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Departamento de Teologia

CORPOREIDADE NA ORAÇÃO À LUZ DO LIVRO DA VIDA DE


SANTA TERESA DE JESUS

Aluna: Raísa Suena Soares Lopes


Orientadora: Lúcia Pedrosa de Pádua

Introdução
A proposta da pesquisa é investigar o tema da oração na sua relação com o corpo
humano. Buscaremos mostrar que é através do corpo que o ser humano é, está e se
relaciona e, por isso, a oração e o corpo estão intimamente ligados. Sem a relação com a
corporeidade, a oração se torna mero espiritualismo e alienação. A oração não deve
estar desvinculada da vida nem a vida da oração, pois ambas se fecundam mutuamente.
Por isso, nosso primeiro passo será explicitar o processo de humanização
indispensável a todo ser humano através das suas relações fundamentais. Depois,
mostraremos que o desenvolvimento destas relações é fundamental para que o ser
humano cultive uma oração integral e integradora.
O segundo passo, depois da abordagem destes elementos antropológicos, será
introduzir a experiência que teve Santa Teresa a partir do seu “trato de amizade com
Deus”, ou seja, a oração. E qual a visão da santa, no Livro da Vida, quanto à relação
corpo e oração.
O intuito geral da pesquisa será mostrar que sem uma integração pessoal, ou
seja, corpo humano em unidade, apesar de possuir partes distintas, ou dualidades (corpo
e alma, por exemplo), não seria possível desenvolver coerentemente a prática oracional.
Portanto, é fundamental que corporeidade humana e oração estão intimamente ligadas.

CAPÍTULO I

A HUMANIZAÇÃO CRISTÃ NAS SUAS RELAÇÕES FUNDAMENTAIS

Neste capítulo explicaremos o porquê do ser humano ser, necessariamente,


relacional e de como esta sua característica, se bem desenvolvida, assumida e
amadurecida, pode contribuir para seu processo de humanização. Mostraremos também
que, do contrário, ou seja, negando sua vocação relacional-dialógica, o ser humano
poderá desenvolver uma série de fatores que contribuirão para sua desumanização e
desequilíbrio nos diversos setores da sua vida. A partir disto, citaremos as relações
fundamentais do ser humano e como estas devem estar ligadas umas às outras. O tópico
dois deste capítulo, já que trataremos da humanização cristã, tomará o exemplo de Jesus
Cristo como modelo do humano integral.

1. O DESAFIO DE SER UM SER HUMANO INTEGRAL


Na nossa atual sociedade, é fácil perceber o quanto o ser humano se encontra
deficiente em suas relações, sejam estas individuais ou grupais. Não raramente, percebe-
se que, cada vez mais, este se fecha em si mesmo. Relacionar-se faz parte do processo
de humanização de cada indivíduo, por isso o não compromisso consigo mesmo, com

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o(s) outro(s), com a natureza e com Deus pode comprometer esse processo de
humanização a que cada ser humano deve ser submetido ao longo da sua história1.
Alguns aspectos pontuam essa deficiência relacional como, por exemplo: o
crescimento do número de pessoas que se encerram em relações virtuais deixando de
cultivar o importante “olho no olho”; o âmbito familiar que sofre devido ao
individualismo e a mera satisfação pessoal; o sistema capitalista que se caracteriza pelo
forte desejo de obter lucros; o meio ambiente que geme como em dores de parto (cf. Rm
8, 22), pois pode ser visto, muitas vezes, como um verdadeiro “lixão” da sociedade; a
espiritualidade que é deixada de lado para dar espaço ao ativismo tornando o corpo (que
é o próprio ser humano) uma máquina produtora de afazeres e não ser “produtor” de
relações etc.
Homem e mulher, em oposição à capacidade de relacionar-se, que
intrinsecamente os constituem, não tenderão para um caminho de humanização. Nessa
imprescindível necessidade de relacionar-se, como poderá o ser humano harmonizar
suas relações? A partir disso, os desafios que o ser humano deve enfrentar para não cair
no risco de comprometer seu processo de humanização não são fáceis, contudo, são
possíveis de serem enfrentados e superados.
Relacionar-se de modo a construir relações sadias e laços duradouros implica,
por exemplo, integração entre afeto e razão, alma e corpo; valorização do corpo como
meio principal de relações; abertura ao outro, a Deus e à natureza etc.
Analisaremos abaixo a inegável vocação relacional/dialógica que constitui cada
ser humano dentro das suas relações fundamentais (ou seja, relação consigo mesmo,
com o(s) outro(s), com Deus e com a natureza) e seus aspectos tanto positivos, quando
esta é assumida e praticada, quanto negativos, quando esta não é assumida de forma
responsável e madura.

O SER HUMANO, SER RELACIONAL/DIALÓGICO


A célebre frase do poeta inglês John Donne “nenhum homem é uma ilha,
inteiramente isolado”2, nos ajudará a refletir sobre uma vocação que pertence a cada ser
humano, ou seja, a vocação relacional/dialógica. Com esta frase, que faz parte de um de
seus poemas, Donne pode nos sugerir que o homem não pode viver isolado em si, mas
que deve viver interligado com os outros homens e com o meio em que vive.
Apesar da importância de cultivar a integração pessoal e individual, todo homem
se faz em sociedade e em comunhão com os outros. A partir daí, podemos dizer que o
homem relaciona-se consigo mesmo, com o(s) outro(s), com Deus e com o meio em que
vive. Integração pessoal pode significar, por exemplo, vinculação entre afeto e razão;
alma e corpo; vida pessoal e vida profissional; espiritualidade e práxis etc. Tudo isso
vivido em relação com o meio em que se vive e com Deus.
Quando uma sociedade encontra dificuldades de relacionamentos ou não
investe na integração dos indivíduos que nela se encontram, esta encontra dificuldades
em tornar-se mais humana e realizada. Portanto, desenvolver relações que integrem a
vida humana em seu conjunto traz benefícios tanto para o ser humano individual quanto
para o meio em que este vive. É preciso, portanto, que o ser humano assuma sua
vocação relacional/dialógica relacionando-se tanto mais sadiamente possível,
envolvendo os diversos setores da sua vida, para que se torne cada vez mais humano.

1
Cf. GARCÍA RUBIO, Alfonso. Evangelização e maturidade afetiva. 3ª ed. São Paulo: Paulinas, 2006. pp.
17-39.
2
DONNE, John. Meditações. 1ª ed. Landmark, 2007. pp. 103.105.

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Para o cristianismo, o fundamento que nos mostra ser real e possível essa
vocação relacional/dialógica do ser humano é o Deus bíblico, pois este “se relaciona
com o povo e com o ser humano concretos”3. A proposta bíblico-cristã apresenta Deus
como aquele que quer levar ao povo seu amor e sua libertação e se este “for apresentado
como um ser solitário, impassível, perdido na distância, facilmente se chegaria à
justificação e até à sacralização da auto-suficiência, da dominação e do fechamento
humano na própria subjetividade”4. Pelo contrário, se Deus se revela como próximo, tão
próximo que nos manda seu Filho, Jesus Cristo, então o sentido da humanização muda
completamente.
Essa presença concreta na vida do povo nos ajuda a perceber o quanto o Deus
bíblico quer se relacionar com pessoas e quer se manifestar através delas, ou seja, nos
mostra o quanto Ele quer fazer parte da vida de cada ser vivente atuando neles e por
eles.
Segundo García, em seu livro Evangelização e maturidade afetiva5, o povo
israelita ao mesmo tempo em que viveu a opressão da escravidão no Egito e mais tarde
o exílio da Babilônia, foi visitado e acolhido por um Deus que não foi alheio ou estático
à situação dele, pois interveio na história e se manifestou com amor efetivo. O Deus
bíblico sofreu com este povo e quis libertá-lo. Essa “visita” de Deus faz com que pouco
a pouco Israel redescubra sua dignidade e com isso perceba e assuma a proposta de
libertação deste Deus. Próximo e convidativo, Deus expõe seu projeto salvífico e
convida o povo a participar, de forma livre e responsável de modo que este venha, numa
relação de amizade e fidelidade, a ser seu parceiro na contínua e dinâmica obra da
criação.
As estruturas dominadoras às quais o povo israelita era submetido e que lhe
provocava sofrimentos e sentimentos de revolta certamente interferia no seu processo de
humanização, pois o ser humano, criado a “imagem e semelhança” de Deus, nasceu para
ser livre e relacionar-se sadiamente com tudo aquilo que lhe cerca (cf. Gn 1, 26-27).
Além do mais, o Deus bíblico é um Deus solidário, comprometido com a causa e as
necessidades do povo, um Deus que não está à margem do sofrimento.
Contudo, Israel nem sempre foi fiel a esse Deus de amor. A tentação da idolatria
era uma realidade constante. O Deus do amor e da liberdade muitas vezes era
substituído por falsos deuses. Deus é livre e, por isso, não poderá ser manipulado.
Todos os outros ídolos são nada diante dele. Ao rejeitar o convite de Deus o povo fica
deficiente no seu processo de humanização, pois faz parte desse processo desenvolver
relações harmoniosas tanto com todos os outros seres humanos, consigo mesmo e
também com o cosmos como também com Deus.
Quando rejeitamos a relação com Deus, fechamo-nos ao seu dom criador. Por
isso, é imprescindível estar aberto ao dom do outro e colocar a serviço o dom de si
mesmo. Sendo assim, é o ser humano um ser de doação e receptividade. Recebe de
Deus toda a obra de suas mãos (o dom da criação; o dom dos outros) e põe a serviço de
forma responsável e consciente aquilo que lhe foi dado como dom (e o dom de si
mesmo).
É de suma importância que o ser humano esteja aberto à proposta de YHWH6,
ou seja, de Deus, visto que ela é a âncora para que este ser humano desenvolva bem as
3
GARCÍA RUBIO. Evangelização..., p.17.
4
Ibid., p. 21.
5
Cf. Ibid., pp. 18-23.
6
Este tetragrama, YHWH, significa “Deus” ou “Adonai” em hebraico.

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outras relações que lhe são imprescindíveis. Portanto, “a abertura e o acolhimento em


relação ao dom oferecido por YHWH aparecem no centro daquilo que deveria ser o
processo de humanização"7.
Quando o ser humano, de forma harmoniosa, busca desenvolver sua relação com
Deus, todo o medo e a angústia de se relacionar com os demais seres que o cercam
poderão ser excluídos. YHWH é o modelo das nossas relações. Na medida em que o ser
humano abre-se à novidade de Deus, Ele mesmo (Deus) capacita-o a expressar o dom
de si mesmo ao mesmo tempo em que busca estar aberto ao dom do outro. Quando o ser
humano abre-se verdadeiramente ao dom de Deus consequentemente abrir-se-á ao dom
de si e ao dom do outro.
Longe de ser um Deus dominador, esse Deus é antes de tudo um Deus que
liberta para a liberdade8. O ser humano, portanto, só poderá verdadeiramente seguir
por um caminho de humanização integral quando desejar e assumir essa liberdade
oferecida por Deus. Só assim poderá desenvolver relações sadias com as outras pessoas
e ser administrador responsável do meio em que vive.
Assumir essa liberdade oferecida por Deus é tarefa imprescindível para se viver
com serenidade e seriedade a vocação dialógica que todo ser humano possui. Ser livre
implica responsabilidades, respostas, decisões, escolhas, significa assumir a vida na
dinâmica salvífica de Deus, ou seja, o “homem novo”9 que poderá vir a ser em cada ser
humano. Contudo, a tensão entre o “homem velho”10 (ou seja, a vivência do ser humano
escravizada em tudo aquilo que se encontra fora de Deus) e o “homem novo” sempre
existirá, mas nunca poderá servir de justificação para não assumir o novo que sempre
deverá ser mais relevante na caminhada de humanização integral. Só numa dinâmica de
amor livre, assim como Deus o faz, o ser humano poderá harmonizar suas relações. Esse
Deus que interpela o ser humano e o convida a ser seu parceiro na sua obra criadora,
não elimina sua liberdade e autonomia, pois sempre que há dominação ou
instrumentalização do outro ou do outro em relação ao cosmos ou do ser humano em
relação a Deus (idolatria), se abre espaço para a super valorização do ego, do
individualismo e do egoísmo, ou seja, para a desumanização.
Deus sempre é livre e deseja nos transmitir sua liberdade. Ele não quer ferir nem
quer ser o “dominador” das relações do ser humano, por isso, ao relacionar-se com Deus
de forma harmoniosa, “não há perigo de que o ser humano fique destruído ou diminuído
na sua liberdade e autonomia. Pelo contrário, nessa relação encontra o ser humano o
mais profundo fundamento da sua capacidade de ser ele mesmo, de ter autonomia”11.
Fechar-se ao convite de Deus implica caminhar por um caminho de não-
salvação. Seria uma total loucura! O Antigo Testamento já nos mostra que o ser humano
é antes de tudo chamado a responder ao chamado de Deus, do contrário, perde-se em
sua auto-suficiência e caminha sem liberdade, pois “esta perspectiva é básica para a
compreensão da proposta bíblica de humanização”12.

7
GARCÍA RUBIO. Evangelização..., p. 22.
8
Cf. Ex 3; Gl 5, 13-15.
9
Cf. Cl 3, 9-10; Ef 2, 15; 4, 24.
10
Cf. Rm 6, 6; Cl 3, 9-10.
11
GARCÍA RUBIO. Evangelização..., p. 28.
12
Ibid., pp. 23-24.

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Contudo, a iniciativa primeira é de Deus. A sua “proposta-dom” é oferecida


gratuitamente ao ser humano e Deus mesmo quem o capacita a aceitá-la. Este ser
humano, que é livre, ficará com a tarefa de decidir e de responder a esse chamado. E ao
reagir de forma positiva à interpelação de Deus, o ser humano se humaniza cada vez
mais, pois faz do projeto de Deus o seu projeto ao entrar na sua dinâmica de amor.
Certamente, o conhecimento que temos de Deus, o Deus ao qual se refere Jesus
Cristo, é limitado. Como pode amar cada ser humano com amor tão magnânimo e
gratuito?! Amor que se dá em relações concretas com seu povo ao ponto de nos enviar
seu Filho, Verbo Encarnado, gerado eternamente. Cabe a cada ser humano em sua
constante busca de humanização, assemelhar-se a esse Deus que é Ágape, ou seja, que é
rico em misericórdia e que ama gratuita e pessoalmente cada ser humano (cf. 1Jo 4,
8.16).

2. A PLENITUDE RELACIONAL DE DEUS SE REVELA EM JESUS CRISTO


O Deus bíblico, na sua bonita iniciativa de querer relacionar-se com o povo de
forma concreta, como foi visto, não conformado com suas iniciativas anteriores,
chegada a plenitude dos tempos13 envia-nos seu Filho, Jesus Cristo, feito homem, para
armar tenda no meio de nós. Ele se torna o “Mediador entre Deus e os homens” (SC 5) e
de forma também concreta se relacionará com o povo trazendo paz e salvação.
Ao fazer-se homem como nós, o Verbo de Deus encarnado, Jesus Cristo, torna-
se o modelo do humano integral, pois a revelação mais plena do ser humano se encontra
nele. Ele como ninguém colocou em prática sua vocação relacional/dialógica, por isso a
partir da sua vida, morte e ressurreição, todo ser humano é chamado a imitá-lo. A partir
disso, podemos dizer que Cristo é o arquétipo do nosso processo de humanização.

2.1. JESUS CRISTO, MODELO DO HUMANO INTEGRAL


O Deus bíblico continua a oferecer, de forma gratuita, o seu amor quando se
auto-revela por seu Filho, Jesus Cristo, no Espírito. O Filho, como seu Pai, quer trazer
libertação e vida para o povo. Por isso, na medida em que homem e mulher se deixam
contagiar pela vida dele, se humanizam. Jesus é “a revelação mais plena de Deus e
simultaneamente do ser humano [...]. Ele é o modelo do humano e do processo de
humanização”14.
Em Cristo, Deus assume a fragilidade humana, tornando pleno aquilo mesmo
que é a própria identidade do ser humano: o seu corpo. O mistério da Encarnação longe
de querer mostrar um Deus que se impõe, quer revelar um Deus que se expõe, já que, ao
se encarnar, assume a condição humana15. E, ao assumir nossa condição humana,
assumiu também tudo aquilo que nos cerca, toda a nossa história, toda a nossa situação.
Por isso se fez pecado Aquele que não possuía mancha alguma, ao assumir nossa
natureza humana pecadora, concretamente (cf. Rm 8, 3ss).
Em Jesus Cristo, portanto, não há espaço para dualismos, ou seja, para uma
estrutura de ser humano marcada por separações em seu próprio corpo, a saber, por
exemplo, separação entre corpo e alma; espiritualidade e práxis etc. Os setores da vida
13
Cf. VATICANO II. Constituição Sacrosanctum Concilium 5. In: Compêndio do Vaticano II. 27ª ed.
Petrópolis: Vozes, 1998. p. 261. A partir de agora, utilizaremos apenas SC no corpo do texto e nas notas
de rodapé seguido do número do parágrafo.
14
GARCÍA RUBIO. Evangelização..., p. 33.
15
Cf. BINGEMER, Maria Clara Lucchetti. A Aplicação de Sentidos: Assimilar o Mistério da Encarnação.
Revista de Espiritualidade Inaciana, ITAICI, n. 81, p. 46, set. 2010.

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do ser humano (“vida pessoal” e “vida profissional”, por exemplo), apesar de estarem
marcados com qualidades próprias, a partir do exemplo de Cristo, que esteve presente
na história concreta reunindo em sua vida tudo aquilo que fez parte do meio em que
viveu, não devem existir em justaposição, mas em unidade.
Ora, o penoso dualismo entre corpo e alma deve ser deixado de lado quando se
percebe que Deus mesmo, feito homem, Jesus Cristo, constitui o enlace perfeito entre o
espírito e a carne. A partir disso, pode-se afirmar que “o corpo humano está [...] no
centro da revelação cristã, visto que se trata de algo assumido pelo próprio Deus, na
Encarnação de seu Filho Jesus Cristo”16.
A novidade da Encarnação resgata de uma vez para sempre a corporeidade
humana, “já que a divindade a abraça por dentro, assumindo sua fragilidade para dentro
de Si mesma”17. Esse Jesus que se assemelha a nós quer que também nos assemelhemos
a ele. Ele foi “capaz de renunciar (de certa forma) ao que lhe pertence de mais próprio,
o ser-Deus, para comunicá-lo aos homens”18. Visto que comungou da nossa
corporeidade, somos chamados a participar da sua divindade, pois ao assumir a
condição humana, Cristo não perde sua condição divina, mas nos comunica “aquilo que
ele é com maior propriedade, como Deus: Amor, capacidade de dar-se, sendo assim
plenamente ele mesmo”19.
Resgatada a corporeidade humana, Cristo abre novos caminhos no processo de
humanização. Ele constitui a imagem do homem perfeito20, do homem integral. O que
antes estava disperso pelo dualismo, agora se une pelo mistério do Verbo encarnado. O
corpo humano, portanto, pode ser reconhecido como lugar da manifestação de Deus,
pois foi assumido e não aniquilado, pelo próprio Cristo (cf. GS 22). O Espírito de Deus,
como nos mostra a Sagrada Escritura, nunca será desvinculado do corpo, ou seja, ambos
estarão sempre em estreita relação, já que este é lugar de manifestação da divindade.
O Espírito tende para o corpo: esta é a realidade revelada através dos textos
do Primeiro Testamento, quando o Espírito de Deus cria mundos a partir do
nada, transforma desertos em jardim, ossos secos em militante exército e
engravida ventres estéreis. Esta é a boa nova do Novo Testamento, razão de
nossa esperança e nossa alegria 21.

A corporeidade humana se torna, portanto, lugar de habitação do Espírito. O


corpo humano mesmo é o Templo, a glória de Deus nele se manifesta. E por isso, Paulo,
em 1Cor 3, 16, expressa com grande entusiasmo: “Não sabeis que sois Templo do
Espírito e que o Espírito do Senhor habita em vós”?

16
Ibid., p. 45.
17
Ibid., p. 46.
18
CODA, Piero. Encarnação. In: PIKAZA, Xabier; e SILANES, Nereo. (Dir.). Dicionário Teológico: O Deus
Cristão. São Paulo: Paulus, 1988. p. 248.
19
Ibidem.
20
Cf. VATICANO II. Constituição Pastoral Gaudium et Spes 22. In: Compêndio Concílio Vaticano II. 27ª ed.
Petrópolis: Vozes, 1998. pp. 164-166. A partir de agora, utilizaremos apenas GS no corpo do texto
seguido do número do parágrafo.
21
BINGEMER. A Aplicação de Sentidos..., p. 46.

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É preciso valorizar este corpo, é preciso cuidar deste Templo! É preciso assumir
a nossa condição humana assim como Jesus de Nazaré o fez, pois constantemente
caímos na tentação de desprezá-lo convergindo mais uma vez em dualismos.
O mistério da Encarnação nos ajuda a refletir sobre a grandeza do ser humano e
sobre a relação de Deus com o mundo (cf. GS 22; 12). O Logos, ou seja, a
autocomunicação de Deus em Jesus Cristo, feito homem (cf. Jo 1, 14), se manifesta na
história concreta do ser humano e, por isso, não participa de uma natureza humana
ingênua, visto que em tudo se fez semelhante a nós, “com exceção do pecado” (Hb 4,
15) e assumiu também toda a criação escravizada pela culpa. Com sua vida, paixão,
morte e ressurreição abre caminhos de esperança e renovação, e resgata para sempre o
gênero humano.
O primeiro Adão, aquele de que nos fala o Antigo Testamento, rejeita a proposta
dialógica de Deus já que, em uma atitude de fechamento e irresponsabilidade,
administra mal o mundo criado oferecido a ele, por Deus (cf. Gn 3, 1-24). O novo Adão,
Jesus Cristo, ao contrário, assume essa administração de forma fiel e responsável, ou
seja, em atitude de serviço e de diálogo (cf. Rm 5, 12-21).
Jesus Cristo é o modelo do verdadeiro homem. Nele, os cristãos devem buscar
inspiração. Quanto mais o ser humano assume a vida de Cristo, tanto mais estará
voltado para fora de si, tanto mais estará aberto para o dom o outro. O ser humano é
chamado a ser outro Cristo no mundo, é chamado a abandonar as atitudes do primeiro
Adão e a assumir, em sua totalidade, a pessoa do Cristo, o novo Adão (GS 22).
O apóstolo Paulo nos ensina que “o primeiro homem, Adão, foi feito alma
vivente22; o último Adão tornou-se espírito que dá a vida” (1Cor 15, 45). Por isso,
Cristo é a fonte que jorra a vida para os outros (cf. Jo 4, 10-14). Por ele, o ser humano,
criado à imagem e semelhança de Deus, é chamado a ser nova criatura (cf. Rm 8, 29).
Ao entrar na carne humana, Jesus Cristo abre novos caminhos para que o ser
humano, espelhando-se nele (em Cristo), busque pôr em prática a sua vocação dialógica
de forma integrada. Pois Ele é a fonte que jorra a vida nova, “vida caracterizada pela
abertura com toda radicalidade à comunhão com Deus, com os seres humanos e com o
mundo todo criado. Vida que supera o mesquinho fechamento negador dos outros”23.
Homem e mulher são chamados a serem novas criaturas em Cristo (cf. Ef 4, 24).
Isto significa também que o passado não deve mais aprisioná-los. O modelo de todos os
homens, Jesus Cristo, nos ensina um novo modo de proceder, um novo modo de existir,
pois que “passaram-se as coisas antigas; eis que se fez uma realidade nova” (2Cor 5,
17b).
Renovados e edificados em Cristo (cf. Col 2, 7), homem e mulher, na constante
tensão entre o “homem velho” e o “homem novo” que existe em cada um, encontram a
verdadeira possibilidade de (re) começar um caminho de humanização integral.
A vida do ser humano, na sua totalidade, tem agora uma base sólida, Jesus
Cristo, e deve ser impregnada por sua presença pacífica e harmoniosa. As quatro
dimensões fundamentais de abertura (abertura ao mundo, aos outros, a Deus e a si
mesmo) presentes no ser humano encontram seu ponto de firmeza e coerência na pessoa
de Jesus Cristo.

22
Isto é, um ser dotado de vida puramente natural e submetido às leis do desgaste e da corrupção. In: A
Bíblia de Jerusalém. 5ª ed. São Paulo: Paulus, 1996. p. 2170, rodapé “c”.
23
GARCÍA RUBIO, Alfonso. Unidade na pluralidade: o ser humano à luz da fé e da reflexão cristãs. 4ª ed.
São Paulo: Paulus, 2006. p. 201.

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Ele que resgatou para sempre o gênero o humano, abre portas para que o
dualismo em relação ao desprezo pelo corpo ou a sua supervalorização seja superado.
Ao abrir-se à comunicação pessoal de Deus, numa atitude de acolhimento, o ser humano
encontra, em Cristo, seu ponto de equilíbrio. Mesmo sendo corpo e alma o homem é
uno e, portanto, não lhe é lícito “desprezar a vida corporal, mas, ao contrário, deve
estimar e honrar o seu corpo, porque criado por Deus é destinado à ressurreição no
último dia” (GS 14).
O Verbo encarnado, Jesus Cristo, é a verdadeira imagem de Deus (cf. Cl 1, 15;
2Cor 4, 4-6) e, já que nele visualizamos o que é ser humano no sentido integral do
termo, também é ele a verdadeira imagem do homem, o verdadeiro homem. Se ainda
restam dúvidas sobre a significativa verdade do ser humano revelada na pessoa de Jesus
Cristo, “basta olhar para [...] suas atitudes, opções, comportamento, especialmente para
a abertura-obediência ao Pai e para a vivência do amor-serviço, unida à solidariedade
em relação aos irmãos”24. A corporeidade humana, portanto, encontra sua plenitude em
Jesus Cristo.

3. DIMENSÕES EM HARMONIA
Vimos acima que Deus, na pessoa de Jesus Cristo, assumiu a condição humana
com tudo que a cerca. Com a Encarnação de Jesus Cristo, o corpo humano se apresenta
agora em nova aparência e encontra sua restauração plena, visto que foi assumido pelo
próprio Deus. Por isso, toda e qualquer forma de dicotomia antropológica deve ser
deixada de lado. O humano integral, Jesus Cristo, rompe com todo tipo de alienação e
abre portas para que o “homem novo” seja colocado em evidência.
Não é difícil encontrar correntes de pensamento com estruturas que “pregam”
dimensões (“corpo” versus “alma”; razão versus afetos; “interiorização” versus
abertura; pessoal-individual versus social e político etc.) presentes no ser humano de
forma que queiram separá-las quando devem ser vistas e vivenciadas de forma
unificada25.
Compreender e/ou vivenciar um caminho possível para a humanização se torna
tarefa árdua quando a visão dualista tão fortemente se faz presente. Esse tipo de olhar
impede que as dimensões constitutivas do ser humano se relacionem entre si. Por isso,
para um sadio processo de humanização é preciso que o ser humano esteja aberto para
uma visão unitária de suas estruturas.
A visão unitária ou integrada, por sua vez, se insere na unidade básica da pessoa
humana sem, contudo, desvalorizar a “dualidade básica constitutiva do ser humano
(dimensão espiritual e dimensão corpórea) bem como as outras dimensões
fundamentais: racional e afetiva, individual e sociopolítica”26. Caracteriza-se por não
absolutizar uma determinada dimensão em detrimento da outra, mas por constantemente
estarem abertas umas às outras.
Para a finalidade desta pesquisa, destaco e desenvolvo apenas a dimensão
espiritual e a dimensão corpórea do ser humano a partir da fé cristã, de forma que
estejam integradas entre si e, para tal, a perspectiva unitária entre elas será
indispensável.

24
Idem. O encontro com Jesus Cristo vivo. São Paulo: Paulinas, 1994. p. 129.
25
Cf. Idem. Evangelização..., p. 40.
26
Ibid., p. 42.

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A partir da perspectiva unitária, o ser humano, não inconsciente da sua


limitação, sabe que espiritualidade e corporeidade participam da sua vida como um
todo. Evidenciar somente a corporeidade seria impor barreiras para sua abertura ao
transcendente e, ao contrário, evidenciar somente a espiritualidade seria negar sua
dimensão histórica e temporal.

3.1. CORPOREIDADE E ESPIRITUALIDADE SE INTEGRAM


O ser humano só se humaniza quando estas duas dimensões se articulam entre si
e quando reconhece que cada uma, individualmente, apesar da importante necessidade
de se relacionarem, possuem valor e características singulares. Como já foi dito acima, a
visão unitária não exclui o caráter de dualidade presente nos diversos setores da vida
humana, ou seja, “trata-se de uma unidade vivida na dualidade de aspectos ou
dimensões básicas”27.
O corpóreo e o espiritual se influenciam intima e mutuamente. O reducionismo
antropológico cai mais uma vez no erro ao evidenciar um em detrimento do outro. Nem
o espiritual nem o corpóreo podem existir em dimensões separadas.
Corporeidade e espiritualidade não são duas dimensões justapostas, mas duas
dimensões interrelacionadas que designam a pessoa humana na sua
totalidade. No ser humano, o espírito se corporifica, enquanto que o corpo se
28
espiritualiza .

Diferente de outros corpos, o corpo humano é especial, posto que seja revestido
pelo espírito humano. Por isso, “a corporeidade é tão própria do homem quanto a sua
espiritualidade. O homem é sempre um espírito com corpo; um espírito sozinho,
descorporificado, não pode ser um homem”29.
A corporeidade do ser humano torna-o um ser capaz de desenvolver relações
interpessoais. Sua corporeidade expressa seu próprio modo de ser gente, de ser pessoa.
É com seu corpo que o ser humano intervém na sociedade sendo influenciado por ela e,
ao mesmo tempo, fazendo parte, de forma ativa, da sua transformação, ou seja,
influenciando-a. A partir desta perspectiva, podemos concluir que “o corpo não pode
continuar sendo considerado [...] como inimigo do espírito, empecilho para a libertação
do conhecimento e da liberdade”30, mas como realidade que se relaciona
indubitavelmente com a realidade espiritual presente no ser humano.

3.2. ORAÇÃO COMO RELAÇÃO


A oração faz parte da vida do ser humano. Por isso, este precisa estar inserido
em uma “subjetividade aberta” (abertura ao outro), para que sua oração seja integrada e
integradora, e não em uma “subjetividade fechada” (centrada no próprio eu egoísta).
A oração integrada e integradora abre-se à novidade, especialmente à de Deus. A
oração é encontro com, e não fechamento em si mesmo. Através desta oração, o ser

27
GARCÍA RUBIO. Unidade na pluralidade..., p. 343.
28
Idem. Evangelização..., p. 45.
29
AUER, J. El mundo, creación de Dios. Barcelona, 1979. p. 274. Apud. GARCÍA RUBIO, Alfonso. Unidade
na pluralidade..., p. 345.
30
GARCÍA RUBIO. Unidade na pluralidade..., p. 346.

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Departamento de Teologia

humano paulatinamente toma consciência da sua necessidade de relacionar-se e, por


isso, esta requer abertura (a si mesmo, a Deus, aos outros e ao cosmos).
Já que a oração é encontro, esta, por sua vez, também é oração corporal. Ora, o
meio que possibilita este encontro é o próprio ser do homem, a sua corporeidade, o seu
corpo, por isso que ela também é corporal. O ser humano é, a partir do seu corpo, já que
este “impõe sua presença em toda manifestação, por mais espiritual que seja”31.
A comunicação do ser humano consigo mesmo, com Deus, com o (s) outro (s) e
com o cosmos só se realiza mediante sua corporeidade. Quando o espírito é valorizado à
custa do corpo, essa comunicação fica empobrecida. Ora, Deus não satisfeito em se
comunicar através dos nossos “primeiros pais”, os profetas, envia seu filho, Jesus
Cristo, gerado eternamente, para assumir corpo humano32. Se o próprio Deus assume a
corporeidade humana, não deveria, portanto, o homem, criatura, assumi-la
decididamente também?
A oração de Jesus é modelo de oração relacional, de oração corpórea. É também,
exemplo de oração integrada e integradora, ou seja, de oração aberta à novidade,
especialmente à de Deus. De Deus, Cristo recebia força, luz, esperança. Quando o ser
humano abre-se à novidade de Deus, este também, assim como Jesus de Nazaré,
amadurece sua condição humana. Pois quando nos dispomos a acolher o dom que o
outro tem a nos oferecer crescemos no processo de humanização.
O próprio Cristo é o humano integral, pois sua oração nunca esteve desvinculada
da sua própria vida cotidiana. Não pode haver oração desvinculada da vida,
desvinculada de relações com Deus, consigo mesmo, com os outros e com o meio em
que se vive. Quando isso acontece, não dificilmente, é possível perceber o
empobrecimento no processo de humanização do ser humano. A oração integrada e
integradora jamais poderá estar desvinculada daquilo que é mais próprio do ser humano,
isto é, sua necessidade de relacionar-se.
A oração expressa a vida e é fecundada por esta. Seria alienação ou fuga
desvincular a oração da própria realidade que se vive. A oração de Jesus sempre esteve
“intimamente vinculada aos acontecimentos de sua vida”33. Além disso, “trata-se de
uma oração dialógica, feita ao Deus-Ágape, e não a um Deus impessoal e distante,
dominador e destruidor da autonomia do ser humano”34.
Em suma, oração é relação que por sua vez se dá através da própria
corporeidade humana. Oração e corporeidade, portanto, estão intimamente ligadas. Sem
relações com as pessoas, com os acontecimentos diários da vida, com Deus, a oração
será mera fuga e alienação. A partir disso, podemos fazer o seguinte questionamento: “a
partir da relação de Jesus com o Pai, que oração leva ao encontro-diálogo com [...]
Deus”35, consigo mesmo, com os outros e com o meio em que se vive? Oração e vida
devem estar estreitamente interrelacionadas. Sem dúvida, a oração geradora de relações
é aquela em que o ser humano não nega sua corporeidade e por sua vez a sua vocação
relacional/dialógica. É aquela oração que se abre ao dom de si mesmo e ao dom do(s)

31
SPINSANTI, S. Corpo. In: DE FIORES, Stefano; e GOFFI, Tullo (Dir.). Dicionário de Espiritualidade. 2ª ed.
São Paulo: Paulus, 1993. p. 219, nota 24.
32
Cf. SC 5.
33
GARCÍA RUBIO. O encontro com Jesus Cristo vivo. p. 78.
34
Idem.
35
Ibid., p. 79.

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Departamento de Teologia

outro(s). A partir disso podemos mais uma vez dizer que a oração fecunda a vida e a
vida fecunda a oração.
Portanto, a partir do que vimos neste capítulo, podemos concluir que o ser
humano, quando busca integrar as suas relações fundamentais, este estará inclinado a
desenvolver um sadio processo de humanização. Do contrário, fechar-se ao que lhe é
mais próprio, ou seja, ser relacional, seria entrar em desarmonia consigo mesmo, com
o(s) outro(s), com Deus e com o meio em que vive.
No processo de humanização cristã mostramos que o Deus bíblico é o
fundamento desse processo, pois mostra ser possível pôr em evidência a vocação
relacional/dialógica que todo ser humano possui. Este Deus não satisfeito com suas
iniciativas anteriores, manda seu Filho, Jesus Cristo, modelo do humano integral, para
relacionar-se com o povo de forma encarnada.
Jesus Cristo, encarnado em corpo humano, é modelo do humano integral porque
não nega, mas assume verdadeiramente seu corpo, sua humanidade. Desenvolve de
forma belíssima a relação com o povo, com Deus, com os outros. Mostra-nos numa
relação amorosa de amizade com Deus, seu Pai, que é possível, mais ainda, colocar em
evidência aquilo que chamamos de vocação relacional/dialógica.
Relacional, dialógico, corpóreo, espiritual, estas são as características que
concluímos pertencer a cada ser humano. E que se estiverem entrelaçadas e unidas
contribuirão para que este ser humano desenvolva seu necessário processo de
humanização.
Depois de termos, portanto, investigado o processo de humanização necessário a
cada ser humano a partir das suas relações fundamentais e que este possui uma vocação
que lhe é intrínseca: chamamos de vocação relacional/dialógica, podemos agora
introduzir o tema central da nossa pesquisa: corpo e oração à luz do Livro da Vida de
Santa Teresa de Jesus. Trataremos de investigar o que Santa Teresa nos deixou sobre a
oração, já que seus escritos são ricos deste tema. Ao longo de sua caminhada humana e
espiritual ela desenvolveu um conceito muito belo de oração: “tratar de amizade [...]
com quem sabemos que nos ama”36. Já que a oração é relação (de amizade) e, portanto,
está diretamente vinculada à corporeidade humana, investigaremos também que visão
teve a santa de Ávila sobre a possível relação da oração com a corporeidade humana.

CAPÍTULO II

CORPO E ORAÇÃO A PARTIR DO LIVRO DA VIDA

A investigação feita acima acerca do necessário processo de humanização a que


cada ser humano deve se submeter, a partir das suas relações fundamentais, nos ajudará
no desenvolvimento do tema central desta pesquisa. O que o capítulo primeiro abordou
é de suma importância para que se entenda este capítulo pelo fato de que a oração, como
foi abordada no mesmo primeiro capítulo, é relação e, por isso, está estreitamente
vinculada com a corporeidade humana já que o ser humano é, está e se relaciona a partir
do seu próprio corpo.

36
SANTA TERESA DE JESUS. Livro da Vida: leitura orante e pastoral. 2ª ed. São Paulo: Loyola, 2010. p. 68.
Utilizaremos também outras traduções do Livro da Vida ao longo da pesquisa.

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Santa Teresa, no capítulo 8 do Livro da Vida, nos fala que a oração é um trato de
amizade, ou seja, um trato íntimo “com aquele que sabemos que nos ama”37. A partir da
definição e significação teresiana de oração, investigaremos, portanto, a relação entre o
corpo e a oração, tendo o Livro da Vida como base principal.

1. O PRINCIPAL TEMA DE VIDA: A ORAÇÃO


Podemos dizer que toda a vida de Teresa gira em torno do tema da oração
mental. E ainda, que este é o principal crivo da sua caminhada espiritual. É, portanto,
esta, a “qualidade que define seu livro, porque é a mesma que define sua mesma vida”38.
Mas mesmo sendo uma qualidade por excelência da sua autobiografia, o Livro
da Vida, e da vida da santa, a prática da oração mental foi um desafio constante na
caminhada espiritual de Teresa. Depois de enfrentar e vencer opiniões desagradáveis de
muitos de sua época, ela finalmente consegue abordar esse tema com mais clareza e
autoridade no decorrer de sua vida. Deus mesmo a cumulara com seus favores
espirituais, coisa que ela faz questão de falar e exaltar sem reservas39.
Segundo Teresa, “a oração não é outra coisa senão tratar intimamente com
aquele que sabemos que nos ama”40, ou seja, é um trato de amizade com Deus. Através
deste diálogo constante com este Deus amoroso, a santa de Ávila vai percebendo e
aprendendo que a oração é caminho seguro de santidade e de união com Deus.
Suas experiências dão vida à sua autobiografia. Não seria possível, portanto,
conceber o Livro da Vida afastado da sua vida concreta. O livro traz um ensinamento
didático a partir do que a própria santa viveu. Tendo experimentado as graças desse
Deus que se revela Amor através do exercício de oração, Teresa acreditava que, a partir
da sua própria experiência, podia ajudar aqueles que desejassem seguir também por este
caminho.
A Madre Teresa havia compreendido que o exemplo de sua vida podia
constituir um ensinamento para outras almas, por muitos conceitos. Primeiro,
para não se deixar enganar pelo demônio; depois, para não abandonar a
prática da oração mental, e, sobretudo, para ser fiel ao chamado de Deus e
seguir o caminho ascendente da vida espiritual, mesmo a custa de tropeços,
ou de algumas vacilações. Esta intenção sela e dá a tônica a toda a obra41.

37
Idem. Livro da Vida. 7ª ed. São Paulo: Paulus, 1983. p. 59. A partir de agora, utilizaremos apenas V no
corpo do texto e nas notas de rodapé.
38
LLAMAS, Enrique. Libro de la Vida. In: BARRIENTOS, A. (Dir.). Introducción a la lectura de Santa Teresa.
Madrid: Editorial de Espiritualidad, 1978. p. 224, “tradução da autora”.
39
Cf. V 17, 5; V 26, 6.
40
V 8, 5.
41
LLAMAS. Op. cit., p. 226, “T. A.”.

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Departamento de Teologia

Teresa não se deixava aprisionar por teorias espirituais que traziam consigo,
muitas vezes, apenas conhecimento racional. Foi na prática deste “diálogo amoroso”
que aprendeu e apreendeu aquilo que seria o verdadeiro caminho de santidade visto que
procedia de Jesus, seu verdadeiro e único mestre espiritual. A base de seus
ensinamentos partia da sua própria experiência.
O tema da oração é central na autobiografia de Teresa porque “toda ela coincide
com uma vida feita de oração, ou de uma oração que é pura vida”42. O conceito
teresiano de oração é, portanto, “um conceito fluido e rico como a mesma existência
humana”43.

2. A ESPIRITUALIDADE ENCARNADA DE SANTA TERESA DE JESUS


Para Santa Teresa, a oração está intimamente relacionada com a corporeidade
humana, pois ela (Teresa) “se dera conta de que certas situações físicas, psíquicas e
emocionais podiam facilitar ou dificultar a oração”44. Neste sentido, Teresa, “como
sempre, sem se perder em teorias, demonstra-se prática e realista”45.
Sem dúvida, o ser humano está condicionado seja pelo meio em que vive, seja
pelo seu próprio corpo. Portanto, o exercício de oração sempre será uma prática
condicionada. O ser humano orante sempre deverá manter relações consigo mesmo,
com o(s) outro(s), com Deus e com o meio em que vive.
Quando o ser humano se decide pela prática da oração não depende apenas,
podemos dizer, do empenho da sua alma, mas de todo o seu ser, ou seja, corpo, alma e
espírito. Por isso, é preciso que este ser humano orante busque sempre equilibrar e
relacionar as partes que o compõe46. A harmonia interior é tão necessária quanto
indispensável, pois a oração está proporcionalmente ligada ao ser inteiro do ser humano,
ao seu corpo.
Por mais espiritual que seja uma prática de oração sempre haverá a participação
do corpo. A oração solicita o envolvimento inteiro do ser humano. Por isso, não
raramente, é possível perceber casos em que a pessoa não consiga desenvolver bem seu
método de oração próprio seja por ausência de saúde física ou de equilíbrio mental. De
acordo com V 30, 16, Teresa fala que ela, algumas vezes, não consegue ter oração pelo
fato (assim ela entende) de não gozar de boa saúde corporal.
Tomar consciência do seu próprio estado atual é de suma importância para que o
ser humano desenvolva com serenidade seu exercício de oração. Contudo, quando
Teresa fala de necessário estado de saúde física (e equilíbrio mental), ela não se refere a
qualquer contratempo diário, pois ela mesma, no seu livro das Fundações47, fala que não
gozava normalmente de boa saúde e apesar disso, não deixava de lado sua prática
oracional.

42
CASTELLANO, Jesús. Espiritualidad Teresiana. In: BARRIENTOS, A. (Dir.). Introducción a la lectura de
Santa Teresa. Madrid: Editorial de Espiritualidad, 1978. p. 135, “tradução da autora”.
43
Ibid., p. 134. “T. A.”
44
DI BERARDINO, Pedro Paulo. Itinerário espiritual de Santa Teresa de Ávila: mestra de oração e doutora
da Igreja. 2ª ed. São Paulo: Paulus, 1999. p. 122.
45
Ibid., p. 123.
46
Cf. idem.
47
Cf. SANTA TERESA DE JESUS. Fundações. In: Obras Completas: Teresa de Jesus. São Paulo:
Loyola/Edições Carmelitanas, 1995. p. 671.

13
Departamento de Teologia

Teresa se propôs a não deixar “nunca” a prática oracional porque experimentava


constantemente as graças que Sua Majestade lhe ofertava e, por isso, soube muito bem
que a oração fecunda a vida ao mesmo tempo em que a vida fecunda a oração. A oração
está diretamente relacionada com a vida e vice-versa. Quando o ser humano se decide
por começar este caminho de amizade com Deus, é preciso pedir muito discernimento
para que seja um caminho trilhado com amor e por amor, numa dinâmica de zelo por
essa amizade. E assim Teresa o fez. Percorreu um caminho de zelo e de amor para com
Deus, para com o próximo, para consigo mesma, para com todo o meio que a
circundava.
Parece que quando se tem um “comportamento verdadeiramente sábio”48 no
exercício de oração, não há como não abrir-se às graças que lhe são próprias. Saúde ou
insanidade, equilíbrio ou desequilíbrio serão encarados da forma como devem ser de
fato. O que não se pode ignorar, contudo, é o fato de que o ser humano, enquanto ser
relacional/dialógico, relaciona-se, necessariamente, com tudo aquilo que ele é (corpo
carnal e corpo espiritual49) e com tudo aquilo que está a sua volta.
O relacionamento com Deus (relacionamento que é essencial na oração) deverá
ser, de fato, como Santa Teresa nos diz, um relacionamento de amizade. Sendo,
portanto, um relacionamento de amizade, o esforço não caberá apenas a uma das
pessoas no que diz respeito ao cultivo dessa relação. Deus colabora fielmente. Ele
também tem o seu papel no relacionamento. Como já vimos no primeiro capítulo da
pesquisa, aquilo que fundamenta a vocação relacional/dialógica do ser humano é o fato
de que é Deus mesmo (chamamos de Deus bíblico) quem toma a iniciativa de querer
relacionar-se com o ser humano. A partir daí, podemos dizer que mesmo sendo
necessário o esforço da parte do ser humano em procurar cultivar uma boa oração, uma
boa amizade com Deus, haverá desequilíbrio quando este não deixa que Deus também
se manifeste. Mesmo, muitas vezes, não gozando de boa saúde, é preciso confiar no que
o Amigo (Deus) pode fazer por seu amigo (o ser humano). Teresa nos fala que “não se
devem impor limites a Deus [...]. Sua Majestade tem poder para tudo o que quiser fazer
e deseja realizar muito por nós”50.
Ainda sobre isso, Teresa fala, em Vida, àqueles que pensam não poder fazer uma
boa oração e que, muitas vezes, não o fazem devido ao padecimento do corpo. Eis o
trecho que retrata isso:
[...] o Senhor [...] melhor do que nós, conhece nossa miséria e baixeza
naturais, e sabe que estas almas já desejam amá-lo e pensar sempre nele. [...]
a aflição que nos acabrunha só serve para inquietar a alma. Se está incapaz de
tirar fruto durante uma hora, ficará na mesma quatro horas.
Muitas vezes tudo provém de indisposição corporal. Tenho disto grande
experiência e sei que é verdade, pois o tenho considerado atentamente e
consultado em seguida pessoas espirituais51.

48
DI BERARDINO. Itinerário espiritual de Santa Teresa de Ávila..., p. 125.
49
Cf. 1Cor 15, 35-53;
50
SANTA TERESA DE JESUS. Castelo Interior ou Moradas. In: Obras Completas: Teresa de Jesus. São
Paulo: Loyola/Edições Carmelitanas, 1995. p. 561.
51
V 11, 15.

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Departamento de Teologia

Mais uma vez realista e prática, Teresa sabe que nem sempre se consegue fazer
oração como se gostaria. Por isso, ela dá alguns conselhos valiosos para quando,
algumas vezes, a alma precisar de novos modos de oração:
É bom nem sempre deixar a oração quando o intelecto está muito distraído e
perturbado, e nem sempre atormentar a alma obrigando-a ao que está acima
de suas forças. Há outras ocupações de obras de caridade e leitura de bons
livros, ainda que por vezes nem isto seja possível. Tome alguns passatempos
santos de conversões virtuosas, ou vá ao campo [...]. Em tudo é grande coisa
a experiência, que dá a entender o que nos convém52.

Santa Teresa não perde ocasião para falar seja aos principiantes seja àqueles que
já se decidiram por percorrer este “caminho de perfeição”, ou seja, o caminho de
amizade com Deus (que desemboca em um caminho de amizade com o próximo). Por
experiência própria, ela sabe que este é o caminho que leva à vontade de Deus.
Consequentemente, à prática da vocação relacional/dialógica do ser humano. Pois
quando o ser humano busca este “trato de amizade”, põe em evidência aquilo que lhe é
mais próprio: ser, estar e agir em meio aos outros e junto com os outros.
O ser humano sempre será situacional, pois está fixado no tempo e no espaço
através do seu próprio corpo. Daí, a necessidade de relacionar-se e de manter tanto
quanto possível as relações que lhe são necessárias. Por ser situacional, está direta ou
indiretamente condicionado a fatores externos e/ou internos. Sendo assim, a prática
oracional deve ser e estar amadurecida a partir também desses pressupostos. Por
exemplo, “a aceitação serena dos próprios limites traz [...] à alma a paz e a
tranquilidade. [...] a primeira disposição, [...], é a de colocar-se nas mãos do Espírito
Santo e deixar-se trabalhar por ele, sem pressa e impaciência”53.
Sendo uno, o ser humano deverá ser todo na oração que se propõe a fazer.
Portanto, fatores internos e/ou externos são parte integrante de uma prática oracional.
Podemos citar mais um exemplo sobre isso. A posição do corpo no momento da oração
influencia muito. Teresa também se ocupa deste assunto no capítulo quinze do Livro da
Vida, que traz em uma das linhas do título: Alguns avisos sobre o modo de proceder na
oração de quietude. Santa Teresa nos sugere que “uma boa posição favorece a
concentração dos sentidos para a quietação que disso resulta”54. Eis um trecho de V 15,
1 que pode retratar bem isso:
Tal quietude e recolhimento é coisa que a alma sente muito pela satisfação e
paz que nela se derrama, com grande contentamento e sossego das faculdades
e suavíssimo deleite. [...]. Não se atreve a se mexer nem se agitar, com temor
de que lhe escape das mãos aquele bem. Por vezes nem quisera respirar. [...].
(A alma) se sente tão satisfeita com Deus que, estando a vontade unida a ele,
não perde a tranquilidade e o sossego durante seu contentamento.

Segundo a santa de Ávila, “não existe fratura entre o corpo e a alma no momento
da oração, pois muitas vezes a felicidade e a paz da alma vertem-se sobre o corpo,
gratificando-o muito”55. Corpo e alma unidos, em oração, beneficiam-se mutuamente.
Cada um, portanto, busque achar a posição corporal que mais lhe trará proveito na
52
V 11, 16.
53
DI BERARDINO. Itinerário espiritual de Santa Teresa de Ávila..., p. 131.
54
Idem. p. 132.
55
Idem. Cf., por ex., SANTA TERESA DE JESUS. Castelo Interior..., p. 477, §4.

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Departamento de Teologia

oração, sempre numa atitude de escuta, espera e receptividade ativas, atento às graças
que Nosso Senhor quer comunicar a cada um em particular.
Não havendo, portanto, fratura entre o corpo e a alma na dinâmica espiritual, “o
corpo aparece, tal como a alma e junto com ela, como dimensão que necessita
transformar-se e humanizar-se na relação com Deus e com os irmãos”56. Portanto, “a
atitude teresiana na relação corpo-alma é dialogante”57.
Como já vimos, o corpo é sempre condicionado, assim como a alma, tanto por
fatores externos e/ou internos. Por isso, essa atitude dialogante deve vir acompanhada
pela criatividade da própria pessoa na dinâmica espiritual pessoal. A vocação
relacional/dialógica que pertence a todo ser humano pode ser, aqui, posta em prática de
forma sábia, ou seja, numa atitude suave, paciente e pacífica entre corpo e alma. Essa
relação necessária consigo mesmo diz respeito, por exemplo, a ter “paciência tanto com
o corpo, que é limitado e cheio de necessidades, quanto com a alma [...] com sua
imaginação incontrolável”58.
Quando o ser humano consegue relacionar as dimensões que o compõe (corpo e
alma), podemos assim dizer, de forma harmônica e criativa, essa relação consigo
mesmo, desemboca na sadia relação com Deus, com o(s) outro(s) e com o meio em que
se vive. Por isso é tão necessário o bem estar e a harmonia pessoal. Pois quando corpo e
alma se entendem ou dialogam, nem um nem outro ficam setorizados, mas, ao contrário,
colabora um com o outro.
Segundo Santa Teresa, deve-se buscar sempre essa colaboração mútua entre
corpo e alma, para que a alma não seja sufocada pelo corpo e vice-versa59. Essa
colaboração necessária, no entanto, deve vir acompanhada de um “acordo” recíproco,
pois Teresa alerta sobre a compleição de cada ser humano. Cheio de necessidades é o
corpo e, por isso, quanto mais o servimos tanto mais crescerá em regalias60.
Quando o ser humano decide percorrer este caminho de oração, que é também
caminho de humanização, deve levar em consideração também que “o seguimento de
Cristo sempre exige certa ousadia e desejo de autotranscendência, que passam também
pela forma como a pessoa se situa diante das suas diferentes dimensões”61. A
conciliação entre corpo e alma é fundamental para o desenvolvimento da vida espiritual.
Conciliados e interdependentes (contudo, distintos) corpo e alma desenvolvem
seu diálogo necessário de forma privilegiada na oração62. Para o bom desenvolvimento
deste diálogo, a realização de duas atitudes básicas é necessária:
A primeira, a determinação em não se acomodar na superficialidade do
autoconhecimento, que é igualmente conhecimento/amor de Deus. Mas a
determinação, sozinha, pode se transformar em voluntarismo, incompatível

56
PÁDUA, Lúcia Pedrosa de. Espiritualidade integradora: o testemunho privilegiado de Santa Teresa de
Ávila. In: GARCÍA RUBIO, Alfonso (Org.). O Humano Integrado: abordagens de antropologia teológica.
Petrópolis: Vozes, 2007. p. 188.
57
Ibid. p. 189.
58
Ibid.
59
Cf. V 11, 16; V 13, 14.
60
Cf. PÁDUA. Op. cit., p. 189. Cf. também V 13, 4.5.7.
61
Idem.
62
Cf. Ibid. p. 190.

16
Departamento de Teologia

com o acolhimento da amizade de Deus. Por isso, é necessário desenvolver a


liberdade interior, ou discernimento, que observa as necessidades do corpo e
os movimentos interiores para decidir o agir, com liberdade e sem
culpabilizações. Determinação e liberdade interior se interagem,
dialeticamente, ora desacomodando, ora adequando o agir às necessidades da
pessoa63.

Jesus Cristo é incomparável exemplo de pessoa determinada e livre. Mesmo


sendo Deus, o diálogo/encontro consigo mesmo, com os outros e com o Outro, Deus
Pai, era constante. Ele não se valia apenas do seu ser divino 64, mas numa atitude de
amor livre e responsável, cultivou como ninguém o hábito da oração.
É partir da pessoa de Cristo que Teresa se vale quando nos testemunha sua
experiência de oração declarando ser radicalmente dependente dele. Se o próprio Jesus,
sendo Filho de Deus, determinou-se na prática oracional, tanto mais nós, seres
humanos! Devemos, portanto, imitá-lo. Este exemplo dado por Cristo é explicitado
valorosamente por São Paulo em Fl 2, 6-7a: “Ele tinha a condição divina, e não
considerou o ser igual a Deus como algo a que se apegar ciosamente. Mas esvaziou-se a
si mesmo, e assumiu a condição de servo, tomando a semelhança humana”.
Cristo, “achado em figura de homem” (Fl 2, 7b) deve ser seguido e imitado
como tal. Portanto, “a humanidade de Cristo é o fundamento possibilitador do processo
de assumir e amar a corporeidade”65.
Mais uma vez consciente, Teresa sabe que Cristo é o fundamento de toda a sua
experiência e doutrina. Por isso, os seus escritos estão repletos de cristocentrismo. Ela
sempre recorda que Jesus é seu verdadeiro mestre: “Sua Majestade tem sido sempre
meu mestre”66. Este aspecto revela, sem dúvida, uma vida totalmente enxertada na
pessoa de Jesus de Nazaré.
Santa Teresa de Ávila nos apresenta uma doutrina e um testemunho de vida com
base sólida e confiável: Jesus Cristo. Quando o Senhor diz à Teresa: “Não tenhas pena,
que te darei livro vivo”67, Teresa diz: “Sua Majestade tem sido o livro verdadeiro onde
tenho visto as verdades. Bendito seja tal livro, que deixa impresso o que se há de ler e
fazer, de maneira que não se pode esquecer!”68.
Teresa sabe que Cristo é o sustentáculo de toda a sua vida e doutrina e, por isso
mesmo, ela mais uma vez se mostra humana e realista. A sua experiência do mistério de
Deus nos ajuda a compreender que a oração para ela é uma amizade verdadeira e
duradoura quando esta se encontra “emoldurada nas exigências de conformação com
Deus”69.
Podemos agora compreender com mais clareza a espiritualidade de Teresa de
Jesus. Ela nos mostra uma espiritualidade encarnada, ou seja, uma espiritualidade que se
deixa impregnar pela vida e vice-versa, justamente porque ela mesma deixa entender

63
Idem.
64
Cf. Fl 2, 6-11.
65
PÁDUA. Op. cit., p. 193. Cf. V 22, 10.
66
V 12, 6.
67
V 26, 5.
68
Idem.
69
CASTELLANO. Espiritualidad Teresiana, p. 134. “T. A.”

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Departamento de Teologia

que a humanidade de Cristo é o protótipo necessário para que o cristão compreenda esse
trato de amizade e, compreendendo-o, possa desenvolvê-lo e, desenvolvendo-o, ensine
àqueles que querem começar este caminho.
Teresa é contra toda doutrina que prega um Jesus unilateralmente divino. Para
ela, é impossível desenvolver bem o caminho espiritual sem meditar os mistérios da
vida, paixão, morte e ressurreição do Cristo homem como nós70. Oração e corporeidade,
para Santa Teresa, portanto, estão intimamente interrelacionadas. Quando nos afastamos
do Cristo Homem, corremos o risco de desenvolver uma espiritualidade desencarnada e
antinatural.
Em V 22, 10, esta mestra de oração nos exorta ao dizer que “não somos anjos,
temos corpo” e ainda que “Cristo é o melhor amigo [pois] olhando-o feito homem,
vemos suas fraquezas e tormentos, e permanecemos em sua companhia”.
Por um caminho de grande engano caminha aquele que afasta de si toda a
realidade corpórea. Teresa diz que é desatino “queremos passar por anjos enquanto
estamos na terra”71. Por isso, ela fortemente nos alerta sobre a necessidade da
humanidade de Cristo. É loucura querer afastar do caminho da vida espiritual o diálogo
com Cristo homem e não gozar da sua fiel companhia. Por isso, é de grande verdade
quando Jesus declara: “Eu sou a porta” (Jo 10, 9a). E ainda: “Eu sou o Caminho, a
Verdade e a Vida” (Jo 14, 6).
Ao longo de sua experiência de vida espiritual Teresa percebeu que a
“debilidade do homem necessita encontrar sempre em Cristo um eco para seus
sentimentos, um refúgio em suas deficiências”72, pois Ele “nunca falta, é amigo
verdadeiro” 73.
Sem dúvida, Jesus é o modelo e o caminho, a fonte de toda a graça, para Teresa,
pois ela mesma afirma em V 22, 6:
Vi depois, e sempre tenho visto claramente, que para agradarmos a Deus e
para que nos conceda favores, deseja ele que os recebamos por intermédio
desta humanidade sacratíssima, na qual Sua Majestade (Deus Pai) declarou
ter posto suas complacências. Tenho visto muitas vezes por experiência; o
Senhor também me disse isto. Tenho compreendido claramente que esta é a
Porta (Cristo) pela qual devemos entrar, se pretendemos que a soberana
Majestade (Deus Pai) revele grandes segredos.

CONCLUSÕES
Foi possível, através desta investigação científica, aprofundar no tema da oração
numa perspectiva integral e integradora. Daí, concluímos que a oração integral e/ou
integradora, sem dúvida, depende do desenvolvimento (de forma madura) das relações
humanas, sempre buscando vinculá-las umas às outras. Quando o contrário acontece, ou
seja, quando o ser humano nega a sua necessidade de relacionar-se, este se tornará lento
no seu processo de humanização e consequentemente não terá uma oração fecundada
pela vida nem uma vida fecundada pela oração. Buscando desenvolver bem suas
relações e integrá-las tanto quanto possível, o ser humano será capaz de desenvolver um
sadio processo de humanização e uma sadia oração.
70
Cf. Ibid. p. 153-155. Cf. também V 22.
71
V 22, 10.
72
CASTELLANO. Op. cit., p. 154. “T. A.”.
73
V 22, 6.

18
Departamento de Teologia

Pudemos concluir também que Santa Teresa não desvalorizou seu corpo, seu ser
feminino. Ela soube vincular todos os setores da sua vida e nos deixou entender, no
Livro da Vida, que foi uma mulher que, através do seu trato de amizade com Deus, pôde
ser mais humana e integrada.
Teresa deixa transparecer que o ser humano é corpóreo e que, por isso, não deve
desvincular a oração da vida nem a vida da oração e sim, buscar no modelo Cristo,
aquilo que todo ser humano deve assumir: sua humanidade. Ativa e presente no seu
trato de amizade com Deus, a santa de Ávila, a mestra de oração, a doutora da Igreja
Católica, depois de sofrer muitas “quedas espirituais”, verdadeiramente, soube percorrer
seu caminho de amadurecimento humano e espiritual.
Em suma, constatamos que a oração é relação que por sua vez se dá através da
própria corporeidade humana. Oração e corporeidade, portanto, estão intimamente
ligadas. Sem relações com as pessoas, com os acontecimentos diários da vida, com
Deus, a oração será mera fuga e alienação. Sem dúvida, a oração geradora de relações é
a que leva ao encontro/diálogo, que se abre ao dom de si mesmo e ao dom do(s)
outro(s). É aquela oração em que o ser humano não nega sua corporeidade e, por sua
vez, a sua vocação relacional/dialógica. A partir disso podemos ratificar dizendo que a
oração fecunda a vida e a vida fecunda a oração, ou seja, estão intima e
inseparavelmente vinculadas.

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