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Pessoal, não sou psicólogo, mas psicanalista.

Tirando o "psiché" dos nomes e do fato de


tratarem de uma parte comum do sofrimento humano, esta duas áreas são bem distintas. A psicanálise
que sigo tem muito mais a ver com a linguística de Saussure e Jakobson, com o estruturalismo de Levi-
Strauss, e depois, com uma linguística radicalmente distinta, propriamente lacaniana, do que com
estatísticas ou conceitos de normalidades, desvios e de transtornos. Na psicanálise, a hipótese de que
"somos onde não pensamos", uma inversão da máxima cartesiana, é basal, ou seja, o discurso dito
"racional" do paciente - é claro - importa, mas tanto quanto seus lapsos, suas associações
aparentemente sem sentido, seus "tiques", suas fobias, sonhos etc e tal. Partimos do pressuposto de
que todo paciente tem um dialeto próprio e de que nossa função é fazê-lo interessar-se por esse seu
dialeto, a ponto de que ele chegue a produzir por si próprio, reiteradamente, "significações" novas para
"palavras", "conceitos" ou "visões" que se pensavam sólidos e cristalizados. Isso demora para ocorrer.
Isso posto, vamos ao podacst.
Primeiramente, sobre o Eichmann, não podemos dizer que ele seja "um homem comum": ele era
uma peça importantíssima na logística das deportações em massa de judeus para os campos de
extermínio. Ele sabia o que fazia e para quem o fazia (Führer). Não foi para capturar um homem
comum que o Mossad lançou uma operação secreta na Argentina. Ele foi raptado e levado em segredo
para ser julgado em Israel. O julgamento foi ricamente relatado por Hanna Arendt em "Eichmann em
Jerusalém". Aliás, esse livro deve ser lido nessa época em que vivemos. Além de refletir sobre aquele
que age sobre as ordens de um Outro, ou para satisfazer os desejos de um Outro, há reflexões sobre a
"passividade" com que os deportados, em situação de extrema violência e desesperança, iam para morte
certa. Hanna Arendt também fala das deportações em outras partes da Europa. Muitos vão se chocar
com o fato de que quase a Europa inteira era nazista ou colaboracionista - diferentemente do que se fala
hoje em dia. Pode-se dizer que somente a URSS e a Inglaterra não eram. Ou seja, a grande maioria das
pessoas (mais de 95%) que habitavam os países que não eram do Eixo na Europa, preferiu submeter-se
aos nazistas - viver simplesmente - a resistir e arriscar-se à execução sumária, torturas etc. Isso diz
bastante sobre a nossa "condição humana". Meu tio foi torturado pelo Cel. Ustra por 3 meses. Quando
ele foi liberado, o Ustra disse-lhe que não tinha sido o ele, Ustra, quem o tinha machucado, mas a "Mãe
Pátria": "ela tinha punido um filho que enveredava para o mau caminho"; e ofereceu, "caridosamente",
dinheiro para que meu tio pegasse uma condução até o hospital, onde teve de sofrer uma cirurgia para
salvar os seus testículos. Ustra era um monstro - psicanaliticamente, um perverso - como Eichmann.
"Pessoas mais ignorantes tendem a ter mais certezas" ou "quanto mais se sabe menos assertivos
somos". Será mesmo que o conhecimento nos faz mais socráticos? O Conselho Federal de Medicina
deu apoio incondicional aos tratamentos precoces com cloroquina e outras baboseiras, apoiados por
suas "convicções inabaláveis" somente, por exemplo. No que esse "doutores" seriam ignorantes?
Olhando o mapa de votação da cidade de São Paulo, notei que o Grajaú deu 60% de votos para o
"douto" Haddad e 22% para o Tarcísio. Indianópolis, ou Cuzópolis, onde eu moro, deu 22% para o
Haddad e 41,82% para o "débil mental" do Tarcísio. Se pegarmos o grau de instrução médio das duas
regiões seríamos levados a crer que em Indianópolis o pessoal não tem nem o fundamental completo.
Se o problema é de conhecimento, cultura, de que conhecimento falamos?
Em outra parte, temos uma pesquisa em que pessoas têm de escolher entre figuras classificadas
previamente como "felizes", "alegres", "tristes", "que provocam medo" etc. Será que se pode dizer que
"felicidade", "tristeza" sejam conceitos objetivos? e a "democracia"? Será que um morador do Grajaú
diferenciaria a ditadura militar pela qual passamos, dessa democracia em que supomos viver, da mesma
forma que eu, que sou filho de um torturado pela ditadura, mas que nunca foi chamado de "neguinho"
nem nunca tomou tapa na cara de policial nem foi humilhado diariamente no trabalho por um chefe
sádico nem nunca ficou horas e horas esperando atendimento médico etc. E o que dizer de um conceito
fundamental, a "liberdade"? "Liberdade é uma palavra que o sonho alimenta, não há ninguém que
explique e ninguém que não entenda" (Cecília Meireles), poema com que termina o inesquecível "Ilha
das Flores". De que valem estatísticas se os conceitos que fundam tais pesquisas são tão vagos,
subjetivos?
Por último, queria falar do sobre o "falseamento da realidade". Muita gente já se perguntou se,
na década de 30 na Alemanha nazista, o alemão comum que tinha um vizinho judeu também comum
que tinha uma família comum, com filhos comuns que brincavam com os filhos desse alemão comum,
se este alemão não via em seu vizinho judeu uma refutação de tudo o que a propaganda nazista dizia
sobre a "periculosidade dos judeus". Pois bem, se a ideologia nazista não estivesse "funcionando a
pleno vapor", sim, seria uma refutação. Caso contrário, este alemão pensaria "veja como estes judeus
são perigosos e devem mesmo ser exterminados, pois eles se disfarçam tão bem como gente comum
que chego a pensar que aqueles filhos-da-puta são gente de bem, como eu".
A realidade não é um dado. O desejo se sobrepõe à razão em determinadas situações, e não são
tão raras assim. A razão - "prostituída" - forja a realidade. Em situações de fratura social isso só fica
mais escancarado.

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