INTRODUÇÃO Á PSICANÁLISE.
FREUD
PSICANÁLISE CLÍNICA
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TEXTOS DE E SOBRE FREUD
- Mas apesar de o menino abandonar o desejo pela mãe por medo da castração ela não deixa
de acontecer para ambos os sexos e de forma simbólica de acordo com a interpretação de
Lacan. CASTRAÇÃO no sentido simbólico significa a impossibilidade de retorno ao estado
narcísico do qual fomos expulsos com o nosso nascimento. CASTRAÇÃO significa a perda, a
falta, o limite imposto à onipotência do desejo. É um processo que já acontece desde o corte
do cordão umbilical. A rigor quem castra é a mãe. Se a mãe permite a independência da
criança, negando formar um todo narcísico com ela, ela castra. A castração é um evento
absolutamente progressista na nossa vida e que torna possível a vida em sociedade e a
nossa autonomia. Através da CASTRAÇÃO introduz-se a LEI DA CULTURA que é produto
de Eros e não de Thanatos. A Lei não existe para aniquilar o desejo e sim para articulá-lo com
a convivência social. "É a guardiã do desejo na medida em que o encaminha no sentido de
uma subordinação ao Princípio da Realidade" (pág. 312, Os Sentidos da Paixão, Hélio
Pellegrino)
- A CASTRAÇÃO nos faz sentir como seres incompletos, carentes. Mostra-nos que é da
brecha entre tudo o que se quer e aquilo que se pode (princípio de Realidade) que nascem
as possibilidades de movimentos do desejo. Mas o seu exagero pode trazer
conseqüências negativas como as neuroses.
(Do livro: Para que serve a psicanálise? - de Denise Maurano, Jorge Zahar Editor, 2003, págs.
9-18 )
Eros e Comunicação
Esse apelo a se ligar aos outros participa obviamente da história da humanidade, mas o que
chamo a atenção aqui é para o fato de, na contemporaneidade, termos inflacionado essa
estratégia. Assim, as pessoas recorrem mais facilmente a alguém ao alcance da mão, ou ao
alcance da linha telefônica, do que a um templo religioso para se amparar. Da mesma forma,
também não crêem mais nos poderes da racionalidade para encontrarem uma fórmula para
melhor viver. Parece que estamos mesmo sob o império de EROS. E Eros não é apenas o
deus do amor, mas, tal como propôs a psicanálise, é sobretudo a tendência à promoção de
laços, tendência a estabelecer ligações.
É claro que a forma como isso se dá, tête-à-tête ou via internet, faz diferença, mas o elemento
motivador e a natureza da busca, creio estarem inalterados, pelo menos por enquanto. O que
a psicanálise chamou de LIBIDO, energia de Eros, cobra incansáveis investimentos,
sobretudo no amor e na sexualidade, e traz em seu rastro a outra face da mesma moeda: o
ódio.
É verdade que desde a invenção da psicanálise até agora muita coisa mudou. Mudaram os
costumes, a sociedade certamente não é mais a mesma, diferente recursos para se lidar com
a vida dominam a cena contemporânea. Porém não creio que tenhamos nos deslocado do
apelo à libido como modo de operar com nossas inquietações. Muito pelo contrário, como bem
observou o inventor americano, acima mencionado, nunca se produziram tantos artifícios para
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ampliarmos nossos laços. O sucesso das SALAS DE BATE-PAPO e toda a correspondência
veiculada pela internet o atestam. Isso sem falar da exploração que o marketing faz da
questão, erotizando todo e qualquer objeto que se apresente ao consumo para melhor
veiculá-lo. Assim, diante da compatibilidade entre a natureza da inquietação que domina a
cena atual e a natureza da invenção psicanalítica, esta última continua sendo um recurso
privilegiado em nossos tempos. Com isso, quero dizer que diante dos inúmeros sintomas
decorrentes do MAL DE AMOR, que constitui a tônica do mal-estar da atualidade, a
psicanálise apresenta-se como opção para tratar dessa questão. No que se refere a maneira
de lidar com as inquietações amorosas, as mudanças são acessórias, não fundamentais. Daí
a pertinência da presença da psicanálise. Afinal, seja bem ou mal falada, a psicanálise
continua sempre sendo lembrada.
Inúmeras propostas apresentam-se a cada dia para responder a essa idéia de que o "bom
exercício da libido" resolve as dificuldades da vida. Desde o apelo ao consumo, seja de
carros, mulheres, drogas, medicamentos, conhecimento, informação, tecnologia e tudo quanto
se suponha que o dinheiro possa comprar, até as terapias mais diversas, tudo vai no sentido
de sanar aparentemente, apaziguar imaginariamente, as pressões que movem esse apelo
feito a Eros.
Na contracorrente dessas estratégias encontra-se a psicanálise. Por mais que em sua difusão
ela tenha sido propagada das formas mais estapafúrdias, sua proposta, desde seus suados
primórdios no rigor da ética cunhada por Freud, foi a de ser uma estratégia para tratar desse
vazio, que na maior parte do tempo traduzimos por falta de alguma coisa ou falta de alguém.
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Sua intenção não foi a de constituir-se como promessa de saná-lo. Aqui, o tratamento não é a
cura, já que não podemos nos curar da ferida de sermos humanos. Ou seja, substituindo a
idéia de cura como o que estaria na finalização de um tratamento, por meio da extirpação de
um mal, entra em cena o procedimento investigativo do tratamento psicanalítico, que traz
como uma de suas conseqüências o efeito terapêutico. O vazio é impossível de ser extirpado,
mas cabe-nos encontrar meios menos nefastos de abordá-lo. Como li num folhetim: "Não se
pode mudar a direção do vento, mas pode-se alterar a posição das velas."
Viver sem se haver com a dor da falta, seja esta identificada ao que quer que seja, é
simplesmente inumano. Não podemos nos livrar daquilo que constitui propriamente a nossa
humanidade, a nossa diferença em relação aos outros animais. O que pode ser alterado é a
maneira como vivemos a experiência da vida, a posição que ocupamos ao nos defrontarmos
com a falta daquilo que supostamente iria nos tornar completos. Sugiro que a palavra
"psicopatologia" - em sua origem grega, "psico-pathos-logia" - seja traduzida ao pé da letra:
busca de sentido (logia) daquilo que causa espanto (pathos) à alma (psico). Sem dúvida que
esta incompletude nos espanta, e podemos reagir a isso, neurótica, psicótica ou
perversamente....
Não pensem que estou defendendo uma posição pessimista, do tipo que toma essa
incompletude com um efeito de fabricação com o qual teríamos que nos conformar. Não
concordo com a idéia de que Freud ou Lacan - psicanalista francês, que se propôs a retornar
ao rigor de Freud - sejam pessimistas. Defendo, sim, essa orientação ética que funda a
proposta psicanalítica, acolhendo a vida não em uma dimensão ideal, como gostaríamos que
ela fosse, mas em sua dimensão real. Sofremos os efeitos desse real todas as vezes que nos
confrontamos com o fato de que as coisas não estão ao alcance de nossas mãos, como
gostaríamos que estivessem.
Nosso universo de necessidades é intermediado pelo das representações. As coisas não são
o que são, mas o que representam para nós. Desta forma, podemos perder o apetite, ou
comer demais, se ficamos tristes; podemos optar pela abstinência sexual por uma razão
ideológica ou moral; podemos perder o sono diante de uma preocupação. O que nos rege não
é propriamente um instinto, mas algo de outra natureza que, que Freud propõe chamar de
PULSÃO.
A adequação de nossa percepção ao que existe de fato é permeada por esse universo que
nomeamos como campo da LINGUAGEM. Isso quer dizer que, se não temos um acesso
direto e objetivo às coisas, inventamos um estratagema para contornar esse abismo que nos
separa do mundo: inventamos a linguagem. Ou seja, desenvolvemos, mas que qualquer outro
animal, nossa capacidade de nos comunicarmos por recursos simbólicos e imaginários.
Inventamos palavras para designar as coisas, nomear o que nos falta; criamos ícones para
adorar, ideologias para nos salvar do desamparo.
3. SONHOS
(Do livro ―Freud Básico‖, Michael Kahn, ed. Civilização Brasileira, págs 201-231)
Freud considerava A interpretação dos sonhos,(1) publicado em 1900, o seu livro mais
importante. De fato, ele contém riquezas extraordinárias. Introduz o complexo de Édipo, a
distinção entre o processo primário e processo secundário, as origens infantis do
funcionamento adulto e muito mais. Entretanto, não era porque descrevia essas descobertas
significativas que Freud se orgulhava muito deste livro, mas sim porque, como seu título deixa
claro, anunciava ao mundo que ele realizara, em sua opinião, o que ninguém antes dele tinha
sido capaz de realizar: decifrar o código dos sonhos. Ele sabia que isto era uma importante
façanha, por sua própria dimensão; além disso, estava convencido de que com isso
desvendara a chave para compreender e tratar a neurose. Se um terapeuta não interpretasse
sonhos, Freud passou a acreditar, ele não estava fazendo psicanálise.
O primeiro insight importante de Freud sobre a natureza dos sonhos foi que, a exemplo dos
sonhos despertos, os sonhos noturnos representam um desejo. Os sonhos despertos
expressam um desejo que a pessoa pode reconhecer. Quando criança, eu sonhava em ser
uma estrela de beisebol do meu time da primeira divisão da cidade. Não tinha nenhuma
vergonha disso. Meus amigos tinham sonhos semelhantes, e os compartilhávamos livremente.
Hoje em dia, sonho ocasionalmente com poder passar toda uma manhã de domingo numa
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confeitaria, lendo o New York Times - sem sentir nenhuma culpa. Também não tenho
vergonha deste sonho. Baseando-se no que acontece nos sonhos despertos, Freud deduziu
que os sonhos noturnos poderiam também ser uma expressão dos desejos. Ele descobriu que
os sonhos infantis são freqüentemente uma expressão tão flagrante dos desejos quanto os
sonhos despertos. E relatou que uma de suas filhas, após um dia de jejum provocado por uma
enfermidade, sonhou com morangos, omelete e pudim.
Freud observou que também em alguns sonhos de adultos o desejo é tão transparente, que
pouca ou nenhuma análise é preciso para compreendê-lo. Ele relatou que, se comesse
comida salgada no jantar, acordaria invariavelmente com sede à noite. Pouco antes de
acordar, sempre estava sonhando que desfrutava o mais delicioso e satisfatório drinque
imaginável. Então, acordava e tinha de beber algo de verdade. O fato de estar com sede
causava o desejo de beber, e o sonho representava a realização desse desejo. (2)
No entanto, essa transparência é rara. Nos sonhos que mais ricamente iluminam as forças
inconscientes, o desejo está oculto; este foi o importante insight que Freud teve em seguida.
Ele sustentou que o único meio de poder descobrir o desejo é encorajar o sonhador a fazer
associações livremente com os elementos do sonho.
Não é difícil perceber por que Freud considerava a interpretação dos sonhos tão importante.
Ele acreditava que todos os sonhos eram construídos do mesmo modo que os sintomas
neuróticos. Como acreditava que remover um sintoma neurótico dependia da apreensão do
seu significado inconsciente, interpretar um sonho seria um passo em direção à cura, porque
o significado do sonho revelaria parte do significado do sintoma. O seu elegante sistema
acabou se provando simples demais, mas ainda contém insights notáveis sobre o nosso
mundo onírico.
O MODELO DE FREUD
Neurose: A neurose é causada pelo recalque de desejos sexuais inaceitáveis. O recalque não
foi suficientemente completo para proteger a pessoa da culpa inconsciente, daí a aflição da
neurose. Os desejos encobertos estão sob pressão, buscando expressão, e encontram essa
expressão nos sintomas neuróticos. Numa tentativa de ao menos evitar a culpa consciente, o
desejo incompletamente recalcado se disfarça, para poder passar pela censura que, antes de
tudo, o recalcou. Portanto, o sintoma deve ser decodificado para que revele seu significado
inconsciente.
Sonhos: Os desejos encobertos permeiam os sonhos. Ao detectar um relaxamento da
censura durante o sono, o desejo recalcado tenta se aproveitar dessa oportunidade para se
manifestar. No entanto, embora relaxada, a censura não está de folga. Alguma função egóica
montando guarda à noite reconhece que o desejo sem disfarce causaria uma ansiedade
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suficiente para acordar a pessoa que dorme. Assim, embora careça do poder de recalcar o
desejo que tem em estado de vigília, essa função dá um jeito de disfarçá-lo e, desse modo,
proteger (em geral) o descanso do indivíduo que está dormindo.
Os desejos inaceitáveis e disfarçados causam o problema neurótico e devem ser
decodificados. Os desejos inaceitáveis e disfarçados que produzem o sonho podem ser
decodificados, desmascarando desse modo um dos desejos geradores de sintomas.
Podemos compreender por que Freud chamou a interpretação dos sonhos de estrada
soberana para o inconsciente, e por que ele achava que ela era a chave indispensável para
psicanalisar a neurose.
O modelo de Freud não mais descreve inteiramente a teoria psicanalítica da neurose. Embora
os desejos sexuais reprimidos provavelmente desempenhem um importante papel em muitos
problemas da vida, eles não são mais considerados como a única causa. Como vimos em
capítulos anteriores, uma ampla variedade de desejos e medos inconscientes pode gerar
problemas.
A ORIGEM DO SONHO
Freud descobriu que os sonhos eram uma resposta a algo que o sonhador vivenciara no dia
anterior. Alguma cadeia de associações relacionadas àquele acontecimento (que pode ter
sido um pensamento ou um acontecimento de fato) conduziu a um desejo que tinha de ser
recalcado, por ser inaceitável para o sonhador. À medida que a censura relaxa durante o
sono, o desejo busca se expressar.
Suas associações em relação ao aparente, mas irreal, perigo que os cavalos corriam:
Parece que os cavalos são vítimas de abusos e assassinatos. Tenho certeza que na
verdade eles são estrelas mimadas do cinema. Penso que o mesmo acontece com
algumas prostitutas de classe alta. Todos têm pena delas e pensam nelas como
dependentes de drogas maltratadas e desamparadas. Mas imagino que algumas delas
levam uma vida maravilhosa - de um luxo preguiçoso, imersas no mundo do sexo.
Sabe de uma coisa, acho que estou mesmo. Estou realmente farto desta vida burguesa que
preparei para mim. Acho que tenho uma fome secreta pelo submundo, pelos bas-fonds.
Adoraria ser uma prostituta. Adoraria ser uma prostituta sofisticada, como éramos no navio, só
que eu dormiria com os passageiros e seria bem pago. Eu seria bem pago, mas a
recompensa mais importante seria o interminável sexo-sem-responsabilidade. Estou
totalmente farto das minhas responsabilidades burguesas.
Pararemos por aqui em relação ao andamento desse sonho. Como a maioria dos sonhos,
este contém todo um nexo de significados, dos quais descobrimos apenas alguns poucos.
Alguns psicanalistas afirmaram seriamente, pelo menos em parte, que se entendêssemos
totalmente um sonho qualquer de um determinado paciente, entenderíamos a análise inteira.
Confesso que fico feliz quando meu cliente e eu trabalhamos juntos um significado útil para
um sonho.
No sonho relatado, o resíduo diurno gerador é a conversa telefônica do cliente com seu amigo
e suas últimas observações sobre eles serem prostitutas. O conteúdo latente é o desejo do
cliente de se eximir das suas responsabilidades e encontrar um paraíso sexual. "Prostitutas" é
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deslocado para cavalos. Toda uma saga é condensada numa única imagem, onde ele assiste
à filmagem de uma breve cena de cinema.
Está longe de ser óbvio que a maioria dos sonhos representa desejos. No entanto, após
interpretar inúmeros sonhos seus e dos seus clientes, Freud estava convencido de que a
realização do desejo caracteriza todos os sonhos. Seus críticos o desafiaram, citando os
sonhos ansiosos e os sonhos punitivos. Ele podia facilmente lidar com esses últimos, uma vez
que o superego fora acrescentado ao seu sistema: os sonhos punitivos representam a
realização de um desejo do superego, uma de cujas tarefas mais importantes é punir o seu
anfitrião pelos desejos que considera inaceitáveis. Os sonhos ansiosos deram mais trabalho a
Freud, e, trinta anos após a publicação original de O mal-estar na civilização, ele ainda estava
revisando o livro, lutando com o problema. Hoje em dia, com cem anos de reflexão sobre a
questão, provavelmente é seguro dizer que, embora a teoria da realização do desejo seja
muito útil para a compreensão de um sonho, nenhuma fórmula única pode fazer justiça à
riqueza da nossa vida onírica. Consideraremos isso mais adiante.
Nos dias que antecederam a elaboração deste capítulo, eu estivera inutilmente folheando
livros e textos de Freud, para encontrar um outro sonho ilustrativo adequado. Na noite antes
de começar a escrevê-lo, tive um sonho do qual me lembrei inusitadamente bem. Quase
nunca me lembro dos meus sonhos, portanto esse foi um presente inusual do meu
inconsciente.
Acordei satisfeito e grato por ter tido esse sonho necessitado. Então me pus a explorar minhas
associações.
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Vi Mimi na semana passada. Ela parecia estar bem. Contar os jogadores é como contar
as cadeiras, antes de os alunos chegarem para a minha aula. Algumas vezes,
enquanto as desempilho e as conto, digo para mim mesmo que realmente não acho ser
essa uma atribuição do instrutor, mas sempre a exerço, de qualquer modo. Arrependo-
me de não ter levado adiante minha carreira de jogador de futebol americano na
faculdade. Considero agora que foi um erro ter parado. Acho as garotas da equipe
atraentes. O que eu disse para Mimi é uma desagradável paráfrase de uma frase de
um dos meus filmes prediletos, dita pela personagem de Debra Winger, em
Shadowlands, para nocautear um trouxa mulherengo: "Você está tentando ser
grosseiro ou não passa de um estúpido?" Mimi Rollins me conduz a Mimi, da ópera La
Boheme. Penso nos meus amigos Bill e Sarah, e no tempo em que Bill adorava ópera e
discos de ópera, e eles eram fascinados por Pavarotti. Naquela época, Bill e Sarah
eram em grande medida meu pai e minha mãe. Eles me davam de comer e tomavam
conta de mim, e certamente me amavam muito. Eu adorava ficar na casa deles. Depois
do falecimento de Sarah, tudo isso mudou. A minha figura maternal se fora, e as
circunstâncias da minha vida haviam mudado, de modo que eu ia à cidade de Bill e
Sarah com menor freqüência.
Minha interpretação:
Conformar-me-ei com apenas uma das possíveis interpretações. À medida que reflito
sobre o sonho e as associações, o sonho me parece revelar um poderoso anseio
inconsciente de ser cuidado, de ser uma criança dependente. Em minha vida
consciente, sou compulsivamente responsável e cuidadoso. O sonho diz que tenho
muita raiva de assumir esse papel. Meu pai faleceu quando eu tinha treze anos, e
minha mãe fechou-se em sua dor, deixando-me bastante sozinho por alguns anos.
Quando por fim ela apareceu, foi mais como sedutora do que como cuidadora. Há
muito sei que isso foi psicologicamente custoso, mas meu conhecimento é meramente
intelectual. A intensidade do anseio com o qual essas perdas me deixaram e a raiva por
ter sido abandonado pegaram-me de surpresa, quando interpretei o sonho.
SIMBOLISMO ONÍRICO
Desde o começo do seu trabalho com os sonhos, Freud estava interessado nos símbolos
oníricos. Por exemplo, um rei e uma rainha em um sonho representam os pais do sonhador; o
príncipe ou a princesa, o sonhador. Freud passou a ter a convicção de que os símbolos,
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particularmente os símbolos sexuais, podiam ser fidedignamente interpretados e podiam
elucidar o conteúdo latente do sonho. Ele compreendeu o perigo: ao interpretar os símbolos, o
intérprete corre o risco de impor suas fantasias sobre o sonhador; por outro lado, as
interpretações geradas pela livre associação do sonhador pareciam mais confiáveis.
Entretanto, Freud passou a acreditar que, apesar dos riscos, o modo mais poderoso de
interpretar um sonho era combinar a livre associação do sonhador com o conhecimento a
respeito de símbolos universais do intérprete.
Na primeira edição de A interpretação dos sonhos, havia muito pouca menção ao simbolismo.
Em cada uma das duas edições seguintes, Freud deu maior atenção a esse assunto. Na
quarta edição, havia uma seção inteira dedicada a ele, um tópico que Freud estudara a fundo
e pelo qual se interessava muito. Seus escritos sobre o simbolismo revelam uma certa
ambivalência. Por um lado, como estava preocupado em que a psicanálise não fosse vista
como excêntrica ou ocultista, encontrava-se extremamente relutante, temendo dar a
impressão de que estava escrevendo um novo "livro dos sonhos". No tempo de Freud, como
no nosso, havia livros que ensinavam o leitor a interpretar um sonho de modo a obter dele um
conselho específico. O conselho poderia ser sobre amor ou negócios, ou praticamente sobre
qualquer assunto; incluía previsões específicas sobre os resultados de um determinado
empreendimento. Isso era feito por intermédio da tradução de certos símbolos. Por exemplo,
em um desses livros, sonhar com uma carta significava perigo à frente. Funeral significava
noivado. Se o sonho contivesse tanto uma carta quanto um funeral, o sonhador era instruído a
juntar os dois símbolos e antever problemas para o noivado de alguém. Em certas subculturas
americanas, esses livros ainda são comuns. Freqüentemente, eles trazem recomendações a
respeito de decisões de jogo, embora, como os livros do século XIX, também forneçam
conselhos para a vida. Ao menos desde a época de Freud, a maioria das pessoas educadas e
certamente todos os cientistas avaliam que esses livros não passam de bobagens
supersticiosas.
Freud estava ansioso por evitar qualquer alusão de que estivesse escrevendo mais um
desses livros. Por outro lado, quanto mais ele estudava os símbolos nos sonhos, no folclore,
nos dia letos populares e nas brincadeiras, mais se convencia de que tinha razão em conferir
significado, particularmente significado sexual, aos símbolos oníricos. Objetos alongados
referiam-se ao genital masculino; objetos rasos e receptivos, ao genital feminino e ao aparelho
reprodutor; e subir degraus ou escadas, ao intercurso sexual.
Freud observou que não é difícil perceber como escalar pode representar copulação.
Assinalou que, na escalada, chegamos ao topo em uma série de movimentos rítmicos, há
uma crescente falta de ar e, depois, com alguns pulos ligeiros, chegamos embaixo mais uma
vez. O padrão rítmico da copulação é reproduzido na subida da escada. (3)
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A interpretação dos sonhos começou a incluir cuidadosa atenção às associações do
sonhador, assim como uma cautelosa interpretação dos símbolos oníricos feita pelo analista.
"Cautelosa" quer dizer que, embora os símbolos parecessem possuir um significado universal,
ainda era importante prestar cuidadosa atenção ao contexto no qual o símbolo aparecia.
Nos dias que se sucederam à escrita da primeira parte deste capítulo, procurei exemplos de
Freud sobre simbolismo onírico, mas não fiquei satisfeito com nenhum que encontrei. Então,
meu inconsciente me favoreceu mais uma vez com um sonho relevante, este frouxamente
vinculado aos personagens de uma ópera muito conhecida, A flauta mágica, de Mozart. Nessa
ópera, Sarastro é o arquétipo do bom pai. Ele faz com que Tamino, o herói, e Pamina, a
heroína, passem por algumas perigosas provações de iniciação, mas somente porque quer
que eles o substituam como líderes da sua comunidade. Ele permite que Tamino toque a sua
flauta mágica protetora, à medida que este e Pamina passam pelas provações. A ária principal
de Sarastro diz respeito ao seu compromisso com o perdão e com a rejeição da vingança.
O sonho: estou andando por um campo perto de um rio, quando um homem se
aproxima e me pede para ajudá-lo a consertar um complexo artefato composto de
vários tipos de metal. Começo a desmontá-lo, tirando pinos, esperando ser capaz de
lembrar de onde os tirei, quando chegar a hora de remontá-lo. Desmonto a maior parte
dele e trabalho numa pequena parte de ferro fundido, cujo desmonte é um quebra-
cabeça - uma parte tem de ser deslocada de um modo especial para que a outra parte
se solte. Enquanto trabalho nessa parte, compreendo que estamos fazendo isso por
Sarastro e vejo perto de nós a sua bandeira, que tem o formato de um chapéu cônico.
Espero e escuto, esperando ouvir a grande ária de Sarastro sair da bandeira. Então
compreendo que, quando era menino, Sarastro me levou para passear pelos campos
nas proximidades. Consigo terminar de desmontar a parte restante, todas as peças
caem no chão, e eu acordo.
Associações: A flauta mágica não é um símbolo fálico qualquer, mas um símbolo de um
poderoso falo. A manipulação do quebra-cabeça é a masturbação. Sarastro fez a flauta
mágica de uma árvore da floresta durante, creio, uma tempestade. Sarastro, o pai
cuidador definitivo, é um amoroso líder filosófico que não acredita em vingança. Ele
voluntariamente entrega sua flauta (= pênis) a Tamino e protege Pamina da mãe
tenebrosa. Quando eu era menino, um dos meus verdadeiros pavores nos tempos que
se seguiram à morte do meu pai era que agora não havia nada me separando da minha
mãe. Tentei me trancar em um quarto, para evitar sua histeria. Conscientemente, para
evitar sua histeria, e inconscientemente, estou certo, para evitar a súbita proximidade
edipiana. Muitas vezes, minha mãe me parecia tenebrosa e perigosa. Gosto que me
peçam ajuda. Sempre ajudo. Faz parte da necessidade de ser responsável. Tenho
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certeza que é um redutor da culpa e talvez da vergonha. Lembrome de certa vez em
que estava dirigindo e me sentia chateado por algum ou outro motivo, quando o
motorista de um carro me parou e me pediu informações, que eu pude fornecer. Meu
humor melhorou consideravelmente depois disso.
Como em todos os sonhos, existem muitos significados que podem ser atribuídos. Adiante,
uma possível interpretação.
Freud escreveu que, no transcorrer da modernidade, os humanos foram feridos três vezes e
que as feridas atingiram o nosso narcisismo, isto é, a bela imagem que possuíamos de nós
mesmos como seres conscientes racionais e com a qual, durante séculos, estivemos
encantados. Que feridas foram essas?
A primeira foi a que nos infligiu Copérnico, ao provar que a Terra não estava no centro do
Universo e que os homens não eram o centro do mundo. A segunda foi causada por Darwin,
ao provar que os homens descendem de um primata, que são apenas um elo na evolução das
espécies e não seres especiais, criados por Deus para dominar a Natureza. A terceira foi
causada por Freud com a psicanálise, ao mostrar que a consciência é a menor parte e a mais
fraca de nossa vida psíquica.
Na obra Cinco ensaios sobre a psicanálise, Freud escreve:
"A Psicanálise propõe mostrar que o Eu não somente não é senhor na sua própria casa,
mas também está reduzido a contentar-se com informações raras e fragmentadas
daquilo que se passa fora da consciência, no restante da vida psíquica... A divisão do
psíquico num psíquico consciente e num psíquico inconsciente constitui a premissa
fundamental da psicanálise, sem a qual ela seria incapaz de compreender os processos
patológicos, tão freqüentes quanto graves, da vida psíquica e fazê-los entrar no quadro
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da ciência... A psicanálise se recusa a considerar a consciência como constituindo a
essência da vida psíquica, mas nela vê apenas uma qualidade desta, podendo coexistir
com outras qualidades e até mesmo faltar. "
A psicanálise - Freud era médico psiquiatra. Seguindo os médicos de sua época, usava a
hipnose e a sugestão no tratamento dos doentes mentais, mas sentia-se insatisfeito com os
resultados obtidos.
Certa vez, recebeu uma paciente, Ana O., que apresentava sintomas de histeria, isto é,
apresentava distúrbios físicos (paralisias, enxaquecas, dores de estômago) sem que
houvesse causas físicas para eles, pois eram manifestações corporais de problemas
psíquicos. Em lugar de usar a hipnose e a sugestão, Freud usou um procedimento novo: fazia
com que Anna relaxasse num divã e falasse. Dizia a ela palavras soltas e pedia-lhe que
dissesse a primeira palavra que lhe viesse à cabeça ao ouvir a que ele dissera -
posteriormente, Freud denominaria esse procedimento de "técnica de associação livre".
Freud percebeu que, em certos momentos, Anna reagia a certas palavras e não pronunciava
aquela que lhe viera à cabeça, censurando-a por algum motivo ignorado por ela e por ele.
Notou também que, em outras ocasiões, depois de fazer a associação livre de palavras, Anna
ficava muito agitada e falava muito. Observou que, certas vezes, algumas palavras a faziam
chorar sem motivo aparente e, outras vezes, a faziam lembrar-se de fatos da infância, narrar
um sonho que tivera na noite anterior. Pela conversa, pelas reações da paciente, pelos
sonhos narrados e pelas lembranças infantis, Freud descobriu que a vida consciente de Anna
era determinada por uma vida inconsciente, que tanto ela quanto ele desconheciam.
Compreendeu também que somente interpretando as palavras, os sonhos, as lembranças e
os gestos de Anna chegaria a essa vida inconsciente.
A vida psíquica - Durante toda sua vida, Freud não cessou de reformular a teoria
psicanalítica, abandonando alguns conceitos, criando outros, abandonando algumas técnicas
terapêuticas e criando outras. Não vamos, aqui, acompanhar a história da formação da
psicanálise, mas apresentar algumas de suas principais idéias e inovações.
A vida psíquica é constituída por três instâncias, duas delas inconscientes e apenas uma
consciente: o id, o superego e o ego (ou o isso, o super-eu e o eu). Os dois primeiros são
inconscientes; o terceiro, consciente. (observação importante do prof. Laerte: tem também
o aspecto inconsciente manifestado por exemplo pelos mecanismos de defesa)
O id é formado por instintos, impulsos orgânicos e desejos inconscientes, ou seja, pelo que
Freud designa como pulsões. Estas são regidas pelo princípio do prazer, que exige
satisfação imediata. O id é a energia dos instintos e dos desejos em busca da realização
desse princípio do prazer. É a libido.
No centro do id, determinando toda a vida psíquica, encontra-se o que Freud denominou de
complexo de Édipo, isto é, o desejo incestuoso pelo pai ou pela mãe. É esse o desejo
fundamental que organiza a totalidade da vida psíquica e determina o sentido de nossas
vidas. O superego, também inconsciente, é a censura das pulsões que a sociedade e a
cultura impõem ao id, impedindo-o de satisfazer plenamente seus instintos e desejos. É a
repressão, particularmente a sexual. Manifesta-se à consciência indiretamente, sob a forma
da moral, como um conjunto de interdições e de deveres, e por meio da educação, pela
produção da imagem do "eu ideal" isto é, da pessoa moral, boa o virtuosa. O superego ou
censura desenvolve-se num período que Freud designa como período de latência, situado
entre os 6 ou 7 anos e o início da puberdade ou adolescência. Nesse período, forma-se nossa
personalidade moral e social, de maneira que, quando a sexualidade genital ressurgir, estará
obrigada a seguir o caminho traçado pelo superego.
Ao ego-eu, ou seja, à consciência, é dada uma função dupla: ao mesmo tempo recalcar o id,
satisfazendo o superego, e satisfazer o id, limitando o poderio do superego. A vida
consciente normal é o equilíbrio encontrado pela consciência para realizar sua dupla função. A
loucura (neuroses e psicoses) é a incapacidade do ego para realizar sua dupla função, seja
porque o id ou o superego são excessivamente fortes, seja porque o ego é excessivamente
fraco.
Além dos substitutos reais (chupeta, argila, pessoa amada), o imaginário inconsciente também
oferece outros substitutos, os mais freqüentes sendo os sonhos, os lapsos e os atos falhos.
Neles, realizamos desejos inconscientes, de natureza sexual. São a satisfação imaginária do
desejo.
Alguém sonha, por exemplo, que sobe uma escada, está num naufrágio ou num incêndio. Na
realidade, sonhou com uma relação sexual proibida. Alguém quer dizer uma palavra, esquece-
a ou se engana, comete um lapso e diz uma outra que nos surpreende, pois nada tem a ver
com aquela que se queria dizer. Realizou um desejo proibido. Alguém vai andando por uma
rua e, sem querer, torce o pé e quebra o objeto que estava carregando. Realizou um desejo
proibido.
28
A vida psíquica dá sentido e coloração afetivo sexual a todos os objetos e a todas as pessoas
que nos rodeiam e entre os quais vivemos. Por isso, sem que saibamos por que, desejamos e
amamos certas coisas e pessoas, odiamos e tememos outras. As coisas e os outros são
investidos por nosso inconsciente com cargas afetivas de libido. É por esse motivo que certas
coisas, certos sons, certas cores, certos animais, certas situações nos enchem de pavor,
enquanto outros nos enchem de bem-estar, sem que o possamos explicar. A origem das
simpatias e antipatias, amores e ódios, medos e prazeres está em nossa mais tenra infância,
em geral nos primeiros meses e anos de nossa vida, quando se formam as relações afetivas
fundamentais e o complexo de Édipo.
Essa dimensão imaginária de nossa vida psíquica - substituições, sonhos, lapsos, atos falhos,
prazer e desprazer com objetos e pessoas, medo ou bem-estar com objetos ou pessoas -
indica que os recursos inconscientes para surgir indiretamente à consciência possuem dois
níveis:
Nossa vida normal se passa no plano dos conteúdos manifestos e, portanto, no imaginário.
Somente uma análise psíquica e psicológica desses conteúdos, por meio de técnicas
especiais (trazidas pela psicanálise), nos permite decifrar o conteúdo latente que se
dissimula sob o conteúdo manifesto.
Além dos recursos individuais cotidianos; que nosso inconsciente usa para manifestar-se, e
além dos recursos extremos e dolorosos usados na loucura (nela, os recursos são os
sintomas), existe um outro recurso, de enorme importância para a vida cultural e social, isto
é, para a existência coletiva. Trata-se do que Freud designa com o nome de sublimação.
Porém, assim como a loucura é a impossibilidade do ego para realizar sua dupla função,
também a sublimação pode não ser alcançada e, em seu lugar, surgir uma perversão social
ou coletiva, uma loucura social ou coletiva. O nazismo é um exemplo de perversão, em vez de
sublimação. A propaganda, que induz em nós falsos desejos sexuais pela multiplicação das
imagens de prazer, é outro exemplo de perversão ou de incapacidade para a sublimação.
O inconsciente, diz Freud, não é o subconsciente. Este é aquele grau da consciência como
consciência passiva e consciência vivida não-reflexiva, podendo tornar-se plenamente
consciente. O inconsciente, ao contrário, jamais será consciente diretamente, podendo ser
captado apenas indiretamente e por meio de técnicas especiais de interpretação
desenvolvidas pela psicanálise.
A consciência é frágil, mas é ela que decide e aceita correr o risco da angústia e o risco de
desvendar e decifrar o inconsciente. Aceita e decide enfrentar a angústia para chegar ao
conhecimento de que somos um caniço pensante, como disse o filósofo Pascal.
Alberto - Hoje vou contar a você sobre Freud e sua teoria do inconsciente.
Sofia - Já são duas e meia e eu ainda preciso providenciar algumas coisas para a festa.
Alberto - Eu também. Vamos falar rapidamente sobre Sigmund Freud.
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Sofia - Ele foi um filósofo?
Alberto - Podemos chamá-lo de um filósofo da cultura. Freud nasceu em 1856 e estudou
medicina na Universidade de Viena. Passou a maior parte de sua vida naquela cidade,
justamente durante um período em que a vida cultural vienense experimentou uma fase de
apogeu. Desde cedo, Freud se especializou num ramo da medicina que chamamos de
neurologia. De fins do século passado até quase meados do nosso século, ele trabalhou na
elaboração de sua psicologia profunda ou psicanálise.
Sofia - Explique melhor.
Alberto - Por psicanálise entende-se tanto a descrição da mente, da psique humana em geral,
quanto um método de tratamento para distúrbios nervosos e psíquicos. Não pretendo fazer
uma explanação detalhada sobre Freud e sua obra, mas é preciso conhecer um pouco de sua
teoria do inconsciente, se quisermos entender o que é o ser humano.
Sofia - Você já conseguiu despertar meu interesse. Vamos lá!
Alberto - Freud achava que sempre havia uma tensão entre o homem e o seu meio. Para ser
mais exato, uma tensão, ou um conflito, entre o próprio homem e aquilo que seu meio exigia
dele. Não seria exagerado dizer que Freud descobriu o universo dos impulsos que regem a
vida do homem. E isto faz dele um legítimo representante das correntes naturalistas, tão
importantes em fins do século passado.
Sofia - O que se entende por "impulso" do homem?
Alberto - Nem sempre é a razão que governa nossas ações. Consequentemente, o homem
não é apenas o ser racional tão defendido pelos racionalistas do século XVIII. Com
freqüência, impulsos irracionais determinam nossos pensamentos, nossos sonhos e nossas
ações. Tais impulsos irracionais são capazes de trazer à luz instintos e necessidades que
estão profundamente enraizados dentro de nós. Tão básico quanto a necessidade que um
bebê tem de mamar seria, por exemplo, o impulso sexual do homem.
Sofia - Entendo.
Alberto - Talvez tudo isto não tivesse nada de novo em si. Mas Freud mostrou que essas
necessidades básicas podiam vir à tona disfarçadas e tão modificadas que não seríamos
capazes de reconhecer sua origem. Assim disfarçadas, elas governariam nossas ações, sem
que tivéssemos consciência disso. Além disso, Freud mostrou que as crianças também têm
uma espécie de sexualidade. A afirmação da existência de uma sexualidade infantil causou
repulsa entre os refinados cidadãos de Viena e fez de Freud um homem extremamente
impopular.
Sofia - Não me surpreende.
Alberto - Estamos falando de uma época na qual tudo o que tinha a ver com a sexualidade
era tabu. Freud chegara à conclusão da existência de uma sexualidade infantil por meio de
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sua prática como psicoterapeuta. Ele tinha, portanto, uma sólida base empírica para
fundamentar suas afirmações. Freud também constatou que muitas formas de distúrbios
psíquicos eram devidas a conflitos ocorridos na infância. Aos poucos, então, Freud foi
desenvolvendo um método de tratamento que podemos chamar de uma espécie de
"arqueologia da alma".
Sofia - O que você quer dizer com isso?
Alberto - O psicanalista pode "cavoucar" a mente do paciente, com a ajuda dele, é claro, a fim
de trazer à luz as experiências e vivências que, em algum momento da vida passada,
provocaram seu distúrbio psíquico. Para Freud, portanto, guardamos bem no fundo de nós
todas as lembranças do passado.
Sofia - Agora estou entendendo.
Alberto - E pode ser que neste processo o terapeuta encontre uma experiência ruim que o
paciente sempre tentou esquecer, mas que está bem viva e presente dentro dele e lhe rouba
as forças. No momento em que tal "experiência traumática" é trazida ao consciente e o
paciente tem a chance de encará-la de frente, por assim dizer, ele pode "se entender" com ela
e se curar.
Sofia - Isto parece lógico.
Alberto - Mas estou avançando rápido demais. Vamos ver primeiro como Freud descreve a
psique humana. Você já viu um recém-nascido?
Sofia - Tenho um primo de quatro anos.
Alberto - Quando vêm ao mundo, os bebês satisfazem suas necessidades físicas e psíquicas
de forma bastante direta e desinibida. Se estão com fome, choram. E também choram
quando estão com a fralda molhada ou quando querem deixar bem claro que querem um
pouco de calor humano e contato físico. Freud chama de id este "princípio do prazer" que
existe em nós. Quando somos recém-nascidos, quase todo o nosso ser é apenas um id.
Sofia - Prossiga.
Alberto - O id continua conosco na idade adulta e nos acompanha a vida toda. Só que aos
poucos vamos aprendendo a controlar nossos desejos a fim de nos adaptarmos ao nosso
meio. Em outras palavras, aprendemos a afinar nosso princípio de prazer com o princípio da
realidade. Freud diz que construímos um ego e que este ego assume esta função reguladora.
A partir de certa idade, embora tenhamos prazer em alguma coisa, não podemos
simplesmente sentar e abrir o berreiro até que nossos desejos ou necessidades sejam
satisfeitos.
Sofia - É claro que não.
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Alberto - Mas pode acontecer de nós desejarmos intensamente alguma coisa que nosso meio
não aceita. O que acontece é que muitas vezes reprimimos nossos desejos. Quer dizer,
tentamos colocá-los de lado e esquecê-los.
Sofia - Entendo.
Alberto - Mas Freud aponta também uma terceira instância na psique humana: ainda
crianças, somos confrontados com os padrões morais de nossos pais e de nosso meio.
Quando fazemos alguma coisa de errado, nossos pais dizem "Não faça isto!", ou então "Que
vergonha!". E mesmo depois de adultos podemos ouvir o eco de tais repreensões e
julgamentos morais. As expectativas de nosso meio no plano da moral parecem ter se alojado
dentro de nós e passado a constituir uma parte de nós mesmos. É isto que Freud chama de
superego.
Sofia - Superego seria para ele sinônimo de consciência?
Alberto - Numa passagem, Freud chega a dizer textualmente que o superego se opõe ao ego
como uma espécie de consciência. Na verdade, porém, trata-se do seguinte: o superego nos
informa, por sim dizer, quando nossos desejos são "sujos" ou "impróprios", e vale
especialmente para os desejos eróticos ou sexuais. Como eu já disse, Freud constatou que
tais desejos surgem bem cedo na infância.
Sofia - Me explique melhor, por favor.
Alberto - Hoje em dia sabemos e vemos que os bebês gostam de brincar com seus órgãos
genitais. Podemos ver isto, por exemplo, quando vamos à praia ou à piscina. Na época de
Freud, a criança de dois ou três anos que fizesse isto na frente dos outros ganhava um belo
tapa na mão. Naquela época, era comum as crianças ouvirem frases tais como: "Que coisa
mais feia!", ou "Não faça isso!", ou ainda "Deixe as mãos para fora das cobertas!".
Sofia - Revoltante...
Alberto - Dessa forma, as pessoas desenvolvem um sentimento de culpa. E como este
sentimento de culpa é armazenado no superego, para muitas pessoas, e Freud acreditava
que para a maioria delas, ele fica indissociavelmente atrelado a tudo o que diz respeito ao
sexo. Ao mesmo tempo, Freud chamava a atenção para o fato de os desejos e necessidades
sexuais serem uma parte natural e importante da natureza humana. E assim, minha cara
Sofia, temos aqui todos os elementos de que necessitamos para um conflito entre prazer e
culpa que pode nos acompanhar por toda a vida.
Sofia - Você não acha que este conflito diminuiu um pouco desde a época de Freud?
Alberto - Certamente. Mas muitos dos pacientes de Freud viviam este conflito de forma tão
intensa que chegaram a desenvolver o que Freud chamou de neuroses. Uma de suas
pacientes, por exemplo, apaixonou-se por seu cunhado. Quando sua irmã morreu ainda
jovem, vítima de uma enfermidade, ela pensou junto ao leito de morte da irmã: "Agora ele está
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livre e pode se casar comigo!". Este pensamento naturalmente entrou em conflito direto com o
seu superego. Era um pensamento tão hediondo que ela o reprimiu, como Freud diz. Quer
dizer, ela o enterrou no inconsciente. Depois, aquela jovem senhora ficou doente e passou a
apresentar sérios sintomas de histeria. E quando Freud assumiu o tratamento dela, ficou
claro que ela tinha se esquecido completamente da cena junto ao leito de morte de sua irmã e
do desejo terrível, egoísta, que sentira vir à tona dentro de si. Durante o tratamento, a
paciente voltou a se lembrar da cena, reviveu aquele momento que era a causa de sua
enfermidade e ficou curada.
Sofia - Agora eu estou começando a entender o que você queria dizer com "arqueologia da
alma".
Alberto - Então vamos arriscar uma descrição bem genérica da psique humana. Após um
longo período de experiência com pacientes, Freud chegou à conclusão de que a consciência
humana era apenas uma pequena parte da psique. A consciência seria mais ou menos como
a ponta de um iceberg que se eleva para além da superfície da água. Sob a superfície, ou
sob o limiar da consciência, está o inconsciente.
Sofia - Quer dizer que o inconsciente é tudo de que nós nos esquecemos, mas que continua
dentro de nós?
Alberto - Não podemos ter presente em nossa consciência, o tempo todo, todas as
experiências que vivemos. Mas tudo o que pensamos ou vivemos e tudo de que nos
lembramos quando pomos a cabeça para funcionar Freud chama de "pré-consciente". A
expressão "inconsciente" significa, para Freud, tudo o que reprimimos. Quer dizer, tudo de
que nós queremos nos esquecer a qualquer preço porque consideramos desagradável,
indecoroso ou repulsivo. Quando temos desejos e prazeres que para nossa consciência, ou
para nosso superego, são insuportáveis, nós simplesmente as enfiamos no porão do
inconsciente e assim nos livramos deles.
Sofia - Entendo.
Alberto - Este mecanismo funciona em todas as pessoas sadias. Para algumas pessoas,
porém, o ato de banir tais pensamentos desagradáveis ou proibidos é algo tão estressante
que elas ficam doentes. É que aquilo que foi reprimido desta forma continua tentando emergir
para o nível da consciência, de sorte que cada vez mais energia é despendida para se manter
tais impulsos longe da crítica do consciente. Em 1909, quando Freud proferiu algumas
palestras nos Estados Unidos sobre a psicanálise, ele ilustrou com um exemplo muito simples
o funcionamento desse mecanismo de repressão.
Sofia - Que exemplo foi este?
Alberto - Ele pediu aos ouvintes que imaginassem que no auditório havia um indivíduo que
perturbava a ordem e desconcentrava o orador rindo às gargalhadas, conversando com seus
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vizinhos e arrastando e batendo os pés no chão. Chegaria, então, um momento em que o
orador não poderia continuar a falar. Nesse momento, alguns homens fortes provavelmente se
levantariam e, depois de uma breve discussão, colocariam o elemento perturbador porta
afora, no corredor. O indivíduo seria "reprimido", portanto, e o orador poderia continuar com
sua palestra. Mas para evitar que o elemento perturbador tentasse forçar sua entrada de novo
no auditório, os mesmos homens que o tinham colocado para fora levariam suas cadeiras até
à porta e funcionariam como uma espécie de resistência para garantir a repressão. Freud
concluiu dizendo que se os ouvintes imaginassem o auditório como o "consciente" e o
corredor como o "inconsciente", teriam uma boa imagem de como funciona o processo de
repressão.
Sofia - Também acho que a imagem é boa.
Alberto - Uma coisa é certa: o elemento perturbador vai querer entrar novamente na sala de
conferências, Sofia. Em todo caso, é isto o que querem nossos pensamentos e impulsos
reprimidos. Vivemos sob a constante pressão de pensamentos reprimidos, que tentam se
libertar do inconsciente. Por isso é que muitas vezes dizemos e fazemos coisas que na
verdade "não tínhamos a intenção de fazer". Dessa forma, o inconsciente também pode guiar
nossos sentimentos e ações.
Sofia - Você poderia me dar um exemplo?
Alberto - Freud descreve vários desses mecanismos. Um deles é o chamado ato falho, ou
seja, algo que dizemos ou fazemos espontaneamente e que um dia tínhamos reprimido. Ele
faia, por exemplo, de um empregado que foi escolhido para fazer um brinde ao seu chefe, de
quem ninguém gostava.
Sofia - Sim?
Alberto - O empregado se levantou, ergueu o copo e disse: "Convido todos a arrotarem em
homenagem a nosso chefe!".
Sofia - Legal!
Alberto - Não foi o que o chefe achou. Ao dizer isto, o empregado simplesmente tinha
expressado o que realmente achava de seu chefe. Talvez nunca tivesse ousado dizê-lo
abertamente a ele. Você quer mais um exemplo?
Sofia - Sim.
Alberto - Certo dia, o bispo foi visitar a família de um pastor, que era pai de umas meninas
adoráveis e muito comportadas. Este bispo tinha um nariz enorme, fora do comum. O pastor
teve o cuidado, então, de pedir às suas filhas que não mencionassem nada a respeito do nariz
do bispo. É que as crianças geralmente começam a rir quando percebem essas coisas, pois
ainda não têm o mecanismo de repressão muito bem desenvolvido.
Sofia - E o que aconteceu?
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Alberto - O bispo veio até à paróquia e as meninas, absolutamente deliciadas com a situação,
faziam todo o esforço possível para não dizer nada a respeito do nariz. E mais: elas não
podiam sequer ficar olhando para o nariz. Tinham de esquecê-lo completamente. Só que elas
ficavam pensando no nariz do bispo o tempo todo. E quando chegou a hora de a menorzinha
oferecer ao honorável bispo açúcar para o café, ela disse: "O senhor aceita um pouco de
açúcar no nariz?".
Sofia - Putz!
Alberto - Às vezes nós também racionalizamos, quer dizer, tentamos mostrar a nós mesmos,
e aos outros, que temos outros motivos para fazer o que fazemos em certas situações, e não
revelamos os reais motivos que nos levaram a agir de certa maneira, simplesmente porque
eles são constrangedores demais.
Sofia - Um exemplo, por favor.
Alberto - Posso hipnotizar você e induzi-la a abrir a janela. Para tanto, ordeno a você que se
levante e abra a janela quando eu tamborilar com os dedos sobre a mesa, por exemplo.
Quando eu faço isto, você se levanta e abre a janela. Depois pergunto a você por que você
abriu a janela. Talvez você me responda que o fez porque estava muito quente aqui dentro.
Mas este não é o verdadeiro motivo. Você não quer admitir para si mesma que obedeceu à
minha ordem enquanto estava hipnotizada. E o que você faz? Você "racionaliza", Sofia.
Sofia - Entendo.
Alberto - Coisas como esta acontecem quase todos os dias quando nos relacionamos com os
outros.
Sofia - Eu já disse a você que tenho um priminho de quatro anos. Acho que ele não têm
muitos amigos para brincar, pois ele sempre fica muito contente quando eu vou visitá-lo.
Certa vez eu disse que precisava voltar logo para casa, pois minha mãe estava me
esperando. E sabe o que ele me disse?
Alberto - Não.
Sofia - "Sua mãe é uma chata", foi isso o que disse.
Alberto - Sim, este é um bom exemplo para o que entendemos por racionalizar. O menino
realmente não quis dizer que sua mãe é uma chata. Ele quis dizer que achava chato que você
tivesse de ir embora. Só que para ele não era muito fácil verbalizar isto. Outra coisa que pode
acontecer é que nós projetamos.
Sofia - Traduza, por favor.
Alberto - Quando projetamos alguma coisa estamos transferindo a outros as características
que tentamos reprimir em nós mesmos. Uma pessoa avarenta, por exemplo, gosta de ficar
dizendo que os outros são avarentos. Alguém que não quer admitir que pensa muito em sexo
geralmente é o primeiro a se irritar quando encontra outras pessoas fissuradas por sexo.
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Sofia - Entendo.
Alberto - Freud dizia que nossa vida cotidiana está repleta de tais ações inconscientes.
Muitas vezes nos esquecemos do nome de certa pessoa, ficamos mexendo numa pontinha de
nossa roupa enquanto estamos falando ou então ficamos mudando de posição objetos
aparentemente sem importância. Ou podemos tropeçar em nossas próprias palavras e
acabar trocando letras e nomes, que à primeira vista podem parecer totalmente inocentes,
mas que na verdade não são. Freud pelo menos não considera essas coisas tão inocentes e
casuais como podemos achar. Ele acha que elas deveriam ser encaradas como sintomas.
Para ele, esses atos falhos podem nos revelar segredos os mais íntimos.
Sofia - Daqui para a frente, vou prestar bastante atenção em cada palavra que disser.
Alberto - Mesmo assim, você não poderá escapar de seus impulsos inconscientes. O
segredo está em não se desgastar demais ao se empurrar as coisas desagradáveis para o
subconsciente. É como querer tapar o buraco de uma toupeira. Você pode até conseguir, mas
com certeza ela virá à superfície em algum outro ponto. O mais sadio é deixar só encostada a
porta entre o consciente e o subconsciente.
Sofia - Se trancarmos a porta à chave podemos provocar distúrbios psíquicos em nós
mesmos?
Alberto - Sim. Um neurótico é justamente alguém que despende energia demais na tentativa
de banir de seu consciente tudo aquilo que o incomoda. Com freqüência trata-se de reprimir
experiências bem específicas. São as chamadas "experiências traumáticas", que eu já
mencionei no início da nossa conversa, talvez um pouco cedo demais. Freud as chama de
traumas. A palavra "trauma" é grega e significa "ferida".
Sofia - Entendo.
Alberto - Em seus tratamentos, às vezes Freud tentava abrir cuidadosamente estas portas
trançadas; outras vezes, procurava abrir outra porta. Com a colaboração do paciente, ele
tentava trazer à tona novamente as experiências reprimidas. Isto porque o paciente não tem
consciência de que as reprimiu. Não obstante, ele deseja que o médico, ou o analista, como
se diz em psicanálise, o ajude a encontrar um caminho que o leve a seus traumas escondidos.
Sofia - E como o médico procede neste caso?
Alberto - Freud chamava este procedimento de técnica da livre associação. Isto significa que
ele deixava o paciente deitado, bem relaxado, falando apenas sobre coisas que lhe viessem à
cabeça, por mais irrelevantes, casuais, desagradáveis ou penosas que elas lhe fossem. Para
o analista, as associações do paciente no divã trazem indícios de seus traumas e das
resistências que impedem a conscientização. Pois são exatamente os traumas que ocupam
os pacientes o tempo todo, só que não de forma consciente.
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Sofia - Quer dizer que quanto mais a gente se esforça para esquecer uma coisa, mais a gente
pensa inconscientemente nela?
Alberto - Exatamente. Por isso é importante prestar atenção aos sinais do inconsciente.
Para Freud, o "caminho real" que leva para o inconsciente passa pelos sonhos. Por esta
razão, uma de suas mais importantes obras é o livro A interpretação dos sonhos, publicado
em 1900. Nele, Freud mostra que nossos sonhos não são meros acasos. Por meio dos
sonhos, nossos pensamentos inconscientes tentam se comunicar com nosso consciente.
Sofia - Continue.
Alberto - Após longos anos de experiências acumuladas no trabalho corri seus pacientes, e
também depois de ter analisado os seus próprios sonhos, Freud afirmou que todos os sonhos
são a realização de desejos. Ele dizia que podemos observar isto claramente nas crianças:
elas sonham com sorvetes e cerejas, por exemplo. Em adultos, porém, acontece com
freqüência de os desejos a serem satisfeitos no sonho aparecerem disfarçados. Isto acontece
porque mesmo quando estamos dormindo uma censura severa continua a determinar o que
podemos nos permitir ou não. Quando estamos dormindo, esta censura, ou mecanismo de
repressão, é mais fraca do que quando acordados, mas ainda é forte o bastante para
desfigurar no sonho os desejos que não queremos confessar nem a nós mesmos.
Sofia - E é por isso que os sonhos têm de ser interpretados?
Alberto - Freud mostra que precisamos distinguir entre o sonho, tal como ele nos vem à
lembrança na manhã seguinte, e o seu verdadeiro significado. As próprias imagens oníricas,
quer dizer, o filme ou o vídeo a que assistimos quando sonhamos, ele as chamou de conteúdo
manifesto do sonho. Mas o sonho também tem um significado mais profundo, que permanece
inacessível ao consciente. E este significado, Freud o chamou de pensamentos latentes do
sonho. As imagens oníricas e seus requisitos são geralmente tiradas do passado mais
próximo, com freqüência dos acontecimentos que vivemos no dia anterior. Os pensamentos
ocultos, porém, vêm de um passado mais remoto; por exemplo, das primeiras fases de nossa
infância.
Sofia - Quer dizer que precisamos analisar o sonho para entender do que ele trata realmente.
Alberto - Sim. E os enfermos precisam fazer isto junto com um terapeuta. Mas não é o
médico quem interpreta os sonhos. Ele só pode fazer isto com a ajuda do paciente. O
médico entra nessa situação apenas corno urna parteira socrática que ajuda na interpretação.
Sofia - Entendo.
Alberto - O ato de reformular, de converter os "pensamentos latentes do sonho" em
"conteúdo manifesto do sonho" é chamado por Freud de trabalhar o sonho. Podemos falar de
um "mascaramento" ou de uma "codificação" da verdadeira ação que se desenrola no do
sonho. Na interpretação do sonho temos de passar por um processo inverso. Temos de
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desmascarar ou decodificar o verdadeiro "motivo" do sonho, a fim de podermos descobrir o
verdadeiro "tema" do sonho.
Sofia - Você poderia me dar um exemplo?
Alberto - Os livros de Freud estão cheios desses exemplos. Mas nós mesmos podemos
inventar um exemplo bem simples e bem freudiano. Quando um rapaz sonha que sua prima
lhe deu dois balões de ar...
Sofia - Sim?
Alberto - Não espere que eu continue. Você mesma deve tentar interpretar este sonho agora.
Sofia - Hmrn.... Neste caso, o "conteúdo manifesto do sonho" é exatamente isto que você
disse: a prima dele lhe dá dois balões de ar.
Alberto - Continue.
Sofia - E você também disse que os requisitos de nossos sonhos geralmente são tirados das
experiências vividas no dia anterior. Portanto, ele deve ter ido a um parque de diversões no
dia anterior, ou então viu no jornal a foto de dois balões de ar.
Alberto - Sim, pode ser. Mas também pode ser que ele tenha apenas ouvido a palavra
"balão" ou visto alguma coisa que o tenha feito lembrar de um balão.
Sofia - Mas o que são os "pensamentos latentes do sonho"? Eles não são aquilo de que o
sonho realmente trata?
Alberto - Quem está interpretando sonhos aqui é você.
Sofia - Será que ele simplesmente não estaria querendo dois balões?
Alberto - Não, isto é pouco provável. Num ponto, porém, você tem razão: ele quer satisfazer
um desejo no sonho. Só que dificilmente um rapaz adulto desejaria assim tão ardentemente
dois balões de ar. E, se quisesse, não seria necessário sonhar com isto.
Sofia - Então... acho que na verdade ele deseja a sua prima. E os dois balões são os seios
dela.
Alberto - Sim, esta é uma explicação provável, sobretudo porque este desejo lhe causa certo
embaraço, de modo que ele não gosta de admiti-lo quando está acordado.
Sofia - Quer dizer que nossos sonhos dão umas voltas e passam por coisas como balões
etc.?
Alberto - Sim. Freud considerava o sonho a realização disfarçada de desejos disfarçados.
Pode ser que o que disfarçamos tenha se modificado consideravelmente desde que Freud
conversava com seus pacientes em seu consultório em Viena. Apesar disso, é possível que o
mecanismo de disfarce continue intato.
Sofia - Entendo.
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Alberto - Nos anos 20, a psicanálise de Freud se tornou muito importante, sobretudo no
tratamento das neuroses. Além disso, sua teoria do Inconsciente foi muito importante para a
arte e a literatura.
Sofia - Você está querendo dizer que os artistas passaram a se ocupar mais da vida mental
inconsciente do homem?
Alberto - Exatamente, embora isto já estivesse presente na literatura da última década do
século passado, quando a psicanálise de Freud ainda não era conhecida. Só estou querendo
dizer que não é por acaso que a psicanálise de Freud surgiu exatamente nesta época.
Sofia - Você quer dizer que ela já estava embutida no espírito da época?
Alberto - Freud não acreditava ter descoberto, por assim dizer, fenômenos como a repressão,
os atos falhos ou a racionalização. Mas ele foi o primeiro a trazer para dentro da psiquiatria
tais experiências humanas. Ele também soube ilustrar muito bem sua teoria com exemplos
extraídos da literatura. Mas, como eu disse, a psicanálise de Freud passou a influenciar
diretamente a arte e a literatura a partir dos anos 20.
Sofia - De que forma?
Alberto - Escritores e pintores passaram a tentar aplicar as forças inconscientes em seus
trabalhos de criação. E isto vale sobretudo para os chamados surrealistas.
Sofia - O que significa isto?
Alberto - A expressão "surrealismo" é francesa e significa algo como aquilo que está além do
realismo". Em 1924, André Breton publicou seu Manifesto surrealista. Nele, Breton declara
que a arte deveria ser criada a partir do inconsciente, pois só assim a inspiração do artista
estaria livre para produzir suas imagens oníricas e o artista poderia buscar um "super-
realismo", no qual as barreiras entre sonho e realidade fossem abolidas. De fato, pode ser
muito importante para um artista eliminar a censura do consciente, a fim de que palavras e
imagens possam fluir livremente.
Sofia - Entendo.
Alberto - De certa forma, Freud tinha dado a prova de que todas as pessoas são artistas.
Afinal, um sonho é uma pequena obra de arte e a cada noite criamos novos sonhos. Para
interpretar os sonhos de seus pacientes, Freud freqüentemente tinha de abrir caminho através
de um denso emaranhado de símbolos, mais ou menos como fazemos quando interpretamos
um quadro ou um texto literário.
Sofia - E nós sonhamos todas as noites?
Alberto - Pesquisas recentes demonstraram que vinte por cento do tempo que passamos
dormindo é preenchido por sonhos. Isto significa que sonhamos de duas a três horas por
noite. Quando somos perturbados durante essas fases, reagimos com nervosismo e irritação.
Isto significa nada mais e nada menos que todas as pessoas têm uma necessidade inata de
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dar à sua situação existencial uma expressão artística. O sonho trata de nós mesmos. Somos
nós quem dirigimos este "filme", juntamos tudo o que compõe os seus cenários e requisitos e
desempenhamos todos os papéis. As pessoas que dizem que não entendem nada de arte são
pessoas que se conhecem mal.
Sofia - Entendo.
Alberto - Além disso, Freud deu uma prova impressionante de como é fantástica a mente
humana. Seu trabalho com pacientes convenceu-o de que guardamos no fundo de nossa
mente tudo o que vimos e vivemos. E todas essas impressões podem ser trazidas à tona
novamente. Todas as vezes em que nos dá "um branco" e, pouco depois, ficamos com o que
queremos lembrar "na ponta da língua", e quando, um pouco mais tarde ainda, a coisa
"subitamente nos ocorre", estamos falando de algo que estava no inconsciente e, de repente,
encontrou uma porta entreaberta e conseguiu escapar para o consciente.
Sofia - Mas às vezes isto demora muito.
Alberto - Sim, todos os artistas sabem disso. Só que de repente todas as portas e gavetas do
arquivo parecem se abrir. Tudo flui espontaneamente e então podemos escolher exatamente
as palavras e as imagens de que precisamos. Isto acontece quando deixamos a porta do
inconsciente entreaberta. Podemos chamar isto de inspiração, Sofia. E então temos a
sensação de que aquilo que desenhamos ou escrevemos não veio de nós.
Sofia - Deve ser um sentimento maravilhoso.
Alberto - Mas com certeza você mesma já o experimentou. Podemos observar facilmente
este estado inspirado em crianças que estão supercansadas. Neste estado, as crianças
parecem mais acordadas do que nunca e começam a falar sem parar, tirando da memória
palavras que elas ainda nem aprenderam. Só que é claro que elas já aprenderam. Acontece
que essas palavras estavam "latentes" no seu consciente e só agora, quando o cansaço
relaxa o policiamento e abole a censura, elas podem vir à tona. Para o artista, a situação é
diferente. Mas também para ele pode ser importante que a razão e a reflexão não exerçam
um controle tão rigoroso sobre aquilo que melhor pode se desenvolver espontânea, livre e
inconscientemente. Posso contar uma fábula que ilustra muito bem o que estou dizendo?
Sofia - Claro!
Alberto - É uma fábula muito séria e muito triste.
Sofia - Pode começar.
Alberto - Era uma vez uma centopéia que sabia dançar excepcionalmente bem com suas
cem perninhas. Quando ela dançava, os outros animais da floresta reuniam-se para vê-la e
ficavam muito impressionados com sua arte. Só um bicho não gostava de assistir à dança da
centopéia: uma tartaruga.
Sofia - Na certa porque tinha inveja.
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Alberto - "Como será que eu posso conseguir fazer a centopéia parar de dançar?", pensava
ela. Ela não podia simplesmente dizer que a dança da centopéia não lhe agradava. E
também não podia dizer que sabia dançar melhor que a centopéia, pois ninguém iria acreditar.
Então ela começou a bolar um plano diabólico.
Sofia - Que plano era esse?
Alberto - A tartaruga pôs-se, então, a escrever uma carta endereçada à centopéia: "Oh,
incomparável centopéia! Sou uma devota admiradora de sua dança singular e gostaria muito
de saber como você faz para dançar. Você levanta primeiro a perna esquerda número 28 e
depois a perna direita número 59, ou começa a dançar erguendo a perna direita número 26 e
depois a perna esquerda número 49? Espero ansiosa por sua resposta. Cordiais saudações, a
tartaruga".
Sofia - Que coisa de doido!
Alberto - Quando a centopéia recebeu esta carta, refletiu pela primeira vez na sua vida sobre
o que fazia de fato quando dançava. Que perna ela movia primeiro? E qual perna vinha
depois? E você sabe, Sofia, o que aconteceu?
Sofia - Acho que a centopéia nunca mais dançou.
Alberto - Foi isso mesmo. E é exatamente isto que pode acontecer quando o pensamento
sufoca a imaginação.
Sofia - É triste mesmo esta história.
Alberto - Para um artista, portanto, pode ser muito importante "se deixar levar". Os
surrealistas tentavam se aproveitar disso e buscavam um estado em que tudo parecia brotar
espontaneamente. Eles sentavam-se à frente de uma folha de papel em branco e começavam
a escrever, sem pensar no que estavam escrevendo. Era isto o que chamavam de escrita
automática. Na verdade, a expressão vem do espiritismo, em que um "médium" acredita que
o espírito de alguém que já morreu está dirigindo sua mão ao escrever... Mas acho melhor
continuarmos falando amanhã sobre essas coisas.
Sofia - Tudo bem.
Alberto - O artista surrealista também é, de certa maneira, um médium. Ele é um médium de
seu próprio subconsciente. Contudo, é possível que haja uma pontinha de inconsciente em
todo processo criativo. Pois o que seria isto que chamamos de "criatividade"?
Sofia - Ser criativo não significa criar algo de novo e de único?
Alberto - Mais ou menos. E isto ocorre por meio de uma delicada interação entre imaginação
e razão. Na maioria das vezes, a razão sufoca a imaginação; e isto é ruim, pois sem
imaginação não é possível produzir nada de novo. Eu vejo a imaginação como um sistema
darwinista.
Sofia - Desculpe, mas esta eu não entendi.
42
Alberto - O Darwinismo explica que a natureza produz um mutante atrás do outro. Mas a
natureza só precisa de alguns poucos desses mutantes. Só alguns poucos têm a chance de
viver.
Sofia - E então?
Alberto - O mesmo acontece quando pensamos, quando estamos inspirados e temos muitas
e novas idéias. Nesse caso, nossa cabeça produz um "pensamento mutante" atrás do outro.
Quer dizer, isto se nós não nos impusermos uma censura muito severa. Acontece que só
vamos usar realmente alguns desses pensamentos. E é aqui que entra a razão, pois ela
também tem uma função importante. Quando temos sobre a mesa o resultado da pesca, não
podemos esquecer de escolher os peixes.
Sofia - Esta é uma ótima comparação.
Alberto - Imagine se tudo o que nos "ocorre", se cada lampejo de pensamento tivesse
autorização para sair da nossa boca! Ou então para saltar do bloco de apontamentos ou sair
das gavetas da escrivaninha! O mundo se afogaria bem depressa num mar de idéias e
lembranças casuais. E não haveria uma "seleção", Sofia.
Sofia - E a razão escolhe as melhores entre todas as idéias e lembranças?
Alberto - Sim, ou você não acha? A imaginação pode criar coisas novas, mas não é ela que
realmente escolhe. Não é a imaginação que "compõe". Uma composição, e toda obra de arte
é uma composição, surge de uma admirável interação entre imaginação e razão, ou entre
sentimentos e pensamentos. O processo artístico tem sempre um elemento de casualidade.
Em certa fase pode ser importante não represar essas idéias e lembranças casuais. As
ovelhas precisam ser soltas primeiro para só depois o pastor poder vigiá-las. (...)
Alberto - (...) a imaginação também é importante para nós, filósofos. Para chegarmos a
pensar alguma coisa nova, também precisamos ter coragem de nos deixar levar.
Sexualidade e infância são assuntos que não se misturam, certo? Errado. Desde que o mundo
é mundo, as crianças não brincam de médico à toa: a aventura do descobrimento começa já
nos primeiros meses, quando o bebê experimenta o prazer de explorar o próprio corpo, e se
acentua nos anos seguintes, quando sua atenção se volta para o corpo dos pais e de outras
crianças. Quase cem anos depois de Sigmund Freud descrever pela primeira vez o
desenvolvimento da sexualidade infantil, o comportamento exploratório dos pequenos
continua produzindo uma legião de pais e mães desnorteados diante de perguntas e cenas
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inesperadas - e aí pouco importa que sejam experiências que eles mesmos já tiveram na
infância.
"Sexualidade, para o adulto, tem caráter estritamente erótico e está ligada apenas à
realização desses desejos. Essa idéia não é compatível com a imagem que fazemos da
inocência infantil, por isso muitos de nós preferem ignorar", explica Marcos Ribeiro, sexólogo e
consultor do Ministério da Saúde e autor de diversos livros sobre o assunto. Mesmo pais que
se definem como modernos e liberais "travam" ao ter encarar na prática assuntos como
masturbação e brincadeiras que envolvem os órgãos genitais. "Muitas vezes, eles é que
precisam de orientação sexual, porque ficam sem saber como lidar com essas questões",
afirma o psicólogo Paulo Rennes Marçal Ribeiro, coordenador do Núcleo de Estudos da
Sexualidade da Unesp.
Na maioria das vezes, a distância entre a moral do universo adulto e a ausência de pudor
infantil resulta em ensinamentos cheios de "tira a mão daí, aquilo não pode, isso é feio" -
exatamente a atitude que psicólogos, professores e sexólogos condenam. Os terapeutas são
unânimes: tratar o assunto com naturalidade é condição fundamental.
Mas o que fazer, por exemplo, diante de duas crianças de três anos nuas, brincando com
seus órgãos sexuais?
"Claro que é um momento muito difícil para os pais, mas vejo dois caminhos: sair de perto e,
se for o caso, comentar o assunto com naturalidade depois, e aproximar-se e interromper
educadamente a cena, convidando a criança para fazer alguma outra atividade", recomenda
Marcos Ribeiro. "Pode-se dizer, por exemplo, 'Vamos parar com a brincadeira porque agora o
papai (ou a mamãe) precisa da sua ajuda para uma tarefa'. Mas sem tom de bronca", ensina o
sexólogo.
Traumatizar a criança com reações extremadas é pior, dizem os especialistas, porque ela
dificilmente vai abandonar o que lhe dá prazer, só o fará escondido. "O problema não está na
exploração sexual do próprio corpo ou nas brincadeiras entre crianças da mesma idade.
Prejudicial é a repressão do adulto a essas atitudes, quando ele grita, proíbe, bate ou põe de
castigo. Fazendo isso ele transmite a noção de que aquilo é errado, quando na verdade essas
atitudes são tão naturais quanto aprender a andar, falar, brincar", afirma Maria Cecília Pereira
da Silva, psicanalista e membro da ONG Grupo de Trabalho e Pesquisa em Orientação
Sexual.
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Além disso, jogos sexuais entre crianças da mesma idade não costumam oferecer risco à
integridade física de seus envolvidos (antes da puberdade, meninos nem têm ereção
suficiente para penetração). "A ameaça de ato sexual está apenas na mente adulta, já que
para as crianças menores a brincadeira tem a ver com a sensação que o toque proporciona",
diz Marcos Ribeiro.
A dificuldade é conciliar a reação ideal almejada pelos especialistas com os valores morais de
cada família. "Eles ficam assustados, perguntam o que pode vir depois, se a criança já faz
aquilo naquela idade", conta Sueli Gonçalves Gomes, orientadora da educação infantil do
colégio Santa Maria, no Jardim Marajoara, zona sul. Não virá nada, respondem os
especialistas. Por volta dos sete anos, as crianças entram na etapa chamada latência (veja
quadro acima), quando a sexualidade perde parte da importância. Com a chegada da fase
escolar propriamente dita, a criança começa a se interessar por atividades que antes não
estava preparada para desempenhar. A pais renitentes ou assustados, a psicóloga Maria
Cecília lembra a definição da OMS (Organização Mundial de Saúde): "Sexualidade não é
sinônimo de coito e não se limita à presença ou não do orgasmo. Ela influencia pensamentos,
sentimentos, ações e a saúde física e mental. Se saúde é um direito humano fundamental, a
saúde sexual também deveria ser considerada um direito humano básico". Para quem acha
que o discurso é bonito, mas não resolve na hora do susto, a Revista elencou as situações
mais comuns e ouviu especialistas sobre a melhor reação diante de cada uma. Confira a
seguir.
Masturbação - Na escola infantil, Antônio, 2, roça o pênis no colchão até dormir. Na classe ao
lado, a professora percebe que Bernardo, 5, está se masturbando enquanto ela conta
histórias.
Quem trabalha com crianças tem sempre muitos casos como esses para contar. Descobrir o
próprio corpo faz parte da tarefa de tentar entender o mundo, e o prazer em manipular os
órgãos sexuais é uma das primeiras descobertas. Em situações que confortam e dão prazer -
como a hora da alimentação ou da troca de fraldas - é comum ver bebês de ambos os sexos
com ereção; as meninas têm inclusive lubrificação vaginal, explica a sexóloga e hoje prefeita
Marta Suplicy no livro "Papai, Mamãe e Eu" (editora FTD, 88 págs., R$ 35,80), lançado em
1999 e até hoje um dos mais indicados pelos especialistas da área. Isso acontece porque
olhos, pele, boca, paladar, olfato e órgãos genitais integram um complexo nervoso que tem
conexões com o centro sexual do cérebro.
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Além disso, nem toda manipulação dos genitais é sinônimo de masturbação. "Pode se tratar
de algum incômodo físico, como alergias, assaduras e até picadas de inseto", diz Ângela
Maria Espínola de Castro, pediatra endocrinologista da Unifesp.
Marcos Ribeiro, consultor do Ministério da Saúde, recomenda cuidado maior no caso das
meninas. "É preciso conversar e informar, porque elas podem introduzir objetos na vagina e
se machucar."
Jogos sexuais - Júnior, 5, diz para Léo, 4, que um chupar o "pipi" do outro é normal, porque
os bebês fazem o mesmo com o peito da mãe. O menor conta para o pai, que, desesperado,
procura a professora da escola. Em situações como essa, os adultos tendem a reagir mal,
reprimindo, gritando e até batendo na criança, diz Paulo Rennes. Nada mais equivocado.
Logo depois de explorar o próprio corpo, a atenção infantil se volta para o corpo alheio: é a
fase em que começam a perceber as diferenças entre meninos e meninas, adultos e crianças.
Não faça alarde, nem projete coisas do seu mundo no mundinho deles, recomendam os
profissionais.
"Os pais devem tentar agir com naturalidade, explicando que a criança não deve fazer nada
que não queira com o próprio corpo - nem com o corpo do outro. É bom aproveitar para dizer
que, se ela se sentir desconfortável com alguma brincadeira, deve procurar um adulto de
confiança e contar", afirma Maria Cecília. Mas é bom apurar toda a história para conferir se é
realmente verdade: "Criança fantasia bastante", ressalva.
O problema pode se tornar mais sério quando ocorre entre crianças de idades muito
diferentes - quatro, cinco anos a mais -, porque pode envolver coerção e configurar abuso
sexual. Os pais devem dizer que não é errado a criança brincar com amiguinhos da mesma
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idade, mas nunca com os mais velhos ou adultos. Também não vale estigmatizar a criança
mais velha, transformando-a num quase tarado: nem sempre mais idade significa maturidade
maior. Além disso, ela pode estar enfrentando problemas no próprio desenvolvimento sexual e
precisar de ajuda profissional.
Brincar de beijo na boca - Cássio, 4, corre atrás de Daniela, 5, e a beija na boca. Depois,
chama a menina de "Helena", personagem da novela da Globo. Em pleno processo de
aprendizagem, a criança repete tudo o que vê. "O que esperar de crianças expostas
freqüentemente a cenas de beijos e carícias na TV", pergunta Paulo Rennes. "O estímulo à
precocidade e a comportamentos sexuais vem desse cotidiano." Marcos Ribeiro afirma que
não há necessidade de reprimir a brincadeira, desde que se observe a regra da mesma faixa
etária. Também é importante ficar atento para ver se a criança não está sendo forçada a
alguma coisa.
De volta ao peito - Desmamada desde os nove meses, Luíza, 3, passa a reclamar o seio da
mãe com insistência, em casa ou lugares públicos. Ela cede uma vez, mas se incomoda com
a freqüência. Quando recusa, a menina chora. Geralmente, é necessidade de um contato
afetivo mais estreito com a mãe, uma forma de voltar a um período gratificante da vida, dizem
os terapeutas, e ocorre principalmente quando nasce um irmãozinho, e a criança maior se
sente em segundo plano.
"Se a mãe estiver amamentando o menor, pode deixar o maior experimentar, para que ele
prove que o gosto não é lá essas coisas. Mas os pais devem reforçar que ela já é grandinha e
tem dentes para se alimentar, ao contrário do irmãozinho", aconselha Maria Cecília. Se não
estiver amamentando ou não se sentir confortável em dar o seio, deve explicar que não tem
mais leite e que o peito é uma parte íntima de seu corpo. "É uma boa hora para reforçar que
não se deve deixar que mexam no corpo da gente quando não queremos", lembra.
Marcos Ribeiro levanta outro ponto. "É importante que os pais atentem para o motivo. Em
alguns casos, vítimas de algum tipo de abuso sexual tentam 'voltar' a fases anteriores, em que
se sentiam protegidas", diz.
Exibir os genitais - Basta chegar uma visita e Vítor, 4, vai para o quarto, tira a roupa e faz
uma "entrada triunfal" na sala, totalmente nu. O "exibicionismo" infantil faz parte da fase de
exploração dos corpos. Como um brinquedo novo, a criança quer mostrar aos outros o que já
descobriu. Quanto à menina que adora levantar a roupa e mostrar o bumbum, por exemplo,
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pode estar imitando algo que viu na TV. Em qualquer situação, cabe aos adultos começar a
ensinar a noção de intimidade.
"Ela não sabe o que é certo ou errado, quais são os códigos sociais, a diferença entre o
público e o privado. Cabe aos pais e educadores ensinar que ali não é lugar para isso", afirma
Maria Cecília. É também a hora de falar sobre respeito. "Alguns pais acham que tudo que seu
filho faz é uma gracinha, mas se esquecem de que aquela gracinha vai crescer e viver em
sociedade. Pais e professores devem mostrar que vivemos com outras pessoas, temos de
respeitá-las e parte desse respeito é não ficar mostrando seu órgão sexual para quem não
quer ver", recomenda Marcos Ribeiro.
Ver o ato sexual - A porta do quarto estava só encostada, e Maria, 3, viu os pais transando.
No dia seguinte, contou à professora que, quando o casal está no quarto, seu pai fica
tentando matar a mamãe. Tiago, 5, assiste a um filme pornô na TV a cabo e depois quer fazer
sexo oral com a prima da mesma idade.
Se a criança viu o ato sexual, mesmo que ela não pergunte, é fundamental falar sobre o
assunto, para que ela não comece a fantasiar. E não se esqueça: se isso aconteceu, foi por
descuido dos adultos.
"Geralmente os pais reagem mal, põem a culpa no filho por ter visto 'algo que não devia'",
conta Paulo Rennes.
No primeiro caso, Marcos Ribeiro sugere deixar a conversa para o dia seguinte. "Pai e mãe
podem começar, informalmente, perguntando: 'Acho que você viu a gente fazendo amor,
tendo uma relação sexual. Você sabe o que é isso?' Fique atento à reação. Se ela disser que
sim, descubra o que realmente sabe e complemente, se necessário. Se não, fale brevemente
sobre namoro e relação sexual, explique que foi num momento como aquele que ela foi feita.
Utilizar um livro infantil é uma boa saída, mas não fale demais nem explique além do que ela
quer saber."
No caso do filme pornô, é preciso perguntar o que ela viu e mostrar que a realidade das
pessoas não é aquela. "Explique que os filmes são feitos para despertar vontade nas pessoas,
mas que sexo não é só aquilo, tem carinho e afeição. É importante que a criança cresça
fazendo essa associação", diz Marcos Ribeiro.
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O caminho da sexualidade infantil
O primeiro a tratar do assunto foi Sigmund Freud, no início do século 20. Para o pai da
psicanálise, a sexualidade infantil passa por quatro fases: oral, anal, fálica e de latência. Até
hoje esses conceitos formam a base do pensamento sobre a sexualidade na infância, mas
foram incrementados por outras linhas de pensamento. As faixas etárias de cada fase não são
absolutas, mas aproximadas
b) 2 a 3 anos - Anal - Quando começa a deixar as fraldas, a atenção da criança se volta para
suas necessidades fisiológicas: ela começa a perceber que pode controlar o esfíncter
(músculo envolvido na evacuação), cujos movimentos também proporcionam sensação de
prazer. Ficam orgulhosas do que seu corpo produz, algumas nem querem dar a descarga.
Pais e professores também colaboram para o aumento de atenção nessa etapa, perguntando
o tempo todo se a criança quer fazer cocô ou xixi
NO CORPO - O crescimento físico desacelera em relação à fase anterior, fica mais lento,
porém constante, e volta a se intensificar na puberdade
(Do livro: Freud e Machado de Assis - uma interseção entre psicanálise e literatura, Editora
Mauad, ano 2001, cap. IV, págs 79-107)
O medo que o homem sente da mulher é tão antigo quanto a história, mas foi só no século
burguês que ele se transformou num tema proeminente nos romances populares e tratados
médicos. Atraiu a atenção de jornalistas, pregadores e políticos; invadiu os sonhos dos
homens e forneceu-lhes assunto para poemas e pinturas. A demonstração aberta e crescente
que a mulher fazia de seu poder parecia ser a contrapartida pública do poder que os homens
exerciam privadamente, com uma ansiedade cada vez maior, na segunda metade do século
XIX: um e outro forneceram ao homem formidáveis argumentos contra a emancipação da
mulher. Para a maioria dos homens que se regalavam com a dominação, uma mulher que
abandonasse sua própria esfera constituía não apenas unia anomalia, unia mulher-macho;
mais do que isso, levantava incômodas questões quanto ao papel masculino, um papel que
não se definia mais isoladamente, mas numa constrangedora confrontação com o sexo oposto
(Gay, Peter 1989, A educação dos sentidos, p. 128).
50
Machado de Assis foi um autor que escreveu para mulheres e sobre mulheres. Pode-se ver
que não só em Brás Cubas, como em Quincas Borba, existem várias passagens nas quais
dialoga com uma leitora, isso mesmo, com uma leitora - no feminino, Conforme sabemos,
seus romances foram, alguns deles, primeiramente escritos em jornais para moças. Foi ele
um escritor que contribuiu para a libertação da mulher burguesa, condenada que estava a
viver para a família, ou seja, casa, marido e filhos. Seus textos, como os de Flaubert, punham
a mulher sonhar - diríamos que da mesma forma que o Manual dos confessores25 da Idade
Média as punha também a pecar. É na sua chamada fase da maturidade que ele apresentará
a questão do pecado do adultério, que traz como subprodutos o ciúme E a disputa entre os
homens por esta sedutoras de colos brancos, de ombros desnudos, de olhos convidativos, de
talhes garbosos; assim como diria o mestre: uma lascívia.
25 Os confessionais ou Manuais de confessores eram catálogos de pecados a serem usados no confessionário. "... muitas vozes
já se haviam levantado contra o critério do confessor interrogar o penitente com uma lista de pecados descritos em detalhes -
tanto quanto à ação, como quanto ao parceiro - entendendo que este procedimento induzia os ingênuos a seguir "as trilhas da
perdição" (Almeida, Ângela, 1992, p. 21)
51
que sim. É a sedução consentida, é o triângulo que excita o marido, na sua admiração
homossexual pelo potencial amante, o ricaço de Barbacena. Como todos sabemos, o
paroxismo da traição por adultério é apresentado por Bento Santiago devido a sua posição de
promotor de direito, que fez com que, inclusive durante muitos anos, se tentasse,
ingenuamente, chegar a uma condenação ou a uma absolvição de Capitolina. A ironia do
nosso mestre foi de criar um estado de espírito no leitor que o levasse a apaixonadamente
tomar um partido. Ironicamente cutucava o leitor através dos comentários do casmurro
Santiago: "... minha vida se casa bem à definição. Cantei um duo terníssimo, depois um trio,
depois um quatuor..." (DC, p. 738). Levou-se algum tempo para se perceber que Capitu não
fala, não pode dizer nada sobre si - um diário de outrem não pode ser apresentado como peça
de acusação. A arte de Machado foi levantar a dúvida, talvez a cutucada tenha sido a de se
divertir, pois sabia o quanto é difícil para o homem conviver com a dúvida - possivelmente
sabia que o ser humano quer, sempre, dar sentido a tudo.
Voltemos à nossas heroínas, ou melhor, às heroínas que podemos afirmar estão mais
diretamente envolvidas com a questão do pecado: Virgília, Marcela, Sofia e Capitolina.
Contudo, é necessário não nos esquecermos que, se incluiu em alguns romances essas
mulheres pérfidas, também as salvou em Fidélia e Carmo, de Memorial de Aires. Mulheres
pobras, na qual os exibicionismos histéricos os narcisismos exacerbados, não fazem parte do
repertório de condutas dessas damas. Apesar de Machado ter levantado, sobre a viúva
Fidélia, a dúvida de que talvez traísse o noivo, quando ia ao cemitério visitar a tumba do
falecido marido. Todavia, coloca a questão mais para a insegurança de Tristão do que sobre
um desvio de caráter da mulher. Dona Carmo é o protótipo da mulher ideal, não trai, não
desaponta, não levanta dúvidas - está acima de qualquer suspeita, não há o que reparar. O
tema é curioso, suscita questões que na época eram vistas como tabu. Machado tinha 17
anos quando Flaubert começou a publicar na Revue de Paris os primeiros capítulos de
Madame Bovary, obra que também aborda o tema do adultério. Tanto Machado quanto
Flaubert participaram do que Maria Rita Kehl (1998) chamou invenção do amor conjugal
moderno.
"A mesma literatura que ajudou a inventar o amor conjugal moderno inventou o adultério
como a verdadeira iniciação erótica das mulheres casadas, como o lugar imaginário em
que uma mulher estaria efetuando uma escolha a partir de seu desejo, e não sendo "a
escolhida" para realizar os desejos do futuro marido" (p. 117).
Machado pertencia a essa época em que o amor e o casamento eram as aspirações máximas
52
de uma mulher. Não era dado às mulheres o direito de se assumirem como independentes do
homem - era a submissão ao pai e depois ao marido. Seus desejos pessoais, freqüentemente,
não eram levados em conta. Ficar solteira era, para a mulher, uma desqualificação, como cita
Machado nos pensamentos de D. Tonica de Quincas Borba: "os seus pobres olhos de trinta e
nove anos, olhos sem parceiros na terra, indo já a resvalar do cansaço na desesperança" (QB,
p. 582-3).
Freud, em Moral sexual "civilizada " e doença nervosa moderna (1908), comentava,
aliando-se às idéias do professor de filosofia de Praga, Christian von Ehrenfelds, que a moral
sexual civilizada necessitava de reformas, visto que o cumprimento de seus preceitos
freqüentemente produzia sérias neuroses. As restrições feitas à atividade sexual tanto dos
homens quanto das mulheres - proibição de toda relação sexual, exceto dentro do casamento
monogâmico - trazem para a saúde e a eficiência dos indivíduos grandes prejuízos, podendo
até comprometer a própria cultura no futuro. Contudo, é a mulher a que mais sofre essas
restrições, pois, como disse Freud, há que se admitir uma moral dupla. As sanções impostas
às mulheres são muito mais severas que as impostas ao sexo masculino.
"Essa moral 'dupla' que é válida em nossa sociedade para os homens é a melhor
confissão de que a própria sociedade não acredita que seus preceitos possam ser
obedecidos" (p. 200).
Não se deveria deixar de considerar que as relações sexuais no matrimônio nem sempre
proporcionaram os prazeres prometidos na espera, bem como que, durante muito tempo,
foram também consideradas indignas, num matrimônio legítimo, certas práticas sexuais. A
uma mulher honesta não deveria ser solicitado um sexo pervertido. O marido deveria ser o
primeiro a preservá-la. Entretanto, a lei existe exatamente para reprimir aquilo que o ser
humano deseja fazer, e, como tal, surgem as contestações, as quais são, naturalmente, mais
aceitas no universo masculino. No entanto, o casamento há muito deixou de ser uma forma
terapêutica para os males femininos. Não é incomum que ele se tome um outro foco para o
estabelecimento de novos quadros neuróticos.
"[Virgília] contava apenas uns quinze ou dezesseis anos; era talvez a mais atrevida
criatura da nossa raça, e, com certeza, a mais voluntariosa. ( ... ) Era bonita, fresca,
saía das mãos da natureza, cheia daquele feitiço, precário e eterno, que o indivíduo
53
passa a outro indivíduo, para os fins secretos da criação. Era isto Virgília, e era clara,
muito clara, faceira, ignorante, pueril, cheia de uns ímpetos misteriosos; muita preguiça
e alguma devoção, - devoção, ou talvez medo; creio que medo" (MPBC, p. 449-50).
Machado de Assis disse, por carta, a Mario de Alencar que escreveu Memórias póstumas de
Brás Cubas porque se desiludira dos homens. Já no prólogo, afirma que escreveu "com a
pena da galhofa e a tinta da melancolia" (MPBC, p. 413). Talvez um certo prazer sádico que
resvalava, por vezes, para um quadro depressivo. Depressão decorrente do problema ocular
que perdurou de outubro a março de 1879: problema não só grave para um escritor, como
para qualquer mortal, uma vez que as sombras da cegueira produzem uma ferida narcísica
impossível de ser cicatrizada. É necessário acrescentar que Machado já estava casado, e que
foi após o casamento que surgiram as crises de epilepsia, ou histéricas epileptiformes, o que
não é possível afirmar com certeza. No capítulo II, em que fala sobre o emplasto, Brás Cubas
apresenta-o como destinado a ser um remédio "anti-hipocondríaco, destinado a aliviar a nossa
melancólica humanidade" (MPBQ p. 416). Se nos lembrarmos que a melancolia está sempre
referida a uma perda - o que teria perdido Machado? Teria perdido as ilusões? As ilusões do
amor? A vida íntima sem filhos? Teria se desiludido da sexualidade? Talvez a racionalizasse
na sensualidade destas mulheres sedutoras: Marcela, Virgília, Sofia, Capitu, etc. Não o
sabemos... Conjecturemos apenas... Era um lascivo como o disse de vários personagens, e,
se não lhe agradava o exercício do pecado, gozava, pondo os personagens a pecar.
Como o livro começa pela morte do autor, ele mesmo se cognomina um autor defunto, e a
presença de Virgília incrédula ante a morte do amante se faz notar, já no enterro, pelo
padecimento maior que o dos parentes. Após esta cena, vem a visita ao moribundo, que
recordou: "Tinha 54 anos, era uma ruína, uma imponente ruína ( ... ) nos amamos, ela e eu,
muitos anos antes" (MPBC, p. 419). Nestas apresentações de Virgília, não só é o leitor
convidado a conhecê-la, bem como é introduzido nesta filosofia cética e proustiana:
Machado vai introduzindo o leitor na paixão e na amargura, vai de início apresentando a vida
como ela é, o realismo do destino, o destino anatômico de Freud apud Napoleão. Vai tentando
desencantar os discursos dos amantes, dos amores e das dores, e que, se estão condenados
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à anatomia, não é para que não possam aproveitar o momento presente, mas para saberem
que na recherche du temps perdu se goza com mais serenidade - é melhor porque não dói. A
elucubração sobre a vida, passados os anos, é dura e de difícil digestão - é o realismo
cético -, não há intensidade amorosa na velhice. É o que diz um descrente Machado. Lúcia
Miguel Pereira (1937) afirmava que Oliveira Lima havia privado com Machado, e dizia que o
personagem Brás Cubas era "a fotografia da sua alma" (p. 192).
"Quem diria? De dous grandes namorados, de duas paixões sem freio, nada mais havia
ali, vinte anos depois; havia apenas dous corações murchos, devastados pela vida e
saciados dela, não sei se em igual dose, mas enfim saciados" (MPBC, p. 420).
A moral do século XIX julgava o adultério feminino como algo muito mais grave do que o
cometido pelos homens. A lei era draconiana para com as mulheres, que poderiam, em alguns
casos, ser mortas por seus maridos. O imaginário da época acalentava a possibilidade da
fuga; amor proibido e fuga vinham juntos em oposição ao tema da honra e do sangue. A honra
manchada deveria, obviamente, ser lavada em sangue, como uma satisfação à sociedade
chauvinista, bem como um exemplo àquelas que pretendiam não observar os ditames da
cultura. Não havia muita escolha para a dita mulher desonrada - fugir ou morrer -, dilema ao
qual ficavam restritos os amantes.
- De quê?
- De fugir. Iremos para onde nos for mais cômodo, uma casa grande ou pequena, à tua
vontade, na roça ou na cidade, ou na Europa, onde te parecer, onde ninguém nos
aborreça, e não haja perigos para ti, onde vivamos um para o outro... Sim? fujamos.
Tarde ou cedo, ele pode descobrir alguma cousa e estarás perdida... ouves? perdida...
morta,.. e ele também, porque eu o matarei, juro-te... ( ... ).
- Não escaparíamos talvez; ele iria ter comigo e matava-me do mesmo modo" (MPBC, p.
480).
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Pode-se ver, no famoso livro V das Ordenações Filipinas26, que o marido tinha o direito de
matar sua mulher caso a encontrasse com outro.
Achando o homem casado sua mulher em adultério, licitamente poderá matar assim ela
como o adúltero, salvo se o marido for peão e o adúltero fidalgo ou nosso desembargador, ou
pessoa de maior qualidade. Porém, quando matasse alguma das sobreditas pessoas,
achando-a com sua mulher em adultério, não morrerá por isso mas será degredado para
África com pregão na audiência pelo tempo que aos julgadores bem parecer, segundo a
pessoa que matar, não passando de três anos.
1 - E não somente poderá o marido matar a sua mulher e o adúltero que achar com ela
em adultério, mas ainda os pode licitamente matar sendo certo que lhe cometeram
adultério; e entendendo assim provar, e provando depois o adultério por prova lícita e
bastante conforme o direito, será livre sem pena alguma, salvo nos casos sobreditos,
onde serão punidos segundo acima dito é" (Lara, Silvia H., Ordenações Filipinas, 1999,
p. 151).
Trabalhar sobre o tema do adultério nem sempre era uma tarefa muito fácil, visto que, ainda
dominados pela moral preconizada pelas Ordenações, o homem novecentista não via com
bons olhos tal assunto ser colocado ao alcance de senhoras distintas ou de núbeis ingênuas.
Caso semelhante ao de Flaubert que, em 1856, iniciou a publicação, em capítulos, de
Madame Bovary na Revue de Paris, Machado de Assis publicava, em 1880, na Revista
Brasileira, as Memórias póstumas de Brás Cubas, também em capítulos. Ambos trataram da
traição feminina, contudo, o escritor brasileiro imprimiu ao texto um tom de humor e cinismo às
relações humanas que caracterizavam a alta burguesia carioca. Caracterizou, através dos
personagens, as mais corriqueiras situações do ser humano, apresentou-o através de seus
mais comezinhos desejos, das situações mais inesperadas e mesquinhas. Surgiu, como disse
Lúcia Miguel Pereira (1937), "uma piedade irônica e indulgente" (p. 194), e Brás Cubas foi "o
primeiro dos tipos mórbidos em que Machado extravasou as próprias esquisitices de
nevropata" (p. 195).
A moral burguesa do século XIX apresentava o adultério feminino como algo abominável. Daí,
26 Omais bem feito e duradouro código legal português publicado com o pomposo título de Ordenações e leis do reino de
Portugal, recopiladas por mandado do mui alto, católico e poderoso rei Dom Felipe, o primeiro, foi promulgado em 1603,
vigorando plenamente no Brasil até 1830. O livro V é inteiramente dedicado ao direito penal.
56
ao colocar a bela Virgília numa posição de trair o marido, depreende-se que Machado
pretendia abordar um campo delicado para as hostes masculinas. Virgília não só é descrita
como adúltera, como terá seu egoísmo e ambição como defeitos do seu caráter destacados.
Sua posição social, suas aspirações a um título de nobreza governam a cena.
Virgília replicou:
Uma cena na qual a hipocrisia e o cinismo estão sempre presentes em uma mulher que,
apesar de conseguir amar, não descurava das vantagens que a vida conjugal lhe
proporcionava: respeitabilidade, posição social, dinheiro, etc. Não foi à toa que Machado
muitas vezes disse, através de seus personagens: nem sempre verdade e vantagem cami-
nham juntas. Além de mantê-la, aos olhos da moral social, denegrida, ele ainda a colocou
como uma mulher com certa aversão27 à maternidade, pois esta poderia comprometer-lhe o
corpo e a vida social, "Era medo do parto e vexame da gravidez. Quanto ao vexame,
complicava-se ainda da forçada privação de certos hábitos da vida elegante" (MPBC, p. 507).
A situação é levada a extremos por Machado, ao compor no seu entrecho um quadro de uma
vida paralela em que o casal Brás e Virgília chegam a ter casa montada, inclusive com uma
criada. Se hoje a situação de uma mulher bem casada ter casa com outro homem já seria
calamitosa e inaceitável, imaginemos para a época.
O tema do adultério é logo insinuado no capítulo VI, no qual Machado deixa entrever que o
encontro tem algo de estranho, de proibido - "podíamos falar um ao outro, sem perigo"
(MPBC, p. 420). Como o romance começa pela morte do autor defunto, este capítulo inicial
refere-se à visita que faz Virgília a Brás Cubas em seus últimos dias. Machado, nesta cena,
também enfatiza a questão das conveniências sociais, a qual permeará toda a sua
obra -"Estou velha! Ninguém mais repara em mim. Mas, para cortar dúvidas, virei com o
27 Certaaversão - No início do romance Virgília tem um filho com Lobo Neves e somente ao final do texto Machado vai
esclarecer as restrições frente à maternidade.
57
Nhonhô" (MPBC, p. 421). Nhonhô era o filho da nossa dama com Lobo Neves, o qual, como
disse Brás Cubas, durante muito tempo "fora cúmplice inconsciente de nossos amores"
(MPBC, p. 420). Um filho em qualquer cena empresta-lhe uma lisura de intenções, na medida
em que o apelo à função materna sempre traz a suposição da maternidade como paradigma
da fidelidade. O pai pode ser sempre traído, mas nunca em presença do filho. Contudo a
ironia machadiana avilta o próprio sentido da mulher-mãe, fazendo imperar a mulher-
desejante, a da vida imaculada por ser senhora do seu corpo e das suas fantasias, e que
pode trair, inclusive, em presença do filho - e até enganá-lo de forma dissimulada. A
hipocrisia, até a das mães, era apresentada de forma impiedosa:
"Virgília estava serena e risonha, tinha o aspecto das vidas imaculadas. Nenhum olhar
suspeito, nenhum gesto que pudesse denunciar nada; uma igualdade de palavra e de
espírito, uma dominação sobre si mesma, que pareciam e talvez fossem raras. Como
tocássemos, casualmente, nuns amores ilegítimos, meio secretos, meio divulgados, vi-a
falar com desdém, e um pouco de indignação da mulher de que se tratava, aliás sua
amiga. O filho sentia-se satisfeito, ouvindo aquela palavra digna e forte, e eu perguntava
a mim mesmo o que diriam de nós os gaviões, se Buffon tivesse nascido gavião..."
(MPBC, p. 420).
Sabemos que na biblioteca de Machado não foi encontrado nenhum texto de Freud. Contudo,
principalmente em Brás Cubas, a solução para o casamento de interesses é a mesma que
apresentou Freud, em 1908, para a cura das doenças nervosas decorrentes do casamento - a
infidelidade conjugal. Virgília, a heroína infiel, é descrita aos dezesseis anos como talvez a
mais atrevida criatura da nossa espécie, e, com certeza, a mais voluntariosa, pois, apesar de
toda a educação repressiva que impedia que as mulheres se ocupassem de temas sexuais,
ela não seguia essas recomendações, ou as cumpria dentro do possível. A curiosidade
sexual, na época, era algo pouco feminino e um claro indício de um comportamento
pecaminoso; tinha que ser afastada do campo do pensamento da mulher. Quando muito,
poderia vir atrelada à noção de um sexo de características simplesmente
reprodutoras - aspiração à maternidade, não ao sexo prazeroso. Este tipo de ignorância a que
eram condenadas as mulheres estendia-se, além do campo sexual. "Assim a educação as
afasta de qualquer forma de pensar, e o conhecimento perde para elas o valor" (Freud, 1908,
p. 203). Não é à toa que Machado, apesar de preparar o terreno para as ações futuras de
Virgília, ao dizê-la "atrevida e voluntariosa", também nos diz: "faceira, ignorante, pueril"
(MPBC, p. 450). Dentro deste contexto de desvalorização do personagem feminino, a mãe de
Brás Cubas seguia a norma: "uma senhora fraca, de pouco cérebro e muito coração", aliados
58
ao principal ingrediente: "o marido era na terra o seu Deus" (MPBC, p. 428). Uma tal mãe não
dignificaria muito a figura feminina, daí Brás nunca ter podido escolher uma mulher para,
efetivamente, se casar.
Conforme afirmou Freud em Um tipo especial de escolha de objeto (19 10), existem certas
condições necessárias ao amor, cuja combinação é pouco compreensível, e, por vezes, só
podem ser entendidas à luz da psicanálise. Uma das precondições de que falava Freud era a
de que um certo tipo de escolha amorosa feita pelos homens estava intimamente vinculado à
possibilidade de "existir uma terceira pessoa prejudicada" (p. 150) Este tipo de escolha implica
que uma mulher solteira, sem compromisso, não produz o mesmo tipo de desejo que uma que
esteja apalavrada, noiva ou casada. Seu interesse prende-se à existência de um terceiro, que
"possa reivindicar direitos de posse" (p. 150). Em alguns casos mais evidentes, uma mulher
pode não despertar nenhuma intenção enquanto estiver livre e desimpedida, contudo
"toma-se objeto de sentimentos apaixonados, tão logo estabeleça um desses relacionamentos
com outro homem" (p. 150). É um tipo de sintoma que traz o gozo da vitória narcísica sobre o
pai, a ilusória vitória que faz o amante sentir-se, de forma inconsciente, não mais um terceiro
excluído - o excluído é outro. Obviamente que qualquer escolha amorosa está marcada pelo
objeto original desejado e interditado, todavia a satisfação não pode jamais ser
alcançada, daí a seqüência de objetos substitutivos que determi nadas pessoas colocam em
suas vidas. Estão sempre na ilusão de que vão, em determinado momento, encontrar o
parceiro ideal, esquecendo-se de que, ideal, só o objeto impossível. Esse deslizamento
metonímico dodesejo é nesses casos levado ao extremo, já que a própria condição de manter
uma série infindável de parceiros implica em não se ser fiel a nenhum; no entanto, mantém-se
a fidelidade ao primeiro, que está fora da série.
Brás Cubas foi caracterizado por Machado corno uma criança agressiva, era chamado de
menino diabo. Era como contava: "um do, mais malignos do meu tempo, arguto, indiscreto,
traquinas e voluntarioso" (MPBC, p.427). Maltratava o moleque Prudêncio, fazendo-o de
cavalo, montava no dorso do escravo e fustigava-o com uma vara. Dava-lhe voltas; e a tudo o
escravo obedecia gemendo: "ai, nhonhô - ao que eu retorquia: Cala a boca, besta!" (MPBC, p.
427). Ao crescer tornou-se "opiniático, egoísta e algo contemptor dos homens" (MPBC, p.
427). Outrossim, interessou-se pela injustiça humana - "inclinei-me a atenuá-la, a explicá-la, a
classificá-la por partes, a entendê-la, não segundo um padrão rígido, mas ao sabor das
circunstâncias e lugares" (MPBC, p. 427-8). Seu pai não punha limites às suas diatribes, ao
contrário, achava graça, ao mesmo tempo que lhe incutia uma moralidade baseada nas
aparências, na regência do juízo do outro: "Teme a obscuridade ( ... ) Olha que os homens
59
valem por diferentes modos, e que o mais seguro de todos é valer pela opinião dos outros
homens" (MPBC, p. 45 1). Sobre sua mãe sabemos que era uma mulher fraca, submissa,
pouco inteligente e religiosa. Em suma, havia tido uma educação "no geral viciosa,
incompleta, e, em partes negativa" (MPBC, p. 428).
"Como para Machado o ser humano é imperfeito por natureza (aqui é oportuno lembrar
as palavras do narrador de Esaú e Jacó: a ocasião faz o furto, o ladrão já nasce feito), a
construção de suas personagens femininas se faz a partir desse princípio ( ... ) Machado
carrega nas tintas do ceticismo, construindo personagens ambíguas, dissimuladas,
quando não declaradamente traidoras" (Xavier, E., 1994, p. 53).
"Em uma esfera mais reflexiva, a mesma literatura que apontava o amor como a maior
realização da vida feminina, dava conta da pobreza e da frustração que advinha de se
jogar todas as fichas no casamento, e revelava o desejo ainda disforme de muitas mu-
lheres, de se tomarem sujeitos de suas próprias vidas, "autoras" de suas aventuras
pessoais, em consonância com os ideais de autonomia e liberdade individual que a
modernidade há muito tempo vinha oferecendo aos homens" (Kehl, M. R. 1998, p. 118).
A literatura machadiana contribuía para a antecipação do novo mundo feminino. Esse tipo de
28 Esteromance foi traduzido e editado em 1938 no Rio de Janeiro, contudo, pode-se afirmar .que é uma literatura do início
do século.
60
leitura levava a mulher a antecipar sua vida, identificando-se com as heroínas e anti-heroínas.
Virgília era o tipo de mulher que permitia uma fácil identificação das leitoras, já que, como a
maioria das mulheres de sua época, vivia reclusa, tinha pouco estudo, e sua principal meta
era um casamento com o que se chamava um bom partido; se houvesse amor, melhor, mas
não era o principal. A questão do amor era secundária, como o foi durante muito tempo. Era
um luxo que muitas mulheres não tinham. A solução encontrada por Machado foi diferente.
Não encontramos crises histéricas ou paralisias, Machado fez Virgília apaixonar-se por Brás,
criando assim uma possibilidade de cisão - amor/casamento - ou seja, pelo fato de essas
coisas não andarem juntas, não quer dizer que não se possa tê-las. É verdade que os riscos
impõem certos sobressaltos, contudo, entre ter um amante e um sintoma histérico, o autor
preferiu o caminho do amante. É melhor gozar na cama do que no sintoma. O outro lugar de
gozo seria receber do imperador, através do marido, o título de marquesa. É um outro tipo de
gozo, um gozo narcísico em que ao procurar a admiração e a inveja do outro, através dessa
insígnia fálica, leva-se ao êxtase alguém que valoriza enormemente o juízo do outro,
inflacionando de forma vã e chã o seu narcisismo secundário.
Conforme afirmava Freud em Moral sexual "civilizada " e doença nervosa moderna (1908), a
chamada moral sexual dupla, em referência a uma diferença de moralidade entre homens e
mulheres, era a prova mais evidente da impossibilidade de o grupo social obedecer aos
preceitos que estabelecia. Ou seja, a infidelidade feminina, apesar de moralmente
inadequada, era uma solução, que seria mais facilmente utilizável dependendo do tipo de
educação que tivesse recebido uma jovem.
" ... a cura das doenças nervosas decorrentes do casamento estaria na infidelidade
conjugal; porém, quanto mais severa houver sido a educação da jovem e mais
seriamente ela se submeter às exigências da civilização, mais receará recorrer a essa
saída; no conflito entre seus desejos e seu sentimento de dever, mais uma vez se
refugiará na neurose. Nada protegerá sua virtude tão eficazmente quanto uma doença.
Dessa forma o matrimônio, que é oferecido ao instinto (pulsão) sexual do jovem
civilizado como uma consolação, mostra-se inadequado mesmo durante o seu decurso,
não havendo sequer possibilidades de que possa compensar as privações anteriores" (p.
200).
Segundo Freud (1929-30), o ser humano está sempre em busca de "poder, sucesso e
riqueza" (p. 81), bem como admira e inveja os que possuem aquilo a que aspira. Ele é
61
governado por paixões, com um ego que mantém relações conflituosas com o id e o
superego. Um ego a princípio de prazer e posteriormente, tendo que se render às imposições
do princípio de realidade, provocando infindáveis frustrações e sofrimentos. Surge para o
homem a necessidade de fazer o ego afastar-se de todo o sofrimento e desprazer, bem como
de ter sensações de prazer de modo mais amplo - ser feliz. Contudo, a observação nos
mostra que esses momentos de satisfação plena são fortuitos, são, "por sua natureza,
possível apenas como uma manifestação episódica" (p. 95). Os sofrimentos nos ameaçam a
partir de três direções: do nosso próprio corpo, do mundo externo e das relações com os
outros homens. Conforme lembrava Freud, este último, o das relações com os outros, era o
mais penoso de todos. Sabemos que um dos maiores sofrimentos a que está condenado o
homem é a perda daquele a quem ama.
"... ele se tomou dependente, de uma forma muito perigosa, de uma parte do mundo
externo, isto é, de seu objeto amoroso escolhido, expondo-se a um sofrimento extremo,
caso fosse rejeitado por esse objeto ou o perdesse através da infidelidade ou da morte"
(p. 122).
A civilização vai insistir, na questão das restrições quanto ao amor e ao gozo sexual, na
legitimidade e na monogamia. Para ela, os amores sexuais só podem encontrar sua
realização numa relação de vínculo único, em que fica ressaltada a propagação da espécie
em detrimento do puro prazer. Contudo, sabemos que a imposição de qualquer regra implica
em sua desobediência latente. Um casal apaixonado não necessita de um filho para torná-lo
feliz, já dizia Freud em 1930. Entretanto, ao lado dessa disposição amorosa presidida por
Eros, trabalha, em silêncio, envolvida com esse mesmo Eros, Tanatus. A disposição agressiva
já estava assinalada há muito por Freud que, em O instinto gregário (1921), afirmava que, na
base da fraternidade, estava o ódio, a rivalidade narcísica, base dos quadros paranóides,
como também, em O mal-estar na civilização (1929-30), dizia que o outro era alguém com
uma grande dose de agressividade, que poderia atacá-lo, escravizá-lo, abusar do seu corpo,
humilhá-lo, torturá-lo e matá-lo - "Homo homini lupus!" (p. 133).
Brás Cubas é rejeitado por Virgília em favor de Lobo Neves, contudo sua ferida narcísica é
suturada quando se torna amante da mulher do rival. O que a princípio aparecera como
despeito e mal-estar, tornou-se satisfação e vitória. O preceito da luta e da competição
inerentes à espécie humana se faz presente - "a hostilidade primária dos seres humanos" (p.
134).
62
"O caso dos meus amores andava mais público do que eu podia supor ( ... ) Virgília era
um belo erro, e é tão fácil confessar um belo erro! Costumava ficar carrancudo, a
princípio, quando ouvia alguma alusão aos nossos amores; mas, palavra de honra!
Sentia cá dentro uma impressão suave e lisonjeira..." (MPBC, p. 496).
"pessoas que habitualmente se permitem fazer qualquer coisa má que lhes prometa
prazer, enquanto se sentem seguras de que a autoridade nada saberá a respeito, ou
não poderá culpá-las por isso; só têm medo de serem descobertas" (Freud, 1929-30, p.
63
148).
Brás e Virgília têm medo de que Lobo Neves saiba do caso amoroso, contudo, ao saber do
romance, o marido não quer acreditar, a princípio; todavia, mesmo sabendo, através de uma
carta anônima, não consegue agir, com medo da crítica social:
" ... a suspeita era pública. Esse homem, aliás intrépido, era agora a mais frágil das
criaturas. Talvez a imaginação lhe mostrou, ao longe, o famoso olho da opinião. A fitá-lo
sarcasticamente, com ar de pulha; talvez a boca invisível lhe repetiu ao ouvido as chufas
que ele escutara ou dissera outrora. Instou com a mulher que lhe confessasse tudo,
porque tudo lhe perdoaria" (MPBC, p. 508).
Machado apresenta Lobo Neves como um homem que, em virtude do medo de ser
publicamente ridicularizado, não consegue reagir à traição da mulher, aceita o que o destino
lhe impôs. Isto fez com que as preocupações de Brás fossem aos poucos diminuindo. Como
assinalava Freud, enquanto tudo corre bem com um homem, a sua consciência é lenitiva e
permite que o ego faça todo o tipo de coisas. Entretanto, quando o infortúnio lhe sobrevém,
ele busca sua alma, reconhece sua pecaminosidade, eleva as exigências de sua consciência,
impõe-se abstinência e se castiga com penitências. Curva-se ante o superego, o destino e o
agente parental. Entretanto, o superego, que fustiga o ego pecador e fica à espreita para
poder castigá-lo de uma forma exemplar tão logo seja possível, ao que parece não se
manifestou muito claramente, produziu apenas uma certa ansiedade nos amantes. Para Brás,
o fim do romance com Virgília apenas provoca uma sensação de perda: "a partida de Virgília
deu-me uma amostra da viuvez" (MPBC, p. 520). No entanto, ao que parece, não foi um luto
penosamente elaborado.
Há um comentário que não pode deixar de ser feito, pois denota de forma clara, o quanto
Machado conseguia, através de uma forma. extremamente concisa, mostrar as diferenças
nesse tipo de romance.
"E com tanto maior prazer o confesso, quanto que as mulheres é que têm fama de
indiscretas, e não quero acabar o livro sem retificar essa noção do espírito humano. Em
pontos de aventura amorosa, achei homens que sorriam, ou negavam a custo, de um
modo frio, monossilábico, etc., ao passo que as parceiras não davam por si, e jurariam
aos Santos Evangelhos que era tudo uma calúnia. A razão desta diferença é que a
mulher (salva a hipótese do capítulo CI e outras) entrega-se por amor, ou seja o
64
amor-paixão de Stendhal, ou o puramente físico de algumas damas romanas, por
exemplo, ou polinésias, lapônias, cafres, e pode ser que outras raças civilizadas; mas o
homem, - falo do homem de uma sociedade culta e elegante, - o homem conjuga sua
vaidade ao outro sentimento. Além disso (e refiro-me sempre aos casos defesos), a
mulher, quando ama outro homem, parece-lhe que mente a um dever, e portanto tem de
dissimular com arte maior, tem de refinar a aleivosia; ao passo que o homem,
sentindo-se causa da infração e vencedor de outro homem, fica legitimamente
orgulhoso, e logo passa a outro sentimento menos ríspido e menos secreto, - essa boa
fatuidade, que a transpiração luminosa do mérito" (MPBC, p. 531-2).
Machado não se ateve às questões morais, pelo contrário, critica-as por todo o texto. Ele
torna-se importante, neste final, pela agudeza da percepção dos aspectos da subjetividade do
ser. Faz sobre o homem um juízo compreensivo, em detrimento de um juízo crítico.
"... mais de uma dama inclinou diante de mim a fronte pensativa, ou levantou para mim
os olhos cobiçosos. De todas porém a que me cativou logo foi uma... não sei se diga;
65
este livro é casto, ao menos na intenção; na intenção é castíssimo. Mas vá lá; ou se há
de dizer tudo ou nada. A que me cativou foi uma dama espanhola, Marcela, a linda
Marcela, como lhe chamavam os rapazes do tempo. ( ... ) Marcela não possuía a
inocência rústica, e mal chegava a entender a moral do código. Era boa moça, lépida,
sem escrúpulos, um pouco tolhida pela austeridade do tempo, que não permitia arrastar
pelas ruas os seus estouvamentos e berlindas; luxuosa, impaciente, amiga de dinheiro e
de rapazes. ( ... ) um corpo esbelto, ondulante, um desgarre, alguma cousa que nunca se
acha nas mulheres puras" (MPBC, p. 433).
Em 1910, Freud, em Um tipo de escolha de objeto feita pelos homens, afirmou que a
respeitabilidade e a pureza são atributos maternos, são qualidades do objeto interditado.
" ... a mulher casta e de reputação irrepreensível nunca exerce atração que a possa levar à
condição de objeto amoroso, mas apenas a mulher que é, de uma ou outra forma,
sexualmente de má reputação, cuja fidelidade e integridade estão postas em dúvida" (p.
150).
Explicitando melhor: a qualidade do respeitável, do puro, é uma qualidade que o ser humano
oferece a sua instância superegóica, visando disfarçar e negar o incontrolável desejo que o
objeto materno lhe proporciona. A paixão arrebatadora pelo ser maternal necessita de uma
sublimação, sendo necessário dar outro destino a essa pulsão. O desejo intenso sofre uma
repressão, impossibilita totalmente o incesto, mantendo a libido que se fixou nesse objeto
primário, inconsciente. Novas fantasias são assim erigidas, dirigindo as cargas libidinais a
objetos substitutos. O dito popular de que a mulher deve ser uma prostituta na cama é
ilustrativo dessa cisão a ser feita, visando a se poder usufruir do sexo sem o fantasma do
desejo pela mãe.
Contudo, nunca é demais lembrar que, mesmo em nossa cultura cosmopolita do século XX,
há bem pouco tempo, por volta dos anos cinqüenta, as escolas religiosas das grandes capitais
brasileiras não aceitavam filhos de casais desquitados. Como sempre, o peso maior recaía
sobre a mulher desquitada. Esta tornava-se o símbolo da ameaça sexual, sendo sua entrada
vetada em lares distintos, honestos e católicos.
Aos homens era permitido, caso tivessem uma esposa frígida ou se sentissem entediados,
recorrer às relações sexuais com prostitutas. Estas sempre ficavam, no discurso masculino,
numa posição desqualificada. No entanto, por outro lado, eram mulheres que, pelos mais
diversos motivos, não haviam se submetido à autoridade patriarcal, não haviam se rendido à
domesticação. Apesar de, no discurso masculino, elas se apresentarem rebaixadas e sem
nenhum valor, ao mesmo tempo, geram uma ameaça exatamente por terem contestado as
normas vigentes. Ou seja, elas passam, no imaginário masculino, a ser um objeto desejado e
temido.
Entretanto, num exame mais profundo do psiquismo dessas mulheres que se dedicam à
prostituição, percebe-se que a grande maioria é originária de classes que não tiveram
oportunidades de acesso aos bens da cultura e, como tal, poucas são as revolucionárias que
apregoa Roberts. A maioria quer um marido, um lar e filhos - aspira a ser aceita como esposa
e honesta, sair da dita (pelos homens) vida fácil.
A prostituição parece ser mais uma forma de se submeter às exigências de uma sociedade
machista e exploradora, que encontra nas mulheres o barro com que molda um brinquedo
67
para os homens. Conforme disse Peter Gay, durante o século XIX a prostituição estava pre-
sente em quase todos os lugares, nas ruas, nos cafés, nos teatros - "o sexo venal era uma
presença conspícua e perturbadora" (Gay, Peter. 1986, p. 305). Naquele tempo, contudo, a
prostituição era uma atividade que envolvia uma grande parcela de fantasia, alimentando um
imaginário social em que predominavam, no chamado demi-monde, fantasias de grandes
prostitutas, maravilhosas mulheres que ganhavam dinheiro fácil junto a príncipes e
banqueiros. Estas grandes horizontales de fato existiam, contudo sua carreira não era tão
cintilante quanto preconizavam os comentários da época. Esses discursos eram formas
disfarçadas de se apresentar a questão: na verdade, predominava uma classe de mulheres
que havia iniciado sua vida de prostituição por volta dos quatorze anos, após a menarca. Um
negócio que oferecia um largo espectro de atividades, para os mais diferentes gostos e
bolsos. No entanto, infelizmente, como disseram G. S. Rousseau e Roy Porter (1987), havia
aspectos que sempre estavam presentes nesse tipo de mundo: bebedeiras, crimes, cafetões,
ambientes inseguros, enfim, perigos de todas as ordens.
Marcela está mais para uma cortesã de luxo do que para uma prostituta de bordel, não sofre
as agruras de uma vida em que a tônica é uma série de sofrimentos: degradação psíquica,
prisões, alcoolismo, doenças venéreas, abortos, filhos indesejáveis e morte prematura. Tudo
isso é muito diferente do tipo de prostituta apresentada pela literatura machadiana. Talvez
Machado a tenha assim colocado em virtude não só do contexto de classe média alta em que
se situa Brás Cubas, como também porque se imagina que não era freqüentador de bordéis.
Conforme comentou Ingrit Stein (1984), o número de mulheres marginalizadas nos romances
de Machado é pequeno, estando presentes, de forma secundária, nos cinco primeiros
romances. A vida de Marcela não se parece muito com a vida da maioria das prostitutas no
Rio de Janeiro em 1822, onde grande parte não tinha aposentos para levar os clientes,
utilizava a hospedaria mais próxima ou a rua mesmo. Marcela vivia muito bem:
"A casa onde morava, nos Cajueiros, era própria. Eram sólidos e bons os móveis, de
jacarandá lavrado, e todas as demais alfaias, espelhos, jarras, baixela, - uma linda
baixela da índia, que lhe havia dado um desembargador. Baixela do diabo, deste-me
grandes repelões aos nervos. Disse-o muita vez à própria dona; não lhe dissimulava o
tédio que me faziam esses e outros despojos de seus amores de antanho" (MPBC, p.
435).
Conforme afirmou ainda o historiador Peter Gay, no decorrer do século XVIII, a prostituta teve
uma ascensão social, um novo papel na sociedade, em virtude de uma reorganização dos
68
papéis masculino e feminino quanto aos modelos de casamento e de criação dos filhos, bem
como também devido ao surgimento de cidades com mais de 500 mil habitantes. As mulheres
casadas que, inicialmente, "eram consideradas prostitutas em potencial" (p. 99) e
necessitavam ser vigiadas, foram deixando de sê-lo, ou seja, este papel social da mulher
começou a ganhar novos contornos. Alia-se o fato de que algumas moças solteiras
começaram a ir para as ruas trabalhar como prostitutas. Muitas moças tiradas das ruas de
Londres pelos juízes eram órfãs, filhas de pobres e que se iniciaram entre 12 e 14 anos,
muitas ficando grávidas ou doentes, devido aos tristes efeitos da prostituição.
Não se pode deixar de associar ao tema da prostituição um dos maiores fantasmas do mundo
dos homens - a impotência. Em suas Contribuições à psicologia do amor, Freud (1910)
assinalou que a impotência psíquica é um sintoma decorrente da impossibilidade de se
combinarem as correntes afetiva e sexual no amor, devido à pregnância das fantasias
incestuosas frente ao objeto do desejo atual. Essas fantasias, resultantes de severas fixações
infantis e da realidade do tabu do incesto, são uma "condição universal da civilização e não
uma perturbação circunscrita a alguns indivíduos" (p. 167). Contudo, se todos os homens
estão condenados a este sintoma, a impotência, que fala de uma permanente ameaça de
castração, sabemos que alguns sucumbem de forma muito mais ruidosa e perturbadora que
outros. Devido à intensidade das fantasias, não puderam encontrar uma força egóica
suficientemente contendora para mantê-las, pelo menos, a maior parte do tempo, afastadas
da consciência, ou melhor, da pré-consciência, já que a sua ação não é assim tão clara. Ele
fica impotente quando frente ao objeto, algo o remete ao passado, fazendo-o retornar a
fantasias que deveriam ter permanecido inconscientes. Fantasias que surgem em virtude de
algum enganchamento do objeto do desejo atual no objeto arcaico incestuoso.
Isso ocorre com aqueles que, quando amam, não podem desejar, e quando desejam, não
amam - são aqueles que levam muito longe a neurose do amor à prostituta. Amar as
prostitutas é mais seguro, dizem os homens ao imaginarem estar protegendo a instituição do
matrimônio e a família. Elas nada exigem, paga-se e terminou; contudo, não se dão conta de
que a única e importante proteção que oferecem as prostitutas é ao desejo incestuoso.
Brás Cubas apaixonou-se, ainda jovem, por Marcela, uma prostituta a quem o pai
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ajudava a sustentar, numa clara condescendência para com o filho homem,
"... Era meu universo; mas, ai triste! não o era de graça. Foi-me preciso coligir dinheiro,
multiplicá-lo, inventá-lo. Primeiro explorei as larguezas de meu pai; ele dava-me tudo o
que eu lhe pedia, sem repressão, sem demora, sem frieza; dizia a todos que eu era
rapaz e que ele o fora também" (MPBC, p. 435).
"Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis; nada menos. Meu pai
logo que teve a aragem dos onze contos, sobressaltou-se deveras; achou que o caso
excedia as raias de um capricho juvenil.
- Desta vez, disse ele, vais para a Europa; vais cursar uma Universidade, provavelmente
Coimbra; quero-te para homem sério e não para arruador e gatuno. E como eu fizesse
um gesto de espanto: - Gatuno, sim, senhor; não é outra cousa um filho que me faz
isto..." (MPBC, p. 437).
Extravagâncias eram aceitas, mas até certo ponto, porque essas extravagâncias financeiras
podiam ser indícios de paixões juvenis perigosas, indesejáveis, inconseqüentes. "Toda a
natureza bradava que era preciso levar Marcela comigo" (MPBC, p. 438). Sabemos que
jovens apaixonados, costumeiramente, não avaliam a situação com critérios sensatos.
Necessitam criar a ilusão de serem amados, imaginam-se amados com a mesma intensidade
juvenil com que amam. Negam o numerário despendido, através do seu protesto viril, nos
grandiosos presentes que oferecem à suas amadas em seus romances, como nos mostra
Machado.
Estas paixões adolescentes também podem muitas vezes levar a soluções exasperadas,
inflacionando neste quadro tragicômico o lado trágico.
"Três dias depois segui barra fora, abatido e mudo. Não chorava sequer; tinha uma idéia
fixa... Malditas idéias fixas! A dessa ocasião era dar um mergulho no oceano, repetindo o
nome de Marcela" (MPBC, p. 439).
"Ao fundo, por trás do balcão, estava sentada urna mulher, cujo rosto amarelo e
bexiguento não se destacava logo, à primeira vista; mas logo que se destacava era um
espetáculo curioso. Não podia ter sido feia; ao contrário, via-se que fora bonita, e não
pouco bonita; mas a doença e uma velhice precoce, destruíram-lhe a flor das graças. As
bexigas tinha sido terríveis; os sinais, grandes e muitos, faziam saliências e encamas,
declives e aclives, e davam uma sensação de lixa grossa. Eram os olhos a melhor parte
do vulto, e aliás tinham uma expressão singular e repugnante, que mudou, entretanto,
logo que eu comecei a falar. Quanto ao cabelo, estava ruço e quase tão poento como os
portais da loja. Num dos dedos da mão esquerda fulgia-lhe um diamante. Crê-los-eis,
pósteros? essa mulher era Marcela" (MPBC, p. 458).
E, como que para fechar o capítulo referente a urna prostituta em fim de carreira, Machado,
para que o leitor não se envolva em um clima piedoso a respeito da personagem, não fique
compungido frente à sorte de Marcela, ao tornar conhecimento do mal-estar de Brás Cubas
71
diante do velha paixão juvenil - "eu me sentia pungido e aborrecido ( ... ) e ansiava por me ver
fora daquela casa" (MPBC, p. 459), deu um toque final enfatizando não mais o pecado da
luxúria, mas o da cobiça.
"Disse ela que desejava ter a proteção dos conhecidos de outro tempo; ponderou que
mais tarde ou mais cedo era natural que me casasse, e afiançou que me daria finas jóias
por preços baratos. Não disse preços baratos, mas usou uma metáfora delicada e
transparente. Entrei a desconfiar que não padecera nenhum desastre (salvo a moléstia),
que tinha o dinheiro a bom recado, e que negociava com o único fim de acudir à paixão
do lucro, que era o verme roedor daquela existência; foi isso mesmo que me disseram
depois" (MPBC, p. 459).
Marcela "mal chegava a entender a moral do código" (MPBC, p. 433). Código criado pelos
homens que permitiam que se estabelecesse, de forma ambígua, a prostituição. Numa
sociedade que valorizava o sexo procriativo vinculado à família, necessitava-se de mulheres
que pudessem oferecer prazer sexual aos jovens solteiros e aos casados insatisfeitos.
"Porque não tem função procriadora, a prostituição (como as relações sexuais fora do
casamento) é socialmente condenada. Ao mesmo tempo, porém, é tolerada e até
mesmo estimulada nas sociedades que defendem a virgindade das meninas púberes
solteiras, de um lado, mas que, de outro lado, precisam resolver as frustrações sexuais
dos jovens solteiros e dos homens que se consideram mal casados ou que foram
educados para jamais confundirem suas honestas esposas com amantes voluptuosas e
desavergonhadas" (Chauí, M, 1984, p. 80).
Freud, em 1910, trouxe uma interessante contribuição para que se pudesse entender um
pouco mais a respeito das escolhas de objeto que fazem os homens, notadamente no que diz
respeito ao que chamou o amor à prostituta. Sabemos que, conscientemente, os adultos
pensam em suas mães como pessoas de conduta ilibada, de moral inatacável. Em
conseqüência disso, uma das mais desagradáveis ofensas é ser chamado por outrem de filho
da puta. No homem, o seu mundo interno também por vezes o ataca, ao colocar em sua
fantasia algum aspecto luxurioso de sua mãe. Contudo, Freud irá investigar o
desenvolvimento desses dois complexos, a relação inconsciente que está presente, de forma
constante, na fantasia do homem: o da mãe e o da prostituta, que estão em oposição
inclusiva. Desde a pré-puberdade, quando começa a receber informações sexuais, se bem
que da forma mais crua e desordenada, um menino se rebela contra a idéia de que seus pais
72
fazem sexo. Este é um tema muitas vezes insuportável, já que o lança de forma muito
incômoda em seu próprio desejo incestuoso - e sabemos que nada é mais terrível que este
tipo de desejo. A solução dada por Sófocles a seu personagem é a daquele que se inflige um
castigo, se cegar, em virtude da prática incestuosa, algo tão hediondo! Ao ser iniciado nas
conversas e piadas de cunho sexual, o menino torna conhecimento de que existem mulheres
que vivem do sexo, o que lhe permite direcionar todo o seu mundo sexual fantasioso para este
tipo de possibilidade, fazendo com que, em oposição ao discurso adulto corrente, ele as veja
como desejadas e perigosas, ou, como disse Freud:
"... tão logo aprende que ele também pode ser iniciado por essas infelizes ( ... ) as
considera com um misto de desejo e horror. Quando, depois disto, já não pode mais
nutrir qualquer dúvida que tornem seus pais uma exceção às normas universais e
odiosas da atividade sexual, diz-se a si próprio, com lógica cínica, que a diferença entre
sua mãe e uma prostituta não tão grande, visto que, em essência, fazem a mesma coisa"
(1910, p. 154).
Machado de Assis havia percebido, de forma inconsciente, o que Freud (1912) afirmava a
respeito: a proibição da vida erótica das mulheres é comparável à necessidade que têm os
homens de depreciar seu objeto de escolha sexual - "...um corpo esbelto, ondulante, um
desgarre, alguma cousa que nunca se achara nas mulheres puras" (MPBC, p. 433) -, já que
os desejos pela mãe ao esbarrarem na lei da interdição o fazem, conscientemente e
inconscientemente, estabelecer uma separação entre a mãe e a prostituta. Lembremo-nos de
que a mãe de Brás Cubas era "uma senhora fraca, de pouco cérebro e muito coração, assaz
crédula, sinceramente piedosa" (MPBC, p. 428), nada denotando sensualidade - é para ser
amada sem ser desejada.
No curso da vida erótica, o ser humano, em virtude do interdito incestuoso, deverá modificar
seus desejos sexuais em relação aos pais, transformando-os em sentimentos afetuosos. Na
puberdade poderá surgir um deleite por mulheres a quem respeita, no caso dos homens, mas
que não o excitam, mostrando-se sequioso de sexo com as que não ama. Na esfera do amor,
verifica-se uma conjugação das correntes sensuais com as afetuosas, podendo-se medir a
seriedade do amor pelo exame das partes das pulsões sexuais, inibidas em seu objetivo. Nas
questões de amor, a idealização do objeto estará sempre presente - livre de toda crítica o
objeto é puro, é desejado pelos valores espirituais que possui; a sensualidade fica, em muitos
casos, francamente escamoteada. A idealização do objeto aponta para uma conjugação do
ego com o objeto.
73
Não podemos ser ingênuos e pensar que a prostituição é apenas uma invenção masculina.
Ela é uma oportunidade a mais que o homem encontra para purgar as sua fantasias edípicas.
A prostituição está a serviço, de forma totalmente inconsciente, do horror ao incesto. Uma
situação resolutiva na medida em que produz, como afirma Freud (1910), um "contraste agudo
entre a mãe e a prostituta" (p. 153).
Conforme afirmou ainda o historiador Peter Gay, no decorrer do século XVIII, a prostituta teve
uma ascensão social, um novo papel na sociedade, em virtude de uma reorganização dos
papéis masculino e feminino quanto aos modelos de casamento e de criação dos filhos, bem
como também devido ao surgimento de cidades com mais de 500 mil habitantes. As mulheres
casadas que, inicialmente, "eram consideradas prostitutas em potencial" (p. 99) e
necessitavam ser vigiadas, foram deixando de sê-lo, ou seja, este papel social da mulher
começou a ganhar novos contornos. Alia-se o fato de que algumas moças solteiras come-
çaram a ir para as ruas trabalhar como prostitutas. Muitas moças tiradas das ruas de Londres
pelos juizes eram órfãs, filhas de pobres e que se iniciaram entre 12 e 14 anos, muitas ficando
grávidas ou doentes, devido aos tristes efeitos da prostituição.
Não se pode deixar de associar ao tema da prostituição um dos maiores fantasmas do mundo
dos homens - a impotência. Em suas Contribuições à psicologia do amor, Freud (1910)
assinalou que a impotência psíquica é um sintoma decorrente da impossibilidade de se
combinarem as correntes afetiva e sexual no amor, devido à pregnância das fantasias
incestuosas frente ao objeto do desejo atual. Essas fantasias, resultantes de severas fixações
infantis e da realidade do tabu do incesto, são uma "condição universal da civilização e não
uma perturbação circunscrita a alguns indivíduos" (p. 167). Contudo, se todos os homens
estão condenados a este sintoma, a impotência, que fala de uma permanente ameaça de
castração, sabemos que alguns sucumbem de forma muito mais ruidosa e perturbadora que
outros. Devido à intensidade das fantasias, não puderam encontrar uma força egóica
suficientemente contendora para mantê-las, pelo menos, a maior parte do tempo, afastadas
da consciência, ou melhor, da pré-consciência, já que a sua ação não é assim tão clara. Ele
74
fica impotente quando frente ao objeto, algo o remete ao passado, fazendo-o retomar a
fantasias que deveriam ter permanecido inconscientes. Fantasias que surgem em virtude de
algum enganchamento do objeto do desejo atual no objeto arcaico incestuoso.
Isso ocorre com aqueles que, quando amam, não podem desejar, quando desejam, não
amam - são aqueles que levam muito longe a neurose do amor à prostituta. Amar as
prostitutas é mais seguro, dizem os homens ao imaginarem estar protegendo a instituição do
matrimônio e família. Elas nada exigem, paga-se e terminou; contudo, não se dão conta de
que a única e importante proteção que oferecem as prostitutas é ao desejo incestuoso.
Brás Cubas apaixonou-se, ainda jovem, por Marcela, uma prostituta a quem o pai ajudava a
sustentar, numa clara condescendência pai.. com o filho homem,
"... Era meu universo; mas, ai triste! não o era de graça. Foi-me preciso coligir dinheiro,
multiplicá-lo, inventá-lo. Primeiro explorei as larguezas de meu pai; ele dava-me tudo o
que eu lhe pedia, sem repressão, sem demora, sem frieza; dizia a todos que eu era
rapaz e que ele o fora também" (MPBC, p. 435).
"Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis; nada menos. Meu pai
logo que teve a aragem dos onze contos, sobressaltou-se deveras; achou que o caso
75
excedia as raias de um capricho juvenil.
- Desta vez, disse ele, vais para a Europa; vais cursar uma Universidade, provavelmente
Coimbra; quero-te para homem sério e não para arruador e gatuno. E como eu fizesse
um gesto de espanto: - Gatuno, sim, senhor; não é outra cousa um filho que me faz
isto..." (MPBC, p. 437).
Extravagâncias eram aceitas, mas até certo ponto, porque essas extravagâncias financeiras
podiam ser indícios de paixões juvenis perigosas, indesejáveis, inconseqüentes. "Toda a
natureza bradava que era preciso levar Marcela comigo" (MPBC, p. 438). Sabemos que
jovens apaixonados, costumeiramente, não avaliam a situação com critérios sensatos.
Necessitam criar a ilusão de serem amados, imaginam-se amados com a mesma intensidade
juvenil com que amam. Negam o numerário despendido, através do seu protesto viril, nos
grandiosos presentes que oferecem à suas arriadas em seus romances, como nos mostra
Machado.
Estas paixões adolescentes também podem muitas vezes levar a soluções exasperadas,
inflacionando neste quadro tragicômico o lado trágico.
"Três dias depois segui barra fora, abatido e mudo. Não chorava sequer; tinha uma idéia
rixa... Malditas idéias fixas! A dessa ocasião era dar um mergulho no oceano, repetindo o
nome de Marcela" (MPBC, p. 439).
"Ao fundo, por trás do balcão, estava sentada uma mulher, cujo rosto amarelo e
bexiguento não se destacava logo, à primeira vista; mas logo que se destacava era um
espetáculo curioso. Não podia ter sido feia; ao contrário, via-se que fora bonita, e não
pouco bonita; mas a doença e uma velhice precoce, destruíram-lhe a flor das graças. As
bexigas tinha sido terríveis; os sinais, grandes e muitos, faziam saliências e encarnas,
declives e aclives, e davam uma sensação de lixa grossa. Eram os olhos a melhor parte
do vulto, e aliás tinham uma expressão singular e repugnante, que mudou, entretanto,
logo que eu comecei a falar. Quanto ao cabelo, estava ruço e quase tão poento como os
portais da loja. Num dos dedos da mão esquerda fulgia-lhe um diamante. Crê-los-eis,
pósteros? essa mulher era Marcela" (MPBC, p. 458).
E, como que para fechar o capítulo referente a uma prostituta em fim de carreira, Machado,
para que o leitor não se envolva em um clima piedoso a respeito da personagem, não fique
compungido frente à sorte de Marcela, ao tomar conhecimento do mal-estar de Brás Cubas
diante do velha paixão juvenil - "eu me sentia pungido e aborrecido ( ... ) e ansiava por me ver
fora daquela casa" (MPBC, p. 459), deu um toque final enfatizando não mais o pecado da
luxúria, mas o da cobiça.
"Disse ela que desejava ter a proteção dos conhecidos de outro tempo; ponderou que
mais tarde ou mais cedo era natural que me casasse, e afiançou que me daria finas
jóias por preços baratos. Não disse preços baratos, mas usou uma metáfora delicada e
transparente. Entrei a desconfiar que não padecera nenhum desastre (salvo a
moléstia), que tinha o dinheiro a bom recado, e que negociava com o único fim de
acudir à paixão do lucro, que era o verme roedor daquela existência; foi isso mesmo
que me disseram depois" (MPBC, p."459).
Marcela "mal chegava a entender a moral do código" (MPBC, p. 433). Código criado pelos
homens que permitiam que se estabelecesse, de forma ambígua, a prostituição. Numa
sociedade que valorizava o sexo procriativo vinculado à família, necessitava-se de mulheres
que pudessem oferecer prazer sexual aos jovens solteiros e aos casados insatisfeitos.
"Porque não tem função procriadora, a prostituição (como as relações sexuais fora do
casamento) é socialmente condenada. Ao mesmo tempo, porém, é tolerada e até
77
mesmo estimulada nas sociedades que defendem a virgindade das meninas púberes
solteiras, de um lado, mas que, de outro lado, precisam resolver as frustrações sexuais
dos jovens solteiros e dos homens que se consideram mal casados ou que foram
educados para jamais confundirem suas honestas esposas com amantes voluptuosas e
desavergonhadas" (Chauí, M, 1984, p. 80).
Freud, em 1910, trouxe uma interessante contribuição para que se pudesse entender um
pouco mais a respeito das escolhas de objeto que fazem os homens, notadamente no que diz
respeito ao que chamou o amor à prostituta. Sabemos que, conscientemente, os adultos
pensam em suas mães como pessoas de conduta ilibada, de moral inatacável. Em
conseqüência disso, uma das mais desagradáveis ofensas é ser chamado por outrem de filho
da puta. No homem, o seu mundo interno também por vezes o ataca, ao colocar em sua
fantasia algum aspecto luxurioso de sua mãe. Contudo, Freud irá investigar o
desenvolvimento desses dois complexos, a relação inconsciente que está presente, de forma
constante, na fantasia do homem: o da mãe e o da prostituta, que estão em oposição
inclusiva. Desde a pré-puberdade, quando começa a receber informações sexuais, se bem
que da forma mais crua e desordenada, um menino se rebela contra a idéia de que seus pais
fazem sexo. Este é um tema muitas vezes insuportável, já que o lança de forma muito
incômoda em seu próprio desejo incestuoso - e sabemos que nada é mais terrível que este
tipo de desejo. A solução dada por Sófocles a seu personagem é a daquele que se inflige um
castigo, se cegar, em virtude da prática incestuosa, algo tão hediondo! Ao ser iniciado nas
conversas e piadas de cunho sexual, o menino toma conhecimento de que existem
mulheres que vivem do sexo, o que lhe permite direcionar todo o seu mundo sexual fantasioso
para este tipo de possibilidade, fazendo com que, em oposição ao discurso adulto corrente,
ele as veja como desejadas e perigosas, ou, como disse Freud:
"... tão fogo aprende que ele também pode ser iniciado por essas infelizes ( ... ) as
considera com um misto de desejo e horror. Quando, depois disto, já não pode mais
nutrir qualquer dúvida que tomem seus pais uma exceção às normas universais e
odiosas da atividade sexual, diz-se a si próprio, com lógica cínica, que a diferença entre
sua mãe e urna prostituta não tão grande, visto que, em essência, fazem a mesma
coisa" (1910, p. 154).
Machado de Assis havia percebido, de forma inconsciente, o que Freud (1912) afirmava a
respeito: a proibição da vida erótica das mulheres é comparável à necessidade que têm os
homens de depreciar seu objeto de escolha sexual . - "...um corpo esbelto, ondulante, um
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desgarre, alguma cousa que nunca se achara nas mulheres puras" (MPBC, p. 433) -, já que
os desejos pela mãe ao esbarrarem na lei da interdição o fazem. conscientemente e
inconscientemente, estabelecer uma separação entre a mãe e a prostituta. Lembremo-nos de
que a mãe de Brás Cubas era "uma senhora fraca, de pouco cérebro e muito coração, assaz
crédula, sinceramente piedosa" (MPBC, p. 428), nada denotando sensualidade - é para ser
amada sem ser desejada.
No curso da vida erótica, o ser humano, em virtude do interdito incestuoso, deverá modificar
seus desejos sexuais em relação aos pais, transformando-os em sentimentos afetuosos. Na
puberdade poderá surgir um deleite por mulheres a quem respeita, no caso dos homens, mas
que não o excitam, mostrando-se sequioso de sexo com as que não ama. Na esfera do amor,
verifica-se uma conjugação das correntes sensuais com as afetuosas, podendo-se medir a
seriedade do amor pelo exame das partes das pulsões sexuais, inibidas em seu objetivo. Nas
questões de amor, a idealização do objeto estará sempre presente - livre de toda crítica o
objeto é puro, é desejado pelos valores espirituais que possui; a sensualidade fica, em muitos
casos, francamente escamoteada. A idealização do objeto aponta para uma conjugação do
ego com o objeto.
Não podemos ser ingênuos e pensar que a prostituição é apenas uma invenção masculina.
Ela é uma oportunidade a mais que o homem encontra para purgar as sua fantasias edípicas.
A prostituição está a serviço, de forma totalmente inconsciente, do horror ao incesto. Uma
situação resolutiva na medida em que produz, como afirma Freud (1910), um "contraste agudo
entre a mãe e a prostituta" (p. 153).
Praticamente desde o começo de nossas vidas nos deparamos com conflitos inevitáveis.
Existem impulsos imperiosos demandando satisfação. Postado à frente deles, temos o mundo
exterior, que ameaça de punição a tentativa de satisfazer vários desses impulsos. Esse é o
primeiro conflito, sendo, com diferentes disfarces, vitalício. Durante a infância, uma outra força
se desenvolve, e é preciso lidar com ela: o superego, a consciência, que ameaça punir com a
culpa. A psicanálise é o estudo desses conflitos e do modo como se lida com eles.
No quadro freudiano da vida mental, ... os impulsos se originam no id e o ego é aquela parte
da personalidade encarregada de manejar os conflitos entre o id, o mundo exterior e o
superego. O ego tem de tentar nos manter longe do perigo, enquanto busca conseguir que ao
menos alguns dos impulsos sejam satisfeitos. Deve tentar manter a dor psíquica na
intensidade mínima. Acima de tudo, deve impedir que sejamos subjugados pelas três
variedades de ansiedade: a realista, a moral e a neurótica. Não é uma missão fácil de cumprir.
A própria antecipação da satisfação de alguns desses impulsos evoca o espectro da punição
e, desse modo, gera muita ansiedade. Uma decisão consciente de privar-se do impulso, no
entanto, pode ser extremamente frustrante.
Freud deu o nome de mecanismos de defesa às muitas tentativas do ego de solucionar esses
dilemas. Repetidamente, ele disse que os mecanismos de defesa eram a pedra fundamental
da teoria psicanalítica. Se os compreendêssemos, compreenderíamos como a mente
funciona. Embora ele tenha acrescentado que por meio disso compreenderíamos também a
neurose, é importante observar que nem Freud nem nenhum dos seus seguidores
acreditavam que o emprego dos mecanismos de defesa era necessariamente patológico. Pelo
contrário, todos nós os utilizamos; não poderíamos levar a vida sem eles. Esses mecanismos
só se tornam um problema ao serem utilizados pelo ego de modo excessivo ou inflexível.
Observa-se corriqueiramente na medicina que o corpo algumas tenta encontrar alívio para
uma doença ou ferimento com excessivo entusiasmo e produz uma condição pior ainda. A
afirmação de Freud de que os mecanismos de defesa são a chave da neurose contém a
mesma implicação. Em uma tentativa de se proteger da ansiedade, as pessoas algumas
vezes instauram medidas defensivas excessivas que se tornam componentes pertinazes e
gravemente onerosos do seu caráter.
80
Dos vários mecanismos de defesa, o primeiro que Freud focalizou foi o RECALQUE, ......Mais
tarde, Freud acrescentou outros mecanismos, mas nunca escreveu um relatório sistemático
sobre eles. Essa tarefa coube à sua filha, Anna Freud, que em 1936 publicou O ego e os
mecanismos de defesa, até hoje um dos livros clássicos da psicanálise sobe o assunto. Dos
escritos do pai, ela selecionou uma lista de defesas e, em seguida, acrescentou outras;
cogitaremos as mais importantes aqui.
Gostaria de propor uma definição de mecanismo de defesa que se afasta das definições
clássicas.... Ela tem, espero, a vantagem de ser simples: Um mecanismo de defesa é uma
manipulação da percepção que tem como intuito proteger o indivíduo da ansiedade. A
percepção pode ser de episódios internos, tais como os sentimentos e impulsos, ou de
episódios exteriores, tais como os sentimentos dos outros ou as realidades do mundo.
O desejo erótico por uma pessoa proibida é perigoso. Se a pessoa que eu desejo é um
progenitor ou filho ou irmão, ou talvez (se me defino como heterossexual) uma pessoa do
mesmo sexo, ter a consciência desse desejo me colocaria em risco de sentir dolorosos
sentimentos de culpa. Se eu revelasse o desejo incorreria em novo risco, o de ser humilhado
ou punido. Se tenho consciência do impulso e consigo mantê-lo inteiramente oculto, tenho de
lidar não apenas com a culpa, mas também com a frustração de uma forte necessidade que
nunca pode ser satisfeita. Parece claro que para mim é uma vantagem não ter consciência do
meu desejo.
O mesmo é verdadeiro para os impulsos agressivos. Para muitos de nós, é difícil ter
consciência dos sentimentos de raiva que guardamos em relação a pessoas próximas. Par
alguns de nós, é difícil aceitar sentimentos de raiva em relação a qualquer pessoa. Assim
como em relação aos sentimentos eróticos, parece melhor não estar ciente deles.
Essa opção está disponível; é a opção do recalque. Encontramos de novo nosso velho amigo,
o vigia que toma conta da sala de visitas da consciência. Ele examina o desejo que busca ser
admitido na consciência e decide expulsá-lo, mantê-lo no hall de entrada. Se de algum modo
esse desejo consegue entrar na sala de visitas, ele o acompanha até a saída novamente. Na
linguagem da teoria dos mecanismos de defesa, o ego reconheceu essa dupla demanda do
id:
81
O ego sabe bem que, se qualquer dessas demandas for concedida, o superego atacará coma
culpa. Ele também sabe que provavelmente haverá respostas negativas do mundo exterior, se
o desejo for revelado. Portanto, recalca o desejo, ou seja, mantém-no longe da consciência,
mantém-no aprisionado no inconsciente, e, ao fazer isso, protege-se da ansiedade, da
antecipação do desamparo diante do perigo........ Ao menos no caso da agressão, isso é uma
vitória pirrônica. O superego não será mitigado porque os sentimentos agressivos se tornaram
inconscientes. No exemplo anterior, a percepção de um episódio anterior (desejo) foi
bloqueada. Ainda desejo a pessoa ou ainda quero magoá-la, mas esse desejo é agora
inconsciente, invisível, não mais percebido por mim....
... O recalque é indispensável. Os desejos incestuosos são um bom exemplo disso. Como
poucos de nós estamos planejando violar os tabus e arcar com as conseqüências, a
consciência desses impulsos seria dolorosa, frustrante e provocaria ansiedade. O mesmo
pode ser dito a respeito de boa parte dos desejos eróticos e dos impulsos agressivos que
sentimos. Se não os recalcássemos de todo, sentir-nos-íamos oprimidos pela profusão de
fantasias e impulsos que incidiriam sobre a consciência.
... A maioria de nós recalca mais do que seria desejável. Se não posso ter plena consciência
dos meus sentimentos amorosos - tanto dos afetuosos quanto dos passionais -, da minha
jocosidade, da minha assertividade e da minha dor e tristeza, minha vida fica truncada e
distorcida. Embora o recalque seja indispensável quando aplicado aos impulsos apropriados
em doses apropriadas, quando excessivo, é a causa de graves problemas na vida.
Há uma importante lição sobre a criação dos filhos que pode ser tirada disso. A muitos de nós
foi ensinado que havia não apenas boas e más ações, mas bons e maus sentimentos
também. São raros os pais que encorajam os filhos a fazerem uma distinção entre
sentimentos e comportamentos, apoiando o direito deles de sentir tudo que sentem, ao
mesmo tempo em que lhes ensinam que certos comportamentos são proibidos. O
encorajamento dessa distinção, no entanto, seria um avanço, no sentido de proteger a criança
de um recalque excessivo em sua vida futura.
Sigmund e Anna Freud entendiam que o recalque era o mecanismo de defesa básico e o mais
82
propenso a causar sérias dificuldades neuróticas. Veremos que alguns dos outros podem ser
muito destrutivos, se utilizados em excesso, mas em sua maior parte fazem parte da vida
mental normal. À medida que prosseguimos, consideraremos os mecanismos rotulados de
negação, projeção, formação reativa, identificação com o agressor, deslocamento, e
voltando-se contra o self.
É o ego que nos lembra que, por mais que tenhamos prazer em dirigir rápido, a realidade é
que podemos ser presos ou mortos por causa de uma velocidade muito alta. Para o ego, o
uso de um mecanismo de defesa que distorce a realidade, como, por exemplo, achar que não
existe perigo na alta velocidade, lhe apresenta um problema. Entretanto, mesmo o ego mais
maduro e flexível dá um jeito de, às vezes, fazer exatamente isso.
No auge do impasse nuclear entre os Estados Unidos e a União Soviética, todos os habitantes
do planeta estavam sob permanente ameaça de uma catástrofe de proporções inimagináveis.
Tenho a impressão de que, para todos, algum grau de negação era necessário para viver sem
uma ansiedade paralisante. A maioria das pessoas parecia ter conseguido uma boa dose de
negação. Mesmo os ativistas antinucleares precisavam negar de alguma forma, para
continuar em atividade.
A maioria de nós utiliza a defesa da negação ao menos ocasionalmente. Certa vez, no meu
trabalho, eu desejava muito uma determinada atribuição, e, durante várias semanas, fui o
principal candidato a ela. Um amigo meu, preocupado com a possibilidade de uma reação
negativa de minha parte quando a realidade fosse revelada, chamou-me de lado e disse,
gentilmente, que todos, menos eu, estavam percebendo que eu não tinha a menor chance - o
meu supervisor vinha indicando isso. Eu não tinha me permitido enxergar esses indícios,
A negação pode ser muito perigosa, como no caso do fumo. No entanto, às vezes pode ser
adaptativa. Uma amiga minha precisava fazer uma biópsia que, ela disse, poderia produzir um
diagnóstico inofensivo ou catastrófico. A biópsia estava marcada para dali a sete dias. Ela
continuou fazendo o que tinha de fazer na semana, parecendo bastante animada. Comentei
com um culto psicólogo amigo nosso que estava preocupado com a negação dela, temendo
que não estivesse preparada para a catástrofe, caso esta de fato ocorresse. Ele me disse
para deixá-la em paz e me dar por contente por. ela ter um ego suficientemente forte para
negar o perigo, quando não havia nada que pudesse fazer a respeito. Nunca me esqueci
desse conselho. Incidentalmente, a história teve um final feliz.
3. Projeção - O mecanismo de defesa com o qual manipulamos uma percepção interna e uma
percepção externa é chamado de projeção. A projeção refere-se a uma forma de proteção
contra a ansiedade por meio do recalque de um sentimento e da percepção equivocada desse
sentimento em uma outra pessoa. Eu recalco a minha raiva e acho que você está com raiva
de mim. Recalco o meu desejo sexual e acho que você está me desejando.
84
Essa forma de projeção, incidentalmente, está sempre presente na homofobia. Eu recalco
meus anseios homossexuais e acredito que outro homem, talvez um que identifico como gay,
está tentando me seduzir. É possível que muitas das acusações políticas contra os
homossexuais tenham suas raízes na projeção. Por exemplo, diz-se freqüentemente que não
se deveria permitir que homens homossexuais dessem aulas nos colégios ou fossem chefes
de escoteiros, porque poderiam incentivar um estilo de vida gay ou mesmo seduzir os
meninos. Não há evidências para se afirmar isso, portanto a teoria da projeção leva a deduzir
que pode ser o acusador quem tema correr o risco de ser seduzido ou de seduzir. O leitor não
terá dificuldade para entender por que tantos soldados heterossexuais se opõem vee-
mentemente a que haja homossexuais em suas unidades. Freud acreditava que a homofobia
podia explicar muitos casos de paranóia.
Um dos meus clientes, Jay, estava fazendo um doutorado e havia tempo tentava terminar sua
dissertação. Os meses se passavam, e ele ia ficando cada vez mais enfurecido com os
professores da banca, alegando que eles sempre conseguiam inventar um novo obstáculo
para colocar no seu caminho. Por fim, concluiu que eles não queriam que ele obtivesse o titulo
e estavam conspirando para derrotá-lo, Ao longo de todo esse período, fui ficando cada vez
mais convencido de que Jay estava sabotando a dissertação e inconscientemente
determinado a não terminá-la. Seu pai tinha sido um operário que fizera verdadeiros sacrifí-
cios para que o filho pudesse estudar e tinha morrido assim que ele começara os estudos na
faculdade. Jay falava com freqüência do amor que sentia pelo pai, de sua gratidão por ter sido
encorajado a estudar e de sua tristeza pelo fato de o pai não estar vivo para vê-lo concluir os
estudos. Aos poucos, foi ficando claro que também se sentia muito culpado por suplantar o
pai. A culpa decorria de diversos fatores, já que a morte do pai deixara a mãe só para ele.
Todo esse complexo de emoções era tão assustador para Jay, que a solução que encontrou
foi projetar nos professores seu senso de desvalor e o desejo de fracassar.
Todos nós empregamos versões moderadas da projeção durante uma boa parte do tempo, e
nunca nos damos conta disso, a não ser quando ela afeta um relacionamento o suficiente
para chamar a atenção para a sua existência. Não é incomum a pessoa projetar no parceiro a
fantasia da infidelidade, e em seguida acusá-lo de infiel.
Quando eu estava na faculdade, um amigo meu que era muito íntimo do seu companheiro de
quarto convenceu-se de maneira inabalável de que sua noiva planejava ter um caso com ele,
durante o tempo em que estaria fora da cidade. Em meio a uma intensa confrontação, sua
noiva, que era muito ponderada e requintada, lhe disse: "Alguém está 'com desejo de dormir
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com o Ted, muito bem, e não sou eu." Meu amigo ficou completamente abalado. Mais tarde,
ele me disse que até aquele momento acreditara firmemente que sua heterossexualidade era
absoluta. Durante um curso de psicologia, ao ouvir alguém falar da teoria de que todas as
pessoas eram inconscientemente bissexuais, ele pensara: "Menos eu."
Sou fascinado por cutelarias. Existe uma cadeia delas em Nova York, com amplas vitrines
exibindo uma infindável coleção de facas brilhantes, canivetes e tesouras. Posso ficar horas
diante de uma dessas vitrines, embora certamente não necessite de mais uma faca militar
suíça. O leitor que me acompanhou até aqui reconhecerá uma resposta contrafóbica a um
caso grave de ansiedade de castração.
A confrontação com alguém mais poderoso que você, que tem intenções agressivas a seu
respeito, reais ou supostas, provoca muita ansiedade. Possuir intenções agressivas em
relação a essa pessoa poderosa também pode provocar ansiedade, devido ao medo da
retaliação. A identificação com o agressor é uma defesa elaborada para proteger o sujeito
contra a ansiedade decorrente do conflito com uma pessoa poderosa ou de estar à mercê
dessa pessoa.
A psicanalista Nancy MacWilliams assinalou que a análise que Anna Freud fez desse
fenômeno teria sido mais clara se ela o tivesse chamado de "introjeção do agressor", porque
era claramente isso o que ela queria dizer. A identificação em geral implica uma defesa menos
automática e inconsciente do que a introjeção. As crianças se identificam com os pais,
mentores e colegas de maneiras muito óbvias: forma de vestir, atitudes e maneirismos.
Também introjetam aspectos deles, como na resolução do complexo de Édipo. A introjeção
implica a suposição inconsciente de que existe em mim um determinado atributo ou conjunto
de atributos da outra pessoa. No entanto, manteremos a terminologia empregada por Anna
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Freud, já que esta tem aparentemente um lugar permanente na linguagem.
A identificação com o agressor me permite aumentar o poder que percebo em mim por meio
da introjeção de algum aspecto da pessoa perigosa. Posso introjetar uma ou mais de suas
características pessoais; posso introjetar a agressividade; posso introjetar ambas. Na
resolução edipiana clássica, eu me torno igual ao meu progenitor do mesmo sexo, ao me
definir corno heterossexual e partir em busca do meu próprio parceiro. É provável que eu
também me torne igual àquele progenitor, de urna série de outras maneiras. Uma parte
importante da minha identidade é construída por meio dessa introjeção.
Ao utilizar essa defesa, posso também projetar. Projeto as minhas intenções agressivas na
outra pessoa para me proteger contra a ansiedade superegóica, ou seja, para me proteger da
culpa. Desse modo, não percebo minha agressividade em relação ao meu pai; percebo
apenas que tenho medo dele. Como introjetei o seu poder, o medo é administrável. As
crianças que brincam de super-heróis onipotentes empregam uma versão cotidiana adaptada
dessa defesa. Elas estão, é claro, identificando-se com uma pessoa poderosa que as
amedronta, freqüentemente com um progenitor.
Em seu livro sobre os campos de concentração nazistas, o psicanalista Bruno Bettlelheim, ele
mesmo um sobrevivente do holocausto, fornece um exemplo comovedor dessa defesa. Os
prisioneiros judeus se identificavam com os guardas nazistas. Eles imitavam a maneira de os
guardas andarem e se apossavam de uma parte descartada do uniforme deles, como se fosse
um objeto de valor.
Quando criança, essa paciente sentia inveja e ciúme intenso do tratamento especial que
acreditava ser concedido por sua mãe aos irmãos dela. Isso se transformou eventualmente
em uma impetuosa hostilidade contra a mãe, e ela se tornou uma criança abertamente raivosa
e desobediente. Mas seu amor pela mãe era igualmente forte, o que fez com que adquirisse
um severo conflito. Temia que a raiva lhe custasse o amor da mãe, de que ela tanto
necessitava. Ao entrar no período de latência, sua ansiedade e conflito se tornaram cada vez
mais intensos. A primeira tentativa de dominar essa ansiedade foi através do emprego do
mecanismo de deslocamento. Para solucionar o problema da ambivalência, ela deslocou o
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ódio para uma série de mulheres. Sempre havia em sua vida uma segunda mulher importante
que ela odiava violentamente. Isso produzia uma culpa menor do que o ódio que sentia pela
mãe, mas não eliminava a culpa. Portanto, o deslocamento não era uma solução adequada.
O seu ego agora recorreu a um segundo mecanismo [que Sigmund Freud chamou de
voltando-se contra o self]: interiorizou o ódio que até então estava relacionado exclusivamente
a outras pessoas. Ela se torturava com auto-acusações e sentimentos de inferioridade. Ao
longo da adolescência e já adulta, fez tudo que podia para se colocar em desvantagem e
prejudicar seus interesses, sempre abdicando dos seus desejos em forma das demandas dos
outros em relação a ela.
Como os outros mecanismos, o deslocamento e o voltar-se contra o self são comuns na vida
cotidiana, mas relativamente inofensivos, contanto que sejam brandos e de curta duração. O
deslocamento é uma defesa tão comum, que adquiriu um apelido geral: "Chutar o cachorro."
Se o meu patrão me tratou mal, é claro que não posso manifestara raiva que sinto dele. O que
é mais sutil: posso não me permitir senti-la plenamente, porque isso tornaria a minha vida
profissional desagradável e poderia estimular uma culpa inconsciente relacionada à raiva que
sinto de um progenitor. Nessas ocasiões, meus entes queridos mais próximos me fornecem
um amplo ancoradouro; eles são alvos mais seguros.
Minha cliente Victoria, quando criança, aprendeu que as conseqüências de expressar a raiva
eram terríveis, freqüentemente dias de tratamento silencioso. Ela cresceu praticamente sem
poder até mesmo sentir raiva, quanto mais manifestá-la. Sua resposta a qualquer dificuldade
interpessoal era se sentir bastante deprimida. Demorou muito até ela ser capaz de perceber a
depressão como raiva voltada contra si mesma, o único lugar seguro para onde podia dirigi-la.
No começo deste capítulo, propus uma definição de mecanismo de defesa: uma manipulação
da percepção, com o objetivo de proteger a pessoa da ansiedade. A percepção pode ser de
episódios interiores, tais como os sentimentos e impulsos, ou de episódios exteriores, tais
como os sentimentos dos outros ou as realidades do mundo. Afirmei que ela diferia das
definições clássicas. Essa diferença dá margem a uma questão fascinante.
Anna Freud escreveu que "os processos defensivos, tais como o deslocamento... ou o
voltar-se contra o self, afetam o próprio processo pulsional; o recalque e a projeção apenas o
impedem de ser percebido. O que ela queria dizer com isso era que a criança, no exemplo
anterior retirado do seu livro, deixou realmente de odiar a mãe e começou a odiar primeiro as
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outras mulheres, e depois a si mesma. A mudança não foi meramente perceptiva. A definição
que proponho infere que o ódio da mãe ainda está presente inconscientemente, sendo
simplesmente recalcado, ou seja, não percebido.
Não é incomum trabalhar com um cliente que deslocou seus anseios eróticos edipianos para
outra pessoa, e então falseia a evidência inconfundível de que o anseio original continua a
existir, inconscientemente.
Quando Freud elaborou a sua segunda teoria da ansiedade, em 1926, ela exerceu um
impacto na sua teoria das defesas. O leitor lembrará que a teoria de 1926 descrevia a
ansiedade como um sinal, um aviso de desamparo iminente diante do perigo. As defesas têm
a função de proteger o indivíduo dessa sensação de desamparo. A ansiedade adulta, como
acreditava Freud, era exacerbada por servir como um lembrete das situações traumáticas
mais primitivas, quando intensidades traumáticas de estimulação inundavam o recém-nascido,
o bebê ou a criança. Portanto, uma função importante do mecanismo de defesa era repelir
essa estimulação traumática.
Um dos três tipos de ansiedade com os quais as defesas têm de contender é a ansiedade
moral, o medo do superego. Isso traz à tona uma das principais questões da psicologia
psicodinâmica: o problema da culpa.
Atos falhos ou falhados - São aqueles que praticamos aparentemente sem querer e de
modo inexplicável. É comum cometermos enganos, trocarmos palavras, esquecermos objetos,
etc. Os atos falhos são causados pelos impulsos reprimidos que procuram se descarregar de
qualquer modo, mesmo interferindo em nossas ações não submetidas à repressão.
Um exemplo de ato falho seria o seguinte caso: Um presidente da câmara austríaca, ao abrir
a sessão, numa noite em que todos temiam um escândalo, disse: ―Senhores deputados, está
encerrada a sessão‖ em vez de ―está aberta a sessão‖.
É freqüente perdermos objetos que nos foram dados por pessoas de quem não gostamos,
enganar-nos com o itinerário ou perdermos a condução quando vamos aborrecidos a algum
lugar.
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Racionalização - É o mecanismo pelo qual a nossa inteligência apresenta razões socialmente
aceitáveis para nossas ações que, na realidade, foram motivadas pelos impulsos do Id.
Racionalizar é inventar pretextos, razões para desculpar, diante da sociedade e de nós
mesmos, os nossos atos cujos motivos reais não percebemos.
Por exemplo: um rapaz compra um carro, realizando uma despesa exagerada em relação a
sua situação financeira e a suas necessidades profissionais, porém tranqüiliza sua
consciência e justifica-se diante dos outros afirmando que o carro vai ser muito útil para seu
trabalho e vai facilitar as atividades de suas irmãs e de seus pais já idosos. A finalidade da
racionalização é manter o auto-respeito e reduzir as tensões resultantes da frustração e dos
sentimentos de culpa.
Substituição - Processo pelo qual um objeto valorizado emocionalmente, mas que não pode
ser possuído, é inconscientemente substituído por outro, que geralmente se assemelha ao
proibido..
(Do Livro “Freud Básico” , Michael Kahn, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 2003)
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1. Janny, uma jovem cliente solitária, sabia que ansiava por contato com os outros, porém se
afastava de amigos ou de amantes potenciais sempre que uma aproximação ocorria.
Passaram-se meses até ela descobrir que tinha medo de que o contato pudesse levar a uma
intimidade, e que a intimidade contivesse algum perigo inominável. O perigo permaneceu
inominável, até ela associar o medo de contato a um acontecimento da infância: quando tinha
cinco anos, o seu querido pai, a única pessoa da família em quem ela realmente confiava,
abandonara a família, sem dar qualquer aviso, e sumira de vez. Fora um trauma
despedaçador. Lentamente, Janny compreendeu que o medo inconsciente do abandono
incidia sempre que ela antecipava uma intimidade.
2. Uma das minhas clientes começou a terapia me assegurando que seu relacionamento com
a mãe era satisfatório - que não havia nele nada particularmente significativo. Logo o seu
relato revelou que ela repetidamente tem a seguinte experiência: por alguma boa razão, ela
acha que é necessário faltar a um encontro com uma amiga íntima. Em seguida a isso, ela
sofre um grave ataque de ansiedade. Quando lhe indaguei sobre essa questão, ela explicou a
ansiedade, dizendo recear que por ter faltado ao compromisso, a amiga tivesse ficado furiosa.
Ela viveu essa mesma seqüência de eventos inúmeras vezes; quando encontra a amiga
novamente, esta tem sempre uma postura inteiramente tranqüilizadora. Essa tranqüilidade, no
entanto, não impede o próximo ataque de ansiedade. Depois de meses de trabalho, ela
começou a recobrar memórias de um olhar distante percebido no rosto da mãe que a
convenceu de que, de algum modo, ela a havia afastado de si. Seu medo inconsciente de
perder o amor da mãe se traduz na marcante insegurança com as amigas.
3. Geoffrey consultou um terapeuta por causa de uma série de problemas, inclusive uma
aflitiva inibição sexual em relação à sua mulher. Os dois tinham cerca de 35 anos e, antes de
se casarem, haviam desfrutado um relacionamento sexual satisfatório. Quando Geoffrey
começou a terapia, eles estavam casados havia mais de um ano, e suas relações sexuais
vinham se deteriorando cada vez mais. Numa sessão anterior, ele se espantara ao revelar
que tinha sido muito difícil beijar a esposa no casamento deles, e que tinha de fato encontrado
uma maneira de não o fazer. Somente alguns meses mais tarde, foi que subitamente se
lembrou de que, se tivesse beijado a esposa no seu casamento, teria sido a primeira vez que
a teria beijado diante da mãe. Os pais de Geoffrey tinham se divorciado quando ele tinha dez
anos. Sua mãe nunca mais se casara de novo, ou mesmo namorava. "Você é meu pequeno
homem agora", dissera ao filho. De fato, ela o tratava dessa maneira. Alguns anos depois, ele
começara a se masturbar regularmente. Masturbava-se na cama e ejaculava no lençol, e não
fazia nada para esconder isso. Todas as manhãs, sua mãe retirava o lençol da cama, lavava-o
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e recolocava-o, sem fazer comentários. Geoffrey não tinha dúvida de que ela sabia da
ejaculação. "Estávamos na verdade fazendo amor, não estávamos?", perguntou ele ao
terapeuta.
(Do livro: “Sobre Ética e Psicanálise”, Cia de Letras, 2002, São Paulo, págs. 78 A 84)
A psicanálise pensa o homem como sujeito dividido entre um lugar onde o eu se reconhece e
tenta responder por si e um Outro lugar, de onde o sujeito é determinado sem que o eu tenha
qualquer poder sobre isso.
Por que pensar o homem como sujeito do inconsciente, da falta e do conflito e não, como
aprece mais adequado ao gosto pós-moderno, como um ser pleno, idêntico a si mesmo e
reconhecido pelo meio a que pertence pelas manifestações soberanas de sua vontade? De
acordo com os modelos das neurociências e de certas correntes da psiquiatria, não é
necessário pensar o homem como marcado pelo conflito, e sim como uma máquina perfeita
que pode ser atormentada por alguns distúrbios desvios de funcionamento ocasionais. De um
lado, o excesso de pressão exercido pelas exigências sociais e pelo ―ritmo de vida‖, moderna
pode causar estresse, desânimo, descontrole. De outro, alguns déficits químicos podem
submeter o corpo a estados depressivos curáveis pela psicofarmacologia avançada.
Se esta é a concepção de ser humano mais condizente com as eficácias terapêuticas atuais,
por que insistir no sujeito faltante e dividido da psicanálise? Hoje, mais do que nunca, essa
questão deve ser respondida nestes termos éticos do que em termos de eficácia terapêutica.
Por enquanto, devo insistir no parâmetro ético: quais as conseqüências – para a construção
do laço social nas sociedades demo e para a diversidade das escolhas de destino
possibilitadas desde o advento da modernidade – de pensar o sujeito a partir da falta e do
conflito? Por que não ceder ao modelo que propõe o homem como positividade plena, sujeita
apenas a desvio e déficits ocasionais? Como escreve Roudinesco, o modelo do distúrbio
supõe um indivíduo autônomo, soberano e bem-funcionante, afetado por circunstâncias
externas à subjetividade – já que, para o indivíduo autônomo, tanto o próprio corpo como o
Outro parecem estar fora do lugar onde o eu impera. As circunstâncias ―externas‖ podem
produzir falhas no funcionamento do indivíduo, mas não afetam sua integridade.
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Esse indivíduo é curado por algumas intervenções tão alheias a seu psiquismo quanto o mal
que o perturbou. Soberano, autônomo, ele aprende a temer e a defender-se de tudo o que
possa novamente perturbá-lo. À maneira do eu-prazer infantil descoberto por Freud, ele é
compelido a manter fora de si, afastado (da consciência, dos afetos, do corpo), tudo o que
possa produzir mal-estar; e a trazer para junto de si, com objeto seu, tudo o que possa
satisfazê-lo. A violência advinda desse modo de estar no mundo me parece evidente: ―Nada é
mais próximo da patologia do que o culto da normalidade levada ao extremo‖, escreve
Roudinesco. O modelo do indivíduo íntegro e normal, afetado apenas por fatores extra-
subjetivos, produz sujeitos incapazes de ultrapassar a intolerância infantil própria do eu-
prazer: sujeitos que reagem ao mal-estar com manifestações de um ódio contra o outro (feito
responsável pelo mal e pela angústia que afetam sua precária tranqüilidade) que tem sua
origem em um ódio contra tudo o que provoque dissonância em si mesmo. Esse modo de
funcionamento pressupõe um psiquismo que se recusa a incluir como própria qualquer
representação do conflito e do desajuste. Tornar o desagradável, o angustiante,
irrepresentável, equivale a recusar-se ao próprio pensamento, o qual precisa levar em
consideração também as marcas mnêmicas deixadas pelas experiências de desprazer. Uma
sociedade em que os homens concebem sua vida psíquica segundo o modelo do distúrbio e
da cura neuroquímica (ainda que não se possa negar a importância da psciofarmacologia no
auxílio do tratamento das formas extremas de sofrimento psíquico) é uma sociedade em que
as condições do laço social não convocam os sujeitos a fazer do pensamento um auxílio para
a mediação de suas relações e na negociação de suas diferenças. Ao emprobrecimento do
pensamento correspondem, de um lado, a violência; de outro lado, a depressão. A outra
conseqüência desse modelo é a depressão advinda justamente do emprobrecimento subjetivo
que a recusa do conflito produz. É como se fôssemos condenados, sem saber disso (ou seja,
a partir apenas dos efeitos inconscientes), a sofrer todos os avatares, todo o peso da nossa
condição moderna, sem desfrutar daquilo que ela nos concedeu. ―O depressivo sofre de uma
liberdade conquistada, porque não sabe desfrutá-la‖.
A depressão, sintoma do mal-estar neste começo de milênio como a histeria no final da era
vitoriana, é ao mesmo tempo condição e conseqüência da recusa do sujeito em assumir a
dimensão de conflito que lhe é própria. De um lado é a condição, porque, sem certo
rebaixamento libidinal próprio dos estados depressivos, o conflito acaba por se impor. De
outro é conseqüência, na medida em que a depressão, o empobrecimento da vida subjetiva,
são o preço pago por aqueles que orientam as suas escolhas em função do medo de sofrer. O
sintoma neurótico provém justamente das resistências de um eu que não dispõe de recursos
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significantes para enfrentar seu sofrimento. Por conta da resistência, do desconhecimento que
esta produz, o sofrimento recusado lança sobre o eu uma sombra muito maior do que sua
dimensão verdadeira.
O medo de sofrer confunde-se com o medo do desconhecido, o neurótico resiste ao novo,
resiste a romper com a repetição sintomática. É verdade que o sintoma é também solução de
compromisso que permite alguma forma indireta de gozo, e tudo o que é do gozo pede
repetição. Mas o que o neurótico mais teme é ser levado a se deparar com aquilo que o eu
não quer saber: a dimensão inconsciente que o sujeito recusa o assombra na forma de
sonhos, lapsos e fantasia. A angústia de castração, no caso do neurótico, ergue-se não contra
uma ameaça cuja execução pode ser evitada sob certas condições, mas contra algo que já
lhe ocorreu, mas que ele não conseguiu simbolizar. A esperança de seguir a vida toda
ignorando um fato consumado é o alimento da angústia de castração. "O único consolo é que
não há esperança", escreveu santa Teresa de Ávila, essa grande mística que soube muito
bem o que era gozar fora do sintoma.
Nadezhda Mandelstam, que foi esposa do poeta russo Osip Mandelstam, refere-se ao período
do terror stalinista nos seguintes termos:
Tendo ingressado no domínio do não-ser, perdi a noção da morte. Em face da
danação, até o medo desaparece. O medo é um relance de esperança; vontade de
viver, auto-afirmação. É um sentimento profundamente europeu, que se nutre da auto-
estima, da noção que cada um tem de seus direitos, suas necessidades e desejos.
Uma pessoa se agarra ao que é seu, e tem medo de o perder. O medo e a esperança
confinam entre si. Perdendo a esperança, perdemos também o medo - não há mais
nada a temer.
É claro que o que o neurótico evita enfrentar nem sempre é um sofrimento trágico ou
insuportável, embora assim lhe pareça quando a ele se revela em certo ponto do percurso
analítico. Pode ser a dor que se origina da renúncia à satisfação pulsional, quando não se
encontra um destino para o resto de gozo que invade o psiquismo. Pode ser a culpa advinda
da ambivalência inevitável de nossa relação com o outro, sobretudo com o outro mais amado.
Pode ser o medo do abandono, da perda, do desamparo – modalidades da angústia de
castração. Pode ser a dor do narcisismo ferido nas condições em que se revela nossa
completa insignificância diante do Outro.
O fato é que o homem moderno, voltado para os ideais pós-revolucionários de felicidade - ou,
se quisermos, para os ideais burgueses de comodidade e bem-estar -, é alguém que
desaprendeu a sofrer. Não sofre com a bravura de um estóico, com o espírito de sacrifício de
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um súdito leal, nem com a resignação esperançosa de um cristão. Esses "modos de sofrer",
modos de subjetivação que forneciam um sentido ao sofrimento nas sociedades pré-
modernas (à maneira do xamã estudado por Lévi-Strauss, cuja narrativa não tinha o poder de
suprimir a dor da doente mas apenas de torná-la suportável), desapareceram de nossas
formações sociais. O sujeito moderno sofre de sua culpa neurótica, acrescida da culpa por
estar sofrendo, Quantas vezes, em seu consultório, os analistas não recebem alguém que
ainda nem sabe se demanda uma análise: mostra-se apenas perplexo, sem palavras que
expliquem o fato de que ele não se sente feliz como deveria? Quantas vezes, para implicar
alguém no processo analítico, basta que o analista escute sem espanto o que lhe diz o
iniciante, acolha sem escândalo a expressão confusa de seu conflito, para que ele se
descubra, como que assombrado, capaz de dizer, a partir de seu sofrimento, muito mais do
que poderia ter imaginado no momento em que ainda lutava para calar a dor psíquica?
A outra face da depressão como recusa do conflito no mundo contemporâneo é a
drogadição, expressão daqueles que desistiram de ser sujeitos - no mesmo sentido da
expressão sujeito de um desejo inconsciente - e se entregam a um gozo mortífero que já não
busca nada além de sua repetição fora do discurso. O drogado crônico, que conhecemos
muito mais das ruas do que dos consultórios, funciona no circuito da satisfação pulsional, no
qual a droga representa o objeto reencontrado que já não atende ao campo (simbólico) da
realização de desejos – e sim ao capo real da satisfação de necessidades. "Figura simbólica
empregada para definir as feições do anti-sujeito", escreve Roudinesco, no lugar que
antigamente era ocupado pelo louco, até que a própria psicanálise viesse a incluir a psicose
como expressão de um outro modo de subjetivação do conflito.
O neurótico é alguém que, no mundo sem um Deus que anime "pela palavra o nosso pó",
deseja ainda servir ao Outro, a Ninguém. "Louvado sejas, Ninguém./ Por amor de ti queremos/
florir./ Em direção/ a ti." É porque o Outro, a quem o sujeito deseja se submeter, não deseja
nada dele que caberia ao sujeito tomar a responsabilidade pelo desejo e dar a este algum
outro destino que não o da subordinação masoquista. Mas, antes disso, é preciso reconhecer
a pequenez de nossa condição. "Um Nada/ fomos, somos, continuaremos/ a ser, florescendo:/
a rosa do Nada, a/ de Ninguém." Um Nada que floresce, sem que Ninguém lhe peça isso. Que
floresce por quê? Porque sim, seria a única resposta. Porque é possível florescer, porque a
palavra é nossa, e não do Outro: "Com/ o estilete claro de alma,/ o estame ermo de céu,/ a
corola vermelha/ da purpúrea palavra que cantamos/ sobre, oh, sobre/ o espinho".
O poema de Celan não é uma apologia do sofrimento; nele não há gozo masoquista, há
ironia. Florescemos em direção a Ninguém, sabemos disso. Cantaremos nossa palavra por
sobre os espinhos. É um poema que nos fala de um "modo de sofrer", nos momentos em que
é necessário saber sofrer. Os poetas, no mundo contemporâneo, talvez sejam os únicos
parceiros dos psicanalistas na produção de uma estética para o sofrimento: quando o Outro
revela sua brutal indiferença, nada podemos fazer a não ser tomar a palavra, a "purpúrea
palavra que cantamos [...]/ sobre o espinho".'
A histérica seria uma espécie de sintoma social de que todas as alternativas que surgem com
o começo da ascensão de uma nova classe, a burguesia, colocam a mulher européia do
século XIX em crise com aquilo que teriam sido os padrões de feminilidade.
A mulher vivia em função de uma dependência paterna que se deslocava para uma fixação no
marido, sendo que praticamente inexistia a possibilidade de sublimar quaisquer insatisfações
ou os excessos da sexualidade. O homem, além de ter a alternativa de uma vida sexual mais
diversificada do que a que o casamento permite, tem uma série de possibilidades
sublimatórias oferecidas, no final do século XIX, por sua condição social. Ele tem acesso à
cultura, tem condições de sublimações em sociedade, no trabalho político, social.
A mulher permanece incapacitada de realizar esta sublimação, pois a vida doméstica oferece
poucas possibilidades. O acesso à cultura e à vida pública mantém-se bastante limitado e ela
tem de se satisfazer com a sexualidade que o casamento oferece e jogar um pouco no
escuro, pois ao se casar virgem não sabia o que poderia suceder. É evidente que isto é uma
caricatura mas, de qualquer maneira, o que resta a esta mulher como identidade social? Ela é
mãe. Discuto este aforismo lacaniano, o de que a mulher não existe, quando Lacan afirma que
a mulher só está inscrita no inconsciente como mãe. Não existe inscrição para o feminino, já
que este está identificado à falta. Em termos lógicos, tendo a concordar, mas na prática prefiro
outra hipótese, a que levantou Bento Prado há alguns anos, em um seminário da Unesp, em
Araraquara, que achei tão boa que até hoje estou tentando desenvolver. Ele dizia: "talvez a
mulher não exista, por não ter, historicamente, se inscrito na cultura a não ser como mãe." Ou
seja, o homem está inscrito na cultura não só como FALO, no sentido de símbolo sexual, mas
como obra, trabalho, realização e civilização. A mulher só está inscrita como mãe. Ela não
existe, não por não ter o falo, mas por não ter a FALA.
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Ficamos brincando com essa idéia de falo e de fala, com a hipótese de que a mulher não
existe até o século XIX por não ter o falo da fala e não o falo do homem, que realmente não
deveria ter. A idéia da qual parto... é a de que Freud estuda uma mulher em crise com a
feminilidade, este é seu sintoma e seu sofrimento. Utilizo freqüentemente o paradigma de
Emma Bovary para tentar compreender quem é essa mulher do século XIX. Por uma
coincidência muito interessante, Emma Bovary nasce literariamente, ou seja, começa a ser
publicada na Revue de Paris, no ano em que Freud nasce. São contemporâneos. Como dizia
Freud, o artista antecipa o cientista, tem antenas que captam fenômenos que o cientista
demora a entender. Flaubert cria Emma Bovary quarenta anos antes de Freud inventar a sua
histérica e mesmo assim estamos diante da mesma mulher. Com isso, não quero clinicar
sobre Emma Bovary, afirmando que ela é uma histérica. Quero dizer: a histérica é uma Emma
Bovary. A histérica é aquela mulher que deseja um destino para o qual não fora preparada,
sendo que a própria mudança social que está vivenciando anuncia esta possibilidade. No caso
da personagem Bovary, como pode ela trilhar este novo caminho, se está destinada ao
casamento? Ela só poderá cumprir um destino diferente daquele oferecido por seu pequeno
casamento de província através de outro casamento ou de uma aventura amorosa. E é muito
interessante considerar-se delirante essa personagem. Acompanhando as cartas de Flaubert,
quando está escrevendo Madame Bovary - ele está sempre escrevendo cartas, é um
missivista incansável -, notamos a afirmação de que o burguês é um delirante. E qual o delírio
do burguês? Mudar de vida, subir na vida, alterando seu destino. Hoje, este é um delírio
compartilhado, 150 anos depois de Flaubert e de Emma Bovary. Não sei se Flaubert estava
certo ou se nós o estamos. Mas a idéia de que é possível mudar de vida, não só através de
um amante, mas pelos nossos próprios recursos, é um delírio hoje compartilhado. Vivemos
em uma sociedade burguesa absolutamente estabelecida, na qual isto não é algo que cause
estranhamento, como ocorria com Flaubert em 1856. A idéia de que é possível mudar de vida,
não só através de um amante, mas pelos nossos próprios recursos, é um delírio hoje
compartilhado. Vivemos em uma sociedade burguesa absolutamente estabelecida, na qual
isto não é algo que cause estranhamento.
Me chama a atenção Flaubert querer escrever sobre a burguesia - ele foi um crítico implacável
dos sonhos e delírios dos burgueses - realizando um romance sobre uma mulher. Ao longo da
história de Emma Bovary, existe um personagem secundário, absolutamente caricato, que é o
farmacêutico Homais, perfeita encarnação do burguês que muda de vida. Mas ele é um
homem. Com uma série de truques e manipulações, pois é muito oportunista e esperto,
desenvolve sua trajetória individual ancorada nos recursos oferecidos pela sociedade a um
homem de negócios, possibilidade que Emma não tem. E chama a atenção o fato de o
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naufrágio absoluto de Emma Bovary, culminando com seu suicídio, não encerrar o romance.
Este alonga-se por alguns capítulos - discorrendo sobre a desgraça de Charles Bovary - e
termina com o sucesso de Homais. A última frase de Madame Bovary refere-se ao fato de que
ele, Homais, acabou de receber a Cruz de Honra. É interessante que dois personagens
igualmente delirantes - uma mulher e um homem - tenham destinos tão diversos. Essa mulher
tenta realizar seu delírio através da vida amorosa com outro homem que a leve aonde ela
quer - já que não pode ir sozinha - e naufraga. O outro personagem delirante é um filisteu,
pessoa desinteressante, com sonhos absolutamente materialistas, um embusteiro, pois se
apresenta como grande filósofo e é um blefe, terminando o romance homenageado,
recebendo a Cruz de Honra, tornando-se uma grande autoridade na pequena província. Fiz
esse longo percurso para dizer que essa é a mulher que Freud assiste em plena crise de
infelicidade com seu destino. É curioso que o termo bovarismo, vindo da psiquiatria do início
do século XX, designe uma espécie de doença mental, um sintoma psiquiátrico e não cultural.
Bovarismo para Jules Gaultier, psiquiatra que inventou o termo, está relacionado à síntese de
sintomas daqueles que sonham ser o que não são, exatamente o que ocorria com Emma
Bovary. A possibilidade de mobilidade social, que explode com a modernidade, permite a
todos nós sonhar ser o que não somos. Como esse sonho se fundamenta, como lidamos com
ele, é outra história. Mas o fato é que ninguém mais nasce com o destino marcado pelo seu
gênero, pela classe social em que nasceu ou grupo cultural a que pertence.
Fiz todas essas referências para dizer que Freud tenta, com seus padrões vitorianos de
julgamento moral - isto não é uma crítica mas uma constatação - curar a histérica
reconciliando-a com a feminilidade. Supõe-se que esteja em crise porque tem fantasias
fálicas, de masculinidade, fantasias que não aceitam a castração feminina ou então sofra de
inveja do pênis e deva ser reconciliada com sua condição. Até hoje, essa contradição
permanece na psicanálise. Ou seja, a psicanálise foi o primeiro dos discursos modernos que
deu plena voz à mulher, à subjetividade, ao sofrimento, às fantasias e à sexualidade femininos
e, neste sentido, inaugura a possibilidade do falo da fala - que a mulher tenha uma fala
tornada pública. Por outro lado, a psicanálise é absolutamente incapaz, nos modelos
freudianos, de dar conta desse sofrimento porque, se a mulher estava em crise com a
feminilidade, a última coisa que deveria acontecer era a recompatibilização com aqueles
padrões de feminilidade.
Freud resume muito bem: feminilidade seria a possibilidade de a mulher aceitar uma posição
passiva na relação sexual, perdendo as ilusões de ter um pênis e aceitando ter uma vagina,
100
abandonando o prazer clitoridiano pelo prazer vaginal, aceitando o destino da maternidade e
aquele de ser mulher de um único homem.
É exatamente isso que a mulher do século XIX não pode mais conciliar. Apesar de existirem
possibilidades sempre abertas, este já não poderia mais ser considerado como todo o campo
oferecido à mulher. Isto já estava destruído e o interessante é que a psicanálise contribuiu
para essa destruição, ao dar voz à mulher. E, até hoje, parece que a psicanálise fica nesse
impasse de tentar criar uma mulher feminina nos padrões do século XIX, considerando que
seu sintoma é a histeria. Esse é um aspecto que discutirei em outro momento porque, de lá
para cá, além da psicanálise, que considero uma técnica moderna, apesar de seus cem anos,
outro fenômeno vem nos tirar ainda mais do eixo. Apesar de também ter, pelo menos em
termos de difusão popular, quase 50 anos, é um fenômeno do qual ainda não nos demos
conta. Trata-se da difusão de métodos anticoncepcionais em escala popular, desvinculando a
sexualidade da procriação.
Tenho a impressão de que uma das formas de alienação mais visíveis que a era tecnológica
produz, pela extrema velocidade que nos propicia, é a quebra dos padrões de contemplação e
de reflexão e sua substituição por padrões de velocidade. Esta é uma digressão sobre a
quantidade de fenômenos que nos ultrapassam sem termos tempo de nos darmos conta
deles.
Estou dizendo isso porque acredito que nós, mulheres e homens, ainda não nos demos conta,
passados 30, 40 anos da revolução sexual do fim dos anos 50, 60, do que representa - não só
para o inconsciente mas para a identidade sexual das mulheres - essa possibilidade,
perfeitamente instalada entre nós, de separar vida sexual de procriação. Só depois de os
métodos anticoncepcionais nos darem alguma segurança torna-se possível, por exemplo,
abrir mão totalmente do tabu da virgindade. Ele garantia, como todos sabem, a linhagem
hereditária dos filhos. Temos 30, 40 anos de vida sexual fora dos padrões de tabu da
virgindade, o que ainda é muito pouco.
Além disso, a mulher é jogada no que vou chamar de "mercado sexual" de uma hora para
outra, de uma geração para outra. Isso significa que, sem que nossas mães - digo "nossas"
para mulheres de 40 anos, como eu - possam nos dizer o que isso representa, porque
viveram outra situação, a mulher é jogada no mercado sexual em condições absolutamente
iguais de escolha em relação ao homem. Ou seja, ela não tem mais que escolher seu parceiro
sexual pensando que este vai ser seu marido, pai dos seus filhos e o homem que vai
101
sustentá-la para o resto da vida. São três coisas que se separam: se ele vai ser o marido, o
pai dos filhos e seu sustentáculo econômico. Acrescente-se a isso a entrada da mulher no
mercado de trabalho também em condições de quase igualdade, ao menos para mulheres de
classe média. Ocorre, portanto, a possibilidade de a mulher escolher seu companheiro erótico
sem que seja necessariamente o amor da sua vida, o pai de seus filhos ou decidir se quer ou
não ter filhos - opção que só era dada, há 50 anos, para mulheres que não se casavam - e
escolher se vai depender ou não economicamente de um homem.
Freud, livre pensador que era, já dizia no fim do século XIX: "não vamos considerar
moralmente a perversão, vamos chamar de perversão aquilo da sexualidade que foge dos
padrões da procriação." Não estamos julgando a perversão no sentido moral. Um beijo na
boca pode ser tão perverso quanto uma relação homossexual, uma vez que não é necessário
para a procriação. Isto é interessante, pois Freud não considera a perversão um caso de
polícia ou de escândalo. Ele está dizendo que a sexualidade humana é polimorfa, admite
modalidades de prazer que não têm nada a ver com aquilo que é o sexo biológico e genital,
garantia da continuidade da espécie. Tenho impressão, se isto não nos assustar demais, e
existem ondas de avanço e retrocesso, que estamos no limiar, que podemos chegar a uma
condição, que é também o que Contardo Calligaris diz, na qual haverá uma sexualidade para
cada ser humano. Isto, na verdade, é o que somos.
Quer dizer, em termos psíquicos, existe uma sexualidade para cada ser humano, ainda que
possamos fazer coisas mais ou menos parecidas. Mas naquilo que isto representa
fantasmaticamente, podemos encontrar um casal heterossexual padrão que, na relação de
troca - nem sempre de forma consciente -, inverta os papéis do homem e da mulher. Isto do
ponto de vista sexual, não me refiro ao fato de a mulher trabalhar e o homem ficar em casa
cuidando dos filhos. Estou falando das REPRESENTAÇÃO FÁLICAS. De fato, a possibilidade
de uma sexualidade para cada pessoa é dada pela condição humana, porque somos seres de
linguagem e a linguagem nos permite todos os discursos.
102
A impossibilidade da completude e a angústia na era tecnológica
Faço aqui uma menção à tecnologia, não àquela dos aparatos - isto é pouco importante,
embora o fetichismo vá se ligar à tecnologia dos aparatos, sendo uma de suas diversas
modalidades -, mas à tecnologia no que ela nos permite em relação à imagem que temos do
uso de nossos corpos. Ao mesmo tempo - isto tudo está parecendo muito otimista -, temos
inúmeros fatores, também produzidos pela sociedade tecnológica e de mercado, que vão
contra toda essa abertura de um campo para a fruição, que parece maravilhosa. É o caso, por
exemplo, da velocidade, da impossibilidade da contemplação, que é talvez um dos maiores
prazeres eróticos que o ser humano pode ter, desde os tempos de Aristóteles, que dizia:
"prazeres do corpo, prazeres do consumo imediato, prazeres sensuais ou sexuais estão todos
abertos para nós. Mas o prazer da contemplação é o prazer." Esse é mais do que humano, é
o prazer que nos iguala aos deuses.
A alienação que essa fé na tecnologia produz, além daquela causada pela velocidade, reside
no fato de começarmos a acreditar que é possível não contar mais com a possibilidade da
morte, ela se torna algo terrível e nós não a enfrentamos.
É como se tentássemos criar excessos - falsos - nos quais não nos deparássemos com a
angústia, mas eles só nos levassem ao vazio. É o excesso dos aparatos, dos objetos, do
consumo e de tudo aquilo que teoricamente podemos controlar e que não tem fundo, porque
não nos remete à nossa própria condição.
A FANTASIA DE COMPLETUDE
1.1 O encontro amoroso
103
A criança conserva em sua fantasia a fusão narcísica inicial com a mãe até que alguma
experiência de separação venha desiludi-la. Para o pequeno ser narcisista, tudo aquilo que é
recebido como bom e prazeroso, é sentido como parte de si mesmo, somente quando alguma
coisa frustra a criança, é que ela a sente como parte do mundo externo. A ilusão da criança de
que ela e a mãe são Um, de que ela é tudo o que a mãe deseja se rompe quando o desejo da
mãe se move para outro lugar. Neste instante a criança percebe que o Grande Outro não é
tudo, que não pode estar sempre presente e a realidade se instala entre os dois que tentavam
ser Um.
As fantasias e necessidades de uma criança recém-nascida estão sob o pleno domínio da
paixão, assim como também, o primeiro momento do encontro amoroso. Na fusão narcísica
inicial com o corpo da mãe, assim como na paixão, o mundo desaparece, o ser é o mundo e o
mundo é extensão do ser.
Todas essas situações vividas pela criança em seus primeiros contatos com suas demandas
pulsionais e as formas apaixonadas que estas vão adquirindo no decorrer da história de vida
podem ser revividas no primeiro momento do encontro amoroso. A fantasia que surge neste
instante é a de restauração do narcisismo primário. Esta diz respeito a reencontrar no ser
amado sua total completude. "Esse narcisismo primário está sempre presente em todo
relacionamento humano em busca do semelhante. Ele tende sempre a união, apagando os
limites entre os indivíduos". (NEVES, 1990; p.17) Espera-se que este ser que completa, possa
tirar o outro da condição solitária que é a própria condição humana.
Ainda em NEVES (1990), pode-se pensar que neste momento, o casal não se opõe, não há
objeções e desacordo. Portanto, se por um acaso se deparam com situações de
desentendimentos, isto é colocado para o exterior. Enfim, não há limitação, os casais
apaixonados vivem num mundo próprio, não havendo uma linha de demarcação entre um e
outro. "Tal como na relação mãe e filho, no início da vida, não há oposição... não há
discriminação - ficam reduzidas quaisquer possibilidade de discernir o eu do não eu..."
(NEVES, 1990; p.17)
Desta forma, há que se considerar, que neste primeiro momento, a ilusão de completude
apresenta-se e isto nada mais é do que o desejo de fusão, de dois formarem Um. Este
momento é instantâneo, os sujeitos sentem-se maravilhados por terem achado alguém que
depois de muito procurar acaba se encaixando em suas fantasias. "O encontro faz com que o
sujeito apaixonado já capturado, sinta a vertigem de um acaso sobrenatural..." (BARTHES,
1998; p.81)
Neste sentido, as fantasias presentes no início de uma relação, não concedem existência
própria ao outro, que se torna depositário das fantasias mais primitivas, um outro eu que
deseja as mesmas coisas e que resgata o sujeito da condição da falta em que se encontra.
104
Durante o momento do encontro amoroso, os sujeitos apostam que não há limites para se
completarem e todas as suas fantasias são tecidas no sentido de encontrarem o par ideal.
Apostam terem encontrado a tão sonhada completude e a eterna felicidade. O amor nascido
deste momento cria a ilusão de fusão e cada sujeito busca no outro a sua metade.
"O mito do casal perfeito que insiste desde a infância parece ter encontrado um ancoradouro.
Os sonhos infantis, nesse tempo, ensaiam uma realização ao depositar nesse encontro a
esperança de felicidade eterna e completude".(OTONI DE BARROS, 1996, p. 21)
Os sujeitos enamorados apostam que podem conhecer o parceiro por inteiro, que se
completam e que formam o Um. Isto pode ser perfeitamente explicitado no Mito dos Seres
Colados que Aristófanes apresenta em O Banquete, PLATÃO (1987). Neste mito, duas
criaturas viviam unidas numa total fusão e completude até que são condenadas a viverem
separadas uma da outra. Construir o Um, neste sentido, seria colar algo no lugar daquilo que
foi perdido. Algo que possa enfim anular a diferença, tamponar a falta e destituir a angústia de
castração.
É justamente o objetivo de se fazer o Um que impede a relação de dois, pois jamais de dois
formou-se Um. Se o objetivo de dois sujeitos tiver como base a completude, o Um, instaura-se
o fracasso do amor, "... pois o amor é a possibilidade da inscrição de dois... é a possibilidade
de apresentar o dois como um e um, enlaçados na disjunção, suporte da falta e da diferença."
( OTONI DE BARROS, 1966, p. 25).
Em LACAN, (1985) pode-se ler sobre a narrativa do Baile de Máscaras, a qual será usada
para ilustrar este momento, em que o traço tão procurado, se revela na ordem do impossível.
Em um baile de máscaras, duas pessoas se encontram e extasiadas pela presença uma da
outra, dançam a noite toda. Cada um esculpe no outro suas fantasias, estão encantados pela
máscara, até que... de repente, no fim do baile, as máscaras caem. Neste instante irrompe a
descoberta de que o outro não era o que realmente eles imaginavam. É o encontro com o
desencontro, com o desamparo e com a desilusão do amor. Neste cair das máscaras, o
sujeito se apresentará como castrado. Portanto, o amor lacaniano, que implica nessa
dimensão da falta, assim como do reencontro sempre faltoso, transforma este primeiro
momento em mascarado e obscuro. Neste ponto, o grande passo, foi vincular o objeto com a
castração, fazendo desta o nome da falta que nenhum objeto pode tamponar.
A DESILUSÃO DO AMOR
105
Os desencontros do amor
O momento de felicidade plena também pode ser de angústia, já que tem-se a impressão que
o outro lhe escapará, o amor então irá reviver a decepção do recém- nascido que perde a
condição de único no desejo da mãe. A realidade se instala entre os dois que tentavam ser o
Um e revela o que estava sendo negada, a falta. "Ao retirar os óculos com o qual a paixão
decora a realidade, revela-se a distância entre o objeto desejado e o encontrado, restando
dessa revelação as diferenças e o desencontro" (OTONI DE BARROS,1996,p.22)
Este amor depara-se então com as diferenças, com a impossibilidade, com a frustração. Não
existe objeto que satisfaça plenamente o desejo e é justamente por isso que ele não
pára de renascer. Dessa decepção revivida no encontro, há uma reedição das primeiras
frustrações infantis, ou seja, dessa decepção aparece o desencontro. Portanto, o encontro
amoroso é uma tensão, na medida em que o que o sujeito não encontra em um lugar, busca
em outro.
"A esta impossibilidade de manutenção do estado narcísico, do qual fomos expulsos com o
nascimento, a psicanálise denomina castração que significa perda, falta, ou seja, o limite que
é imposto à onipotência do desejo."
"Toda escolha de objeto amoroso tem na sua base um movimento pulsional que busca
encontrar o objeto perdido e, nessa via, a escolha amorosa é uma tentativa, através do
semelhante, de alcançar a completude e tamponar essa falta do objeto. Assim, o amor traz a
ilusão do reencontro com o objeto" (CARAM, 1995: p.92)".
Entretanto esta falta, remete à diferença anatômica entre os sexos que apenas simboliza na
infância esta perda do pênis e favorece para o menino a ilusão de completude ao mesmo
tempo em que o atira à angústia diante da possibilidade da perda do pênis. No entanto,
favorece à menina em relação à sua desilusão de completude. Ao mesmo tempo em que a
leva à inveja do pênis, a atira também as tentativas fálicas de restauração do narcisismo, uma
vez que, a menina acha que "tinha e perdeu ou então que ainda vai crescer". Na verdade, não
há solução para a verdade: castrados todos são.
106
Uma vez instaurado o desencontro, nem todos toleram a mudança na relação e nem todos
sobrevivem a elas. Não só no sentido de se manterem juntos, mas sobretudo, no sentido de
desenvolver uma relação posterior à ruptura desse pacto inicial inconsciente onde
predominavam o desejo de uma perfeita fusão, onde um é espelho do outro. Neste momento,
os casais reclamam a falta de amor entre eles, e no entanto, o que falta é a possibilidade de
aceitar a separação em relação ao outro, de aceitar a própria individualidade. Há que se
pensar em um certo grau de dependência que precisa existir para que a relação continue
sendo necessária. "O amor é o anseio constante por chegar ao uno, mas se o uno existisse
seria a negação do amor. Morreremos sós, como metades, sós." (PEREZ,1987;p.87)
A questão do propósito da vida humana já foi levantada várias vezes; nunca, porém, recebeu
resposta satisfatória e talvez não a admita. Alguns daqueles que a formularam acrescentaram
que, se fosse demonstrado que a vida não tem propósito, esta perderia todo valor para eles.
Tal ameaça, porém, não altera nada. Pelo contrário, faz parecer que temos o direito de
descartar a questão, já que ela parece derivar da presunção humana, da qual muitas outras
manifestações já nos são familiares. Ninguém fala sobre o propósito da vida dos animais, a
menos, talvez, que se imagine que ele resida no fato de os animais se acharem a serviço do
homem. Contudo, tampouco essa opinião é sustentável, de uma vez que existem muitos
animais de que o homem nada pode se aproveitar, exceto descrevê-los, classificá-los e
estudá-los; ainda assim, inumeráveis espécies de animais escaparam inclusive a essa
utilização, pois existiram e se extinguiram antes que o homem voltasse seus olhos para elas.
Mais uma vez, só a religião é capaz de resolver a questão do propósito da vida. Dificilmente
incorreremos em erro ao concluirmos que a idéia de a vida possuir um propósito se forma e
desmorona com o sistema religioso.
Voltar-nos-emos, portanto, para uma questão menos ambiciosa, a que se refere àquilo que os
próprios homens, por seu comportamento, mostram ser o propósito e a intenção de suas
vidas. O que pedem eles da vida e o que desejam nela realizar? A resposta mal pode
provocar dúvidas. Esforçam-se para obter felicidade; querem ser felizes e assim permanecer.
107
Essa empresa apresenta dois aspectos: uma meta positiva e uma meta negativa. Por um lado,
visa a uma ausência de sofrimento e de desprazer; por outro, à experiência de intensos
sentimentos de prazer. Em seu sentido mais restrito, a palavra ‗felicidade‘ só se relaciona a
esses últimos. Em conformidade a essa dicotomia de objetivos, a atividade do homem se
desenvolve em duas direções, segundo busque realizar — de modo geral ou mesmo
exclusivamente — um ou outro desses objetivos.
Assim, nossas possibilidades de felicidade sempre são restringidas por nossa própria
constituição. Já a infelicidade é muito menos difícil de experimentar. O sofrimento nos ameaça
a partir de três direções: de nosso próprio corpo, condenado à decadência e à dissolução, e
que nem mesmo pode dispensar o sofrimento e a ansiedade como sinais de advertência; do
mundo externo, que pode voltar-se contra nós com forças de destruição esmagadoras e
impiedosas; e, finalmente, de nossos relacionamentos com os outros homens. O sofrimento
que provém dessa última fonte talvez nos seja mais penoso do que qualquer outro. Tendemos
a encará-lo como uma espécie de acréscimo gratuito, embora ele não possa ser menos
fatidicamente inevitável do que o sofrimento oriundo de outras fontes.
Não admira que, sob a pressão de todas essas possibilidades de sofrimento, os homens se
tenham acostumado a moderar suas reivindicações de felicidade — tal como, na verdade, o
próprio princípio do prazer, sob a influência do mundo externo, se transformou no mais
modesto princípio da realidade —, que um homem pense ser ele próprio feliz, simplesmente
porque escapou à infelicidade ou sobreviveu ao sofrimento, e que, em geral, a tarefa de evitar
o sofrimento coloque a de obter prazer em segundo plano. A reflexão nos mostra que é
108
possível tentar a realização dessa tarefa através de caminhos muito diferentes e que todos
esses caminhos foram recomendados pelas diversas escolas de sabedoria secular e postos
em prática pelos homens.
O mais grosseiro, embora também o mais eficaz, desses métodos de influência é o químico: a
intoxicação. Não creio que alguém compreenda inteiramente o seu mecanismo; é fato, porém,
que existem substâncias estranhas, as quais, quando presentes no sangue ou nos tecidos,
provocam em nós, diretamente, sensações prazerosas, alterando, também, tanto as
condições que dirigem nossa sensibilidade, que nos tornamos incapazes de receber impulsos
desagradáveis. Os dois efeitos não só ocorrem de modo simultâneo, como parecem estar
íntima e mutuamente ligados. No entanto, é possível que haja substâncias na química de
nossos próprios corpos que apresentem efeitos semelhantes pois conhecemos pelo menos
um estado patológico, a mania, no qual uma condição semelhante à intoxicação surge sem
administração de qualquer droga intoxicante. Além disso, nossa vida psíquica normal
apresenta oscilações entre uma liberação de prazer relativamente fácil e outra
comparativamente difícil, paralela à qual ocorre uma receptividade, diminuída ou aumentada,
109
ao desprazer. É extremamente lamentável que até agora esse lado tóxico dos processos
mentais tenha escapado ao exame científico. O serviço prestado pelos veículos intoxicantes
na luta pela felicidade e no afastamento da desgraça é tão altamente apreciado como um
benefício, que tanto indivíduos quanto povos lhes concederam um lugar permanente na
economia de sua libido. Devemos a tais veículos não só a produção imediata de prazer, mas
também um grau altamente desejado de independência do mundo externo, pois sabe-se que,
com o auxílio desse ‗amortecedor de preocupações‘, é possível, em qualquer ocasião, afastar-
se da pressão da realidade e encontrar refúgio num mundo próprio, com melhores condições
de sensibilidade. Sabe-se igualmente que é exatamente essa propriedade dos intoxicantes
que determina o seu perigo e a sua capacidade de causar danos. São responsáveis, em
certas circunstâncias, pelo desperdício de uma grande quota de energia que poderia ser
empregada para o aperfeiçoamento do destino humano.
Podemos, portanto, ter esperanças de nos libertarmos de uma parte de nossos sofrimentos,
agindo sobre os impulsos instintivos. Esse tipo de defesa contra o sofrimento se aplica mais
ao aparelho sensorial; ele procura dominar as fontes internas de nossas necessidades. A
forma extrema disso é ocasionada pelo aniquilamento dos instintos, tal como prescrito pela
sabedoria do mundo peculiar ao Oriente e praticada pelo ioga. Caso obtenha êxito, o
indivíduo, é verdade, abandona também todas as outras atividades: sacrifica a sua vida e, por
outra via, mais uma vez atinge apenas a felicidade da quietude. Seguimos o mesmo caminho
quando os nossos objetivos são menos extremados e simplesmente tentamos controlar nossa
vida instintiva. Nesse caso, os elementos controladores são os agentes psíquicos superiores,
que se sujeitaram ao princípio da realidade. Aqui, a meta da satisfação não é, de modo algum,
abandonada, mas garante-se uma certa proteção contra o sofrimento no sentido de que a
não-satisfação não é tão penosamente sentida no caso dos instintos mantidos sob
dependência como no caso dos instintos desinibidos. Contra isso, existe uma inegável
diminuição nas potencialidades de satisfação. O sentimento de felicidade derivado da
satisfação de um selvagem impulso instintivo não domado pelo ego é incomparavelmente
mais intenso do que o derivado da satisfação de um instinto que já foi domado. A
irresistibilidade dos instintos perversos e, talvez, a atração geral pelas coisas proibidas
encontram aqui uma explicação econômica.
110
Outra técnica para afastar o sofrimento reside no emprego dos deslocamentos de libido que
nosso aparelho mental possibilita e através dos quais sua função ganha tanta flexibilidade. A
tarefa aqui consiste em reorientar os objetivos instintivos de maneira que eludam a frustração
do mundo externo.
Um outro processo opera de modo mais energético e completo. Considera a realidade como a
única inimiga e a fonte de todo sofrimento, com a qual é impossível viver, de maneira que, se
quisermos ser de algum modo felizes, temos de romper todas as relações com ela. O eremita
rejeita o mundo e não quer saber de tratar com ele. Pode-se, porém, fazer mais do que isso;
pode-se tentar recriar o mundo, em seu lugar construir um outro mundo, no qual os seus
aspectos mais insuportáveis sejam eliminados e substituídos por outros mais adequados a
nossos próprios desejos. Mas quem quer que, numa atitude de desafio desesperado, se lance
por este caminho em busca da felicidade, geralmente não chega a nada. A realidade é
demasiado forte para ele. Torna-se um louco; alguém que, a maioria das vezes, não encontra
ninguém para ajudá-lo a tornar real o seu delírio. Afirma-se, contudo, que cada um de nós se
comporta, sob determinado aspecto, como um paranóico, corrige algum aspecto do mundo
que lhe é insuportável pela elaboração de um desejo e introduz esse delírio na realidade.
Concede-se especial importância ao caso em que a tentativa de obter uma certeza de
felicidade e uma proteção contra o sofrimento através de um remodelamento delirante da
realidade, é efetuada em comum por um considerável número de pessoas. As religiões da
humanidade devem ser classificadas entre os delírios de massa desse tipo. É desnecessário
dizer que todo aquele que partilha um delírio jamais o reconhece como tal.
Não pretendo ter feito uma enumeração completa dos métodos pelos quais os homens se
esforçam para conseguir a felicidade e manter afastado o sofrimento; sei também que o
material poderia ter sido diferentemente disposto. Ainda não mencionei um processo — não
por esquecimento, mas porque nos interessará mais tarde, em relação a outro assunto. E
como se poderia esquecer, entre todas as outras, a técnica da arte de viver? Ela se faz visível
por uma notável combinação de aspectos característicos. Naturalmente, visa também a tornar
o indivíduo independente do Destino (como é melhor chamá-lo) e, para esse fim, localiza a
satisfação em processos mentais internos, utilizando, ao proceder assim, a deslocabilidade da
libido que já mencionamos.
Mas ela não volta as costas ao mundo externo; pelo contrário, prende-se aos objetos
pertencentes a esse mundo e obtém felicidade de um relacionamento emocional com eles.
Tampouco se contenta em visar a uma fuga do desprazer, uma meta, poderíamos dizer, de
cansada resignação; passa por ela sem lhe dar atenção e se aferra ao esforço original e
apaixonado em vista de uma consecução completa da felicidade. Na realidade, talvez se
aproxime mais dessa meta do que qualquer outro método. Evidentemente, estou falando da
modalidade de vida que faz do amor o centro de tudo, que busca toda satisfação em amar e
112
ser amado. Uma atitude psíquica desse tipo chega de modo bastante natural a todos nós;
uma das formas através da qual o amor se manifesta — o amor sexual — nos proporcionou
nossa mais intensa experiência de uma transbordante sensação de prazer, fornecendo-nos
assim um modelo para nossa busca da felicidade. Há, porventura, algo mais natural do que
persistirmos na busca da felicidade do modo como a encontramos pela primeira vez? O lado
fraco dessa técnica de viver é de fácil percepção, pois, do contrário, nenhum ser humano
pensaria em abandonar esse caminho da felicidade por qualquer outro. É que nunca nos
achamos tão indefesos contra o sofrimento como quando amamos, nunca tão
desamparadamente infelizes como quando perdemos o nosso objeto amado ou o seu amor.
Isso, porém, não liquida com a técnica de viver baseada no valor do amor como um meio de
obter felicidade. Há muito mais a ser dito a respeito.
Religião e felicidade
A religião restringe esse jogo de escolha e adaptação, desde que impõe igualmente a todos o
seu próprio caminho para a aquisição da felicidade e da proteção contra o sofrimento. Sua
114
técnica consiste em depreciar o valor da vida e deformar o quadro do mundo real de maneira
delirante — maneira que pressupõe uma intimidação da inteligência. A esse preço, por fixá-las
à força num estado de infantilismo psicológico e por arrastá-las a um delírio de massa, a
religião consegue poupar a muitas pessoas uma neurose individual. Dificilmente, porém, algo
mais. Existem, como dissemos, muitos caminhos que podem levar à felicidade passível de ser
atingida pelos homens, mas nenhum que o faça com toda segurança. Mesmo a religião não
consegue manter sua promessa. Se, finalmente, o crente se vê obrigado a falar dos ‗desígnios
inescrutáveis‘ de Deus, está admitindo que tudo que lhe sobrou, como último consolo e fonte
de prazer possíveis em seu sofrimento, foi uma submissão incondicional. E, se está preparado
para isso, provavelmente poderia ter-se poupado o détour que efetuou.
O trabalho psicanalítico nos mostrou que as frustrações da vida sexual são precisamente
aquelas que as pessoas conhecidas como neuróticas não podem tolerar. O neurótico cria em
seus sintomas satisfações substitutivas para si, e estas ou lhe causam sofrimento em si
próprias, ou se lhe tornam fontes de sofrimento pela criação de dificuldades em seus
relacionamentos com o meio ambiente e a sociedade a que pertence. Esse último fato é fácil
de compreender; o primeiro nos apresenta um novo problema. A civilização, porém, exige
outros sacrifícios, além do da satisfação sexual.
A pista pode ser fornecida por uma das exigências ideais, tal como as denominamos, da
sociedade civilizada.
Diz ela: ‗Amarás a teu próximo como a ti mesmo.‘ Essa exigência, conhecida em todo o
mundo, é, indubitavelmente, mais antiga que o cristianismo, que a apresenta como sua
reivindicação mais gloriosa. No entanto, ela não é decerto excessivamente antiga; mesmo já
em tempos históricos, ainda era estranha à humanidade. Se adotarmos uma atitude ingênua
para com ela, como se a estivéssemos ouvindo pela primeira vez, não poderemos reprimir um
sentimento de surpresa e perplexidade.
Por que deveremos agir desse modo? Que bem isso nos trará? Acima de tudo, como
conseguiremos agir desse modo? Como isso pode ser possível? Meu amor, para mim, é algo
de valioso, que eu não devo jogar fora sem reflexão. A máxima me impõe deveres para cujo
cumprimento devo estar preparado e disposto a efetuar sacrifícios. Se amo uma pessoa, ela
tem de merecer meu amor de alguma maneira. (Não estou levando em consideração o uso
que dela posso fazer, nem sua possível significação para mim como objeto sexual, de uma
vez que nenhum desses dois tipos de relacionamento entra em questão onde o preceito de
amar meu próximo se acha em jogo.) Ela merecerá meu amor, se for de tal modo semelhante
a mim, em aspectos importantes, que eu me possa amar nela; merecê-lo-á também, se for de
tal modo mais perfeita do que eu, que nela eu possa amar meu ideal de meu próprio eu (self).
Terei ainda de amá-la, se for o filho de meu amigo, já que o sofrimento que este sentiria se
116
algum dano lhe ocorresse seria meu sofrimento também — eu teria de partilhá-lo. Mas, se
essa pessoa for um estranho para mim e não conseguir atrair-me por um de seus próprios
valores, ou por qualquer significação que já possa ter adquirido para a minha vida emocional,
me será muito difícil amá-la. Na verdade, eu estaria errado agindo assim, pois meu amor é
valorizado por todos os meus como um sinal de minha preferência por eles, e seria injusto
para com eles, colocar um estranho no mesmo plano em que eles estão. Se, no entanto, devo
amá-lo (com esse amor universal) meramente porque ele também é um habitante da Terra,
assim como o são um inseto, uma minhoca ou uma serpente, receio então que sóuma
pequena quantidade de meu amor caberá à sua parte — e não, em hipótese alguma, tanto
quanto, pelo julgamento de minha razão, tenho o direito de reter para mim. Qual é o sentido
de um preceito enunciado com tanta solenidade, se seu cumprimento não pode ser
recomendado como razoável?
Através de um exame mais detalhado, descubro ainda outras dificuldades. Não meramente
esse estranho é, em geral, indigno de meu amor; honestamente, tenho de confessar que ele
possui mais direito a minha hostilidade e, até mesmo, meu ódio. Não parece apresentar o
mais leve traço de amor por mim e não demonstra a mínima consideração para comigo. Se
disso ele puder auferir uma vantagem qualquer, não hesitará em me prejudicar; tampouco
pergunta a si mesmo se a vantagem assim obtida contém alguma proporção com a extensão
do dano que causa em mim. Na verdade, não precisa nem mesmo auferir alguma vantagem;
se puder satisfazer qualquer tipo de desejo com isso, não se importará em escarnecer de
mim, em me insultar, me caluniar e me mostrar a superioridade de seu poder, e, quanto mais
seguro se sentir e mais desamparado eu for, mais, com certeza, posso esperar que se
comporte dessa maneira para comigo. Caso se conduza de modo diferente, caso mostre
consideração e tolerância como um estranho, estou pronto a tratá-lo da mesma forma, em
todo e qualquer caso e inteiramente fora de todo e qualquer preceito. Na verdade, se aquele
imponente mandamento dissesse ‗Ama a teu próximo como este te ama‘, eu não lhe faria
objeções. E há um segundo mandamento que me parece mais incompreensível ainda e que
desperta em mim uma oposição mais forte ainda. Trata-se do mandamento ‗Ama os teus
inimigos‘. Refletindo sobre ele, no entanto, percebo que estou errado em considerá-lo como
uma imposição maior. No fundo, é a mesma coisa.
Acho que agora posso ouvir uma voz solene me repreendendo: ‗É precisamente porque teu
próximo não é digno de amor, mas, pelo contrário, é teu inimigo, que deves amá-lo como a ti
mesmo‘. Compreendo então que se trata de um caso semelhante ao do Credo quia absurdum.
Ora, é muito provável que meu próximo, quando lhe for prescrito que me ame como a si
mesmo, responda exatamente como o fiz e me rejeite pelas mesmas razões. Espero que não
tenha os mesmos fundamentos objetivos para fazê-lo, mas terá a mesma idéia que tenho.
117
Ainda assim, o comportamento dos seres humanos apresenta diferenças que a ética,
desprezando o fato de que tais diferenças são determinadas, classifica como ‗boas‘ ou ‗más‘.
Enquanto essas inegáveis diferenças não forem removidas, a obediência às elevadas
exigências éticas acarreta prejuízos aos objetivos da civilização, por incentivar o ser mau. Não
podemos deixar de lembrar um incidente ocorrido na câmara dos deputados francesa, quando
a pena capital estava em debate. Um dos membros acabara de defender apaixonadamente a
abolição dela e seu discurso estava sendo recebido com tumultuosos aplausos, quando uma
voz vinda do plenário exclamou: ‗Que messieurs les assassins commencent!
O elemento de verdade por trás disso tudo, elemento que as pessoas estão tão dispostas a
repudiar, é que os homens não são criaturas gentis que desejam ser amadas e que, no
máximo, podem defender-se quando atacadas; pelo contrário, são criaturas entre cujos dotes
instintivos deve-se levar em conta uma poderosa quota de agressividade. Em resultado disso,
o seu próximo é, para eles, não apenas um ajudante potencial ou um objeto sexual, mas
também alguém que os tenta a satisfazer sobre ele a sua agressividade, a explorar sua
capacidade de trabalho sem compensação, utilizá-lo sexualmente sem o seu consentimento,
apoderar-se de suas posses, humilhá-lo, causar-lhe sofrimento, torturá-lo e matá-lo. — Homo
homini lupus. Quem, em face de toda sua experiência da vida e da história, terá a coragem de
discutir essa asserção? Via de regra, essa cruel agressividade espera por alguma
provocação, ou se coloca a serviço de algum outro intuito, cujo objetivo também poderia ter
sido alcançado por medidas mais brandas. Em circunstâncias que lhe são favoráveis, quando
as forças mentais contrárias que normalmente a inibem se encontram fora de ação, ela
também se manifesta espontaneamente e revela o homem como uma besta selvagem, a
quem a consideração para com sua própria espécie é algo estranho. Quem quer que relembre
as atrocidades cometidas durante as migrações raciais ou as invasões dos hunos, ou pelos
povos conhecidos como mongóis sob a chefia de Gengis Khan e Tamerlão, ou na captura de
Jerusalém pelos piedosos cruzados, ou mesmo, na verdade, os horrores da recente guerra
mundial, quem quer que relembre tais coisas terá de se curvar humildemente ante a verdade
dessa opinião.
A existência da inclinação para a agressão, que podemos detectar em nós mesmos e supor
com justiça que ela está presente nos outros, constitui o fator que perturba nossos
relacionamentos com o nosso próximo e força a civilização a um tão elevado dispêndio [de
energia]. Em conseqüência dessa mútua hostilidade primária dos seres humanos, a sociedade
civilizada se vê permanentemente ameaçada de desintegração. O interesse pelo trabalho em
comum não a manteria unida; as paixões instintivas são mais fortes que os interesses
razoáveis. A civilização tem de utilizar esforços supremos a fim de estabelecer limites para os
instintos agressivos do homem e manter suas manifestações sob controle por formações
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psíquicas reativas. Daí, portanto, o emprego de métodos destinados a incitar as pessoas a
identificações e relacionamentos amorosos inibidos em sua finalidade, daí a restrição à vida
sexual e daí, também, o mandamento ideal de amar ao próximo como a si mesmo,
mandamento que é realmente justificado pelo fato de nada mais ir tão fortemente contra a
natureza original do homem. A despeito de todos os esforços, esses empenhos da civilização
até hoje não conseguiram muito. Espera-se impedir os excessos mais grosseiros da violência
brutal por si mesma, supondo-se o direito de usar a violência contra os criminosos; no entanto,
a lei não é capaz de deitar a mão sobre as manifestações mais cautelosas e refinadas da
agressividade humana. Chega a hora em que cada um de nós tem de abandonar, como
sendo ilusões, as esperanças que, na juventude, depositou em seus semelhantes, e aprende
quanta dificuldade e sofrimento foram acrescentados à sua vida pela má vontade deles. Ao
mesmo tempo, seria injusto censurar a civilização por tentar eliminar da atividade humana a
luta e a competição. Elas são indubitavelmente indispensáveis. Mas oposição não é
necessariamente inimizade; simplesmente, ela é mal empregada e tornada uma ocasião para
a inimizade.
Os comunistas acreditam ter descoberto o caminho para nos livrar de nossos males. Segundo
eles, o homem é inteiramente bom e bem disposto para como seu próximo, mas a instituição
da propriedade privada corrompeu-lhe a natureza. A propriedade da riqueza privada confere
poder ao indivíduo e, com ele, a tentação de maltratar o próximo, ao passo que o homem
excluído da posse está fadado a se rebelar hostilmente contra seu opressor.
Se a civilização impõe sacrifícios tão grandes, não apenas à sexualidade do homem, mas
também à sua agressividade, podemos compreender melhor porque lhe é difícil ser feliz nessa
civilização. Na realidade, o homem primitivo se achava em situação melhor, sem conhecer
restrições de instinto. Em contrapartida, suas perspectivas de desfrutar dessa felicidade, por
qualquer período de tempo, eram muito tênues. O homem civilizado trocou uma parcela de
suas possibilidades de felicidade por uma parcela de segurança. Não devemos esquecer,
contudo, que na família primeva apenas o chefe desfrutava da liberdade instintiva; o resto
vivia em opressão servil. Naquele período primitivo da civilização, o contraste entre uma
minoria que gozava das vantagens da civilização e uma maioria privada dessas vantagens
era, portanto, levada a seus extremos. Quanto aos povos primitivos que ainda hoje existem,
pesquisas cuidadosas mostraram que sua vida instintiva não é, de maneira alguma, passível
de ser invejada por causa de sua liberdade. Está sujeita a restrições de outra espécie, talvez
mais severas do que aquelas que dizem respeito ao homem moderno.
Quando, com toda justiça, consideramos falho o presente estado de nossa civilização, por
atender de forma tão inadequada às nossas exigências de um plano de vida que nos torne
felizes, e por permitir a existência de tanto sofrimento, que provavelmente poderia ser evitado;
quando, com crítica impiedosa, tentamos pôr à mostra as raízes de sua imperfeição, estamos
indubitavelmente exercendo um direito justo, e não nos mostrando inimigos da civilização.
Podemos esperar efetuar, gradativamente, em nossa civilização alterações tais, que
satisfaçam melhor nossas necessidades e escapem às nossas críticas. Mas talvez possamos
também nos familiarizar com a idéia de existirem dificuldades, ligadas à natureza da
civilização, que não se submeterão a qualquer tentativa de reforma. Além e acima das tarefas
de restringir os instintos, para as quais estamos preparados, reivindica nossa atenção o perigo
de um estado de coisas que poderia ser chamado de ‗pobreza psicológica dos grupos‘. Esse
perigo é mais ameaçador onde os vínculos de uma sociedade são principalmente constituídos
pelas identificações dos seus membros uns com os outros, enquanto que indivíduos do tipo de
um líder não adquirem a importância que lhes deveria caber na formação de um grupo. O
presente estado cultural dos Estados Unidos da América nos proporcionaria uma boa
oportunidade para estudar o prejuízo à civilização, que assim é de se temer. Evitarei, porém, a
tentação de ingressar numa crítica da civilização americana; não desejo dar a impressão de
que eu mesmo estou empregando métodos americanos.