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Fepal - XXIV Congreso Latinoamericano de Psicoanálisis - Montevideo, Uruguay

“Permanencias y cambios en la experiencia psicoanalítica" – Setiembre 2002

As Pulsões e a AIDS

Maria Regina Limeira Ortiz *, Porto Alegre

O trabalho busca relacionar a dualidade das pulsões a partir dos escritos de Freud, com
exemplos de atendimentos de pacientes com AIDS. Salienta a luta constante entre Eros e Tânatos
e a necessidade do estabelecimento de relações de objeto satisfatórias para a manutenção da
espécie.

Introdução

Desde que conceituada como uma doença mortal e transmissível, é


evidente que a AIDS provocou grandes traumas no seio da sociedade.
As relações profissionais e familiares foram profundamente alteradas para
aqueles conhecidamente portadores de vírus ou mesmo pra aquelas pessoas que
apenas pertenciam a algum grupo de risco.
A partir dessa situação criou-se um estigma trágico social ao qual estas
pessoas encontram-se confinadas. A ignorância e os preconceitos ligados a
doença agravam a situação do paciente e de seus familiares. A complexidade da
questão inicia-se pelo fato de que “AIDS e Morte” têm estreita relação. Além disso,
o estigma deriva-se dos grupos humanos inicialmente associados a doença –
homossexuais, drogaditos, promíscuos – e do medo do contágio.
Hoje estes dados já não expressam mais uma verdade absoluta, não
existem mais grupos de risco. Há um comprometimento crescente da população
de mulheres e crianças e os grupos de “risco” são enganadores; a AIDS surge nos
relacionamentos menos suspeitos.
A OMS estima que até o final do século, a doença matará 3 milhões ou
mais de crianças e mulheres em todo mundo.
Frente a estes dados alarmantes e utilizando minha experiência como
psicóloga em um hospital universitário atendendo pacientes pediátricos com AIDS
e seus familiares; pensei em relacionar os trabalhos de Freud sobre a questão da
dualidade das pulsões com a descrição de alguns casos por mim atendidos, para
depois tecer algumas considerações acerca da realidade a quem muitas destas
crianças encontram-se expostas.

* Psicanalista, Membro Associado da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre


(SPPA)
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As Pulsões

O termo pulsão foi traduzido para o português de diversas formas, ora como
instinto, ora como impulso; no entanto, de acordo com vários autores consultados
(Laplanche, 1967; Green, 1973; Mezan, 1991) a definição de pulsão a partir do
termo trieb representaria uma abrangência maior como o próprio termo indica:
“Trieb, tal qual usado em alemão, entrelaça quatro momentos, que conduzem do geral ao singular.
Abarca um princípio maior que rege os seres viventes e que se manifesta como força que coloca
em ação os seres de cada espécie, que aparece fisiologicamente ‘no” corpo somático do sujeito
como se brotasse dele e o aguilhoasse; e, por fim que se manifesta ‘para’ o sujeito, fazendo-se
representar ao nível interno e íntimo, como se fosse vontade ou um imperativo pessoal” (Hanns,
1996, p. 338)
Esta definição será utilizada no transcorrer deste trabalho pois, privilegia o
que pode ter sido uma preocupação inicial de Freud, já no Projeto em 1895, no
qual salientava a importância das conexões entre quantidade e qualidade de
energia, excitações internas, aumento de tensão, busca de descarga e, vida
instintual primitiva. Ele apontava que para determinadas necessidades internas do
corpo, não havia meio de fuga, há não ser através de certas condições realizadas
no mundo externo.
Freud (1905) em “Os três ensaios sobre a teoria da sexualidade”, escreve
sobre a questão da ambivalência perante os pares opostos de pulsões, a
qualidade do estímulo como fonte de excitação sexual e a importante teoria da
libido. Ele afirma que só é possível a observação da libido do ego quando esta se
converte em libido do objeto. Diz ele: “Vemo-la então concentrar-se nos objetos, fixar-se
neles ou abandoná-los (...). Podemos ainda inteirar-nos, no tocante aos destinos da libido, de que
ela é retirada dos objetos, mantém-se em suspenso em estados particulares de tensão e, por fim, é
trazida de volta para o interior do ego, assim se reconvertendo em libido do ego (...). A libido
narcísica ou do ego parece-nos ser o grande reservatório de onde partem as catexias de objeto e
no qual elas voltam a ser recolhidas” (Freud, 1905, p. 205).
A questão do “encontro do objeto” ser um “reencontro” prende-se ao fato do
indivíduo poder encontrar dentro de seu ego as satisfações originais vindas de
seus primeiros objetos. A capacidade de amar auxilia no controle da angústia
infantil, no temor do desamparo e, está diretamente vinculada a qualidade de
investidura do objeto.
O processo primário regido pelo principio de prazer-desprazer, perante a
frustração do prazer, levaria a busca do objeto através do principio da realidade.
Assim, o desenvolvimento do indivíduo, o aumento de suas necessidades lhe
dirigiriam para o externo onde buscaria o reencontro com o prazer outrora perdido.
A entrada do princípio da realidade seria o único caminho através do qual
ocorreria o desenvolvimento da espécie e a evolução do próprio indivíduo,
adequando-o ao mundo circundante. A evolução dos processos de consciência,
das qualidades sensórias, da atenção, da memória, da capacidade crítica e do
pensar são apresentados por Freud (1911) em “Formulações sobre os dois
princípios do funcionamento mental” .
Freud (1915) segue com suas idéias a respeito da pulsão, dizendo ser ela
um estímulo aplicado a mente, que surgiria de dentro do próprio organismo,
imprimindo uma força constante no indivíduo; seria uma necessidade em busca
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contínua de satisfação. Caracteriza a natureza essencial das pulsões: as pulsões


seriam originárias de fontes de estimulação interna e ocasionadas pela pressão da
busca de satisfação e necessidade de descarga constante.
Examina os aspectos componentes de uma pulsão como: pressão,
quantidade de força; finalidade, busca da satisfação; objeto, através do que a
pulsão atinge sua finalidade e, por último; a fonte, que seria o processo somático
que manifesta a pulsão.
Freud também diferencia os estímulos pela quantidade de excitações que
trazem em si, embora considere que qualitativamente devem ser semelhantes.
Ainda nesta época, Freud, dividia as pulsões em autopreservativas ou do ego e
pulsões sexuais.
O auto-erotismo é valorizado como modelo para o desenvolvimento
humano. A questão do narcisismo surge e também a polaridade entre amor e ódio,
eu e não-eu, reproduzindo o modelo inicial de prazer-desprazer. Quando o objeto
se torna uma fonte de satisfação, prazer, há uma busca pela incorporação do
objeto. Mas, quando ele passa a representar sensações e vivências
desagradáveis há uma retirada de libido do objeto, surge o ódio e a libido se volta
para o próprio sujeito passando ele a buscar novamente satisfação em sua auto-
erotismo. O ódio surge com a intenção de destruir o objeto, afastar as sensações
de desprazer.
Em “Além do princípio do prazer” (1920), Freud introduz o conceito de
pulsão de morte, observando a natureza conservadora da pulsão. “Se tomarmos
como verdade que não conhece exceção o fato de tudo o que vive, morrer por razões internas,
tornar-se mais uma vez inorgânico, seremos então compelidos a dizer que ‘o objetivo de toda vida
é a morte’, e, voltando para trás, que ‘as coisas inanimadas existiram antes das vivas’ (Freud,
1920, p. 56).
A defesa contra o rompimento das barreiras de contato serviria como
escudo protetor para o indivíduo contra o excesso de excitações. O excesso de
excitações levaria ao desprazer que, por sua vez, aumentaria o sofrimento físico
exigindo o surgimento de anticatexias. As anticatexias empobrecem, paralisando
ou reduzindo outras funções psíquicas e deveriam ser substituídas pelo princípio
do prazer. Freud refere que “ O princípio do prazer, então, é uma tendência que opera a
serviço de uma função, cuja missão é libertar inteiramente o aparelho mental das excitações,
conservar a quantidade de excitação constante nele, ou mantê-la tão baixa quanto possível”
(Freud, 1920, p. 83). Isto tudo para evitar o sofrimento pelo excesso de excitações,
buscar um equilíbrio entre o prazer e o desprazer.
Ele define as pulsões que visam a preservação e renovação da vida como
pulsão de vida; a ela se vincula Eros, que busca unir, ligar manter juntas as
partes da substância viva. Já, a pulsão de morte é conservadora, é a compulsão
a repetição, possui um caráter regressivo, busca conduzir o que é vivo à morte;
tem como função desligar. Ambas pulsões, de vida e de morte, existem desde o
surgimento da primeira célula viva, e mantém entre si, do início ao fim, uma luta
constante pela busca do prazer.
Em 1923, “O Ego e o Id”, Freud passa a utilizar o modelo estrutural, uma
vez que o modelo topográfico, econômico, já não era mais suficiente para explicar
tantas descobertas a respeito do aparelho mental a que ele chegara. Mesmo
assim, Freud nunca abandonou a importância do modelo topográfico, a este na
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realidade, adicionou o estrutural. A mente passa agora a ser explicada a partir de


ego, superego e id. O ego passa a ser a organização através da qual as pulsões
conseguem descarregar suas excitações. Estas por sua vez, permanecem
inconscientes influenciando todo funcionamento mental. Através do ego, são
transformadas em energia propulsora em busca de desenvolvimento em busca de
desenvolvimento e contato. O colorido das relações que se estabelecem através
das ligações também será influenciado pelo superego e pelo id e, estarão na base
de qualquer caráter.
Ao considerar a questão da dor física e da dor mental, Freud relaciona à
mudança da catexia narcísica para a catexia de objeto. “ A natureza contínua do
processo catexial e a impossibilidade de inibi-lo produzem o mesmo estado de desamparo mental”
(Freud, 1926, p. 197).
Este estado de desamparo mental poderia estar conectado ao temor da
perda do objeto, que por sua vez se liga as primeiras vivências infantis de
separação, onde a ausência da satisfação da necessidade, vinda de fora, eleva a
situação de perigo, aumenta a ansiedade e estabelece o temor da perda do
objeto. Nas situações de luto real o investimento de energia deve ser aos poucos
desvinculado do objeto. Mas o que ocorre quando além da perda do objeto, há
uma perda de partes do próprio eu? O que ocorre quando o desamparo é tanto
externo quanto interno?
Em 1932, Freud refere que: “A teoria dos instintos é, por assim dizer, nossa
mitologia. Os instintos são entidades míticas, magníficos em sua imprecisão”. (Freud, 1932,
p.119).
Ele segue retomando suas considerações a respeito da teoria da libido:
“Um instinto, por conseguinte, distingui-se de um estímulo pelo fato de surgir de fontes de
estimulação situadas dentro do corpo, de atuar como força constante, e de a pessoa não poder
evitá-lo pela fuga, como é possível fazer com um estímulo externo”. (Freud, 1932, p. 120).
Ainda, nesta conferencia ele retoma a hipótese de que se a vida se originou
da matéria inorgânica, “deve ter surgido um instinto que procurou eliminar a vida novamente e
restabelecer o estado inorgânico. Se reconhecemos nesse instinto a autodestrutividade de nossa
hipótese, podemos considerar autodestrutividade expressão de um “instinto de morte” que não
pode deixar de estar presente em todo processo vital. Ora os instintos nos quais acreditamos,
dividem-se em dois grupos – os instintos eróticos, que buscam combinar cada vez mais substância
viva em unidades cada vez maiores, e os instintos de morte, que se opõe a essa tendência e
levam o que está vivo de volta a um estado inorgânico. Da ação concorrente e antagônica desses
dois procedem os fenômenos da vida que chegam ao seu fim com a morte. “ (Freud, 1932, p.
133-4).
Encontramos, na nota do editor, no artigo “Análise terminável e
interminável”, a referência de que as pessoas adoecem na medida em que ocorre
um desequilíbrio nas forças do ego. Estas diminuem por cansaço, excesso de
trabalho, doença física, podendo então prevalecer a força da pulsão.
Neste trabalho, Freud afirma que podemos fugir ou nos esquivar dos
perigos externos, no entanto “ não é possível fugir de si próprio; a fuga não constitui auxílio
contra perigos internos (...) Em suas relações com o id, portanto, o ego é paralisado por suas
restrições ou cegado por seus erros, e o resultado disso, na esfera dos eventos psíquicos, só pode
ser caminhar num país que não se conhece, sem dispor de um bom par de pernas” (Freud,
1937, p. 270).
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Em, 1938, em “Esboço de Psicanálise”, Freud lembra que se a vida surge


do inanimado, a ele tende retornar. A pulsão de morte opera silenciosamente
dento do indivíduo em uma combinação constante com a pulsão de vida.
Estas forças propulsoras permanecendo dentro do indivíduo, levaram Freud
a supor que: “é possível suspeitar que, de uma maneira geral, o indivíduo morre de seus
conflitos internos, mas que a espécie morre de sua luta mal sucedida contra o mundo externo se
este mudar a ponto de as adaptações adquiridas pela espécie não serem suficientes para lidar
com as dificuldades surgidas”. ( Freud, 1938, p. 175).
Visando enriquecer o entendimento dinâmico das pulsões e seus
movimentos, passamos para o relato dos casos.

Relato de casos

Paula, tem seis anos, é uma menina loira de vivos olhos castanhos que
acompanham qualquer pessoa que dela se aproxima. Ela interna para investigar
infecções intestinais repetidas. A equipe solicita o atendimento para a paciente
pois a sente muito triste e de difícil contato.
Em meu primeiro contato com Paula, ela me pareceu muito assustada e
desconfiada. Apresento a caixa de brinquedos e ela apenas consegue explorar os
objetos com os olhos. Não consegue pegar nenhum brinquedo. Falo que entendo
que ela está assustada pois não me conhece e não sabe o que está acontecendo
com seu corpo. Ela passivamente concorda com a cabeça. Explico-lhe que irei
acompanhá-la enquanto estiver no hospital e que para isso iremos conversar e
brincar até que possamos juntas entender o que acontece com ela. Ao me
despedir, ela me chama pelo nome e diz que precisa me mostrar algo. Sento ao
seu lado e ela pede para desenhar. Desenha um coração utilizando muitas cores.
Tenho a sensação que através de seu desenho tenta me comunicar como se
sente e lhe digo: “tu deves estar te sentindo assim, como este coração,
apertadinho,assustada, com medo”. Ela sorri e diz: “ É para ti”. Falo que imagino
que ela tenta me dizer que espera que eu ajude e se sentir melhor.
Faço a seguir uma entrevista com seus pais conjuntamente com a médica
responsável pelo caso. Os pais de Paula são bastante humildes e moram numa
vila na periferia da cidade. Não sabem o que está acontecendo com a filha e ficam
assustados quando são orientados a coletar sangue para realizar o teste de HIV.
Descrevem a menina como sendo muito alegre e com bom relacionamento com os
irmãos e vizinhança.
O teste de Paula dá positivo para AIDS, os pais são informados, não
conseguem entender como ela poderia ter adquirido o vírus da AIDS já que eles
não o possuem, mas lembram de uma hospitalização da filha por desnutrição,
quando bebê. Eles se mostraram muito tristes e buscaram esclarecimentos
constantes junto a equipe. Após a alta da menina compareceram sempre as
consultas ambulatoriais.
Em sua segunda internação, dois meses após a primeira, Paula está mais
deprimida mas já parece habituada ao ambiente hospitalar, entrosando –se com
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facilidade junto a equipe e aos pacientes. Na semana seguinte, o pai da paciente


internado em outro hospital vem a falecer subitamente. Passados alguns dias a
mãe de Paula aparece com um novo companheiro dizendo não ter interesse em
manter a menina com ela, ameaçando abandoná-la no hospital.
Após esta entrevista, Paula brinca com os bonecos da família e simula
brigas entre eles. Desenha um navio partido ao meio; de um lado lápides e do
outro uma casa. O navio possui duas bandeiras cada uma virada para um lado. Eu
entendo como a ambivalência que se instala dentro dela. Está dividida não sabe o
que irá lhe acontecer, o que lhe aguarda o futuro e assim falo que ela me mostra
que se sente como aquele navio, confusa, não sabe o que irá acontecer com ela.
Ela então me diz “se vou junto do pai ou se volto para casa”. Concordo e digo que
de qualquer forma ela me mostra que gostaria de encontrar um lugar para ela,
onde se sentisse acolhida.
A mãe de Paula não comparece mais ao hospital. O estado de saúde da
menina começa a se agravar cada vez mais. Em nossa ultima hora de jogo, no
leito, ela novamente me pede para desenhar. Desta vez, desenha uma casa de
estruturas simples e me diz “sinto muitas saudades da minha casa, mas ela já está
vazia”. Entendo que ela me comunica que seu destino já está traçado, já fez sua
escolha e já pode prever seu futuro. Paula vem a falecer dois dias após esta
sessão.

Pedro, 11 anos, hemofílico, está na quinta série. Ele não está mais
interessado na escola como no ano anterior. Seu rendimento baixou e ele falta
com freqüência as aulas. Ele costumava ser o colega com que todos queriam
brincar. Hoje ele brinca sozinho. Os colegas o abandonaram. Pedro perdeu o
interesse em brincar e tem dificuldades em fazer amigos. Pedro sabe que está
com AIDS e pergunta muitas vezes quando tudo irá terminar.
Em suas horas de jogo divide os brinquedos em dois exércitos. Há sempre
uma luta constante onde ocorre uma alternância de vencedores. Nestas horas fica
muito angustiado e pede várias vezes que eu lute junto com o exército dele. Em
outros momentos diz “tudo está perdido, não há mais luta, não há contra o que
lutar, é tudo igual, tudo a mesma coisa.”

José tem 15 anos. Adquiriu o vírus da AIDS durante uma transfusão


quando tinha três anos de idade. A família sabe de seu diagnóstico desde que ele
tinha sete anos de idade.
Os pais procuraram atendimento para José por ele estar muito revoltado e
não querer realizar o tratamento médico. Segundo seus pais, José desconhece ter
AIDS. Nunca lhe foi dito a doença que possui e a família nega-lhe a informação. A
mãe teme que José a acuse de negligência.
Começo a trabalhar os pais para que revelem ao menino a doença que
possui. Estes encontram-se muito assustados. A mãe sente-se muito “ferida” em
ter que revelar o “segredo” para o filho. Acha que José não irá compreender, irá se
revoltar muito e não seguirá mais as recomendações médicas.
Em suas sessões o paciente queixa-se muito dos cuidados extremos que
lhe são dedicados. Refere com freqüência a doença que possui denominado-a de
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“imunodeficiência”. Estimulo para que esclareça junto a seu médico o motivo de


precisar tomar tantas medicações e necessitar de tantos cuidados. Assim, em uma
consulta médica, na presença dos pais José fala de seu conhecimento sobre
AIDS, pedindo a confirmação do médico.
Inicialmente, José chora muito, mas aos poucos começa a planejar seu
futuro e a controlar sozinho sua medicação. Questiona porque de eu não ter lhe
contado sobre a doença. Afirmo que ele mesmo já sabia, pois já a nomeava
corretamente.
Em uma sessão traz um disco e um aparelho de CD com a música “A Via
Láctea” (Letra em anexo), de autoria de um cantor que veio a falecer de AIDS.
Compreendo que com esta música ele me pede ajuda e tenta me esclarecer a
respeito de suas oscilações de conduta e afeto. Falo que ele gostaria que eu
tivesse paciência com ele e o aceitasse como é, sem fazer tantas exigências como
as que ele viera se submetendo no transcorrer de toda a sua vida. Ele fica muito
emocionado e ao sair me abraça.
Importante salientar que até esse momento ele tivera inúmeras internações
hospitalares, várias das quais seu estado foi considerado muito grave, sem
perspectiva de vida. Atualmente está há três anos em tratamento não tendo
ocorrido até então, internações hospitalares. O seu estado de saúde é
considerado muito bom e ele se prepara no momento para prestar o vestibular.
Após o relato dos casos, passamos a discussão do tema e as
considerações finais.

Discussão e Considerações Finais.

A dualidade das pulsões faz-se evidente no relato de todos os casos acima


apresentados. A eterna luta entre Eros e Tânatos diz respeito a luta interna com
que cada um lida na sua vida diária frente as mais diversas exigências.
A questão que se coloca é a negação constante, ou seja, as defesas que
são utilizadas para a manutenção da vida através do ego, mas que ao mesmo
tempo não deixam de ser uma expressão das pulsões de morte quando se
tornam repetitivas e constantes.
Freud durante toda sua obra sempre considerou a necessidade da
manutenção de um equilíbrio. A este equilibro sobrepõe-se a força das pulsões e
são elas que estimulam o desenvolvimento e a busca da satisfação.
Quando no meio externo já não há mais razões para lutar, quando surge o
desamparo e a desesperança, o único caminho possível é o retorno para o lugar
de onde viemos. Assim tornam-se claras as idéias de Freud sobre o retorno ao
auto-erotismo e ao inanimado.
O que pude observar nos pacientes que tive oportunidade de atender com
AIDS ou portadores do vírus HIV, e que de certa forma tentei ilustrar no relato de
casos, foi a freqüente luta que me deparava entre o interno e o externo. Como
investir externamente se internamente já não há mais energia disponível para
investimento em objetos externos? Como apostar na vida quando a intensidade do
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estímulo ultrapassa a esperança e o desprazer se instala e o único prazer é a


busca do inorgânico? da morte?
Creio que estas questões poderiam ser transpostas para as mudanças que
estamos observando no desenvolvimento da espécie. A necessidade premente do
investimento e investigações na saúde, a ligação entre o emocional e o orgânico.
Talvez o temor do homem em questionar os valores de vida e morte, os
desdobramentos das pulsões, seja responsável por tantas fragilidades a que nos
encontramos expostos. A transformação nas relações que se observa, o medo de
se “ligar” e ter que “desligar”, expressão de pulsão de vida e pulsão de morte,
esteja arraigado no mais profundo âmago do indivíduo.
Pois, como Freud já dizia: “o indivíduo morre de seus conflitos internos, mas (...) a
espécie morre de sua luta mal sucedida contra o mundo externo.” ( Freud, 1938, p. 175).
A perda da esperança, a ambivalência, o não saber em que e como investir,
tão claramente observados, vividos e sentidos, nos casos relatados, nos fazem
pensar na importância de um objeto externo amável e continente que através da
investidura de afeto possa fazer prevalecer a pulsão de vida e assim a
manutenção da espécie.

Referências Bibliográficas

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Anexo

Via Láctea
Renato Russo

Quando tudo está perdido


Sempre existe um caminho
Quando tudo está perdido
Sempre existe uma luz
Mas não me diga isso
Hoje a tristeza não é passageira
Hoje fiquei com febre a tarde inteira
E quando chegar a noite
Cada estrela parecerá uma lágrima
Queria ser como os outros
E rir das desgraças da vida
Ou fingir estar sempre bem
Ver a leveza das coisas com humor
Mas não me diga isso
É só hoje e isso passa
Só me deixe aqui quieto
Isso passa
Amanhã é um outro dia não é
Eu nem sei por que me sinto assim
Vem de repente, um anjo triste perto de mim
E essa febre que não passa
E meu sorriso sem graça
Não me dê atenção
Mas obrigado por pensar em mim
Quando tudo está perdido
Sempre existe uma luz
Quando tudo está perdido
Sempre existe um caminho
Quando tudo está perdido
Eu me sinto tão sozinho
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Quando tudo está perdido


Não quero mais ser quem eu sou
Mas não me diga isso
Não me dê atenção
E obrigado por pensar mim.

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