a tarefa de nos
forçar a pensar:

“O que nos força a pensar é o signo. O signo é um encontro; mas é precisamente


a contingência do encontro que garante a necessidade daquilo que ele faz pensar. O ato
de pensar não decorre de uma simples possibilidade natural; é, ao contrário, a única
criação verdadeira. A criação é a gênese do ato de pensar no próprio pensamento. Ora,
essa gênese implica alguma coisa que violenta o pensamento, que o tira de seu natural
estupor, de suas possibilidades apenas abstratas. Pensar é sempre interpretar, isto é,
explicar, desenvolver, decifrar, traduzir um signo. Traduzir, decifrar, desenvolver são a
forma da pura criação”.80

Libertar alguma coisa, instigar a liberdade das artes, das ciências, são
intensidades incríveis em ressonância a uma nova comunidade e aos seus processos de
subjetivações. Um coletivo de afectos e perceptos – afectos que são devires não
humanos do homem enquanto os perceptos constituem “as paisagens não humanas da
natureza”, uma coragem de pensar, embora as surpresas e acasos do pensamento possam
deixar mais de um perplexo, confuso, em meio aos hábitos duradouros e à constelação

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de fluxos que cantam o novo e instigam ao experimento. Eis a potência do signo:
introduzir uma bolha, um sopro, um piscar de olho de imprevisível nas zonas obscuras
da invenção.

O escritor sente o potencial das palavras sobre seu corpo e desejos desterrados.
Habitado por um medo desmesurado, ele espera o instante que o leve a abandonar os
órgãos e a tentar enveredar pelo devir-vegetal, pela inocência do devir, para um corpo
não mais sufocado pelo organismo. Abdelkebir Khatibi foi um dos poucos a sentir de
modo peculiar a presença da inocência do devir, como energia da escrita, em estado de
alforria dos órgãos, do peso ou da gramática, de um escritor às voltas com a escrita da
delivrança, escrita voadora, apesar do medo-pânico de alguns, quando a leveza chega
sem bater à porta: “Como incesto espelhando este medo diante da escrita que pode ser
devorado por ela”.81

Capeta ou sexo devorador, a escrita, como o corpo, é uma arma de dois gumes.
O voyeur desorientado se põe a zarolhar sob o peso das palavras que nascem e
desabrocham, apesar dele ou contra ele ou, excepcionalmente, com ele. Por outro lado,
desde que o escritor se põe a escorregar, como o surfista em sua prancha é tocado pela
potência das palavras sem órgãos em sua imaginação, e que beiram o imaterial, o
incorporal, é a festa! O delírio gozoso! Líquido úmido, sem nostalgia da placenta, pois o
que está a experimentar dispensa o simbólico ou o imaginário para se extasiar no real
que toca, sente, e respira nas malhas finas das águas e iodo e véus de noivas sem noivos,
pois em núpcias com a escuma do mar. Oceano que é, segundo a Ilíada, o primeiro
chamado de origem dos deuses, acrescentando à origem o elemento líquido, as origens
avassaladoras em sua múltipla genealogia, ora apagada, ou refeita pelas águas e
correntes impiedosas. O arquivo encontra aqui seu elemento maior: a ficção, a narrativa
poética, todos os nomes dos deuses e monstros marítimos.

Jean-Pierre Vernant, exímio helenista, confirma o fato de que o valor atribuído,


na Grécia, assim como em muitas outras civilizações, às potências aquáticas “está
relacionado ao caráter duplo das águas doces: a fluidez e a ausência de forma
predispõem-na em primeiro lugar a representar o estafo original do mundo onde tudo
estava uniformemente diluído e confundido em uma mesma massa homogênea; sua
virtude vivificante e geradora – a vida e o amor estão relacionados, para os gregos, ao
elemento úmido – explica em segundo lugar que elas guardam em seu seio o princípio
das gerações sucessivas”.82

Como interpretar palavras perfumadas sem se deixar aspirar o perfume/veneno


das próprias palavras? Só o poeta é capaz de tal proeza, por ter experimentado, como
um acontecimento de irresistível felicidade, o delírio inerente à criação, uma espécie de
grande saúde do inventor de sonhos e mundos possíveis: “O perfume de uma palavra
me deixava transtornado (…) Eu amava de preferência as palavras estrangeiras (…) As
palavras nasciam com desejo, escoltavam meus passos, e redobravam em reflexo minha
adivinhação”.83

Com Khatibi, é sempre o acontecimento que permeia sua escrita, seus sonhos,
afectos e sua saúde frágil da qual extrai sempre os sintomas que, em sua escrita e no
cotidiano, se metamorfoseiam em uma grande saúde. A tal ponto que, mergulhado nos
oásis, ao sul do Marrocos, ele se deixa ninar pelos ventos e assobios à imensidão do
deserto, e esquece, no ato de amor à vida, a própria enfermidade que o atormenta, e

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escreve em seu corpo um romance invisível ao olhar colonizado ou colonizador. Como
dizer o indizível do amor acalentado pelo amor-de-amizade? O amor como
acontecimento elevado a sua potência máxima? É delicado tentar dizer o acontecimento,
sobremodo em se tratando de uma est-ética, de uma ética da amizade que foge à
materialização do gesto, espraiando-se numa saudade virtual, em um sentido imaterial,
incorporal, fiapos amorosos de enfermos de amores incorporais, desesperadamente
tangíveis:

“Ao contrário, extrair dos sintomas a parte do acontecimento puro – como diz
Blanchot, elevar o visível ao invisível –, levar ações e paixões cotidianas como comer,
cagar, amar, falar, morrer até o seu atributo noemático, acontecimento puro
correspondente, passar da superfície física onde atuam os sintomas e se decidem as
efetuações para a superfície metafísica em que se desenha, desempenha o acontecimento
puro, passar da causa do sintomas à quase-causa da obra –, é o objeto do romance como
obra de arte e o que o distingue do romance familiar”.84

O acontecimento, pois, como liberador, não se atrela a nenhuma ordem, a


nenhum estado passivo ou ativo; o acontecimento opera um efeito de superfície como
“o movimento pelo qual o eu se abre à superfície e libera as singularidades acósmicas,
impessoais e pré-individuais que ele aprisionava. Literalmente, ele os solta como
esporros nessa descarga”.85

Graças ao impoder da escrita do corpo, que busca uma volúpia virtual, o escritor
tem a impressão de renascer de si mesmo, de se engendrar: nascimento nômade – o
artista, o inventor, o escritor é o artífice de uma genealogia fabulosa e transcultural. A
ética da estética é assim o território, sempre movediço, do engendramento extático, de
uma deriva da escrita que se desalgema no e pelo repouso pleno da língua, e desenvolve
o encantamento verbal de um nascimento dionisíaco:

“Eu brincava de desaparecer nas palavras (…), mil vidas se cruzavam, era a
muvuca generalizada, eu saía à cabeça feliz e louca”.86

A hospitalidade das palavras provoca verdadeira busca do indizível. Pleno,


habitado pela volúpia verbal, paixões realmente efetuadas:

Khatibi: “Eu morrerei pelo menos uma vez nas palavras”.87

O pacto com as palavras, com a escrita, não é uma barricada que preserva a
linguagem do corpo? “O corpo reabilitava-se livremente dos músculos a rachar entre as
palavras”88 numa profundidade sem fundo, sob a tirania de uma ressonância
ensurdecedora de signos que preenchem o verbo, ao mesmo tempo em que exige uma
organização da qual decorrem a estratificação da linguagem e sua compreensão
ordenada. Mas, como evitar a debandada dos sentidos ou o choque inerente a tamanha
vibração que deixa em estado de suspensão a estratificação e a compreensão ordenada?
“Face à eclosão dos sentidos, eu evitava compreender (…) Compreender era a bela
morte. Eu me contentava com seu espelhamento o mais perturbador, o mais traidor”.89

Khatibi sempre recusou “a bela morte” concedida aos gregos, àqueles que se
imolavam pela pátria, que partiam à guerra, ao combate, à morte, tornando-se imortais
pela duração infinita da memória dos cidadãos gregos cuja saudade perdura como uma

46
homenagem e reconhecimento ad aeternum. O heroísmo grego, oriundo de uma
“cultura de honra”, Khatibi o substitui ou o elege pelas perfeições das quais são dotados
os deuses “que prolongam na mesma linha aquelas que são manifestadas pela ordem e
beleza do mundo, pela harmonia feliz de uma cidade dominada pela justiça”. (…) E,
sobretudo, pela piedade do homem grego “que não adota a via da renúncia, mas da
estetização”.90

Em Khatibi, a escrita é máquina de guerra alimentada pela multiplicidade do


caosmos, e pelo seu estranhamento radical a uma moral que muitos confundem com a
ética, e que impõe a alteridade como prisão e nunca como escolha desejante. Palavra de
ordem letal: “Amai-vos uns aos outros como eu vos amei”, maldição cujos estragos
perduram até hoje no ocidente, sobremodo. Ao amar a todos, não se ama a ninguém.
Bela farsa! É uma intenção piedosa, beirando a maldade, a irresponsabilidade. “Com o
amor não se brinca”, dizia Musset. O cuidado de Khatibi, em relação à dependência
identitária, sobremaneira em seu caso, partilhado entre a França e o Marrocos; bilíngue,
ele sonhava na língua do “inimigo” – a França – e amava as palavras estrangeiras, o que
o leva a cortar o cordão umbilical com toda e qualquer prisão político/identitária. Um
bilinguismo, pois, que não significa dois, duas línguas, dois países, mas multiplicidades
de pronúncias, modos infinitos de amar, odiar, copular, combater, em todas as línguas
dos sonhos e histórias infinitas, mas sempre sob o signo da liberdade e do desejo. Nunca
como imposição. A língua não é um idioma, porém, todas as histórias, de todos os
países, em particular dos países por vir. Um bilinguismo como objeto de afirmação:
acontecimental, múltiplo, que faz da alegria o artefato singular da Estética como
Acontecimento, estética da existência:

“O múltiplo enquanto múltiplo é objeto de afirmação, como o diverso enquanto


diverso objeto de alegria. (…) Lucrécio fixou por muito tempo as implicações do
Naturalismo: a positividade da Natureza, o Naturalismo como filosofia da afirmação, o
pluralismo ligado à afirmação múltipla, o sensualismo ligado à alegria do diverso, a
crítica prática de todas as mistificações”.91

Desde cedo, Khatibi afirma sua relação a outrem como estereoscopia de uma
produção de subjetivações coletivas, sem pátria nem sujeito, sem dívidas nem
cobranças. No universo intelectual árabe, mormente nos países que formam o Magreb, a
África do Norte, ele mantém um autodistanciamento e, explicitamente, uma cisão, uma
diferença entre si e uma não identidade de si mesmo como o outro. À maneira de
Deleuze e Guattari, não como resultado de uma leitura aprofundada das obras desses
autores, todavia, mediado por um encontro virtual de sensações ou intensidades, o estilo
é definido por Khatibi como a “língua estrangeira na língua”, tema atuante praticamente
em toda a sua obra. Em um plano político, ele se situa numa lógica de autoalteridade
cujo processo de subjetivação não reconhece nenhuma “língua mãe, mas uma tomada de
poder por uma língua dominante em uma multiplicidade política”; daí seu papel como
intercessor à construção da estética nômade.

O que é uma autoalteridade? É uma multiplicação de eus indexados aos eus-


outros em si mesmo. E de que modo funciona? Como uma máquina de guerra, em
combate com os jogos identitários, guardiões da identidade maior, isto é, o eu. Sufocar
a raiz do eu, como singular gramatical, embaralhar os comentadores em suas buscas
desesperadas de um eu infiltrado no universo rizomático dos eus-outros, foi o jogo, o
dada, o brincar preferido de Khatibi, na vida, na literatura.

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É interessante, no presente caso, notar de que modo a lógica identitária é
contestada por meio de práticas sociais que Roland Barthes define como acráticas,
linguagem vaga, difusa, aparentemente natural, conquanto pouco identificável; em
oposição às práticas encráticas, simultaneamente clandestinas, camufladas e triunfantes,
enfeudadas à doxa, reduzidas à repetição mortífera, semelhantes à linguagem da
televisão, dos jornais informativos etc. :

“Todas as instituições oficiais de linguagem são máquinas ruminantes: a escola,


o esporte, a publicidade, o trabalho de massa, a canção, a informação reduzem sempre à
mesma estrutura, ao mesmo significado, muitas vezes, às mesmas palavras: o
estereótipo é um fato político, a figura maior da ideologia”.92

Fazer da vida, contudo, uma obra de arte, não é evidente. Marguerite Duras, no
auge de seu sofrimento, à beira da morte, louvava a vida, e entrava em êxtase carnal,
sentindo saudade não do presente doloroso, nem do passado, com sua memória das
marcas, mas do futuro. Ela vibrava à ideia de ficar boa, curada, para poder escrever:
escrever ou morrer! Escrever para não morrer. Um modo simples de amar.

A cada nova produção, a cada novo livro, ela matava a morte que rondava seu
leito de hospital. Não foi muito diferente com Nietzsche, na fase aguda de sua
enfermidade. Que escrevia ele? Fazia a apologia da doença como uma grande saúde. A
mesma forma de vitalidade desejante se encontra em homens e mulheres de ciência, de
arte, não sendo, pois, um privilégio do filósofo. Dedicados à criação, fissurados pelo
novo, eles estão em movimento, perambulam, alguns até como anacoretas do deserto,
cavernas, estepes e sertões, em uma viagem imóvel, segundo a singularidade de cada
qual, isto é, as antigeneralidades que são impessoais e pré-individuais e que, à maneira
do filósofo pré-socrático, não sai da caverna, pois estima, ao contrário, que não estamos
bastante engajados nela, suficientemente engolidos:

“Os pré-socráticos instauram o pensamento nas cavernas, a vida na


profundidade: Eles sondaram a água e o fogo. Eles fizeram filosofia a golpes de
martelo, como Empédocles quebrando as estátuas, o martelo do geólogo, do
espeleólogo”.93

Julio Verne é exemplar: dá a volta do mundo, sem deixar sua caverna: a França!
Muitos não precisam se deslocar, mas cuidar para que as viagens infatigáveis não
parem. Nem pausa, nem repouso. Não por acaso, raros são os criadores que se dedicam
ao universo gestionário. Inventam, produzem conceitos, fórmulas sofisticadas,
engenharias, mundos outros de comunicação, virtualidades ou engenhos
extraordinários; são criadores, alguns de potentes microscópicos, outros de minúsculas
sondas, invenções imperceptíveis ou gigantescas de alta tecnologia. Em todos os
campos das ciências, do pensamento filosófico e das artes, alguns reinventam o
pensamento ou conceitos que transformam e refazem o mundo, e a vida, como se fora
um sonho. O sonho dos físicos, astrônomos, matemáticos, cibernéticos, filósofos,
artistas e de tantos outros poetas viajantes, simples personagens, é uma poesia que se
materializa, é o jogo constante do material/imaterial que faz vibrar, e confere às
sensações a aura do real. O real, como a vida, é um sonho, não era outra coisa que dizia
Calderón!

48
Existe em toda invenção um toque genial de loucura: o inumano do humano;
sem freios nem grilhões, é neste campo de afectos e linhas de fugas que as grandes
inteligências encontram os espaços selvagens apropriados à folia da criação, sob o signo
de uma est-ética, que é acontecimento pleno. Um devir-são da loucura, aberto às
aventuras do desejo e da inteligência rigorosa com o tempo da criação, o tempo das
invenções. Invenção como forma em combate constante às certezas, ao reino do mesmo,
da uniformidade tirana. Na prática, porém, desde que um pensamento se burocratiza ou
se torna gestionário, perde sua potência ativa, criativa, e reproduz reflexos de proteção
infantojuvenis que deságuam em demandas de proteção, compensação e, em
consequência, regressão. É o começo do inferno astral ancorado em desafetos
melancólicos ou em lembranças desidratadas. Outro nome para dizer depressão? A
depressão é uma bruta nostalgia e impossibilidade voluntária ou involuntária de aceder
ao novo. De renascer. É uma espécie de covardia. E, portanto, o mundo é imenso... Não
é, porém, a estrada que vem a nós, nós é que vamos à estrada... A vaidade, a ânsia de
poder, o medo da vida, a fraqueza dos “fortes”, tudo vai água abaixo.

Eis por que, muitas vezes, o que era o impoder do gênio, do pensador, do criador
de conceitos, isto é, do filósofo, torna-se sede material, moral, de poder, embora
puramente simbólico. Uma vez político-profissional, ou diretor de banco, ou de
laboratório ou de centros de pesquisas, o pesquisador de ontem torna-se hoje o pensador
do Estado, o funcionário régio que defenderá até a morte seu posto, seu lugarzinho.
Embora, felizmente, não se possa generalizar, os exemplos de tal deriva não são raros
nem ficcionais. Ao contrário. É o que acontece, desde que se deixa de pesquisar ou
criar, para trabalhar duro como pensador que renuncia ao pensamento: o pesquisador
burocrata, que faz da pesquisa um trampolim para assegurar o que ele havia
antecipadamente imaginado, estruturado, e que confirma, pois, seus pontos de vista e
convicções. Os pesquisados, neste caso, desempenham o papel de “laranjas” da corte,
mediados pelo “pesquisador-laranja”...

Do mesmo modo, desde que o ócio criativo imaginal do gênio, isto é, a liberdade
solta como um poldro selvagem se curva à impostura político/ideologia, resta o exílio,
inclusive, em tempo de democracia. Adeus poldro selvagem! O exílio de dentro: a
mediocridade dos que “pesquisam” para nada; ou os novos territórios abertos aos
desterritorializados: o exílio dentro/fora. Novos países. Novas pátrias. Que pena! O
gênio é por definição um apátrida, ele é estrangeiro em sua terra natal! Um
desterritorializado. O poeta que gagueja em sua língua.

O pensamento seria, então, uma essência, uma entidade, um novo deus? Não. O
pensamento precisa de espaço, campos de liberdades, conforto físico/mental, territórios
não minados pela mediocridade do poder político ou pelo assédio moral ou discursos
autoritários que, como diz Foucault, “nos fazem rir, mas são letais” à liberdade do
inventor, à engenharia das competências, à estética da existência. A Estética como
Acontecimento, terreno propício ao exercício da transversalidade, designa uma abertura
às leituras plurais da realidade e a um pensamento não ilhado à experiência, aos
experimentos, e que supera a supremacia de uma razão única e a dualidade cartesiana:
espírito é corpo.

Nessa óptica transversal, própria de uma filosofia em mosaico, em que o


pensamento pode ser apreendido como um território em que os movimentos de
clivagem ou travessias se atualizam no espaço mental/físico, por ventos e tempestades

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sobre as dunas, que deslocam os mangues, em um movimento mínimo de
migração/emigração, mas que têm a força cambiante do movimento alheio à dualidade:
territorialização/desterritorialização, e que é antes uma multiplicidade anti-hierárquica
que transforma radicalmente o pensamento, o pensador, no caso, o filósofo compositor
de uma filosofia como um patchwork:

“Mas não é apenas o conhecimento ou a consciência que se constroi como um


patchwork, é o próprio mundo que aos poucos tece um gigantesco patchwork. Neste
sentido William James fala de uma filosofia em mosaico. Existe um número
incalculável de redes que se superpõem umas às outras e formam um tecido compósito.
(...) Segundo James, o filósofo é aquele que, por sua vez, não cessa de deambular por
entre essas vastas redes; ele nos parece assemelhar-se mais a um trabalhador itinerante
(ou ao artesão prospector de Mil platôs) do que a um homem de negócios”.94

Parafraseando Deleuze, dizemos que a filosofia das bastonadas nos Cínicos e


nos Estoicos contemporâneos – Espinosa, Nietzsche, Deleuze, Foucault e outros –
substitui a filosofia das marteladas:

“O filósofo não é mais o ser da caverna, nem a alma ou o pássaro de Platão, mas
o animal chato das superfícies, o carrapato, o piolho”.95

Percebe-se melhor por que a estética nômade destaca a Filosofia Naturista e


todos os processos de pensamento que abrem para a estética da ética, da existência:

“O Naturalismo faz do pensamento uma afirmação e da sensibilidade uma


afirmação. Ele ataca os prestígios do negativo, ele destitui o negativo de toda potência,
ele nega ao espírito do negativo o direito de falar em filosofia. É o espírito do negativo
que fazia do sensível uma aparência, é ainda ele que reuniu o inteligível em um Um ou
em um Todo. Mas esse Todo, esse Um, não eram senão um nada do pensamento, como
essa aparência um nada da sensação (…) Uma das constantes mais profundas do
Naturalismo é denunciar tudo que é tristeza, tudo que é causa de tristeza, tudo que tem
necessidade da tristeza para afirmar seu poder”.96

Espinosa: “O poder torna as pessoas tristes”. Como modo de agir à tristeza do


poder, propomos a virilidade da alegria – vir em latim significa força; nada a ver, pois,
com a questão de gênero –, a virilidade de um pensamento alegre, a grande saúde, a
gaia ciência:

“Lucrécio fixou por muito tempo as implicações do Naturalismo: a positividade


da Natureza, o Naturalismo como filosofia da afirmação, o pluralismo ligado à
afirmação múltipla, o sensualismo ligado à alegria do diverso, a crítica prática de todas
as mistificações”.97

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O desejo como est-ética

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O desejo não seria uma est-ética, uma máquina de guerra positiva, inventiva de
outros modos de viver, amar, gozar ou sofrer ou morrer? Sim. Desde que o gozo passe
pela força do desejo itinerante. Um gozo não produtivo. Não condenado à função
edipiana, mas conectado ao inútil, ao gozo para nada. Um gozo aspirando também ao
improdutivo, ao desejo pelo desejo, sem justificativa nem muletas mentais; como
também à preponderância do desejo que fomenta a viagem ao corpo e as suas ilhotas,
ainda virgens, dobras esquecidas ou ignoradas.

A que corpo nos referimos? Dobras, ilhas e arquipélagos, linhas e cavernas


intocadas que demandam a ser exploradas, visitadas. Mas por que dobras? Pois bem,
muito mais do que a experiência da dobra, o método desdobrável que Deleuze
experimenta em cada um dos nervos viventes de um pensamento, e considera, por
exemplo, o indivíduo sob as dobras do mundo que ele desenvolve.

O conhecimento, o pensamento, império dos sentidos, é movido a alegria e a


toque. É um corpo que pensa. Tocar, pois, como veículo de erotismo, prazer, máquina
desejante, gozos inúteis: prazer, só prazer, estímulo aos avanços e ressonâncias do
desejo. Um prazer, porém, que escapa ao cotidiano, ao lugar comum. Um prazer não
somente relacional, mas que é pura linha de fuga. Um prazer que flerta com o silêncio
do olho, e que não se compraz com pequenos prazeres – que Michel Foucault tanto
detestava – formadores de uma dieta do prazer, de uma calistenia ou etiqueta do prazer
obtusa ao acontecimento, cuja consequência desastrosa consiste em entravar o fogo
revolucionário do desejo.

No fundo, como falar de um gozo para nada sem evacuar o próprio sexo da
economia dos afectos? O sexo é um signo. Signo dos signos, o sexo é o fim da memória
desordenada; de uma memória-túmulo do pensamento, que perdeu a qualidade ímpar do
esquecimento. Ora, sem esquecimento, não há sexo inútil; sexo para nada, não
culpabilizado, movido ao prazer dessexualizado, inserido nas produções e criações de
afectos, que resistem à reprodução imposta a todo gozo, sob a égide do sexo confinado
às zonas erógenas da organização política do corpo e à procriação: ao mito do amor
materno! Contra a memória das marcas e crimes impostos a cada um pela história do
cristianismo – somos todos criminosos, antes mesmo de ter cometido o crime, somos os
matadores de Jesus, enviado pelo Pai para nos salvar – o simples enunciado de um
prazer dessexualizado, libertino, e que abre para as novas formas de desejo e gozo, é
uma resistência ao “dispositivo da sexualidade”, às sexualidades em contraparte à
sexualidade. Dizer, entretanto, a sexualidade beira a ordem moral, a imagem moral do
pensamento, que elege explicações advindas de uma organização societária que adere à
estrutura social como uma espécie de palavra de ordem, que deve supostamente tudo
explicar, tudo justificar. Neste ponto, Deleuze e Guattari são claros, sem ambiguidades,
sem opiniões: eles pensam, não discutem, não opinam, nem se deixam cair no bem ou
no mal da sexualidade. O buraco é mais profundo, daí por que o amor se acopla à
sexualidade, e é estranho às faixas etárias ou ao gênero pelo gênero. Não existem
diferenças superiores nem inferiores, mas diferenças afora toda ordem hierárquica,
diferenças, pois, que nutrem encontros e afectos:

“Saber envelhecer não é permanecer jovem, é extrair de sua idade as partículas,


as velocidades e lentidões, os fluxos que constituem a juventude desta idade. Saber
amar não é permanecer homem mulher, é extrair de seu sexo as partículas, as
velocidades e lentidões, os fluxos, os n sexos que constituem a moça desta sexualidade.

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(...) A sexualidade coloca em jogo devires conjugados demasiadamente diversos que são
como n sexos, toda uma máquina de guerra pela qual o amor passa. O que não pode ser
remetido às deploráveis metáforas entre o amor e a guerra, a sedução e a conquista, a
luta de sexos e a briga de casal (...) é só quando o amor acabou, a sexualidade secou,
que as coisas aparecem assim. Mas o que conta é que o próprio amor é uma máquina de
guerra dotada de poderes estranhos e quase-terrificantes”.98

Mas, então, o que significa n sexos? Quer dizer que tudo está liberado? Quem
libera o quê? É em termos de devenir que as coisas acontecem em todos os domínios,
em todas as sexualidades e formas de amor:

“A sexualidade é uma produção de mil sexos, que são igualmente devires


incontroláveis (...) Não dá para vislumbrar como a correspondência entre duas relações
‘homem-guerra’ e ‘mulher-casamento’ poderia acarretar uma equivalência do guerreiro
com a donzela enquanto mulher que se recusa a casar. Tampouco dá para vislumbrar
como a bissexualidade geral, ou mesmo a homossexualidade das sociedades militares,
explicariam esse fenômeno que não é mais imitativo do que estrutural, mas que
representa antes uma anomia essencial ao homem de guerra. É em termo de devir que é
preciso compreender o fenômeno (...) São esse devires que encontram sua condição no
devir-mulher do guerreiro, ou em sua aliança com a donzela, em seu contágio com ela.
O homem de guerra não é separável das Amazonas”.99

Resistir é preciso. É certamente o que leva Foucault a afirmar que “o ponto de


apoio do contra-ataque não deve ser o sexo-desejo, mas o corpo e seus prazeres”,
desfigurado por uma memória da culpa que restringe o corpo a uma obrigação litúrgica,
e, quando convém, ao “universo animal”, à copulação mecânica, à procriação, ao
estigma corporal: “Crescei-vos e multiplicai-vos”, sob o espectro de uma memória do
sacrifício com martírio. Memória, que é em si a crucificação e suplícios mil vezes
repetidos do gozo, do desejo; quando não desempenha o papel de coveiro dos sentidos.
Como dissolver no instante a profusão dos reflexos e violentar a nostalgia travestida em
memória das marcas e gritos assassinos? Que dirá meu passado (memória recolhida) ao
apagar de uma página, sob os gemidos e uivos de um corpo que não aguenta mais?

Cabe fazer atuar, funcionar, em termos conceituais, os dispositivos


transformadores da máquina de guerra, máquina nômade, da est-ética em um
movimento de desorganização que embaralha ou desloca a sexualidade para outras
zonas corporais, até então ignoradas, quando não confinadas ao universo pornô,
destituídas, pois, da estética da existência, do maravilhoso do erotismo. Como, neste
contexto, desterritorializar sem territorializar e, viceversa, a verdade do sexo, a doxa
sobre o sexo, sabendo que toda verdade é um desejo insaciável de verdade?
Reinventando (talvez?) uma memória-outra das palavras, do desejo, do sexo, prazer e
gozo. De que modo? Acionando as máquinas desejantes, criando desacordes na escala
musical prazerosa do corpo, inclusive, em sua imaterialidade, em sua incorporeidade.
Mais ainda? Uma memória-outra supõe um combate aberto com as representações
calcinadas em um ponto, cloroformizadas em uma prática, o que exige a desconstrução
das representações a partir de uma ancoragem “político sexual”, como sugere Foucault.
Confundir as escalas; embaralhar as certezas, acrescentar tons e reto tom, dodecafonia;
inserir o canto coral em sinfonias, à maneira de Beethoven, em um corpo dos desejos
que é música, dança, aberto às circulações, à polifonia do sexual, à reerotização como

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artefato estético a dessexualizar o prazer e a reelaborar saberes apaixonados, conteúdos
e continentes em devenir.

É com tudo isso que se faz a Estética como Acontecimento, que se constroi e
percebe o corpo como um “estado volátil e difuso, com seus encontros de acaso e seus
prazeres sem cálculo”, donde a ideia de não barrar a emergência do caos à ação
continuada de reerotização do corpo em todas as suas dimensões. Em outras palavras,
acordar a desordem do caos a uma nova ordem corporal, que ainda é a (des)ordem do
caos. Acrescentar, pois, uma dodecafonia ao universo de dissonâncias dos sentidos,
enquanto contra-ataque produtivo às significações modais, monolíticas do gênero.
Compor novas modalidades de prazer, não ainda imaginadas nem experimentadas em
devir, que se tornam para o corpo, com o corpo e suas zonas de prazer, não exploradas,
uma estética da existência, e que significam, simultaneamente, um severo e produtivo
remanejamento do sexo-rei, sexo-rainha, sexo para a reprodução, procriação e, não raro,
instrumento de dominação.

É, pois, toda a questão da separação cultura/natureza, homem/natureza que vem


à baila, donde a ideia artaudiana, não de unir, mesmo porque não há nada a unir, a
separação cultura e homem, cultura e natureza, construção ideológica que tem a marca
de um pensar régio, de uma superstição científica e que, ao longo da história, condenou
inteligências discordantes à fogueira ou à masmorra, repulsando toda conversação, todo
encontro e mestiçagem ou acoplamento intensivos entre cultura/homem;
cultura/natureza. No fundo, nunca se trata nem de identidade nem de contradição, mas
semelhanças e diferenças, composições e decomposições, “conexões”, densidades,
choques, encontros, movimentos, disjunções, tal é a natureza das coisas, elaborada por
Deleuze em A lógica do sentido, e aqui belamente sintetizado por François Ewal:

“Quem fez da terra o que ela é? Quem deu esse corpo à terra? Máquinas, sempre
as máquinas. A terra é a grande máquina, a máquina de todas as máquinas.
Mecanosfera. A filosofia de Mil Platôs não concebe oposição entre o homem e a
natureza, entre a natureza e a indústria, mas mistura e aliança. A lógica da mecanosfera
não conhece a negação nem a privação. Há apenas devires, sempre positivos, e, dentre
estes, devires perdidos, bloqueados, mortos”.100

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Dobra IV

O CsO é também uma estética, nunca é demais repetir, embora há anos eu


padeça a solidão desse conceito, como um cavalheiro sozinho no deserto mais severo do
western! Amo o modo de vida caubói! Mas, temo o cavalo. Prefiro as vacas. Em termos
estéticos, todavia, amo a boiada, vibro com as cavalgadas. Com os cavalos é um amor à
distância. Amo o espetáculo: centenas de cavalos montados por profissionais, caubóis
ou cavaleiros, que terminam sempre sozinhos nos desertos e vales solitários, sob os
passos de uma trilha sonora que, como um ritornelo, anuncia a fraqueza dos fortes,
dominados por uma solidão de fim de mundo ou de planeta ferido. A solidão-infância
do caubói.

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Quanta riqueza, porém, nessa solidão povoada! Quem não viveu uma paixão
amorosa? A solidão do amplexo, na fase aguda da paixão, é total. O orgasmo acontece
no mínimo entre duas pessoas, mas o gozo apaixonado é anônimo, solitário, órfão. Não
por acaso, os franceses falam do orgasmo como de “uma pequena morte.” A morte no
gozo é solitária. E, portanto, somos dois, no mínimo, dissemos. A presença da parceira
ou parceiro, no gozo orgástico, no clima desorganizador da paixão, nunca é, porém,
recusada, negada; no instante do orgasmo, não há história edipiana; não há cobrança, e a
palavra do corpo, como carne inflamada, cala a tagarelice para experimentar e exprimir
o grande júbilo do tremor de um corpo semelhante ao da epilepsia, isento, porém, do
sofrimento inserido no fenômeno. O orgasmo é uma solidão plena, justamente porque é
uma experiência radical da loucura, e que supera de longe a interpretação canônica da
“pequena morte”, cara a Georges Bataille ou à psicanálise.

Com efeito, durante os parcos segundos de orgasmo, a solidão é radical, plena,


de um indizível devastador e meio bobão, meninão. Não é uma felicidade. É mais,
muito mais! É um muito mais, mais ainda, que quer mais: more, more, more! É uma
experiência similar ao êxtase – com a droga, com deus ou com o diabo, com deus/diabo,
com o sem-nome, ou com todos os nomes do universo, sem definição, com a alma,
outra palavra para os gregos dizerem Daímôn.

A gramática é paupérrima, não serve para dizer o gozo. O gozo não se diz –
talvez? É um experimento. Os toxicômanos percebem muito bem o que aqui tentamos
articular numa língua, em palavras, o indizível de um trapo humano que se torna por
segundos, deus! Como dizer em palavras a poesia molhada do corpo? Como articular
de modo gramatical algo que foge às regras e convenções e que, nem por isso, é
marginal, bandido ou louco? Como dizer o indizível do desejo mordido de paixão? Não
há nada a ser dito. Não há nada a ser explicado. Experimente. Experimente.

Existe na toxicomania, certamente, uma estética do desastre, do doce desastre: o


desastre de não poder permanecer no gozo ou morrer no gozo celestial, como desejaram
santas e santos: de Tereza D´Ávila e são João da Cruz, muitos querem sucumbir no
amplexo com o Divino. É também o desejo do corpo-drogado. É o abraço divino com o
divino. No orgasmo, porém, o ser humano é o divino. Ao beijar o divino, é a si que se
beija. Ele é o divino que acolhe o beijo… O beijo que engole o próprio beijo. Estética
do desastre em seu aspecto mais trágico – esquecer-se de voltar ao humano, ao trabalho,
ao tripalium: instrumento de tortura. Amanhã voltarei… mas nunca volta. E aí começa a
cavalgada. A busca delirante do gozo primeiro. A lua-de-mel, o primeiro gozo finda em
trapos solitários, no gélido das calçadas ou no esquecimento do corpo e… do primeiro
gozo, em forma de denegação e niilismo. É a lua de fel. É o fim dos devires para o
corpo-drogado atrelado às linhas de fuga envenenadas.

Ora, se é verdade que o orgasmo, para muitos, não é neutro nem inocente, é, de
modo privilegiado, uma constelação de devires inumanos cujo poema é escrito numa
invisibilidade cruel, como todo pensamento inominável; numa solidão que é puro furor
de viver, sem comum medida com nenhuma outra invenção. Em sua radical
positividade, o orgasmo é um devir-talo, é um devir-vegetal em seu esplendor, em sua
força devastadora, destruidora; é a suprema criação. É o acontecimento. Penetro e sou
penetrado; sou a personagem única dessa imaterialidade, deste mínimo instante
privilegiado: a solidão artista povoada. O orgasmo é a pura solidão. Não há noção de
nada: nem diferença, nem nome, nem hora, nem nacionalidade, nem segmentos

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sociais… nem memória. Nem cartão de crédito. Nem conta de luz. Nem declaração de
imposto de renda… Nem idioma. Somos todos analfabetos. Ruminamos; não é mais a
linguagem nem a palavra… sussurros, gritos, grunhidos inarticulados, gemidos de gata,
gato sem-vergonhas. Todo o reino animal junto à espera do grito, misto de felicidade
plena e… desolação. Semelhante à vaca, é a arte de ruminar, ainda que o tremor
orgástico nos aproxime de modo radical de nosso lado bicho, levando-nos, de imediato,
em questões de segundos, ao universo dos homens esfomeados de tremores gozosos. De
transe sensual.

De repente: tripalium. É o repouso do guerreiro, é o inumano do humano que se


vai: fui! Nada mais tedioso do que os diálogos de alguns filmes americanos, pós-coito,
que roubam das personagens o encanto imaginal, a quentura, os restos ainda mornos de
amor, colados às cobertas e aos corpos, apressando o retorno ao país dos sem-corpos,
em que a palavra asfixia o calor do gozo e impõe a umidade aos amplexos marotos,
fogo virtual/atual do devir. Como sair do papai-mamãe? Voltando aos estoicos – talvez?
– ou mediante a univocidade do sentido, como instante para uma poesia sem figuras:

“É preciso imaginar um outro estóico, um outro Zen, um outro Carroll: com uma
mão masturbando-se, em um gesto excessivo, com a outra escrevendo sobre a areia
palavras mágicas do acontecimento puro abertas ao unívoco, Mind (…) fazendo assim
passar a energia da sexualidade ao assexual puro, não cessando, contudo, de perguntar,
“o que é uma garotinha?”, pronto para substituir esta questão pelo problema de uma
obra de arte por fazer, que unicamente responderá a ela”.101

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Esboço cartográfico

O relacionamento desses conceitos permite fazer intervir uma Estética como


Acontecimento, o que requer um método cartográfico, atuante por sinal no âmago da
obra e da estética de Deleuze e Guattari; uma cartografia que põe em causa o vínculo de
exterioridade entre o objeto e o ato que o revela. A Estética como Acontecimento pode
ser percebida como uma aplicação/experimentação de sua concepção do pensar, e da
arte como pura invenção: devir e não cópia. A capacidade de experimentação supõe
autonomia ou, ainda, a capacidade, a potência, e autoafecção, e que os filósofos
chamam, tradicionalmente, o “tempo autêntico”, ou mais recentemente a invenção ou
criação desentravada de sua dimensão divina e humana. O contrário, pois, da descoberta
de uma verdade, de uma natureza preexistente ou de uma vontade de torná-la um dogma
privando-a de seu devir e de seu movimento, produtor de sopros, passagens,
confluências, ondas e tubos gigantes, castelos aquáticos, ferramentas peculiares à
transformação e à transvalorização de todos os valores.

Afirmamos, pois, que fora do pensamento e da arte, do pensamento como arte, e


da vida como uma bela arte, não há uma verdade que os artistas procurem desvelar.
Pergunta: que tipo de verdade busca, então, o artista, em seu sentido ampliado? O
inventor, em todos os domínios dos saberes, produz um movimento constante como
criatividade órfã, saber órfão. Mas, o que é o saber órfão, é o não referencial? Na há
virgindade no pensamento, menos ainda floresta nativa na invenção. Tudo passa por
interseções/intercessões, intercessores. O inventor nunca é um, mas multidões:

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intensidades andarilhas, brutas, frutos de estudos, encontros, passagens, provas,
experimentos diversos, trágicos ou não, todavia atestadores de uma efemeridade “salva”
pela arte.

Do físico ao matemático, do filósofo ao escritor, do pintor ao poeta, do cineasta


ao arquiteto, todos conhecem o medo, o terror da dor científica, médica; todos são
convidados um dia ou outro a fazer da doença uma grande saúde. O próprio Nietzsche,
como dissemos, viveu esse desterro, tornando-o vontade positiva de potência, isto é, a
ética da estética, o acontecimento, a est-ética, que consiste, entre outras, em exigir da
vida mais ainda do que ela se compraz a nos ofertar; exigir da vida o acontecimento que
nos transtorna, joga-nos ao solo e sugere que a queda é um trampolim para um salto
maior. O salto do equilibrista, o salto do dançarino enfeitiçado pelo estilo, pelo charme,
e que faz de seu corpo um sopro para que, em vez de se tornar algo, alguma coisa, possa
enfrentar o desafio de um devir-outra-coisa que supere a ideia de ser humano, segundo
uma denominação, uma memória tatuada, uma determinação, um destino social, ou um
futuro como força negativa, cortado do desejo. Desejar é, pois, passar por múltiplos
devires; não é à toa que o devir se insere em um processo do desejo. Um devir-outro,
um desejo outro, eis a gigantesca aventura do devir acoplado ao desejo. A prioridade da
indeterminação sobre a determinação, sobre o homem dominado, modelado, fixado uma
vez por todas. Devir-outro reclama uma reinvenção do ser humano, uma entrada, pois,
no inumano, no fora do gênero e da gênese imaginária, em que o poder masculino
triunfa e tenta dominar a cena ou a arena... A arte para nos salvar da verdade? Talvez.
Cabe contaminar a ideia de verdade com a força do charme (feitiço), com a bruxaria do
Daímôn ou com passagens mais repetidas das bruxas pensantes, amantes, bailarinas.

Em toda bailarina/bailarino há sempre uma bruxa e uma fada, ou como escreve


Carmelo Bene: “Por onde passou uma bruxa, passará uma fada”. Quando a bailarina
dança, ela é a dança: nem essência, nem mística. O ser aqui é condição irrevogável para
a emergência do devir. Outra vez, Carmelo Bene é um bom intercessor: “Se queres
abraçar, és o abraço, quando beijas, és a boca”.102

Não é demais reafirmar: trata-se de uma criatividade sem Criador, de um ser em


devir, incriado, que inventa e refaz tudo o que toca, inclusive a um si mesmo não
gramatical, mas acontecimental e, logo, irrepetível. Em outras palavras, uma quarta
pessoa do acontecimento que induz à repetição como Estética como Acontecimento, a
saber, movimento do múltiplo, infinito no finito; o infinito, pois, não ludibriado por um
falso infinito – religião, superstições, ídolos. Um si mesmo matilha, singularidade,
alfabeto permeável que ama cantar e brincar, e acha maneiro, manhoso, se deixar
afectar, para não sucumbir à jaula canônica, inserida como uma nódoa na gramática.
Neste sentido, a cartografia atribui à preeminência o processo inventivo nômade, inserto
numa absoluta orfandade, em que os referenciais não são palavras de ordem, contudo,
travessias, encontros, perdição. Um pensamento, pois, em sintonia com a força das
transformações e que instiga à produção de seu duplo e de seu contrário, à maneira de
Gaia:
“Assim como produziu o Céu estrelado, Gaia gera, enfim, a partir dela mesma,
seu duplo e seu contrário líquido, Ponto, Onda marinha, cujas águas são ora de uma
claridade límpida, ora escurecidas por caóticas tempestades”.103

Ah! O conformismo do ser. Ora, a questão nunca é de ordem conservadora: “ser


ou não ser”, mas do movimento do ser para o devir. Emergir para o ser é também o

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quinhão dos deuses gregos Caos e Gaia; contudo, o fluxo que os leva a caminhar
sucessivamente para o ser, “assim que nasceram”, é o mesmo que os motiva a
“produzirem a partir deles mesmos algo diferente que, embora os prolongue, coloca-se à
sua frente – ao mesmo tempo seu reflexo e seu contrário”.104

Em síntese, fazer uma cartografia não significa repetir ou copiar, mas evidenciar
modos para gerar nossos processos, nossos próprios conceitos, em uma filosofia grávida
de múltiplos olhares e travessias-outras. No fundo, a cartografia é a arte da busca, mas
buscar, pesquisar, é um procedimento não da ordem do calco, todavia da imaginação, da
intuição, da est-ética ou polifonia da luz, da manifestação de um novo pensamento em
diapasão com a diferença, e que acolhe a diferença como um saber avesso à recognição:
como uma ética da estética.

Ora, na Estética como Acontecimento, a busca, o encontro não se limita a um


cálculo ou a um exercício da vontade… O acaso é a mola mestra dessa busca, desse
encontro, dessa perdição. Procurar, para procurar ainda. É um ritmo, um ritornelo, um
conto terrivelmente maravilhoso, como nas estórias de Trancoso; é um devir-criança do
pensamento que curte as águas caudalosas, sempre cambiantes do rio heraclitiano, arco-
íris que transforma, confunde e instiga ao novo. Cada travessia, uma diferença. Cada
diferença, novas braçadas, novos percursos. O mesmo rio, as mesmas vagas, os mesmos
redemoinhos e correntes, o mesmo e suas infinitas dobras das dobras; um mesmo que é
constelação de diferenças. Um ritornelo que busca o paroxismo, a diferença, a
inquietude inerentes ao galope, mais uma invenção deleuziana que estimula a reler sua
leitura, seu conceito de ritornelo: um devir outro de seu conceito, e que no presente
estudo – A Estética como Acontecimento – é acolhido como um presente, um encontro.
Uma força. A vida do conceito é intermezzo, parodiando Deleuze quando escreve “A
vida do nômade é intermezzo”.

Tubo gigante sob as dobras vagueadas... Todo o oco do ser, o devir-oco-do ser,
que aspira não à substância, contudo à errância, à transitividade, ao ser-em-devir, o
devir como o tubo que me trespassa e me empurra para as dobras variadas, à travessia
do caos a trespassar. Nessa travessia, a morte passa longe, o ser em si é o inexistente.
Não é ausência. Não é falta ou excesso de ser. As travessias da Estética como
Acontecimento não aludem ao ser. Não laboram com uma filosofia do ser. Falar, porém,
de uma estética ou de uma filosofia do não ser, não implica que a inexistência do ser no
pensamento recorra ao dualismo, ao fado, ao fatalismo : o ser ou o nada. Esta filosofia-
outra, a filosofia como acontecimento, como diferença que difere, que escapa, que se
torna outro, devir-outro, devir-minoritário, muda de tempo ou de lugar, se faz
dissemelhante, desigual, bloco de sensação, vibração nômade, imperceptível, que se
metamorfoseia, como Gregor Samsa, em A metamorfose, de Kafka, que se deforma, que
é múltiplo e ao mesmo tempo desejo e linha de fuga. Daí a pergunta de Philippe
Mengue:

“Por que desejo? Porque diferir é devir-outro, logo, se inserir no outro, ficar
numa ‘linha’ que tende para o outro. Por que linha de fuga? Porque ela foge ao idêntico,
à essência, ao estável, à forma ou à essência que repousa em si, imutável. De qualquer
maneira, a linha de fuga abandona os territórios, ela desterritorializa. A diferença pura é
ao mesmo tempo potência de desejo e potência de desterritorialização”.105

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Como se pode observar, a Estética como Acontecimento exige um trabalho de
formiga, o que nos incentiva a esboçar, no presente contexto, uma cartografia da
cartografia. Se a filosofia é a arte de criar, inventar e engendrar conceitos, todo conceito
supõe uma cartografia do próprio conceito. A cartografia é uma concepção do
pensamento como devir, donde sua relação direta com o pensamento imanente – que
permanece no âmbito da experiência possível, agindo na captação da realidade através
dos sentidos e por eles reinventada – sempre atento à emergência de afectos
desconhecidos ou ignorados. A cartografia não é, pois, da ordem do comentário ou da
síntese. Nela não há significações, camufladas ou secretas, a serem reveladas. Não há
um ser que solicita seu desvendamento ou a compreensão de uma suposta essência a ele
atribuída. Com Deleuze e Guattari, a filosofia perde sua cadeira cativa ou o repouso do
guerreiro, e parte para a invenção, para a criação de problemas, eixo primordial da
produção filosófica, o que nos leva a falar de uma filosofia do percurso, e não do solo
nem do território.

Mas o que é o percurso? Jean-Luc Nancy: “O percurso: um deslocamento e um


agrupamento, fugidio ou prolongado, mas sempre perfeito, concluído, o que não quer
dizer preenchido. Sem programa, sem intenção, sem preenchimento – sem interioridade,
sem segredo”.106

É possível falar, então, de uma filosofia deleuziana do não ser? Haveria outra
filosofia que não fosse a do não ser?

Jean-Luc Nancy: “Filosofia que não é do ser. Que não conhece o ser e que nada
quer com ele. Dir-se-ia que Deleuze quer pegar as coisas após a dobra do ser. Ele não
quer nada anterior a essa dobra. De fato, não há nada antes. Em um certo sentido, a
dobra é o próprio ser. Ele sabe muito bem que esse “após” é apenas uma referência
distraída, e talvez irônica, à ordem metafísica das prioridades e dos princípios. Mais
uma vez, ele afasta a gênese, a origem e o fim”.107

Ao tecer um esboço cartográfico, almejamos um trabalho de aproximação, de


conexões, de encontros, de cruzamentos e de interferência entre noções e conceitos,
aparentemente diferentes ou similares. Em outros termos, pensamos em um
agenciamento ou em um pensamento rítmico, que passa necessariamente por uma
escrita dançarina que gera o acontecimento ético-estético como dobras das dobras, como
movimento. Aqui, a expressão conceitual est-ético encontra sua seiva. De fato, a junção
dessas duas forças, em vez de representar um “casamento”, uma história de “casal”,
entra no campo ondulado de passagens, encontros, contaminações, núpcias, em
permanente processo de desafio à tendência amorfa da existência, da vida
cloroformizada pelo cotidiano; pelo mesmo, sem repetição, sem diferenças que diferem,
um mesmo como mesmamente ou partos abortivos de uma alma-corpo reduzida à
imitação, dispensado do banquete das personagens nuas, sem vergonha nem culpa.
Homem em devir, homem/vegetal, homem artaudiano. Época em que mulheres e
homens eram vegetais – caules transparentes, mescla de líquido liquefeito na
superabundância de uma existência ou estética da existência, sem assassinato
preconcebido, livres da fatalidade e fúria divinas, soltos como tolos cantadores, numa
radical cólera de viver sem entraves.

Acrescente-se, ainda, à produção de um conceito, o rigor, o trabalho contínuo, o


amor e prática às artes e ao novo. A paixão do belo, sempre a ser revisitado, devido a

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seu caráter efêmero, frágil; a paixão da vida, em toda sua força e pujança. Fragilidade e
força não sendo unidades antagônicas, todavia, parceiras, intercessoras: a fragilidade,
pois, como exuberância ou força positiva, a sua maneira, e segundo sua singularidade.
Neste contexto, a Renascença Italiana é o grande exemplo de uma Estética como
Acontecimento. Por quê? É o marco, é a fissura, é a fenda; é com a Renascença que a
invenção triunfa e assinala sua mais intensa ruptura com a história da arte, ancorada, em
geral, nos valores do cristianismo. O advento da Renascença Italiana anuncia a morte da
criação e seu axioma todo-poderoso: o Criador e a criatura; em contraparte, acolhe o
desejo de transvalorização de todos os valores, a invenção e o inventor, sempre em
movimento, mergulhado numa arte acessível a todos os saberes e a novos possíveis, isto
é, aquilo que o real tem de mais criativo, de mais dinâmico.

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Dobra V

O ritornelo e o galope. O conceito de ritornelo se encontra pela primeira vez no


livro de Félix Guattari: O inconsciente maquínico, em 1979; e em 1980, em Mil platôs,
no capítulo “Do ritornelo”. Em 1984, no dia 20 de março, Deleuze deu um curso sobre
A dialética da profundidade nos neoplatônicos e o esboço de um estatuto da imagem
cristal. Como sempre, a mesa estava plena de gravadores, até mesmo o nosso; todavia,
as informações e análises aqui apresentadas devem muito a Pascale Criton, que não só
gravou a aula, mas também escreveu um pequeno texto requintado, de grande valor,
intitulado: “A Propósito de um curso do dia 20 de Março de 1984 “O ritornelo e o
Galope”.
Enquanto acompanhávamos o curso de Deleuze, algo excepcional aconteceu: a
fúria inventiva de uma máquina de guerra eclode...

Pascale Criton: - Ruptura. Por um salto expresso como um parêntese urgente,


Deleuze lança uma pista de trabalho por vir, sobre a música, sobre a qual ele pede à sala
para refletir. À medida que faz esse desvio, apresentado como antecipado e anacrônico,
Deleuze insiste sobre a importância, para ele, dessa questão e, defendendo-se, começa
claramente, murmurando, tateando, uma improvisão em voz alta, de um pensamento
cujo tema pouco a pouco se formava.

Deleuze cita alguns fragmentos do livro de Félix Guattari, O inconsciente


maquínico, no qual “desenvolveu a noção de cristal de tempo, considerando o cristal
como um ponto de vista sonoro. Ele liga o cristal sonoro de tempo ao que ele chama o
ritornelo (...) O cristal seria, segundo ele, um cristal de tempo por excelência.”

Deleuze se cala. Murmura sons inaudíveis e retoma o curso: “Eu me distancio de


Félix, pois é assim que se trabalha: as coisas remontam, descem. Proponho hoje
trabalhar com vocês e transmitirei, por minha vez, as coisas a Félix.” (...) Digo para
mim mesmo, o ritornelo é perfeito, mas isso não me basta... É apenas um aspecto.
Preciso de alguma coisa a mais, algo que faça o cristal se mover, que tome outra posição
no cristal.”

Pausa. Um ensaio de sorriso manhoso. Deleuze parece feliz. Ele sempre estava
feliz. Era raro alguém tirá-lo do sério. Prossegue o curso:

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(...) O que é que se distingue, que só se opõe se distinguindo...?

“(...) É o galope. O galope... é um vetor linear com precipitação... velocidade


aumentada. O galope... é isso. Os dois grandes momentos da música seriam o ritornelo e
o galope, dois polos não simétricos: O cavalo e o pássaro.”

Deleuze parecia uma criança. Percebe-se em seu semblante, no brilho de seus


olhos e no balanço do corpo, uma alegria de alguém que acabou de descobrir algo
peculiar: o conhecimento. Ora, não é outra coisa, diz Espinosa: O conhecimento é a
base da alegria. A jubilação do conhecimento.

Como se estivesse a nos tomar como cúmplices, na partilha da alegria, ele diz
rindo, baixinho, quase a sussurrar, com uma cara marota de menino traquinas, que faz
arte o tempo todo. Deleuze é um ator! Seu curso é um belo espetáculo!

“Pois então... vou dar a Félix essa triste notícia... que há também o cavalo.”

Pascale Criton – Deleuze propõe dissociar as duas variáveis, chamando uma de


ritornelo e a outra de galope:

Deleuze: “(...) Se o que se ouve no cristal é o próprio tempo, se o ruído do tempo


é o que se ouve no cristal, é preciso, portanto, que o ruído do tempo seja duplo.
Com efeito, o galope é cavalgada dos presentes que passam (velocidade
acelerada).

(...) E o ritornelo é a ronda dos passados que se conversam.

Duas figuras do tempo... Não sei qual é o signo de cada um; o signo é variável.
(...) Introduzimos uma nova dupla: vida-morte.

(...) Há autores para quem a vida está do lado do galope.

(...) A vida é uma cavalgada dos presentes que passam, para um cineasta como
Renoir, por exemplo...

(...) A morte é a ronda que nunca termina dos passados que se conservam e que
fazem pressão sobre nós.

(...) Melancolia de ‘se você também me abandonar’...

A pequena canção que nos mergulha no passado, que nos leva ao passado, que
nos arranca lágrimas sobre nós mesmos...

O pequeno ritornelo é a morte.

“Outra possibilidade... A cavalgada dos presentes que passam ainda rápido.

Ela nos faz correr,... mas para onde corremos?

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De modo algum para a vida: corremos para o túmulo.

“(...) Lá, os signos se invertem, é o ritornelo que contém a vida, e o galope que
nos leva a morte.

Perdidos... salvos... perdidos... salvos...

(...) Fellini põe em cena os dois... Mas não está nem em um nem no outro... Em
Ensaio de Orquestra, tem-se o ensaio da orquestra, que tem por sentido construir os
dois elementos... Construí-los, antes de tudo, de maneira autônoma, depois misturá-los
cada vez mais, para mostrar que nunca se sabe de antemão o que será perdido ou ganho.

(...) No esplêndido galope deslizante de violinos, no fim, se forma um pequeno


ritornelo..., uma pequena frase também... (...) Aí se dá uma compreensão dos elementos,
na forma: Salvos?... Perdidos?... Perdidos?...”108

Eis, pois, alguns fragmentos de O cristal sonoro, o ritornelo e o galope. Cada


curso de Deleuze é um acontecimento, em todos os sentidos. Para Deleuze, sentir é mais
importante que “compreender”, donde a frase tantas vezes repetida em seus cursos:
Sentir, reapropriar-se, em vez de querer, de imediato, tudo compreender.

Para Deleuze, compreender é reinventar. Nunca se encontra. Inventa-se. Ora,


recriar supõe a conjunção de signos inseridos na arte de deambular...

Mas, como observa David Lapoujade, “A deambulação se faz gradativamente,


por junções sucessivas. O conhecimento cresce por meio de pedaços que se agrupam. O
segundo elemento, após a linha, é então o pedaço. De modo mais preciso, a consciência
se revela e se faz seguindo linhas, mas também apreendendo pedaços, que ela relaciona
entre si. A consciência é um fluxo, mas o fluxo não cessa de se contrair em campos ou
‘pulsações’ que mantêm juntos os elementos da percepção, da volição, da emoção, do
pensamento”.109

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Você não descobriu, você inventou (Nietzsche)

No § 61 de O anticristo Nietzsche afirma: “Não houve até ao presente problema


mais crucial que o da Renascença – a minha questão é a mesma – a saber, a da
transvalorização dos valores cristãos; ‘a tentativa empreendida com todos os meios, com
todos os instintos, com todo o gênio, para dar a vitória aos valores contrários, aos
valores nobres...”110

Entre os valores nobres, Nietzsche concede uma atenção peculiar ao desabrochar


do corpo; pois que os valores são crenças interiorizadas, incorporadas, trata-se de
revalorizar a existência corporal a fim de reativar esse processo de transvalorização dos
valores, estimulado pela Renascença e aniquilado pela Reforma luterana.

Cabe, todavia, acrescentar algo primordial em relação à admiração de Nietzsche,


em particular, pela Renascença Italiana, por ele definida como o grande sonho da “idade

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de ouro”! As humanidades ressuscitadas, as artes libertadas, os príncipes esclarecidos,
os oceanos desbravados e os dogmas questionados. Eis a rosto da Renascença que
fascina Nietzsche, embora a destruição das civilizações, a intolerância religiosa e as
guerras sempre recomeçadas levem-no ao trágico da história. Mas, a história que deixa
Nietzsche deslumbrado é a que começa nas terras abençoadas pelos deuses – a Itália.
Toscana, Úmbria, Roma, Nápoles, onde a Renascença toma seu primeiro aspecto,
certamente, o mais fascinante, inventivo: um vasto movimento de renovação intelectual
e artística.

De fato, desde o começo do século XIV, intelectuais, artistas, pensadores se


apaixonam pelas grandezas da Antiguidade. Seus filósofos, seus poetas, após quase mil
anos da queda do Império Romano, decidem expurgar os “tempos obscuros” dos quais
são oriundos para fazer brilharem os tempos gloriosos de Roma e de Atenas. A
Renascença é também o embrião das nações do futuro, o começo dos Estados modernos
unificados, soberanos.

Não há, porém, transmutação, criação/invenção sem destruição. Aqui a fronteira


entre pensamento e opinião é sem apelo: pensar é uma necessidade, opinar é uma
recreação das ideias, é um faz de conta sem consequências, é uma idealização bondosa...
Não por acaso Michelangelo encontra na ética da crueldade o talento necessário para
fazer da estética da destruição uma força, um movimento positivo. A Itália do século
XV é a maior fábrica de imagens até então conhecidas pelo ocidente: Florença, Veneza,
Roma, Nápoles. Leonardo da Vinci, Rafael, Masaccio, Piero Della Francesca e, claro,
Michelangelo ou a exaltação da nudez, o elogio do nu e do erotismo masculino, há
séculos ausente da arte ocidental.

Deveras, à visão do “ideal feminino”, Michelangelo interpõe a beleza nua do


masculino encarnado pela potência viril de Davi. Instalada, em 1504, diante do senhorio
de Florença, a escultura, com mais de quatro metros de altura, foi apedrejada por jovens,
poucos dias antes de sua inauguração. O artista faz ouvido de mercador. Prefere
responder com a arte: em vez de reagir! Alguns anos depois (1508-1518), ele pinta as
nádegas de Deus sobre o teto da Capela Sistina, na criação do sol e da lua. Michelangelo
encontrou na ética da crueldade o talento necessário para fazer do acontecimento uma
intensidade, um movimento positivo, uma fonte de vida e alegria artística. Mais do que
uma ”provocação”, trata-se de uma Estética como Acontecimento, inserida em todo ato
inventivo.

Ao imortalizar as nádegas de Deus na Capela Sistina, Michelangelo comete,


certamente, e antes de Nietzsche, o ato maior da Estética como Acontecimento: as
primeiras montagens da morte de Deus. Ele abre as pistas e prisões à imaginação e à
ousadia do pensamento e da arte, ao transformar a Representação na morte anunciada da
Representação das representações. Um Deus com nádegas é um deus que come, arrota,
defeca, luta, sofre, pensa, existe, trabalha, ama todos os amores, deseja, odeia, transa, se
masturba, goza, perece... Em síntese, é o humano demasiado humano de Deus,
metamorfoseado em deus. Com Michelangelo nasce também a Teologia do Estômago: o
ventre dos deuses curte os temperos e o prazer de apreciar pratos finos; são adeptos da
opsofagia... É a doce crueldade de Michelangelo, em consequência da fúria roubada
–atributo histórico, de direito, ao Divino – pelo gênio italiano, que com sua arte
anuncia: Deus morreu! Viva deus!

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O devir-artista é indissociável da indeterminação. A indeterminação é, de fato, a
potência anterior e superior às formas concluídas, estáveis, daí o desejo-estético do
gênio de desfazer a forma estável ou concluída, para reinventar a obra, e acrescentar à
escultura fria, bela, o sopro cujo experimento exemplar foi Michelangelo, ao rachar com
o Criador, ao engendrar a fenda, ao se legitimar como inventor de sua invenção, ele
furta o fogo sagrado e o direito Divino à nomeação:

- Parla, Moise!
- Parla!

Mais do que uma exclamação, é a palavra autorizada que anuncia, desde então, a
alforria do artista, o parricídio ou os fragmentos de uma morte anunciada de Deus. O
sopro na matéria inerte de Michelangelo marca a potência da invenção como forças
desejantes de linhas de fuga, devires e desejos, o prenúncio da Estética como
Acontecimento, de uma a diferença que difere. O sopro que vitaliza o molde, a argila
inerte, caro a Nietzsche, é potência desejante, desterritorialização, em diapasão com a
ideia deleuziana de um pensamento que funciona em um sistema aberto, nutrido de uma
vitalidade que beira a loucura ou a vontade anunciadora do novo, da novidade, de novos
possíveis, que fogem do explícito, daquilo que é dado antecipadamente, que evacua a
imaginação, a engenharia das ideias novas, que supõe uma decisão premeditada,
cortada da invenção enquanto devir-revolucionário do pensar, donde a clareza de
Deleuze, em Proust e os signos:

“A crítica de Proust toca no essencial: as verdades permanecem arbitrárias


enquanto se fundam na boa vontade de pensar. Apenas o convencional é explícito. (...)
Não basta uma boa vontade nem um método bem elaborado para ensinar a pensar, como
não basta um amigo para nos aproximarmos do verdadeiro. Os espíritos só se
comunicam no convencional; o espírito só engendra o possível. Às verdades da filosofia
faltam a necessidade e a marca da necessidade. De fato, a verdade não se dá, se trai ;
não se comunica, se interpreta; não é voluntária, é involuntária.”111

Acrescente-se o fato de que à indeterminação nada falta, nada extrapola, nem


excesso nem falta, nem incapacidade de conhecer o suprassensível. A indeterminação,
no presente contexto, escapa à moral kantiana da coisa em si ou da indeterminação da
coisa em si. Nem ausência de, nem falta de, nem fraqueza de nossos sentidos, nem
deficiência, consequência da inoperância finita de nossos saberes ou conhecimentos, o
indeterminismo é um conceito positivo. Pensar supõe a provocação. Diz-se provocar, do
mesmo modo que anuncia um incômodo, um grito ou ânsia de vômito. Ao sofrimento e
a angústia, preliminares ao vômito, àquilo que provoca violência, emerge um bem-estar,
um estado de conforto, ainda que os olhos vermelhos arregalados deixem aparecer um
olhar de doido, ou de criança-homem assustada. O que se acabou de experimentar é
forte demais para se limitar a um sintoma ou a um rotineiro mal-estar. Com o pensar,
acontece algo similar, embora diferente. Pode-se até dizer que se trata da mesma coisa,
desde que se perceba o mesmo como uma cascata de diferenças, como dissemos.

Outro experimento, outra resistência. “Vênus adormecida” é representada por


Giorgione, em 1510, num quadro bucólico, em que nudez e erotismo explícitos abalam
olhares assustados. A posição da mão esquerda de Vênus, roçando seu sexo, deixa
adivinhar que o amor não é sempre platônico. Não por acaso as obras de Leonardo da
Vinci, Rafael e Michelangelo suscitaram uma admiração beirando a heresia: “Divinos,

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eles são divinos!”, pois só os deuses podem destruir tornando a destruição uma vontade
positiva de potência.

Com a Renascença Italiana, a Estética como Acontecimento aflora, e é


Nietzsche, certamente, um dos precursores, e intercessor peculiar, em todo caso, do
projeto conceitual que estamos a elaborar. Que deseja Nietzsche, com sua máquina de
guerra ou filosofia sísmica, nutrida a dinamite, ao admirar obras que mudaram o
ocidente? Fazer de sua filosofia uma pintura e uma escrita bailarina. Quando Zaratustra
reencontra o acaso, a dança está sempre por perto: se toda coisa prefere dançar sobre os
pés do acaso, como proclama Zaratustra, é que a dança é uma forma primordial do jogo
da criação. O eterno retorno transmuta o negativo e torna o pesado algo leve, e faz
passar o negativo do lado da afirmação transmutando a negação numa potência
afirmativa. Em outras palavras, a crítica é a negação sob uma nova forma: destruição
tornada ativa, agressividade propriamente vinculada à afirmação. “O criador de valores
não é separável do destruidor”.112

Nietzsche visa à destruição dos valores cristãos forjados, entre outros, pela
interpretação negativa da vida, a fim de permitir a emergência de uma civilização
superior comparável àquela da Renascença, por ele nomeada “a última grande época”,
“Cultura nobre” ou ainda “A idade de ouro deste milenário”.113

O corpo, lugar de aquisição de novas disposições, de interiorizações de valores e


da incorporação dos instintos, é o terreno fértil em que vão se ancorar os valores nobres.
O corpo constitui, pois, uma nova cultura sempre transmutada pelas multiplicidades que
fazem com que a noção de cultura encontre sua virilidade, sua força maior, na
capacidade de buscar e engendrar nossos sentidos, e na promessa de uma humanidade
revisitada, reinventada. Em outras palavras, uma cultura contaminada por blocos de
sentidos nutridos por uma dinâmica sempre por vir. Tudo isso, porém, não diz como
pensar uma Estética como Acontecimento? Pois é! Tem-se, antes de tudo, que inventar
um conceito; mas, alguém pode perguntar: e se o conceito já existe? Neste caso, cabe
determinar seus componentes e seu campo problemático, gerar a problemática,
engendrar o problema, fazer, pois, filosofia. Em relação à proposta de um conceito de
estética como acontecimento, trata-se de saber se é possível inventar ou não um
conceito atribuindo-lhe uma existência finita, efêmera, como toda existência. E se
alguém diz: não se pode inventar um conceito! Só os gênios inventam conceitos? Eis o
mergulho no derrotismo! Eis o apogeu do canto do cristão, homo otarios, tão presente
em nosso país, como a peste emocional, o complexo do vira-lata: “Só se filosofa em
alemão”!

Condenação tangível, sob o signo de um veredicto sem retorno: nós nos


proibimos de fazer filosofia! Recompensa à nossa renúncia voluntária: seremos eternos
professores de filosofia. Comentadores. Leitores indolentes e servis em todas as
acepções do adjetivo: condescendentes em demasia; aduladores, bajuladores,
subservientes que seguem fielmente um modelo imposto, tudo o que Nietzsche mais
combatia e Deleuze mais abominava. Consequência radical do suicídio anunciado: resta
aos professores de filosofia enveredar pela teologia, pela recognição, em que tudo é
dado antecipadamente, em que tudo escapa, foge àquilo que faz do pensamento um
acontecimento, e do acontecimento uma est-ética. O pensamento, inserido no belo e na
política de livres desejos, é o veículo que conduz ao pensar, instiga a pensar o
impensável, a inventar conceitos sem os quais não há nem pensamento nem filosofia,

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tão-somente releituras, comentários, comentadores… ou pensadores de encomenda a
serviço do pensamento burocratizado: o pensamento do Estado ou régio!

“As pérolas irregulares existem, mas o Barroco não tem nenhuma razão de
existir sem um conceito que forma essa razão”.114

Deleuze alude ao sentido da palavra ‘Barroco’, de origem portuguesa, que


significa “pérolas irregulares”. Ora, para que uma Estética como Acontecimento exista é
necessário, antes de tudo, gerar um conceito: “É fácil tornar o Barroco inexistente, basta
não propor um conceito”.115

Ao parodiar Deleuze, dizemos: é fácil tornar a Estética como Acontecimento


inexistente, basta não propor um conceito. O conceito é uma criação, é uma invenção.
Ele não exprime a verdade, nem reflete uma realidade exterior – real ou imaginária,
antes virtual/fatual – nem remete a uma essência; o conceito inventa sua própria
verdade movediça, e expõe seu problema, sua problemática: “O conceito diz o
acontecimento puro; não a essência ou a coisa”.116

O conceito é incorporal; ele afirma o acontecimento, é uma hecceidade. Ele se


define pela sua consistência, sua endoconsistência (dentro, no interior) e sua exo-
consistência (fora, por fora, afora), e não tem referência: ele é autorreferencial, ele se
põe a si mesmo e põe seu objeto:

“O homem é o único ser que não recebeu nenhuma forma concluída e que,
contrariamente às outras criaturas, deve conquistar por si mesmo sua própria forma. O
perfeito artesão, isto é, Deus, ao criar o homem, colocou-o no meio do mundo, e disse-
lhe: ‘Eu não te dei nem lugar determinado, nem rosto próprio, nem dom particular, oh
Adão, a fim de que teu lugar, teu rosto e teus dons, tu os queiras, conquista-os e possui-
os com teus próprios meios’”.117

O homem é também matéria a ser esculpida e, sucessivamente, escultor dessa


matéria. O homem não tem forma própria. Sob o ângulo da transvalorização, ele é
superior ao próprio Deus. O homem é o animal não ainda fixado. Em outras palavras,
sua forma não é definida uma vez por todas, mas para crescer e se metamorfosear ao fio
do tempo. Ao recorrer com regularidade à metáfora do escultor e do artista, Nietzsche
sublinha a habilidade e a plasticidade profunda do humano; assim, escreve em Ecce
Homo, § 8:

“O homem é (…) coisa informe, uma matéria, uma pedra feia que precisa do
escultor. O grande privilégio do homem em relação aos outros seres é poder dar a si
mesmo sua própria forma, pois o homem é ao mesmo tempo a ‘matéria’, argila
inicialmente indeterminada, e o escultor que informa essa matéria. (…) No homem
estão unidos criador e criaturas: no homem há matéria, fragmento, abundância, lodo,
argila, absurdo, caos, mas no homem há também criador, escultor, dureza de martelo,
deus-espectador (…)”.118

A hipótese é simples: a expressão de liberdade consiste em se engendrar ou em


se produzir. O homem é artista de si mesmo. Como? Uma resposta, um modelo, senão
eu sufoco! Todos querem um modelo. Não há resposta, apenas ação. A filosofia é só
prática. O pensamento não é o avesso da vida, não existe o pensamento de um lado e a

65
vida de outro. Afirmar que o homem, expressão generalizada, do que se convencionou
chamar “gênero humano”, desde que começa a se inventar, a se produzir, significa que
entra em processo de desconstrução: autoprodução é autoconstrução. É criar outros
modos de si, explorar as fronteiras, abrir-se, evacuar os limites de seu universo de
opiniões e reações. Reagir é uma ferida da língua, é uma tatuagem da memória corporal,
é a imagem fatídica dos adoradores do nada. Reação, reacionário. Portas abertas ao
derrotismo, a apologia da opinião, sempre em guerra contra o pensamento.

Nesses territórios polimorfos – territorialização/desterritorialização – um balé


infinito, como invenção de si mesmo, é uma passarela para uma filosofia dançarina,
apesar de Hegel, que vê a dança como veleidade, reduzindo-a a um estatuto auxiliar em
que a dança não alcança sequer o grau de autonomia acessível, portanto, às artes
decorativas. Hegel coloca a dança no mesmo nível que o maravilhoso do teatro, aquele
“charme de execução”, limitando-a a um espetáculo decepcionante. Em síntese, para
ele, “a dança existe tão-somente como uma exterioridade”.119

Que significa, todavia, territórios polimorfos? São espaços em que a


corporeidade emerge, sob o signo da reinvenção, do movimento pleno, incorporando
intercessores materiais/imateriais, e conferindo ao aprendizado uma importância ímpar,
sem a qual não há filosofia nem pensamento. O autoengendramento é a arte de
deslocamento e gestos suspensos que podem levar a um modo de existência sempre
alhures, sempre onde não se espera encontrá-lo, sempre no fora/dentro inconveniente:
rastros e não raízes. Rolando-se, modificando-se, erotizando-se, o artista de sua criação
mergulha em um confuso corpo a corpo, rico em sensações e sensualidades inéditas, e
faz de sua obra uma viagem ao país do corpo. Um corpo mergulhado no canto das
gestas selvagens, indomáveis às amarras da normatividade. É toda uma política do
desejo, elaborada por Michel Foucault, em que o artista de sua existência é convidado a
enfrentar, sob a forma de uma dinâmica que convoca a face encantada do desejo à
constituição do novo que chega, como uma filosofia sísmica: a ética da estética.

O fato de unir criatura e Criador constitui para o homem uma vantagem, e um


privilégio em relação ao próprio Deus. Só o homem pode remodelar continuamente essa
argila, que em parte ele foi, ao mesmo tempo em que permanece homem, ao passo que
Deus, tantas vezes qualificado por Nietzsche imutável, está condenado a permanecer o
mesmo. Eis por que cabe inventar, criar, propor e fazer advir o conceito de Estética
como Acontecimento, afastando-a da petrificação vulgar, do ponto de vista e da opinião.
A opinião contra o pensamento: velho problema com o qual se depara a filosofia. O que
implica que essa estética não remete à essência, todavia a uma função operatória: ao
Acontecimento.

Criar um conceito não é em absoluto ir buscá-lo nos exemplos estilísticos ou em


períodos históricos ditos concretos. O conceito não procura sua legitimidade no objeto,
ele não se refere a exemplos reais, não é da ordem da verdade. Não se trata tampouco de
procurar justificações teóricas, ou um princípio transcendente; todavia, construir um
universo próprio, autônomo, um ordo (dentro) e exo (fora) que não copia outros. Traçar,
pois, uma linha (e não um ponto) entre múltiplos elementos, sem distinção, que passe
por conceitos e reúna criações artísticas, discordes, dissonantes em relação ao ordo, que
não é o interior – uma alma deslocada do corpo e dos desejos, da pele e dos sentidos –
nem o exo que não é o exterior, salvo se o pensarmos como superfície, e a superfície

66
como profundidade da pele, dos sentidos. A superfície do surfista com e não sobre a
onda não é o que há de profundo no corpo, no devir-corpo surfista?

Ao engenhar um conceito, ao determinar as multiplicidades que ele inclui e


acolhe, pode-se neste exato momento falar da existência de uma nova estética: A
Estética como Acontecimento, uma estética por vir, aberta, pois, às correntezas e
delivrança, logo, às forças do acaso e das renascenças. Não é outro o sentido do
substantivo ‘delivrança’: ato de dar à luz, parir, parto, parturiente, vinculado a uma das
qualidades do filósofo, como intercessor à emergência do conceito. O filósofo é o
“parteiro das ideias”, afirma Sócrates, em Diálogos de Platão. Ao fazer uso da
maiêutica – método que consiste em interrogar o interlocutor até que este chegue por si
mesmo à verdade, ao engendramento do conceito, diríamos hoje – Sócrates define o
filósofo como um “parteiro das ideias.”

Nunca é questão de desvelar um estilo ou descobrir uma tendência artística que


outras pessoas não puderam perceber ou definir; todavia, insistir na invenção do
conceito em si. Não é demais enfatizar: a Estética como Acontecimento não tem como
referência traços estilísticos, características formais ou um quadro histórico de épocas
ou fronteiras geográficas, como países, civilizações e culturas. A est-ética existe tão-
somente enquanto invenção, daí a força que nutre seu acoplamento ao acontecimento,
numa relação real/virtual/fatual, que abre fronteiras e desvia setas e indicações, em um
processo volátil, que não é sinônimo de inconstância, antes asas do desejo, o avesso,
pois, do hábito longo, duradouro. Processo volátil é um conceito cujo fôlego supera a
ideia moral – inconstância, displicência, insegurança – e encontra sentidos e não
significações, quando pensado em termos orgânicos bem caracterizados, cuja
mobilidade é o resultado de misturas de composições variadas, como numa sinfonia ou
na arte musical da dodecafonia. Arnold Schönberg (1874-1951), com seu célebre Pierrot
Lunaire (1912), elimina as relações tonais na música e, em 1923, compõe a suite para
piano Opus 25, provoca a fenda radical no universo da música ao inaugurar a técnica de
composição serial. A dodecafonia anuncia fragmentos singulares de uma est-ética como
acontecimento no campo da música erudita ocidental. Com os austríacos Schönberg,
Bruckner (1924-1886), Alban Berg (1885-1935) e, no Brasil, com Cláudio Santoro
(1918-1989), a composição clássica encontra sua força como conceito de fissura
enquanto acontecimento.

Pode-se afirmar que os músicos ocidentais, na atualidade, convivem com o caos


de um universo sonoro relativista, sem o código, antes, comumente aceito? Não é apenas
a ausência de código, mas sua inoperância, seu autoritarismo: o código como barreira à
livre criação, como palavra de ordem, pois. Por que inoperância? Não é apenas o código
que falta. Não se trata somente de uma órbita sonora sem código, mas explicitamente
sem cultura ou sob a dominação de uma cultura semelhante à mamadeira requentada
que ingurgitamos durante décadas sem agir, mas reagindo, isto é, lamentando. Ora a
lamúria, falação longa e fastidiosa em que são evocadas desgraças de toda sorte por
alguém que deseja ser atendido naquilo que pede; a choradeira ou lenga-lenga nutrem a
vaidade do poder e sua incompetência secular em relação à imaginação, à invenção,
arcabouços primordiais à produção do novo, à criação cotidiana de um povo por vir. As
lágrimas, em relação ao poder, são provas de fraqueza. O poder, no íntimo de sua loca,
de seu travestismo, como todo falso perverso, faz das carpideiras seu gozo maior.

67
De fato, em um ambiente ocidental do tipo de cultura codificada, mais impostura
ideológica que outra coisa, à qual todos deviam baixar a cabeça e seguir a bula, sem
possibilidades ampliadas de produção do novo, a emergência de um singular
renascimento polivalente, desde os anos 1950, sobremaneira, ferrou tanto o código
quanto a ideia, então, vigente, de cultura, e começou a revisitar a atualidade no universo
da música clássica, abrindo a outras expressões, à música e às artes, em geral. Assim,
Schönberg, há pouco citado, fez implodir a linguagem, Varèse revisitou o material
sonoro, os processos de composição e de difusão foram estilhaçados por Cage,
ampliando novos horizontes e afirmando uma vontade de autonomia peculiar para a
atualidade.

Acrescente-se ainda o fato de que a história da música em torno dos anos 1950
enfatiza o debate entre as análises da música serial e a música eletrônica e aquelas da
música concreta, que substitui o objeto sonoro como ponto de partida da análise
propriamente musical. A emergência de sons oriundos de objetos e, em consequência,
de um mundo de sons que não pode entrar diretamente na lógica da determinação quase
científica das alturas e intensidades, implica uma revolução na lógica musical e,
sobretudo, a ideia de uma forma relacionada à estrutura dos parâmetros. Em síntese, o
conceito só existe como invenção pelo próprio conceito, e não o contrário. A opinião
aqui nada pode. A opinião não suporta a mobilidade do conceito, sua energia itinerante.
Criar um conceito é também produzir componentes e seu plano de composição. Mais
ainda: um conceito só existe com outros conceitos, vizinhos, intercessores, situados no
plano em que eles são formulados:

“O conceito se define pelo inseparável número finito de componentes


heterogêneos percorridos por um ponto num sobrevoo, numa velocidade infinita (…)
Numa palavra, dizemos de qualquer conceito que ele tem uma história, embora a
história se desdobre em ziguezague, embora cruze talvez outros problemas ou outros
planos diferentes. Num conceito, há, no mais das vezes, pedaços ou componentes
vindos de outros conceitos que respondiam a outros problemas e supunham outros
planos”.120

O conceito, em sua concepção ampliada, é uma estética, uma usina para criar o
novo. Como fazer, porém, para que o novo não se torne a seu turno o velho? Não trave
o ato inventivo, não se feche ao contágio e às injeções criativas dos encontros e viagens
no universo ampliado da música ou da filosofia ou das ciências, por exemplo, em vez
de ceder ao passadismo ou ao medo-pânico de confrontar e “cortar chãos”, e deparar
com o atual? O que é o atual? É o que nos instiga a perguntar: O que estamos a fazer de
nossas vidas? Oposta à metafísica, essa interrogação é em si um conceito, um alarde, a
vontade desejante de dizer sim ao novo, ao atual. Deleuze distingue o presente e o atual:

“O novo, o interessante, é o atual. O atual não é o que somos, mas antes o que
nos tornamos, o que estamos nos tornando, isto é, o Outro, nosso devir-outro. O
presente, ao contrário, é o que somos e, por isso mesmo, o que já deixamos de ser.
Devemos distinguir não somente a parte do passado e a do presente, mas, mais
profundamente, a do presente e a do atual. Não que o atual seja a prefiguração, mesmo
utópica, de um porvir de nossa história, mas ele é o agora de nosso devir”.121

Algo mais do que um detalhe é a relação de Deleuze com a história da arte,


evidentemente, revisitada, às vezes reinventada. Em relação ao diagrama e a seu

68
continuum histórico, Deleuze fica atento ao histórico inerente ao pensamento
diagramático, embora afaste qualquer consideração de ordem histórica na definição do
diagrama. Mais geográfico do que historiador, em sua obra sobre Bacon, insiste na
noção conceitual do plano de imanência a-pictural que faz advir o fato pictural. Este
continuum improvável traça uma “linha de fora” bem distinta de um continuum
histórico organizado, segundo uma estratégia exterior. Essa linha do fora é o fruto de
uma tensão dinâmica e operatória entre a mão e o olho, donde a iniciativa de sugerir o
diagrama em diferentes escalas como um espaço transitório e efêmero “em que o
pensamento se orienta para todo um outro, para um fora que inclui uma relação de
forças em devir”.122

Uma estética-outra

Falar de uma estética-outra é afirmar a Estética como Acontecimento e,


simultaneamente, propor uma estética dos sentidos, uma estética, pois, que não sataniza
nem o erro, nem contrassensos nem o senso comum, menos ainda a besteira,
construções oriundas, em geral, de um pensamento que apela para a imagem dogmática
e, em consequência, para a verdade canônica, para um pensamento com imagem. Ora, a
imagem dogmática reconhece tão-somente o “erro” como desventura ou infortúnio do
pensamento. O “bom” pensamento seria aquele que não pensa, cujo entendimento é
dominado por uma imagem religiosa ou ideológica do pensamento. O erro em relação a
que verdade? Ou ainda, a que vontade de verdade? O erro é o “negativo” que se
desenvolve na hipótese da Cogitatio natura universalis. Que pode acontecer a uma
Cogitatio natura universalis, que supõe tanto uma boa vontade do pensador como uma
boa natureza do pensamento, salvo de se enganar, isto é, tomar o falso pelo verdadeiro
– o falso conforme a natureza para a verdade, segundo a vontade.123

Grande ironia! O erro é considerado segundo a óptica do senso comum, e é dele


que o erro pode vir, pois que duas ou três faculdades se portam sobre um mesmo objeto.
O erro vem, pois, de uma adequação equivocada, até mesmo de uma confusão
consequente do não reconhecimento de um misto, de elementos diferentes,
heterogêneos. Enquanto ficarmos no campo do senso comum, o erro não pode ser outra
coisa que uma falsa recognição. Ora, o erro, em tais condições, não pode senão vir de
uma má “repartição dos elementos da representação, de uma falsa avaliação da
oposição, da analogia, da semelhança e da identidade”.124

Em relação à besteira, Deleuze é genial! Ao refutar o pensamento como imagem,


ele arquiteta uma filosofia que, como barreiras contra a extinção do pensamento, propõe
algo que escapa completamente ao nosso cotidiano e também à filosofia que se pratica,
em geral, nas academias e, não raro, alhures: “A besteira não é a animalidade. O animal
é protegido pelas formas específicas que o impedem de ser besta”.125

Ao afastar a analogia animalidade/besteira, Deleuze mostra de que modo só


existe a besteira porque existe a inteligência do senso comum, porque, por decisão da
inteligência, determinou-se que o bom senso é a coisa mais partilhada. É oportuno
também distinguir o erro do nonsense. Inspirando-se no exemplo do trabalho do
professor, Deleuze mostra que, salvo para alguns modelos de exercícios, não é raro
achar erros mais frequentes de encontrar nonsense. O erro é do domínio das proposições

69
onde se alcança aquilo que está implícito na questão: A+A=AA. Quanto ao nonsense,
ele é do domínio do espírito que se encontra na situação de liberdade para construir a
partir de elementos diversos uma resposta... ou um problema. O nonsense escapa às
fórmulas questão/resposta e atribui-se outro rigor para atravessar o campo não
desbravado para alcançar, ou não, um alvo não previsível.

No caso do erro, salientamos aspectos ordinários; no caso do nonsense, pontos


singulares. Sentido e nonsense são da ordem do só e da solidão:

“Define-se o sentido como a condição do verdadeiro; mas como supõe-se que a


condição conserva uma extensão mais ampliada que o condicionado, o sentido não
funda a verdade sem se tornar também o erro possível”.126

Em outras palavras, o verdadeiro e o falso não concernem apenas às soluções,


mas antes de tudo aos problemas que nos são colocados pela Cidade. A linguagem deve
ser criticada enquanto transmissora de palavras de ordem que nos dão os problemas
feitos, mastigados... A questão dos verdadeiros e dos falsos problemas leva à contenda
da liberdade. Desde que os problemas, verdadeiros ou falsos, impostos pela sociedade
nos dão um fingimento, uma simulação de liberdade, somos forçados a dizer que tudo
isso nos parece bastante estreito, pois que limita nossa “escolha” a uma resposta binária
de gênero sim ou não. O fato de tomar consciência da palavra de ordem, de desmascará-
la como tal, nos colocará diante do aberto, do fora e, assim, é de se esperar, que
estejamos livres para buscar os reais problemas:

“A verdadeira liberdade está em um poder de decisão, de constituição dos


próprios problemas: esse poder ‘semidivino’ implica tanto o esvaecimento de falsos
problemas quanto o surgimento criador de verdadeiros. A verdade é que se trata, em
filosofia e mesmo alhures, de encontrar o problema e, por conseguinte, de colocá-lo,
mais ainda do que resolvê-lo. Com efeito, um problema especulativo é resolvido desde
que bem colocado. Ao dizer isso, entendo que sua solução existe nesse caso
imediatamente, embora ela possa permanecer oculta e, por assim dizer, encoberta: só
falta descobri-la; mas supor o problema não é simplesmente descobrir: é inventar. A
descoberta incide sobre o que já existe, atualmente ou virtualmente; portanto, cedo ou
tarde ela seguramente vem. A invenção dá o ser ao que não era, podendo nunca ter
vindo”.127

O aqui exposto levava-nos de um modo ou de outro a Bergson ; ao acrescentar,


porém, às suas análises ou invenções filosóficas, a questão do fundado, Deleuze alcança
um ponto forte de sua abordagem, que não é sem relação com a noção de conceito em
Bergson. O fundado não pode, segundo Deleuze, ser o mesmo que ele era antes de ser
fundado. É toda a noção de fundar, fundado, fundação e fundamento que é aqui posta
em causa. Fundar não é mais se conceder forças causais para produzir um efeito. O
fundado perpassa a provação ou as duras penas do fundamento.

Cabe assinalar um aspecto sutil e ao mesmo tempo profundo da abordagem


deleuziana: o fundado não está antes do fundamento, isto é, o fundamento si mesmo;
não obstante, ele se torna “fundado” ao atravessar a provação do fundamento. Em outras
palavras, de certo modo, essa travessia é a passagem do virtual para o atual; o fundo,
real enquanto virtual, torna-se um outro passando para o atual. Fica a interrogação: de
onde vem este fundo virtual que passa para o atual? Poderíamos simplesmente

70
responder (nunca se responde...): Ele vem do sem-fundo. Ou, ainda, o fundado em se
fundando entrega-se a um sem fundo; estaríamos mais perto de uma resposta/problema
deleuziano.

Seria necessário perguntar quem é este ser bizarro reclamando-se ou pleiteando


o fundamento, “o bem fundado”. Uma nova pesquisa abre-se a cada vez que se apropria
ou assume um fundamento. Quem se reclama? A que remete essa exigência? Quando se
evoca, pois, outra coisa? É quando se passa da mitologia à filosofia encontrando um
tema comum e seus atos e caracteres. Esta raiz comum é a tarefa infinita.

Não haveria contradição em afirmar que, por um lado, ele vem do sem-fundo,
que, por outro, ele cria o sem-fundo, o primordial estando na palpitação ou estremecer
do ser do fundado à superfície do sem-fundo. O que há de novo, de propriamente
filosófico, visto que a filosofia é a arte de inventar e engendrar conceitos? Eis o novo,
o pensamento sem imagem dogmática, em dois postulados: fundo e fundamento, e
também fundar e fundação.

Em suma, a Estética como Acontecimento, à maneira de Deleuze, convoca


todos os estratos do “não-filosófico”: arquitetura, arte da dobra e do drapeado no
vestuário barroco, a arte religiosa, a música, a dança, a arte circense, as matemáticas.
Eis por que Deleuze usa para cada obra um método inverso, como por exemplo: seu
trabalho sobre Leibniz nada tem a ver, em termos metodológicos, com sua obra sobre o
Cinema I e II ou com a Lógica da sensação. Trata-se sempre de mostrar que existe
filosofia na arte, nos produtos da criação artística. Deleuze sublinha, sobremodo, a
necessidade – só se pensa por necessidade – de passar pelo fora, pelo não filosófico,
para decifrar as criações intelectuais. Algo emerge de fabuloso em sua abordagem
rizomática. É como se ele quisesse mostrar como a criação é sempre o fruto de um
encontro, o jogo de ecos entre diferentes domínios da atividade humano/inumano.
Encaminhamentos e encontros cujo resultado pode ser assim sintetizado:
Acontecimento no sentido de advento da novidade, dobras e desdobras. Deleuze:

“Continuamos leibnizianos, pois que se trata sempre de dobrar, desdobrar,


redobrar”.128

A referência a Leibniz ocupa grande destaque na filosofia de Deleuze,


sobremodo a três temas decisivos: a possibilidade de desenvolver uma lógica do
acontecimento, como pensamento rigoroso, e a investigação do horizonte virtual como
preocupação transcendental dos processos de individuação; o jogo das séries em sua
relação com “a extraordinária noção de ‘compossibilidade’”, como paixão das
singularidades em seu devir.

Em todo caso, a teoria da sensação elaborada por Deleuze, mormente em seu


livro sobre Francis Bacon, permite-lhe ultrapassar o dualismo kantiano, a saber, o da
estética compreendida, simultaneamente, como condição subjetiva do prazer estético,
como forma da experiência possível; e por outro lado, a teoria da arte como reflexão da
experiência real. Já que estes dois sentidos se encontram, é necessário que estas
condições da experiência em geral se tornem condições de experiência real; a obra de
arte, por sua vez, aparece realmente como experimentação.

Assim, em A lógica do sentido, Deleuze explica:

71
“A estética sofre de uma dualidade dilacerante. Designa de um lado a teoria da
sensibilidade como forma da experiência possível; de outro, a teoria da arte como
reflexão da experiência real. Para que os sentidos se juntem é preciso que as próprias
condições da experiência em geral se tornem condições da experiência real; a obra de
arte, de seu lado, aparece então realmente como experimentação”.129

Com efeito, trata-se de manifestar esta imanência radical em que as condições da


experiência e suas sensações não são mais distinguidas por uma consciência. A
“presença” do impresentável acontece tão-somente na sensação produzida pela
intensidade ou pelo ilimitado, que abre o pensamento ao inorgânico do mundo, logo à
produção de uma arte engendrada na e pela experimentação. Experimentação sempre
presente nas práticas e produção filosófica de Deleuze, mas que encontra sua força, sua
determinação, na ruptura radical entre interpretação e experimentação, juntamente com
Félix Guattari e, sobretudo, com a obra consagrada por ambos a Kafka: Kafka. Pour une
littérature mineure, em 1975.

Propor o conceito de Estética como Acontecimento requer, pois, antes de tudo,


uma definição precisa e diferente do conceito de estética em si, como conhecemos. De
fato, em se tratando de uma análise teórica da arte, concebemos a estética como uma
disciplina inserida mais na filosofia do que como uma filosofia da arte. Cabe notar que a
estética era vista como uma abordagem teórica da obra de arte, na ciência do sensível,
um desenvolvimento teórico sobre a arte e a obra de arte, um saber e uma ciência das
obras de arte tendo vínculos estreitos com a filosofia da arte, ligada e apoiada, desde a
criação do termo ‘estética’ por Baumgarten, às noções de belo, de forma e de
sensibilidade. A arte não constitui o objeto da estética, a não ser por intermediário na
noção do belo natural.

Não é outro o modo a-lógico de fazer filosofia, de Gilles Deleuze. Um exemplo,


entre tantos outros: o conceito se produz cada vez de maneira singular, mediado pelo
encontro com uma experiência e sob a impulsão de um signo. A estética não é, pois,
dividida ou distanciada, como ela foi, ao longo de sua história, desde Kant e a Crítica
da faculdade de julgar, entre uma teoria filosófica da sensibilidade em geral e uma
teoria da arte, mas seus dois sentidos juntam-se a partir do momento em que a filosofia,
à procura de condições da experiência real, e não mais apenas da experiência possível,
apela para a obra de arte. É o encontro com a experiência e a experimentação estética
que permite ao pensamento sair da representação e criar uma imagem do pensamento,
uma lógica da sensação necessária a toda nova lógica do sentido.

Alexander Baumgarten (1714-1762), que separou a estética da filosofia, e a


interpretou como a ciência do belo, define a estética como conhecimento sensível,
enquanto Kant semeia os fundamentos da estética especulativa em que a arte se torna o
objeto da estética, apenas por sua relação com a natureza. A estética é o estudo do
julgamento do gosto para apreciar o belo e o diferenciar do feio, sem distinção entre
natureza e arte. A estética, no caso, é o saber concernindo à sensibilidade voltada para
as belas formas. Ainda que se possa dizer que a noção de belo começa a ser afastada do
domínio estético, sobretudo, e graças aos românticos, a forma e a imagem, por sua vez,
perduram na filosofia da arte, como noções principais da estética enquanto disciplina,
como desenvolvimento teórico sobre as obras de arte.

É neste contexto que se chega a perceber a emergência da estética como


expressão da emancipação da arte dos poderes políticos e religiosos, como o

72
coroamento de um combate no qual a arte era concebida como essência, segundo um
processo radical de dependência e de historicidade. De fato, uma distância rigorosa
entre prática e teoria, entre obra de arte e reflexão estética leva, implícita ou
explicitamente, a uma concepção da criação artística como emanando de um vazio ou de
uma força transcendente. Como se o artista, antes da e durante a criação de sua obra,
não agisse segundo uma concepção, no mais das vezes, implícita e intuitiva do estatuto
da arte e da função da obra. Como se a obra não fosse o fruto de seu tempo e de suas
culturas, gerada por seus experimentos e errâncias mergulhados muitas vezes na mais
terrível das solidões. A solidão do artista, a solidão de quem escreve, a solidão dos
apaixonados, sempre à margem, a solidão do matemático, do filósofo: uma solidão
povoada, à qual fizemos alusão.

O fundo de palco desta questão é, uma vez mais, a relação Criador/criatura,


reino do Um ou multiplicidade. Ora, no ato inventivo, na criação da criatura, não existe
nem Criador, tampouco a univocidade canônica, que funciona como uma liturgia
regrada pelos mitos e símbolos cristalizados em uma verdade da dependência e do
sofrimento:

“Os predecessores de Epicuro identificaram o princípio ao Uno e ao Todo. Mas


o que é um, senão tal objeto perecível e corruptível que se considera arbitrariamente
isolado de um todo? E o que é que forma um todo, senão tal combinação finita, cheia de
buracos, que, arbitrariamente, se acredita que reúne todos os elementos da soma? Nos
dois casos o diverso e sua produção não são compreendidos. Não se engendra o diverso
a partir do Uno senão supondo que não importa o que possa nascer de não importa o
que, e, portanto, qualquer coisa do nada. (...) Porque os filósofos anti-naturalistas não
quiseram levar em conta o vazio, o vazio se apoderou de tudo. Seu Ser, seu Uno, seu
Todo são sempre artificiais e não naturais, sempre corruptíveis, evaporados, porosos,
inconscientes e quebradiços”.130

A invenção é, pois, da (des)ordem da loucura, como devir-são do pensamento, e


não da crença, ficção confortadora, mas que gera “guerras santas”, fundamentalistas, e
destruição em massas de povos e países. Referimo-nos, pois, a uma loucura não
psiquiátrica, não dominada por psicotrópicos ou eletrochoques. A loucura do inventor.
A loucura do estranho no ninho. Sempre estranho, inclusive ao falar a mesma língua. O
analfabetismo não é não falar o vernáculo, nem saber ler, escrever ou compreender seu
idioma natal, mas é saber tudo isso, dominar a escrita, a leitura e a compreensão, e ainda
sonhar em uma língua-outra, em um país-natal-outro... O conforto libertário de se sentir
estrangeiro em sua própria língua – não seria isso?

A orfandade radical é o axioma singular da Estética como Acontecimento; o que


não significa uma solidão, como tradução do mutismo, antes da harmonia, do silêncio,
daí a importância do contágio e dos intercessores ou compadres inventivos, amigos, em
todos os reinos, em todas as divisões protocolares e subdivisões formais das naturezas.
A filosofia como acontecimento desvela aquilo que a representação apaga, a saber, a
proliferação de conceitos indeterminados, indiscerníveis. Trata-se, pois, de tomar como
ponto de partida o caos intrínseco à criação de conceitos, como o caos de sons irredutíveis
à organização da gramática musical tradicional e dela extrair alguns fragmentos de música
com os quais se faz uma estética, a Estética do Acontecimento, como produção
indeterminada, como invenção tragada pela inocência do devir.

73
Um nome. Uma pista. A imaginação. A maravilhosa comadre, vizinha, ou a
“louca da casa”, sem origem, sem pai, sem mãe, sem, sem, sem… e que elabora suas
estripulias, sob a força de uma razão vagabunda, de lembranças vadias, sempre
deslavadas, revisitadas pela energia incandescente de novas recordações, novos traços,
nascimentos e renascimentos soltos, meninos de rua: anjos sem origem nem nome. O
genocídio sempre repetido, ao longo da história, da imaginação/criança. Meninos de
rua, como os anjos, eles não têm origem… Eis o imaginário às voltas com a fúria sem
controle, livre como um gato suicida…

A imaginação, elogiada de modo extraordinário por Nietzsche, e finamente


elaborada como conceito, é a intercessora privilegiada da invenção. É um conceito-
chave da ética da estética nietzschiana. Rebelde, a imaginação se desvia da solidão dos
seres tristes, a solidão dos que pararam de lutar, amar, fazer amor, ou de amar, com um
amor de amizade, amigas, amigos, as coisas belas que perpassam nossos caminhos,
mesmo quando a beleza fere, magoa, arranca lágrimas amargas, ou mostra sua face
velada: o furor da beleza e do belo! O espectro do anjo sem origem: menino de rua… É
neste sentido que a solidão povoada dos gênios ou dos anônimos encontra na
imaginação todas as imagens, todas as fricções e arrepios prazerosos, sobressaltos e
suspiros, doces e vitalistas, como transmutados em gradientes que povoam as teclas do
computador e o corpo em viagem constante do inventor, do poeta.

A imaginação escreve, pinta; pinta o sete também, descobre fórmulas enquanto o


agente da invenção voa, sobrevoa mares e terras pendurado, como um surfista de trem,
na Central do Brasil, nas asas da imaginação, máquina povoada pela força, pelo desejo
de agir: reagir deixa-a desfalecida. Nem papa-hóstias. Nem beata da literatura ou do
pensamento. A imaginação sempre age. “A imaginação é a louca da casa”, dizia Blaise
Pascal. Louca, porque tem a arte de povoar a solidão de fluxos criativos e obras em
devir. Louca porque, ao contrário de Freud, nada sublima mediante a criação. Inventa
outros mundos. Outros possíveis. A loucura do gênio, a louca loucura dos poetas não é
uma suprema saúde? A gaia ciência?

Alguém pode perguntar: o que sobrou, então, da estética de Baumgarten?


Deixamos de lado, na construção e produção da Estética como Acontecimento, a
concepção da estética como uma disciplina ou como reflexão teórica sobre a obra de
arte. Aludimos a uma utilização conhecida, que Etienne Souriau chama sentido
implícito, em que a estética é definida como uma concepção da arte numa pessoa, numa
época e numa plêiade de culturas, sempre no plural. Em toda cultura há miríades de
culturas que interferem por vizinhanças, encontros, intercâmbios, acoplamentos,
hedonismo, vadiagem ou vida de pândego; conexões, fluxos e refluxos de diversidades
e diferenças.

Toda cultura carrega em si o traço selvagem: (a mesclagem), a mestiçagem,


encontros imprevistos, a força do acaso. Toda cultura é plural. Não há senão culturas em
ações e realizações continuadas, em desconstrução e renascença. E é essa multiplicidade
que, inserida no âmago das culturas, instiga-as à delivrança de seus aspectos
reacionários, de seu imaginário religioso, patriota, enganador, de sua vontade para o
nada, de seu niilismo em tempos sombrios. Vomitar seu êxtase é um dos artefatos
primordiais do louco, do gênio, avesso ao mutismo acalentador dos neuróticos. Em toda
invenção há sempre a força criativa de uma loucura estética, de uma ética da estética:

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santos ou leigos, os inventores pagam o preço de sua loucura, de seu gênio, destruidor
de verdades verdadeiras, de uma estética única.

Como, porém, destruir a verdade? Nunca é demais insistir que toda verdade é
vontade de verdade. Não há criação sem destruição, afora todo e qualquer deslize
terrorista. Destruição é um conceito positivo, artístico, elaborado por Nietzsche. A
invenção supõe o novo, a transvalorização dos valores, o contrário do terrorismo ou da
apologia da morte. A morte do outro, claro; mesmo porque a morte é sempre a morte do
outro. A que destruição estamos, então, a aludir? Como distinguir a “boa” e a “má
destruição”?

“Pois há uma grande diferença entre destruir para conservar e perpetuar a ordem
restabelecida das representações, dos modelos e das cópias e destruir os modelos e as
cópias para instaurar o caos que cria, que faz marchar os simulacros e levantar um
fantasma – a mais inocente de todas as destruições, a do platonismo”.131

Convém, pois, ampliar a concepção da arte extraindo-a de suas condições


temporais e espaciais para dela fazer uma criação conceitual, um agenciamento, um
acontecimento, diria. Uma estética exprime uma concepção da arte que define, implícita
ou explicitamente, seu estatuto, a função da obra em sua relação com a verdade. Isto não
quer em absoluto dizer que existe antes a obra de arte, e a seguir a concepção. A
concepção é imanente à prática e à teoria. A estética se manifesta como concepção da
arte, na reflexão discursiva e na prática artística, ao mesmo tempo em que é uma
disciplina situada na charneira de diferentes artes, da literatura, da filosofia. Não
identificamos os dois níveis, o dizer e o visível, mas ambos remetem a uma máquina
abstrata que tece uma correspondência entre eles. Isso não contradiz o fato de que a
estética, a filosofia da arte, ou a crítica possam ser consideradas como disciplinas; do
mesmo modo, não barra o desenvolvimento de uma reflexão teórica, après coup,
concernindo à obra de arte ou aos fenômenos artísticos.

Perdura, certamente, uma distância entre a teoria e a prática, conquanto, no


presente contexto, não haja grande diferença entre o pensamento teórico, em relação à
arte, à criação e à obra de arte de um artista; ambas são consideradas como
manifestações de uma certa concepção estética. É bom notar que um desenvolvimento
teórico, quer seja estético, no sentido de disciplina, de filosofia da arte ou de crítica da
arte, traz em si, necessariamente, uma estética no sentido implícito, uma concepção da
arte.132

Da mesma forma, a prática artística parece indissociável de uma visão da arte


que define a obra e sua função, o lugar do artista e do espectador. É esta relação, entre a
teoria e a prática, que Foucault preconiza para uma arqueologia da pintura no domínio
da arte. Teoria e prática não se identificam; contudo, é possível criar entre elas uma
relação ao considerar os dois níveis, a teoria e a prática, como dois estratos realizados
por uma linha curva, um diagrama. Diagrama é sempre uma mistura constituída de
relações aleatórias e de dependências mútuas. Há uma continuidade de dois campos –
teórico e prático – conquanto haja cortes, descontinuidades e relações de afeição. O
diagrama é o não lugar que cria uma relação entre dois campos. O conceito de diagrama
une e combina os dois níveis: a teoria e a prática. Em seu livro, Foucault, Deleuze fala
da relação e não relação entre o visível e o enunciável, o dizer e o ver, as formações
discursivas e as formações não discursivas (as instituições) em Foucault. Esses dois

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campos têm ao mesmo tempo relações e não relações entre si: são heterogêneos, mas
comunicam entre si. Deleuze insiste, porém, sobre o conceito de diagrama que os
unifica, ao mesmo tempo em que mantém sua heterogeneidade.

O diagrama é uma máquina muda e cega, embora seja ela quem faz ver e falar.
Se há muitas funções, e até maneiras “diagramáticas”, é porque todo diagrama é uma
multiplicidade espaciotemporal. É que o diagrama é profundamente instável ou
flutuante, não para de remexer, misturar matérias e funções de modo a constituir
mutações. O diagrama é sempre uma mistura constituída de relações aleatórias e de
dependências mútuas. O conceito de diagrama une e combina os dois níveis: a teoria e a
prática, daí sua importância peculiar à produção da estética do CsO, Estética como
Acontecimento.133

No presente contexto, a imagem mais próxima do diagrama é a do fabricante de


cerveja; Deleuze usa o verbo brasser, fermentar. Brasser la bière, fazer o mosto de
cevada, fabricar cerveja, mexer, misturar. Brassée, que significa também braçada; o que
os braços podem alcançar; movimento dos braços, do nadador. A mistura das braçadas
do surfista, para alcançar a “boa onda”, o tubo mais massa do mundo, a onda, maneira,
companheira! O diagrama é o que precede o pensamento. Ele é a rotação do não-ainda-
pensado e designa forças em jogo naquilo que emerge, eis uma definição possível do
CsO.
A Estética como Acontecimento é captura de forças que existem em si, e que
pode ser pensada primordialmente como suporte de uma concepção da sensação, igualar
a potência da obra àquela de um sensível a-significante e a-subjetivo, de um sensível
que prescinde do sujeito – uma subjetividade, pois, sem sujeito, uma subjetivação que
destrona o eu, a ficção da ficção – o que nos aproxima de modo singular da estética de
Gilles Deleuze. A abordagem da arte dissolve as categorias não apenas da filosofia da
arte, enquanto ontologia do objeto criado, mas também da estética como teoria da
experiência desses objetos. A estética é um pensamento da aisthésis; uma ontologia da
recepção peculiar à obra ou, ainda, uma nova estética apodítica que demonstra, e não
narra a história. O artista é um arquiteto do espaço de acontecimentos, um engenheiro,
um inventor, ele esculpe o virtual; mas Deleuze não pretende negar todas as
possibilidades de uma construção teórica do sensível. Ele a condiciona a uma fusão
entre as duas estéticas, escapando, assim, à dualidade de que a estética padece.134

Deleuze explica essa dualidade, na obra A lógica do sentido, em forma de cisão,


fenda, causada pela proposição de conceitos elementares da representação, como
categorias estéticas que presumem estabelecer, de fato, as condições gerais de todas as
experiências estéticas, e, que são a tal ponto ampliadas que podem englobar todas as
experiências possíveis. Tal dualidade se manifesta de uma parte, tanto pela teoria da
sensibilidade, como forma da experiência possível que retém do real, quanto pela sua
conformidade à experiência do possível; e, por outro lado, pela teoria da arte como
reflexão da experiência real. O que Deleuze critica, na representação, ou imagens
próteses, é de ficar presa à forma de identidade sob a dupla relação da coisa vista e do
sujeito vendo. Para que esses dois significados da estética se juntem, tudo deve mudar
uma vez determinadas as condições da experiência real que não são mais apenas
ampliadas, todavia, condicionadas, e que diferem em natureza das categorias.
Aprofundando o que há pouco foi enunciado, os dois sentidos da estética se confundem
de tal modo que o ser sensível se revela na obra de arte, ao mesmo tempo em que a obra
de arte aparece como experimentação. E é como experimentação que se abrem mil

76
possibilidades para o engendramento de uma Estética como Acontecimento, no presente
contexto apenas esboçada.

Pois bem, reunidas as condições da experiência real e as estruturas da obra de


arte: divergências de séries, de ciclos, descentralização, constituição do caos que os
engloba, ressonâncias internas e movimento de amplitude e agressão de simulacros.
Acrescente-se que, quando a obra de arte moderna, ao contrário, desenvolve suas séries
cambiantes, suas estruturas circulares, ela indica à filosofia um caminho que conduz ao
abandono da representação. Não basta, contudo, multiplicar as perspectivas para fazer
perspectivismo. É necessário que a cada perspectiva ou ponto de vista corresponda uma
obra autônoma tendo um sentido suficiente. Uma vez ainda, o que conta é a divergência
das séries, o descentramento dos ciclos, o “monstro”; o conjunto dos ciclos e das séries
é, pois, um caos informal. É o anômalo, ou “potência anômala”, o desterritorializado,
sempre às margens, sempre em movimento, desterritorialização/territorialização, não
controlável, sempre oscilante, sincopado, que deixa em suas passagens a possibilidade
da emergência de uma Estética como Acontecimento: o desejo do novo, contaminado
pela força do meio, intermezzo, entredois.

Afirmar que o anômalo é uma potência anômala isto é, um indivíduo


excepcional, leva-nos a perguntar: Em que consiste, porém, tamanha excepcionalidade?

“O indivíduo excepcional tem muitas posições possíveis. Kafka, mais um grande


autor de devires-animais, canta o povo dos camundongos (...). Em suma todo Animal
tem seu Anômalo. Entendamos: todo animal tomado em matilha ou em sua
multiplicidade tem seu anômalo”.135

Em sua capacidade em se deixar afetar, o anômalo abre para as alianças; nunca


se trata, pois, de ser, mas de devenir. Eis a fenda, objeto de uma Estética do
Acontecimento que difere em número e grau da relação equivocada, tantas vezes
repetida, entre o anômalo e o anormal. Dois mundos os separam: de um lado o anormal
e suas atribuições coladas como uma ferida à ideia de desregrado, individualidade torta,
que o aprisiona em nomeações alheias à diferença ou à multiplicidade. O anômalo, por
sua vez, é definido por Deleuze e Guattari como uma posição ou um conjunto de
posições, em relação a uma multiplicidade. Tal asserção leva os autores a definirem o
anômalo com personagem-conceito, devir e não indivíduo ou sujeito. Nem indivíduo,
nem espécie, mas devir e fenômeno de borda:

“O anômalo é um fenômeno, mas um fenômeno de borda (...). O anômalo, o


elemento preferencial da matilha, não tem nada a ver com o indivíduo preferido,
doméstico e psicanalítico. Mas o anômalo não é tampouco um portador de espécie, que
apresenta as características específicas e genéricas no mais puro estado, modelo ou
exemplar único, perfeição típica encarnada, termo eminente de uma série, ou suporte de
uma correspondência absolutamente harmoniosa; (...) ele abriga apenas afectos, não
comporta nem sentimentos familiares ou subjetivados, nem características específicas
ou significativas. Tanto as ternuras quanto as classificações humanas lhe são
estrangeiras”.136

Em todo pensamento, em toda filosofia, em todo ato de criação, é possível


observar traços de uma estética anômala, em vizinhança com a Estética como
Acontecimento, a estética como crueldade, ou furor. Carmelo Bene e, antes dele,

77
Artaud, cada um a sua maneira, passaram pelos afectos anômalos na qualidade de
inventores peculiares de um teatro da crueldade e do furor. Neste âmbito, a est-ética,
como a filosofia, é um teatro. O teatro das crueldades. A cena ambulante do furor. O
teatro obsceno das fúrias cuja expressão imensurável, radicalmente nova e destrutiva
tem um nome, ou uma constelação de nomes, o anonimato dos nomes: Carmelo Bene.
Mergulhado em um êxtase sonhador, numa dança das palavras desencarnadas,
degoladas, mas que atravessam o tempo e as múltiplas estratificações do tempo, ele fala
de um corpo, da potência da coisa escrita, que atravessa todos os tempos, do paganismo
até hoje, não para construí-las, nem para anunciar uma melancolia desesperada ou
catastrófica, contudo, para destruir toda constituição imagética do real tal qual é dado ou
que nos é imposto a pensar:

“Divina ilusão. Este é um santo. Assim, são todos os santos, fundamentalmente


não preparados, e mesmo nulos. Os altares se movem em suas direções, maquinados por
hebetude de sua psicose ou pelas forças telúricas equilibrantes – mas isso é excluído. É
assim que um santo se perde, mediado pela idiotice incontrolável. Um altar começa
onde termina a medida. Ser santo é perder o controle, renunciar ao peso, e o peso é
organizar sua própria dimensão. O santo podia tão-somente se perder ou se salvar, ele,
porque estava sem intenção, inepto. Quem nunca pensou na morte é talvez imortal”.137

Comentário extraordinário de Manganaro:

“Se o texto é um corpo, se a obra tem um corpo, ambos devem literalmente ser
destruídos, do mesmo modo que deve ser destruída a imagem do corpo, deste corpus
que constitui a transubstanciação do ator em cena – no cinema, no teatro. A crítica de
fundo se desenvolve contra toda filosofia que cria armadilhas para o corpus, tanto o
textual como o pictural. Aqui se concentra a postura ética de Carmelo Bene em relação
a um saber organizado, capaz somente de repetir a leitura do corpus e não procurar as
novas possibilidades, em um ‘devir-texto’ ou em um ‘devir-ator’, agindo por meio da
subtração de uma textualidade que tende a martirizar e a alienar o corpo, através da
argumentação paradoxal da potência do próprio corpo”.138

De fato, para Carmelo Bene, devastar o corpo torna-se mais importante do que
destruí-lo, daí seu conceito de fúria em contrapartida ao conceito de crueldade, pois, ao
que tudo indica, a crueldade não dá conta da força exterminadora da fúria, do furor, da
interdição do livro, dos escritos confinados ao silêncio, à mudez dos arquivos, imóveis,
congelados, do poeta vestido de noite:
“Perdura no ato uma testemunha cuja força enumera os crimes perpetrados pelo
ser histórico e pelo ser, pelo fato de ficar nas histórias dos textos e pelo fato de ser corpo
nesse contexto – dos romances às correspondências, como também tudo o que foi
escrito para não ser encenado, mas para ser vivenciado em privado”.139

Dramaturgos, coreógrafos, cineastas, escritores e filósofos, entre outros,


vivenciaram uma operação semelhante à de Bene. Não por acaso, em seu livro S.A.D.E.,
ele toma como referência primordial Lautréamont, jovem escritor, que faz uso da
paródia destruidora da contracultura, avant la lettre, do furor de viver no silêncio
girimunho4* de um quarto de estudante, em Paris. Do mesmo modo, afora Nietzsche,

* Referência ao filme de Helvécio Marins JR e Clarissa Campolina Girimunho (2012). Numa época em
que o barulho ensurdece e anestesia o cinema no Brasil, salvo exceções, ou resistência à histeria da

78
Artaud ocupa um não lugar que toma proporções gigantescas, melancólicas, mártires e
sacrificiais. Para Bene, Artaud não é mais um nome, porém, todos os nomes da história.
Devastar um corpo, um corpus, impedido de pensar o impensável, exilando-o à
repetição, a dizer, como um macaco, aquilo que há séculos os carneiros repetem, Artaud
queria superar os limites da linguagem e do pensamento dos “assentados”, em vênia
constante ao deus micróbio, destino de todos os deuses. Desta prisão, emerge na mais
profunda orfandade a invenção do Corpo sem Órgãos, potente, movido por uma força
sísmica, numa escrita que o leva a atravessar os infernos, sem o confortador repouso da
trilogia de Dante – Inferno, Purgatório e Paraíso. Tudo é inferno, e Artaud a ele padeceu
com dignidade, como um acontecimento, alheio à força do destino ou à fatalidade dos
supersticiosos.

Da biografia à invenção literária, emerge uma escrita esfolada, de um esfolado


vivo, anunciadora de uma ética do furor – Heliogábalo, Cartas a Rodez etc – ou de um
pensamento que produz o novo, logo a fúria, a destruição de portos seguros, de hábitos
longos, o que leva Carmelo Bene a afirmar que Artaud “crucificou a língua francesa.”
Colado à língua, a ferida da língua conta seus mortos e desterrados. A língua nunca é da
ordem da gramática, antes do poder ou da vontade de verdade.

Que diz a Estética como Acontecimento? A postura/impostura do corpo passa da


deslocação à desarticulação, sem hierarquias nem regras, e à desorganização do corpo,
mediada pela constante territorialização/desterritorialização, ou pelo balé fantástico de
Apolo/Dionísio, diferenças que diferem numa sintonia, numa epifania ou estética da lua,
difusa na Origem da Tragédia, de Nietzsche. Nada a esconder. Nada a camuflar. Um em
dois, dois em um; a ciência dos números se ajoelha diante do milagre pagão do rizoma:
a solidão é a história de cada um, mas o pensamento não conhece esta fatalidade.
Apolo/Dionísio são multiplicidades que se completam, sob o signo da fúria indizível de
um “casal” que se extravia da visão piegas e se perde nos jogos heraclitianos do devir,
alheio aos números e ao peso das dualidades assassinas.

“A invenção mais potente de Carmelo Bene se situa nesta esfera: devastar o


corpo, não para destruí-lo ou dessacralizá-lo, mas para desorganizá-lo, isto é, arrancá-lo
da organização embaralhando-o enquanto sistema social fechado. E, logo, desorganizar
a figuração da imagem do corpo no interior do corpo social, não como uma finalidade
de mártir em si, todavia, para minar e destruir os mecanismos da imagem do corpo e do
texto como princípios organizadores”.140

Uma Estética como Acontecimento se define também pelo espaço dinâmico que
ela engendra. É da ordem da geografia; tem como característica fundamental uma nova
concepção do espaço, uma nova distribuição no espaço, uma nova relação com o
espaço. É um outro modo de espacialização, uma nova maneira de ser, de estar, de devir
no espaço. Nesse espaço nômade, o espaço local absoluto, o estriado é trespassado pelo
espaço liso, e o estático é sempre transtornado, agitado, empurrado e posto em situação
de vibração, de sensação, no sentido deleuziano. A sensação é uma vibração, sob o
signo de uma estética cuja característica nunca é a forma, mas a primazia da força sobre
a forma. Força, isto é, invenção. Desejo de vida. Vitalismo em núpcias com os devires.
Não se trata, pois, de um espaço dimensional, todavia, a-direcional. Não há vetores,
orientações ou tendências. O espaço não é habitado pelas formas, mas pelas figuras,

imagem, Girimunho é um presente dos deuses, é a reinvenção de um possível cinematográfico, a arte


plena de fazer cinema, a experimentação imaterial de uma est-ética movida ao silêncio do olho.

79
hecceidades, ou pontos de inflexão, as dobras. O que caracteriza esse espaço é sua
distribuição nômade que o define como percepção háptica de visão aproximada e tátil,
um espaço Corpo sem Órgãos, do meio, do trajeto.141

Não há nem passado nem futuro, é um espaço de devires: devir-mulher, devir-


animal, devir-cavalo. Lispector. Água Viva. O arrepio de um corpo sem nomes. Os
fluxos desejantes ou saborosos de um corpo voador, que não conhece a gramática, mas
o rincho generoso, guloso, do cavalo, ao saudar dedos que tocam seus músculos e
dobras infinitas, numa vibração sensível do tato. Água Viva, escrita em bodas com a
ética da estética, é carregada de vibrações. Espaços. Múltiplos espaços inseridos no
movimento dos sentidos. É um espaço de passeio na cidade ou no campo ou em lugares
inomináveis a serem reinventados, em que há inúmeras entradas/saídas, que se
metamorfoseiam a cada sopro, a cada respiração. É o rio; são as correntezas
heraclitianas. Longe de Platão, e de sua Caverna, com saída única. Revisitada, todavia,
pela Estética como Acontecimento, a saída da Caverna é transmutada em saídas,
caminhos, estepes, desertos, espaços lisos, estreados, animais, cósmicos, caosmóticos,
vegetais. Vagas. Ondas mescladas aos tubos e ao corpo-onda. O passeio líquido que faz
do surfista um devir-orvalho. Um passeio é um percurso nômade num espaço liso. O
passeio é como uma experimentação, uma vida. É um espaço de viagem (Kleist), que se
distingue pela sua tarefa, respectivamente, do ponto, da linha e do espaço; essa é a
viagem no espaço liso, em uma viagem de experimentação, e esquecimento ativo,
inventivo. Nem amnésia, nem denegação: esquecer não é crime. O esquecimento, pois,
como uma memória outra. É todo um devir. Há nesse espaço pontos, linhas e volumes,
mas os pontos do devir-artístico da estética como errância estão inseridos no trajeto, no
movimento, como a onda no corpo do surfista, ou o tubo, imenso salão verde, castelo
translúcido, cuja palavra é produção de sentidos em um imenso silêncio, em que o corpo
é onda com a onda e não sobre a onda. Corpo em êxtase, tocado pela harmonia de uma
sensação que prescinde da palavra, da representação.

Neste espaço-cigano, nesta anarquia coroada, os elementos não são formas ou


imagens, mas acontecimentos, hecceidades, figuras de formas do acontecimento,
produção do CsO sem o que não há devir-são da loucura, nem singularidade transeunte,
nem CsO, mas uma coletânea de organismos que impede o corpo de voar, gozar, amar,
flutuar no tubo e entrar num devir-onda, numa produção louca alheia e arredia à loucura
psiquiátrica ou ao juízo. Nem asilo, nem enclausuramento.

Como afirmamos, Deleuze atribui à arte a tarefa de dar acesso a esse corpo, a
esta vida orgânica. CsO é experiência imediata, sem conceito e sem forma. O CsO
escapa à organização, em que os órgãos perdem suas funções. O fluxo de vida orgânica
passa, pois, como uma vaga e atravessa todo o corpo em advento. Uma definição
intensiva do corpo, uma imagem de corpo anterior à subjetividade, concepção modal do
indivíduo, primazia do corpo como força sobre as funcionalidades dos órgãos
agenciados como máquina. Primazia da força sobre a forma. E, sob outro ângulo, é o
advento de um pensamento físico que faz da relação um vetor possível de investigação
do real que, como o espaço, não existe em si, menos ainda enquanto percepção do
sujeito, pois é a própria relação do criador com o espaço/movimento que se torna
escrita-surfista, surfando no espaço.

Eis por que a estética nômade não recorre a noções como forma, imagem, estilo,
expressão, código, ou ao risco de sempre reduzir a obra às funções tradicionais da

80
representação e da linguagem; a estética nômade aborda, pois, a obra de arte para além
de todos esses instrumentos de representação. A Estética como Acontecimento remete a
um conceito-chave, à linha nômade. Mas o que é uma linha nômade, como intercessora
peculiar à Estética como Acontecimento? É uma linha abstrata, virtual, infinita, um
devir, um movimento e não metafísica, forma ou imagem. A linha é uma operação, o
oposto da essência; é um processo, um caminho e não um objetivo ou um fim. É uma
linha curva, arqueada, em suspensão, linha malabarista que não cessa de gerar dobras,
acontecimentos, surpresas, acasos: a linha, não o ponto: “traço barroco é uma dobra que
vai ao infinito” A linha não tem começo nem fim. A linha é um movimento, uma
duração, uma diferença; é linha do pensamento, “linha da bruxa”, é a linha do Fora
(Foucault/Blanchot); é o recurso a um conceito-chave, um conceito operatório, a uma
função operatória: é a linha nômade, que permite conceber a Estética como
Acontecimento. Por que a linha? Porque ela cria um espaço sem fundo, ou melhor, um
espaço no qual o fundo não se distingue da superfície, da linha, porque a Figura é,
simultaneamente, “forma” e “fundo”, ou, como diz Klee, a unidade de fenômeno e da
função é um material-força. A linha supera a essencialidade da imagem ou da forma
como princípio da arte (pictural). A imagem ou a forma não são mais os princípios da
arte, todavia, o efeito de uma atualização da linha como movimento para o
acontecimento, para o devir. A Estética como Acontecimento, combina, pois, a força ao
material: é o material-força:

“É a dupla material-força que no Barroco substitui a matéria e a forma (as forças


primitivas sendo as da alma” ou das nervuras da alma, como Pier Paolo Pasolini amava
dizer, atribuindo à alma um corpo: incorporal, material e imaterial.”142

No experimento ou práticas artísticas, inventivas da estética, nós nos tornamos


um devir-outro, um devir imperceptível no qual nos tornamos caos. De fato. o conceito
da linha remete a um espaço plástico do devir absoluto, mediante o qual o sujeito, como
linha ou movimento, pode se abrir para um espaço dinâmico, isto é, para o caos. É o
espaço cósmico. Se existe uma idade moderna, é evidente, é a idade cósmica, eis por
que, segundo Deleuze, Klee se declara faustiano. Mas essas forças cósmicas não têm
nada a ver com a metafísica canônica ou o romantismo; a idade cósmica é o caosmos de
Félix Guattari.

Pensar com Deleuze é um esporte radical! Podemos dizer de Deleuze o que ele
diz de Espinosa e Nietzsche:

“Espinosa e Nietzsche são filósofos cuja potência crítica e destrutiva é inegável,


mas essa potência jorra sempre de uma afirmação, de uma alegria, de uma exigência da
vida contra aqueles que a mutilam e a mortificam”.143

A obra é, então, compreendida como uma multiplicidade, e o mundo como


devires. Contra a tentativa de demonstrar que para Deleuze a potência do falso vem da
verdade, o filósofo reafirma sua grande preocupação: mostrar que toda verdade,
segundo Nietzsche, é vontade de verdade. Estamos, pois, a falar de uma estética serial,
de séries divergentes. É de notar que definir uma Estética como Acontecimento não
significa, em nenhum caso, considerá-la uma Escola, um Movimento ou um Estilo; do
mesmo modo que, classificados como impressionistas, Klee e Kandinsky se exprimem
em dois registros estéticos diferentes. A Estética como Acontecimento quer sentir o
imperceptível do entredois que vela, para o iniciante, registros de diferenças

81
dificilmente percebidos a olhos nus, e exige um Olhar de Índio, sem a camisa de força
da significação, da recognição ou da representação. O Olhar de Índio se extasia diante
do desconhecido, almeja o desconhecido, acata a surpresa imbuída no acontecimento,
mas a reação ao novo é peculiar e, em geral, imprevisível. O conceito-personagem
Olhar de Índio não é redutor à essência, à “inocência”, ou ao bon sauvage; é antes uma
economia dos sentidos e da estética da existência em combate contínuo, desejante, à
invenção de um mundo-outro, de possíveis-outros, o que supera de longe a vontade de
verdade, a vontade de poder.

Em nossa acepção, o Olhar de Índio, aqui apenas anunciado, singularidade


peculiar, em termos conceituais, filosóficos, em nossa abordagem de uma estética-outra,
encontra toda sua força em uma das definições da filosofia, proposta por Gilles Deleuze,
e que acatamos à continuação da elaboração próxima de algo que chamaremos Olhar de
Índio, como uma est-ética, filosofia da diferença, como máquina produtora ou
acontecimento engenhador de possíveis. De fato, repetimos, o possível em si não existe,
ele é concebido pelo acontecimento, por uma “vontade derivada do acontecimento, que
se alimenta do intolerável. O acontecimento é o próprio ‘potencial revolucionário’, que
se esgota quando rebatido sobre as imagens já feitas”.144

“A quem pergunta: ‘para que serve a filosofia?’, é preciso responder: que outro
interesse tem senão levantar a imagem de um homem livre, denunciar todas as forças
que têm necessidade do mito e da inquietação de alma para afirmar sua potência? (…) A
Natureza é capa de Arlequim toda feita de cheios e vazios: cheios e vazios; seres e não
ser, cada um dos dois se apresentando como ilimitado e ao mesmo tempo limitando o
outro. Adição de indivisíveis, ora semelhantes ora diferentes, a Natureza é bem mais
uma soma, mas não um todo”.145

Bem antes, em 1985, no final do livro Imagem-tempo, Deleuze escreve: “Há


sempre uma hora, meio dia-meia noite, para se perguntar: o que é a filosofia?”

A Estética como Acontecimento confere à obra de arte a função de estabelecer


um laço com o caos, uma captura de forças da vida: a obra não precede o ato da
invenção, ela não remete a nenhum modelo preestabelecido, ela é totalmente
experimental. A obra é um lugar de captura de forças, de energia. É uma estética sem
janelas. Como o nômade, ela tira seus conceitos de si, prenhe de intensidades e
encontros pelos quais se deixa afetar. É uma mônada (Leibniz) que inclui seu mundo,
todavia exprime ou esclarece apenas uma parte. É uma peça interior barroca: não tem
janelas abertas sobre o exterior, e sua luz não vem diretamente do exterior. As saídas
são sempre invenções: nada é dado antecipadamente. Sair não significa necessariamente
escapar à prisão, mas querer e desejar a liberdade já não é uma vitória? Só o desejo é
revolucionário.146

Por onde passaria, no entanto, a ética da crueldade, ou a est-ética? Pela produção


de conceitos, pela filosofia, pela visão que ambos têm do homem e do mundo. Pelo
processo de desconstrução que, sob o signo de um pensamento móvel, movediço,
conhecedor-experimentador de muitos desertos, delineia as cartografias desejantes, os
surtos da pele, os gritos molhados de uma epiderme em revolta constante contra o corpo
da razão – em Nietzsche – e contra o organismo, em Artaud.147
Convém igualmente perceber a razão do que poderíamos nomear “O silêncio da
Filosofia” a respeito da crueldade. Muitas questões poderiam permear este quesito: por

82
que a crueldade constituiu historicamente um escândalo para a Filosofia? Por que esta
exclusão quase sacrificial da crueldade no campo filosófico? O que é sacrificado no
jogo das categorias e dos conceitos? Que sacrifício se repete – a partir do primeiro,
aquele que implica a linguagem, a palavra que mata a coisa, ou seja, o sacrifício do
real? O silêncio sacrificial da crueldade na Filosofia encontra em Aristóteles,
notadamente o livro VII, capítulo V da Ética a Nicômaco, seu representante
maior.148

Segundo Aristóteles, a crueldade é exterior ao homem. Ele confirma, assim, a


crueldade no man's land da “loucura”, da “doença” ou da “selvageria”. Aristóteles,
confundido pelo excesso não humano da crueldade, a exila no campo da bestialidade e
da loucura. Schopenhauer, por sua vez, integra a crueldade à metafísica pessimista
atribuindo-lhe um caráter altamente revelador da natureza do Ser. Para Schopenhauer, o
sofrimento é a manifestação de uma força cruel, aquela mesma que subentende a
Vontade; o sofrimento é para ele “o fundamento de toda vida”. O homem em quem a
Vontade se exerce, no mais alto nível, é o ser mais sofredor. Em Schopenhauer, a
crueldade encontra, de fato, uma explicação metodológica e se inscreve na natureza do
homem.149

Pontua-se, assim, apoiado na concepção da crueldade proposta por


Schopenhauer, a ruptura com o pensamento ocidental e, em particular, com a filosofia
grega para a qual o ser é sinônimo de doçura, contemplação e presença. Poderemos,
contudo, ao falar de “ruptura”, afirmar que Schopenhauer se afastou, em termos
conceituais, radicalmente de Aristóteles? Nossa hipótese é a seguinte: um vínculo
persiste à definição aristotélica: a crueldade é para Schopenhauer signo e excesso. Ora,
visto que a crueldade supõe a vontade e a consciência do mal feito a outrem, e que ela é
igualmente excedente em relação ao humano, a crueldade é definida pelo filósofo como
signo de transbordamento da vontade de viver. Schopenhauer faz da crueldade um afeto
puramente negativo: expressão de uma doença que procura se aliviar por meio de um
espetáculo consolador.150
A aceitação da crueldade como produção do homem parece de fato pôr em
perigo a própria ideia de natureza humana. Nesse sentido, não se pode deixar de
sublinhar a importância de alguns filósofos à retomada da crueldade. Poucos
perceberam a crueldade como um componente essencial do humano — nesse contexto
Maquiavel e Hobbes fazem parte daqueles que integraram a crueldade na esfera do
humano, demasiado humano.

As múltiplas faces da crueldade

O presente tema em Nietzsche e em Artaud aponta uma polissemia infinita que


vai da crueldade do pensamento, passando pela crueldade heroica, pela crueldade
inocente, “pura”, crueldade artística acoplada à dureza necessária do homem criador.
Crueldade, pois, produtora da dor que supõe do criador uma rígida disciplina, uma
determinação implacável necessária à criação. Essa dureza própria do artista e dos
“herois trágicos” faz de ambos o modelo da “ética da crueldade”, assim denominada por
afirmar a dureza como axioma essencial do criador: “Todos os criadores são duros”,

83
dirá Zaratustra. Uma tal hipótese, fundada no pressuposto de que a arte contém um
componente de crueldade, deve nos levar a uma análise minuciosa, quase exegética da
relação crueldade-criação em Nietzsche e em Artaud, evitando assim a inserção da
“perversão” na afirmação, nos dois autores, da crueldade presente na paixão do artista.
Paixão que passa pela crueldade acasalada à arte, ao pensamento trágico na dureza do
herói:
“Os heróis trágicos (...) são suficientemente duros para sentir o sofrimento como
gozo”. Ou ainda: “O gozo (Lusf) sentido na tragédia distingue as épocas e os
temperamentos fortes (...)”151

Em certo grau de apreensão, a crueldade releva a categoria exclusiva da ética, e


inversamente, a gestão da ética nos introduz à dimensão da crueldade. Eis por que, em
Nietzsche, a história da crueldade e a Genealogia da moral se confundem. Artaud,
interpõe por sua vez, à questão da crueldade, a seguinte afirmação:

“Não se trata, nessa Crueldade, nem de sadismo, nem de sangue, pelo menos de
modo exclusivo (...) Pode-se muito bem imaginar uma crueldade pura, sem
dilaceramento carnal. E, aliás, filosoficamente falando, o que é a crueldade? Do ponto
de vista do espírito, a crueldade significa rigor, aplicação e decisão implacáveis,
determinação irreversível, absoluta. A crueldade é antes de mais nada lúcida, é uma
espécie de direção rígida, submissão à necessidade”. 152

Ao heroísmo cruel, realização da ética da crueldade, Nietzsche e Artaud


conferem um tríplice papel destruidor: “Desconstruir o teatro do mundo e suas falsas
perspectivas, o teatro do eu e sua ilusória profundidade, o teatro do corpo e sua unidade
fictícia”.153
Evidentemente, esta vontade ética de ir até o final supõe um heroísmo cruel e
devorador que ultrapassa a intenção moral que subentende a fé na verdade, mas também
um heroísmo suicida que, segundo a fórmula de Nietzsche, revela na “vontade de
verdade” uma “vontade de morte” ilustrada pelo que ele chama “o dom Juan do
conhecimento”. Heroi da verdade e da virilidade, dom Juan não se satisfaz, juntando-se
assim aos “meio-conhecedores ou a maioria dos filósofos – amantes mesquinhos e
pobres sedutores” – dessas “pequenas verdades”.154

Nietzsche, para quem “quase tudo o que chamamos 'civilização superior' repousa
na espiritualização e aprofundamento da crueldade” compara “a civilização no seu
esplendor a um vencedor coberto de sangue que arrasta seus derrotados, tornados
escravos, acorrentados à carruagem de seu triunfo”.155

Artaud: “Não cultivo sistematicamente o horror. A palavra crueldade deve ser


considerada num sentido amplo e não no sentido material e rapace que geralmente lhe é
atribuído. E com isso reivindico o direito de romper o sentido usual da linguagem,

84
voltar enfim às origens etimológicas da língua que, através dos conceitos abstratos,
evocam sempre uma noção concreta”.156

Artaud vai, pois, ao México à procura de uma “verdadeira cultura” que “se apoia
na raça e no sangue”. A crueldade insiste através de palavras-chave de seu pensamento
como o segredo, o mais íntimo e o mais estrangeiro, ao mesmo tempo como o motivo
de uma melodia secreta, semelhante à música que Artaud percebia na pintura de Van
Gogh. Cruor, o sangue que escorre, é o signo da vida e significa “vida, força vital”;
mas é também, e por amálgama, signo de violência infligida à carne – e cruor designa
ainda a chacina. Cruor é a vida; e, segundo numerosas fórmulas de Nietzsche e Artaud,
é crueldade. Cruor é a violência, mas a violência em nós: o sangue de nosso sangue, a-
vida-morte que pulula nas entranhas, nas cavernas da pele, numa carne que nós não
somos e no entanto fora da qual não existimos.

Exacerbando a ética da crueldade como economia do divino, Nietzsche escreve


(...) “os deuses são também recriados e tornam-se bem humorados quando a eles
oferecemos o espetáculo da crueldade”. A crueldade abre à experiência do sagrado cujo
lugar de provação é o corpo. Porque é no corpo que se esconde “o grande segredo”,
devemos estar prontos a assumir “o grande combate” evocado por Henri Michaux em
L'espace du dedans: “O pé falhou!/O braço quebrou!/O sangue escorreu!/Escava,
escava, escava, /No caldeirão de seu ventre existe um grande segredo”.

Ou seja, a crueldade origina-se no lugar do Outro. Este grande segredo,


objeto que se desprende do real, mas que habita o ventre de nosso próximo desvela-se
numa dilaceração sangrenta que anuncia a epifania do real; daí o axioma: “O término da
crueldade é o real”, mas o segredo que o homem procurava através da crueldade escapa-
se no infinito. Eis, pois, nesse contexto, a hipótese: o homem sente a vida como
excesso do infinito ele mesmo, nele mesmo, manifestação de um pathos, segundo
Nietzsche, e de um esforço, segundo Artaud, sustentando a dinâmica de uma crueldade
que não tem nem fim nem começo. Uma crueldade da posse e não da descoberta:
possuir um mundo é muito mais fácil: “Odeio o inverno, pois é a estação do conforto”,
diz Rimbaud. Para que a crueldade possa ser identificada com a vida, ela deve existir
“antes” do homem e encontrar seu princípio numa espécie de necessidade cósmica,
como Nietzsche e Artaud sugerem; no entanto, a crueldade só é o que é no homem e só
toma sua profundidade ética nele.157

O sentimento, segundo o qual o homem encontra sua divisão no excesso e a sua


vontade, ou mesmo sua natureza, seguida com todo rigor, o conduz ao “inumano”,
como queria Montaigne, é para a consciência um escândalo contra o qual ela se protege,
esforçando-se em parar o movimento e o sentido desse excesso, superabundância.

A estética da crueldade em oposição à crueldade perversa

85
Nas análises da Genealogia da moral, em Nietzsche, e nas passagens do
Teatro e seu duplo, em Artaud, consagradas ao estudo da crueldade, Nietzsche a
define como “Contra-natureza” (widernatürhch), Artaud, por sua vez, fala da
crueldade como a expressão de “apetites perversos” que se caracteriza pelo
enclausuramento do sujeito no imaginário, e por seu aspecto voluntário e espetacular.
Nietzsche observa em Aurora:
“A malvadeza da fraqueza quer fazer o mal, e ver as marcas do sofrimento”.158

Artaud, por sua vez, afirma não fazer uso da palavra ‘crueldade’ pelo gosto
sádico e perverso do espírito:

“Não se trata de modo algum da crueldade vício, da crueldade brotada de apetites


perversos e que se exprimem por meio de gestos sangrentos, como excrescências
doentias numa carne já contaminada”.159

Artaud vai ainda mais longe. Para ele, a “busca gratuita e desinteressada do mal
físico” é uma perversão. No limite do real surge um objeto mediante o encontro no qual
se estagna o movimento de excesso e sobre o qual a tensão se descarrega. Este pode ser
o outro, o objeto da satisfação sádica ou então si mesmo como o outro, objeto de
satisfação próprio àqueles que Nietzsche denomina “os masoquistas morais” (die moral
– ischen – Selbstqüaler), cujo santo e asceta, ao exibirem teatralmente seus
sofrimentos, são os melhores exemplos.160

Nesse sentido, a crueldade pode ser também um gênero de saturnal para os


oprimidos e fracos de vontade, para os escravos, para as mulheres do serralho, como
uma frágil sensação prazerosa de potência - existe uma crueldade das almas malvadas
como existe também uma “crueldade das almas malvadas e infames”.161

Artaud, ao utilizar a imagem nietzschiana de vampirismo dos “fracos”, a moral


presente nos seres do “rebanho”, dotados de “mandíbulas de gulosos vampiros” e ao
praticar contra os seres excepcionais “um sucúbico bem organizado”, aponta a
crueldade como algo marcado pela culpa.162 Esta culpa, ou parada de movimento, que
corresponde a uma reviravolta dos instintos animais, segundo Nietzsche, significa para
Artaud uma parada da Criação.163 Ou seja, a culpa encana a positividade da crueldade,
sua “inocência”, sua “pureza”. Para Nietzsche, trata-se de um fenômeno histórico: em
favor da sedentarização da humanidade, os instintos primeiros do “animal ‘homem’”
(“Genthier ‘Mensch’”) se “retornaram para o dentro” e, em particular, “a crueldade
retornada sobre ela mesma” deu nascimento à “má consciência”.164

86
A trajetória do ressentimento e da culpa, da qual Nietzsche faz a genealogia, tem
como conclusão a perversão, a mais sutil forma da crueldade que foi a invenção do
pecado. Gestionário do sofrimento, terapeuta perverso de uma humanidade doente, o
padre, por meio da invenção de ideais ascéticos, permite uma verdadeira “sublimação”
da crueldade, a crueldade requintada, a crueldade como uma virtude posta ao serviço de
uma consciência “lubricamente doentia”. 165

Artaud, do Teatro e seu duplo às Novas revelações do ser, textos nos quais a
visão gnóstica se exaspera, demonstra a importância suprema de uma “malvadez inicial”
inserida como uma ferida nos interstícios da consciência. Consciência humana por ele
definida como fundamentalmente culpada e criminosa. Assim, em Heliogábalo, ele a
evoca como a figura de uma divindade “impotente e ao mesmo tempo malvada”.166

À maneira de Nietzsche, Artaud vê na consciência a doença do homem. Visto


que “não há crueldade, sem consciência, sem uma espécie de consciência aplicada. É a
consciência que dá ao exercício de todo ato de vida sua cor de sangue, sua nuance cruel,
pois está claro que a vida é sempre a morte de alguém (...), o bem é desejado, é o
resultado de um ato, o mal é permanente. Quando cria, o deus oculto obedece à
necessidade cruel da criação que lhe é imposta a ele mesmo, e não pode deixar de criar,
portanto, não pode deixar de admitir no centro do turbilhão voluntário do bem um
núcleo de mal cada vez mais reduzido, cada vez mais corroído.167

Nesse sentido, para Artaud, o sonho de uma “inocência na crueldade” é


esmaecido pelo sentimento de uma culpabilidade metafísica com a qual o homem deve
contar. Mas, apesar de tudo, a culpa não impede a esperança, apoiada pela visão
gnóstica da criação, de reinscrever a crueldade na via de sua pureza “metafísica”,
mediante uma luta radical contra a má crueldade divina. De fato, Deus é, para Artaud,
uma coisa que o afasta de si mesmo, de sua vida, de sua morte, de seus pensamentos.
Angustiado, pleno de uma crueldade primeira, que ele chama “Deus”, Artaud lança
contra Ele sua flecha envenenada, em forma de axioma assassino: Se a consciência é
a doença do homem, Deus é a doença da consciência: “Há uma irrupção de Deus
em nosso ser; teremos que destruí-lo”, conclama Artaud.168

Para Nietzsche, Deus é ciumento (eifersürchtiger): tudo deve ser-lhe


explicado, pago, expiado: “Os deuses são talvez ainda crianças, e eles tratam a
humanidade como brinquedo e são cruéis inconscientemente e destroem em toda
inocência”. “A divindade consiste precisamente em haver deuses, mas não Deus”, diz
Zaratustra, citando uma parábola. Assim se explica a crueldade mórbida de Deus, este
morto que necessita de nosso sangue para viver, e o qual Artaud, nos seus últimos
textos, apresenta como vampiro; mas “Deus morreu” significa também que Deus não
tem demanda, não pede nada. Segundo as análises da Genealogia, seu poder vem da
culpabilidade dos filhos. “É que no fundo de cada um vive o mais horrendo dos homens

87
que sabe que Deus só podia morrer”.169 São, pois, os filhos que atribuem ao Pai sua
potência e instauram uma relação de dívida, submetendo-o à crueldade.

Crueldade como vontade de potência

Para compreender como se impõe a dimensão da ética, é preciso observar o que


Nietzsche e Artaud entendem por crueldade não perversa, “natural”, ou crueldade
“inocente”. Tanto para Nietzsche como para Artaud, a crueldade não perversa deve ser
involuntária, não ter nenhum objeto próprio e não se satisfazer com o espetáculo do
sofrimento de outrem — sem o qual a crueldade seria apenas a reação negativa das
almas sofredoras sobre as quais fala Schopenhauer. Nietzsche: “A malvadeza da força”
(das Bõse der Stárke) faz mal a outrem sem pensar que o faz, ela deve se
desencadear, a malvadeza da fraqueza quer o mal e ver as marcas do sofrimento.170

Artaud define a crueldade como um “sentimento puro, um verdadeiro


movimento do espírito”, e deseja retirar da palavra ‘crueldade’ “seu sentido material e
rapace” a fim de chegar a uma crueldade innocens, que não fere. Ao evocar Sade ou
Masoch, por exemplo, Artaud não está interessado no significado, mas no “aspecto
harmonioso e musical, o lado melódico do trabalho de dilaceração intelectual de
Sade”.171

Nietzsche, por sua vez, recorre ao mito do “forte” que em sua negligência e
descuido reencontraria a inocência (die Unschuld) e a despreocupação do felino, e
seria animado por um “instinto de crueldade” não alterado; ou então ele procura
exemplos nas personagens que a história erigiu em figuras míticas: César, Bórgia,
Napoleão e outros.172

Da mesma maneira que parece pouco provável encontrar homens que pratiquem
a crueldade isenta de qualquer perversão ou fraqueza, parece igualmente impossível
determinar a crueldade “pura”, “inocente” sem passar por uma definição formal,
musical, estética cara a Artaud, e que se avizinha da Estética como Acontecimento.173

Em suma, não se pode estagnar a crueldade numa determinação substancial. É


neste sentido que a “crueldade”, em Artaud, é vida, é o equivalente à Vontade de
potência em Nietzsche: “Mas o que é a vida? Aqui uma definição mais nova e mais
precisa do conceito de ‘vida’ torna-se necessária. Minha fórmula é a seguinte: a vida é
vontade de potência”, diz Nietzsche nos fragmentos de 1885-1886. Ambos tentam
experimentar a lógica da “vida”, ou melhor atribuir à vida uma definição puramente
“lógica”. Lógica que não obedece às leis da racionalidade, quer dizer, da Moral, mas
que se apresenta, justamente, como a lógica da ética. Nietzsche, crítico radical da crença
em um instinto, assimila, com efeito, Vontade de potência e instinto de crueldade,

88
revelando pela mesma natureza metafísica de referência biológica que se mistura sem
distinção à metáfora filosófica:

“Os animais conhecem o sentimento de potência, a saber, a crueldade. “O


sentimento de potência” (das Gefühl der Macht) (...) é exatamente o equivalente de
crueldade”.174

Em outras palavras, quando se busca um substrato concreto à crueldade, se é


levado, inclusive no animal, à metáfora da Vontade de potência. A Vontade porque
ela escreve “o texto primitivo, natural” e animal, porque ela fala do Grande discurso
cósmico:

“Eu sou a esperteza, a astúcia” é a origem desse imperativo de crueldade, que,


trespassando a natureza, faz dela menos uma instância metafísica do que um princípio
ético de interpretação. A afirmação: crueldade, igual à Vontade de Potência significa
força cruel igual à vida.175

Para além do bem e do mal, tal é em Nietzsche e em Artaud a fórmula da


ética da crueldade. Longe de convidar a um imoralismo desenfreado ou de equivaler ao
“tudo é permitido”, este conceito é o de um imperativo rigoroso a partir do qual pode
ser fundada uma ética da crueldade. “Além” não significa “deste lado”, não significa
“aquém”.

Segundo Nietzsche, a ética da crueldade é o fruto da “grande promessa” que o


homem carrega consigo prestes a retornar contra si a crueldade e a má consciência. E a
dinâmica da vida – do mundo como Vontade de potência – é cruel à medida que
“toda força, a cada instante, vai até o final”, vai até as suas últimas consequências. A
ética da crueldade é o futuro-presente do devenir, donde a frase célebre de Artaud:

“Eu, eu quero devir outro, mas não o outro”.176

Uma última observação — não menos importante — que (in)conclui a presente


dobra, se insere no que denominamos “o charme discreto da crueldade”. De fato, a
crueldade é também algo que tem muito charme, é “O filtro da grande Circe”. A
crueldade é movimento que motiva a ver nela, sob a pele do outro, sob o envelope que
delimita sua integridade e o demarca como doçura, delicadeza, morbidezza, segundo a
palavra empregada por Hegel, na Estética.

Artaud fala ainda de uma “crueldade” da imagem; imagem muda, habitada pela
escrita da dor e da alegria; da dor na alegria, do fracasso da vitória, da vitória do
fracasso. A crueldade como exigência ética é um fio condutor do pensamento de
Nietzsche e de Artaud, e o axioma primordial da Estética da Crueldade, Estética como
Acontecimento.

89
É a tudo isso que fazemos alusão quando privilegiamos os conceitos de
acontecimento, devir, est-ética, razão nômade, pensamento órfão, inocência do devir,
pensamento indeterminado, rizoma e outros, e é com todos esses conceitos que estamos
tentando esboçar os primeiros jorros de uma Estética como Acontecimento. Alvo
singular do presente projeto: não responder, mas criar problemas, sob os traços da
Filosofia da Diferença. Como ultrapassar o hábito da experiência repetida no cotidiano
para uma região cruel, pensante, diferente? Como pensar uma Estética como
Acontecimento que não seja em si uma Estética da Crueldade? Ética da Crueldade que
passa pela escrita da fúria e atesta uma experiência cruel dos limites, sob a força de uma
crueldade radical que escreve com o próprio sangue o pensamento, antes de ter sido
tetanizado pela escrita, antes do estupro, do rapto da energia, do roubo da juventude do
pensamento calcinado pela transcrição. Essencialmente física, a escrita da crueldade
funciona como um cordão sanitário que “protege” o pensamento da morte anunciada, e
quase sempre perpetrada pelos efeitos devastadores da transcrição e da escrita.

A arte é uma experimentação criadora, um devir. Não é nem o modelo real nem
imaginário; nem o artista nem o espectador, é o ato de criação em si, e a experiência da
criação como acontecimento. O primordial é o caminho, a travessia, e não o objetivo
(Klee); é a obra de arte que se torna um monumento, no sentido de que ela existe em si e
não depende de outra coisa para existir.

Eis por que, na Estética como Acontecimento, não há dicotomias clássicas. Não
há mais sujeito ou objeto, menos ainda forma ou conteúdo. Não há mais imagem que se
define em relação a uma realidade. Não há mais nem exterior nem interior, todavia,
intensidades, sensações, invenções e afectos. Não há mais o artista que atribui à obra
sua significação, ainda menos, um espectador passivo, que recebe as expressões de uma
obra de arte. Há um devir, uma linha, que traça no movimento as formas, os objetos, os
encontros vibráteis e as formações.

É uma estética como experimento de possíveis que engendram possíveis, em um


retorno triturador de representações e conteúdos bem comportados...

A Estética como Acontecimento é uma fábrica para produzir meios de


existência, como possibilidades que não cessam de se recriar e surgem de novo.

Nossa contribuição, ao presente esboço – conjunto de traços, dobras, rastros: o


dentro/fora do pensamento – consiste por outro lado em cartografar as linhas de
passagem de uma força fugaz e polimorfa nos textos, na “obra”, que é igualmente uma
potência de abandono, de desalento, uma não obra impossível de traduzir, uma não
origem, mas começos de um pensamento que exige paradas e estratégias, obra como
“désoeuvrement”, engendrada por Blanchot como Escrita do desastre.

Há um ponto no qual Joyce é nietzschiano: quando mostra que o vicus of


recirculation não pode afetar e fazer girar um ‘caosmos’. Á coerência da
representação, o eterno retorno substitui outra coisa, sua própria cao-errância.177

90
1 Diferença e repetição. Rio de Janeiro. Tradução Luiz Orlando e Roberto Machado, Rio de Janeiro:
Graal, 1988, p. 253.

2 Idem., p. 254.

3 Idem., p. 218 e 220.

4 Idem., p. 229.

5 Idem., p. 228.

6 Idem., p. 228-229.

7 Idem., p. 230.

8 Idem., p. 225.

9 Idem., p. 273.

10 A sociedade contra o Estado. Cosac Naify: São Paulo, 2003.

11 Cf. Anne Sauvagnargues. Deleuze, l'empirisme transcendantal. Paris: PUF, 2010.

12 Cf. René Schérer “HOMO TANTUM. O impessoal: uma política”. In Éric Alliez (org) Gilles Deleuze:
uma vida filosófica. São Paulo: Editora 34, 2000 p. 24.

13 Jean-Luc Nancy. Idem., 2000, p. 116.

14 Gilles Deleuze e Félix Guattari. Mil platôs. Capitalismo e esquizofrenia. Vol. 3. Tradução Suely
Rolnik, p. 95.

15 Silvio Ferraz, “La formule de la ritournelle”, Filigrane. Musique, esthétique, sciences, société.
Numéros de la revue, Deleuze et la musique, mis à jour le : 20/01/2012, URL :
http://revues.mshparisnord.org/filigrane/index.php?id=420

16 Pierre Boulez, “Fragment : entre l’inachevé et le fini”, in Pierre Boulez. Œuvre :fragment (Catalogue
d’exposition), Paris, Gallimard/Musée du Louvre Éditions, 2008, p. 14.

17 Mil platôs. III. p. 95, Id., ibid.

18 Gilles Deleuze. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 2003, p. 152.

19 Id., Ibid.

20 Idem., p. 153.

21 Clarice Lispector. Rio de Janeiro: Nova Fronteira Água Viva, 1980, p. 77.

22 David Lapoujade. “Do campo transcendental ao nomadismo operário – William James” in Éric Alliez
2000, p. 268-269-270.

91
23 Abdelkebir Khatibi. La mémoire tatouée. Paris: Union Générale d’éditions. Col. 14,/18, 1978. p. 206.

24 Cf. J.H. Barthelemy Penser l’individuation. Simondon ou l’encyclopédisme génétique. Paris:


L´Harmattan, 2005.

25 Georges Simondon. L’individuation à la lumière des notions de forme et d’information. Grenoble: J.


Millon, 2005, p. 305.

26 Cf. J.H Barthelemy, 2005, p. 22.

27 Simondon. 2006, p. 65.

28 Deleuze. 2003, 4º p. 124-125.

29 Simondon. Idem., p. 306.

30 Deleuze. 1988, p. 393.

31 Simondon. 1964, p. 19.

32 Id., Ibid.

33 Cf. Gilles Châtelet. “Deleuze et la musique”. In Filigrane., 2012, p. 27. URL:


http://revues.mshparisnord.org/filigrane/index.php?

34 Ilya Prigogine. O fim das certezas - Tempo, Caos e Leis da Natureza. São Paulo: Editora UNESP,
1996.

35 Gilles Deleuze e Félix Guattari. Tradução Luis Orlandi. O Anti-Édipo, 2000 p. 100-101.

36 Idem., p. 30.

37 Silvio Ferraz Id., Ibid. 2012.

38 Deleuze. 4º ed. 2003, p. 124.

39 Cf. Sílvio Gallo. Deleuze e a Educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.

40 Gilles Deleuze. Crítica e clínica. Paris: Minuit, 1993, p. 13.

41 Deleuze e Guattari. 2010, p. 20 e 24.

42 Idem., p. 21.

43 Deleuze e Guattari. 2010, p. 108.

44 Deleuze e Guattari. 2010, p. 36.

45 Jean-Pierre Vernant. Mito & Política, São Paulo: Edusp. Tradução Cristina Murachco, 2009, p. 179.

46 Idem., p. 173.

47 Idem., p. 173 e 203.

48 Cf. Pol Droit : Leibniz selon Deleuze. Paris: Le Monde, 9 de setembro de 1988.

49 François Zourabichvil. In Alliez (org), 2000, p. 353.


50 Deleuze e Guattari. Mil platôs, vol. III, 1996, p. 27, e 2000, p. 228.

51 Gilles Deleuze. Proust e os signos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, Tradução Antonio Carlos
Piquet e Roberto Machado e 2º ed. 2003, p. 89.

52 Idem., p. 91.

53 Idem., p. 93-94.

54 Idem., p. 95.

55 Deleuze e Guattari. Mil Platôs. São Paulo: Editora 34, vol. 3, 1996, p. 9.

56 Idem., p. 9-10-11; cf. Daniel Lins. Antonin Artaud, O artesão do Corpo sem Órgãos. São Paulo:
Editora Lumme, 2011.

57 Id., p. 15 e 24.

58 Deleuze e Guattari. Mil Platôs, vol. 4, 1997, p. 108.

59 Alfred North Whitehead. O Conceito de Natureza. São Paulo: Martins Fontes, 1994, p. 63.

60 Gilles Deleuze, e Félix Guattari. O que é a filosofia? Trad. de Bento Prado Jr., Alberto Alonso Muñoz.
Rio de Janeiro: Editora. 34, 2000, p. 228.

61 Cf. Mathilde Monnier e Jean-Luc Nancy: “Le corps en échange.” Desse encontro nasce, em forma de
conversação, o livro Dehors la danse. Les éditions du mouvement, 2001.

62 Id. Ibid.

63 Cf. o extraordinário trabalho coletivo de Jean Rouch, Michèle Finck, Bernard Rémy, Christian
Delacampagne e Isabelle Ginot: Danse. Corps Provisoire. Cinéma Peinture Poésie. Paris: Armand Colin,
1992.

64 René Descartes. Œuvres philosophiques, vol. I, 1618-1637: Paris: Editora F. Alquier, Classiques
Garnier: 1963, p. 61.

65 Tzvetan Todorov. Eloge du quotidien. Essai sur la peinture hollandaise du XVIIème siècle. Paris: ed.
de Poche, 2010, p. 145.

66 Paul Klee, apud Merleau Ponty. L’oeil et l’esprit. Paris: Gallimard : 1964, p. 31 e 173.

67 In Alliez, 2000, p. 45.

68 Deleuze. 2003, 4ª ed., p. 323.

69 Idem., Série 21, p. 152.

70 François Zourabichvili. “Deleuze e o possível (Sobre o involuntário na política)”. In Alliez. 2000, p.


353.

71 Deleuze. 2003, 4ª ed.

72 Manola Antonioli. Resenha do livro de Anne Sauvagnargues, Deleuze. L’empirisme transcendantal.


PUF: Paris: 2010. In Manola Antonioli. “Deleuze, entre interprétaion et expérimentation”. La Vie des
idées, 8 juillet 2010. http://www.laviedesidees.fr/Deleuze-entre-interpretation-ethtml.

73 Gilles Deleuze. Conversações. São Paulo: Editora 34, 2000, p. 151.


74 Lacoste. Joris. “La nudité froide de Boris Charmatz”, Le Journal de l’ADC, Genebra: n. 14, abril,
1997, p. 8.

75 Gilles Deleuze e Félix. Guattari. L’Anti-Œdipe. Capitalisme et schizophrénie. Paris: Minuit, 1973, p.
46.

76 Rainer Maria Rilke Les Élégies de Duino, seguido de Sonnets à Orphée. Paris: Seuil. Coleção Points,
Poésie bilingue, 2006.

77 Cf. Boris Charmatz. Je suis une école. Paris: éditions Les prairies ordinaires, 2009, Boris Charmatz et
Isabelle Launay Entretien. - À propos d'une danse contemporaine, Dijon, CND/Les Presses du réel,
2003, Huesca, Roland. “Ce que fait Deleuze à la danse” In Gilles Deleuze et Félix Guattari. – Territoires
et Devenirs. Le Portique 20, Revue de philosophie et de sciences humaines. Paris: 2007, p. 149.

78 “O Homem-Árvore. Carta a Pierre Loeb” In Eu, Antonin Artaud. Tradução Aníbal Fernandes. Lisboa:
Hiena Editora, 1998, p. 105, cf. Daniel Lins, 2011.

79 Idem. p. 19.

80 Gilles Deleuze. Tradução Antonio Carlos Picquet e Roberto Machado. Rio de Janeiro: Forense, 2003,
2ª ed. p. 91.

81 Khatibi. 1978, p. 65.

82 Vernant. 2009, p. 239.

83 Khatibi. 1978, p. 91.

84 Deleuze. 4ª ed., 2003, p. 244-245.

85 Idem., p. 249.

86 Khatibi. 1978, p. 90; cf. Daniel Lins. “Khatibi: O livro de sangue” In: Revista Polichinello, número 11,
Belém, 2011.

87 Idem., 93.

88 Idem, p. 92.

89 Idem., p. 91.

90 Vernant, 2009, p. 175.

91 Deleuze, 4ª ed. 2003, p. 286.

92 Roland Barthes. Le plaisir du texte. Paris: Seuil, 1973, p. 65-66.


93 Deleuze. 2003, 4ª ed. p. 132.

94 David Lapoujade. “Do campo transcendental ao nomadismo operário – William James”. In Éric Alliez
(org.) 2000, p. 274 e 276.

95 Deleuze. 2003, 4ª ed., p. 136.

96 Idem., p. 286.

97 Id., Ibid.

98 Gilles Deleuze e Félix Guattari. Mil Platôs. São Paulo: vol. 4, 1997, p. 72.
99 Idem., p. 70-71.

100 François Ewal. Resenha publicada nas capas internas do volume 1ª da edição brasileira de Mil Platôs,
de Deleuze e Guattari. São Paulo: Editora 34, 1995.

101 Deleuze. 2003, 4ª, p. 255-256.

102 Carmelo Bene. Notre-Dame-des-Turcs. Tradução e prefácio Jean-Paul Manganaro. Paris: P.O.L.
2003, p. 23.

103 Vernant. 2009, p. 247.

104 Id., Ibid.

105 Philippe Mengue. 2012, p. 28.

106 Alliez (org) 2000, p. 116.

107 Id., Ibid, p. 116.

108 In Éric Alliez (org.) 2000, p. 495 a 504.

109 Idem. p. 273.

110 Nietzsche, F. O anticristo. Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

111 Deleuze. 2ª ed., 2003, p. 89.

112 Gilles Deleuze. Nietzsche et la philosophie. Paris: PUF, 1962, §6, p. 98.

113 Nietzsche. Crepúsculo dos Ídolos – ou como filosofar com o martelo. Tradução Marco Antonio
Casanova. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000, § 37.

114 Deleuze. Le Pli, Leibniz et le Baroque. Paris: Minuit, 1988, p. 47.

115 Id., Ibid.

116 Id., Ibid.

117 Pico De La Mirandola, Giovanni. De l’imagination/De imaginatione, edição bilíngue. Chambéry: Ed.
Comp’act, 2005, p 106.

118 Nietzsche. Ecce Homo. Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

119 Hegel, Friedrich. Cours d’esthétique. Paris: Aubier, 1995. Cf. Capítulo III da 3ª seção, da III parte:
“Epopeia, poesia lírica e drama”.

120 Deleuze e Guattari, 1997, p. 27-29.

121 Idem., p. 145.

122 Cf. « Saisir la pensée diagrammatique, lectures plurielles”. Bénédicte Letellier. Penser par le
diagramme de Gilles Deleuze à Gilles Châtelet, Revue TLE, n°22, Presses Universitaires de Vincennes,
2004.

123 Idem., p.193.

124 Idem., p.193.


125 Idem., p.196.

126 Deleuze. 1988, p.199.

127 Gilles Deleuze. Le bergsonisme. Tradução Luiz Orlandi, São Paulo : Editora 34, 1996, p. 9.

128 Gilles Deleuze. Leibniz et le baroque. Paris : Minuit, 1988, p. 189,

129 Deleuze, 2003, 4ª p 265-266; cf. Daniel Smith, «Deleuze’s Theory of Sensation: Overcoming the
Kantian Duality», in P. Patton (org.), Deleuze: A Critical Reader, Oxford and Cambridge, Blackwell,
1996, pp. 29-56.

130 Deleuze. Idem., p. 274-275.


131 Deleuze. 2003, 4ª, p. 271.

132 Etienne Souriau. Vocabulaire esthétique. Paris: PUF, 2004, p. 693.

133 Michel Foucault. Archéologie du savoir. Paris: Gallimard, 1969, p. 253; Deleuze. Foucault. Minuit:
Paris, 1986, p. 90-95.

134 Deleuze, Gilles. Qu’est-ce que l’acte de création, Conferência apresentada na Fundação Femis, em
Paris 17/05/1987, gravação pessoal; “A ideia de gênese na estética de Kant” (1963) In A Ilha deserta.
São Paulo: Iluminuras, 2006, p. 79 a 97; Jacques Rancière, “Existe uma estética deleuzeana”. In Gilles
Deleuze: uma vida filosófica. Éric Alliez (org.). São Paulo: Editora 34, 2000, p. 505 a 516.

135 Deleuze e Guattari 1997, p. 24.

136 Idem., p. 26 e 27.

137 Idem., p. 23.

138 Jean-Paul Manganaro, 2003, p. 30.

139 Id., Ibid, p. 30.

140 Idem., p. 31.

141 Daniel Lins. Antonin Artaud – O artesão do Corpo sem Órgãos. São Paulo: Editora Lumme, 2011.

142 Gilles Deleuze Le Pli – Leibniz et le Baroque. Collection “Critique”: Paris: 1988, p. 50.

143 Gilles Deleuze. L’Ile déserte et autres textes. Paris: Minuit, 2002, p. 244.

144 In Alliez (org.) 2000, p. 353.

145 Deleuze. 2003, 4º, p. 285 e 274.

146 Daniel Lins. “A escrita das origens: Artaud e Nietzsche". In Assim falou Nietzsche (orgs. Olímpio
José Pimenta Neto, Miguel Angel de Barrenechea). Rio de Janeiro: Sete Letras, 1999 p. 121-130.

147 Artaud. O Teatro e seu duplo. São Paulo: Martins Fontes, 2a. ed., tradução de Teixeira Coelho,
1999, p. 139.

148 Aristóteles. L’Ethique de Nicomaque. Tradução J. Voílquin, Paris: Garnier-Flammarion, 1956,


Livro VII, cap. V, p. 2 e 6.

149 Id. Ibid.


150 Arthur Schopenhauer. Le monde comme volonté et représentation. Paris: PUF, 1996, pp. 397 e
459ss.

151 Nietzsche, F. Oeuvres complètes. Colli, G.; Montinari, M. (Orgs.). Berlim/Nova Iorque/Munique.
Tradução Henri-Alexis Baatsch, Jean Bréjoux e Maurice de Gandillac. Paris: Gallimard, XIII, p. 190.

152 Artaud. 2ª ed. 1999, p 117-118.

153 Id.,Ibid.

154 Nietzsche. Oeuvres complètes, volumes, V, p. 228, IV, p. 205, I, 2, p. 284.

155 Idem.,VII, p. 147.

156 Artaud. 2ª ed. Id., Ibid.

157 Nietzsche. 1870-1873; vol.VII, p. 226-227.

158 Idem., vol. IV, p. 216.

159 Artaud. 2º ed. 1999, p. 133.

160 Nietzsche. Idem., vol. IV, p. 98.

161 Nietzsche. Idem.,vol. XII, p. 83-84.

162 Nietzsche. Idem., vol. VI, p. 65 e vol. II, p. 99.

163 Artaud. Idem., 2º ed. p. 23.

164 Nietzsche. vol. VII, p. 329 e VIII, vol. 1, p. 179.

165 Idem., VIII, vol. 1, p. 179.

166 Artaud. 2º ed. 1999, p. 39.

167 Idem., p. 119.

168 Daniel Lins. Antonin Artaud. O Artesão do Corpo sem Órgãos. São Paulo : Lumme, p. 2011, 40-44.

169 Nietzsche. vol. VI, p. 287; cf. Camille Dumoulié. Nietzsche et Artaud – Pour une éthique de la
cruauté. Paris: PUF, p. 77.

170 Nietzsche. vol. IV, p. 216.

171 Artaud. vol. IV, p. 100.

172 Nietzche. vol.VII, p. 238.

173 Dumoulié, 1992, p. 77.

174 Nietzsche. IV, p. 578 e 617. Sobre Vontade de potência como vida, cf. Vol. I, p. 242, XIX, 84.

175 Nietzsche. vol. VII, p. 150 e X, p. 232.

176 Nietzsche. vol. VII, p. 276, e 41; Artaud XV, p. 239, in Cahier de Roder; cf. Daniel Lins. Antonin
Artaud – O Artesão do corpo sem órgãos. São Paulo: Lume, 2011 p. 39ss; cf. “Nietzsche o elogio da
beleza plástica”, In Nietzsche e as ciências (orgs) Miguel de Barrenechea, Charles Feitosa, Paulo Pinheiro
e Rosana Suarez. Rio de Janeiro: 2011 p. 97 a 113; “Nietzsche e Artaud: por uma exigência ética da
crueldade”. In Assim Falou Nietzsche III – Para uma filosofia do futuro (orgs.) Charles Feitosa, Marco A.
Casanova, Miguel de Barrenechea e Rosa Dias. Rio de Janeiro: 200, p. 47 a 57.

177 Deleuze, 4ºedição, 2003 p. 269-270.

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