Você está na página 1de 10

Para a tradução simultânea PORTOGHESE

(em expressão brasileira)

Castelgandolfo, 22 de maio de 2008

A auto-realização no pós-modernismo
(Pietro Andréa Cavaleri)

1. Do desajuste da civilização ao desajuste da solidão

Acolhendo e assumindo a visão do homem, já descrita pelo modelo


antropológico darwiniano, a psicanálise clássica defende a integridade do indivíduo
humano a partir da sua corporeidade, da sua sexualidade, de modo especial da sua
pulsão inconsciente, que na reflexão freudiana torna-se a dimensão fundamental do
psiquismo em si. Em Viena, no início do século XX, caracterizada pelos paradigmas
culturais extremamente rígidos e por instituições estatais fortemente repressivas,
Freud focaliza a fratura entre o homem, visto na sua pulsão espontânea, e as regras
sociais, totalmente distantes das suas exigências individuais.
No contexto cultural a teoria das pulsões inconscientes se revela como o
reconhecimento mais revolucionário da integridade individual, da "natureza" que age
no homem. A psicanálise se apresenta como uma forma de "tratamento" não
repressivo e profundamente respeitosa da condição humana; é uma tentativa muito
criativa de conciliar as tensões entre as pulsões do indivíduo e as exigências culturais
da comunidade, chegando assim a um controle das pulsões e a uma adaptação
racional à realidade social, que de outra forma seria impossível.
Se Freud mostra a coragem de acolher a necessidade do homem moderno de
ser reconhecido na sua dimensão pulsional e inconsciente, a psicologia humanística
americana é capaz de se abrir para outra exigência moderna: o direito de cada
homem de realizar si mesmo e ser feliz, o direito de adequar a disposição complexiva
da sociedade às exigências individuais. O tratamento do mal-estar (disagio)
provocado pela civilização não pode consistir numa renúncia consciente e racional,
numa passagem do princípio do prazer para o da realidade, mas num apoio à plena
expressão individual.
Muito antes ds outras escolas de pensamento, a psiquiatria fenomenológica
alerta o homem ocidental para as ameaças dos novos paradigmas culturais

714841812.doc 1.
emergentes. De grande relevo são as reflexões de Minkowski sobre o tema do tempo
e da saúde mental1. Analisando a relação que existe entre o tempo vivido e o
sofrimento mental, ele coloca em evidência alguns estilos de vida típicos da cultura
ocidental, que abrange em si o “tudo depressa” maniacal e hiperativo e o “jamais”
depressivo.
Minkowski coloca em evidência também a vivência histérica. Nela desaparece
o tempo do encontro e está fechado o tempo da comunicação com o outro. No estilo
"histérico" se manifesta plenamente uma modalidade disjuntiva de usar o tempo
para si e o tempo para os outros; de modo que, enquanto desaparece o tempo
comunitário, falta a dimensão histórica da vida e diminui a coerência da própria
história.
Na Europa dos anos sessenta e da contestação, o movimento
"antipsiquiátrico" vai ver no doente mental o portador de uma deficiência que
pertence a uma sociedade doente e afirmará a necessidade de adaptar a
comunidade ao doente e não vice-versa 2. O reconhecimento do direito a ser feliz, o
conceito da doença mental como expressão de uma sociedade coercitiva e desumana
representam o ponto culminante de um percurso através do qual a psicologia do
século XX acolhe e assume inteiramente o conceito do indivíduo expressa pela
cultura moderna.
Todavia, chegando ao final desse percurso, a psicologia começa a descobrir as
novas formas de desajuste mental, as contradições aberrantes de um indivíduo que,
deixando para trás as eufóricas ilusões da modernidade, se descobre só e inseguro,
vítima da ausência de regras e de valores partilhados, mas também da dependência
dos outros e do conformismo 3. Com extrema nitidez as reflexões de Kohut captam o
crepúsculo do Homem culpado e descrevem o novo aparecimento do Homem
Trágico, desejoso de ser reconhecido não mais nas suas pulsões inconscientes ou
nas suas exigências de integração, quanto na sua necessidade de pertinência
acolhedora e respeitosa da sua individualidade 4.
Kohut se dá conta de que a psicanálise clássica não pode mais iluminar o
amplo espectro da psicopatologia humana contemporânea, nem outros fenômenos
psicológicos que se colocam fora da situação clínica. Ela não consegue analisar uma
existência humana fragmentada, enfraquecida, descontínua. Não pode explicar “a
luta do paciente que sofre de um distúrbio narcisista da personalidade para curar-

1
. Cfr. E. Minkowski, Il tempo vissuto, tr. it., Einaudi, Torino 1971.
2
. Cfr. R.D. Laing, L’Io e gli altri, tr. it., Sansoni, Firenze 1969 ; R.D. Laing, A. Esterson, Normalità e
follia nella famiglia, tr. it., Einaudi, Torino 1970.
3
. Cfr. G. Salonia, Dialogare nel tempo della frammentazione, in F. Armetta, M. Naro (a cura di), Impense
adlaboravit, Pontificia Facoltà Teologica di Sicilia, Palermo 1999, pp. 571-585.
4
. Cfr. H. Kohut, La guarigione del Sè, tr. it., Boringhieri, Torino 1980.

714841812.doc 2.
se”5 ou o desespero sem culpa de quem descobre não ter realizado os modelos
fundamentais e os ideais centrais do próprio Si-mesmo.
“A metapsicologia dinâmica estrutural – afirma Kohut – não faz justiça a esses
problemas do homem, não pode compreender os problemas do Homem Trágico” 6. As
conceitualizações da teoria clássica explicam adequadamente os aspectos conflituais
do complexo de Édipo, “fonte genética” que origina o Homem Culpado e as suas
psiconeuroses, mas não explicam a psicologia do Si-mesmo fragmentado (da
esquizofrenia aos distúrbios narcisistas da personalidade) e do Si-mesmo esvaziado
(a depressão privada de conteúdos, o mundo privado de ideais), não conseguem
colher os distúrbios psíquicos e os conflitos do Homem Trágico da pós-modernidade.
O Homem Culpado vive dentro do princípio do prazer, o Homem Trágico vai
além do princípio do prazer e das formulações psicológicas de Freud para falar
daquele sofrimento novo que nasce numa relação parental fragmentada,
descontínua, incapaz de reconhecer, de exprimir empatia, de sustentar uma sadia
auto-afirmação do Si-mesmo. As chaves de leitura para compreender a
psicopatologia do homem contemporâneo não devem ser buscadas mais na fixação
das pulsões ou nas difundidas deficiências do Eu, mas no contexto de uma relação
parental deficitária, nas respostas empáticas gravemente desajustadas dos pais. É na
dimensão relacional que deve ser buscada agora a origem de um Si-mesmo fraco e
fragmentado, o qual só com o objetivo de se defender é que procura metas de
prazer.
As contribuições de Kohut demarcam um dos ápices da que foi definida a
“revirada relacional” em âmbito psicanalítico 7. Esta importante "revirada", a que
deram o uma decisiva contribuição autores como Fairbairn, Sulliva, Fromm, Horney,
Balint, Kohut e, no âmbito evolutivo, Klein, Mahler, Stern e outros ainda, constitui
uma importante mudança no modo de conceber a vida mental do homem. À luz da
“revirada relacional”, de fato, ela não é mais concebida como um evento puramente
intrapsíquico, expressão de uma “autonomia única”.
A perspectiva marcante e individual da psique é superada a favor de uma
perspectiva decididamente interpessoal, elaborada pelos teóricos das relações
objetais e da psicologia do Self. Nesta mudança de paradigma, a relação não é
somente o lugar significativo dentro do qual podemos exprimir as próprias emoções,
assim como tinha intuído a psicologia humanística, mas se torna algo de muito mais
importante e é o espaço fundamental de onde nasce a mente humana.

5
. H. Kohut, op. cit., p. 211.
6
. Ibidem
7
. Cfr. S.A. Mitchell, Il modello relazionale. Dall’attaccamento all’intersoggettività, tr. it., Raffaello
Cortina, Milano 2002.

714841812.doc 3.
A abertura a um paradigma relacional em psicologia não é devido apenas às
abordagens dos psicanalistas "revisionistas", mas também a outras contribuições
como aquelas expressas de modo significativo por Bateson 8, à abordagem sistêmica-
relacional9 e cognitivista10. Um impulso especial nesta direção foi dado também pelos
últimos desenvolvimentos da psicoterapia da Gestalt que, partindo do conceito de
contato inicialmente elaborado por Perls, eficazmente destacaram que a relação
organismo-ambiente é, desde o nascimento, o "lugar" e a origem de cada evento
psíquico. À luz desse conceito, a vida mental não irrompe de dentro, como expressão
de obcuros e inconscientes dinamismos intrapsíquicos, nem de fora, como reação a
específicos estímulos ambientais, mas nasce da interação constante entre o
organismo e o seu ambiente11.
A importante passagem de um paradigma intrapsíquico ao relacional é
imposta, em psicologia, pela necessidade de compreender e tratar, com instrumentos
mais adequados, as novas formas de mal-estar expressas pelo homem
contemporâneo e em relação às quais as precedentes teorizações da psicanálise
clássica e da psicologia apareceram limitadas.
O homem de hoje, aquele que emerge de uma sociedade complexa e
globalizada, de uma cultura ocidental, já fragmentada, órfã dos grandes sistemas
filosóficos e religiosos, de uma comunidade que se tornou instável pelos vínculos
interpessoais "líquidos" e descontínuos, é um novo tipo de homem, diferente do
homem moderno, com características e modelos comportamentais totalmente
inéditos, é o indivíduo pós-moderno12.

2. Os “novos sintomas”, ou seja, a impossibilidade de se realizar sem o outro

A definitiva liberação de qualquer forma de coerção de pertinência e a


exaltante afirmação da autonomia individual caracterizam a “sociedade narcisista”
descrita por Lasch13. Contudo é dentro de uma comunidade desagregada, onde
ninguém controla ninguém e ninguém cuida de ninguém, que se torna impossível
receber uma confirmação da própria identidade e da própria diferença. Numa

8
. Cfr. G. Bateson, Verso una ecologia della mente, Adelphi, Milano 1976.
9
. P. Watzlawick, J.H. Beavin, D.D. Jackson, Pragmatica della comunicazione umana. Studi dei modelli
interattivi delle patologie e dei paradossi, tr. It., Astrolabio, Roma 1971.
10
. Cfr, V.F. Guidano, Il Sé nel suo divenire. Verso una teoria cognitiva post-razionalista, tr. it., Bollati
Boringhieri, Torino 1992.
11
. Cfr. M. Spagnuolo Lobb (a cura di), Psicoterapia della Gestalt. Ermeneutica e clinica, Franco Angeli,
Milano 2001; M. Spagnuolo Lobb. G. Salonia, A. Sichera, Postfazione, in F. Perls et al., Teoria e pratica della
Terapia della Gestalt, op. cit.
12
. Su questo argomento cfr. Z. Bauman, Voglia di comunità, tr. it., Laterza, Roma-Bari 2003; Amore
liquido, tr. it., Laterza, Roma-Bari 2004; J.F. Lyotard, La condizione postmoderna. Rapporto sul sapere,
Feltrinelli, Milano 1981; G. Vattimo, La fine della modernità, Garzanti, Milano 1985.
13
. Cfr. C. Lasch, La cultura del narcisismo, tr. it., Bompiani, Milano 1981.

714841812.doc 4.
sociedade fragmentada, onde o vínculo com o outro vai desaparecendo do horizonte
individual, a realização de si se torna dramática e impossível 14.
O direito de afirmar a própria subjetividade, de aspirar à própria auto-
realização, se torna um desafio doloroso e frustrante. O indivíduo encontra a
insuperável dificuldade de inserir o próprio ponto de vista num projeto comum, que
pode ser partilhado pelo outro, pela família, pela cidade. Se o homem teorizado por
Freud sofre o mal-estar produzido por uma civilização que o reprime, impondo-lhe a
renúncia à satisfação das próprias pulsões; o homem revelado pela psicologia
contemporânea se descobre órfão de um outro que o pode reconhecer,
dolorosamente incapaz de estabelecer um vínculo significativo e duradouro com a
família e com a comunidade.
Ele passa a se confrontar com um mal-estar que não provém mais do caráter
repressivo e moral da civilização, mas de um impulso que o força ao prazer, ao
consumo insatisfatório e ao vazio das coisas, que dificulta a formação da sua
subjetividade individual e o pleno acesso à auto-realização.
O hiperativismo, uma vida sexual desregrada, o uso de vários tipos de droga e
do álcool, os distúrbios alimentares, a violência, aparentemente gratuita e imotivada,
aparecem como uma inclinação compulsiva à ação, que é típica do homem
contemporâneo e que manda ao quadro clínico da “personalidade borderline” 15. Uma
personalidade que tem como sua base um narcisismo ao mesmo tempo grandioso e
patológico, a ponto de impedir qualquer tipo de aproximação do outro. O sentido de
vazio, as “angústias da separação” e as “angústias da intrusão”, que a caracterizam,
não encontram alguma solução na clínica clássica das neuroses 16.
A experiência traumática da indiferença e do abuso, produzida pelo adulto,
constitui uma constante cada vez mais difundida na infância de hoje. O êxito do
trauma é muitas vezes uma "paralisia" cognitiva e afetiva, que torna mais difícil o
acesso à função simbólica e impede a possibilidade de elaborar representações
adequadas de si e do outro17. Esta “fraqueza do registro simbólico” parece constituir
um dos elementos mais comuns, que iguala os novos sintomas expressos pelo
homem contemporâneo18.
É evidente que, desde as primeiras fases do desenvolvimento, a capacidade
do sujeito de atribuir significado às suas emoções, de representar a sua realidade, de
simbolizar as suas experiências, depende da presença e da resposta do outro, da
14
. Cfr. G. Salonia, Dialogare nel tempo della frammentazione, op. cit.
15
. Cfr. O. Kernberg, Sindromi marginali e narcisismo patologico, Boringhieri, Torino 1978; Disturbi
gravi della personalità, Bollati Boringhieri, Torino 1997.
16
. Cfr. A. Green, Psicoanalisi degli stati limite. La follia privata, tr. it., Raffaello Cortina, Milano 1991;
Idee per una psicoanalisi contemporanea, tr. it., Raffaello Cortina, Milano 2004.
17
. Cfr. P. Greenacre, Studi psicoanalitici sullo sviluppo emozionale, tr. it., Martinelli, Firenze 1979.
18
. Cfr. L. Brusa Il trauma nella clinica psicoanalitica, in D. Cosenza, M. Recalcati, A. Villa (a cura di),
Civiltà e disagio. Forme contemporanee della psicopatologia, Bruno Mondadori, Milano 2006, pp. 58-92.

714841812.doc 5.
qualidade da relação e da comunicação que circula entre os dois 19. O sentido de não
existência, de irrealismo, de vazio, que deriva da ausência do outro, a falta de
valores ou ideais que com ele se poderia partilhar, parecem estar na origem das
múltiplas formas de dependência hoje existentes 20. De alguma forma é possível
afirmar que o objeto da dependência não só substitui, para o consumidor, um outro
que não existe ou que é doloroso contatar, mas consente que ele adquira uma
identidade que de outra maneira jamais conseguiria assumir no atual contexto
social21.
O objeto de dependência torna-se fonte de identidade e elemento de
compensação imaginário da frustração derivante da ausência ou da presença
inadequada do outro. Onde essa evidência se exprime mais é, creio, nos distúrbios
alimentares. Desde o nascimento o encontro com o alimento constitui para a criança
o encontro com o primeiro dom recebido da mãe, representa o relacionamento com
o outro22. É fácil, então, intuir como o relacionamento alterado com o alimento é
para o homem contemporâneo um espelho do relacionamento alterado com o outro.
É a ausência do outro, o desaparecimento de qualquer referência, simbólica e
real, do outro que impele o indivíduo à auto-referência, a uma exasperadora atenção
pelo próprio corpo, não só no plano estético, mas também no do “prazer”.
Desaparecendo ou cessando qualquer possibilidade de serem gratificados pela
relação com o outro, de "gozar" da sua presença, ao homem de hoje só resta
exasperar, até a patologia, toda a forma de “prazer” que provém da própria
existência corpórea. Não é raro que, a desmedida concentração no próprio corpo,
faça perceber que a própria vida está fora de qualquer limitação, que é sem limite e
sem controle. É este o início de uma experiência muito difundida, aquela do pânico.
Se na angústia neurótica o sujeito experimenta a pressão exercitada pelo
limite, no pânico ele sofre a perda do limite e se desfazem os vínculos 23. O fato de
que o indivíduo tenha desfeito os vínculos que o unia à comunidade, aos seus ritos,
aos seus ideais, por um lado o libertou definitivamente da obrigação e do controle,
mas por outro o impeliu na direção de uma desesperada deriva, feita de solidão e de
isolamento, onde é impossível se proteger da angústia e da insegurança.
Na época do pós-modernismo, em que o outro parece eclipsado e a família é
inconsistente, os ataques de pânico são expressão de uma vida que se descobre
privada de margens capazes de contê-la e de protegê-la. O que se esconde por trás
19
. Cfr. G. Liotti, Le opere della coscienza, Raffaello Cortina, Milano 2001.
20
. Cfr. R. Pozzetti, Teorie dell’alcolismo e delle tossicodipendenze, in D. Cosenza et al. (a cura di), Civiltà
e disagio, op. cit., pp. 131-163.
21
. Cfr. F. H. Freda, Psicoanalisi e tossicomania, tr. it., Bruno Mondadori, Milano 2001.
22
. Cfr. D. Cosenza, L’obesità nelle nuove forme del sintomo, in D. Cosenza et al.(a cura di), Civiltà e
disagio, op. cit., pp.227-254; J. Lacan, Libro IV. La relazione d’oggetto, tr. it., Eunaudi, Torino 1996.
23
. Cfr. M. Focchi, Gli attacchi di panico, in D. Cosenza et al. (a cura di), Civiltà e disagio, op. cit., pp.
195-226.

714841812.doc 6.
do ataque de pânico é um dramático pedido de relações para reconstruir a
pertinência constitutiva de cada identidade íntegra e plena 24.
O mal-estar psíquico produzido pelos ataques de pânico e, em geral, pelos
“novos sintomas”, constitui então um tipo de “apelo à relação” 25, de chamado a uma
experiência relacional capaz de integrar criativamente as duas necessidades
constitutivas do ser humano: aquela de se realizar, de ser plenamente si mesmo, e
aquela de pertencer, de viver-com-o-outro 26. Colhido nas suas multíplices formas, o
mal-estar psíquico do homem contemporâneo exprime o clamoroso fracasso da sua
capacidade de conjugar de modo criativo esses dois impulsos fundamentais, de
forma que ele ou anula a auto-afirmação ou se priva da pertença 27.
Naquela que foi definida “a sociedade narcisista”, o homem aprendeu a se
mover livremente, seguindo a lógica da auto-suficiência e da auto-afirmação,
superando os sentimentos de culpa, atenuando os vínculos afetivos. Sucessivamente,
na sociedade pós-narcisista desses últimos anos, o homem experimentou não só a
dificuldade de constituir a própria identidade numa sociedade feita de indivíduos
isolados, mas também a desorientação de se situar, sem adequadas competências
relacionais, diante de um mundo complexo, rico de potencialidades e atrações, mas
ao mesmo tempo inacessível e não acolhedor28.
O aparecimento, no mundo ocidental, do Homem Trágico e o emergir urgente
dos “novos sintomas” demonstraram com toda a evidência que o indivíduo não pode
auto-realizar-se nem afirmando si mesmo contra o outro, nem afirmando si mesmo
sem o outro. A formação da sua identidade e a plena realização de si mesmo são
possíveis somente dentro daquele rastro vital e nutriente que é a relação com o
outro. Não é por acaso que o homem relacional constitui hoje o modelo
antropológico de referência que, como vimos, é delineado em grande parte pela
psicologia contemporânea.
Neste confuso início de milênio, a pesquisa psicológica recorda ao homem que
a sua possibilidade de se realizar em contraposição ao outro ou sem o outro é
clamorosamente fracassada e lhe indica a necessidade de inventar novos paradigmas
culturais que saibam integrar, numa inédita dinâmica de reciprocidade, a realização
de si com aquela do outro. Este último (o outro, a comunidade, o estrangeiro, o
diferente, etc.) deixa, então, de ser para o indivíduo uma presença ameaçadora ou

24
. G. Salonia, Cambiamenti sociali e disagi psichici, in G. Francesetti (a cura di), Attacchi di panico e
postmodernità. La psicoterapia della Gestalt fra clinica e società, Franco Angeli, Milano 2005, p. 47.
25
. Cfr. A. Sichera, Un confronto con Gadamer: per una epistemologia ermeneutica della Gestalt, in M
Spagnuolo Lobb (a cura di), Psicoterapia della Gestalt. Ermeneutica e clinica, op. cit., pp. 17-41.
26
. Cfr. G. Salonia, Sulla felicità e dintorni, Argo, Ragusa 2004.
27
. Cfr. G. Salonia, Disagio psichico e risorse relazionali, in “Quaderni di Gestalt”, n° 32/33, 2001, pp. 13-
22.
28
. Cfr. G. Salonia, Cambiamenti sociali e disagi psichici, op. cit.

714841812.doc 7.
castradora e se evidencia, ao invés, como termo de referência indispensável para a
sua própria fundação e para a sua real manifestação.

3. Do homo natura ao homo reciprocus: os novos percursos da auto-realização

O horizonte, que se descerra a partir do homem relacional, contém no seu


interno importantes riquezas, que a pesquisa psicológica nestes anos está
esmiuçando e focalizando. É o caso, por exemplo, daqueles estudos que colocam em
relevo a dinâmica da reciprocidade na experiência relacional. De fato, não só a
relacionalidade enquanto tal, mas sobretudo a relação de reciprocidade estaria à
origem da mente humana, constituiria o fundamento da saúde psíquica e a condição
indispensável para a plena realização da personalidade individual.
A relação mãe-filho descrita por Stern está toda centralizada na implicação
recíproca, reconhecendo-se, “sintonizando-se”29. Surrey, Kaplan e Jordan teorizam,
no âmbito clínico, o conceito de empatia mútua, afirmando que em cada homem não
existe somente a necessidade de ser compreendido (necessidade de empatia), mas
também o de compreender, de ser empático com os outros 30. Beebe, Jaffe e
Lechmann, conduzindo importantes pesquisas sobre a comunicação diádica na
primeira infância, descrevem as dinâmicas em termos de “regulação mútua”, “mútuo
reconhecimento”, “relações recíprocas”31.
Os novos desenvolvimentos da psicoterapia da Gestalt teorizam a necessidade
de inscrever a auto-regulação do organismo num princípio ainda mais compreensivo,
ou seja, na auto-regulação da relação, de modo que não é o organismo que se auto-
regula, mas a relação que se desenvolve entre os interagentes32. Bruner destaca que
o reconhecimento recíproco é uma experiência indispensável para o nascimento e a
evolução do self. Narrando-se e ouvindo as narrações dos outros, reconhecendo o
outro e é por ele reconhecido, o indivíduo encontra o acesso à própria identidade
subjetiva, ao próprio self e modifica de modo vital o sistema cultural ao qual
pertence33.
Fonagy e o seu grupo de pesquisa indagaram a natureza da mente humana,
examinando a estreita interdependência existente entre a compreensão de si e
aquela do outro. Uma relação de reciprocidade, bem orientada, com quem cuida da
criança, cria nela um sentido de si autônomo e robusto, produzindo efeitos positivos

29
. Cfr. D. Stern, Il mondo interpersonale del bambino, tr. it., Bollati Boringhieri, Torino 1987.
30
. Cfr. J.L. Surrey, A.G. Kaplan, J.V. Jordan, Empathy rivisited, in Work in progress, Stone Center,
Wellesley 1990.
31
. Cfr. B. Beebe, J. Jaffe, F.M. Lechmann, A diadic system view of communicatio, in N.J. Skolnick, S.C.
Warshw (a cura di), Relational perspectives in psychoanalysis, The Analitic Press, Hillsdale 1992.
32
. Cfr. G. Salonia, Cambiamenti sociali e disagi psichici, op. cit.
33
. Cfr. J. Bruner, La ricerca del significato, tr. it., Bollati Boringhieri, Torino 1992.

714841812.doc 8.
que se estendem também à vida adulta. A reciprocidade ou regulação recíproca está
na origem dos processos de “mentalização” e do aparecimento da “função reflexiva”.
Uma criança, que pode refletir-se positivamente nessa pessoa, se torna capaz de
conceber o pensamento do outro e de ativar uma adequada representação de si 34.
As pesquisas e as teorizações, que só mencionei, confirmam que, no plano
antropológico, a matriz relacional da reciprocidade delineia um novo modelo de
homem que, com um neologismo já em uso 35, poderíamos chamar homo reciprocus,
Trata-se de um homem que conhece si mesmo, se identifica consigo mesmo só se
alguém, um outro, o vê, o reconhece, o individua. Ele pode se sentir visto,
reconhecido e individuado se, por sua vez, é capaz de ver, reconhecer a individuar o
outro.
É desta densa rede, feita de mútua identificação, que tem origem a mente
humana. Dela desabrocha o bem-estar psíquico de cada homem e torna-se possível
a atuação das suas potencialidades. Poderíamos afirmar que se o homem natura36,
traçado com fortes tintas por Freud, recupera e legitima as forças da natureza que,
com misterioso e inconsciente ímpeto, agem em cada um de nós, o homo reciprocus,
delineado pela psicologia contemporânea, recupera e legitima a dimensão relacional,
única que pode fazer nascer e adquirir significado cada indivíduo em si.
O homo reciprocus, que a psicologia apresenta à cultura de hoje e à
civilização do novo milênio, exprime e realiza si mesmo, abrindo-se para uma
dinâmica relacional na qual o eu e o outro têm implicações recíprocas, se descobrem
“co-construtores” e usuários de um benesse comum, único e indivisível.Trata-se de
uma aquisição que a cultura grega já tinha em parte intuído quando, com
Aristóteles37, afirmava que a felicidade não pode de modo algum ser uma experiência
solitária. Trata-se de um assunto antropológico que, desde as suas origens, o
cristianismo assumiu inteiramente, concebendo o homem como reflexo de um Deus
Trindade38, ou seja, de um Deus Relacional39.
Hoje, após a legítima afirmação da dignidade individual expressa pela cultura
moderna, se chegou ao momento de ir além do imperativo kantiano. Se ontem, com
força e lúcida inteligência, Kant exortava ao respeito absoluto da dignidade de cada
homem, entendido como fim e jamais como meio; nos tempos de hoje é preciso
afirmar, com a mesma decisão e com previsão, a necessidade do recíproco

34
. Cfr. P. Fonagy, M. Target, Attaccamento e funzione riflessiva, tr. it., Raffaello Cortina, Milano 2001.
35
. Cfr. E. Pulcini, L’individuo senza passioni, Bollati Boringhieri, Torino 2001.
36
. Cfr. P. Balestro, Introduzione all’antrpoanalisi, Bompiani, Milano 1976; L. Binswanger, Essere nel
mondo, tr. it., Astrolabio, Roma 1973.
37
. Cfr. Aristotele, Etica nicomachea, Rusconi, Milano 1979.
38
. Cfr. K. Hemmerle, Tesi di ontologia trinitaria. Per un rinnovamento del pensiero cristiano, tr. it., Città
Nuova, Roma 1996.
39
. Cfr. J. Ratzinger, Introduzione al cristianesimo, tr. it., Queriniana, Roma 2005.

714841812.doc 9.
reconhecimento dessa dignidade quer como espaço de realização da pessoa quer
como experiência que dá significado ao ser e à ação individual 40.
O homo reciprocus, revelado pela psicologia, representa uma clara
contribuição para esta importante direção. De fato, ele existe como sujeito individual
unicamente em força do reconhecimento que recebe de outros e que aos outros
concede. A escolha de abrir-se à relação com o outro, na intensa e vital dinâmica do
recíproco reconhecimento, constitui para o homem de hoje a chave de solução
necessária para realizar autenticamente si mesmo. A “escolha relacional” não
representa para ele uma opção entre as muitas possíveis, mas uma orientação
decisiva da qual pode depender o seu próprio futuro.

.
40
Cfr. P. Coda, Sulla logica trinitaria della verità cristiana, in “Nuova Umanità”, 2005, n.157, pp. 57-75;
G.M. Zanghì, La città: Babilonia o Gerusalemme?, in “Nuova Umanità”, 2006, n.167, pp. 513-517.

714841812.doc 10.

Você também pode gostar