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Religiões do Mundo I

Religiões do Mundo I
Introdução à Religião Comparada

LUIZ GONZAGA DE CARVALHO NETO

Aula 09
Introdução ao Judaísmo.

O texto desta transcrição não foi revisto ou corrigido pelo autor.

Na aula passada explicamos alguns dos traços que diferenciam


fundamentalmente as tradições abraâmicas das tradições arianas. Uma das
características das tradições abraâmicas é que o registro de certos fatos
históricos era de crucial importância para a transmissão e preservação dessas
tradições. Por quê? Porque o estabelecimento de uma relação entre um
indivíduo humano e Deus não é um fato natural que derive simplesmente da
pura natureza das coisas. Sendo um fato contingente, caso não se preserve a
memória desse fato, não se pode demonstrá-lo depois.

Os princípios básicos tanto do Hinduísmo quanto do Budismo podem


ser demonstrados de uma maneira ou de outra, porque esses princípios básicos
derivam de conteúdos universais da inteligência; eles são comproporcionados à
inteligência humana. Embora exista neles, evidentemente, um elemento do
transcendente, o discurso fundamental se dirige à inteligência humana, então
mesmo que se esqueça qual foi o fato histórico que ocasionou o entendimento
dessas coisas, é possível, só pelo registro do conteúdo dessas verdades, refazer o

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mesmo ato. Os princípios básicos do Hinduísmo e do Budismo são como os


princípios básicos da Geometria – eles têm mais ou menos a mesma natureza.
Se há o registro simplesmente do conteúdo desses princípios – tome-se como
exemplo os treze “Elementos” do Euclides –, não precisamos saber como e em
qual circunstância Euclides entendeu aquelas verdades sobre Geometria; basta
termos o registro do que ele entendeu para que possamos vir a entender de
novo. Porém, uma relação pessoal com Deus não é algo assim, não é algo
demonstrável; é como uma relação com uma pessoa, com um ser humano, com
outro indivíduo humano. Não existem princípios de Psicologia, ou Antropologia,
ou Sociologia, dos quais você possa derivar o conteúdo real de uma relação entre
dois indivíduos humanos. Somente o registro de como eles se conheceram; o
quê eles conversaram; como eles pensavam; como era a personalidade de cada
um etc., ou seja, só uma descrição, uma narração dos fatos, é que nos leva a ter
uma idéia do que era aquele relacionamento. Uma relação de um ser humano
com Deus é a mesma coisa: não existe uma ciência da qual possamos derivar o
conteúdo de uma relação assim.

Também explicamos, na última aula, que essa relação só pode ter como
base aquilo que é a razão de unidade de uma pessoa, e que qualquer relação
concreta de um indivíduo com Deus depende da disposição do indivíduo para
entregar, voluntariamente, a sua liberdade para Deus – assim como uma relação
com uma pessoa. Uma relação com um indivíduo humano é uma sucessão de
encontros em que você vai lapidando a sua liberdade – seja na direção da
amizade, seja na direção da inimizade. Depois de cada encontro, você toma uma
nova decisão acerca do que você pode ou não fazer em relação àquela pessoa, e
assim aquela pessoa vai se destacando das outras para você; em cada encontro
você vai tomando uma série de decisões. A pessoa, por exemplo, faz uma coisa
que te desagrada, e aí você decide: “nesta pessoa eu aceitarei isso ou não?”. Se
você disser: “nesta pessoa eu aceitarei esse tipo de ofensa, porque vale a pena
manter uma relação com essa pessoa”, você moldou a sua liberdade; você,
voluntariamente, renunciou a um aspecto da sua liberdade, porque a presença
daquela pessoa na sua vida vale a pena. Isso aí vale tanto para as relações de

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amizade quanto para as relações de inimizade. As relações de inimizade se


destacam na mente humana tanto quanto as de amizade – um inimigo não é um
qualquer; é um para com o qual você tem certas regras particulares de
relacionamento.

Pois bem, então o quê os judeus começam a registrar da sua história?


Justamente os momentos em que esse relacionamento com Deus avançou. Eles
começam a registrar os encontros sucessivos com Deus, em que cada uma das
partes renunciou a algo da sua liberdade para manter o relacionamento.

Até certo ponto, enquanto os descendentes de Abraão eram em pequeno


número, essa relação podia ser estabelecida pelo chefe da família. Enquanto os
descendentes de Abraão eram apenas uma família, o chefe da família, como seu
representante, tinha esses encontros com Deus, nos quais se marcavam as áreas
de liberdade e as áreas de necessidade; foi assim com Abraão, foi assim com
Isaac, foi assim com Jacó. Mas chega uma hora em que essa família cresceu
tanto que já não é mais só uma família, mas sim um povo, que inclui várias
famílias; mais ainda: ela é um povo em servidão, ou seja, um povo escravo.
Então como você continua esse mesmo relacionamento? O relacionamento tem
que mudar de plano. Um povo em servidão não tem um líder, não tem um
representante. O líder de um povo em servidão não pertence àquele povo. Então
o quê eles preservavam? Eles preservavam a memória dessa relação.

Para entendermos exatamente como, da tradição ou religião abraâmica


(a religião de Abraão), deu-se um salto qualitativo para se formar o Judaísmo,
ou Mosaísmo – a religião de Abraão era a religião de uma família; já o Judaísmo
é a religião de uma nação, de um povo, em que os laços familiares,
evidentemente, estão atenuados –, para entendermos como se dá esse salto, a
primeira coisa que temos que fazer é limpar um pouco a nossa mente, para que
tenhamos uma idéia clara e limpa do que é um judeu. No fundo dos nossos
pensamentos sobre judeus, somos assombrados por imagens de pessoas que vão
de Judas Iscariotes ao Shylock – o personagem do Mercador de Veneza –, ou
seja, ou o sujeito é um traidor, ou é um avaro que só pensa em dinheiro. Toda

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vez que ouvimos a palavra “judeu”, essas duas imagens estão presentes, no
fundo, para medir o que estamos percebendo. O fato de olharmos o judeu sob o
ponto de vista de séculos de Cristianismo faz com que a nossa visão do judeu
seja muito imperfeita. Mais ainda: tendemos, como cristãos, ou herdeiros do
Cristianismo, a sentir uma maior simpatia pelos budistas do que pelos judeus e
muçulmanos; os judeus e muçulmanos nos parecem mais estranhos do que os
budistas. Do ponto de vista cristão superficial, tanto um judeu quanto um
muçulmano parecem um pouco materialistas e terrenos, parecem pouco
espirituais – o judeu materialista na direção da avareza, e o muçulmano um
materialista na direção do hedonismo; ou seja, um só pensa em guardar
dinheiro, e o outro só pensa em gastar dinheiro. E onde está Deus nesta
história? Está claro que essa é a lente por meio da qual nós olhamos os judeus e
muçulmanos? Embora as suas religiões – tanto dos judeus quanto dos
muçulmanos – sejam, historicamente, mais próximas da nossa, eles parecem
espiritualmente mais distantes de nós. É difícil, para uma pessoa nascida na
civilização cristã, isolar os judeus da imagem de Judas Iscariotes, dos sacerdotes
que perseguiram o Cristo – “ah, eles são os caras que mataram o Cristo”. É certo
também que depois da 2ª Guerra Mundial é difícil para alguém, na civilização
ocidental, ter fortes, claros e definidos sentimentos anti-semíticos – sabemos
qual foi o preço desses sentimentos. Mas, no fundo, o que sobra é: “eles são
maus, mas não deveríamos ter batido tanto neles pela sua maldade”. A nossa
incompreensão deles como povo, como seres humanos e como pessoas
religiosas é total; não temos a menor idéia do quê eles são como pessoas
religiosas.

Aluna diz que os judeus são fechados e pergunta por que eles raspam a
cabeça.

Professor: essa é a décima-quinta pergunta [a ser feita sobre o


Judaísmo]. Primeiro: por que eles são fechados? Não é por um mecanismo de
defesa. Se você perguntar para os judeus: “vocês são fechados?”, eles
responderão: “não. Deus nos separou da humanidade como um povo. Deus

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chegou para nós e falou: ‘Israel, farei de ti uma luz para as nações; vocês estão
aqui, as nações estão ali’”. Em que sentido Ele fez de Israel uma luz para as
nações? Ele falou: “com esta nação Eu mostrarei para o mundo o quê é um povo
inteiro viver centrado numa relação pessoal com Deus; mostrarei o quê significa
isso”.

Deus escolheu um povo que tinha duas características que o distinguia


dos povos em torno. Primeiro, eles eram todos descendentes de um sujeito que
começou uma relação pessoal com Deus. Segundo, a idéia de Deus, o Deus com
o qual eles se relacionavam era diferente dos outros deuses em torno – todos os
povos ali tinham deuses, e eles mesmos não negavam a existência desses outros
deuses; eles só alegavam que o deles era maior, ou que o deles sobrepujava esses
outros, e que quando eles eram escravizados, eles não eram escravizados pelos
egípcios, mas sim porque o seu [dos judeus] Deus tinha mandado que eles
fossem escravizados. Essa persistência é a primeira nota que distingue o povo
judeu dos outros povos em torno. Nos outros povos havia vários deuses; então
era assim: quando um começava a te bater demais, você o trocava por outro. Os
judeus diziam: “não, mesmo que o nosso Deus só nos puna, nós temos que ficar
com Ele, porque Ele está nos ensinando alguma coisa com essa punição”. Esse
sentimento era único entre aqueles povos todos; esse era o único povo que tinha
essa noção.

Isso deriva do quê? Justamente do fato do Deus deles se originar, para


eles, de uma relação pessoal. O quê acontece quando você tem confiança muito
grande numa pessoa, e ela começa a fazer coisas que te prejudicam, ou que te
incomodam? Você, no dia seguinte, já descarta aquela pessoa da sua vida, ou
você tenta entender por que ela está fazendo aquilo? Você tentará entender com
todas as suas forças – e no momento em que eles eram escravos no Egito, cada
um dos judeus estava pensando nisso: “por que Deus está fazendo isso
conosco?”. Eles não estavam pensando em trocar de um Deus para outro; eles
estavam tentando entender por que Deus estava agindo daquele jeito.

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Isso significa que essa busca de entender Deus, o desejo de compreender


Deus, entender por que Deus está agindo desse jeito conosco é o primeiro valor
espiritual marcante dos judeus. E é justamente nessa passagem, quando eles são
libertados do Egito, que eles têm a primeira expressão coletiva do porquê Deus
estava fazendo aquilo, e é isso que vai transformá-los em uma nação com uma
identidade religiosa clara, porque se a razão de unidade de uma pessoa é a sua
liberdade de fato, a razão de unidade de um povo, ou de uma nação, é a
expressão em leis de seus valores espirituais mais íntimos.

Vamos supor que você tem aqui um grupo de 100 pessoas, e todas elas
têm uma identidade nos seus valores espirituais mais profundos – suas crenças
espirituais mais profundas são iguais. Se elas conseguem expressar essas
crenças em leis, essas leis terão uma força sobre cada indivíduo que é
incalculável, porque é difícil identificar os valores espirituais dos outros,
especialmente os mais profundos, mas a facilidade que eles têm para aderir a
uma mesma lei indica essa identidade de valores espirituais. O processo de
saída do Egito explicitará para o povo hebreu os seus valores espirituais mais
íntimos, e culminará dando para esses valores a forma de leis.

Quando Deus promulga as leis, Ele Se auto-declara o soberano do povo


hebreu; quando Deus revela as leis, Ele Se declara soberano do povo hebreu.
Um povo não pode, como um todo, ter uma relação mais íntima com Deus do
que essa. Moisés, a qualquer momento, poderia ter dito: “eu sou o rei de todos
vocês”, e eles todos teriam que calar a boca; mas ele não fala isso, ele fala: “Deus
é o nosso soberano, e eu apenas julgo segundo as leis que Ele determinou”, ou
seja: “sou apenas um juiz”.

Aluna faz comentário sobre o episódio do bezerro de ouro.

Professor: aí o quê Moisés fez?

Aluna: quebrou as tábuas da lei.

Professor: e depois de quebrar as tábuas da lei?

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Aluna: ficou muito brabo.

Professor: e depois disso?

Aluna faz comentário.

Professor: e passou quantos ao fio da espada? 3.000 (três mil) [conferir


Êxodo, 32, 28].

Aluna: ele está ganhando do Hitler então.

Professor: não. Por quê? Porque Deus disse: “esses 3.000 não são o meu
povo”. Por quê? Porque o que caracterizava o povo hebreu era essa comunidade
de valores que se expressava naqueles mandamentos. Se o sujeito não era capaz
de, como um todo, na sua vida, sustentar aquelas leis, era porque ele não tinha
aqueles valores íntimos. Se ele não tinha aqueles valores íntimos, ele não era
membro daquela nação. Esse processo de saída do Egito foi a transformação de
um povo em uma nação, com uma identidade real.

Aluna: mas então houve uma guerra? Ele não matou sozinho os 3.000,
então houve uma secção.

Professor: não, não houve uma secção. Ele juntou os levitas [conferir
Êxodo, 32, 26], e eles mataram, sozinhos, os 3.000.

Aluna: então deve ter sido na base da traição, na calada da noite.

Professor: não, na base da traição e da calada da noite é impossível. É


preciso que esses 3.000 estejam paralisados por uma incompetência íntima.

Aluna: algum temor, alguma coisa.

Professor: o fato mesmo de eles terem perdido a sua essência espiritual,


e de esta essência estar tão clara para esses quatro. É assim: “Deus acabou de
abrir o Mar Vermelho pra você, e você já está desobedecendo? Você não vale
nada”.

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Outra forma de expressão que Moisés dá a esses valores, por inspiração


divina, é o relato do Gênesis. O relato do Gênesis explica muito sobre o povo
hebreu e sobre o seu Deus. Por exemplo, Deus cria o mundo em seis dias. O quê
acontece quando chega ao final? Deus diz: “tudo isto é muito bom”. Ao terminar
de criar o mundo, Deus faz um juízo acerca do mundo que Ele criou, e esse juízo
é: “tudo isto é muito bom”. Esta é a exata impressão que o hebreu tem acerca do
mundo, e da realidade: o mundo é um lugar muito bom.

Quando o grande filósofo judeu Maimônides descreve as razões para


você saber que o mundo é governado por um Deus soberano e boníssimo, ele
começa a falar sobre as necessidades básicas do ser humano. Ele fala: “no
momento mesmo em que você nasce, qual é a coisa mais imediatamente
necessária para você? Qual é a primeira coisa que você precisa? Ar. Qual é a
coisa mais abundante no mundo?”. Opa, Deus cuidou para que justamente a sua
primeira necessidade crucial esteja garantida em qualquer lugar. Do ar ele segue
para a água, e depois para o alimento. A segunda necessidade imediata é de
líquido, é de água. A água é o segundo elemento mais abundante no mundo,
depois do ar – é o segundo mais fácil de encontrar. E em terceiro o alimento,
que também é o terceiro mais fácil de encontrar. Ele fala: “como você explica
isso? Você só explica isso se você entender que este mundo é um lugar muito
bom. O mundo abunda em riquezas. Você é uma coisinha desse tamanho, e você
tem um mundo imenso de recursos pra você”. Esse sentimento de gratidão
caracteriza o judeu até hoje; essa sensação de ter ganhado na loteria ao nascer
nesse mundo caracteriza o judeu até hoje. Nós, pelo contrário, as impressões
mais profundas que temos acerca do mundo é que o mundo é muito mau, que é
um lugar que é uma droga para se viver. O judeu já olha e fala: “peraí, as coisas
mais necessárias são as mais abundantes! Como você pode dizer que é mau um
lugar como esse? Imagine se você tivesse nascido num mundo em que o
elemento mais abundante fosse o fogo. Então 90% dos seres que nasceriam já
seriam queimados imediatamente após o nascimento. Isso sim seria um mundo
muito mau!”.

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Aluna diz que na região de onde vieram os judeus não tem abundância
de água.

Professor: não tem tanta água assim. Aliás, essa imagem é outra que
explica muito acerca do espírito judaico. Imagine a sua sensação ao passar anos
e anos andando por um deserto, e, de repente, você chegar num lugar coberto de
relva. Quem não percebe a sutil sensação de caminhar descalço sobre a grama
num dia de verão não entende exatamente como o judeu vê o mundo. Mais
ainda, se olharmos no Gênesis o relato da criação da relva, entenderemos algo
mais sobre o judeu. No terceiro dia Deus diz: “reúna-se a massa das águas num
só volume e surja o elemento seco, a terra”. Ele junta as águas num só
continente para surgir a terra. E aí Ele diz: “faça da terra surgir a erva verde de
todos os tipos”. Disso deriva esse sentimento de contentamento, um misto de
contentamento e gratidão, que é o que o sujeito sente quando é aliviado de um
calor intenso, quando ele sai da areia e vai para a grama, e esse é o sentimento
característico do judeu em relação ao mundo.

Inúmeros místicos judeus dizem que a grama é a criatura mais perfeita.


Os místicos judeus passavam horas e horas sentados na grama, olhando para
ela, para entendê-la. Eles diziam: “a grama é a única das criaturas que não fere
os mandamentos de Deus, porque é sempre bom estar na grama, é sempre bom
ter grama perto de você”. Existe um eco desse pensamento judaico numa das
escrituras cristãs. No Apocalipse tem um dia em que Deus manda um anjo
descer uma praga sobre as plantas na Terra, e Ele fala: “mas não fira a grama”.
Deus vai destruir um terço das árvores, um terço das frutas, “mas não fira a
relva”. Além disso, a grama está sempre abaixo de todas as coisas, o que é uma
espécie de perfeição de humildade. É fácil não notarmos que a grama está lá; no
entanto, se ela não estivesse lá, faria uma falta tremenda; se ela não estiver lá,
você perceberá que algo está faltando. Se ela estiver, não é nada, é só o chão
onde você pisa, mas se ela não estiver, algo se tornou mais pobre. É assim que o
povo de Israel se sente diante do mundo: quando eles estão lá, você pensa que
eles são o chão em que você pisa; mas se eles não estiverem, farão uma falta

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tremenda. Existe algo sobre o ser humano que você não vai entender se não
existir o povo de Israel.

Do ponto de vista judaico, a relva surge quando se contraem as águas


numa só região, quando as águas são delimitadas e cercadas. Antes, o mundo
inteiro estava coberto de água, então as águas não tinham um limite; em
seguida elas são reunidas numa área limitada, delimitada, então passa a ter o
limite das águas, e fora delas tem a terra. A nossa imaginação tende a ver as
coisas do ponto de vista contrário: “a terra se estende, e aí ela tem um limite, a
partir do qual tem a água”. Mas, se pensarmos que o mundo era originariamente
água, veremos que o limite não é o limite da terra, e sim o limite da água; é a
água que foi contida numa área limitada, e surgiu a terra. Essa limitação das
águas é para o judeu um símbolo da limitação da sua liberdade em nome de
uma relação com Deus.

A esfera dos seus desejos é indefinida e ilimitada; a sua psique pode


desejar qualquer coisa, em qualquer circunstância, então ela é comparável a
essa massa de águas, que cobre tudo. O judeu diz: “você restringe essa massa, e
dá um limite para ela. Quando você dá esse limite, surge a terra, e da terra surge
naturalmente a vegetação”.

O povo hebreu vivia na natureza, e numa natureza hostil, então ele


percebia: no deserto percebemos claramente toda a força do sol. Eles diziam: “se
você reunir as águas, surge a vegetação naturalmente”. Isso significa que mesmo
a força do sol não é capaz de anular absolutamente a força da vegetação. Então a
vegetação passa a representar para o judeu o conjunto de bens espirituais e
materiais – de coisas que te deixam contente – que surgem da restrição da sua
liberdade numa determinada relação. É só lembrarmos o exemplo de uma
relação pessoal entre dois indivíduos humanos: existem inúmeros traços que
distinguem um indivíduo, que só percebemos na medida em que restringimos
nossa liberdade para manter uma relação com aquele indivíduo – só
descobrimos por causa disso –, que surgem como uma decorrência natural
dessa restrição voluntária da liberdade. Até então, até o momento dessas

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restrições, não conhecemos a pessoa, conhecemos apenas os nossos desejos em


relação à pessoa. A mesma coisa vale com relação a Deus: enquanto o sujeito
não faz esse conjunto de restrições, ele não conhece Deus, ele conhece os desejos
dele [ênfase no “dele”] em relação a Deus. Ele não sabe como é Deus, ele só sabe
o que ele [ênfase no “ele”] quer de Deus.

Justamente o que caracteriza o judeu é a fé inabalável de que desta


restrição voluntária só surge o bem, só surgem coisas que aliviam e facilitam a
sua vida, por mais difícil que a restrição possa parecer de início. É por isso que
eles encaram os sofrimentos deles, como povo, no decorrer da história, como
restrições temporárias à sua liberdade, para que possa se destacar e surgir outro
aspecto de Deus e da realidade para eles.

Então existem duas idéias que como que dominam a mente deles:
primeiro a idéia de que tudo tem um sentido, que se explica depois, na história
mesmo. Percebam que para o budista e para o hindu o sentido está fora da
história, o sentido é supra-histórico; ele não é algo que se revela depois, mas sim
algo que sempre existiu, e que está num plano fora do tempo. Para o povo
hebreu não. Eles dizem: “todo e qualquer sofrimento que você tem agora tem
um sentido que se revela depois, no tempo”. Por quê? Porque é uma restrição à
liberdade, para que você conheça melhor a pessoa com quem você está se
relacionando. É fácil de perceber isso: se você conhece uma pessoa hoje, e, na
primeira coisa que ela faz que te desagrade, você decide: “não quero ver essa
pessoa nunca mais”, você nunca saberá como era aquela pessoa; você não terá a
menor idéia do que ela tinha pra te oferecer, porque você olhou só a massa de
desejos que você tinha em relação a ela, e viu: “essa massa de desejos não está
contente”. Aí o judeu vai te dizer: “é o seguinte, meu filho, você não aprendeu
uma lição sobre a vida: essa massa de desejos não tem um limite por si mesma,
então é impossível contentá-la. O único jeito de contentá-la é criando um limite
para ela”.

Nessa relação com Deus eles descobriram o segredo da prosperidade –


tanto espiritual quanto material. Eles descobriram: o único jeito de perceber

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como as coisas realmente são é restringindo os seus desejos voluntariamente; e


quando você percebe como as coisas são, você percebe que as coisas são muito
boas.

Então cada capítulo da história do povo hebreu mostra justamente isso:


uma sequência de sofrimentos que restringe a liberdade deles, até eles
aceitarem aqueles sofrimentos justamente como um modo de restrição da sua
liberdade para se relacionar com Deus: aí a realidade se abre para eles, e ela se
abre justamente como um tapete de relva, uma paisagem maravilhosa, uma
terra prometida.

Isso, para os cristãos, é algo difícil de entender. Os judeus são


espirituais, e aí eles enriquecem. Na medida em que eles são fiéis à sua tradição,
eles enriquecem. As riquezas deste mundo e do outro, as riquezas materiais e
espirituais – espirituais no sentido de uma compreensão única do que é a
realidade, e uma relação única com o princípio dessa realidade; e as materiais –,
todas elas se abrem para eles. Do mesmo modo que, quando fazemos sacrifícios
para manter uma relação com uma pessoa, começamos a entender cada vez
mais aquela pessoa. Só que as pessoas podem ser boas ou más. Então, por
exemplo, você se esforça para se relacionar com uma pessoa, e, no final do
relacionamento, você chega à conclusão: “era só um canalha mesmo. Quanto
mais eu descobria, pior ficava”. Aí os judeus vão dizer o seguinte: “com Deus é
diferente: quanto mais você descobre sobre Ele, melhor fica. Então quanto mais
você cerceia a sua liberdade para estabelecer, numa sucessão de encontros, um
relacionamento com Deus, melhor as coisas ficam pra você, porque melhor essa
‘pessoa’ que é Deus se mostra para você”.

Se a idéia de sentido na história é uma das idéias que estão sempre


presentes pra eles, a segunda idéia é a de que existe uma justiça invencível no
mundo. Os judeus têm uma fé na justiça das coisas que nenhum outro povo tem.
A explicitação sucessiva do sentido dos sofrimentos mostra pra eles: tudo que
acontece é perfeitamente justo, e a aceitação da justiça termina sempre numa
abertura para o que há de melhor na realidade. Por exemplo, diante de um bem

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material, um judeu tem um tipo de sentimento de gratidão e contentamento que


é quase incompreensível para um cristão. A consciência histórica que eles têm
de que os sofrimentos e os benefícios são determinados pelo estreitamento das
relações com Deus, e não simplesmente por um efeito do seu comportamento
imediato, é muito claro pra eles. É muito difícil pra um judeu, quando ele obtém
um bem material, dizer: “fui eu que obtive. Eu sou o cara que trabalhou duro
para isto, e ninguém é mais dono disso do que eu”. O judeu sabe: “podia ser
justíssimo que eu obtivesse esse negócio aqui, que eu merecesse, mas aí era
necessário que eu estreitasse a minha relação com Deus, então eu perdi isso
aqui”. Está lá o exemplo de Jó; a história de Jó é justamente para ilustrar isso. O
tempo todo, na história, Jó está falando: “eu não pequei”. Todo mundo está
falando pra ele: “se você perdeu as coisas boas que você tinha, se Deus tirou as
coisas boas que você tinha, é porque você é mau, porque você traiu...”, e ele:
“não, eu não fiz isso, nem isso, nem isso. Eu não sei por que Deus está fazendo
isso comigo, mas não foi porque eu pequei, não foi porque eu fiz algo errado”.
Foi porque Deus queria estreitar as relações de Jó com Ele.

Aluno: no Cristianismo vemos sempre como uma punição?

Professor: nós temos a tendência a ver as coisas assim: a ver que, toda
vez que a ganhamos alguma coisa, é Deus que está nos recompensando porque
somos bons, porque somos legais, porque estamos seguindo o caminho Dele.
Essa visão, na verdade, não é especificamente cristã; essa é uma visão pagã que
entrou no ambiente cristão; uma visão que herdamos dos nossos antepassados
pagãos, e não dos nossos antepassados judeus.

O judeu fala: “às vezes você faz o que é justo, e aí Deus te dá uma
recompensa”. Mas a recompensa que Ele te dá depende do quê? Depende da sua
relação efetiva com Ele; se você precisa estreitar a sua relação com Ele, a
recompensa que Ele pode te dar pela sua justiça é uma paulada, como aconteceu
com Jó.

Aluna faz comentário.

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Professor: o que o judeu vai falar é o seguinte: “você fazer o bem


esperando ganhar uma recompensa é querer pouco. Se você fizer as coisas para
estreitar a sua relação com Deus, você recebe muito mais”. Por incrível que
pareça, os judeus podem ter uma relação bastante comercial com as outras
pessoas, mas eles não têm com Deus. De todos os povos, eles são o que tem a
relação menos comercial com Deus.

Aluno pergunta por que os judeus prosperam.

Professor: eles prosperam porque, na medida em que eles encaram


todas as suas experiências como uma sucessão de restrições à sua liberdade para
se aproximar de Deus, Deus mostra a realidade para eles como um panorama
em que a vegetação cresce naturalmente, um panorama paradisíaco. Como é
que Deus manifesta o panorama paradisíaco numa sociedade humana? Dando
riqueza para o sujeito.

Aluna diz que o judeu trabalha porque Deus disse que o homem iria
ganhar o pão com o suor do próprio rosto.

Professor: não é verdade. Os judeus trabalham porque Deus trabalhou


seis dias. Por isso que eles trabalham seis dias e não trabalham no sétimo. Eles
trabalham para se aproximar de Deus; mas não é só por isso que eles
enriquecem. Quando eles saíram do Egito, o faraó teimou tanto, teimou tanto,
que no final [Deus] decidiu: “agora não só libertarei vocês, como vocês levarão
os despojos do Egito; vocês levarão peças de ouro do Egito”.

Deus os pôs num sofrimento lá, para estreitar a relação com Ele; aí o
sofrimento se intensificou: “então mostrarei mais ainda a relação Comigo. Antes
Eu ia dar uma lição espiritual para vocês – vocês aprenderiam a receber um bem
espiritual –, mas como o sofrimento aumentou, então além do bem espiritual,
vocês ganharão também um bem material”. Eles prosperam economicamente
porque eles mantêm essa relação, como povo. “Mas por que os outros povos não
prosperam, se eles seguem a sua religião?”. Porque a religião dos outros povos
não é do mesmo tipo que a dos judeus. A religião dos judeus consiste numa

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relação com uma “pessoa” transcendente. Isso é a mesma coisa que uma relação
com uma pessoa boa: quanto mais você vai formando uma amizade real com
uma pessoa boa, mais riquezas dela você vai obtendo – materiais e espirituais,
ela não faz diferença. Deus faz a mesma coisa com eles, faz exatamente a mesma
coisa. Deus fala: “todas as riquezas são minhas, mas vocês são meus amigos,
então Eu dou pra vocês”. Ele partilha com eles como um amigo partilha com um
amigo.

Aluna: como um pai deixa a herança para os filhos.

Professor: não, é mais uma relação de amizade. Qual o título que os


judeus e muçulmanos dão a Abraão? O quê diferencia Abraão espiritualmente
de todos os homens? Abraão era o amigo de Deus; ele formou uma relação de
amizade com Deus. Essa relação de amizade deriva do quê? Dos sacrifícios
mútuos voluntários. É como na seguinte situação: você está na escola, daí você
pega o cara do lado colando. Aí você diz: “não vou te dedar”. O quê acontece?
Você sacrificou um pedaço da sua liberdade em nome daquela pessoa. Aí essa
pessoa também sacrifica algo da liberdade dela para você – assim vocês se
tornam amigos. Abraão foi o primeiro sujeito que fez isso com Deus, então ele é
o amigo de Deus. No decorrer das gerações os judeus decidem: “nós temos que
preservar esta amizade”. As amizades se preservam assim: sacrificando a sua
própria liberdade. E quando você se sacrifica por um amigo, não é porque você
quer uma coisa específica dele, mas porque você quer a companhia dele, você
quer a parceria dele. De vez em quando essa parceria se expressará te
emprestando um dinheiro, te dando um ensinamento; Deus se expressa assim
com eles. Mas eles não estão querendo receber um ensinamento espiritual, ou
um benefício material; eles estão querendo preservar uma amizade. Na
preservação dessa amizade eles acabam recebendo essas coisas do amigo. É
natural, é uma ação natural. Isso seria como o seguinte: meu avô criou uma
amizade com fulano de tal; aí meu pai preservou essa amizade; aí eu vou lá e a
preservo também. A Bíblia toda é a história de uma relação de amizade no
decorrer dos séculos. Na medida em que essa história avança, a relação vai se

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tornando mais consolidada, e mais profunda. Os dois lados vão adquirindo mais
confiança um no outro. A história da perseverança dos judeus no manter essa
relação, sempre cercados de inimigos incalculavelmente mais poderosos do que
eles, não tem explicação. Qualquer outro povo, na mesma circunstância, teria
falado: “é, os deuses dos vizinhos são mais poderosos”.

Essa idéia de preservação de uma relação de amizade nos conduz à idéia


de povo eleito, que é outra idéia que também é incrivelmente mal-compreendida
por quem não faz parte do povo eleito. Para quem não é judeu, a idéia de “nós
somos o povo eleito” é geralmente vista como “ah, vocês estão se achando muito
especiais, vocês se acham bacanas, acham que Deus gosta mais de vocês”. Isso é
não entender o quê significa “povo eleito” para um judeu. Ser o povo eleito
significa ser um exemplo. Para manter uma amizade com Deus, às vezes, mesmo
você fazendo tudo que é certo, você sofre mais do que os outros. Mais ainda: eles
consideram que “nós temos o dever de preservar essa amizade em nome de toda
a humanidade”.

Então o Deus dos judeus é único em vários sentidos. Ele é único porque
é um só, porque pra eles só tem um único soberano último, absoluto, do mundo:
esse Deus. Ele é único porque Ele se relaciona pessoalmente com aquele povo –
o tipo de relação que eles têm com o seu Deus também é único. Nenhum outro
povo consegue encarar a prosperidade assim, como eles conseguem, porque nós
encaramos a prosperidade como fruto do nosso trabalho, mas e se a
prosperidade fosse o seguinte: seu melhor amigo chegou e falou: “olha, cara,
está aqui: R$5.000.000,00 (cinco milhões de reais), porque você é meu amigo”,
como você iria encarar esta prosperidade?

Aluna: com gratidão.

Professor: com gratidão, exatamente. Você ia simplesmente pensar:


“nossa, o mundo é um lugar imensamente bom, eu só tenho que agradecer”. É
assim que eles encaram a prosperidade deles. “Isso aqui foi um amigo que me
deu”. Ou seja, além do valor material do negócio, tem o valor do ato de amizade.

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Religiões do Mundo I

Aluno faz comentário.

Professor: receber este presente e cuidar dele; não dissipá-lo, não


destruí-lo. Além disso, eles também lembram: “do mesmo jeito que eu recebi
agora, eu sei que este amigo uma hora vai precisar, para que eu estreite as
relações com ele, me fazer sofrer, e aí isto aqui será a minha lembrança de que
ele é um bom amigo; será uma lembrança dos favores”.

Se vocês olharem as histórias bíblicas, verão que elas são sempre isso:
eles são colocados numa situação de sofrimento, que eles têm que ir suportando,
suportando, aí eles começam a ser avisados: “você está sofrendo isto porque
você esqueceu esta amizade”, até que esse alerta do esquecimento da amizade é
tão forte que eles vão lá e pedem perdão para o amigo: “puxa vida, desculpa ter
te esquecido”, e aí eles entendem algo mais sobre o amigo, porque o amigo
mostra uma faceta que eles não conheciam, que eles só podiam conhecer diante
daquele sofrimento primeiro, passando por aquele sofrimento.

INTERVALO

A perseverança histórica dos judeus nesse relacionamento pessoal com


Deus só se explica por uma de duas respostas: ou eles mesmos são seres sobre-
humanos e sobrenaturais, ou a “pessoa” com quem eles se relacionam é sobre-
humana. Por exemplo, na Babilônia eles chegaram a perder o seu alfabeto. Eles
tinham um alfabeto, semelhante ao alfabeto árabe, mas passaram tanto tempo
como escravos lá, que chegaram a perder o alfabeto, mas não perderam essa
relação, muito mais abstrata, com uma “pessoa” invisível. Não há exemplos, na
história, de nenhum povo que seja capaz disso. Eles perderam tudo, mas não
perderam essa relação. Por quê? Porque eles perseveraram naquilo que eles
sabiam que é a essência da sua identidade: a continuação de uma relação
pessoal com Deus. E eles sabem mais ainda: que esses sofrimentos existem para
manter essa relação, para aprofundar essa relação – essa é outra noção que
nenhum povo tem espontaneamente. A relação dos judeus com os bens
materiais também se explica assim; a facilidade que eles têm de lidar com os

17
Religiões do Mundo I

bens materiais se explica pelo fato de eles perceberem imediatamente esses bens
como presentes de um amigo. Eles perceberam que o indivíduo humano é uma
coisa muito fraca, qualquer desequilíbrio cósmico que ocorra, a espécie humana
acaba. O fato de não acontecer isso mostra justamente que tem uma “pessoa”
cuidando deles, um amigo cuidando deles, e que simplesmente manter essa
amizade é capaz de garantir a continuidade da existência deles diante de
qualquer inimigo. O número de vezes na história em que eles estiveram diante
de inimigos muito mais poderosos que eles também não tem igual entre os
outros povos. Por exemplo, os gauleses. Os gauleses eram um pequeno povo,
nesse sentido semelhante ao judeu. Os romanos ganharam uma guerra, os
dominaram, e eles acabaram: “já não somos mais gauleses; 100 anos depois,
somos todos romanos” – acabou a religião gaulesa, acabou a roupa, acabou
tudo, tudo, tudo. Quantas vezes na história os judeus se viram na situação dos
gauleses?

Aluna diz que a quantidade de judeus era muito grande.

Professor: não. Por exemplo, no Egito não tinha muitos judeus; na


Babilônia não tinha muitos judeus. Eles eram um povo pequeno. No Egito a
situação deles era semelhante à dos gauleses com Roma. Na verdade o domínio
romano se exerceu de uma maneira muito mais suave até do que o domínio
egípcio sobre os judeus: dos gauleses só os guerreiros foram feitos escravos; o
povo como um todo não foi. Esse domínio, em pouco tempo, levou os gauleses a
perderem toda a sua identidade própria.

Por que os judeus não se tornaram egípcios, depois não se tornaram


babilônios, depois os que estavam na Europa não se tornaram europeus? Por
quê? Como? Porque eles sabiam: cada um desses sofrimentos tem um sentido,
que só pode se explicar na aceitação desse sofrimento. O exemplo com eles é o
seguinte: Deus, por si, é capaz de cuidar de um povo, mesmo que ninguém mais
cuide desse povo.

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Religiões do Mundo I

É por isso, também, que os judeus nunca desenvolveram um credo, um


conjunto de crenças formais que determina a doutrina judaica e a fecha. Todas
as religiões têm um conjunto de crenças formais, menos a judaica. Por exemplo,
no Cristianismo há um Credo. Se você não acredita nele você não é cristão. Os
muçulmanos também têm o seu credo. Os budistas também: as quatro nobres
verdades. Se você não acredita nas quatro nobres verdades, você não é budista.
Os hindus também, e assim por diante. Ou seja, existe um corpo de doutrinas
que é a porta de entrada naquele universo religioso. O corpo de doutrinas não é
a [ênfase no “a”] religião, mas é a porta de entrada para a maioria das religiões,
menos para a judaica. Por exemplo, há judeus que acreditam na imortalidade da
alma, e há judeus que não acreditam. Então o Judaísmo não é um corpo de
doutrinas [o professor não está dizendo que as outras religiões se resumem a
um corpo de doutrinas – basta conferir, por exemplo, a aula 01 –, mas apenas
enfatizando que a doutrina é menos importante para o Judaísmo do que o é
para as demais religiões], é um corpo de práticas diante do sofrimento.

Aluna faz pergunta.

Professor: a salvação é um processo constante na história judaica.

Aluna faz pergunta.

Professor: o Messias é a culminação histórica dessa relação. Toda essa


relação com Deus se manifestará plenamente com a vinda do Messias. Para os
judeus é o seguinte: “a vinda do Messias tornará evidente o que nós estávamos
fazendo todo esse tempo, tornará evidente para todos que nós temos uma
relação de amizade com Deus”.

A visão cristã de Deus é um pouco modificada. Como o Cristianismo


reelabora essa idéia de amizade com Deus, e forma outra religião, que não é o
Judaísmo, é outra história. Mas mesmo para entender o Cristianismo, como o
Cristianismo reelabora essa idéia de amizade com Deus, primeiro você tem que
entender como ela existiu e continua existindo. Por exemplo, o judeu sabe o
seguinte: “quando Deus nos libertou do Egito, isso foi a salvação; quando eu

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Religiões do Mundo I

sofro, e aí Ele me liberta do sofrimento, isso é a salvação”. A salvação é a


amizade com Deus, é um ato contínuo, que se manifesta em várias ocasiões na
história. A salvação consiste na própria relação com Deus.

Aluno faz pergunta.

Professor: sim, existem as leis, mas as diversas escolas judaicas diferem


imensamente sobre isso. Existe um núcleo fundamental: as leis são restrições
voluntárias à sua liberdade para manter uma relação, então não existe nenhuma
escola judaica que diz o seguinte: “todas as leis da Bíblia são sugestões” – isso
não tem. Mas elas diferem no seguinte: “quais são as leis que são
indispensáveis?”. Por exemplo, está lá o mandamento: “não matarás”, então
alguns judeus dizem: “se você bater no seu irmão, se você enchê-lo de porrada,
você não violou o mandamento; mas se você matar, você violou o mandamento”.
Outros dizem: “se você bater demais nele, também já violou o mandamento”.
Outro mandamento: “não prestarás falso testemunho”. Alguns entendem o
seguinte: “na vida cotidiana você pode mentir várias vezes, mas quando te
pedirem, numa situação crucial, um juramento sobre o que você está falando a
respeito de um sujeito, você não pode mentir”. Ou seja, numa situação de
juramento formal, você não pode mentir, mas na vida cotidiana você pode,
mesmo porque muitas vezes você precisa. Está lá o mandamento: “não
cometerás adultério”. Então alguns entendem assim: “se você não é casado, se a
pessoa com quem você dorme não é casada, você não violou o mandamento,
mas você não pode dormir com a mulher do próximo; se ela está comprometida
com o próximo, aí você já não pode mais”.

É evidente que o judeu, como todos os povos, considera várias ações


como vergonhosas e abaixo da medida humana, mas o ponto com ele não é esse;
o ponto com ele é: “o que você faz que te separa da relação com Deus? Eu não
quero que você seja um sujeito legal, um ‘bom sujeito’, eu quero que você
mantenha ou preserve esta relação específica, e é evidente que não é uma pré-
condição para a preservação dessa relação a sua perfeição, mas simplesmente a
sua disposição real para a aceitação da lei, porque a lei é uma expressão

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Religiões do Mundo I

justamente desses valores íntimos”. A lei é para o povo como um todo, para a
nação, aquilo que o diálogo era para Abraão.

Isso significa que a salvação, para o judeu, tem dois aspectos. Por um
lado, o aspecto que possibilita a salvação. Este aspecto é a preservação da
memória dessa amizade, não esquecer esta amizade história, porque esta
amizade já está constituída há séculos. Segundo, ativá-la pessoalmente pelo
cumprimento da lei. Não é a aceitação de uma doutrina, é a lembrança de uma
sucessão de fatos e a aceitação de um determinado comportamento.

O vício espiritual fundamental na religião judaica é a indefinição mental,


a ilimitação mental: você esquece uma amizade porque você a substitui por
inúmeros outros pensamentos. Então não pense em tudo, lembre isto primeiro
(você pode pensar em tudo, desde que você lembre isto), e não faça toda e
qualquer coisa (tem algumas coisas que você não faz, para preservar esta
amizade também).

A religião judaica consiste nesta limitação voluntária da pessoa para


conviver com uma outra pessoa. Quando o sujeito faz estas duas coisas, ele está
salvo ipso facto, por isto mesmo; isto mesmo é a própria salvação.

Pense: você tem Deus do seu lado. Ele fala o seguinte: “se você fizer tal
coisa, você é meu amigo”. Você precisa se preocupar com o quê vai acontecer
depois da sua morte? Deus é seu amigo aqui, agora; a questão do que vai
acontecer depois da sua morte é irrelevante. Ora, se Deus cuida de você agora,
Ele cuidará depois também; se Ele é seu amigo agora, Ele não se tornará seu
inimigo depois. Se um judeu perde essa noção de que ele tem esse amigo, e ele
começa a se preocupar com o futuro pessoal dele depois da morte, isso aí por si
já é romper a amizade, é já não ter a recordação da amizade. Um judeu que
cumpre sua religião não tem essa preocupação. Assim como, quando você tem
um grande amigo, você não se preocupa com o quê ele fará no ano que vem:
“será que ano que vem ele vai me trair?” – é descabida essa noção. Se essa coisa

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Religiões do Mundo I

passa pela sua mente, é porque a amizade não é tão profunda assim, ou o amigo
não é tão bom.

Aluna faz pergunta.

Professor: sim, é uma preocupação de quase todas as outras religiões.


Mas não existe nada mais estranho a uma espiritualidade baseada no
contentamento e gratidão do que começar a se preocupar com o quê vai
acontecer com você.

Nesse sentido da gratidão e contentamento, há outro exemplo histórico,


que é do Budismo Amidista, uma escola de Budismo japonês que se baseia
exclusivamente no contentamento e gratidão para com o Buda Amida. Os
fundadores da escola Amidista falam: “eu não sei se esse negócio aqui, depois da
minha morte, me levará para o inferno ou para o paraíso, e eu não quero saber!
Eu não estou nem aí!”. Shinran, que foi o sacerdote fundador dessa escola, dizia,
quando perguntavam se ele iria para o inferno ou para o paraíso: “não sei, não
quero saber. Se eu for para o inferno, mas eu continuar amigo do Buda Amida, e
ele continuar meu amigo, está ótimo”.

Aluno faz pergunta.

Professor: isso significa que a idéia de amizade transcende isso daí,


transcende a idéia de agrado e desagrado. Inferno é uma coisa que me
desagrada, e paraíso é uma coisa que me agrada. Mas se Deus é meu amigo, e se
agrada a Ele que eu vá para o inferno? Tá bom, vamos lá! Você entendeu qual é
a perspectiva judaica com relação a isso aí? Se Deus estiver com você no inferno,
“so what?”.

Aluna diz que não será o inferno.

Professor: não, será o inferno. Mas e daí? É difícil que vocês nunca
tenham tido um sentimento semelhante para com uma pessoa: “ah, se eu estiver
com tal pessoa, dane-se tudo o mais! Vamos juntos para o inferno, mas juntos”.

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Religiões do Mundo I

É descabido, para o verdadeiro judeu, preocupar-se com o quê acontecerá com


ele depois da morte, é uma ingratidão tremenda, uma desconfiança tremenda.

Aluna faz comentário.

Professor: exatamente, você explica tudo pelo quê eles passaram por
essa idéia: “estávamos apanhando dos egípcios, mas Deus estava conosco”. É
claro que, quando eles estavam lá, sendo escravos dos egípcios, eles desejavam
sair da escravidão, é evidente. Mas se sair dessa escravidão tiver como preço
perder a amizade com o Deus de Abraão, Isaac e Jacó? “Aí não, aí eu não quero”.

Aluno faz comentário.

Professor: a relação com o Estado de Israel é complexa, porque as


diversas escolas judaicas têm atitudes diferentes. Aliás, o Estado de Israel é um
Estado não religioso, é um Estado leigo, por imposição de algumas escolas
judaicas: “é proibido fazer um Estado religioso, porque só Deus pode constituir
um Estado religioso, porque Ele é o nosso soberano”. Então as relações são
diferenciadas. Outras dizem: “o Messias é uma série de fatos na história, e não
uma pessoa específica, e o Estado de Israel é um desses fatos, porque o Messias
é todas as ocasiões que nos libertam maximamente na história, e que vão se
intensificando, numa sucessão histórica”. Para os judeus que pensam assim, o
Estado de Israel tem um valor religioso.

Esses são os pensamentos judaicos acerca das coisas, mas eles mesmos
falam: “esses pensamentos não são importantes”.

Aluno faz pergunta.

Professor: não. Se a preservação da religião dependesse da preservação


do Estado, eles teriam se extinguido. Por quanto tempo eles não tiveram o
Estado? A maior parte do tempo na história eles não tiveram Estado nenhum.

Aluno diz: nem o templo.

23
Religiões do Mundo I

Professor: nem o templo. O templo foi uma instância dessa relação.


“Agora nós consolidamos esse aspecto da relação com Deus? Não precisamos
mais do templo”. O templo é como uma rosa que você dá pra namorada: surgiu
o sentimento que você queria? Então a rosa não importa mais. Mesmo que a
rosa desapareça, aquele negócio ficou. O templo, o Estado, tudo eles encaram
assim, como movimentos numa relação.

Como a visão cristã da realidade enfatiza aspectos tão diferentes, não


podemos esquecer que o Cristianismo se dirigiu, em primeiro lugar, e de
imediato, para os sujeitos que percebiam que os valores espirituais judaicos
tinham diluído tanto na alma deles que eles não conseguiam mais. Era o sujeito
que olhava pra si mesmo, os primeiros discípulos do Cristo eram os sujeitos que
olhavam pra si mesmos e falavam: “putz, eu não consigo mais ser judeu; eu
perdi a minha relação de amizade com Deus, que os meus pais têm, os meus
avós, todo mundo têm, mas eu perdi, e eu não consigo recuperar” – esses foram
os primeiros discípulos do Cristo. O Cristo não tirou nenhum judeu do
Judaísmo, Ele primeiro se dirigiu aos membros daquele povo que já não
conseguiam mais fazer parte da nação, que não tinham mais uma relação com
Deus.

Aluno faz comentário.

Professor: exatamente. Os primeiros cristãos, antes de serem cristãos,


tinham uma consciência muito clara de não conseguirem mais ser judeus. Eles
tinham uma consciência muito clara de ter perdido uma amizade com Deus.

Aluna faz pergunta.

Professor: em função de fatores individuais. Um era porque cobrava


juros dos outros judeus; a outra porque era prostituta; o outro porque era
hipócrita etc.

Aluna faz comentário.

24
Religiões do Mundo I

Professor: mas a dominação romana não é suficiente, assim como a


dominação babilônica, ou a dominação egípcia não eram suficientes pra tirar
isso deles. Mas e quando o sujeito não conseguia mais cumprir o mínimo que a
consciência dele via daqueles mandamentos, daquelas restrições que formavam
a amizade com Deus? E quando ele não conseguia mais? Daí ele sabia que ele
tinha perdido aquela relação; ele sabia que estava desgarrado no mundo. É por
isso que o Cristo usa a parábola da ovelha perdida pra ele, porque ele sabia que
tinha se perdido de um rebanho; um rebanho que tinha uma amizade com Deus,
e agora ele estava só e perdido no mundo, e Deus não estava mais com ele –
esses foram os primeiros cristãos. A primeira mensagem cristã não se dirigiu
aos judeus, mas sim aos que não conseguiam mais ser judeus.

Aluno faz pergunta.

Professor: ela não era um substituto. A visão do Cristianismo como uma


progressão do Judaísmo é uma visão cristã; ela não é uma visão completa da
realidade. Se ela fosse simplesmente isso, todos os judeus teriam se convertido
ipso facto, porque isso daqui seria simplesmente um aprofundamento de
Judaísmo, seria um Judaísmo mais profundo. Se fosse um Judaísmo mais
profundo, no decorrer da história todos os judeus se tornariam cristãos, porque
eles manteriam exatamente o mesmo tipo de relação com Deus, simplesmente
mais aprofundada. Mas não era a mesma coisa, era outra coisa, porque é o
seguinte: tem gente que não consegue ser judeu, e tem gente que não pode ser
judeu, porque nunca pertenceu a esse povo, não compartilha da mesma
experiência histórica.

Aluno faz comentário.

Professor: os próprios romanos [são um exemplo disso]. O Judaísmo


não é estritamente étnico; em última análise você pode entrar para aquele povo,
mas é muito difícil, porque você sabe que não foi com os seus antepassados que
aconteceu aquele negócio.

Aluna faz comentário.

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Religiões do Mundo I

Professor: existem aqueles que não têm como formar essa relação. Ou
são judeus que não conseguem mais, porque já perderam o núcleo da religião na
alma deles, ou porque não são de origem judaica. Então quando o Cristo
chegava e falava: “e aí o pastor foi atrás daquela ovelhinha”, o sujeito pensava:
“putz, você está falando de mim! Está falando comigo! [ênfase em “comigo”] Eu
sou o sujeito que fazia parte do rebanho, me desviei e não consigo mais achar o
rebanho”. Mas o outro sujeito, que sabia que ainda estava dentro do rebanho,
pensava: “tá bom, tem aquela ovelhinha lá, mas eu estou aqui no rebanho!”.

Como o Cristianismo e o Judaísmo partilham de certas verdades, porque


partilham de certas escrituras, todos os ditos do Cristo são entendidos de uma
maneira completamente diferente pelo judeu. Existem escolas judaicas que
dizem: “o Cristo foi um grande profeta da nossa linhagem”. Mas eles entendem
num sentido completamente diferente. Por exemplo, quando o Cristo fala: “Eu
não vim para os sãos, vim para os doentes”, nós entendemos “sãos” como
aqueles que se pensam sãos, nós interpretamos apenas nesse sentido (os
indivíduos que eram hipócritas, que achavam que estavam seguindo a lei, mas
não estavam coisa nenhuma), mas também tem o sentido literal de “sãos”: se o
sujeito era um judeu são, pra quê ele precisava de outra modalidade de
salvação? Se ele já tinha uma relação de amizade com Deus, pra quê ele
precisava de outra coisa?

Para o judeu, a mensagem do Cristo é no máximo para que ele resgate


aqueles valores originais, porque se aqueles valores originais estão presentes,
eles são suficientes, eles não precisam ser substituídos por outros.

Aluna faz comentário.

Professor: é simples: se você for ver na história judaica, não é a primeira


vez que eles matavam um profeta deles, que membros do povo judeu matavam
um profeta judeu; já era a 100ª vez. Isso já tinha acontecido “n” vezes. Antes de
matar o Cristo, você sabe como eles mataram Zacarias, pai de João Batista? No
templo judaico tinha duas partes: o santo e o santíssimo. No santíssimo podia

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Religiões do Mundo I

entrar só o sacerdote, e quando ele entrava lá ele tinha que se despir de todas as
vestes, e, portanto, de todas as armas também. Quando ele estava saindo dali,
esquartejaram-no.

Aluna faz pergunta.

Professor: obviamente porque ele estava lembrando o povo de que eles


tinham que fazer isso, isso e isso, e eles não queriam. Pelo mesmo motivo que,
por pouco, não mataram Moisés. Moisés uma hora chega pra Deus e fala: “meu
Deus, esse povo por pouco não me elimina”.

Aluna faz pergunta.

Professor: a lei é muito clara: “não matarás”. Quando o sujeito foi lá e


matou o profeta Zacarias, ele evidentemente infringiu a lei. O indivíduo que
matou o profeta Zacarias já estava [após o homicídio] fora da comunidade. Se
ele quisesse salvação, não seria mais no Judaísmo. No Judaísmo só tinha uma
coisa para ele: apedrejamento.

Aluna faz pergunta.

Professor: tem uns sujeitos que a lei manda você matar. Não é
relativizado. Veja bem, aquele sujeito ali é um inimigo da sua amizade com
Deus, ele é a semente da destruição da sua amizade com Deus, então você tem
que se livrar dele. Quando você mata esse sujeito, quem está matando-o não é
você, é Deus como soberano do povo que está mandando. Não é uma infração
do mandamento, porque não é o sujeito [ênfase em “o sujeito”] que está
matando, ele está cumprindo uma ordem do soberano. Deus não chegou com o
mandamento seguinte: “Eu não posso matar ninguém”. Ele não estabeleceu essa
regra.

Aluna faz comentário.

Professor: pois é, mas conflitos humanos existem sempre. Não tem


nenhuma sociedade humana em que esses conflitos não existam.

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Religiões do Mundo I

Aluna faz pergunta.

Professor: resolvia em cada circunstância de um jeito. Em uma situação


era quem tinha a arma mais poderosa; em outra situação era quem tinha a
melhor retórica; na outra situação Deus mandava um raio e fulminava o
indivíduo que estava errado. Eles resolviam das diversas maneiras em que é
possível resolver isso na situação humana.

O que acontece é que o Judaísmo é uma questão de consciência


individual. Não dá para alguém chegar, com absoluta certeza, e falar: “você não
é judeu mais”, não dá pra ele dizer com certeza absoluta. Só dá pra ele fazer o
seguinte: “no consenso da nossa comunidade, dos sábios da nossa comunidade,
você não dá, você não é mais judeu; se você acha que é, fuja para outra
comunidade”. Tanto que só dava pra converter um judeu para o Cristianismo
quando ele sabia que não era mais judeu, quando a consciência dele dizia pra ele
que ele não era mais judeu, quando a consciência dele dizia pra ele: “você está
fora desse rebanho”, aí dava pra converter. Enquanto ele pensar: “eu acho que
estou dentro desse rebanho”, você não vai abalá-lo. É impossível mover uma
pessoa que diz: “eu tenho uma amizade com Deus”. Você não conseguirá fazê-la
renunciar a essa amizade. É só vocês observarem a dificuldade que vocês têm
também de renunciar às suas próprias amizades, só porque alguém falou: “não,
esse cara não é tão legal”. Geralmente tem o efeito contrário: “você é que não é
legal, você que está falando mal do meu amigo”. No bom judeu, a pregação do
Cristo tinha o efeito exatamente contrário: “é você que está tentando destruir a
nossa amizade com Deus”. No mau judeu, no sujeito que tinha consciência que
ele tinha perdido aquilo, tinha o efeito: “puxa vida, então eu tenho uma outra
chance; ali eu não posso mais, mas aqui eu tenho uma outra chance”.

É muito difícil o sujeito entender realmente a perspectiva cristã sem que


antes ele entenda o Judaísmo. Quando o Cristo começou a fazer tudo que estava
fazendo, Ele sabia que quem iria condená-Lo à morte não eram os maus, mas
sim os bons. “Os maus vão se converter para isso aqui”, e é por isso que Ele vira
e perdoa os caras que matam-No. Eles são bons, eles estão fazendo isso para

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Religiões do Mundo I

preservar uma amizade com Deus. E é por isso que Ele fala: “o meu testemunho
é verdadeiro, porque não é de Mim que eu dou testemunho”. Mas isso nós só
entenderemos na aula sobre Cristianismo.

Existe toda uma dimensão do Cristianismo que não entendemos, porque


não entendemos o Judaísmo. Nós pensamos assim: quando o Cristo fala: “Pai,
perdoa-os, porque eles não sabem o que fazem”, nós pensamos que o Cristo está
pensando assim: “eles são uns canalhas mesmo, uns desgraçados, mas Eu os
perdôo, porque Eu sou magnânimo”. Não é isso que Ele está pensando. O que
Ele está pensando é o seguinte: “eles não sabem que Eu estou fazendo
exatamente o mesmo trabalho que eles: criando relações de amizade entre
pessoas e Deus. Eles não sabem o que fazem”. “Perdoa-os, mesmo eles sendo
uns canalhas” – Ele não disse isso. Por acaso Ele perdoou o mau ladrão, que
estava ali do lado? Não perdoou, porque esse era canalha mesmo. Mas os
sacerdotes que estimularam a condenação Dele, Ele perdoou todos, porque eles
não eram canalhas, eles não eram inimigos de Deus. Mas eles pensaram que o
Cristo era um inimigo de Deus, e Ele sabia disso. Ele sabia: “não tem jeito de Eu
fazer esse negócio e eles entenderem o que Eu estou fazendo, porque eles já
estão numa relação de amizade com Deus, então eles vão Me matar pelo que Eu
estou fazendo”, e ainda assim Ele fez isso, pensando nos poucos que estavam
fora do rebanho.

Aluna: e também dos que não participavam daquele rebanho.

Professor: dos que nunca tinham sido daquele rebanho. No decorrer da


história, a maioria dos Seus discípulos deriva dos que nunca foram parte do
rebanho.

Aluna faz pergunta.

Professor: sim, é uma extensão do rebanho judaico. As parábolas do


Cristo são muito precisas acerca da situação espiritual em que Ele se encontra.
Quando Ele fala: “tinha aqui um pastor, e ele tem 100 (cem) ovelhinhas, e uma
[ênfase em “uma”] fugiu do rebanho”. Ele não falou: “99 (noventa e nove)

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Religiões do Mundo I

fugiram, e uma ficou”. O rebanho é o quê? São os judeus, os bons judeus, que
estão lá dentro da guarda de Deus. Ele falou: “destes 100 (cem), só escapou um;
a minoria escapou, a minoria não está mais na relação de amizade”. Ele não
falou “a maioria”. Quando lemos as palavras do Cristo, pensamos: “a maioria
dos judeus era canalha”, mas não foi isso que Ele falou.

É isso que o primeiro cristão sabia, é isso que, por exemplo, São Pedro
sabia. É o seguinte: “Deus tem um povo inteiro, e eu me perdi, aí Ele veio aqui e
me salvou. Ele já tinha um povo inteiro, que não estava perdido; eu é que estava
perdido. Se fosse o povo inteiro que estava perdido, é óbvio que Deus ia mandar
alguém pra salvar; Ele sempre mandou alguém pra salvar aquele povo, toda vez
que aquele povo se desviou, Ele mandou alguém”.

Aluno faz comentário.

Professor: essa humanidade que ainda não está salva na relação de


amizade dos judeus – é evidente. São aqueles que estavam fora do rebanho, não
aqueles que estavam dentro do rebanho. Os que estavam dentro já estavam
salvos.

É por isso que Ele fala: “Abraão viu o meu dia e exultou”. Se vocês
olharem um pouco mais pra trás, na Bíblia, tem um diálogo de Abraão com
Deus que explica esta passagem. Nesta passagem Deus promete a Abraão que
Ele vai lhe dar uma descendência numerosíssima, e Abraão pede que Deus
mantenha a aliança com todos os seus descendentes; e aí Deus fala: “minha
bênção não se estende aos iníquos”. Isso significa que tem alguns descendentes
de Abraão que iriam sair dessa aliança, e Abraão ficou com aquilo na cabeça. E
aí ele contempla o dia do Cristo e vê: “mas esses aí que saíram o Cristo veio e
trouxe de volta pra mim!”. É nisso que Abraão exulta.

[professor é avisado de que está na hora de terminar a aula]

Já está na hora? [de acabar a aula] Então agora só ano que vem [a
próxima aula].

30
Religiões do Mundo I

Mas deu pra entender um pouco melhor os judeus? Deu pra perceber
como eles encaram Deus, como eles encaram o mundo, e como eles se encaram
como povo? Então sempre que nos relacionarmos com um judeu, temos que
lembrar isso. Se eles são fechados, não é porque eles são fechados, é porque
Deus estabeleceu uma separação pra eles, e que seria o maior dos pecados eles
abandonarem. Então agora Deus disse: “Eu serei seu amigo”, e aí você, pra não
ser diferente dos outros, renuncia à amizade com Deus, porque os outros vão te
achar diferente porque você tem isso aí. Dá pra você imaginar que
monstruosidade é essa? Pois é, é assim que o judeu se sente quando ele trai
aquele negócio, porque é isso que ele está fazendo: ele está trocando a amizade
de Deus pela sua! Isso é uma idolatria sem precedentes, e é por isso que é quase
orgânico, pra ele, não fazer isso.

Então vamos ver se na próxima aula fazemos a mesma coisa com o


Cristianismo. Mas já deu pra ter um começo agora, porque o sentido do
Cristianismo se encontra no significado que a mensagem do Cristo tinha para os
primeiros sujeitos que a ouviram, que eram justamente as ovelhas que tinham
se desgarrado daquele rebanho, as poucas ovelhas que tinham se desgarrado
daquele rebanho.

Então bom final de ano para todos, bom Natal, e até o ano que vem, se
Deus quiser.

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