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Para a tradução simultânea PORTOGHESE

(em expressão brasileira)

Congresso de Psicologia
Centro Mariápolis, maio de 2008

A PESSOA EM RELAÇÃO: QUAL MODELO DE REFERÊNCIA?


Vera Araújo

Esta minha breve exposição tem um objetivo ambicioso e, humilde, porque


consciente de poder realizá-lo só em parte. Procurarei salientar e elucidar alguns
elementos do modelo antropológico que o texto de Chiara Lubich – A ressurreição
de Roma – contém e “esconde”. Porque, como ela mesma afirma, é questão de
“abrir um novo humanismo” que permita aos homens e mulheres da modernidade
não só de encarar os novos desafios com os quais se devem confrontar, mas
sobretudo dar um salto de qualidade, de crescimento, de amadurecimento no
processo da humanização.
E’ claro que poderei indicar apenas algumas características deste novo tipo
de homem que se vai delineando e de quem a Lubich oferece uma interessante e
fascinante visão ontológica e experiencial, não só neste texto mas em toda a sua
doutrina.
Trata-se de refletir sobre “pessoa em relação”. Razão que nos faz assumir
uma atitude intelectual de grande respeito, porque nos encontramos diante de uma
realidade coberta, de certo modo, pelo “mistério” e que só pode ser compreendida
através de múltiplas perspectivas: espiritual e mística, teológica, psicológica,
antropológica, filosófica, sociológica, e assim por diante. Dizer pessoa, significa dizer
ser autônomo, único e irrepetível, dotado de razão e, ao mesmo tempo, um ser que
está com os outros, em última instância quer dizer estar-em-relacionamento. A
pessoa traz em si um ímpeto existencial que a move em direção aos seus
semelhantes. A pessoa é um novelo de necessidades, estímulos, tendências,
desejos e aspirações, que formam um conjunto orgânico, articulado e dinâmico,
fundamental para a vida de cada um.
Horkhein e Adorno numa série di lições à Escola de Francoforte assim se
exprimem.
«Afirmando que a vida humana é essencial e não apenas casualmente uma
convivência, se recoloca em questão o conceito de indivíduo como último ator social.
Se como fundamento da sua existência o homem é através de outros, que são os

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seus semelhantes, e só por eles é o que é, então não pode ser definido como um
ser indivisível e singular, mas um ser que participa e se comunica com os outros.
Antes de ser também indivíduo, o homem é um dos semelhantes, se relaciona com
os outros antes de se referir explicitamente a si mesmo. E’ um momento dos
relacionamentos que vive antes de poder chegar eventualmente a se
autodeterminar. Tudo isto se exprime no conceito de pessoa (...)».
Parece-me de colher aqui um ponto fundamental na história e na
compreensão do mistério do ser humano. Como conjugar identidade e
sociabilidade? De onde surge esta ontológica necessidade de Ego em direção a
Alter? Como é possível a harmonia destas duas tendências que na vida, muitas
vezes, são contrastantes e contraditórias e, portanto, fonte de sofrimento e de
anomia1?
Para os cristãos, que crêem, a fonte de onde jorra esta comunhão entre
pessoas é a própria Trindade, modelo de unidade, reflexo da vida íntima de Deus,
Uno em Três Pessoas (cf encíclica Sollicitudo rei socilis n. 40).
A Lubich não vê este modelo abstrato ou distante. E’ um modelo que, por
meio e em Jesus, quer e deve ser realizado na terra entre os homens.
Ela escreve: «Devemos procurar imitar a vida da Santíssima Trindade,
amando-nos entre nós, com o amor que o Espírito Santo infundiu nos nossos
corações, como o Pai e o Filho se amam entre eles (...). Desde o início do
Movimento (dos Focolares) foram relevantes para nós, as palavras de Jesus na
oração da unidade: “Como tu, Pai, estás em mim e eu em ti, sejam também eles
uma coisa só” (Jo 17, 2-21). Compreendemos que nos devíamos amar até nos
consumar em um e reencontrar no uno a distinção. Como Deus que, sendo Amor, é
Uno e Trino» (Aula por ocasião da outorga do doutorado honoris causa em teologia
conferido pela Universidade de Trnava (Eslováquia), 23.06.2003, Castelgandolfo
[Roma], editora Nové Mesto, Bratislava, pág. 36).
O filósofo e teólogo Klaus Hemmerle, discípulo de C. Lubich, evidencia e
explica este relacionamento, esta relação entre divindade e humanidade.
«O meu tempo é “total” somente se é tempo “compartido”. Não na realização
de um projeto pensado por mim mesmo para mim, mas na disponibilidade de ir em
direção a você de maneira sempre nova, de me fazer um com você de maneira
sempre nova, cresce em mim a forma de vida que não é a minha. Se o ser enquanto
tal é relação e pode conseguir alcançar a identidade somente nesta relação, a minha
vida então encontra a sua unidade só na relacionalidade e na recíproca permuta de
vida (...). Não é questão de ser absorvido um pelo outro, nem da sufocação do
diálogo na monotonia. Eu sou eu mesmo só se for para além de mim, me elevando
1
2.Sociol. Situação em que há divergência ou conflito entre normas sociais, tornando-se difícil para o indivíduo respeitá-las igualmente. [Em situações
extremas, essa contradição ou dificuldade pode equivaler, na prática, a ausência de normas.]

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para o Tudo e o Absoluto. Este ultrapassar a si mesmo não é, porém, acrescentável
ao que em mim é o meu ser, mas pelo contrário, o meu ser se realiza em mim
justamente no ir para além de mim. (...) Ver-me em você, você em mim e ver entre
nós a única vida e o único amor: este é o ato do nosso ser no qual somente nós
realizamos a globalidade da nossa vida e da nossa pessoa. O “mandamento novo”
(cf Jo 13,34) e o “Testamento” de Jesus (cf Jo 17, 21-23), o amor recíproco tecido
espiritualmente é que nos torna aptos a ser uma coisa só na reciprocidade, como o
Pai e o Filho são um e justamente porque são um, caracterizam não só a nossa
missão trinitária mas também o nosso ser pessoal, a nossa identidade, a unidade
em nós da nossa vida. Esta globalidade se realiza não enquanto eu sou um comigo
mesmo e a partir daí teço relacionamentos, mas, enquanto vou para além de mim,
me faço um com você e com isto me redescubro na relacionalidade da comunhão
recíproca. Não do eu ao nós, mas do nós ao eu: esta é a “nova via” do Espírito» 2.
A identidade de cada um, para C. Lubich, é a mais forte que se possa
imaginar, é a perfeição aperfeiçoável do processo de humanização: «Entro em
contato com o Fogo que, invadindo toda a minha humanidade, doada por Deus, me
torna outro Cristo, outro Homem-Deus por participação. De forma que o meu lado
humano se unifica com o divino (...)». Na Anotação ao texto acrescenta: «Jesus é a
personalidade verdadeira, mais profunda, de cada um. Cada homem (cada cristão),
é de fato mais filho de Deus (=outro Jesus) que filho do seu pai (...)». Esta
identidade com o Cristo oferece a cada um a possibilidade de superar a própria
individualidade fechada, de ser “um homem” para ser “o homem”. Nesta dinâmica se
encerra o segredo de uma total, embora contínua, conquista de permanecer sempre
si mesmo e, ao mesmo tempo, sempre no advir.
Esta pessoa portanto não se fecha, ao contrário, se abre, se abre à todos:
«Vejo e descubro em todos a minha própria Luz, a minha verdadeira Realidade, o
meu verdadeiro eu (talvez enterrado ou secretamente camuflado por vergonha). E,
tendo-me reencontrando, uno-me novamente a mim, ressuscitando-me – Amor que
é vida – no irmão».
Eis o relacionamento que é possível e que se realiza, porque é substanciado
de amor, do mesmo Amor de Deus que se manifesta através de cada um. E o amor,
por sua natureza, como em Deus, jamais destrói, é criativo, difusível e unitivo. Mas
de forma sublime: no Cristo que se faz vínculo, relação, presença: «(...) vejo a
humanidade com os olhos de Deus, que tudo crê porque é Amor». E ainda: «E’
Deus (Amor) que faz de duas pessoas uma só e se coloca como terceiro, como
relação entre eles: Jesus no meio» (“Onde dois ou três estão reunidos no meu
nome, ali eu estou no meio deles” [Mt. 18,20]).

2
K. HEMMERLE., Partire dall’unità, Roma 1998, pág.60-61.

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A capacidade de amar que cada pessoa traz em si se torna relação,
comunicação.
Dizia o grande literato russo Michail Bachtin: «O ser do homem é uma
comunicação profunda. Ser significa comunicar. Ser significa ser para o outro, e
através do outro, para si. Ele está integralmente e sempre numa fronteira: olhando
para dentro de si, olha nos olhos dos outros. Não posso dispensar o outro, não me
posso transformar em mim mesmo sem o outro»3.
Mounier: «A pessoa se exprime através do movimento que a faz existir, de
modo que é por sua natureza comunicável, melhor ainda, é a única a sê-lo (...).
Quando a comunicação se afrouxa ou se corrompe, eu perco profundamente a mim
mesmo» (O personalismo, Roma 1966, pág. 49).
«Assim o amor circula espontaneamente (pela lei da comunhão que lhe é
ínsita), como um rio impetuoso, e arrasta tudo o que os dois possuem, colocando em
comum os bens espirituais e os bens materiais», diz C. Lubich.
E’ precisamente a reciprocidade na relação que permite concretamente a
igualdade e a diferença, permite a atuação da identidade na distinção para chegar à
unidade.
Como é possível que isto se realize, sem que a relacionalidade acabe na
exclusão recíproca?
A autêntica intersubjetividade, como a unidade na distinção ou na diferença, é
possível quando se tem a experiência cognoscitiva e afetiva profunda do próprio eu
e do eu do outro até ao ponto de se acolher e de acolher os outros como centros do
ser autônomo, autoconsciente, livre, igual na própria dignidade e, ao mesmo tempo
diferentes.
Diversidade quer dizer também consciência de que se tem algo para oferecer
ao outro ou ao conjunto. Surge então a dinâmica e a necessidade de saber tomar
iniciativas para dar impulsos novos à unidade e ter a prontidão de perder os próprios
eventuais “dons”, se não fosse o momento apropriado para oferecê-los. Assim, não
só cada um não é o outro, como também, cada um é ele mesmo só através do outro.
A comunicação, portanto, é essencial e os psicólogos conhecem bem os
efeitos patológicos de uma comunicação deficitária, bloqueada, inexistente: «A vida
é amor e se não circula não vive», escreve Chiara. Não só, a comunicação de si
para o Alter cria a sociedade, a faz existir em todas as suas dimensões e
expressões.
Simmel, o grande sociólogo alemão, afirma que «a vida da sociedade
consiste nos relacionamentos recíprocos dos seus elementos, relacionamentos
estes que em parte se desenvolvem em ações momentâneas e em parte se
consolidam em estruturas definidas: em deveres e leis, normas e propriedade,

3
Cit. in T. TODOROV, La conquista dell’America – Il problema dell’altro, Torino 1992, p. VIII.

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línguas e meios de comunicação. Todos estes efeitos sociais recíprocos têm a sua
origem na base de determinados interesses, metas ou estímulos. Constituem ao
mesmo tempo a matéria que se realiza socialmente no próprio conjunto dos
indivíduos um ao lado do outro, um pelo outro, e um com o outro» (Roma 1994).
Digamos também que o entrelaçamento da sociedade, da comunidade, é o
amor que gera a unidade, o amor do qual todo ser humano está impregnado4.
A intuição da Lubich lhe dá a convicção – experimentada por ela e pelo seu
Movimento – que Jesus «é a Vida e a Vida completa. Não é apenas um fato religioso
(...). Separá-lo da vida integral do homem é uma heresia prática dos tempos
presentes (...)». E na Anotação explica: «O homem em todas as suas dimensões e
capacidades humanas – não deve ser refreado, mas elevado. Ao lado de uma
teologia renovada, “nova” (baseada na vida trinitária vivida no Corpo místico de
Cristo) é necessário também uma ciência nova, uma sociologia nova, uma arte nova,
uma política nova... novas porque de Cristo, renovadas pelo Seu Espírito. E’ preciso
iniciar um novo humanismo onde o homem esteja no centro, este homem que é
antes de tudo Cristo, e Cristo nos homens».
Em outra anotação: «E’ como outro Cristo, membro do seu Corpo místico, que
cada homem dá a sua típica contribuição em todos os campos: na ciência, na arte,
na política (...)».
A sociedade que nasce dos relacionamentos positivos, repletos de sentido,
harmoniosos e diligentes, se compõe e edifica para si instituições, estruturas, leis e
cultura embebidas deste amor.
As instituições podem se transformar em ocasiões de relacionamentos não
anônimos e burocráticos mas sempre “agápicos” embora com intensidades variadas.
O segredo está sempre no encontrar o outro como pessoa (ser amado e amável) e
não como objeto.
O filósofo Ricoer se interroga sobre como introduzir o elemento “instituição”
na vida dos relacionamentos. Ele escreve: «Introduzindo o conceito de instituição,
abro um relacionamento com o outro que não se deixa reconstruir segundo o modelo
da amizade. O outro é um face a face sem vulto, o cada um de uma distribuição
justa. Não diria que a categoria do cada um é uma pessoa distinta, mas que eu só a
alcanço mediante os canais da instituição».
Ricocer tenta apresentar de modo positivo a função da mediação institucional,
levando em conta que o diálogo entre as pessoas é cada vez mais entrançado por

4
«Il peso ontologico dell’esperienza umana è la carica di amore di cui essa risulta suscettibile» (G.
MARCEL, La dignità umana e le sue matrici esistenziali, Torino 1983, p. 91).
«L’amore impasta la creatura umana. Sotto questo aspetto possiamo ripetere: nasciamo amati, nasciamo
innamorati. L’amore si identifica con l’uomo, con il suo nucleo profondo, densissimo di tutta l’energia di
cui egli è capace» (S. PALUMBIERI, Amo dunque sono, Milano 1999, p. 240).

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esta mediação que é impessoal e na qual os papéis são anônimos. E’ um desafio
que só o agir “agápico” pode vencer: transformar a famosa “jaula de ferro” em
possibilidade de ampliar a vida relacional. A burocracia, as regras de convivência
social, as leis que regulam a nossa existência, podem servir para estabelecer
relacionamentos indiretos porém reais e não virtuais, não formais, e sim autênticos,
numa palavra: vivos.
Nasce também uma cultura nova, porque Chiara é convicta que somente
quem ama conhece. E conhece não só Deus, mas toda a realidade criada, o cosmo,
a humanidade. O sujeito deste conhecimento é novo, porque não é mais o indivíduo,
por mais genial que seja, mas a comunidade, os “mais”, unidos no nome de Cristo. E
é o próprio Cristo em nós e entre nós o sujeito que ama e conhece e revela a
verdade.
A história evidenciou muitos tipos de homem em sinergia com os contextos
culturais sempre novos e em evolução: faber, oeconomicus, consumens,
communitarius, sociologicus, politicus. A descoberta da subjetividade induziu a falar
de homo psicologius. A complexidade da modernidade levou Cesáreo a exprimir o
homo civicus, que ele define como a pessoa na sua total realização como sujeito
implicado em elos sociais. (A liberdade responsável 2007).
A doutrina de Chiara Lubich indica que os tempos estão maduros para a
asserção do homo agapicus que já vive, talvez ainda nas cavernas, mas já
construindo a história, que unifica o melhor do processo evolutivo para entrar num
modelo antropológico qualitativamente superior e sempre aberto a novos horizontes
e a novas conquistas.
Agora é chamada em causa também a psicologia para experimentar o agir
“agápico” no amadurecimento do si em relação, também nos traumas das
patologias. E’ chamada em causa também a sociologia para preencher um vazio
culpado pelo seu feito: analisar e interpretar os efeitos do agir “agápico” na vida
social.

Traduzione di Conceição Lins,


Ufficio Traduzioni, ****
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