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INTERVENÇÃO CLÍNICA NA

INFÂNCIA
Joana Proença Becker
pbeckerjoana@gmail.com

2020/2021
Margaret Mahler (1897-1985)

• Médica de origem húngara;


• Método tripartite (atendimento conjunto pais-bebé);
• Teoria sobre o desenvolvimento psíquico normal e a patologia
da psicose;
• A teoria da separação-individuação é considerada a sua
principal contribuição para o desenvolvimento da psicanálise.
Objetivos do estudo de Mahler

- Verificar se a psicose simbiótica tinha sua gênese nas primeiras relações estabelecidas
entre o bebé e seu objeto de amor, a mãe;

- Identificar os efeitos negativos e traumáticos da separação física entre mãe e bebé, ou da


presença de uma mãe emocionalmente indisponível, para o desenvolvimento da
personalidade.
Metodologia da investigação
- Amostra: 2 grupos

Grupo 1: crianças psicóticas simbióticas (entre 3 e 5 anos) e suas mães

Grupo 2: bebês entre 4 e 36 meses e suas mães

- Setting: sala de brinquedos


- Observação da interação mãe-filho, em sessões de grupo, 4 vezes por semana;

- Entrevista com as mães, individualmente ou na presença do filho, 1 vez por semana.

- Elaboração de relatórios clínicos, com foco no processo de simbiose e separação-


individuação.
- Comparação entre observações e resultados das entrevistas.
Conceitos
- SEPARAÇÃO:

“a conquista intrapsíquica de um senso de separação da mãe e, por meio


disso, do mundo em geral. (o que a criança psicótica é incapaz de
alcançar) Esse senso de separação leva gradualmente a representações
intrapsíquicas do self como distinto das representações do mundo
objetal. No curso normal do desenvolvimento, separações físicas reais da
mãe contribuem para a sensação da criança de ser uma pessoa separada -
mas o que é discutido aqui é a sensação de ser um indivíduo separado, e
não o fato de ser fisicamente separado de alguém” (p. 7).
- SIMBIOSE:

“uma característica da vida cognitivo-afetiva primitiva em que a


diferenciação entre o eu e a mãe não ocorreu, ou onde ocorreu a
regressão a esse estado indiferenciado de auto objeto (que caracteriza a
fase simbiótica). Na verdade, isso não necessariamente requer a presença
física da mãe, pode ser baseado em imagens primitivas de unidade e /ou
escotomatização ou rejeição de percepções contraditórias” (p. 7).
- IDENTIDADE:

“Mahler referiu-se anteriormente ao autismo infantil e à psicose


simbiótica como dois distúrbios extremos de identidade. Usamos o
termo identidade para nos referirmos à primeira percepção de um sentido
de ser, de entidade - um sentimento que inclui em parte, acreditamos,
uma catexia do corpo com energia libidinal. Não é uma sensação de
quem eu sou, mas de que sou; como tal, este é o primeiro passo no
processo de desenvolvimento da individualidade” (p. 7).
Sobre separação-individuação

"a fase de separação-individuação é crucial no que diz respeito ao ego e


ao desenvolvimento das relações objetais. [...] Essa fase de separação-
individuação é uma espécie de experiência de segundo nascimento que
um de nós descreveu como "uma erupção da membrana simbiótica
comum mãe-filho". É tão inevitável quanto o nascimento biológico" (p. 9).

"Como Anna Freud [1951b] apontou, na idade de dois e três anos pode-se
observar uma fase negativista quase-normal da criança. É a reação
comportamental que marca o processo de desligamento da simbiose mãe-
filho. Quanto menos satisfatória ou quanto mais parasitária for a fase
simbiótica, mais proeminente e exagerada será essa reação negativista. O
medo do reengulfment ameaça uma diferenciação individual recém-
iniciada que deve ser defendida. Além da marca de quinze a dezoito
meses, o primeiro estágio de unidade e identidade com a mãe deixa de ser
construtivo para a evolução de um ego e de um mundo objetal (Mahler e
Gosliner, 1955, p. 200)" (p. 10).
Sobre o setting

“As instalações de nosso ambiente, dando às mães e filhos a oportunidade de


passar parte de suas vidas conosco em uma interação bastante natural, nos
deu uma ampla gama de oportunidades de observação, mas havia, é claro,
muitas coisas que não vimos: a criança adormecendo em seu próprio berço,
sua reação quando o pai voltava do trabalho [...]Tentamos compensar parte
disso por meio de visitas domiciliares” (p. 29).
AS FASES DO DESENVOLVIMENTO

- FASE AUTÍSTICA NORMAL

- FASE SIMBIÓTICA

- FASE DE SEPARAÇÃO-INDIVIDUAÇÃO
- DIFERENCIAÇÃO (4-9 meses)

- TREINAMENTO (10-15 meses)

- REAPROXIMAÇÃO (15-22 meses)

- CONSOLIDAÇÃO DA INDIVIDUAÇÃO (22-36 meses)

(Mahler et al., 1975/2002, p. 260)


“Na verdade, os conceitos das duas primeiras fases estão situados em um
nível mais alto de abstração metapsicológica do que as subfases
subsequentes. Eles foram inicialmente derivados da reconstrução
psicanalítica do nosso estudo de crianças e adultos psicóticos e
borderline, bem como do trabalho observacional de outros autores
psicanalíticos.

Em contraste, os Capítulos 4, 5 e 6 representam uma condensação e


discussão de uma enorme riqueza de dados comportamentais originais”
(p. 39).
FASE AUTÍSTICA NORMAL

- 1º mês de vida

- Não-diferenciação do que é interno e externo

- Barreira contra estímulos


- Processos fisiológicos são dominantes
- Estado de desorientação alucinatória“no qual a satisfação da necessidade parece
pertencer à sua própria órbita autista "incondicional", onipotente” (p. 42).

- Relação com a mãe que vai permitir o aumento da consciência sensorial e contato com o
mundo externo.
- Nas primeiras semanas prevalece o narcisismo primário absoluto, marcado pela falta
de consciência do externo – narcisismo primário na fase autística normal.

- Em seguida, inicia um estágio de consciência turva de que a satisfação das necessidades


deve vir de algum lugar dora de si – narcisismo primário na fase simbiótica inicial
(entrando na fase seguinte).

- A resposta aos estímulos que “ultrapassam a barreira” é o que possibilita a


continuidade da fase autística para as posteriores.
"Assim, de acordo com Freud (1895), a percepção (recepção no sentido de
Spitz) a serviço da motivação para obter prazer era capaz de produzir
uma "identidade perceptiva" de um estímulo externo com uma memória
prazerosa correspondente. Virar a cabeça em direção ao seio (ou mamilo)
é da mesma ordem de transação cenestésica primitiva com a "mãe" que a
busca visual. O acompanhamento visual, assim como o direcionamento
para o seio, mostra progressão no desenvolvimento...“ (p. 42-43).
FASE SIMBIÓTICA

- Estado indiferenciado de fusão com a mãe

- O interno e o externo começam gradualmente a ser percebidos

- Ego rudimentar, que deve ser complementado pela relação com a mãe

- Relação com a mãe leva à organização para a adaptação. Mãe é a responsável por fazer
o bebé ir reconhecendo os estímulos externos.

- Além do percepto visual descrito por Spitz (gestalt), as experiências de contacto


corporal (ex. o segurar materno) têm papel decisivo na familiarização do bebé com seu
parceiro simbiótico (mãe).

- A capacidade da mãe em decodificar o que o bebé expressa, ou seja, a qualidade da


relação mãe-bebé definem os padrões de comportamento e as qualidades gerais da
personalidade do bebé.
“Embora nem todos os códigos de necessidades sejam corretamente
respondidos e interpretados pela mãe, a pesquisa mostrou que há, no
bebê e na criança pequena, uma incrível capacidade de adaptar-se a esses
equívocos e faltas maternas. É nessa troca de comunicação e interpretação
característica da fase simbiótica, bem como na dependência psicológica e
sociobiológica do bebê em relação à mãe, que a autora identifica a matriz
da “diferenciação estrutural que vai levar à organização do indivíduo: o
ego em funcionamento, visando sua adaptação” (Ribeiro & Caropreso,
2018, p. 903).
- Aumento do investimento percetivo e afetivo do bebé em estímulos externos, embora
ainda sem reconhecer claramente a origem externa desses estímulos.

- Estabelecimento de ilhas de memória

- Catexia da mãe pode ser considerada a principal conquista da fase simbiótica.

- Embora o bebé já comece a responder de modo diferente a estímulos internos e


externos, tal experiência ainda é vaga; a mãe ainda é um objeto parcial.

“A transição da fase simbiótica para a fase seguinte ainda é marcada pela


necessidade da permanência do estado fusional, embora haja também
apontamentos para o rompimento desta condição” (Ribeiro & Caropreso,
2018, p. 904).
FASE DE SEPARAÇÃO-INDIVIDUAÇÃO

- Fase composta por dois momentos:

- A separação, nos primeiros 2 anos de vida, que inicia com o processo de


diferenciação;

- A individuação, marcada pela aquisição de uma individualidade e


internalização da mãe.
SUBFASE DE DIFERENCIAÇÃO

- Sobrepõe-se à fase simbiótica

- Diferenciação – sinais evidentes de que começa a se diferenciar do corpo da mãe

- Locomoção, coordenação motora e visual

- Saída da completa passividade para exploração do mundo ativamente

- Sorriso gradualmente se torna uma resposta específica (preferencial) à mãe

“As memórias estabelecidas entre as idas e vindas da mãe e as experiências


de satisfação e frustração a que o bebê é naturalmente submetido na relação
simbiótica são responsáveis psiquicamente por essa modificação no foco
perceptivo” (Ribeiro & Caropreso, 2018, p. 906).
SUBFASE DE TREINAMENTO

- Treina o afastamento da mãe


- Exploração do mundo se intensifica

- Durante suas explorações, retorna à mãe para reabastecimento emocional.

- Inicialmente, consegue afastar-se da mãe sem ainda desligar-se dela (ex. campo visual;
necessidade de ajuda).

- Progressivamente, ao se locomover sozinho, aumenta o campo de exploração (cada vez


mais longe da mãe), assim como há o espaçamento dos momentos de reabastecimento.
FASE DE TREINAMENTO PROPRIAMENTE DITA
Treinamento incial / fase inicial de treinamento

- Nesta subfase, o bebê passa a ter um papel mais ativo na determinação da proximidade
e distanciamento. Quando a mãe consegue servir de âncora para o bebê, este suporta
melhor as frustrações (quedas) das experiências, e a exploração passa a predominar.

- Essas explorações precoces servem para que a criança estabeleça familiaridade com um
segmento mais amplo do mundo, além de perceber e se relacionar com a mãe através
de uma distância maior. A característica central desta subfase é o elevado investimento
no exercício das funções autônomas, especialmente da motilidade até uma quase
exclusão ocasional do interesse aparente pela mãe. Contudo, vale ressaltar que a mãe
continua a ser necessária como uma base que preencha o reabastecimento através do
contato físico – reabastecimento emocional.
Treinamento propriamente dito

“Ao andar livremente em posição ereta, o plano de visão do bebê sofre


uma mudança que implica o surgimento de um ponto de vista
inteiramente novo, fornecendo-lhe perspectivas, prazeres e frustrações
inesperados” (p. 71).

- O ato de andar proporciona um aumento acentuado de sua descoberta da realidade e


do ato de testá-la sob seu próprio controle. Observa-se no mês seguinte a aquisição da
locomoção livre e ativa a ocorrência de progressos na afirmação de sua individualidade
– o primeiro grande passo para a formação da identidade.

- “Diploma para entrar no mundo”.


“A importância da caminhada para o desenvolvimento emocional da criança
não pode ser subestimada. Caminhar dá à criança um enorme aumento na
descoberta da realidade e teste do mundo em seu próprio controle e maestria
mágica. Como diz Greenacre, está "também associado a um surto de alegria
geral do corpo e capacidade de resposta sensorial que acompanha o ganho da
posição ereta e o caminhar" (Mahler et al., 1975/2002, p. 72)

“Somente depois de a criança começar a dar seus primeiros passos sem


auxílio de um adulto, e normalmente em direção oposta à da mãe, é que se
pode considerar ter começado a subfase de treinamento por excelência, bem
como o desenvolvimento do critério de realidade” (Ribeiro & Caropreso, 2018,
p. 908).
- No final da subfase de treinamento, há um movimento regressivo, causado pela
ansiedade de separação (diminuição da capacidade de lidar com a frustração, aumento
da necessidade de reabastecimento emocional).

SUBFASE DE REAPROXIMAÇÃO

- Medo de perder o objeto

- “crise de reaproximação”

- Necessidade de partilhar com a mãe cada uma de suas novas habilidades

- Recusa de substitutos maternos

- Ambivalência: usar a livre locomoção e ansiedade de separação

- 3 momentos: reaproximação inicial; crise de reaproximação; solução da crise.


- Reaproximação inicial: se sobrepõe ao treinamento; a criança passa a partilhar suas
descobertas com a mãe; substitui o interesse por explorar o ambiente e busca interação
social.

- Crise de reaproximação: diminuição da autonomia e autoconfiança; conduta de


reaproximação constante com a mãe.

Mahler “enfatiza que será a maneira como a mãe lida, de forma amorosa, com
a ambivalência do filho o determinante para a formação da representação do
eu na criança, evitando ou potencializando traços neuróticos. Segundo a
autora, esse período de crise de reaproximação é a base para uma saúde
emocional normal (estável) ou o desenrolar de uma patologia. A comunicação
entre mãe e filho nessa fase parece mais prejudicada do que antes, não
havendo mais uma comunicação simbiótica e um ajustamento de intenções.
Torna-se necessário que agora o verbal tome conta dessa relação, pois
somente a empatia pré-verbal não é mais suficiente” (Ribeiro & Caropreso,
2018, p. 910).
- Resolução da crise de reaproximação: criança encontra uma distância ideal da mãe;
diminuição da ansiedade de separação; capacidade de nomear objetos; de se nomear
(“eu”); capacidade de expressar seus desejos e fantasias (no brincar); consciência de
identidade de género; descoberta das diferenças anatómicas.
SUBFASE DA CONSOLIDAÇÃO DA INDIVIDUAÇÃO

- Desenvolvimento das funções completas

- Evolução da comunicação verbal, que substitui formas de comunicar das fases


anteriores

- Brincar de “faz de conta”

- Capacidade para esperar e tolerar (melhor) as frustrações

- Aquisição efetiva da individualidade

- Conformidade com o princípio de realidade – de adiar a satisfação e/ou reconhecer


quando não pode alcançar sua meta

- O “não” é compreendido e passa a ser usado para salvaguardar sua identidade (senso
de identidade está se consolidando).
“Aos 3 anos de idade, já é possível predizer, portanto, se o desenvolvimento
psíquico tende a evoluir para uma configuração edípica normal ou para uma
conduta neurótica. Para a autora, “essa fase de separação-individuação está
próxima da experiência de um segundo nascimento, sendo […] um
rompimento da membrana simbiótica […]” (Mahler, 1983, p. 8)” (Ribeiro &
Caropreso, 2018, p. 912).
MÉTODO TRIPARTITE – tratamento de crianças psicóticas

- Para Mahler, o tratamento era possível através da relação mãe-bebé, pois a relação
objetal se desenvolve com a diferenciação dessa unidade.

- Terapia prolongada e consistente.

- Experiência de simbiose corretiva.

- Mãe sente-se parte do processo, o que reduz a sensação de fracasso da família diante da
criança psicótica

- Defesa autística tende a diminuir, pois o setting possibilita refazer suas relações
simbióticas com a mãe e com substitutos (terapeuta).

- Inicialmente, o tratamento deve ser feito somente com adultos (pais e terapeuta), pois a
presença de outras crianças pode causar grande ansiedade. Aos poucos, e como parte
do tratamento, pode ser inserida num grupo com outras crianças (quando estiver na
simbiose corretiva, sem grande risco de regressão.
SÍNTESE

- MÉTODO DA PESQUISA DE MAHLER

- CONCEITO DE SEPARAÇÃO

- CONCEITO DE SIMBIOSE

- CONCEITO DE IDENTIDADE
- FASE AUTÍSTICA NORMAL

- FASE SIMBIÓTICA

- FASE DE SEPARAÇÃO-INDIVIDUAÇÃO (DIFERENCIAÇÃO; TREINAMENTO;


REAPROXIMAÇÃO; CONSOLIDAÇÃO DA INDIVIDUAÇÃO)
- MÉTODO TRIPARTITE
Referências

Mahler, M., Pine, F., & Bergman, A. (2002). The Psychological Birth of the Human Infant –
Symbiosis and Individuation. Karnac: London / New York. [orig. 1975].

Ribeiro, A., & Caropreso, F. (2018). A teoria de Margaret Mahler sobre o desenvolvimento
psíquico precoce normal. Psicologia em Revista, 24 (3), 894-914. doi: 10.5752/P.1678-
9563.2018v24n3p894-914
Joana Proença Becker
pbeckerjoana@gmail.com

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