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U1: A PULSÃO DE MORTE EM

FREUD, LACAN E FERENCZI


Profa. Dra Barbara A dos S M Carissimi
barbara.carissimi@uva.br
A PULSÃO DE MORTE EM
FREUD E LACAN
Profa. Dra Barbara A dos S M Carissimi
Referência: 1. CARISSIMI, B. A. dos S. M. Do “Mal-estar na Civilização” ao mal-
estar na organização: um percurso. Dissertação (Mestrado em M.Sc., Psicanálise,
Saúde e Sociedade) – Universidade Veiga de Almeida, Rio de Janeiro, 2008.
2. Ana Maria Rudge. Pulsão de morte como efeito do supereu.
https://www.scielo.br/j/agora/a/cTw9TmvW5RfNMQXc8KTHkCB/?format=pdf&lang=pt
A PULSÃO DE MORTE EM FREUD
• A pulsão de morte, também nomeada pulsão de destrutividade e pulsão de agressividade, é um
conceito fundamental da obra freudiana. Compreender as suas faces é essencial para uma análise do
mal-estar tão presente na sociedade.
• Apresentado por Freud pela primeira vez em seu ensaio Além do Princípio do Prazer (1920), o
conceito não foi bem aceito. Após perceber na clínica a ocorrência do fenômeno de compulsão à
repetição, Freud afirmará que na base deste fenômeno está uma pulsão, e a nomeará de pulsão de
morte. Freud afirmará, entre outras coisas, que o objetivo da vida é a morte.
• Para apresentar esse conceito revelador é necessário retomar a teoria da pulsão freudiana. Será em
Os três ensaios sobre a sexualidade (1905), onde Freud apresentará a sua teoria da sexualidade, que
o conceito de pulsão será introduzido. É importante ressaltar que tal conceito atravessará toda a teoria
da sexualidade freudiana e será construído ao longo de sua obra.
A PULSÃO DE MORTE EM FREUD
• Para Freud, a pulsão está entre o psíquico e o somático. Ele fornece uma definição em seu texto de
1905 e afirma que
Por ‘pulsão’ deve-se entender provisoriamente o representante psíquico de uma fonte endossomática
e contínua de excitação em contraste com um ‘estímulo’, que é estabelecido por excitações simples
vindas de fora. O conceito de pulsão é assim um dos que se situam na fronteira entre o psíquico e o
somático. (FREUD, 1905, p. 171)
• Freud utilizou o termo Trieb, com múltiplos significados em alemão, que, de maneira geral, significa
“uma força que coloca em movimento”, para conceituar pulsão. A tradução de Trieb feita por James
Strachey, tradutor da obra completa de Sigmund Freud para o inglês, que resultou instinct, originou os
desvios da psicanálise pós-freudiana presentes até hoje. No entanto, Freud escolheu o termo Trieb
para evitar a possível confusão com o termo Instinkt, reservado para qualificar os comportamentos
dos animais.
A PULSÃO DE MORTE EM FREUD
• Em 1905, no mesmo texto citado acima, Freud nos fornecerá o seu primeiro dualismo pulsional: por
um lado o grupo das pulsões do Eu, ou de auto-conservação; e do outro lado, o grupo das pulsões
sexuais. Esse dualismo não se sustentará até o fim de sua obra.
• O conceito de narcisismo passou a ocupar um lugar fundamental na teoria da sexualidade freudiana a
partir de 1914, em seu texto À Guisa de Introdução ao Narcisismo. Apoiado na tentativa de
compreender a demência precoce ou esquizofrenia, sob a ótica da teoria da libido, Freud se ocupará
com a ideia de um narcisismo primário. (FREUD, 1914, p. 97). A pulsão investe não só sobre os
objetos externos como também no objeto interno (o Eu). Ele distinguirá a libido de objeto e a libido do
eu. Nesse sentido, o eu passa a ser considerado como um objeto e também pode ser investido pela
libido do sujeito.
• Essa oposição resultaria numa nova concepção e na extinção desse dualismo, onde as pulsões do eu
são incorporadas às pulsões sexuais, restando apenas estas últimas.
A PULSÃO DE MORTE EM FREUD
•Freud apresenta os quatros elementos da pulsão em seu texto Pulsões e Destinos da Pulsão
(1915): a pressão (Drang), a fonte (Quelle), o objeto (Objekt) e o alvo ou meta (Ziel).
Por pressão de uma pulsão entendemos seu fator motor.[...] Esse caráter de exercer pressão é uma
propriedade universal das pulsões, na verdade, sua própria essência. [...] A meta da pulsão é sempre
a satisfação. [...] O objeto da pulsão é aquilo em que, ou por meio de que, a pulsão pode alcançar sua
meta. Ele é o elemento mais variável na pulsão e não está originariamente vinculado a ela. [...] Por
fonte da pulsão entendemos o processo somático que ocorre em um órgao ou em uma parte do corpo
e do qual se origina um estímulo representado na vida psíquica. (FREUD, 1915, pp. 148-9)
• Em relação ao fato de que o alvo da pulsão seja sempre a satisfação, Freud dirá que ela é parcial,
tendo em vista que o objeto suposto não existe e está para sempre perdido.
• Os destinos da pulsão apresentados por Freud são: reversão ao seu oposto, o retorno ao próprio
eu, o recalque e a sublimação. Neste texto ele abordará apenas os dois primeiros destinos citados,
visto que, o recalque será tratado por Freud no texto intitulado O recalque (1915) e que a
sublimação fora conceituada em 1905 no texto Os três ensaios sobre a sexualidade.
A PULSÃO DE MORTE EM FREUD
• Sobre a reversão ao seu oposto, Freud apresenta dois processos. Um deles é o redirecionamento
de uma pulsão da atividade para a passividade, onde um dos exemplos fornecidos está ligado ao
par de opostos sadismo-masoquismo. A meta da pulsão, que é torturar, no sadismo, é substituída
por ser torturado. O outro processo, a inversão do conteúdo, encontra-se na transformação do ódio
em amor. Trataremos deste último posteriormente, quando abordarmos a pulsão de morte
propriamente dita.
• No retorno ao próprio eu, “o essencial é a [...] troca de objeto sem alteração da meta”.
Considerando o mesmo par de opostos, sadismo-masoquismo, “o masoquismo é um sadismo
voltado contra o próprio eu [...] e o masoquista compartilha o gozo implicado na agressão contra o
seu eu”. (FREUD, 1915, p. 152)
• A pulsão na sua face sexual foi o que se impôs a Freud desde o início do tratamento de seus
pacientes. Para Freud, todas as atividades humanas têm uma parte com o sexual, não somente o
ato sexual. A libido constitui a energia da pulsão sexual; é a manifestação da pulsão sexual na vida
psíquica.
A PULSÃO DE MORTE EM FREUD

• A sublimação é o destino não sexual para uma pulsão sexual. As atividades humanas extraem sua
força da pulsão sexual, mas que deslocam seu alvo para o não sexual. Tais atividades seriam as
criações literárias, artísticas e intelectuais, muito valororizadas socialmente.
• Como apresentado anteriormente no tópico 2.3 do capítulo anterior, o recalque “designa o
processo que visa a manter no inconsciente todas as idéias e representações ligadas às pulsões e
cuja realização, produtora de prazer, afetaria o equilíbrio do funcionamento psicológico do indivíduo,
transformando-se em fonte de desprazer.” (ROUDINESCO & PLON, 1998, p.647)
• Parece-nos termos chegado, enfim, após breve explicação da teoria da pulsão de Freud, no
momento de discorrermos sobre um conceito essencial para a teoria freudiana e, sem dúvida, para a
análise deste trabalho: a pulsão de morte.
A PULSÃO DE MORTE EM FREUD
• A partir da formulação desse conceito, Freud apresentará seu novo dualismo pulsional: as pulsões
de vida (sexuais) “versus” as pulsões de morte. Eros e Tanatos, vida e morte, em eterna luta. Freud
jamais abandonará esse dualismo, que dominou todo o panorama da teoria da pulsão em Freud.
• Diferente da pulsão sexual, regida pelo princípio do prazer, a pulsão de morte visa o mais-além.
Ela deseja muito mais do que o gozo sexual, parcial. Ela busca um gozo que é mortífero, ela quer a
Coisa (Das Ding). Para Freud, há um impossível de ser satisfeito aí porque o objeto que daria a
satisfação à pulsão, o que Freud chama de Das Ding, a Coisa, é intangível, impossível de se
conhecer. “É um objeto suposto por nosso psiquismo como objeto a ser atingido. [...] A Coisa –
objeto da pulsão de morte, objeto que propiciaria o gozo absoluto, caso ele fosse passível de ser
atingido – é precisamente o nome de uma das faces do objeto, a face real.” (JORGE, 2003, p. 31)
A PULSÃO DE MORTE EM FREUD
• Lacan, que retomaremos a seguir, afirmará em seu Seminário 11 que “toda pulsão é pulsão de
morte”. (1969, p. 195) Inicialmente pode parecer que Lacan estaria contrariando o dualismo
freudiano. Porém, para Lacan, este monismo é freudiano e está presente em Mais Além do
Princípio do Prazer, não exatamente com essas palavras.
• O sujeito é movido por um único vetor que se dirige para Das Ding. Esse vetor é mortífero, ou
seja, o que a pulsão pede é a morte. Por isso, dizer-se que o objetivo da vida é a morte
“enquanto anulação radical das tensões internas vividas pelo organismo vivo e pelo
psiquismo.” (JORGE, 2003, p. 33) Como Freud apresenta, este seria “o ‘princípio de Nirvana’,
para tomar de empréstimo uma expressão de Barbara Low [Psycho-Analysis, 1920, p. 73]”.
(FREUD, 1920, p. 71)
• Freud também citará Schopenhauer quando este diz que a morte é o “verdadeiro resultado e,
até esse ponto, o propósito da vida” [Schopenhauer (1851;Sämtiliche Werke, coord. De
Hübscher, 1938, vol.5, 236)] e acrescentará que “[...] a pulsão sexual é a corporificação da
vontade de viver.” (idem, 1920, p. 64)
A PULSÃO DE MORTE EM FREUD

• O sujeito é movido por um único vetor que se dirige para Das Ding. Esse vetor é mortífero, ou
seja, o que a pulsão pede é a morte. Por isso, dizer-se que o objetivo da vida é a morte
“enquanto anulação radical das tensões internas vividas pelo organismo vivo e pelo
psiquismo.” (JORGE, 2003, p. 33) Como Freud apresenta, este seria “o ‘princípio de Nirvana’,
para tomar de empréstimo uma expressão de Barbara Low [Psycho-Analysis, 1920, p. 73]”.
(FREUD, 1920, p. 71)
• Freud também citará Schopenhauer quando este diz que a morte é o “verdadeiro resultado e,
até esse ponto, o propósito da vida” [Schopenhauer (1851;Sämtiliche Werke, coord. De
Hübscher, 1938, vol.5, 236)] e acrescentará que “[...] a pulsão sexual é a corporificação da
vontade de viver.” (idem, 1920, p. 64)
A PULSÃO DE MORTE EM FREUD
• Em seu texto O Mal estar na cultura (1930[1929]), não à toa representado no título desta
dissertação, tivemos acesso às considerações freudianas que norteiam quase toda a nossa
análise.
• O tema principal nesse ensaio é o antagonismo inevitável entre as exigências pulsionais e as
restrições impostas pela cultura. Freud define três causas para o sofrimento humano: a
fragilidade de nossos corpos, o poder implacável da natureza e o caráter insatisfatório dos laços
sociais. Nesse ensaio, ele estuda o sofrimento proveniente desta última fonte. Isso muito nos
interessa para tentarmos compreender as dificuldades nos relacionamentos entre os sujeitos nas
empresas, causa de intenso mal-estar.
• A cultura, que surge para minimizar o sofrimento gerado pelos laços através do Estado e da
família, em contrapartida, impõe limites à busca do prazer, evidenciando-se também como fonte
de sofrimento.
• Não admira que, sob a pressão de todas essas possibilidades de sofrimento, os homens se
tenham acostumado a moderar suas reivindicações de felicidade – tal como, na verdade, o
princípio do prazer, sob a influência do mundo externo, se transformou no mais modesto princípio
da realidade -, que um homem pense ser ele próprio feliz, simplesmente porque escapou à
infelicidade ou sobreviveu ao sofrimento, e que, em geral, a tarefa de evitar o sofrimento coloque
a de obter prazer em segundo plano. (FREUD, 1930 [1929] pp.95-6)
A PULSÃO DE MORTE EM FREUD

• Freud discorre sobre o antagonismo presente na cultura e fonte de sofrimento: o homem não
vive sem a cultura, mas não consegue ser feliz nela por esta limitar as pulsões sexuais e de
agressividade. “Não é fácil entender como pode ser possível privar de satisfação uma pulsão.
Não se faz isso impunemente. Se a perda não for economicamente compensada, pode-se ficar
certo de que sérios distúrbios decorrerão disso.”(idem, 1930[1929], p. 118)
• É fundamental compreender que para Freud o ódio é primário, sendo o amor um destino da
pulsão já apresentado anteriormente, a reversão ao seu oposto.
• Ele citará Plauto, “O homem é o lobo do homem” (Asinaria, II, iv.88) para evidenciar que “Os
homens não são criaturas gentis que desejam ser amadas e que, no máximo, podem defender-se
quando atacadas, pelo contrário, são criaturas entre cujos dotes pulsionais deve-se levar em
conta uma poderosa quota de agressividade.” (FREUD, 1930 [1929], p. 133).
A PULSÃO DE MORTE EM FREUD
• Ele dirá que essa agressividade inerente ao humano que gera conflito entre os sujeitos.
• A civilização tem de utilizar esforços supremos a fim de estabelecer limites para as pulsões
agressivas do homem e manter suas manifestações sob controle por formações psíquicas reativas.
[...] A existência da inclinação para a agressão, que podemos detectar em nós mesmos e supor com
justiça que ela está presente nos outros, constitui o fator que perturba nossos relacionamentos com o
nosso próximo e força a cultura a um tão elevado dispêndio [de energia]. (FREUD, 1930 [1929], p.
134)
• Com o processo civilizatório pretende-se unir sujeitos numa sociedade ligada por vínculos libidinais.
O trabalho de Eros é este, a união.
•A necessidade, as vantagens do trabalho em comum, por si sós, não as manterão unidas. Mas a
natural pulsão agressiva do homem, a hostilidade de cada um contra todos e a de todos contra um, se
opõe a esse programa da civilização. Essa pulsão agressiva é o derivado e a principal representante
da pulsão de morte, que descobrimos lado a lado de Eros e que com este divide o domínio do mundo.
(FREUD, 1930 [1929], pp.144-5)
A PULSÃO DE MORTE EM FREUD
• Para manter o grupo unido, é necessário que a agressividade seja lançada para fora. “É sempre
possível unir um considerável número de pessoas no amor, enquanto sobrarem outras pessoas para
receberem as manifestações de sua agressividade. [...] Dei a esse fenômeno o nome de ‘narcisismo
das pequenas diferenças’. (idem, 1930 [1929], p.136). Esse conceito será articulado a posteriori para
evidenciar a existência dos pequenos feudos nas empresas, representados pelas áreas ou setores,
em constante disputa interna.
•É o supereu, a consciência moral, o principal agente normatizador a favor da cultura. A cultura
domina a agressividade a partir da autoridade que é “internalizada através do estabelecimento de um
superego” (idem, 1930 [1929], p.148). Freud fala então do sentimento de culpa. Pelo medo da
autoridade externa - o pai - a criança renuncia a pulsão para não perder o seu amor. Ao renunciar, o
sentimento de culpa desaparece. “Quanto ao medo do superego, porém, o caso é diferente. Aqui a
renúncia pulsional não basta, pois o desejo persiste e não pode ser escondido do superego. Assim, a
despeito da renúncia efetuada, ocorre um sentimento de culpa.” (idem, 1930 [1929], p.151) Esse
sentimento de culpa inconsciente nem sempre é percebido como tal, sendo atribuído como um mal
estar.
A PULSÃO DE MORTE EM FREUD
• A pulsão de morte na sua face destrutiva se evidencia tanto em condutas sociais triviais como em
situações percebidas como marginais, cruéis. Quando as forças mentais que controlam a
agressividade então fora de combate, o humano é capaz de aniquilar o seu semelhante.
• Nesse sentido, uma consideração pode ser que a exploração do trabalho, a hostilidade, as ofensas,
o abuso de poder, o assédio moral são expressões dessa pulsão nas organizações, muitas vezes
travestidas por uma cultura organizacional que promove e autoriza tais condutas.
•Tratando-se da questão do poder, é interessante destacar, no entanto, que Freud chamará de utopia
comunista as premissas do sistema comunista e dirá que os comunistas se enganam em acreditar
que a instituição da propriedade privada é o grande mal da humanidade.
•[...] as premissas psicológicas em que o sistema se baseia são uma ilusão insustentável. [...] A
agressividade não foi criada pela propriedade. [...] Se eliminarmos os direitos pessoais sobre a
riqueza material, ainda permanecem, no campo dos relacionamentos, prerrogativas fadadas a se
tornarem a fonte da mais intensa antipatia e da mais violenta hostilidade entre homens que, sob
outros aspectos, se encontram em pé de igualdade.” (FREUD, 1930 [1929], pp.135-6)
A PULSÃO DE MORTE EM FREUD
• Para finalizar, acrescentamos uma das passagens conclusivas deste ensaio, onde Freud dirá que
• A questão fatídica para a espécie humana parece-me ser saber se, e até que ponto, seu
desenvolvimento cultural conseguirá dominar a perturbação de sua vida comunal causada pelo instinto
humano de agressão e autodestruição. Talvez, precisamente com relação a isso, a época atual
mereça um interesse especial. Os homens adquiriram sobre as forças da natureza um tal controle,
que, com sua ajuda, não teriam dificuldades em se exterminarem uns aos outros, até o último homem.
Sabem disso, e é daí que provém grande parte de sua atual inquietação, de sua infelicidade e de sua
ansiedade. Agora só nos resta esperar que o outro dos dois ‘Poderes Celestes’, o eterno Eros,
desdobre suas forças para se afirmar na luta com seu não menos imortal adversário. Mas quem pode
prever com que sucesso e com que resultado? (FREUD, 1930[1929], p. 170-1)
A PULSÃO DE MORTE EM LACAN

• Lacan, que retomaremos a seguir, afirmará em seu Seminário 11 que “toda pulsão é pulsão de
morte”. (1969, p. 195) Inicialmente pode parecer que Lacan estaria contrariando o dualismo
freudiano. Porém, para Lacan, este monismo é freudiano e está presente em Mais Além do
Princípio do Prazer, não exatamente com essas palavras.
• Para Freud, a sexualidade é um freio. Sem a dimensão sexual, tem-se o pior, o mais além, a
pulsão de morte. O amor, o cuidado e o desejo do Outro, articulados, que produzem esse freio. O
que Freud chamou de morte, Lacan nomeou de gozo. “Pois o caminho para a morte nada mais é
do que aquilo que se chama gozo.” ( LACAN, 1969, p. 17). “Gozo é precisamente o nome que
Lacan deu à morte introduzida por Freud, em “Mais-além do princípio de prazer”. (JORGE, 2003,
p. 33) Lacan denominou de empuxo ao gozo a direção desse vetor da pulsão.
A PULSÃO DE MORTE EM LACAN
• Para que esse vetor não funcione de maneira autônoma é necessária a ação do recalque
originário, ou seja, de colocar uma fantasia inconsciente no lugar do furo, da falta, do vazio. A
fantasia é o suporte do desejo do sujeito. Como sujeito barrado pela ação do recalque, a “entrada
em ação da fantasia é o que freia o empuxo-ao-gozo inerente à exigência imperiosa da pulsão de
morte em obter a satisfação absoluta a qualquer preço.”(idem, 2003, p. 34) A pulsão quer Das
Ding, mas recebe objetos que assumem a função de objeto a, na sua face simbólica e imaginária,
que oferece nome e imagem ao que não tem nome nem imagem (Das Ding). O conceito
lacaniano de objeto a, objeto causa do desejo, o objeto faltoso da pulsão, na sua face real é Das
Ding.
• Compreendam que o objeto do desejo é a causa do desejo, e esse objeto causa do desejo é o
objeto da pulsão – quer dizer, o objeto em torno do qual gira a pulsão. [...] Não é que o desejo se
prenda ao objeto da pulsão – o desejo faz seu contorno, na medida em que é dele que se trata na
pulsão. (LACAN, 1964, pp. 229-230)
• O que nos parece relevante do conceito de pulsão de morte para a articulação com o presente
trabalho é a forma pela qual ela se faz presente, principalmente na sua face agressiva.
A PULSÃO DE MORTE EM LACAN
• Para a psicanálise, a cultura se edifica na ‘perda de gozo’. O sujeito é barrado pela ação do
recalque. É o Nome-do-Pai, o Não-do-Pai, a metáfora paterna, que diz não ao gozo absoluto, que diz
não ao desejo da mãe pelo bebê e do bebê pela mãe.
• A metáfora paterna, pois, concerne à função do pai, como se diria em termos de relações inter-
humanas. [...] A função do pai está no centro da questão do Édipo, e é aí que vocês a vêem
presentificada. [...] Não existe a questão do Édipo quando não existe o pai, e, inversamente, falar do
Édipo é introduzir como essencial a função do pai. [...] O pai intervém em diversos planos. Antes de
mais nada, interdita a mãe. [...] Por outro lado, o que o pai proíbe? [...] Ele proíbe a mãe. Como objeto,
ela é dele, não é do filho. [...] O pai efetivamente frustra o filho da posse da mãe. (LACAN, 1958, pp.
167-178)
• É essa perda de gozo que constitui a civilização. O mal-estar é irrevogável, é a marca de uma
cultura, a marca de um sujeito. É o resultado do confronto imbatível entre Eros e Tanatos, vida e
morte.
A PULSÃO DE MORTE EM LACAN
• No entanto, vivemos numa sociedade hipermoderna, numa civilização que favorece o gozo. Isso
produz um excesso de gozo que pode levar a disfusão pulsional – a pulsão de morte. Podemos
pensar que nas organizações existem sujeitos que se colocam numa posição de poder, que
reivindicam para si o gozo absoluto.
• Apesar de concordarmos com isso, precisamos considerar que a sociedade atual globalizada,
diferente da que viveu Freud, está inscrita num sistema econômico e ideológico capitalista que
promete o impossível: liquidar o mal-estar através do consumo de produtos que, na função do objetos
a, prometem substituir a falta-a-ser . “Em nossos tempos, a verdade que nos interessa gira em torno
dos inúmeros objetos feitos pela ciência para causar nosso desejo, e que encontramos em todas as
vitrines, como se estivessem nos chamando e nos prometendo um mais-de-gozar.” (MAURANO,
2006, p. 210)
• O conceito lacaniano do mais-de-gozar provém do conceito de Karl Marx de mais-valia. A mais-valia
é a diferença entre o valor do que o trabalhador produz e o valor de seu salário, ou seja, este
excedente é a mais-valia do capitalista e a mola e essência da exploração do sistema capitalista.
(CATANI, 1995)
A PULSÃO DE MORTE EM LACAN
• [...] em Marx, o a que ali está é reconhecido como funcionando em um nível que se articula como
mais-de-gozar. Eis o que Marx descobre como o que verdadeiramente se passa no nível da mais-
valia. [...] Só que antes dele ninguém sabia o seu lugar [da mais valia]. Era o mesmo lugar ambíguo do
trabalho a mais, do mais de trabalho. O que é que isso paga senão justamente o gozo. [...] (LACAN,
1969, p.18)
• Freud em seu texto Análise terminável e interminável (1937), apresenta três tarefas impossíveis de
se realizarem que expressam o mal-estar na cultura: “governar, educar e analisar”.
• Lacan desenvolve a teoria dos quatro discursos e articula o ato de “Governar” ao “discurso do
mestre” ou do Senhor, onde o poder domina e de onde se inicia todo saber – o outro é um escravo,
um trabalhador; “Educar” relaciona-se ao “discurso universitário”, onde domina o saber – o outro é um
objeto, o ‘ensinável’; “Analisar”, ao “discurso do analista”, marcado pela castração – o outro é um
sujeito.
A PULSÃO DE MORTE EM LACAN
• Em seu seminário XVII, O Avesso da Psicanálise (1970), Lacan apresenta essa teoria e inclui o
quarto discurso nomeando-o de “fazer desejar”. Esse seria o discurso da histérica articulado à criação
da psicanálise. A histérica, que é o agente, o sujeito dividido, provoca pelo real do seu sofrimento, o
outro, que é o mestre-cientista (Freud) a invocar um saber que ele cria, produz (a psicanálise).
• Numa sociedade de consumo, a variante do discurso do mestre é o discurso do capitalista
acrescentado à teoria do discurso, por Lacan. O capital é o mestre, sujeito e objeto nivelam-se. Esse
discurso dominante rejeita a castração, não deixando espaço para a falta, para o desejo do sujeito.
Rompe com os laços e segrega, determinando os que têm, os que sabem, os que podem – na
sociedade, nas organizações.
• O sinal da verdade está agora em outro lugar. Ele deve ser produzido pelos que substituem o antigo
escravo, isto é, pelos que são eles próprios produtos, como se diz, consumíveis tanto quanto os
outros. Sociedade de consumo, dizem por aí. Material humano, como se enunciou um tempo – sob os
aplausos de alguns que ali viram ternura. (LACAN, 1969, p.33)
A PULSÃO DE MORTE EM LACAN

• Inseridas no contexto onde o mal-estar encontra-se no campo do gozo, numa promessa de tamponar
por completo a falta que é estrutural, e que não deixa espaço para a escuta da angústia, as
organizações trabalham com a questão da identificação do sujeito com a empresa, prometem o
impossível: a perfeição através do desenvolvimento de competências, a cultura da qualidade total e da
excelência, o sucesso a qualquer custo, a lucratividade através de bônus e premiações – que
acarretam numa maior competitividade e concorrência internas - e, com isso, o aumento da
possibilidade de consumo de gadgets (termo usado para designar os produtos gerados pela inovação
tecnológica disponíveis no mercado) – o grande apelo da sociedade de consumo.
• Alcançamos o nosso objetivo neste tópico ao concluirmos que a agressividade tão presente nos
laços sociais nas empresas, não só evidenciados nas relações de poder, motivo de muitas queixas
dos funcionários, adoecimentos, que comprometem a produtividade, não será extinta em sua
totalidade.
A PULSÃO DE MORTE EM LACAN
• Devemos estar atentos à promessa de extermínio da falta estrutural do sujeito castrado, que para a
psicanálise, será sempre incompleto. Uma promessa que aumenta o desprazer e a angústia,
decorrentes do imperatismo do consumo, do capital. Devemos pensar as ações de recursos humanos,
no sentido da escuta da angústia do sujeito singular e na revisão das políticas e ações que prometem
o irrealizável. É necessário preservar o lugar do mal-estar para que o sujeito possa desejar.
• Talvez por isso, Lacan tenha considerado esse ensaio, no seu seminário sobre a ética da psicanálise
(1959-1960), como um “livro essencial”, onde Freud fará a “síntese de sua experiência” e discorrerá
sobre a tragédia da condição humana. Assim como ele, Peter Gay considera-o como o texto mais
sombrio de Freud, em que ele aborda a questão da miséria humana.

Barbara Carissimi
A PULSÃO DE MORTE COMO
EFEITO DO SUPEREU
• Diante da relativa indefinição da noção de pulsão de morte, assim como das grandes
controvérsias a que deu lugar, a autora sugere que ao cunhar essa noção Freud apenas
sinalizou sua preocupação com os fatos clínicos que ainda não tinha levado
convenientemente em conta, e que só depois, com o desenvolvimento da teoria do supereu,
ele consegue de fato cunhar ferramentas teóricas para a clínica dos quadros de atração pelo
sofrimento e pela dor. Palavras-chave: Supereu, pulsão de morte, destrutividade, história,
energia.

Ana Maria Rudge


A PULSÃO DE MORTE COMO
EFEITO DO SUPEREU
• A clínica psicanalítica nos convoca da maneira mais pre- mente a lidar com a repetição nos
caminhos do sofrimento. Ao mesmo tempo em que a repetição, em especial a presente em
certos sonhos, nos sintomas da neurose traumática, na reação terapêutica negativa e na
compulsão de destino, pode ser tomada como o maior impasse ao tratamento psicanalítico,
esses fenômenos povoam toda a análise que conduzimos, e constituem a área própria para a
intervenção psicanalítica. Pela irresistível atração pelo sofrimento que as caracteriza, essas
manifestações clínicas foram o estopim para a maior reformulação da teoria freudiana.
Aquela que introduziu a segunda tópica, e, no seio da nova teoria pulsional, a pulsão de
morte, noção tão ambígua, controvertida e com freqüência recusada, explicitamente ou não,
por tantos psicanalistas.

Ana Maria Rudge


A PULSÃO DE MORTE COMO
EFEITO DO SUPEREU
• Freud introduz a noção de pulsão de morte na psicanálise, definida em um plano que é
próprio da biologia, como tendência para reconduzir o ser vivo ao estado inorgânico.

Ana Maria Rudge


A PULSÃO DE MORTE COMO
EFEITO DO SUPEREU
• Se a pulsão de morte não apresentou aplicação imediata na teoria das neuroses e dos conflitos
subjacentes a elas, qual o motivo de sua persistência nas elaborações posteriores de Freud? Sem
dúvida a forte impressão causada em Freud pela Primeira Guerra: a violência de que tomou
ciência, estarrecido, ainda o convocava a dar um lugar teórico ao poder, na vida psíquica, de
uma pulsão destrutiva ou agressiva. Além desse nível social, apresentavam-se na clínica
psicanalítica as neuroses traumáticas e manifestações masoquistas, como a reação terapêutica
negativa e os autoataques, que solicitavam serem levados em conta na teoria. E é isso o que faz
Freud, mas não invocando a tendência ao inorgânico por si só. Diz ele que as pulsões
destrutivas são aquelas que “fazemos derivar da pulsão de morte originária da matéria
animada” (FREUD 1938/1975, p.243, grifo nosso). Não há explicações diretas da
destrutividade humana que invoquem a tendência da matéria viva para o inorgânico. O que
Freud fez foi dar “base biológica ao princípio da ‘discórdia’, reconduzindo nossa pulsão de
destruição à pulsão de morte, o esforço do vivo para regressar ao estado inanimado” (FREUD,
1937/ 1975, p.246).
Ana Maria Rudge
A PULSÃO DE MORTE COMO
EFEITO DO SUPEREU
• Sabemos que, ao invocar a compulsão à repetição e a pulsão de morte em 1920, Freud
reconhecia e enfatizava a inexorabilidade da repetição nos caminhos que levam para o
sofrimento, repetição que chegou a qualificar de demoníaca. Entretanto, a questão de como
se constitui e atua essa força que empurra o homem para a dor e para o mal continuou sendo
um tema central de todas as suas formulações posteriores, já que ter apenas postulado uma
força biológica que leva para a extinção de toda a vida não lhe deu condições de lidar com
os fenômenos clínicos.

Ana Maria Rudge


A PULSÃO DE MORTE COMO
EFEITO DO SUPEREU
• Na passagem da pulsão de morte, entendida como força biológica que afeta o ser vivo, para
a destrutividade de ordem psíquica — entendida pelo analista como forjada historicamente
— o supereu é uma mediação indispensável. Em 1926, no anexo a Inibição, sintoma e
angústia, quando são discriminadas metapsicologicamente as diversas formas de resistência
ao tratamento analítico, 82 ANA MARIA RUDGE Ágora (Rio de Janeiro) v. IX n. 1 jan/jun
2006 79-89 a reação terapêutica negativa e o masoquismo encontrados na clínica são
apresentados como manifestações da tirania de um supereu sádico sobre o eu.

Ana Maria Rudge


A PULSÃO DE MORTE COMO
EFEITO DO SUPEREU
• Ora, exatamente os mesmos fenômenos clínicos que haviam levado Freud a postular a
pulsão de morte são retomados agora sob uma nova rubrica: a de resistência do supereu
(FREUD, 1926/1975). Distinguindo cinco diferentes tipos de resistência ao tratamento
analítico, que apresentam fundamentos metapsicológicos diversos, destacará a resistência do
supereu como a mais radical delas. Esse tipo de resistência (o mais tardiamente descoberto e
o mais obscuro dos cinco) resulta do sentimento de culpa e da necessidade de autopunição, e
se opõe a qualquer movimento para o sucesso, incluindo as possíveis melhoras no
tratamento psicanalítico (FREUD, 1926/ 1975, p.160). Estamos agora no seio de uma
construção metapsicológica bem mais complexa, liberta do apoio na biologia, e de acordo
com o postulado psicanalítico fundamental de que, graças ao desamparo do infante, o
psiquismo humano está na estrita dependência do que é construído a partir do campo social.

Ana Maria Rudge


A PULSÃO DE MORTE COMO
EFEITO DO SUPEREU
• O gradativo detalhamento das construções com que Freud busca dar conta dessa vocação
para o pior, para o fracasso e o sofrimento que habita o homem, envolve a introdução do
masoquismo como originário. O masoquismo, embora estivesse presente como um dos
destinos da pulsão desde os Três ensaios (FREUD, 1905/1975), tem seu estatuto
transformado no texto O problema econômico do masoquismo (FREUD, 1924/1975). Passa
a ser um masoquismo originário, fundamento de toda a esfera pulsional, e não mais um
aspecto de uma pulsão parcial, a pulsão sadomasoquista. Essa promoção do masoquismo
respondeu exatamente à experiência de que a maior fonte de resistência ao tratamento é essa
força que luta contra a cura e que visa manter o sujeito na doença e no sofrimento. Em
contrapartida a essa posição primária do masoquismo, o supereu, que havia surgido na
posição de herdeiro do complexo de Édipo, passará também a primário, a ponto de ser
tomado como núcleo do próprio eu (FREUD, 1927/ 1975), o que sugere que o supereu é seu
ponto de origem, o mais arcaico.
Ana Maria Rudge
A PULSÃO DE MORTE COMO
EFEITO DO SUPEREU
• O supereu estará inseparavelmente ligado à pulsão de morte: o sentimento de culpa e a busca
de punição inconscientes, que são manifestações da tensão entre eu e supereu, representarão
a parte da força da pulsão de morte que é “psiquicamente ligada pelo supereu e assim se
torna reconhecível” (FREUD, 1937/1975, p.242). Evidencia-se assim que a promoção da
pulsão de morte, do supereu e do masoquismo são passos na elaboração de uma teia teórica
que visa apreender uma mesma problemática.

Ana Maria Rudge


A PULSÃO DE MORTE COMO
EFEITO DO SUPEREU
• Desta forma, Lacan está sendo fiel a Freud quando afirma que “a distinção entre pulsão de
vida e pulsão de morte é verdadeira, na medida em que manifesta dois aspectos da pulsão”
(LACAN, 1964/1979, p.243) ou que “toda a pulsão é virtualmente pulsão de morte”
(LACAN, 1960/1998, p.863). Seguramente, é preciso um permanente trabalho para manter a
pulsão operando dentro dos limites do princípio de prazer, uma vez que ela apresenta essas
duas faces que podem alternar.
• Apoiando a idéia de que o dualismo pulsional não opõe duas pulsões, mas diferentes formas
de funcionamento da pulsão, temos a observação de que Freud nunca nomeou alguma
espécie de energia psíquica, paralela à libido, que estivesse a serviço da pulsão de morte.

Ana Maria Rudge


A PULSÃO DE MORTE COMO
EFEITO DO SUPEREU
• O princípio do Nirvana, apresentado como correlato da pulsão de morte na época em que
esta foi introduzida, representa a tendência para o retorno ao inanimado. Ora, a pulsão de
morte, em sua forma de apresentar-se na experiência analítica, como adverte Lacan, é sem
dúvida uma experiência de discurso (LACAN, 1969-1970/1991, p.17).1 São dois níveis bem
diferentes, o de um princípio econômico de inércia, ou Nirvana, tendente à descarga total e
ao repouso absoluto, e a pulsão de morte na experiência clínica, que Lacan insistiu em que
“se deve situar no domínio histórico” (LACAN, 1960/1986, p.248), ao invés de reduzi-la a
uma tendência no sentido energético, visando afastar a pulsão de morte do domínio
biológico

Ana Maria Rudge


A PULSÃO DE MORTE COMO
EFEITO DO SUPEREU
• O papel das identificações na constituição do sujeito humano, em especial a mais arcaica e
básica delas que dá origem ao supereu, é condição de possibilidade fundamental para a
operação de uma repetição nos caminhos da dor como a que podemos encontrar no homem.
Pré-maturo ao nascer, como observou Freud, o bebê dependerá dos cuidados recebidos do
adulto falante, e muito o ouvirá falar enquanto lhe prodigaliza esses cuidados. É nesse
processo mesmo que surge o supereu, que se erige a partir das impressões dessa época,
sobretudo das palavras ouvidas (FREUD, 1923/1975, p.52-53). A formação do supereu
resulta do que podemos tomar como um trauma estrutural, e representa um resíduo das
primeiríssimas identificações, constituindo, como vimos, o próprio núcleo do eu.

Ana Maria Rudge


A PULSÃO DE MORTE COMO
EFEITO DO SUPEREU
• Um “trauma do nascimento” que, longe de ser separação da mãe, é a entrada em um novo
meio, que é o meio de linguagem. Se o Lacan estruturalista tomou, como trauma
constitutivo, a entrada na ordem simbólica que mortifica a criança e a aliena de seu corpo,
cada vez mais o psicanalista enfatiza que, nesse meio de linguagem, a criança pode entrar
como desejada ou não, embora sempre relativamente mal entendida (LACAN, 1980),
remetendo à maneira particular pela qual cada criança faz essa passagem.
• A pulsão de morte é “pulsão do supereu” (MILLER, 2002, p.30-31) e se manifesta pela
repetição indomada, não temperada pelo princípio de prazer. A razão pela qual essa repetição
não pode ser remetida à biologia é porque funciona ao reverso da adaptação. Só o meio de
linguagem em que nascemos pode justificar tal repetição antivital, que tem como seu motor
o supereu.

Ana Maria Rudge


A PULSÃO DE MORTE COMO
EFEITO DO SUPEREU
• Lacan também apresenta várias versões da repetição e da pulsão de morte. Em seus
primeiros trabalhos no campo da psicanálise, aqueles que se centram nas imagos e no estádio
do espelho, sugere que a pulsão de vida e de morte estão imbricadas na relação que se
estabelece entre o corpo-organismo e o corpo imaginário unificado, em que este não apenas
é ideal mas também objeto de agressividade (LACAN, 1948/1998).
• A partir de seu Discurso de Roma, a pulsão de morte passa a depender estreitamente da fala
e do significante, a tal ponto que Miller a define como um “conceito antibiológico”
(MILLER, 2002, p.44). A ênfase é na morte simbólica, uma segunda morte diversa da
biológica, que por um lado a antecipa, mas por outro a transcende, ao garantir ao homem
uma sobrevida significante apoiada na transmissão.

Ana Maria Rudge


A PULSÃO DE MORTE COMO
EFEITO DO SUPEREU
• A partir dos anos 1960 a compulsão à repetição migrará da cadeia significante para o gozo,
cuja produção depende do significante, mas que, sendo indomável pelo simbólico, volta,
como real, sempre ao mesmo lugar. O corpo está envolvido no gozo, mas o papel do
significante na sua produção, ao invés do recurso à biologia, justifica a idéia de que é a
identificação ao supereu e a suas injunções, o que dá conta do que é da pulsão de morte na
clínica psicanalítica.

Ana Maria Rudge


A PULSÃO DE MORTE COMO
EFEITO DO SUPEREU
• É na relação transferencial que o empuxo para o pior e para o sacrifício se atualiza,
permitindo uma apreensão dos significantes que o comandam e seus enlaces com a história
do analisando. Sem esse contorno, mas tomando a pulsão de morte diretamente em sua
referência biológica, como uma tendência da matéria viva, fica-se sem instrumentos para a
intervenção clínica, que deve tomar em conta a economia, mas não pode dispensar a história.
Ao não levar em conta o supereu na produção da repetição, só nos restaria embarcar no
discurso desesperançado em relação às intensidades que freqüentam a clínica psicanalítica
contemporânea, discurso pouco elucidativo, mas tão contemporâneo, ele mesmo.

Ana Maria Rudge


PULSÃO DE MORTE EM
FERENCZI
Profa. Dra Barbara A dos S M Carissimi
Referências:
1. Regina Herzog e Fernanda Pacheco-Ferreira - Trauma e pulsão de morte em Ferenczi
https://www.scielo.br/j/agora/a/RFyY4JM3WZKphSxXXZbpncS/?format=pdf&lang=pt
2. André Bomfim Pereira Luz - Pulsão de morte em Freud e Ferenczi: encontros e desencontros. Dissertação
apresentada ao Programa de Mestrado em Psicologia da Universidade Federal de São João del-Rei
https://www.ufsj.edu.br/portal2-repositorio/File/ppgpsi/DISSERTACAO-ANDRE-FINAL.pdf
3. Ana Maria Rudge. Pulsão de morte como efeito do supereu.
https://www.scielo.br/j/agora/a/cTw9TmvW5RfNMQXc8KTHkCB/?format=pdf&lang=pt
• O conceito de pulsão de morte, apresentado em 1920, foi recebido pela comunidade analítica
com muitas ressalvas. A grande maioria dos psicanalistas pós-freudianos não adota o
conceito, ao menos tal como Freud inicialmente o concebeu, enquanto uma tendência inata e
universal. Entretanto, as manifestações clínicas atribuídas à pulsão de morte nunca deixaram
de intrigar os analistas, e muito da reflexão psicanalítica do século XXI remete às questões
levantadas por Freud a partir de 1920 diante do encontro com uma dimensão que estaria
além do princípio de prazer e além da representação.

Regina Herzog e Fernanda Pacheco-Ferreira


• Um dos primeiros analistas a abordar as manifestações da pulsão de morte na clínica,
oferecendo, mesmo que de modo não explícito, uma alternativa à ideia original do conceito,
foi Sándor Ferenczi, cuja influência para a psicanálise contemporânea é, hoje,
incontestavelmente reconhecida.
• A perspectiva ferencziana aborda as manifestações da compulsão à repetição sem apelar para
o conceito especulativo de pulsão de morte.

Regina Herzog e Fernanda Pacheco-Ferreira


• Embora Ferenczi não se oponha às hipóteses de Freud em Além do princípio do prazer
(1920), é justamente neste ensaio de 1924 que se pode perceber um desacordo em relação ao
postulado freudiano da hegemonia da pulsão de morte no psiquismo. A este respeito, Avello
(2013) considera que desde 1924 Ferenczi já não compartilhava da noção de primazia da
pulsão de morte, preferindo à la Nietzsche, uma oscilação entre pulsões de vida e de morte.
Segundo Avello, Ferenczi pensa em variantes da pulsão de vida que adquirem sua estrutura
definitiva no laço com os outros e não em pulsões distintas. “(...) deveríamos abandonar
definitivamente o problema do começo e do fim da vida e imaginar todo o universo orgânico
e inorgânico como uma oscilação perpétua entre pulsões de vida e pulsões de morte, em que
tanto a vida quanto a morte jamais conseguiria estabelecer sua hegemonia.” (FERENCZI,
1924, p.325)

Regina Herzog e Fernanda Pacheco-Ferreira


• Ferenczi não rejeita de modo explícito o conceito de pulsão de morte. A nosso ver, contudo,
o uso do conceito de pulsão de morte parece sofrer uma modificação significativa ao longo
de seus textos. Assim, quando Freud introduz a nova dualidade pulsional entre vida e morte,
Ferenczi parece recuar não apenas diante da hegemonia da última em relação à primeira,
como queria Freud, mas, sobretudo, diante da hipótese constitucional da pulsão de morte.
Através das notas de seu Diário, publicado postumamente, observa-se que pouco a pouco ele
chega a eliminar a pulsão de morte da dinâmica psíquica: só existiriam pulsões de vida.

Regina Herzog e Fernanda Pacheco-Ferreira


• Propomos adotar essas duas linhas de desenvolvimento em conjunto, a da pulsão de morte e
a do trauma desestruturante, para compreender a contribuição de Ferenczi à teoria das
pulsões e mostrar como sua posição abre caminho para a teoria das relações de objeto.
Assim, no artigo intitulado “A criança mal acolhida e sua pulsão de morte” (1929), Ferenczi
dá seguimento à reflexão sobre a força da pulsão de destruição no início da vida,
questionando a concepção freudiana. Para Ferenczi, não fazia sentido pensar um
funcionamento autônomo e inexorável dos fenômenos vitais, como um emaranhado de
manifestações de duas pulsões básicas, a de vida e a de morte, não subordinado às relações
intersubjetivas que constituem a história de vida de cada um. Para tanto, começa pela
observação de pacientes com tendências suicidas e, mais especificamente, da análise
retrospectiva de dois casos de espasmo da glote infantil, interpretando-os como tentativas de
suicídio por autoestrangulamento.

Regina Herzog e Fernanda Pacheco-Ferreira


• Para ele, crianças mal acolhidas, ou seja, recebidas com rudeza e sem carinho, captam de
forma consciente e inconsciente os sinais de aversão do meio e sua vontade de viver se
quebra. “Morrem facilmente e de bom grado”, diz ele, mas, se sobrevivem, são
acompanhadas por um desprazer e pessimismo em relação à vida. Ferenczi notou em muitos
desses casos manifestações de impotência sexual, disposição para resfriados e até mesmo
uma queda noturna de temperatura muito acentuada e sem explicação orgânica.

Regina Herzog e Fernanda Pacheco-Ferreira


• Tais casos, nos quais o gosto pela vida é tão precocemente perdido, seriam semelhantes aos
daqueles pacientes que, segundo Freud, “sofrem de uma fraqueza congênita de sua
capacidade para viver” com a diferença, porém, de que, para Ferenczi, este suposto “caráter
congênito da tendência mórbida é simulado, em virtude da precocidade do trauma”
(FERENCZI, 1929, p.50). “(...) no início da vida, intra e extrauterina, os órgãos e suas
funções desenvolvem- -se com uma abundância e uma rapidez surpreendentes — mas só em
condições particularmente favoráveis de proteção do embrião e da criança. (...) A ‘força
vital’ que resiste às dificuldades da vida não é, portanto, muito forte no nascimento; segundo
parece, ela só se reforça após a imunização progressiva contra os atentados físicos e
psíquicos, por meio de um tratamento e uma educação conduzidos com tato.” (FERENCZI,
1929, p.50, grifos nossos)

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• De acordo com Ferenczi, o pequeno sujeito que acaba de vir ao mundo encontra-se muito
próximo do “não-ser individual” e deslizar novamente para tal estado poderia, no caso da
ausência da “imunização” do meio, acontecer de modo muito mais fácil do que com um
adulto. O ponto chave aqui é o termo “imunização” que mostra como Ferenczi se distancia
de uma hipótese constitucional para valorizar o ‘tato’ do meio ambiente. É em 1928, no
artigo “Elasticidade da técnica psicanalítica”, que o conceito de tato é mais bem trabalhado.
“O tato é a faculdade de ‘sentir com’ (Einfühlung)” (FERENCZI, 1928, p.27). Essa noção
não tem um caráter místico ou puramente intuitivo, trata-se apenas de uma capacidade
psicológica, empática, de se colocar no mesmo diapasão da criança (ou do paciente) e sentir
com ele todos os seus caprichos e humores.

Regina Herzog e Fernanda Pacheco-Ferreira


• No tratamento de tais casos, o analista permite ao paciente “desfrutar pela primeira vez a
irresponsabilidade da infância, o que equivale a introduzir impulsos positivos de vida e
razões para se continuar existindo” (FERENCZI, 1929, p.51). Daí tira-se uma primeira
conclusão: a pulsão de vida, enquanto tendência erótica e força vital, embora parte integrante
do ser humano, só cumpre sua função caso o ambiente favoreça sua dinamização. Pode-se
pensar que o mesmo se aplica à pulsão de morte, a falha na imunização corresponderia a um
recrudescimento da tendência ao inorgânico. Ambas as tendências dependeriam das
primeiras relações do indivíduo com o meio circundante e não estariam ligadas à
constituição. Suas palavras a este respeito são eloquentes: “A criança recém- -nascida utiliza
toda a sua libido para o seu próprio crescimento, e é necessário até dar-lhe libido para que
possa crescer normalmente. (...) Os bebês não amam, é preciso que sejam amados”
(FERENCZI, 1932, p.236).

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• Ferenczi, mais do que nenhum outro analista na época, soube reconhecer os efeitos
mortíferos da pulsão de morte sublinhados por Freud, mas relutou em considerá-los uma
tendência universal ligada à constituição. A causa era exógena, tais efeitos deveriam ser
atribuídos ao conflito com o outro, à ausência de tato do meio ambiente.
• Bonomi (2003) considera que Ferenczi mesmo sem se dar conta, modifica de modo
substancial a metapsicologia freudiana: “segundo Freud, o princípio do prazer procurava um
equilíbrio no seio do aparelho psíquico, ao passo que Ferenczi interessava-se principalmente
pelo equilíbrio entre o indivíduo e seu meio cambiante” (p.54).

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• O verdadeiro distanciamento de Freud se deu com o desenvolvimento de sua teoria do
trauma. No final da vida, a teoria do trauma e a consequente revalorização do objeto,
levaram Ferenczi a questionar o ponto de vista econômico tal qual pensado por Freud, o
equilíbrio energético entre as pulsões de vida e de morte, acabando por conduzi-lo a uma
concepção nova do psiquismo, que implicaria a ideia de um monismo energético. Com isso,
Ferenczi não estaria apenas chamando a atenção para um caso particular que escapa à
psicanálise clássica. Ao reavaliar o fator traumático de casos graves, ele também está
reformulando, à sua maneira, a compreensão global do aparelho psíquico. Pode-se dizer que
uma soma de fatores, tais como seu estado crítico de saúde, a reavaliação de sua própria
análise com Freud — que não teria trabalhado a transferência negativa durante o tratamento
—, e o excesso de preocupação com o manejo clínico, impediram-no de formalizar suas
intuições de modo explícito no âmbito teórico.

Regina Herzog e Fernanda Pacheco-Ferreira


• Além disso, sabe-se que estas ideias desenvolvidas no final da vida não foram bem aceitas
por Freud que, chocado, pediu inclusive a não publicação do artigo “Confusão de língua
entre os adultos e a criança”, apresentado no congresso de Wiesbaden, em 1932. De fato,
Freud mostrou-se profundamente decepcionado com o amigo, colega e discípulo, pedindo-
lhe que reconsiderasse suas posições e mesmo que evitasse editar artigos por certo tempo.7
Neste texto de 1932, Ferenczi dá especial relevo à questão do trauma, indo contra
“explicações apressadas, invocando a predisposição e a constituição” (FERENCZI, 1933,
p.97). “(...) nunca será demais insistir sobre a importância do traumatismo e, em especial, do
traumatismo sexual como fator patogênico. (...) A objeção, a saber, que se trataria de
fantasias da própria criança, ou seja, mentiras histéricas, perde lamentavelmente sua força,
em consequência do número considerável de pacientes, em análise, que confessam ter
mantido relações sexuais com crianças.” (FERENCZI, 1933, p.101)

Regina Herzog e Fernanda Pacheco-Ferreira


• Ferenczi via no trauma desestruturante um fator exógeno, modificando o psiquismo. Para
ele, a cena traumática é, na verdade, uma confusão de línguas, ou seja, refere-se à má
compreensão por parte do adulto de manifestações eróticas da criança, tomando-as como
análogas às manifestações da sexualidade adulta; ou seja, enquanto as primeiras
permanecem sempre no nível da ternura, as manifestações adultas encontram-se no nível
genital, da paixão. A interpretação confusa desses dois níveis eróticos por parte do adulto
provoca a confusão na criança, em especial quando o adulto, culpado, se retira e desmente o
ocorrido. Para Ferenczi, essa confusão é traumática e patológica porque põe em risco o
projeto identificatório do sujeito. Ao confundir a ternura da criança com o erotismo genital,
o adulto falha como suporte mediador entre a criança e seu mundo, traindo sua confiança.
Podemos dizer que, neste processo, a própria criança enquanto sujeito é desacreditada. Ou
seja, o trauma desestruturante se configura na falha das instâncias de mediação entre os dois
jogos de linguagem.
Regina Herzog e Fernanda Pacheco-Ferreira
• Ferenczi via no trauma desestruturante um fator exógeno, modificando o psiquismo. Para
ele, a cena traumática é, na verdade, uma confusão de línguas, ou seja, refere-se à má
compreensão por parte do adulto de manifestações eróticas da criança, tomando-as como
análogas às manifestações da sexualidade adulta; ou seja, enquanto as primeiras
permanecem sempre no nível da ternura, as manifestações adultas encontram-se no nível
genital, da paixão. A interpretação confusa desses dois níveis eróticos por parte do adulto
provoca a confusão na criança, em especial quando o adulto, culpado, se retira e desmente o
ocorrido. Para Ferenczi, essa confusão é traumática e patológica porque põe em risco o
projeto identificatório do sujeito. Ao confundir a ternura da criança com o erotismo genital,
o adulto falha como suporte mediador entre a criança e seu mundo, traindo sua confiança.
Podemos dizer que, neste processo, a própria criança enquanto sujeito é desacreditada. Ou
seja, o trauma desestruturante se configura na falha das instâncias de mediação entre os dois
jogos de linguagem.
Regina Herzog e Fernanda Pacheco-Ferreira
• Indo direto para o mergulho, Ferenczi nos apresenta a ideia de uma criança que teve sempre
suas necessidades atendidas no momento correto, até que, pela primeira vez, experimenta a
fome. Essa criança ainda não tinha noção do mundo externo, por isso não lhe era possível ter
qualquer sentimento, bom ou mal, em relação a ele. Mas agora seu corpo sofre com a fome,
a ausência nutricional provoca uma destruição de ordem fisiológica, mas também opera uma
desintrincação pulsional no psiquismo. Quando essa criança reencontrar o seio materno, este
não será algo indiferente, cuja existência não precisa ser reconhecida. O seio se torna um
objeto de amor e de ódio. De ódio pelo tempo que precisou passar sem ele, e de amor, pois,
com a privação, a satisfação foi ainda mais intensa. Assim, devido à desintrincação
pulsional, o seio se torna uma representação de objeto.

ANDRÉ BOMFIM PEREIRA LUZ


• Ferenczi identifica o ódio com a pulsão de morte e o amor com a pulsão de vida. A
ambivalência entre o ódio e o amor permite que o indivíduo reconheça a existência das
coisas. O que ama o indivíduo, aquilo que satisfaz sempre as suas necessidades, é incluído
no ego sem que ele se dê conta; já aquilo que é sempre hostil é recalcado.
• Nessa passagem podemos perceber que o elemento do ódio não é primário, ele se relaciona
com a percepção de que algo no objeto escapa à vontade do indivíduo. Ou seja, mesmo
operando de forma próxima à dualidade pulsional de Freud, o caráter relacional ainda ganha
destaque no pensamento de Ferenczi.

ANDRÉ BOMFIM PEREIRA LUZ


• Como já dissemos, o próprio Freud reconheceu que a teorização da pulsão de morte causou
grande controvérsia na comunidade psicanalítica. Podemos apontar que essa controvérsia se
deu por dois pontos fundamentais: o caráter especulativo da pulsão de morte, e a limitação
que ela impunha para a clínica.
• Talvez o melhor caminho para apontarmos algumas aproximações e alguns afastamentos de
Freud e Ferenczi quanto às suas perspectivas da vida pulsional possa ser encontrado na
origem, que é simultaneamente o destino. A origem a que nos referimos é a origem da vida,
tema que os dois autores dedicaram considerações em seus textos irmãos, como disse
Figueiredo (1999), o Além do princípio do prazer e o Thalassa.

ANDRÉ BOMFIM PEREIRA LUZ


• Nessa tentativa de alcançarmos a origem nas argumentações de Freud e Ferenczi, alguns
elementos se destacam e se cruzam. São eles: ambiente, regressão e equilíbrio. Comumente
quando se relaciona as posições de Freud e Ferenczi quanto ao ambiente, atribui-se ao
vienense uma posição inteiramente centrada na interioridade e na 123 constitucionalidade,
enquanto ao húngaro é atribuída uma centralidade na relação ambiental. Quanto a essa
posição, concordamos com a fala de Herzog e Pacheco-Ferreira: Seria injusto dizer que
Freud não leva em conta o ambiente, ou o papel real dos primeiros objetos para a
constituição da subjetividade e para a etiologia patológica, o que se quer ressaltar é que suas
formulações acabam sempre privilegiando uma perspectiva que foca as mudanças internas
ao aparelho psíquico (Herzog & Pacheco-Ferreira, p.190). O mesmo poderíamos dizer sobre
Ferenczi. Ele não ignora o interno e o aparelho psíquico, mas o foco de suas reflexões
geralmente recai sobre a relação do indivíduo com o ambiente que o cerca.

ANDRÉ BOMFIM PEREIRA LUZ


• É preciso que o ambiente seja maleável, favorável e paciente para que ocorra a adaptação.
Sem essas características, o organismo, que perdeu seu ambiente primordial, não é capaz de
realizar sua capacidade adaptativa, e seu potencial vital é perdido, só lhe restando a morte.
• É inegável que a percepção de uma tendência para o passado estivesse presente nos dois
autores, tal como a compreensão de que o desenvolvimento só ocorre por motivos externos.
Porém, por mais que essas semelhanças existam, há elementos fundamentais que separam
conceitualmente a repetição de Freud e a regressão de Ferenczi. Podemos diferenciar essas
duas posições por duas características: onde ela age, e qual é o seu objetivo.

ANDRÉ BOMFIM PEREIRA LUZ


• Até esse momento, pudemos identificar na perspectiva de Ferenczi alguns elementos
essenciais para nossa pesquisa. A identificação de ódio e amor com a dualidade pulsional,
que ganha forma pela capacidade dos objetos de satisfazerem ou frustrarem o sujeito. A
dependência que o organismo tem do ambiente para a manutenção de sua vida, e a adaptação
necessária para que esse não morra, assim como a autodestruição como elemento que
possibilita a vida. Ferenczi ainda vai trabalhar com outra forma de destruição autodirigida,
mas retornaremos para ela quando formos discutir sua teoria do trauma. Antes de
continuarmos essa análise na obra de Ferenczi, devemos analisar como Freud tratava esses
mesmos termos em seus escritos.

ANDRÉ BOMFIM PEREIRA LUZ


• Retornando ao Além do princípio do prazer, Freud (1920) relaciona o amor e a ternura com
as pulsões de vida, assim como o ódio e a agressividade com as pulsões de morte: o ódio é
sempre manifestação da pulsão de morte, enquanto o amor é manifestação da pulsão de vida.
Porém, ao aproximar a pulsão de morte do ódio e da destruição, Freud vai trabalhar esse
aspecto destrutivo da pulsão de morte por dois caminhos: a destruição autoinfligida, e aquela
lançada para o mundo externo.
• No organismo há a ação da libido e da pulsão de morte, se essa última não for impedida, sua
tendência destruidora pode se realizar. Assim, Eros se une à pulsão de morte, na tentativa de
impedir que a vida acabe. Nessa união, a pulsão de morte é erotizada, e uma parte dela é
lançada para fora.

ANDRÉ BOMFIM PEREIRA LUZ


• Tamanha a autonomia e a constitucionalidade, que Freud (1930) vai inscrevê-la como um
elemento da “natureza humana” : ser humano não é uma criatura branda, ávida de amor, que
no máximo pode se defender, quando atacado, mas sim que ele deve incluir, entre seus dotes
instintuais, também um forte quinhão de agressividade. [...] [ela] desmascara os seres
humanos como bestas selvagens que sequer respeitam os membros de sua própria espécie
(ibid., p. 49).

ANDRÉ BOMFIM PEREIRA LUZ


• Ferenczi identificou nesses casos que os pacientes tinham que lutar contra tendências suicidas.
Como já dissemos, havia algo em comum nesses pacientes, eles não foram bem vindos em
suas famílias. E essa situação familiar não passou despercebida, ela foi registrada consciente e
inconscientemente e, com isso, a sua vontade de viver foi quebrada (ibid., p.57), fazendo com
que os menores acontecimentos da vida suscitassem neles a vontade de morrer, e morrer de
bom grado. Essas pessoas demonstravam que, pela ação do meio no qual estavam inseridas,
não conseguiram desenvolver seu potencial adaptativo, e devido a isso perderam o gosto pela
vida. E pela observação desses casos, Ferenczi se afasta da posição de Freud, pois o húngaro
aponta que, na classificação feita por Freud, a tendência mórbida tem um caráter congênito.
Entretanto, nos casos que ele pôde observar, essa tendência inata era apenas simulada, devido
à precocidade do trauma. Ou seja, Ferenczi aponta para as mesmas diferenças que discutimos
acima. Freud argumenta a pulsão de morte como uma ação inerente ao organismo, enquanto
que para Ferenczi ela vai se configurar pela relação com o meio.

ANDRÉ BOMFIM PEREIRA LUZ


• No entanto, na sequência da publicação, Ferenczi afirma que o organismo só se desenvolve
com abundância no início da vida, quando há condições favoráveis para esse organismo. E
isso ocorre pelo amor dos pais, que imuniza o infante dos ataques físicos e psíquicos. Caso
isso não ocorra, as pulsões de autodestruição podem entrar em ação, pois, como ainda está
mais próximo do não ser individual, esse retorno seria mais fácil para o 135 bebê. Essa
afirmação poderia indicar uma aceitação da pulsão de morte como um elemento
constitucional e primário, mas, se retornarmos para algumas posições de Ferenczi, podemos
apontar para outro caminho.

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• Ferenczi nos diz que cabe aos cuidadores criar um ambiente que se aproxime com o útero
materno no início da vida da criança e assim ela poderá ter suas necessidades satisfeitas e ser
protegida da ação do mundo externo. Entretanto, se esses cuidados faltarem, tal como o
peixe fora da água, só pode restar a morte para o infante. Dessa maneira, o funcionamento
pulsional é relacionado com as relações que o indivíduo estabelece com o seu meio.

ANDRÉ BOMFIM PEREIRA LUZ


• Com a falha nas instâncias de mediação no trauma, causando uma impossibilidade de
atribuição de sentido, uma das saídas possíveis que o indivíduo pode encontrar é a clivagem
que, como diz Vertztman (2002, p. 65): a clivagem é o selo de uma introjeção impossível.
Pela clivagem o indivíduo se retira da experiência traumática e cinde a sua subjetividade.
Assim, ele pode assegurar uma sobrevivência paradoxal, se descentrando de si mesmo e se
distanciando de sua vida subjetiva. Dessa forma, ele pode se distanciar dos afetos que dão
sentido à existência do trauma (Sales et al, 2013). Temos que destacar que na clivagem do eu
há essa luta para se afastar dos afetos e não das representações, já que, pela resposta que os
objetos primordiais deram para o sujeito, ele foi forçado a não simbolização. No entanto, o
trauma persiste, não ligado à memória representacional, mas como impressões sensíveis. A
experiência conserva um caráter atual que conturba a inscrição e o reordenamento temporal.

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• Se tentássemos encaixar o termo pulsão de morte no mesmo significado de Freud na obra de
Ferenczi, seria um encaixe impreciso. Como tentar encaixar uma peça de um 139 quebra
cabeça em um outro, mesmo que a imagem final guarde alguma semelhança, essa peça
sempre ficaria marcada por um buraco ou por um excesso. Em alguns casos, pode ser que a
imagem final não fique tão diferente quanto deveria ser, mas em outros, ela corre o risco de
ficar irreconhecível.

ANDRÉ BOMFIM PEREIRA LUZ


• Em um artigo pioneiro de Ferenczi, “A criança mal acolhida e sua pulsão de morte” (FERENCZI,
1929), já se encontra a idéia de que a pulsão de morte, em seus aspectos clínicos, não se manifesta
a não ser pela eficácia do supereu. A partir de sua experiência como médico num hospital militar, e
também como analista, o autor se dispõe a compreender a gênese das tendências inconscientes de
autodestruição. A atração pela morte, em sua experiência clínica, pareceu-lhe ter origem na
captação, por parte da criança, de sinais de aversão e de impaciência da mãe. A hostilidade materna
mina no infante a vontade de viver. Certas doenças, como a asma brônquica e a anorexia, incidiam,
em sua observação, em pacientes que lutavam contra tendências suicidas. Levanta então a hipótese
de que provavelmente as crianças recebidas sem carinho morrem com mais facilidade e, quando
sobrevivem, conservam uma atitude pessimista, desconfiada, e se vêem tentadas a morrer a
qualquer percalço em suas vidas, mesmo quando conseguem compensar essa tentação com um
esforço permanente de vontade. A interpretação de Ferenczi é a de que encontrar, ao nascer, essa
mensagem materna de rejeição, um mandato equivalente a ‘suma!’, é uma situação que viria a
reforçar a pulsão de morte inata da criança.
Ana Maria Rudge

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