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1. Considerações Iniciais.
A psicanálise provocou uma mudança no entendimento sobre os processos
de socialização e seu papel na constituição subjetiva, ao introduzir a dimensão
pulsional e os processos identificatórios como referências conceituais centrais e,
consequentemente, pensar esses processos de socialização à luz do patológico
como expressão do sofrimento psíquico compreendido como marcas da violência e
da sujeição social. E é seguindo essa lógica que nosso curso chega ao final. Nosso
objetivo principal, foi apresentar as referências transdisciplinares do campo da
filosofia política e da psicanálise para delimitar os impactos subjetivos do
neoliberalismo, formulando a hipótese de melancolização do sujeito.
No que se refere ao pensamento de Freud, é essencial sua demonstração
quanto a inseparabilidade entre psicologia individual e psicologia social, ao longo de
Psicologia das Massas e Análise do Eu (Freud, 1921/2020), a partir do
reconhecimento de que o mesmo processo de identificação que constitui o eu, a
primeira instância de regulação das pulsões, constitui também a massa. O
pensamento de Freud tem a virtude de possibilitar, então, entender como as
pulsões, os afetos, se constituem como o motor da massa. Sobre esse ponto
específico, gostaria de destacar duas referências clássicas no pensamento de
Lacan:
1. A tese IV, enunciada por Jacques Lacan em L’Agressivité en
Psychanalyse (1948/1966, p. 110).
2. A análise crítica que Lacan conduz sobre a liberdade em O seminário 3.
As psicoses (1955-1956, p.154-156)
No que se refere a tese IV, encontramos o segredo da estrutura forma do eu,
na identificação narcísica: “A agressividade é a tendência correlativa de um modo de
identificação, que nós denominamos de narcísica e que determina a estrutura formal
do eu do homem e do registro de entidades característica de seu mundo” 1. A tese IV
define a verdadeira estrutura do eu e que Lacan denominará de imaginária.
Compõem, portanto, a estrutura imaginária do eu:
1
Lacan, J. L’agressivité en Psychanalyse (1948). In Lacan, J. Écrits. Paris: Éditions du Seuil, 1966,
p.110. (a tradução é nossa).
2
1. Narcisismo.
2. Estagnação formal.
3. Sentimento de agressividade.
Com relação ao seminário 3, encontramos na lição X (Do Significante no Real
e do Milagre do Uivo 2), uma profunda análise das raízes do individualismo moderno.
Lacan () sustenta que sua raiz deve ser buscada no discurso delirante;
Um certo campo parece indispensável à respiração mental do homem
moderno, aquele em que se afirma sua independência em relação, não só a
todo senhor, mas também a todo deus, aquele de sua irredutível autonomia
como indivíduo, como existência individual. Há justamente aí alguma coisa
que merece ser comparada em todos os pontos a um discurso delirante. É
um deles. Ele não está de graça na presença do indivíduo moderno no
mundo, e nas suas relações com os seus semelhantes3.
de gestão social dos afetos bem distinta da que fora mobilizada pelo recalcamento
disciplinar. Nessa nova gestão, não se trata de abrir mão da libido em nome das
exigências da civilização, mas de suspender o recalcamento com consequente:
declínio da consciência moral, ascensão da atividade de pensamento por analogia e
divorciada das exigências de racionalidade, incapacidade de moderação e
adiamento, desinibição da afetividade com tendência a ultrapassar todas as
barreiras na expressão de sentimentos e a descarregá-los inteiramente na ação.
A partir dessa tese, Freud (1921/2020) escolhe a Igreja e o exército para
localizar, aí, esses processos de gestão afetiva típica da massa. Mais uma vez,
depreendemos, seu posicionamento analítico investido de ironia e crítica ao afirmar
que em ambos, na religião e no exército, encontramos a mesma centralidade de um
líder que, à todos os desamparados, amaria sem distinção: Cristo e o General. E é
muito interessante o alcance deste posicionamento assumido por Freud, quando
dirige ao militarismo prussiano a responsabilidade do preço da neurose grave de
seus soldados na I Guerra, ao mesmo tempo em que ironicamente desenha, no
quadro maior do texto, as soluções fascista e nazista que, em breve, a história
testemunharia:
O militarismo prussiano, que foi tão pouco psicológico quanto a ciência
alemã, talvez tenha precisado experimentá-lo na Grande Guerra mundial.
As neuroses de guerra, que desintegraram as forças armadas alemãs,
foram reconhecidas como sendo em grande parte um protesto do indivíduo
contra o papel que lhe foi atribuído nas forças armadas (...) podemos afirmar
que o tratamento sem amor recebido pelo homem comum de seus
superiores estava entre os principais motivos de adoecimento. (Freud,
1921/2020, p.167).
A definição de massa inclui o traço afetivo libidinal interno entre o líder e o
indivíduo e entre os indivíduos, suspende a ação do recalcamento permitindo, pela
ascensão da rigidez e severidade do eu, a defesa contra a angústia decorrente da
condição ontológica do desamparo e o direcionamento da agressividade pulsional
contra tudo o que não pertence à ela. A análise conduzida por Theodor Adorno
(1951), alguns anos depois, sobre os agitadores fascistas norte-americanos na épica
da II Guerra foi magistral e revelara a consistência da tese de Freud (1921/2020)
para explicar a mentalidade fascista:
Primeiro: excetuando algumas recomendações completamente negativas e
bizarras, como a de pôr os estrangeiros em campos de concentração ou
expatriar os sionistas, o material de propaganda fascista deste país pouco
se preocupa com tópicos políticos concretos e tangíveis. A esmagadora
maioria dos procedimentos do conjunto dos agitadores é feita ad hominem.
Baseiam-se claramente em especulações psicológicas, mais do que na
intenção de ganhar seguidores através do procedimento racional de
objetivos racionais. O termo "rabble-rouser" [sublevador da ralé], embora
objetável, por causa de seu menosprezo pelas massas como tais, parece
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Formas Definição
Formação do Ideal do Eu (Ser É a forma de ligação afetiva originária com uma outra
como a pessoa) pessoa, que conduz o psiquismo ao posterior investimento
em outros objetos de amor (ter).
Por regressão do ter ao ser A forma de ligação afetiva originária toma o lugar do
investimento em outros objetos de amor (ter), vigorando a
introjeção do objeto no eu.
Infecção psíquica (identificação A forma de ligação afetiva opera entre pessoas a partir do
entre os eus) reconhecimento de um traço comum, sem se orientar pelo
Ideal do Eu. A identificação é por imitação e está fundada em
um querer colocar-se no lugar do outro.
Ele avança em seu raciocínio, no capítulo VIII, onde retoma formulações feitas em
Totem e Tabu (1912/1987), sobre a formação do líder da horda primitiva, e em Luto e
Melancolia (1917/2020) - a respeito da distribuição afetiva, pulsional, entre o eu e o
objeto. E não só esclarece, na formação do líder, a passagem sutil do enamoramento à
sujeição como, mais fundamentalmente, o grau de funcionamento pulsional, que vai
desde a sua distribuição entre o eu e objeto, até a desaparição do eu pela sombra do
próprio objeto:
Ele é amado por causa das perfeições que se almeja para o próprio Eu, e as
quais agora se gostaria de obter, por esse desvio, para a satisfação de seu
narcisismo. (...) o Eu se torna cada vez menos exigente, mais modesto, e o
objeto, cada vez mais grandioso, mais valioso; este finalmente alcança a
posse de todo o amor próprio do Eu, de modo que o autossacrifício do Eu
torna-se a consequência natural. O objeto consumiu o Eu, por assim dizer.
Traços de humildade, de restrição do narcisismo, de causação de danos a si
mesmo estão presentes em qualquer caso de enamoramento; em casos
extremos, eles são simplesmente intensificados, e com o recuo das
reivindicações sensuais, eles ficam sozinhos a dominar. (...) Silencia-se a
crítica exercida por essa instância; tudo o que o objeto faz e exige é correto
e inatacável. A consciência não encontra aplicação para tudo que ocorre em
favor do objeto; na cegueira amorosa nos tornamos criminosos sem
remorso. A situação inteira se deixa resumir, se resíduos, em uma fórmula:
O objeto colocou-se no lugar do ideal do Eu. (Freud, 1921/2020, p. 188).
Assim, Freud conduz a distinção fundamental entre identificação e
enamoramento/sujeição:
1. Na identificação: o objeto foi perdido ou renunciou-se a ele; então é
novamente instaurado no Eu, que se modifica parcialmente conforme o
modelo do objeto perdido enriquecendo-se com suas propriedades.
2. No enamoramento/sujeição: o objeto foi totalmente conservado
(equivalendo ao pai da horda primitiva, severo, rígido e autoritário) e, como
tal, é sobreinvestido por parte e à custa do Eu.
A lógica do enamoramento/sujeição é caracterizada como hipnose pois a
posição do eu, neste caso, é a mesma da hipnose: humilde sujeição, solapamento
da iniciativa própria, docilidade e ausência de crítica ante o mesmerista, exatamente
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como diante do objeto amado. Ele é o único objeto, nenhum outro recebe atenção
além dele. A figura 1, foi extraída de Psicologia das Massas e Análise do Eu
(1921/2020). Ela foi desenhada, por Freud, como matriz para a inteligibilidade da
constituição do líder a partir da identificação primária ao pai, localizada no narcisismo.
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