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Universidade Federal Fluminense

Campus de Volta Redonda


Instituto de Ciências Humanas e Sociais
Departamento de Psicologia

Curso de 2022.2
TEORIAS E SISTEMAS PSICOLÓGICOS I –
PSICANÁLISE

Prof. Claudia Henschel de Lima


(Laboratório de Investigação das Psicopatologias Contemporâneas –
LAPSICON.
Laboratório de Psicopatologia Fundamental em Estudos sobre
a Subjetividade e Emergências Humanitárias.)

Copr Claudia Henschel de Lima, 2020-2021

1
PARTE III

Eixos conceituais da Psicanálise a partir de 1919:


o conceito de pulsão de morte.

1. Considerações Iniciais:

A epistemologia aqui sempre fará falta, caso não parta de uma reforma, que
é subversão do sujeito. (Jacques Lacan. Escritos)

Chegamos ao final desta disciplina de Teorias e Sistemas Psicológicos I. E esta


coincide com a notícia sobre o avanço da variante Ómicron, no Brasil. Alguns podem
ficar em dúvida e perguntar sobre a razão pela qual apresento essa muito breve
notação, aqui. Afinal qual seria a relação entre saber que a variante Ómicron tem, por
exemplo uma razão de contágio de 1-5/6, e uma disciplina ministrada em um curso de
graduação de uma universidade pública? Para responder à essa dúvida, retomarei
alguns pontos apresentados em nossa disciplina.
A elaboração do conceito de inconsciente impôs à humanidade uma nova ferida
narcísica: o ser humano não é mais senhor de seus próprios pensamentos. Afirmar
esse estatuto do inconsciente na época, ou seja, na aurora do século XX ainda é
escandalosamente atual. Para Freud, a verdade não é relativa. A verdade se esconde,
mas jaz em nós. A verdade atravessa nosso sono, pelo sonho, nossa linguagem, pelo
ato falho, nosso corpo, pelo sintoma. No avesso do significante de época, Freud
localiza a forma como se ergue a defesa contra a libido, se institui o divórcio da
humanidade em relação a verdade e se constitui seus sintomas – a histeria e a
neurastenia. E formula que uma psicanálise não se dobra à defesa, que uma
psicanálise deve se contrapor à defesa na direção da subversão do sujeito, permitindo
que este se aproxime, se concilie com sua verdade. A formulação do conceito de
inconsciente denuncia a hipocrisia da defesa amplificada até o extremo do
negacionismo.
A libido, que se enuncia como parte de nossa humanidade a partir da histeria,
é a marca da nossa finitude: não sabemos quem somos, não sabemos o que é a nossa
posição sexual; e sequer sabemos, o que é estar vivo ou morto. A libido atualiza as
interrogações colocadas pela filosofia de Kant na passagem do século XVIII para o
século XIX:
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1. O que devo fazer?
2. O que posso saber?
3. O que me é permitido esperar?
4. O que é o homem?

Em relação ao final do século XIX, os primeiros anos do século XX trouxe um


elemento assustador e mais radical do que a libido. Trouxe a I Guerra Mundial.
Guerras, desastres naturais, conflitos sociais, doenças infectocontagiosas,
golpes de estado, constituem o campo das emergências humanitárias. As
emergências humanitárias são terríveis. Elas impactam diretamente sobre os ideais
que organizam a civilização na época e, consequentemente, sobre o tecido social,
ameaçando o laço social, desestruturando a forma como cada um de nós se relaciona
o sentimento de vida, e tudo o que cerca esse sentimento; a rotina do trabalho, o
planejamento do dia seguinte, o encontro com amigos, a expectativa de um novo
amor. Emergências humanitárias impõem condições muito duras às populações
evidenciando o limite de nossa capacidade de sobrevivência, colocando para nós a
condição da finitude.
Foi essa condição de finitude que o poeta Rainer Maria Rilke testemunhou, em
um passeio que fizera em companhia de Freud e Lou Andreas Salomé, no ano de
1913 (um ano antes da irrupção da I Guerra). Freud relata que Rilke estava taciturno,
não extraindo da beleza do lugar por onde caminhavam, nenhuma alegria, nenhuma
satisfação, na medida em que estava atravessado por um profundo sentimento de que
a beleza é efêmera pois desaparece com a chegada do inverno. Esse sentimento logo
se estende à vida: ela é efêmera e está condenada ao desaparecimento: “assim como
toda beleza humana e tudo o que é belo e nobre que o homem criou e poderia criar”
(Freud, 1915/1987, p. 158). Podemos reconhecer nos sentimentos do poeta, a
tonalidade do sentimento melancólico. O mesmo sentimento que Freud (1916/1987)
conceituará em Luto e Melancolia (1917/19871) – texto metapsicológico escrito no
contexto da I Guerra em seguida a Reflexões sobre os Tempos de Guerra e Morte
(1915/19872).

1
Freud S. Luto e Melancolia (1917). In: Freud, S. Edição Standard das Obras Completas de Sigmund
Freud. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1987.
2
Freud S. Reflexões sobre os Tempos de Guerra e Morte (1915). In: Freud, S. Edição Standard das
Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1987, v. XIV.
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A I Guerra colocou Freud diante da irrupção de um trieb completamente distinto
daquele que era observado nas neuroses histéricas: um trieb livre, que o conduzirá a
elaboração do conceito de pulsão de morte. Esse conceito pode tanto definir a
efemeridade da vida como explicar a forma como formas políticas assumem discursos
negacionistas que só nos lançam no abismo da fórmula hobbesiana de que o ser
humano é um lobo à espreita de seu próximo.
2. A segunda etapa da Obra de Freud: a elaboração do conceito de pulsão
de morte

Quatro anos após a publicação do conjunto dos Artigos sobre Metapsicologia


(1915/1987) – já a partir de O Estranho (1919/19873) – um outro reviramento
discursivo começa a se impor. Seu operador situa-se na análise do fenômeno de
compulsão à repetição que, segundo Freud (1919/1920), traz consigo o que há de
mais demoníaco nas pulsões a ponto mesmo de prevalecer sobre a libido e o princípio
de prazer:
(...) é possível reconhecer, na mente inconsciente, a predomi-nância de uma
“compulsão à repetição”, procedente das moções pulsionais e provável-
mente inerente à própria natureza das pulsões – uma compulsão poderosa o
bastante para prevalecer sobre o prin-cípio de prazer, emprestanto a
determinados aspectos da mente o seu caráter demoníaco (...).” (Freud,
1919/1987, pp. 297-298).
Com efeito, é através do fenômeno de compulsão à repetição – que acentua o
caráter irredutível do movimento pulsional aos imperativos do princípio de prazer –
que o texto O Estranho (1919/1987) antecipa a reestruturação do dualismo pulsional,
cujo desdobramento só de dá em 1920 com Além do Princípio de Prazer (1920/19874)
Em Além do Princípio de Prazer (1920/1987), Freud defende com veemência
seu posicionamento dualista- certamente com o intuito de preparar o solo para o
anúncio da posição entre as pulsões de vida e a pulsão de morte. Reproduzimos,
deste texto, uma breve passagem em que tal questão aparece de uma forma bastante
clara:
Nossas concepções, desde o início foram “dualistas” e são hoje ainda mais
definidamente dualistas do que antes, agora que descrevemos a oposição
como se dando: não entre as pulsões sexuais, mas entre as pulsões de vida
e pulsões de morte. (Freud, 1920/1987, p.93).

3
Freud S. O Estranho (1919). In: Freud, S. Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud.
Rio de Janeiro: Imago Ed., 1987.
4
Freud S. Além do Princípio de Prazer (1920). In: Freud, S. Edição Standard das Obras Completas de
Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1987.

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O vocabulário é caracteristicamente naturalista. Todavia, a argumentação
inteira de seu texto encontra-se sustentada sobre um princípio especulativo que é bem
distinto da objetividade incansavelmente defendida pelas ciências naturais. É o que
testemunhamos nas primeiras linhas de seu quarto ensaio:
O que se segue é especulação, amiúde especulação forçada, que o leitor
tomará em consideração ou porá de lado, de acordo com sua predileção
individual. É mais uma tentativa de acompanhar uma idéia sistematicamente,
só por curiosidade de ver até onde ela levará. (Freud, 1920/1987, p.39).
O autor prossegue com sua argumentação tomando como ponto de partida
para a construção do novo dualismo pulsional, o antigo dualismo entre a pulsão do
ego ou de autoconservação e as pulsões sexuais. A princípio atribui às pulsões do
ego uma característica destrutiva equiparando-as à pulsão de morte e opondo-as às
pulsões sexuais ou de vida (como ele, aqui, as denominou). Dessexualizando as
pulsões do ego, Freud tenta, então, resgatar o caráter dualista da teoria pulsional que
no contexto da tese sobre o narcisismo, corria o risco de se perder em nome de um
monismo. No entanto, esta primeira forma de estabelecimento da oposição pulsional
trazia o mesmo inconveniente que resultou no fracasso da primeira teoria pulsional: o
fato de uma parte das pulsões do ego ser, caracteristicamente libidinal inviabilizando,
assim, o estabelecimento de uma diferença de natureza entre ambos os elementos.
Em vista disso – e em nome da defesa de seu ponto-de-vista fundamental – Freud
começou a estabelecer o caráter autônomo da pulsão de morte em relação à libido a
fim de garantir diferença de natureza entre ambas. Desta forma, ainda nesse mesmo
texto, pôs sob a denominação de pulsão de vida, o que constituía a oposição
qualitativa entre a libido do ego e a libido objetal e atribui à elas o objetivo de manter
o organismo vivo. Mas, o que seria então a pulsão de morte? O que leva Freud a
postular este conceito?
Para abordar a questão da pulsão de morte tal como ele introduzida por Freud
em Além do Princípio de Prazer (1920/1987), é preciso destacar a vinculação, por ele
estabelecida, entre a pulsão de morte e os fenômenos de compulsão à repetição. Nos
ensaios dois e três desse texto, testemunhamos esse vínculo através da análise que
ele faz de uma gama de fenômenos que indicam a presença de um fator de repetição.
São eles:
1º - A neurose traumática e os sonhos que a acompanham.
2º - Uma certa particularidade presente na brincadeira infantil.

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3º - O fenômeno de compulsão à repetição que surge durante o tratamento
psicanalítico da neurose.
A pergunta que Freud formula, durante a descrição de cada um desses
fenômenos – e que o leva a rever o postulado de que o aparelho psíquico é regido
pelo princípio de prazer – reside em saber como é possível que determinadas
situações, cujo teor é nitidamente desprazeroso, venham à se repetir com insistência.
A análise que Freud faz de cada um desses fenômenos não é suficiente para que se
extraia uma conclusão de que haveria um além do princípio de prazer.
Ao final do terceiro ensaio, Freud (Freud, 1920/1987) reúne argumentos para
supor a presença – no psiquismo – de uma compulsão à repetição que se estende
para além dos imperativos do prazer. Trata-se de uma suposição bastante estranha
na medida em que – ao fim do segundo ensaio – Freud negara aos fenômenos, por
ele descritos, o direito de efetuarem essa dedução. O que se encontra, portanto, em
jogo neste recurso argumentativo estabelecido por Freud? Em nossa perspectiva, ele
faz uso de uma estratégia que – de certa forma – comparece em alguns momentos
de sua obra: ele tenta esgotar todas as possibilidades de sua suposição abordando-a
sob diversos ângulos até se sentir suficientemente justificado para afirmá-la. Vimos
que nenhum dos fenômenos considerados isoladamente levara à conclusão alguma,
mas seu arranjo, sua análise em conjunto não deixa de apontar para algo bastante
significativo: todos os fenômenos analisados – desde o sonho traumático até a
neurose da transferência – supõe a intervenção de uma atividade que não parece
visar diretamente a realização de um prazer, mesmo que essa atividade não seja
suficiente para colocar em causa este princípio.
Esse recurso de Freud não deixa de trazer a suposição de um domínio no qual
o princípio de prazer fracassa, ou pelo menos, deixa de exercer seus direitos. Este
domínio é o que resta à ser explicado, na medida em que sustenta a própria noção de
compulsão à repetição, que é, por sua vez, central para a abordagem da pulsão de
morte. Qual é, então, a estratégia empregada por Freud para explicar esse fracasso
do princípio de prazer? A indicação encontra-se no final do terceiro ensaio: “O exemplo
menos dúbio [de tal força motivadora] é talvez o dos sonhos traumáticos.” (Op. cit.
p.37).
A sintomatologia das neuroses de guerra e, em particular, dos sonhos pós-
traumáticos, leva Freud à supor que o sujeito é invadido por uma carga pulsional
perante a qual se vê soterrado. Assim, sendo, o caráter traumático dos sonhos,
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presentes nas neuroses de guerra, é explicado pela invasão de um tipo – bastante
intenso – de excitação, em relação a qual o sujeito mostra-se impotente: trata-se da
excitação pulsional, que é livremente móvel, que não se liga à uma representação
psíquica.
Para sustentar essa análise, Freud retoma – nos ensaios quatro e cinco – uma
noção, já exposta por ele, em o Projeto para uma Psicologia Científica
(1950[1895]/19875): trata-se da noção de vinculação ou ligação (bindung). Em termos
gerais, a bindung designa uma operação cujo objetivo consiste em limitar a excitação
invasora que se manifesta como energia livremente móvel, ou ainda – tomando de
empréstimo a terminologia empregada por Freud em O Inconsciente (1915/19876) –
em ligar as representações em si. A bindung cumpre, neste sentido, a função de
preparar o terreno para a descarga adequada da excitação e, por conseguinte, para o
domínio do princípio de prazer. A bindung comparece, ainda, opondo-se a entbindung
(desligamento), que designa o aparecimento brusco da excitação livre tendendo à
descarga. Vejamos, então, como é possível estabelecer uma relação entre, de um
lado o par bindung-entbindung e, por outro, a oposição entre as pulsões de vida e a
pulsão de morte.
Freud (1920/1987) mostra – ao longo dos ensaios quatro e cinco – que as
pulsões são pertencem aos processos nervosos vinculados, mas sim aos processos
livremente móveis que pressionam no sentido da descarga: uma coisa é termos, na
vida psíquica, prazeres e dores em estado livre, não ligado; outra coisa é termos a
vida psíquica organizada em torno de um princípio de prazer. Antes da excitação
pulsional submeter-se aos imperativos do princípio de prazer, é necessário que ela
entre no aparelho psíquico e se submeta a determinadas operações elementares e
primordiais, para que, posteriormente – após sua incorporação ao aparelho – venha a
seguir suas diversas vicissitudes. Nesta perspectiva, a bindung se constitui como uma
função originária, primordial de vinculação das pulsões sendo, portanto, a condição
de evitação da dor e, obviamente, de emergência do próprio princípio de prazer. Em
concordância com o conjunto de teses apresentadas desde o Projeto para uma
Psicologia Científica (1950[1895]/1987)– podemos considerar a bindung como uma

5 Freud S. Projeto para uma Psicologia Científica (1950[1895]). In: Freud, S. Edição Standard das Obras
Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1987, v.I.
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Freud S. O Inconsciente (1915). In: Freud, S. Edição Standard das Obras Completas de Sigmund
Freud. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1987, v.XIV.
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função sintetizadora, unificadora do movimento pulsional que, originariamente,
desconhece qualquer critério de ordem ou direção: sem a ligação. A bindung encontra-
se, assim, à serviço de Eros, à serviço das pulsões de vida, à serviço da própria
representação.
Até o momento desta descrição da função primordial da bindung como algo
independente do princípio do prazer, não há nada que indique – pelo menos
diretamente – uma definição da pulsão de morte. O fato dessa vinculação ocorrer de
forma autônoma com relação ao princípio de prazer, não implica nem em contradizê-
lo, nem na pulsão de morte, já que a bindung opera – em última instância – a favor
das pulsões de vida. O que define e garante, portanto, o estatuto da pulsão de morte?
A operação fundamental que nos levará até a pulsão de morte – até o mais
além do princípio do prazer – não se encontra na bindung, mas em sua falha: é no
fracasso em vincular as grandes quantidades de excitação pulsional, que surge a
compulsão à repetição. Estamos diante do que parece se constituir como um impasse
relativo ao lugar que a compulsão à repetição ocupa no contexto desse novo dualismo
que começa à se delinear. Ora, ela encontra-se à serviço do princípio de prazer –
como fora o caso da brincadeira infantil – ora ela comparece como anterior à ele,
condicionando seu próprio surgimento (tal é o caso da neurose traumática). E ora, ela
se apresenta, ainda, como um fenômeno inteiramente independente – e até mesmo
em oposição – ao princípio de prazer, como é o caso das neuroses de transferência.
Em vista desses três direcionamentos que a compulsão à repetição toma ao longo de
Além do Princípio de Prazer (1920/1987), podemos defini-la segundo dois níveis: de
um lado a repetição obedece a função de vincular a excitação e, de outro ela se
relaciona ao que há de mais pulsional na pulsão, ao seu caráter demoníaco, à pulsão
de morte. Este último aspecto da repetição é expressamente considerado por Freud
ao longo do quinto ensaio. Eis uma breve passagem:
Mas como o predicado de ser ‘pulsional’ se relaciona com a compulsão à
repetição? Nesse ponto não podemos fugir à suspeita de que deparamos com
a trilha de um atributo universal das pulsões e talvez da vida orgânica em
geral que até o presente não foi claramente acentuado. Parece, então, que
uma pulsão é um impulso inerente à vida orgânica, a restaurar um estado
anterior de coisas, impulso que a entidade viva foi obrigada a abandonar sob
a pressão de forças perturbadoras externas, ou seja, é uma espécie de
elasticidade orgânica ou, para dizê-lo de outro modo, a expressão da inércia
inerente a vida orgânica. (Freud, 1920/1987, p. 53-54).
Nesta perspectiva – e retomando uma consideração já expressa por Freud em
O Estranho (1919/1987) – o texto de 1920 situa a repetição não somente do lado das

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pulsões de vida, mas também como algo mais fundamental do que a atividade
sintetizadora de Eros, como uma característica inerente e primordial à própria pulsão
e que a constitui como uma constante e interminável tentativa de retornar ou repetir
um estado anterior de coisas. O que se define, portanto, como sendo, neste contexto,
a pulsão de morte?
O conceito de pulsão de morte define o que há de mais pulsional nas pulsões
(Freud, 1920/1987). O duplo caráter da repetição expressa o que está em jogo na
ação humana: se, de um lado através da bindung, Eros trilha os caminhos da morte,
de outro, a morte é impossível. Esta impossibilidade da morte encontra seu maior
testemunho em Reflexões sobre os Tempos de Guerra e Morte (1915/1987) – no qual
Freud afirma que a morte não se inscreve no inconsciente, que é mesmo impossível,
para nós, imaginar nossa própria morte. A lição que podemos extrair deste duplo
caráter da repetição - de que trilha os caminhos da morte, ao mesmo tempo em que
o inconsciente desconhece a morte, não poderia deixar de ser outra: na medida em
que a morte não encontra inscrição no inconsciente, ela se constitui como uma
tendência a retornar a um estado anterior de coisas.

3. O Mal-Estar na Civilização (1930[1929/19877)


Em 1920, com a publicação de Além do Princípio de Prazer (1920/19878), Freud
enuncia a segunda teoria das pulsões, definida pelo dualismo entre as pulsões de vida
(libido) e a pulsão de morte. Sua elaboração mais completa será encontrada em Mal-
estar na Civilização (1930[1929]/1987), quando Freud recorre à metáfora hobbesiana
homo homini lúpus [o homem é o lobo do homem] e articula a definição do conceito
de pulsão de morte com uma reflexão ética.
O texto Mal-estar na Civilização (1930[1929]/1987) foi escrito por Freud em
1929 e traz, como tema principal, uma questão já desenvolvida por ele em O Futuro
de uma Ilusão (1927/19879): trata-se do antagonismo primordial e irremediável entre
as exigências pulsionais e as restrições da civilização. No centro deste antagonismo
situa-se a pulsão de morte.

7 Freud, S. Mal-estar na Civilização (1930[1929]). In Freud, S. Edição Standard das Obras Completas
de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1987. v.XXI.
8 Freud, S. Além do Princípio de Prazer (1920). In Freud, S. Edição Standard das Obras Completas de

Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1987.


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Freud, S. Futuro de uma Ilusão (1927). In Freud, S. Edição Standard das Obras Completas de
Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1987. v.XXI.

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O primeiro ensaio de -estar na Civilização (1930[1929]/1987), traz uma análise
da fonte da religiosidade, tal como é proposta por Romain Rolland e do sentimento
oceânico que lhe é concomitante. Freud reproduz, então, as palavras deste autor, que
considera a religiosidade como algo distinto de um mero artigo de fé e estreitamente
vinculado a um sentimento peculiar que talvez fosse melhor designado como uma
sensação de eternidade, um sentimento de algo ilimitado que desconhece fronteiras
– oceânico, por assim dizer. As opiniões expressas por Romain Rolland não são
compartilhadas por Freud (1930[1929]/1987), que começa por afirmar que não
consegue descobrir em seu íntimo esse sentimento oceânico e termina por remontá-
los, de uma forma bastante peculiar, ao sentimento de desamparo.
Freud dá continuidade à sua reflexão, definindo a religião como um sistema de
dogmas e promessas que, de um lado oferece ao ser humano uma explicação para
os enigmas do mundo em que vive e, de outro, garante uma Providência cuidadosa
que vela pela vida e pelo destino do homem compensando-o, ainda, com uma
existência futura, as privações e frustrações que experimenta ao longo de sua vida.
Critica, portanto, a religião por tratar com extrema simplicidade as questões relativas
a finitude, que atravessam e definem toda a existência humana: qual o propósito da
vida humana? O que se pode pedir da vida e o que, nela, se pode realizar? Freud
(1930[1929]/1987), então, prossegue sustentando tais questões e dando à elas um
primeiro direcionamento: “A resposta mal pode provocar dúvidas. Esforçam-se para
obter felicidade; querem ser felizes e assim permanecer.” (Freud, 1930[1929]/1987,
p.94). Trata-se, portanto, de uma questão cujo direcionamento é ético: a finalidade, o
propósito da vida é a consecução da felicidade. Esta felicidade se define segundo dois
aspectos: uma meta positiva – que é a felicidade propriamente dita e que designa a
experiência de intensos sentimentos de prazer – e uma meta negativa que gira em
torno da ausência do sofrimento e do desprazer. Em vista desta disjunção presente
nos objetivos de realização da própria felicidade, a ação humana se efetua em ambas
as direções, segundo busque realizar um ou outro desses objetivos. Todavia, há uma
questão fundamental relativa ao propósito da busca da felicidade que situa a pulsão
de morte no cerne da reflexão ética traçada por Freud: o programa da felicidade não
encontra via alguma de execução, pois a ela “não se acha incluída no plano da
criação.” (Freud, 1930[1929]/1987, p. 95).
A conseqüência direta que podemos depreender dessa questão, é que a
felicidade se realiza episodicamente e provém, restritamente, da realização de
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exigências represadas. Com o sofrimento, as coisas ocorrem de uma maneira
diferente. Freud afirma que ele é menos raro e que o experimentamos com relativa
facilidade através de diversas fontes: o próprio corpo, por sua decadência e
dissolução; o mundo externo, por suas forças intensas e destrutivas e o
relacionamento com outros homens que se constitui como a situação que mais nos
causa pesar. Como o sofrimento é a via de realização mais fácil e menos rara, é ele
quem decidirá pelo plano menos ambicioso, da ação humana, de tomar a felicidade
como a pura e simples fuga, a simples defesa contra o sofrimento. Neste sentido – e
esse detalhe é digno de nota – Freud (1930[1929]/1987, p.103) nos oferece diversas
vias de fuga ao sofrimento e conclui, parafraseando Frederico o Grande, que: “Não
existe uma regra de ouro que se aplique a todos: todo homem tem de descobrir por si
mesmo de que modo específico ele pode ser salvo.”
Em função do que foi abordado até o momento, nesta aula, podemos refletir
um pouco sobre esta frase afirmando que ainda que o ser humano opte pela via mais
fácil, não há nada que o ligue, naturalmente à um modo de realização da felicidade,
nem nada que o informe – previamente – se sua escolha é, ou não, adequada para a
realização desta. Retomando as considerações de Freud acerca da religião e usando
– como argumento – suas próprias formulações, diríamos que o nervo de sua crítica
à religião judaico-cristã situa-se, justamente no fato desta restringir o domínio da ação
humana à um modo único de felicidade, impondo igualmente a todos os homens seu
próprio caminho para a aquisição do bem-estar e da proteção contra o sofrimento.
Freud nos oferece, dessa questão, seu testemunho quando – ao fim do segundo
ensaio de Mal-estar na Civilização (1930[1929]/1987) – ele situa a religião como um
sistema de dogmas que, com sua técnica de depreciação da vida terrena, tampona,
com a promessa de uma vida eterna com Deus, o que o próprio Freud denunciou –
como sendo o que caracteriza o domínio humano: a ausência de uma natureza que
funcione como fundamento das ações dos homens.
É justamente neste ponto, que retornamos às fontes de sofrimento descritas
por Freud e destacamos, em particular, a fonte social do sofrimento, ou seja, a que
provém do relacionamento entre os seres humanos. Freud (1930[1929]/1987)
denuncia que, comumente, o ser humano experimenta um intenso repúdio e
intolerância frente a possibilidade de que os regulamentos não garantam segurança,
conforto e proteção. O argumento de que a civilização é em grande parte responsável
por nossas desgraças é repensado por Freud – ao longo de Mal-estar na Civilização
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(1930[1929]/1987) – quando, de certa maneira, ele afirma que por mais que a
civilização tente proteger o ser humano contra a natureza ajustando seus
relacionamentos mútuos, haverá sempre uma parcela de natureza inconquistável,
promovendo mal-estar e inimizade. A metáfora hobbesiana ganha sentido aqui.
O ser humano não é uma criatura branda, ávida de amor, que no máximo
pode se defender quando atacado, mas ele deve sim incluir, entre seus dotes
instintuais, também um forte quinhão de agressividade. Em consequência
disso, para ele o próximo não constitui apenas um possível colaborador e
objeto sexual, mas também uma tentação para satisfazer a tendência à
agressão, para explorar seu trabalho sem recompensá-lo, para dele se utilizar
sexualmente contra sua vontade, para usurpar seu patrimônio, para humilhá-
lo, para infligir-lhe dor, para torturá-lo e matá-lo. Homo homini lupus10.

Ela expressa não só a ruptura radical de Freud com relação a hegemonia do


papel da libido no funcionamento psíquico, como também uma mudança no papel dos
vínculos sociais: estes não se estabelecem mais sobre a coerção disciplinar da
sexualidade, mas sobre a restrição da agressividade, do empuxo à destruição, à
hostilidade primária entre os seres humanos. Não avançarei mais no aprofundamento
deste novo quadro conceitual aberto com a pulsão de morte. No entanto, deixo, aqui,
uma indicação a respeito da em que condições é possível estabelecer a emancipação,
quando o quadro não é mais a sexualidade reprimida, mas a agressividade livre.
Mantenho com Freud a afirmação de que emancipar só é possível com
expectativas de liberdade. Se há emancipação possível, ela deve se realizar como
instauração de laços sociais que possam dar conta de expectativas de liberdade, de
expectativas de resistência a toda forma política que aposta na máxima hobbesiana.
Emergências humanitárias são o cenário para a irrupção dessa vontade de destruição
que habita a relação entre os seres humanos. Essa irrupção se dá sobre a ilusão do
sentimento oceânico da raça, da religião. Em guerras e conflitos políticos verificamos
exatamente isso, que só nos leva à um estado de aniquilamento civilizatório. Em
pandemias, onde a finitude se coloca de forma gritante diante de cada um de nós, não
é diferente. Ancorarmo-nos no fato de que o brasileiro é capaz de mergulhar no esgoto
e sobreviver ou que estamos protegidos por Deus acima da nação, não combate um
vírus que se vale da vida humana como hospedeira apenas para se proliferar em mais
vírus e não em mais civilização. Nada mais premonitório do que o Mal-estar na
Civilização (1930[1929]/1987).

10Freud, S. Mal-estar na Civilização (1930[1929]). In Freud, S. Edição Standard das Obras Completas
de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1987. v.XXI, p. 133.
Copr Claudia Henschel de Lima, 2020-2021

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