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Opção lacaniana, nº15, 1996, p.

96-99

A INTERPRETAÇÃO PELO AVESSO


]ACQUES-ALAIN MILLER (Paris)

-Você não diz nada? equivalência do inconsciente e da interpretação é o que


-Ah sim, eu digo alguma coisa. Eu digo que o tempo surge no fim do seminário "Desejo e sua interpretação" -
da interpretação ficou para trás. neste paradoxo o desejo inconsciente é sua interpretação. A
É o que todos dizem, mas sem sabê-lo ainda. Essa é a equivalência inconsciente/interpretação, não é o que se tor­
razão pela qual estas Jornadas sobre a interpretação pre­ na a dizer sob a forma do conceito do sujeito suposto saber?
cisavam de uma interpretação. Fica isso assim resolvido, só por tê-lo dito hoje outra vez?
O tempo da interpretação ficou para trás. Isso Lacan É um engodo, até um impasse, unilateralizar a inter­
sabia, mas não o dizia: ele o deixava entender e só agora pretação do lado do analista como sua intervenção, sua
começamos a ler. ação, seu ato, seu dito, seu dizer. Certamente ficou-se
Dizemos a "interpretação", só temos essa palavra na demasiàdo fascinado pelo �peech act do analista para per­
boca, ela nos garante que em nós prossegue a "história" ceber a equivalência a que me referia do inconsciente/
da psicanálise. Mas dizemos a interpretação como dize­ interpretação - o tempo-para-compreender aqui se pro­
mos o "inconsciente", sem pensar mais na consciência, longou indevidamente.
nem em negá-la. O "inconsciente", a "interpretação" são As teorias da interpretação analítica testemunham ape­
termos da tribo, dos quais se insinua o sentido novo que nas o narcisismo dos analistas. É tempo de concluir. A
aparece mascarado. interpretação é primordialmente a do inconsciente, no
O que é o inconsciente? Como se interpreta seu in­ sentido subjetivo do genitivo - é o inconsciente que inter­
consciente? - quando não mais referido à consciência, preta. A interpretação analítica vem depois, ela se apóia
mas à função da palavra no campo da linguagem. Quem na interpretação do inconsciente, daí o erro de crer que é
não sabe que o inconsciente fica inteirinho na defasa­ o inconsciente do analista que interpreta.
gem? - a defasagem que se repete no que quero dizer ao Não partindo do a priori que o inconsciente interpre­
que. digo - como se o significante desviasse a trajetória ta, termina-se fazendo do inconsciente uma linguagem­
programada do significado, e isso fornece elemento para objeto e da interpretação uma metalinguagem. A inter-
ser interpretado - como se o sigificante interpretasse a pretação, no entanto, não é estratificada em relação ao
seu modo o que quero dizer. Freud situou aí, nessa defa- inconsciente; inscreve-se no mesmo registro; é constituti\·a
sagem, o que chamou o "inconsciente" - como se no lu- deste registro; quando é a vez do analista, este faz como
gar do meu querer dizer, que é minha "intenção de signi- o inconsciente; inscreve-se na mesma sequência; faz so­
ficação", ficasse o querer dizer de significação outra que mente a interpretação passar do estado selvagem que de­
seria o do próprio significante, designado por Lacan com monstra estar no inconsciente para o estado racional onde
o "desejo do Outro". tenta conduzi-la. Fazer ressoar, fazer alusão, subentender,
Como é simples! Tão conhecido! Então, por que a silenciar, fazer oráculo, citar, fazer enigma. meio-dizer,
conclusão nesses ditos demorou tanto a vir à luz? - a revelar - quem faz isso? Quem o faz melhor? Quem mane­
interpretação não é outra coisa que o inconsciente, a ja esta retórica desde nascença, enquanto você se esforça
interpretação é o próprio inconsciente. por aprender rudimentos dela? Quem? - a não ser o pró-
Por que Lacan não acrescentou a interpretação no rot.'� prio inconsciente.
�:
dos conceitos fundamentais da psicanálise? - justamente· Toda a teoria da interpretação jamais teve outro obje-


por estar incluída no próprio conceito de inconsciente. A tivo - ensiná-lo a falar como o inconsciente.


■ EIMl@WH@M

_-\ interpretação mínima, o "eu não o faço dizê-lo", é o "Instância da letra". Esse programa consiste em reduzir a
que então? - apenas colocar as aspas da citação no dito, libido no ser do sentido.
retirá-lo do contexto, fazendo aparecer um sentido novo. Salientei os cinco principais momentos da elabora­
O inconsciente não faz isso com o sonho? - foi a desco­ ção. Ao final, trata-se da desqualificação do objeto a.
berta que Freud nomeou "restos diurnos". O que Lacan assim batizou com o nome de objeto
O inconsciente interpreta. E o analista, se interpretar, pequeno a é o último dejeto de uma tentativa grandiosa:
o faz na sequência. Que outra via se abre no fim? - a de integrar o gozo na estrutura de linguagem, se preciso for
se identificar com o próprio inconsciente. É o princípio estendê-lo até a estrutura de discurso.
do novo narcisismo, não sendo mais o do eu forte. "Você Mais além, abre-se outra dimensão, onde a estrutura
não diz nada?". Certamente. Calar-se aqui é o mal menor. de linguagem é propriamente relativizada, aparecendo
Sendo que interpretar, o inconsciente não faz outra coisa, apenas como uma elaboração de saber sobre '·alíngua".
faz até melhor, geralmente, que o analista. Quando o O termo significante falha em captar do que se trata - já
analista se cala é porque o inconsciente interpreta. que é feito para captar o efeito de significado, dando
Entretanto, o inconsciente quer ser interpretado. Ofe­ apenas conta do produto de gozo.
rece-se para tanto. Se não o quisesse, se o desejo incons­ Doravante a interpretação não será mais o que era. A
ciente do sonho não fosse, em sua fase mais profunda, idade da interpretação acabou, a idade em que Freud
desejo de ser interpretado - Lacan o diz - desejo de fazer revirava o discurso universal com a interpretação.
sentido, não haveria analista. ,Freud começou pelo sonho que, desde sempre, se
. Penetremos no paradoxo. O inconsciente interpreta e prestou para a interpretação. Prosseguiu com o sintoma,
quer ser interpretado. Há contradição aí apenas para um concebido conforme o modelo do sonho, uma mensa­
conceito sumário da interpretação. De fato, a interpreta­ gem a decifrar. Já havia deparado no caminho com a
ção chama sempre a interpretação. reação terapêutica negativa, o masoquismo e o fantasma.
Vamos dizê-lo diferente: interpretar é decifrar. Mas, O que Lacan continuou chamando de "interpretação"
decifrar é cifrar novamente. O movimento pára somente não é mais isso, já que esta não se alinha ao sintoma e
numa satisfação. sim ao fantasma. E nós, sempre estamos repetindo que o
Freud diz isso ao inscrever o sonho como discurso no fantasma não se interpreta, constroe-se.
registro do processo primário, como realização de dese­ O fantasma é uma frase da qual se goza, mensagem
jo. E Lacan no-lo decifra dizendo que o gozo está no cifrada que encerra o gozo. O próprio sintoma é pensado
ciframento. em função do fantasma que Lacan nomeia o "sinthoma".
Mais ainda - como o gozo está no ciframento? Com Uma prática que visa no sujeito o sinthoma não se
qual ser está no ciframento? Habita que lugar no interpreta em detrimento do inconsciente. Fazê-lo é per­
ciframento? manecer a serviço do princípio do prazer. Colocar-se a
Dito de forma abrupta, tal como convém a comunica­ serviço do princípio do prazer não muda nada, o pró­
ções breves que constituem o estilo e o sal destas Jorna­ prio princípio da realidade está a serviço do princípio
das - não há o que na estrutura de linguagem permita do prazer.
responder corretamente à questão levantada, salvo se Interpretar a serviço do princípio do prazer - não bus­
corrigirmos a estrutura. quem alhures o princípio da análise interminável. Não é
No ano precedente, cansei meu auditório, fazendo-o isso que Lacan 'chama de "via para o sujeito do verdadei­
seguir os meandros preciosos a Lacan, para integrar a ro despertar".
libido freudiana na estrutura de linguagem - exatamente Faltou dizer o que poderia ser interpretado além do
no lugar do significado, dando ao gozo, se é possível princípio do prazer - interpretar na contramão do incons­
dizer, o ser próprio do sentido. ciente. O termo interpretação vale aí como lugar tenente
Gozo, sentido gozado - cuja homofonia introduzida de um outro, que só pode ser o silêncio.
em Televisão nos surpreende, se encontra no próprio prin­ Assim também é preciso, por referência, abandonar o
cípio do programa inaugurado, não somente em "Função sintoma a favor do fantasma, pensar o sintoma a partir do

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e campo da palavra e da linguagem", mas também na fantasma - assim como precisamos abandonar a neurose

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a favor da psicose, pensar a neurose a partir da psicose. fundamental da palavra, o fenômeno elementar está aí
O significante tal qual, como cifra, separado dos para manifestar o estado originário da relação do sujeito
efeitos de significação, faz apelo à interpretação. O com alíngua. Sabe está concernido pelo dito, que aí há
significante sozinho é sempre um enigma, eis porque significação, mas não sabe qual significação.
sempre em falta de interpretação. A interpretação pre­ Eis o motivo pelo qual, exatamente aqui, avançando
cisa do envolvimento de outro significante, emergin­ nessa outra dimensão da interpretação, Lacan apela ao
do daí um sentido novo. Finnegans Wake, um texto que apesar de manejar inces­
Trata-se da mesma estrutura por mim salientada há santemente as relações palavra/escrita, som/sentido, teci­
um mês na Seção clínica de Buenos Aires, um colóquio do por condensações, equívocos, homofonias, não tem a
consagrado ao delírio e ao fenômeno elementar. ver com o velho inconsciente. Porque todo ponto de es­
O fenômeno elementar evidencia, de forma particu­ tofo aí fica caduco, não se prestando à interpretação, nem
larmente pura, a presença do significante sozinho, à tradução - a despeito ele heróicos esforços. Porque ele
suspenso - na espera de outro significante para lhe dar próprio não é uma interpretação, reconduzindo maravi­
sentido - e que, via de regra, aparece o significante lhosamente o sujeito da leitura à perplexidade como fe­
hinário do saber, não escondendo quando acontece nômeno elementar do sujeito em alíngua.
sua natureza de delírio. Diz-se bem dito - o delírio de Se S 1 absorve sempre S2 • Os vocábulos que traduziriam
interpretação. o sentido numa outra língua são antecipadamente devora­
É a via de qualquer interpretação: tem estrutura de dos pelo próprio texto, como se ele procedesse uma auto­
delírio, e Freud sem hesitar situa no mesmo plano, sem interpretação, e, sendo assim, a relação significante/signifi­
patamares, o delírio de Schreber e a teoria da libido. cado nãç toma forma de inconsciente. Não se poderia nun­
Sem dúvida que, se o analista só tem a oferecer ao ca separar o que Joyce quis dizer do que disse - transmis­
paciente uma interpretação de ordem delirante, melhor são integral, mas de modo inverso ao materna.
faz calando-se. Máxima de prudência. O efeito zero do fenômeno elementar é aqui obtido
Há outra via, nem a do delírio, nem a do silêncio da através cio efeito aleph, que abre para o infinito semânti­
prudência. Continuaremos se quisermos chamando-a de co, ou melhor, sobre a fuga ele sentido.
''interpretação", apesar dela nada mais ter a ver com o O que ainda chamamos "interpretação", muito embo­
sistema da interpretação, e sim com seu avesso. ra a prática analítica seja sobretudo pós-interpretativa,
Dizendo-o com a concisão exigida pelas Jornadas, na certamente revela, mas o quê? - apenas uma opacidade
outra via o S2 fica retido, para não ser acrescido ao obje­ irredutível na relação do sujeito com alíngua. Eis porque
tivo de cercear S 1 . Trata-se de reconduzir o sujeito aos a interpretação - a pós-interpretação - não é mais, com
significantes propriamente elementares, com os quais certeza, pontuação.
delirou em sua neurose. A pontuação pertence ao sistema da significação; ela
O significante unário, enquanto tal insensato, quer dizer é sempre semântica; ela sempre efetua um ponto de esto­
que o fenômeno elementar é primordial. O avesso da fo. De fato, é o motivo porque a prática pós-interpretatiYa
interpretação consiste em cercear o significante como fe­ toma todo dia a vez da interpretação, referindo-se ao cor­
nômeno elementar do sujeito e como anterior à sua arti­ te e não à pontuação.
culação enquanto formação do inconsciente, que lhe dá O corte, figuramo-lo, ora, como separação entre S: e
sentido de delírio. S2 , a mesma que se inscreve na parte inferior do materna
Quando a interpretação toma-se o êmulo do incons­ "discurso analítico": S// S1 •
ciente, mobilizando recursos sutis de retórica, quando se As consequências disso são fundamentais na constru­
molda na estrutura das formações do inconsciente - o ção do que chamamos de sessão analítica.
delírio, ela o nutre - quando se trata de o esfomear. Não se trata de saber se a sessão é breve ou longa,
Se houver aqui decifração, é uma decifração que não silenciosa ou falante. Ou a sessão é uma unidade semân­
produz sentido. tica, onde S2 vem pontuar a elaboração - delírio a serviço
A psicose, aqui como alhures, desnuda a estrutura. do Nome-do-Pai - muitas sessões se constituem dessa
Assim como o automatismo mental evidencia a xenopatia forma. Ou a sessão analítica é uma unidade a-semântica

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:-6::onduzindo o sujeito para a opacidade de seu gozo. prio Freud, é impossível não o perceber.
Isi:o supõe que antes de ser encerrada, .deve ser cortada.
Coloco em vias opostas a elaboração e a perplexidade. A
elaboração, não se preocupem com ela, sempre haverá a mais. Nota
.\tinha proposta de reflexão para as Jornadas é que a Es.5a exposição foi por mim anunciada no progrdma das Jorna­
interpretação propriamente analítica - mantemos o nome das com o título "O avesso da interpretação" e apresentado em
- funciona pelo avesso do inconsciente. três frases: "A interpretação e1>tá morta. Não a ressucitaremos.
Se ela for atual, a prática, mesmo sem o saber, é inelutavelmen­
A seguir, um resumo de uma das respostas de Jacques­ te pós-interpretativa". Feita para estar na contramão de uma
Alain Miller às perguntas do público. opinião comum, esta comunicação oral visava um efeito de
Partimos do diagnóstico afirmado por Serge Cottet, surpresa; ela o obteve e foi além. Sucesso então - ou não: pois
·'o declínio da interpretação" - que acertou na mosca o "se", revirando o vento em pop-d, o peixe afogou. Cj a esse
após ter sido por mim extraído, no ano passado, em sua propósito uma primeira reflexão, "O esquecimento da inter­
exposição na Seção clínica. Assinalou as dificuldades que pretação", publicado em w I.ettre mensuelle, nº 144, dezem­
classificou na ordem de um certo sintoma. O termo de bro de 19<)5, p. 1 e 2.
"declínio" colocava-nos no sintagma "grandeza e deca­ O texto acima, estabelecido com os cuidados de C.
dência", um lado sombrio, onde tentei mostrar o lado Bonningue, foi por mim rev�to: fiz poucas correções -J.-A. M.
luminoso. Coloco positividade naquilo que se pode lo­
calizar à primelra vista como um declínio da interpreta­ Texto apresentado nas XXIV Jornadas de Estudos da Escola da Causa Freudiana, Paris,
ção. Sublimo o declínio da interpretação na prática pós­ 199f Extraído dela Causefreudienne, nº 32, Paris, Navarin, 1996.
interpretativa. Quando começou essa prática? Com o pró- Traduzido por Angelina Harari.

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