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Capítulo 1

DIREITO E FILOSOFIA

Sumário: 1.1. Metodologia - 1.1.1. Filosofia do


Direito e Filosofia no Direto. 1.2. Conhecimento
e linguagem - 1.2.1 Consciência e objeto - 1.2.2.
Noções básicas sobre o objeto do conhecimento
- 1.2.3. Teoria dos objetos e regiões ônticas

1.1. METODOLOGIA
Quero ressaltar que não sou filósofo do direito, mas com-
preendi, de há muito, que a consistência do saber científico
depende do quantum de retroversão que o agente realize na
estratégia de seu percurso, vale dizer, na disponibilidade do
estudioso para ponderar sobre o conhecimento mesmo que se
propõe construir. Expressando-me de outra maneira, estou
convicto de que o discurso da Ciência será tanto mais profun-
do quanto mais se ativer, o autor, ao modelo filosófico por ele
eleito para estimular sua investigação. Já foi o tempo em que
se nominava, acriticamente, de científica a singela coleção de
proposições afirmativas sobre um direito positivo historica-
mente situado, passível de dissolver-se sob o impacto dos
primeiros questionamentos. Requer-se, hoje, a inserção num
paradigma mais amplo, numa tomada mais abrangente, capaz
de manter-se em regime de interação com um esquema que
possa realimentar incessantemente o labor da Ciência, nos
quadros de uma concepção grandiosa do pensamento humano.
O toque da cultura, cada vez reconhecido com maior intensi-

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

dade, evita que se pretenda entrever o mundo pelo prisma do Direito. Renovou-se, assim, de forma eloquente, aquilo que
reducionista do mero racionalismo descritivo. Por isso, o sopro de alguma maneira já houvera ocorrido nos domínios do direi-
filosófico, na forma superior de meditação crítica, há de estar to civil, penal, processual, constitucional e administrativo.
presente em toda a extensão do trabalho.
Por uma circunstância histórica que o tempo ainda não
Não somente aquelas disciplinas de caráter empírico- permite identificar com clareza, importante segmento da dou-
descritivas de relações interativas, como o são a Psicologia trina dos tributaristas autodeterminou-se no sentido de ofere-
Social do Direito e a Sociologia do Direito, mas todas as pos- cer os fundamentos de sua concepção jurídico-filosófica, de
turas cognoscentes do jurídico, entre elas a Dogmática ou Ci- modo expresso, antes de iniciar o desenvolvimento da matéria
ência do Direito em sentido estrito, postulam, a cada passo, os proposta, ensejando ao leitor o controle e a vigilância sobre o
incrementos do pensar filosófico, criando novo alento e expan- conteúdo do trabalho.
dindo, com isso, os horizontes de seu saber. O progresso da
Não é preciso dizer que procedimento desse tope, tornando
pesquisa científica fica na dependência direta do apoio indis-
o pensamento susceptível ao juízo crítico da coerência, requer
pensável da Filosofia. Daí seu prestígio para o desenvolvimen-
seriedade de propósitos, demandando estudos aprofundados
to dos estudos atuais, na multiplicidade de suas manifestações sobre a realidade do direito. Muda, de certa forma, o tom da
construtivas. retórica jurídica tradicional, para colocá-la em bases mais só-
A Teoria Geral do Direito tem recebido valiosa contribui- lidas e consistentes. Sem abandonar a estrutura dialética do social,
ção dos estudos empreendidos por especialistas da área tribu- mantendo o diálogo entre a rotinização e a inovação, o exegeta
tária. Desde a obra de Becker e das elaborações de Geraldo avança em direção ao elo que há de existir entre as proposições
Ataliba e de José Souto Maior Borges, até a decidida inserção teoréticas e a experiência concreta do "mundo da vida".
do Grupo de Estudos que o IBET' promove há vinte e três anos, Agora, se agregarmos a tal critério expositivo a preocu-
no movimento do "giro-linguístico", afirmando-se na linha de pação com a linguagem jurídico-normativa; se atinarmos para
frente da "Filosofia da Linguagem". Com efeito, as intensas o rendimento que pode ser obtido pela utilização das categorias
reflexões sobre o fenômeno do direito vêm acontecendo numa do projeto semiótico, mais precisamente para as dimensões
sucessividade digna de nota. Vários estudiosos, de muito ele- lógico-semânticas do texto prescritivo; se pensarmos que toda
vado nível, num espontâneo e desinteressado esforço de coo- a marcha do raciocínio se reporta a uma visão da norma jurí-
peração intelectual, tomando a obra incomum de Lourival dica, analisada com vigor na sua inteireza conceptual, como
Vilanova como paradigma e deixando de lado o fluxo turbulento "unidade mínima e irredutível" da mensagem deôntica porta-
da vida social e profissional dos nossos dias, plantaram, em dora de sentido completo; se não perdermos de vista a neces-
terra firme, interessante centro de indagação teórica e prática. sidade premente de o discurso teórico propiciar a compreensão,
O denominador comum dessa dinâmica especulativa esteve com boa dose de racionalidade, da concretude empírica do
sempre representado pela busca incessante de encontrar, na direito posto; estaremos diante daquilo que bem se pode cha-
experiência concreta do direito tributário, as respostas satis- mar de "constructivismo jurídico", vertido sobre o subsistema
fatórias contidas em proposições de Teoria Geral e de Filosofia das regras tributárias, o qual analisaremos em capítulos sub-
sequentes com maior rigor metodológico.
Creio, porém, que não se deva aprisionar labor desse
1. Instituto Brasileiro de Estudos Tributários. estilo num único e singelo rótulo, por mais significativo que
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

dade, evita que se pretenda entrever o mundo pelo prisma do Direito. Renovou-se, assim, de forma eloquente, aquilo que
reducionista do mero racionalismo descritivo. Por isso, o sopro de alguma maneira já houvera ocorrido nos domínios do direi-
filosófico, na forma superior de meditação crítica, há de estar to civil, penal, processual, constitucional e administrativo.
presente em toda a extensão do trabalho.
Por uma circunstância histórica que o tempo ainda não
Não somente aquelas disciplinas de caráter empírico- permite identificar com clareza, importante segmento da dou-
descritivas de relações interativas, como o são a Psicologia trina dos tributaristas autodeterminou-se no sentido de ofere-
Social do Direito e a Sociologia do Direito, mas todas as pos- cer os fundamentos de sua concepção jurídico-filosófica, de
turas cognoscentes do jurídico, entre elas a Dogmática ou Ci- modo expresso, antes de iniciar o desenvolvimento da matéria
ência do Direito em sentido estrito, postulam, a cada passo, os proposta, ensejando ao leitor o controle e a vigilância sobre o
incrementos do pensar filosófico, criando novo alento e expan- conteúdo do trabalho.
dindo, com isso, os horizontes de seu saber. O progresso da
Não é preciso dizer que procedimento desse tope, tornando
pesquisa científica fica na dependência direta do apoio indis-
o pensamento susceptível ao juízo crítico da coerência, requer
pensável da Filosofia. Daí seu prestígio para o desenvolvimen-
seriedade de propósitos, demandando estudos aprofundados
to dos estudos atuais, na multiplicidade de suas manifestações
sobre a realidade do direito. Muda, de certa forma, o tom da
construtivas. retórica jurídica tradicional, para colocá-la em bases mais só-
A Teoria Geral do Direito tem recebido valiosa contribui- lidas e consistentes. Sem abandonar a estrutura dialética do social,
ção dos estudos empreendidos por especialistas da área tribu- mantendo o diálogo entre a rotinização e a inovação, o exegeta
tária. Desde a obra de Becker e das elaborações de Geraldo avança em direção ao elo que há de existir entre as proposições
Ataliba e de José Souto Maior Borges, até a decidida inserção teoréticas e a experiência concreta do "mundo da vida".
do Grupo de Estudos que o IBET 1 promove há vinte e três anos, Agora, se agregarmos a tal critério expositivo a preocu-
no movimento do "giro-linguístico", afirmando-se na linha de pação com a linguagem jurídico-normativa; se atinarmos para
frente da "Filosofia da Linguagem". Com efeito, as intensas o rendimento que pode ser obtido pela utilização das categorias
reflexões sobre o fenômeno do direito vêm acontecendo numa do projeto semiótico, mais precisamente para as dimensões
sucessividade digna de nota. Vários estudiosos, de muito ele- lógico-semânticas do texto prescritivo; se pensarmos que toda
vado nível, num espontâneo e desinteressado esforço de coo- a marcha do raciocínio se reporta a uma visão da norma jurí-
peração intelectual, tomando a obra incomum de Lourival dica, analisada com vigor na sua inteireza conceptual, como
Vilanova como paradigma e deixando de lado o fluxo turbulento "unidade mínima e irredutível" da mensagem deôntica porta-
da vida social e profissional dos nossos dias, plantaram, em dora de sentido completo; se não perdermos de vista a neces-
terra firme, interessante centro de indagação teórica e prática. sidade premente de o discurso teórico propiciar a compreensão,
O denominador comum dessa dinâmica especulativa esteve com boa dose de racionalidade, da concretude empírica do
sempre representado pela busca incessante de encontrar, na direito posto; estaremos diante daquilo que bem se pode cha-
experiência concreta do direito tributário, as respostas satis- mar de "constructivismo jurídico", vertido sobre o subsistema
fatórias contidas em proposições de Teoria Geral e de Filosofia das regras tributárias, o qual analisaremos em capítulos sub-
sequentes com maior rigor metodológico.
Creio, porém, que não se deva aprisionar labor desse
1. Instituto Brasileiro de Estudos Tributários. estilo num único e singelo rótulo, por mais significativo que
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seja. Há outras perspectivas que colhem aspectos relevantes A primeira locução, utilizada para significar o conjunto de
dessefactum cultural, hoje irradiado por vários Estados do Bra- reflexões acerca do jurídico, corpo de ponderações de quem
sil, despertando, igualmente, a curiosidade de juristas estran- olha, de cima e por fora, textos de direito positivo historica-
geiros. Testemunhos veementes são os numerosos livros que já mente dados, compondo proposições crítico -avaliativas. A
circulam nessa comunidade de conhecimento, fundados, todos segunda, como o emprego de categorias que se prestam às
eles, na concepção da regra-matriz de incidência tributária. meditações filosóficas, todavia inseridas nos textos da Dogmá-
tica, isto é, vindas por dentro, penetrando as construções mes-
O modelo que foi nascendo jamais chamou a si a primazia
mas da Ciência. São enunciados extrajurídicos, não necesaria-
de instrumento exclusivo para ensejar a aproximação do dado
mente filosóficos, linguísticos ou não, mas que potencializam
jurídico. Pelo contrário, alimenta a convicção de que muitos
o trabalho do cientista do direito em sentido estrito, na medida
são os sistemas de referência por intermédio dos quais o obje- em que são introduzidos no discurso para aumentar sua capa-
to do direito pode ser examinado. Eis que a pluralidade de cidade cognoscente, ao provocar novos meios de aproximação
métodos científicos instrumentando a aproximação do exege- com o objeto que se pretende conhecer.
ta ao próprio objeto cultural que é o sistema jurídico, decidi-
damente, demonstra a complexidade da ontologia do direito. Não há nessa nota qualquer espírito emulativo, para
Entre a camada linguística do chamado direito positivo e a apontar esta ou aquela proposta metodológica como a melhor:
realidade social, tomada na porção das condutas interpessoais, podem conviver, ambas, harmonicamente, outorgando maior
rendimento ao trabalho expositivo.
há uma multiplicidade de modos de aproximação, um número
crescente de enfoques temáticos, representando cada qual uma O exemplo sempre foi expediente fundamental para ilu-
forma de corte metodológico com que o ser cognoscente trava minar o conhecimento. Nesse sentido, o estudo das "fontes do
contato com o objeto do conhecimento. Provém dessa dificul- direito" ficou engrandecido com as categorias linguísticas de
dade a opção pelas concepções reducionistas, seja na vertente enunciação, enunciação-enunciada, enunciado e enunciado-
do jusnaturalismo, seja na do positivismo ou do realismo. enunciado. Da mesma forma, os elementos pragmáticos relato
e cometimento, empregados para a especulação teórica sobre
Na verdade, o saber científico dos tempos atuais é enfá-
a norma jurídica, fortaleceram a mensagem cognoscitiva, pro-
tico em um ponto: todos entendem que não há como abrir mão
piciando condições mais cômodas para a compreensão das
da uniformidade na apreciação do objeto, bem como da rigo- unidades normativas.
rosa demarcação do campo sobre o qual haverá de incidir a
proposta cognoscitiva. Foi neste sentido que Kelsen, habilmen- Construções desse tipo estimulam o emprego da "Filoso-
te, esquivou-se do problema ontológico, fazendo sua opção pelo fia no Direito", tendo em vista expandir o conhecimento e dar
caminho da Epistemologia: ali onde houver direito, certamente mais consistência ao saber jurídico.
haverá normas. Ao surpreendê-las, teremos assegurado a uni-
formidade do objeto e demarcado o espaço da investigação. 1.2. CONHECIMENTO E LINGUAGEM

O "mundo da vida", com as alterações ocorridas no cam-


1.1.1. Filosofia do Direito e Filosofia no Direito
po das experiências tangíveis, é submetido à nossa intuição
Parece-me útil distinguir "Filosofia do Direito" de "Filo- sensível, naquele "caos de sensações" a que se referiu Kant. O
sofia no Direito", como tem feito Tercio Sampaio Ferraz Junior. que sucede neste domínio e não é recolhido pela linguagem

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PAULO DE BARROS CARVALHO
DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

social não ingressa no plano por nós chamado de "realidade",


introspectiva que lhe oferece os meios de captar mutações
e, ao mesmo tempo, tudo que dele faz parte encontra sua forma
internas, percebendo as alterações que se operam no fluxo
de expressão nas organizações linguísticas com que nos comu-
contínuo de suas vivências interiores. Mais além, a consciência
nicamos; exatamente porque todo o conhecimento é redutor
retroverte sua atenção para os próprios conhecimentos obtidos
de dificuldades, reduzir as complexidades do objeto da expe-
(sejam eles internos ou externos), numa atitude eminentemen-
riência é uma necessidade inafastável para se obter o próprio
te reflexiva, avaliando-os sob múltiplos aspectos. Dito de outro
conhecimento. modo, apropria-se dos conhecimentos a que teve acesso,
Encontramos nesse contexto e no inevitável processo re- combinando-os na conformidade dos valores que lhe pareçam
ducionista, a exemplo de Husserl, a figura do homem como pólo cabíveis segundo sua ideologia. Conhece, sabe que conhece e,
central de construção da realidade jurídica ou não jurídica ela- sobretudo, avalia e reflete acerca dos elementos que conheceu,
borada a partir da contextura físico-material. Sem ele, com suas incorporando-os ao patrimônio de seu espírito. Eis a reflexão,
estruturas intelectuais, seria impossível alcançar as instâncias momento decisivo que, ao lado da atividade transcendente,
cognoscitivas do saber. Eis que se toma como premissa do estu- manifestada pela "intencionalidade", vai oferecer a medida
do linguístico do direito a análise do próprio conhecimento, das adequada dessa função sobranceira, que identifica fundamen-
estruturas de consciências e dos objetos e estruturas lógico- talmente o ser humano, no amplo domínio dos entes da natu-
abstratas a ele inerentes. O direito observado como linguagem reza. Registrou Edmund Husserl que a intencionalidade é o
não sobrevive sem esses traços do conhecimento. que caracteriza a consciência de modo significativo, o que levou
Lourival Vilanova 2 a exprimir que "a consciência, expressão
da subjetividade, tende para as coisas; o sujeito está vertido
1.2.1. Consciência e objeto
sobre seu contorno, por urgência vital, antes de o ser pelo puro
Tomemos a palavra "consciência" como a função pela qual chamamento da verdade objetiva". Como unidade dos proces-
o ser humano trava contato com suas vivências, estados psíqui- sos psíquicos, que governam a intelecção pelo homem do
cos e condutas, bem como projeta sua atenção para o mundo mundo objetivo e do território imanente a suas subjetividades,
exterior recolhendo os dados obtidos pela intuição sensível (ol- a consciência é forma superior e exclusiva à espécie humana.
fato, visão, audição, tato, paladar), processando assim suas "O desenvolvimento pleno do espírito comporta a sua própria
emoções, sentimentos, sensações, lembranças, sonhos, imagi- reflexividade, a consciência. Sob todos os aspectos, a consci-
nação, pensamentos, esperanças e a gama imensa de suas ma- ência é o produto e a produtora da reflexão", como pondera
Edgar Morin 3 .
nifestações volitivas. Nota-se, desde logo, que a "direcionalidade"
é algo absolutamente necessário para a definição desse concei- Agora, tudo isso se faz mediante formas, produzidas por
to, de modo que consciência é sempre "consciência de algo". atos que, por sua vez, têm um conteúdo. São três faces diferentes:
Essa bi-relacionalidade integra a idéia de "consciência" com o ato de consciência, o resultado do ato (que é a forma), e o
tanta força que não há sentido em cogitarmos de um recinto conteúdo do ato (que é seu objeto). Uma coisa é exercer o ato
encerrado nos limites da sua configuração interna ou, mesmo,
apenas voltado para a contingência externa do ente humano,
jogado como um ser carente nos horizontes de sua existência. 2. "Notas para um ensaio sobre a cultura", in Escritos jurídicos e filosóficos,
vol. 2, São Paulo, Mis Mundi/ IBET, 2003, pp. 285 e 286.
O transcender, levando o espírito para o ambiente exterior 3. 0 Método 3: o conhecimento do Conhecimento, trad. Juremir Machado da
do seu contorno de vida, é tão relevante quanto a atividade Silva, 3a ed., Porto Alegre, Sulina, 2005, p. 209.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

de pensar, que gera a forma "pensamento" e se dá num deter- modo de ser e de existir. Dissolvidas essas formas, com os res-
minado instante; outra é o conteúdo desse pensamento (seu pectivos objetos, desaparece também a consciência.
objeto), que pode ocupar-se de qualquer situação da vida, in- Essas considerações justificam a divisão da consciência
clusive dele mesmo, "pensamento". Uma coisa é lembrar-se em direta ou espontânea e indireta ou reflexiva, quatro ângu-
(ato); outra, a lembrança (forma); outra, ainda, a situação lem- los fundamentais, anotados por Marilena Chauí 5 : a) do ponto
brada (objeto). de vista psicológico, como um fluxo temporal de estados cor-
O ato de consciência produz a forma de consciência, do- porais e mentais, que retém o passado na memória, percebe
tada de conteúdo (objeto). E, assim, estendemos a tríade da o presente pela atenção e espera o futuro pela imaginação e
consciência para todas as formas que possam ocorrer: a per- pelo pensamento; b) do ponto de vista ético e moral, onde
cepção, a sensação, a lembrança, as emoções, a imaginação, a aparece o ser pessoa, dotado de vontade livre e de responsa-
vontade, o pensamento (com suas modalidades: idéias, juízos, bilidade; c) na sua feição política, em que a consciência é o
raciocínios, sistemas), o sonhar, o conhecer, etc. Cabe aduzir cidadão, i merso no tecido das relações sociais, como portador
que o ser consciente não sente a sensação, não percebe a per- de direitos e deveres, relacionando-se com a esfera pública do
cepção, não pensa o pensamento, mas sim apreende o objeto poder e das leis, integrando grupos e camadas sociais especí-
dessas formas em que a consciência se manifesta. ficas; e d) sob o ponto de vista da teoria do conhecimento, o ser
cognoscente, em que a consciência comparece como atividade
De qualquer modo, é sempre útil assinalar que a consci- sensível e intelectual, carregada do poder de análise, de sín-
ência somente existe por aquilo que a transcende, seja para tese e de representação.
fora, quando o ser humano observa o mundo exterior, seja para
dentro, introspectivamente, quando surpreende suas próprias
1.2.2. Noções básicas sobre o objeto do conhecimento
mutações interiores. A consciência pode ser vista, então, vol-
tada para o exterior ou preocupada com a intimidade interna
Husserl 6 chamou de noeses o ato de consciência e de no-
do espírito, remanescendo, ainda, a capacidade de refletir sobre
ema o conteúdo surpreendido pelo ato. E já anotei, linhas atrás,
tudo aquilo que colheu nessa atividade bi-transcendente. Daí
que a consciência requer, de maneira indispensável, pelo menos
dizer-se que é um saber de algo que como tal se sabe. Kant a
alguma das formas a que aludi. Inexistirá consciência, portan-
toma como condição transcendental da possibilidade do co-
to, sem a identificação precisa dessas entidades com os respec-
nhecimento e para E. Husserl 4 , "a intencionalidade é aquilo
tivos conteúdos, já que não há forma sem conteúdo e a recí-
que caracteriza a consciência no sentido forte, e que justifica
proca é inteiramente verdadeira.
ao mesmo tempo designar todo o fluxo do vivido como fluxo
de consciência e como unidade de uma única consciência". Deixarei de lado a forma, bem como o ato que a produziu,
Mediante a intencionalidade, a consciência seria doadora de para ater-me à substância recolhida pelo ato: eis aí o território
significado ao mundo. imenso dos objetos, exteriores ao ser cognoscente, ou interiores
a ele, pouco importa, como também pouco interessa aqui indagar
Mas convém insistir na circunstância de que não haverá
consciência sem as formas que compõem seu particularíssimo
5. Convite à filosofia, 2a ed., São Paulo, Ática, 1995, pp. 117-118.
6. Idéias para uma fenomenologia
4. Idéias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica, pura e para uma filosofia fenomenológica,
cit., p. 201 e ss.
São Paulo, Idéias & Letras, 2006, p. 190.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

se a consciência está ou não naquela atividade reflexiva que linguísticos. N'outra circunstância, emocionado diante de um
assume com tanta frequência, a ponto de ser indicada como objeto de arte, reparo traços e movimentos que não estão ex-
um dos seus fatores compositivos. postos ao olhar frio e neutro do espectador comum, e sobre
Bem, o conhecimento pode ocorrer mediante qualquer eles emito um juízo de valor, expressivo de minhas preferências.
das modalidades formais de consciência: a percepção, a sen- Eis o conhecimento se apresentando, na forma superior do
sação, a lembrança, as emoções, a imaginação, a vontade, o emocional, mas igualmente declarado por um juízo lógico.
pensamento (idéias, juízos, raciocínios, sistemas), o sonhar, o Alaor Caffé Alves, no seu magnífico texto sobre Lógica',
alimentar esperanças, etc. Consubstancia-se na apreensão do diz com objetividade:
objeto mediante ato específico e forma correspondente. É
preciso salientar, contudo, que há meios mais ou menos efi- "Conhecer é representar-se um objeto. É a operação ima-
cazes para que se dê o fenômeno de absorção. Sempre lem- nente pela qual um sujeito pensante representa um objeto.
brando que, vezes sem conta, o objeto é aprisionado por atos É o ato de tornar um objeto presente à percepção, à imagi-
competentes, mas, por uma série de motivos sobre os quais nação ou à inteligência de alguém... Esse processo cogniti-
especula a psicologia individual, ele permanece latente, osci- vo está fundado, portanto, em três elementos: a represen-
tação, o objeto representado e o sujeito que representa o
lando em camadas inferiores do nosso espírito, que podería-
referido objeto."
mos chamar de "saberes inconscientes". Por variadas contin-
gências existenciais, esses objetos não são conduzidos ime-
diatamente à plataforma da consciência, o que não significa Na tentativa de evitar o desequilíbrio entre os elementos
dizer que não tenham sido adequadamente capturados ou que formadores do conceito básico de "conhecimento" é que Mi-
guel Reale 8 propôs a expressão Ontognosiologia Jurídica, por
inexistam como conhecimento. Nossas vivências pessoais
parecer-lhe
atestam circunstâncias desse tope, com muita reiteração. Num
átimo, são eles alçados à condição de objetos sobre os quais
"impossível deixar de considerar, concomitantemente,
temos consciência, conquanto saibamos que já estavam depo-
no plano transcendental, os aspectos ôntico e lógico de
sitados nos misteriosos arquivos situados em camadas infe-
todas as realidades culturais que, sendo como são, pro-
riores do nosso espírito. dutos da atividade espiritual segundo os valores condi-
Tecidas essas notas introdutórias, que reputo indispensá- cionantes da convivência humana, caracterizam-se por
veis, posso dizer, desde logo, que, por exemplo, já existe um serem 'realidades dialéticas', nos quais o subjetivo e o
quantum de conhecimento no ato de percepção, mas o conhe- objetivo necessariamente se polarizam e se co-implicam,
dada a impossibilidade de reduzir-se qualquer desses
cimento mesmo atinge sua plenitude quando aquele conteúdo
dois fatores ao outro, ou de conceber-se qualquer deles
se torna alvo de modalidades do pensamento (juízo). Pela in- sem o outro, resultando dessa tensão dois aspectos com-
tuição visual percebo o cão que passa, percebo também a cor plementares de um único processo."
de sua pelagem. Por enquanto, são meras percepções. Em se-
guida, emito o juízo afirmativo mediante o qual declaro que
aquele animal tem o predicado de ser branco. Manifesta-se o 7. Lógica — Pensamento formal e
argumentação Elementos para o discurso

conhecimento de maneira plena, submetendo-se, imediata- jurídico, São Paulo, Edipro, 2000, p. 27.
mente, aos critérios de confirmação ou de infirmação, se não 8. O direito como experiência:
introdução à epistemologia jurídica, 2a ed., São
quisermos falar em verdade e falsidade, atributos de enunciados Paulo, Saraiva, 1999, p. 84.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

se a consciência está ou não naquela atividade reflexiva que linguísticos. N'outra circunstância, emocionado diante de um
assume com tanta frequência, a ponto de ser indicada como objeto de arte, reparo traços e movimentos que não estão ex-
um dos seus fatores compositivos. postos ao olhar frio e neutro do espectador comum, e sobre
Bem, o conhecimento pode ocorrer mediante qualquer eles emito um juízo de valor, expressivo de minhas preferências.
das modalidades formais de consciência: a percepção, a sen- Eis o conhecimento se apresentando, na forma superior do
sação, a lembrança, as emoções, a imaginação, a vontade, o emocional, mas igualmente declarado por um juízo lógico.
pensamento (idéias, juízos, raciocínios, sistemas), o sonhar, o Alaor Caffé Alves, no seu magnífico texto sobre Lógica',
alimentar esperanças, etc. Consubstancia-se na apreensão do diz com objetividade:
objeto mediante ato específico e forma correspondente. É
preciso salientar, contudo, que há meios mais ou menos efi- "Conhecer é representar-se um objeto. É a operação ima-
cazes para que se dê o fenômeno de absorção. Sempre lem- nente pela qual um sujeito pensante representa um objeto.
brando que, vezes sem conta, o objeto é aprisionado por atos É o ato de tornar um objeto presente à percepção, à imagi-
competentes, mas, por uma série de motivos sobre os quais nação ou à inteligência de alguém... Esse processo cogniti-
especula a psicologia individual, ele permanece latente, osci- vo está fundado, portanto, em três elementos: a represen-
tação, o objeto representado e o sujeito que representa o
lando em camadas inferiores do nosso espírito, que podería-
referido objeto."
mos chamar de "saberes inconscientes". Por variadas contin-
gências existenciais, esses objetos não são conduzidos ime-
Na tentativa de evitar o desequilíbrio entre os elementos
diatamente à plataforma da consciência, o que não significa
formadores do conceito básico de "conhecimento" é que Mi-
dizer que não tenham sido adequadamente capturados ou que
guel Reale 8 propôs a expressão Ontognosiologia Jurídica, por
inexistam como conhecimento. Nossas vivências pessoais
parecer-lhe
atestam circunstâncias desse tope, com muita reiteração. Num
átimo, são eles alçados à condição de objetos sobre os quais
"impossível deixar de considerar, concomitantemente,
temos consciência, conquanto saibamos que já estavam depo-
no plano transcendental, os aspectos ôntico e lógico de
sitados nos misteriosos arquivos situados em camadas infe-
todas as realidades culturais que, sendo como são, pro-
riores do nosso espírito. dutos da atividade espiritual segundo os valores condi-
Tecidas essas notas introdutórias, que reputo indispensá- cionantes da convivência humana, caracterizam-se por
veis, posso dizer, desde logo, que, por exemplo, já existe um serem 'realidades dialéticas', nos quais o subjetivo e o
objetivo necessariamente se polarizam e se co-implicam,
quantum de conhecimento no ato de percepção, mas o conhe-
dada a impossibilidade de reduzir-se qualquer desses
cimento mesmo atinge sua plenitude quando aquele conteúdo
dois fatores ao outro, ou de conceber-se qualquer deles
se torna alvo de modalidades do pensamento (juízo). Pela in- sem o outro, resultando dessa tensão dois aspectos com-
tuição visual percebo o cão que passa, percebo também a cor plementares de um único processo."
de sua pelagem. Por enquanto, são meras percepções. Em se-
guida, emito o juízo afirmativo mediante o qual declaro que
aquele animal tem o predicado de ser branco. Manifesta-se o 7. Lógica — Pensamento formal e argumentação — Elementos
para o discurso
conhecimento de maneira plena, submetendo-se, imediata- jurídico, São Paulo, Edipro, 2000, p. 27.
mente, aos critérios de confirmação ou de infirmação, se não 8.0 direito como experiência:
introdução à epistemologia jurídica, 2a ed., São
quisermos falar em verdade e falsidade, atributos de enunciados Paulo, Saraiva, 1999, p. 84.

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E mais: Creio oportuno frisar que há uma relação dialética entre


sujeito e objeto, de tal sorte que um, não sendo o outro, não
"A Ontologia Jurídica, tendo por fim determinar afundação existe sem o outro; em última instância, um é pelo outro. O
cognoscitiva do Direito, em termos de integralidade, indaga
de sua consistência `ôntica' e da correlata estrutura 'lógica', objeto do conhecimento, em sentido estrito, não é a coisa
isto é, dos pressupostos universais ao mesmo tempo subje- concreta, sentida ou percebida como algo existente, também
9
tivos e objetivos da realidade jurídica. " chamada objeto em sentido amplo. É sempre interior. Por isso
se apresenta, invariavelmente, sob determinada forma de
Realmente, uma análise ponderada do fenômeno, seja ele consciência, como a percepção, a imagem, o conceito, etc.
jurídico ou não, pressupõe essas três instâncias cognoscitivas: Transmitido de modo diverso, o processo de conhecimento
o sujeito, no espírito de quem se dá o processo de absorção e dos objetos do mundo não se completa sem transitar, obriga-
retenção, o objeto conquistado no curso desse procedimento toriamente, pela subjetividade do ser cognoscente, quer os
cognoscente e a própria representação. do mundo exterior como os de seu próprio universo interior,
fazendo-se presentes em sua consciência por uma das formas
"Objeto" é vocábulo que provém do latim, objectus, par-
que cogitamos.
ticípio passado de objicere - que nos aponta para "atirar em",
ou "lançar contra", aludindo, então, àquilo a que a consciência É comum a confusão entre "objeto" do conhecimento e o
se dirige, cognitiva ou conativamente. Lembremo-nos de que "objeto" que vemos ali, concretamente existente no mundo
objeto cognitivo é qualquer item percebido, imaginado, conce- real. O que está em nossa consciência é o conteúdo da forma,
bido ou pensado. Enquanto o objeto conativo é qualquer item não o objeto mesmo, tomado na sua contextura físico-material.
desejado, pretendido ou evitado. Os filósofos separam de maneira clara essas duas situações,
referindo-se a "objeto" em sentido amplo: a coisa-em-si, per-
Objetos, em tal sentido amplo, nascem com o discurso,
cebida por nossos órgãos sensoriais, e "objeto" em sentido
surgem com o exercício de atos de fala, ou seja, não o precedem,
estrito, vale dizer, em sentido epistêmico: conteúdo de uma
muito ao contrário do que comumente se pensa. Os objetos
forma de consciência. Efeito prático imediato dessa distinção
nascem quando deles se fala: o discurso, na sua amplitude, lhes
é a lembrança de William James de que "a palavra 'cão' não
dá as condições de sentido mediante as quais os recebemos e
morde".
os processamos.
A Teoria dos Objetos reconhece que todo objeto tem
1.2.3. Teoria dos objetos e regiões ônticas
sempre um lado subjetivo, conteúdo de alguma forma subje-
tiva, apresentando-se, portanto, como um dado, um elemen- É também de Edmund Husserl a teoria geral dos objetos,
to integrante do mundo da consciência. Mantenhamos pre- retomada e explicitada por Carlos Cossio. Nela, vemos quatro
sente o que já foi dito: a consciência, enquanto tal, no fluxo ontologias regionais ou regiões ônticas, tendo o ser humano
incessante de sua existência, dissolve-se caso não se apresen- como ponto de referência de onde se irradiam os espaços cor-
te sob alguma forma. respondentes. Penso que o diagrama abaixo servirá como ele-
mento coadjuvante na explicitação da mensagem. Vale ressaltar
a presença do ser humano bem na confluência das regiões
9. O direito como experiência: introdução à epistemologia jurídica, cit., p. 85. mencionadas.
14 15
PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

Antes de passar em revista os objetos e as corresponden-


tes regiões ônticas, firmemos a premissa segundo a qual essa
classificação, como, de resto, todas as outras, não esgotam com
O BJ ETOS OBJ ETOS precisão o mundo objetal. Há entidades que preenchem os
NATURAIS IDEAIS
critérios de pertinência de duas ou mais classes regionais,
2 3
suscitando a dúvida em nosso espírito.
1) Esta notação indica que o ser humano é o centro a
partir do qual os objetos do mundo são considerados. Trata-
se, sem dúvida alguma, de uma visão antropocêntrica, que
O BJ ETOS OBJ ETOS toma o homem como o núcleo que integra todas as tentativas
METAFÍSICOS CULTURAIS de localização dos objetos. Breve reflexão sobre esses elemen-
5 4 tos nos mostra que as quatro regiões têm nele, homem, par-
ticipação imediata, encontrando nesse ponto central suas
fontes últimas de existência, suas plataformas operacionais.
Assim, por exemplo, sendo de carne e osso, o ente humano
pertence à região dos objetos naturais; é na sua mente que
Maria Helena Diniz 10 oferece-nos uma visão geral do assun-
estão depositadas as figuras ideais, como é, também, por meio
to, propondo, de maneira didática, os caracteres, o ato gnosioló-
de ações concretas, na trajetória de sua existência, que apa-
gico e o método de cada uma das quatro ontologias regionais.
recem os objetos culturais. Ao mesmo tempo, é o homem, na
REGIÃO ÔNTICA CARACTERES ATO GNOSIOLÓGICO MÉTODO complexidade de suas vivências psicológicas que cria e opera
2) Objetos A) são reais, têm existência Explicação Emp írico-
com os objetos metafísicos. Afinando-se pela mesma craveira,
naturais
no tempo e no espaço;
B) estão na experiência;
indutivo Gabriel Ivon é incisivo:
C) são neutros de valor.

3) Objetos A) são irreais; não têm exis- Intelecção Racional- "Em todos os momentos a presença humana é imprescin-
ideais tência no tempo e no es- dedutivo
paço; dível. No ato de vontade de aplicação; o intérprete autênti-
B) não estão na experiência; co no sentido kelseniano. E no ato de conhecimento, de
C) são neutros de valor.
designação do sentido dos textos normativos, ou seja, na
4) Objetos A) são reais; têm existência Compreensão Empírico-
culturais no tempo e no espaço; dialético construção das normas jurídicas; o intérprete não-autênti-
B) estão na experiência; co de Kelsen".
C) são valiosos, positiva ou
negativamente.

5) Objetos A) são reais; têm existência 2) Os objetos físicos ou naturais são reais, manifestam-se
metafísicos no tempo e no espaço;
B) não estão na experiência;
no tempo e no espaço, o que significa dizer que podem ser
C) são valiosos, positiva ou colhidos na experiência, mediante enunciados protocolares,
negativamente.
base das construções que costumamos chamar de leis físicas.

10. Maria Helena Diniz, Compêndio de introdução à ciência do direito, São


Paulo, Saraiva, 1988, p. 124. 11. Norma jurídica: produção e controle, São Paulo, Noeses, 2006, pp. 60-61.

16 17
PAULO DE BARROS CARVALHO

Todavia, tendem à neutralidade axiológica, vale dizer, inclinam-


se para a condição de objetos neutros com relação a valores.
Cumpre notar, entretanto, que os objetos psicológicos podem
ser vistos entre os naturais, porém, só existem no tempo, não
se verificando no espaço. O ato gnosiológico apropriado aos
objetos dessa região ontológica é a explicação e o método é o
empírico-indutivo.
3) Os objetos ideais são irreais, inocorrendo no âmbito das
coordenadas de espaço e de tempo, o que implica declarar a
Capítulo 2
i mpossibilidade de seu conhecimento empírico. Tanto quanto NOÇÕES FUNDAMENTAIS PARA UMA
os anteriores, tendem à neutralidade axiológica, o ato gnosio- TOMADA DE POSIÇÃO ANALÍTICA
lógico que lhes é próprio chama-se intelecção e o método eficaz
para o trato com tais elementos é o racional-dedutivo.
Sumário: 2.1. Círculo de Viena — 2.1.1. O Neopo-
4) Já os culturais são reais, têm existência espaço-tempo- sitivismo lógico e o Círculo de Viena: aspectos
ral, susceptíveis, portanto, à experiência, além de serem valio- gerais do movimento — 2.1.2. Como se formou o
sos, positiva ou negativamente. O acesso cognoscitivo se dá Círculo de Viena — antecedentes históricos — pre-
cursores e fundadores — pessoas e obras que o
pela compreensão e o método próprio é o empírico-dialético, já
influenciaram — 2.1.3. Propostas e objetivos do
que o saber, nesse campo, pressupõe incessantes idas e venidas Neopositivismo lógico. 2.2. Língua e linguagem
da base material ao plano dos valores e, deste último, à con- — 2.2.1. Linguagem e signos do sistema — 2.2.2.
creção da entidade física que examinamos. Funções da linguagem — 2.2.3. Formas de lingua-
gem — 2.2.4. Tipos de linguagem. 2.3. Direito e
5) É importante salientar, ao falarmos dos objetos metafí- Lógica — 2.3.1. A Lógica e seu objeto: "Lógica
sicos, que são eles reais, tendo existência no tempo e no espaço, jurídica" e "Lógicas jurídicas" — 2.3.2. Generali-
mas não podem ser surpreendidos pela experiência, ainda que zação e formalização — 2.3.3. O domínio das es-
sejam valiosos, positiva ou negativamente. É desconhecida a truturas lógicas — 2.3.4. Relações lógicas e relações
possibilidade de acesso, ao menos em termos científicos, ao entre os objetos da experiência — 2.3.5. A chama-
da Lógica formal e a metodologia — 2.3.6. Valores
mundo da metafísica, formada por objetos que estão para lá da
lógicos da linguagem do direito positivo e seus
experiência, justificando-se, unicamente, pela via da crença modais. 2.4. Proposição e linguagem: isolamen-
(doxa). Para quem acredite e se convença da existência do bem to temático da proposição — 2.4.1. Linguagem
metafísico, ele existe; contudo, para aqueles que não ficarem formalizada e representação simbólica: as formas
persuadidos, o dado metafísico, não estando sujeito aos atos lógicas nas estruturas proposicionais — 2.4.2. As
variáveis e as constantes da Lógica Proposicional
gnosiológicos e correspondentes métodos indicados para as
Alética — 2.4.3. Cálculo proposicional. 2.5. Teoria
outras três regiões de objetos, será apenas algo inaccessível, que, das relações — 2.5.1. Simbolização: relações de
normalmente, as pessoas ignoram ou não levam a sério. Em primeira ordem e relações de segunda ordem —
suma, o caminho científico não existe e, quanto ao conhecimen- 2.5.2. As propriedades, as funções e as qualidades
to vulgar, dependerá do poder retórico de quem o afirma, con- das relações — 2.5.3. Sobre a relação de identida-
tando com a boa vontade e a crença do receptor da mensagem. de — 2.5.4. Cálculo das relações — 2.5.5. Aplicação

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

da teoria das relações. 2.6. Teoria das classes - mantiveram intenso intercâmbio de idéias, num regime de
2.6.1. Aplicabilidade prática: o sistema harmoni- cooperação intelectual poucas vezes registrado, circunstância
zado de designação e de codificação de mercado-
que possibilitou uma série de conclusões tidas como válidas
rias, a nomenclatura brasileira e a tabela do im-
posto sobre produtos industrializados. 2.7. O
para os diversos setores do conhecimento. É daí que se pode
dever-ser como entidade relacional. 2.8. Teoria falar de uma Epistemologia Geral, isto é, de uma teoria crítica
da norma jurídica - 2.8.1. Ambiguidade do termo voltada para o estudo e a análise dos conceitos básicos, dos
"norma jurídica" - 2.8.2. Estrutura lógica: análise princípios e dos objetivos do conhecimento científico em geral,
da hipótese normativa - 2.8.3. Estrutura lógica bem como dos resultados de sua efetiva aplicação. Epistemo-
da norma: análise do consequente - 2.8.4. Sistema logia, aliás, é termo mais restrito que Teoria Geral do Conhe-
jurídico como conjunto homogêneo de enuncia- cimento ou Gnosiologia, pois seu foco temático não é o simples
dos deônticos - 2.8.5. O conceito de "norma com- conhecimento (doxa = crença, opinião), mas o saber qualifica-
pleta": norma primária e norma secundária -
do como científico (episteme = conhecimento científico + logos
2.8.6. Espécies normativas. 2.9. A regra-matriz
de incidência - 2.9.1. O método da regra-matriz
= estudo, pensamento, reflexão).
de incidência tributária - 2.9.2. Escalonamento A forte preocupação com os princípios básicos do saber
da incidência normativa na óptica da teoria co-
científico ainda não é suficiente para caracterizar a índole
municacional.
desse movimento filosófico. De fato, tal tendência epistemoló-
gica revela uma redução do campo filosófico, uma vez que a
Filosofia da Ciência não se esgota com as especulações a pro-
2.1. CÍRCULO DE VIENA pósito do quadro de possibilidades e das avaliações atinentes
a Epistemologia. Vai mais além. Os neopositivistas lógicos re-
2.1.1. O Neopositivismo lógico e o Círculo de Viena: aspectos
duziram também a Epistemologia à Semiótica, compreendida
gerais do movimento esta como teoria geral dos signos, abrangendo todo e qualquer
Neopositivismo Lógico ou, simplesmente, Positivismo sistema de comunicação, desde os mais singelos e primitivos
Lógico - além de Filosofia Analítica, Empirismo Contemporâ- até os sistemas linguísticos dos idiomas naturais e das linguagens
neo ou Empirismo Lógico - são os nomes pelos quais dá a co- formalizadas das Ciências. Agora, se levarmos em conta as duas
nhecer uma corrente do pensamento humano que adquiriu mencionadas reduções (da Filosofia à Epistemologia e desta à
corpo e expressividade em Viena, na segunda década do sécu- Semiótica), poderemos entender a importância essencial que os
lo XX, quando filósofos e cientistas se encontravam, sistema- adeptos do movimento atribuem à linguagem como o instru-
ticamente, para discutir problemas relativos à natureza do mento por excelência do saber científico. E, mais ainda, como a
conhecimento científico. Tratavam, portanto, de Filosofia das própria linguagem vai servir de modelo de controle dos conhe-
Ciências, mais preocupados, porém, com uma Epistemologia cimentos por ela produzidos. Chegam, por isso, a proposições
Geral, na medida em que cada um dos participantes lá estava afirmativas como esta: compor um discurso científico é verter
movido pelos interesses específicos do seu campo de indaga- em linguagem rigorosa os dados do mundo, de tal sorte que ali
ções. O grupo era heterogêneo, reunindo filósofos, físicos, onde não houver precisão linguística não poderá haver Ciência.
sociólogos, matemáticos, psicólogos, lógicos, juristas (Kelsen Na verdade, perceberam os neopositivistas lógicos que a lin-
esteve presente em alguns encontros), etc. Profundamente guagem natural, com os defeitos que lhe são imanentes, como
interessados nos fundamentos das respectivas Ciências, por exemplo a ambiguidade, jamais traduziria adequadamente

20 21
PAULO DE BARROS CARVALHO
DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

os anseios cognoscitivos do ser humano, donde a necessidade


com extraordinária habilidade, incentivando a mútua coope-
de partir-se para a elaboração de linguagens artificiais, em que
ração entre os membros, mas, sempre que necessário, tolhen-
os termos imprecisos fossem substituídos por vocábulos novos,
do os arroubos excessivos, para que tudo se mantivesse num
criados estipulativamente, ou se submetessem àquilo que Rudolf
plano de efetiva praticidade. Em 1929, Schlick esteve na Cali-
Carnap chamou de "processo de elucidação".
fórnia como professor convidado pela Universidade de Stanford
Esboçado genericamente, para efeito da primeira aproxi- durante a primavera e o verão. Ao ensejo de seu regresso a
mação, eis o perfil do movimento conhecido por Neopositivis- Viena, em agosto daquele mesmo ano, três membros do Círculo
mo Lógico. - Rudolf Carnap, Hans Hahn e Otto Neurath - redigiram um
manifesto intitulado "O ponto de vista científico do Círculo de
2.1.2. Como se formou o Círculo de Viena - antecedentes Viena", com o que pretenderam prestar justa homenagem ao
históricos - precursores e fundadores - pessoas e obras pai do cenáculo vienense, dedicando-lhe o opúsculo. A divul-
que o influenciaram gação desse trabalho e a realização do congresso internacional
de Praga, no mesmo ano, deram larga e pública difusão ao mo-
Desde os idos de 1907, Hans Hahn, Phillipp Frank e Otto vimento que ficou, assim, conhecido como "Círculo de Viena".
Neurath encontravam-se, constantemente, num determinado O manifesto apresentava uma concepção científica do
café vienense, com o objetivo de trocar idéias a respeito de mundo, como algo a ser conquistado mediante uma série de
temas ligados à Filosofia da Ciência. Entretanto, foi com a medidas, entre elas: a) colocar a linguagem do saber contem-
vinda de Moritz Schlick para a capital austríaca, transferindo- porâneo sob rigorosas bases intersubjetivas; b) assumir uma
se de Kiel, nomeado para ocupar a cátedra de Filosofia das orientação absolutamente humanista, reafirmando o velho
Ciências Indutivas, que se pôde reconhecer, efetivamente, a princípio dos sofistas: o homem é a medida de todas as coisas;
gênese do chamado "Círculo de Viena". Schlick obtivera o e c) deixar assentado que tanto a Teologia quanto a Filosofia
doutoramento em Berlim, com tese sobre Óptica teórica, orien- não poderiam ostentar foros de genuína validade cognoscitiva,
tado por Max Planck. Iniciou seu magistério em Viena em 1922, formando, no fundo, um aglomerado de pseudoproblemas. De
mas logo no ano seguinte coordenava um seminário, no seio tal concepção emergem dois atributos essenciais: 1 2) todo o
do qual surgiu o famoso grupo de debates, integrado por filó- conhecimento fica circunscrito ao domínio do conhecimento
sofos e cientistas dos mais variados campos e dotados, todos eles, empírico; e 2Q) a reivindicação do método e da análise lógica
de inusitado interesse por temas epistemológicos, passando a da linguagem, como instrumento sistemático da reflexão filo-
reunir-se, com habitualidade, às senoites das quintas-feiras. sófica. Este último aspecto dá originalidade ao movimento, em
Cumpre advertir que uma das características do Círculo contraste com a tradição psicologizante da própria gnosiologia
era a atitude aberta e antidogmática existente nas discussões, empírico-positivista.
em que todos se mostravam dispostos a submeter suas teses à
Também faz parte do corpo do manifesto um exame dos
crítica dos demais. Predominava, amplamente, o espírito de
fundamentos da Aritmética, da Física, da Geometria, da Bio-
colaboração, suplantando qualquer tipo de participação com-
logia e da Psicologia, apontando seus autores para a inconsis-
petitiva. O ambiente refletia, sem dúvida alguma, a especialís- tência de termos precariamente definidos, tais como alma, bem
sima personalidade de Schlick. Equilibrado e portador de um comum, espírito dos povos, enteléquia e muitos outros de cunho
dinamismo propenso à conciliação, coordenava os encontros metafísico. No final, está declarado que a visão científica do
22
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DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM• MÉTODO
PAULO DE BARROS CARVALHO

sobre os alicerces filosóficos da Física. Produziu fortes argu-


mundo coloca-se a serviço da vida, propugnando por autênticas mentos antimetafísicos, criticando o conceito de "coisa em si"
bases racionais para a existência associativa do homem, assim
como algo distinto de sua aparência ("Análise das Sensações").
como para o próprio conhecimento humano.
Mach enfatizou um ponto muito importante para o Neopositi-
São muitos os nomes a que se reporta o manifesto vienen- vismo Lógico, qual seja, a imprescindível "unidade da ciência",
se, na condição de precursores do Neopositivismo Lógico. e regeu a cátedra de Filosofia das Ciências Indutivas, mais
Poremos em evidência, contudo, as figuras de David Hume, de tarde ocupada por Moritz Schlick.
Gottlob Frege e de Ernst Mach. Há coincidências acentuadas, igualmente, entre o ideário
12
O primeiro deles - David Hume (1711/1776) - empirista do Empirismo contemporâneo e o pensamento do lógico e
inglês, é conhecido como o pai espiritual do Positivismo Lógico, matemático americano Charles Sanders Peirce (1839/1914).
tendo afirmado que "(...) o único fundamento sólido que pode- Todavia, melhor será firmarmos o nome daqueles três pensa-
mos dar à ciência tem que residir na experiência e na obser- dores, cujas obras decididamente prepararam o advento do
vação". Elaborou a distinção entre impressões e idéias, resu- famoso "Círculo de Viena".
mindo sua posição antimetafísica na obra Investigação sobre o
Por outro lado, não é difícil identificar os fundadores do
entendimento humano. Foi o mesmo Hume que, no seu Tratado movimento: Rudolf Carnap, Hans Hahn e Otto Neurath, sob a
da natureza humana, tecendo observações sobre a moral, abriu coordenação indiscutível e brilhante de Moritz Schlick, de
espaço para que outros pensadores resumissem suas idéias,
quem já falamos. Ludwing Wittgenstein não chegou a perten-
formulando o princípio: "é impossível deduzir uma proposição
cer ao grupo, entretanto seu livro Tractatus logico-philosophicus
normativa de uma série de proposições descritivas e vice-ver-
influenciou diretamente os integrantes do movimento, haven-
sa". Em outras palavras, do ser, não se chega ao dever-ser e do do quem afirme que sem as idéias contidas nesses escritos, os
dever-ser, não se chega ao ser. neopositivistas jamais teriam alcançado os níveis de profundi-
Gottlob Frege (1848/1925) formulou a definição de núme- dade a que chegaram. Essa obra apareceu em 1922, com intro-
ro (1884), na obra As leis fundamentais da Aritmética, demons- dução de Bertrand Russel, e na proposição 5.6 está dito que "os
trando que esta Ciência é redutível à Lógica. Além disso, an- li mites da minha linguagem são os limites do meu mundo".
tecipou-se à chamada concepção semântica da verdade, apre- Em comentário ligeiro, o Tractatus logico-philosophicus é
sentada por Alfred Tarski e compôs o primeiro sistema com-
marco decisivo na história do pensamento humano. Até Kant,
pleto de Lógica Formal. É sua também a distinção entre senti-
a filosofia do ser; de Kant a Wittgenstein, a filosofia da consci-
do e referência, acentuando que a busca da verdade é o que ência; e, de Wittgenstein aos nossos dias, a filosofia da lingua-
nos impele a avançar do sentido à referência.
gem, com o advento do "giro-linguístico" e de todas as impli-
Por fim, Ernst Mach (1838/1916) era físico e, em sua prin- cações que se abriram para a teoria da comunicação. Não estou
cipal obra, trata dos princípios da Mecânica (1883). Preocupado entre aqueles que tomam o Investigações Filosóficas como
com as noções básicas de sua Ciência, refletiu profundamente rejeição cabal do Tractatus, vendo nele a autonegação da obra
revolucionária do extraordinário pensador. Prefiro conceber
os "jogos de linguagem", e tudo mais que está contido na se-
12. Tratado da natureza humana: uma tentativa de introduzir o método gunda obra, como grande e corajosa revisão daquele impulso
experimental de raciocínio nos assuntos morais, São Paulo, Imprensa Oficial/ inicial que abalou as estruturas filosóficas tradicionais e que
UNESR 2001.
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PAULO DE BARROS CARVALHO
DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

foi escrito em condições especialíssimas: nas trincheiras da "Do paradigma verificacional que vinha dominando a filo-
Primeira Guerra Mundial. Além do que, claro, longe de imagi- sofia da linguagem desde Frege, passou-se para o paradig-
nar que as proposições do livro, cuidadosamente ordenadas, ma comunicacional. Essa mudança de perspectiva no estu-
teriam resolvido todos os problemas essenciais da filosofia. do da linguagem tornou-se conhecida como giro linguístico-
Aliás, o texto permite várias e desconcertantes leituras: desde pragmático."
a que fizeram os neopositivistas lógicos, até aquelas, de cunho
metafísico, que salientam o sentido ético do Tractatus, dando E continua:
como exemplo a proposição pela qual o que não é dizível cien-
"Tractatus logicophilosophicus e Investigações filosóficas, não
tificamente é a parte mais relevante, associada à ética e à reli-
apenas são referências desses dois momentos da filosofia da
gião. Há quem diga que Wittgenstein acreditasse, de maneira
linguagem, como também nos permitem observar o giro
apaixonada, que tudo de importante na vida humana seria linguístico-pragmático sob a ótica do mesmo filósofo. Como
precisamente aquilo sobre o que devemos calar. Seja como for, exposto anteriormente, no Tractatus, WITTGENSTEIN
interessa-me agora a asserção "falar uma linguagem faz parte entende que a linguagem tem como função representar o
de uma atividade ou de uma forma de vida", uma das cláusulas mundo e, como examinaremos posteriormente, em Inves-
fundamentais da obra tida como derradeira desse autor con- tigações filosóficas, o filósofo afirma o caráter comunicacio-
nal da linguagem.' 4 "
siderado como a expressão maior do seu tempo. A nova con-
cepção, dando origem à filosofia da linguagem ordinária,
provocou aquilo que veio a chamar-se "giro-linguístico", mo- 2.1.3. Propostas e objetivos do Neopositivismo lógico
vimento dentro do qual estamos imersos, cada vez com maior
intensidade, segundo penso. As reivindicações substanciais do Neopositivismo Lógico
foram expostas e discutidas, no seu tempo, com suficiente
Há divergências sobre a identificação de Wittgenstein com
clareza. Não fora isso, contudo, e a luz projetada pela análise
o Empirismo Lógico, postos os antagonismos que alguns apon-
histórica serviria para isolar os tópicos principais que essa
tam entre as linhas primordiais do pensamento neopositivista
tendência do pensamento filosófico quis ver consagrados. Fa-
e algumas proposições do Tractatus. A despeito disso, porém, é
lemos aqui dos mais relevantes, lembrando que na primeira
notória a irradiação de sua influência entre os participantes do
parte, ao tratarmos da natureza do movimento, ficou patente
cenáculo vienense, tanto pela obra em si como por sua própria
que o Neopositivismo Lógico encarece sobremaneira a lingua-
pessoa, por intermédio de Schlick. Penso que a referência a
gem como instrumento do saber científico e, mais do que isso,
essas duas obras de Wittgenstein possa servir de marco para
como meio de controle daqueles mesmos conhecimentos. Ora,
apontar a grande virada linguística que se deu nas concepções
fazendo convergir para a linguagem todas as atenções, perce-
da linguagem e do homem em relação aos dados brutos do uni-
beram a necessidade premente da construção de modelos ar-
verso do sensível, que são o seu contorno. Ainda neste ponto,
13 tificiais para a comunicação científica, assim entendidas as
cito, concisamente, as ponderações de Sonia Mendes , que linguagens naturais purificadas pela substituição de vocábulos
bem elucidou esse movimento da filosofia da linguagem: que, por uma ou outra razão, obscureciam a explicação ou a
compreensão do objeto.

13. A validade jurídica pré e pós giro linguístico, São Paulo, Noeses, 2007,
p. 55. 14. A validade jurídica pré e pós giro linguístico, cit., p. 55.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

O discurso científico, desse modo aperfeiçoado, estaria que fizermos. Se o fato for confirmado, mediante informações
apto para proporcionar uma visão rigorosa e sistemática do colhidas em fonte credenciada, aquele enunciado adquirirá o
mundo. Os recursos semióticos permitiram a análise das três valor de verdade. Caso contrário, será falso. Note-se que é a
dimensões que a linguagem apresenta' 5 . Os neopositivistas verificabilidade o critério tomado para sabermos da verdade ou
lógicos, na procura da depuração discursiva, outorgam uma falsidade dos enunciados descritivos de situações objetivas.
importância muito grande à sintaxe e à semântica, em detri- Com tais anotações, já podemos expor um importante
mento do ângulo pragmático. Ao conceber uma linguagem traço da concepção neopositivista, que não só exige a boa for-
ideal para as ciências, construíram um paradigma linguístico mação da sintaxe frásica, como também declara que os enun-
empobrecido no plano pragmático, ainda que bastante rigoro- ciados inverificáveis não poderão integrar o discurso científico.
so nos planos sintático e semântico. Este há de abranger, única e exclusivamente, enunciados ver-
dadeiros, assim considerados por serem passíveis de compro-
De fato, o respeito às regras sintáticas é um pressuposto
vação efetiva. Advém daí o postulado: um enunciado terá
inafastável para o sentido do enunciado. Não basta a justapo-
sentido semântico se puder ser empiricamente verificável.
sição de vocábulos conhecidos para que a mensagem tenha
significação. É necessário que estejam dispostos segundo cer- Esta firme e radical postura epistemológica afasta, desde
ta ordem. Se dissermos: "todavia quando e retoma", ninguém logo, os enunciados metafísicos dos quadros do saber científi-
certamente compreenderá o que foi transmitido, porque a co, que estaria circunscrito aos limites do factual, do tangível,
disposição das palavras não obedece às normas sintáticas da vale dizer, daquele campo de objetos que podem ser recolhidos
formação de frases, em língua portuguesa. Se, porém, o arran- por nossa intuição sensível e demonstrados experimentalmen-
jo estiver adequadamente composto, há possibilidade de en- te. As proposições metafísicas, por insusceptíveis de experi-
tender-se o que foi comunicado. Diremos, portanto, que tem mentação, não chegavam a adquirir status científico e, para o
sentido. Mas, a validade sintática, ainda que permita o sentido, pensamento do "Círculo de Viena", sequer poderiam ser cha-
não chega a garantir o conteúdo de verdade do enunciado. madas de "proposições". A carência de sentido relegava-as à
Estamos, aqui, em pleno campo semântico, isto é, no domínio condição de pseudoproposições. Com isso, os neopositivistas
da relação das palavras e expressões com as realidades inte- lógicos acolhiam duas teses dos Tractatus de Wittgenstein, quais
riores ou exteriores que elas denotam. Havendo a ponte entre sejam: a) os enunciados factuais têm sentido apenas e tão-só
o suporte material dos signos e os objetos significados, surge o quando puderem ser verificados empiricamente; e b) existem
valor de verdade, como atributo do enunciado. Desse modo, a enunciados não verificados empiricamente, mas que têm sen-
frase "choveu na cidade de Olinda, no dia 03 de junho de 1980", tido e são verdadeiros ou falsos consoante os próprios termos
além de ter sentido, pois está bem formada sintaticamente, pode que os compõem. São as tautologias, que nada afirmam a res-
ser verdadeira ou falsa, dependendo da cuidadosa certificação peito da realidade. A Lógica e a Matemática estudam essa fi-
gura, podendo dizer-se que ambas se estruturam como verda-
deiros conjuntos de tautologias.
15. Não custa recordá-las: a) o sintático, em que os signos linguísticos são A condição semântica de sentido, que repousa no teor de
examinados nas suas relações mútuas, isto é, signos com signos; b) o semân- verdade do enunciado, é uma tese central para os empiristas
tico, que se ocupa da relação do signo com o objeto que ele representa; e c) contemporâneos. Ao lado disso, a confluência de todos os enun-
o pragmático, em que os signos são vistos na relação que mantêm com os
utentes da linguagem. ciados para o mesmo campo temático permite a demarcação da

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DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO
PAULO DE BARROS CARVALHO

o português, o francês, o inglês, etc., se bem que os homens se


região objetiva de que se vai ocupar determinada Ciência, comuniquem por meio de inúmeros códigos; assim, por exem-
outorgando-lhe foros de unidade. Um discurso científico esta- plo, a expressão corporal e, dentro dela, a mímica, a linguagem
ria assim caracterizado pela existência de um feixe de propo- do olhar e tudo aquilo que, com sua postura, o ente racional
sições linguísticas, relacionadas entre si por leis lógicas e pode transmitir a seus semelhantes. A língua, portanto, é ape-
unitariamente consideradas em função de convergirem para nas um dos sistemas sígnicos que se presta a fins comunica-
um único domínio, o que dá aos enunciados um critério de cionais. O vestuário, o mobiliário, a culinária, a arquitetura, a
significação objetiva. música, as artes plásticas são também códigos e, no quadro de
A título de complementação deste breve estudo sobre seus limites, deles se aproveitam as criaturas humanas para
Positivismo Lógico, cumpre lembrar que a corrente de pensa- estabelecer interações do mesmo tipo. Deixemos de lado, po-
mento que reduz a Filosofia à análise da linguagem bifurca-se, rém, essas manifestações que o homem histórico construiu e
dando origem à vertente que se dirige à análise da linguagem fiquemos tão-só com as estruturas idiomáticas, sistemas que
científica - Neopositivismo Lógico -, bem como àquela que melhor atendem aos contatos intersubjetivos, como mecanis-
toma por objeto a linguagem comum. Esta última é conhecida mos fecundos de intercâmbio de informações, da transmissão
como "Filosofia da Linguagem Ordinária" e tem como ponto de notícias e conhecimentos, de ordens e de sentimentos, de
de partida a segunda obra de Wittgenstein - Investigações fi- sugestões, da formulação de perguntas, da própria realização
losóficas - que já circulara na Inglaterra, influenciando um de fatos importantes para a sociedade, bem como para a apro-
grupo de pensadores, antes mesmo de sua publicação, que ximação inicial das pessoas no convívio diário.
ocorreu em 1953. Alfredo Ayer é expressão dessa diretriz. A É imperioso que fixemos um ponto de apoio para situar-
Filosofia da Linguagem Ordinária, não operando com modelos mos, devidamente, a temática da língua enquanto sistema
artificiais, preserva toda a riqueza do ângulo pragmático, que convencional de signos (no mais das vezes imotivados) e que
é inerente às linguagens naturais. Todavia, como ressaltou se mostra resistente a tentativas isoladas de modificação por
Bertrand Russel, seus excessos muitas vezes comprometem parte dos indivíduos, assumindo, por isso mesmo, o caráter de
por inteiro as vantagens que, porventura, possa apresentar uma autêntica instituição social. Essa plataforma está repre-
com relação à corrente da linguagem científica. sentada pela linguagem, na sua natureza multiforme e heteró-
clita, como bem salientou Ferdinand de Saussure' 6 , participan-
do, a um só tempo, do mundo físico, do fisiológico e do psíqui-
2.2. LÍNGUA E LINGUAGEM
co, da índole pessoal de cada um e do seu contorno social. É
É dentro daquelas ideologias adotadas pelo Neopositivismo na confluência de fatores compositivos tão distintos que se
que se propõe uma visão mais rigorosa da realidade e do mundo opera o corte metodológico mediante o qual surgirá aquele
jurídico, tomando a linguagem como modo de aquisição do saber sistema sígnico alheio à matéria de que são feitos os sinais que
científico, aplicada por meio de mecanismos lógicos, na cons- o integram: eis a língua que Saussure opôs à fala. Consiste esta
trução de modelos artificiais para a comunicação científica. última num ato individual de seleção e de atualização, em face
da primeira, que é instituição e sistema: o tesouro depositado
Entre outras acepções, tomemos língua como sistema de
signos, em vigor numa determinada comunidade social, cum-
prindo o papel de instrumento de comunicação entre seus 16. Curso de linguística geral, São Paulo, Cultrix, 1975, p. 17.
membros. A palavra está aqui com o sentido de idioma, como
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PAULO DE BARROS CARVALHO
DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

pela prática da fala nos indivíduos pertencentes a uma mesma sentido, vê-se, ocorre a confusão entre essa linguagem que
comunidade. Atreladas num processo dialético, não pode haver
mencionamos e a fala, segundo as categorias de Saussure. Para
língua sem fala, e a recíproca é verdadeira. A dicotomia língua/
os objetivos do presente texto, usaremos linguagem em vez de
fala, que Hjelmslev prefere substituir por esquema/uso e Jako- fala, aproveitando ressaltar a extraordinária importância de
bson por código/mensagem, é de grande relevância para a que se reveste o estudo da linguagem nos tempos atuais, espe-
compreensão do assunto de que tratamos, de tal modo que
cialmente no que tange ao conhecimento "científico", como já
podemos aceitar a proposição afirmativa segundo a qual a
explicitamos no apanhado histórico a que me referi em item
língua é, praticamente, a linguagem menos a fala, com o que anterior. Vale recordar, a este respeito, a proposição 5.6, do
R. Barthes" nos indica a forma de abstração que permite al- Tractatus logico-philosophicus, de L. Wittgenstein: "Os limites
cançar o conceito de língua. da minha linguagem significam os limites do meu mundo". Ou
Noções correlatas, linguagem, língua e fala são indissoci- a afirmação categórica de Tercio Sampaio Ferraz Jr.": "A rea-
áveis. Nenhuma delas poderá ser estudada, com profundidade, lidade, o mundo real, não é um dado, mas uma articulação
se não atinarmos para o esquema dialético que as aproxima. linguística mais ou menos num contexto social". E, páginas
Sendo assim, da mesma maneira como pusemos em evidência depois: "Fato não é, pois, algo concreto, sensível, mas um ele-
a idéia de língua, como resultado da subtração, em que retira- mento linguístico capaz de organizar uma situação existencial
mos a fala da linguagem, nada custa reconstruir os conceitos, como realidade".
para recuperar a noção de linguagem e, em seguida, abstrair
as idéias de língua e de fala. Linguagem, aliás, é a palavra mais 2.2.1. Linguagem e signos do sistema
abrangente, significando a capacidade do ser humano para
comunicar-se por intermédio de signos cujo conjunto sistema- O falar em linguagem remete o pensamento, forçosamen-
tizado é a língua. Sua análise se irradia por terrenos diversos, te, para o sentido de outro vocábulo: o signo. Como unidade
consoante os tipos de relações que estabelece: com o sujeito de um sistema que permite a comunicação inter-humana, sig-
(psicolinguística); com a sociedade (sociolinguística); com a no é um ente que tem o status lógico de relação. Nele, um su-
língua, enquanto sistema organizado de signos, ingressando porte físico se associa a um significado e a uma significação,
aqui todos aqueles domínios que a Linguística recobre, tendo para aplicarmos a terminologia husserliana. O suporte físico
como proposta fundamental o estudo científico da linguagem. da linguagem idiomática é a palavra falada (ondas sonoras, que
são matéria, provocadas pela movimentação de nossas cordas
De agora em diante, sem nos afastar do plano da língua,
vocais no aparelho fonético) ou a palavra escrita (depósito de
no qual estudaremos mais detidamente os signos, depositemos
tinta no papel ou de giz na lousa). Esse dado, que integra a
nossa atenção nos modos pelos quais os seres utilizam a estru-
relação sígnica, como o próprio nome indica, tem natureza fí-
tura da língua no contexto comunicacional. Vai interessar-nos,
sica, material. Refere-se a algo do mundo exterior ou interior,
a contar deste momento, as maneiras de emprego dos códigos
da existência concreta ou imaginária, atual ou passada, que é
idiomáticos, circunstância que determina o aparecimento de
seu significado; e suscita em nossa mente uma noção, idéia ou
muitas linguagens, em decorrência de uma só língua. Neste

18.Introdução ao estudo do direito, 3a ed., São Paulo, Atlas, 2001, p. 245.


17. Elementos de semiologia, São Paulo, Cultrix, 1993, p.17.
19.Idem, ibidem, p. 253.
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

conceito, que chamamos de "significação". É necessário adver- tipo de associação mantida entre o suporte físico e o significa-
tir que impera abundante descompasso entre os autores a do, exposta por Charles S. Peirce, distingue o gênero signo em
respeito das denominações atribuídas a cada qual dos pontos três espécies: índice, ícone e símbolo. índice é o signo que
desse triângulo, começando por aqueles que consideram o mantém conexão física com o objeto que indica. Nuvens car-
signo no seio de uma relação meramente bifásica ou bilateral". regadas, que se avolumam no céu, aparecem como índice de
De fato, se percorrermos os livros que se aprofundam na te- chuva. Os sintomas patológicos que os homens manifestam
mática dos signos, vamos encontrar a mais variada terminolo- nada mais são do que índices das várias enfermidades. Exami-
gia. Umberto Eco 2 ' utiliza significante para designar o suporte nado o paciente, verificando o médico que nele ocorrem alguns
físico, significado para a significação e referente para o signifi- sintomas, interpreta esses índices como significativos da pre-
cado. Expõe, ainda, o nome que outros estudiosos adotam, sença de um mal, substituindo-os, então, pelo nome técnico
como, por exemplo, Peirce, para quem signo é o suporte físico; que as ciências médicas artificialmente criaram: sinusite, he-
interpretante, a significação; e o objeto, o significado. Morris, patite, laringite, gastrite, etc. Veremos depois que tais palavras
de sua parte, elegeu veículo sígnico no lugar de suporte físico, são signos da linguagem médica. O ícone, por sua vez, procura
designatum ou significatum em vez de significação e denotatum reproduzir, de algum modo, o objeto a que se refere, oferecen-
para aludir ao significado. É sensível a divergência entre os
do traços de semelhança ou refletindo atributos que estão no
termos usados pela doutrina especializada, circunstância que
objeto significado. Os desenhos figurativos, as próprias carica-
não chega a obscurecer ou dificultar a compreensão do assun-
turas, os bustos esculpidos ou entalhados, todos e muitos outros,
to. Estabeleçamos, contudo, num pacto semântico, a adoção
são exemplos de signos icônicos. Já o símbolo é um signo arbi-
das palavras de que se serve Edmund Husserl: suporte físico,
trariamente construído, não guardando, em princípio, qualquer
significação e significado, prosseguindo no caminho que nos
propusemos percorrer. Um exemplo, porém, terá o condão de ligação com o objeto do mundo que ele significa. Aceitos por
consolidar a idéia de signo como relação triádica. A palavra convenção, os símbolos são largamente utilizados nos mais
manga (fruta) é o suporte físico (porção de tinta gravada no diferentes códigos de comunicação. Deles não pode haver me-
papel). Refere-se a uma realidade do mundo exterior que todos lhor exemplo do que as palavras de um determinado idioma.
conhecemos: uma espécie de fruta, que é seu significado. E faz O vocábulo casa nada sugere, considerado em si mesmo, a
surgir em nossa mente o conceito de manga, variável de pessoa respeito da entidade real que menciona. É produto de conven-
para pessoa, na dependência de fatores psíquicos ligados à ção, formada num processo evolutivo que a gramática históri-
experiência de vida de cada um. Para aqueles que apreciarem ca pode em parte explicar, se bem que a escolha propriamente
essa fruta, certamente que sua imagem será de um alimento dita, no seu modo primitivo de existir, continue sendo ato ar-
apetitoso, suculento. Para os que dela não gostarem, a idéia bitrário. São exemplos de símbolo, em linguagens não idiomá-
será desfavorável, aparecendo a representação com aspectos ticas, a bandeira branca, que exprime o pedido de paz; a cruz,
bem diferentes. Trata-se da significação. expressão viva do cristianismo; os emblemas, brasões, distin-
A classificação dos signos gera, também, intensas polêmicas. tivos e tudo aquilo que representa pessoas, famílias, clubes,
Uma das mais difundidas, que examina a entidade segundo o países, instituições, etc.
A Semiologia, como Ciência que estuda a vida dos sig-
nos no seio da sociedade, foi apresentada por Ferdinand de
20. Carnap: indicador e indicado; Saussure: significante e significado. Saussure e voltou-se mais para a linguagem verbal, uma vez
21. O signo, 3a ed., Lisboa, Editorial Presença, 1985. que o autor era linguista. Todavia, o projeto foi concebido

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

para a pesquisa de todo e qualquer sistema sígnico. Quase colecionam ordenadamente os signos de uma língua, tendo em
simultaneamente, Charles Sanders Peirce, filósofo america- vista a explicação de seu significado. Há dicionários próprios
no, fundava a Semiótica como disciplina independente, a muitos sistemas de linguagem, que servem ao conhecimento
tendo por objeto, também, os signos dos mais variados sis- e à comunicação desse conhecimento entre os homens. Salien-
temas. De caráter mais acentuadamente filosófica, a teoria tamos aqui, a título de registro, os dicionários de terminologia
de Peirce teve, desde o início, o mesmo campo objetal que a jurídica, onde as palavras do direito estão dispostas de tal modo
Semiologia de Saussure, razão por que a maioria dos autores que o leitor interessado possa encontrar os correspondentes
emprega os dois nomes como sinônimos para designar a significados que os diversos signos abriguem, atribuindo-lhes
teoria geral dos signos 22 . os sentidos possíveis. Por fim, o plano pragmático, que é de
extrema fecundidade, sendo infinitas as formas de utilização
Peirce e outro americano - Charles Morris2 3 - distinguem
dos signos pelos sujeitos da comunicação, em termos de pro-
três planos na investigação dos sistemas sígnicos: o sintático,
duzir mensagens. Imaginemos um elogio feito pelo emissor a
em que se estudam as relações dos signos entre si, isto é, signo
uma terceira pessoa, ausente do contexto comunicacional,
com signo; o semântico, em que o foco de indagação é o víncu-
introduzindo a mensagem mediante sorriso irônico. É certo
lo do signo (suporte físico) com a realidade que ele exprime; e
que o receptor compreenderá não se tratar de elogio verdadei-
o pragmático, no qual se examina a relação do signo com os
ro, por força da combinação dos signos idiomáticos com os
utentes da linguagem (emissor e destinatário). Exemplo da
sinais extra-idiomáticos produzidos pelo emissor (manifestação
dimensão semiótica da sintaxe é a gramática de um idioma,
que também aparece como signo ou signos, pertencentes, no
conquanto a pesquisa gramatical vá além, ocupando-se da
entanto, a outro código).
morfologia e da fonologia. A sintaxe, entretanto, pode ser de-
finida como o sistema finito de regras capaz de produzir infi-
nitas frases. Já o ângulo semântico cuida da associação que se 2.2.2. Funções da linguagem
instala entre o signo (como suporte físico) e o objeto do mundo
(exterior ou interior) para o qual aponta. Modelo de trabalho Polarizemos nossas atenções nos sistemas idiomáticos,
semântico são os dicionários que, inspirados pela lexicografia, corpos de linguagem dotados de amplos recursos para o de-
senvolvimento do processo de comunicação inter-humana, e
deixemos de lado, propositadamente, todos os demais códigos,
22. Durante anos, Semiótica, empregada por Charles Sanders Peirce, e por expressivos ou sugestivos que possam ser. Verificaremos,
Semiologia, utilizada por Ferdinand de Saussure, eram termos usados para desde logo, que a interação ocorre num contexto extremamen-
designar a teoria geral dos signos. Ambos autores viveram no final do século te complexo, pois há múltiplas possibilidades de utilização das
XIX e início do século XX, portanto, foram contemporâneos. Por outro lado,
palavras, individualmente consideradas, assim como numero-
contudo, não chegaram a manter contato e desenvolveram as respectivas teo-
rias paralelamente. Só com Roman Jakobson, em 1974, em Milão, na abertura sos são os usos das construções frásicas que a gramática de
do primeiro congresso da Associação Internacional de Estudos Semióticos cada língua permite compor, sem que as regras sintáticas ve-
que se definiu a semiótica como ciência geral dos signos. Foi quando com nham a ter caráter decisivo para o esclarecimento da específi-
seu On language, publicado em Cambridge, pela Universidade de Harvard,
ca função em que a linguagem está sendo empregada. A cor-
firmou: "Language as one of the sign systems and linguistica as the science of
verbal sign, is but a part of semiotics, the general science of sign which was respondência entre forma e função não acontece como relação
forseen, named and delineated in John Locke's essay...". necessária, de tal sorte que as estruturas gramaticais oferecem
23. Signos, lenguaje y conducta, Buenos Aires, Losada, 1962. apenas precários indícios a respeito da função, como acentua

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

Irving M. Copia'. Isso compele o intérprete a sair da significação Discorrer, porém, sobre as funções da linguagem, obriga-
de base (que toda palavra tem) em busca da amplitude do dis- nos a fixar premissa sem a qual as conclusões ficariam incom-
curso, onde encontrará a significação contextual, determinada pletas ou prejudicadas: toda e qualquer manifestação linguís-
por uma série de fatores, entre eles e, principalmente, pelos tica, desde as mais simples às mais complicadas, raramente
propósitos do emissor da mensagem. Ora, se os objetivos da- encerram uma única função, aparecendo como espécies quimi-
quele que expede o comunicado são tão importantes, é de
camente puras, no dizer de Copi. Ainda que haja uma função
convir que a decodificação da mensagem se dá, em grande
dominante, outras a ela se agregam no enredo comunicacional,
parte, no plano pragmático da linguagem. Procede, portanto,
tornando difícil a tarefa de classificá-las. Para contornar o em-
a observação de Luis Alberto Warat":
peço, sugere Alf Ross 27 que tomemos o efeito imediato como
"Analizar la problemática funcional del lenguaje es en cier- critério classificatório:
to modo efectuar un planteamiento de nivel pragmático,
para cuya elucidación debemos incursionar indefectible- "La función de cualquier herramienta debe determinarse
mente en torno a las condiciones subjetivas de su uso por por su efecto propio, esto es, el efecto inmediato a cuya
parte de un sujeto determinado." producción la herramienta está directamente adaptada. Son
irrelevantes cualesquiera otros efectos ulteriores en la ca-
Aliás, tudo se encaixa bem naquela noção que apresenta- dena causal subsiguiente."
mos sobre a pragmática, como ângulo semiótico em que se
analisa a relação dos signos com seus usuários. E os estudos Cientes de que toda comunicação efetiva exige certa com-
pragmáticos se projetam exatamente nesse sentido, isto é, binação de funções e, recolhendo o critério do efeito imediato
considerando o ser humano enquanto produtor da mensagem ou da função dominante, como entendemos melhor, passemos
e, por meio dela, visando a obter certos efeitos. a formular uma classificação das linguagens, de acordo com as
No processo constitutivo da interação comunicacional, Ro- funções que cumprem no processo comunicacional. O esboço
man Jakobson 26 descreve a coalescência de seis componentes: parte de um sincretismo que julgamos conveniente para o fim
de ressaltar a importância das variadas maneiras segundo as
"O REMETENTE envia uma MENSAGEM — ao DESTINA- quais o homem manipula os signos do seu idioma. Adota, por-
TÁRIO. Para ser eficaz, a mensagem requer um CONTEXTO
tanto, o animus que move o emissor da mensagem (critério
a que se refere (ou "referente", em outra nomenclatura algo
ambígua), apreensível pelo destinatário, e que seja verbal ou pragmático), sem desprezar as particularidades sintáticas que
suscetível de verbalização; um CÓDIGO total ou parcialmen- as linguagens ostentam (critério sintático ou lógico). Tal caminho
te comum ao remetente e ao destinatário (ou, em outras nos permitirá ir além das funções assinaladas por Jakobson, ao
palavras, ao codificador e ao decodificador da mensagem); associá-las a cada um dos fatores que constituem o processo de
e, finalmente, um CONTACTO, um canal físico e uma cone-
comunicação.
xão psicológica entre o remetente e o destinatário, que os
capacite a entrarem e permanecerem em comunicação". a) Linguagem descritiva, informativa, declarativa, indica-
tiva, denotativa ou referencial é o veículo adequado para a
transmissão de notícias, tendo por finalidade informar o receptor
24. Introdução à lógica, São Paulo, Mestre Jou, 1974, p. 55.
25. Semiótica y derecho, Buenos Aires, Eikón, 1972, p. 80.
26. Linguística e comunicação, São Paulo, Cultrix, 1991, p. 123. 27.Lógica de las normas, Madrid, Editorial Tecnos, 1971, p. 28.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

acerca de situações objetivas ou subjetivas que ocorrem no de alegria, de dor, de surpresa, de desejo, de afeto, etc., fazen-
mundo existencial. Apresenta-se como um feixe de proposições, do-o pelo emprego de interjeições.
afirmadas ou negadas, que remetem o leitor ou o ouvinte aos
Quando desempenha essa função, a linguagem de que
referentes situacionais ou textuais. É a linguagem própria para
tratamos não pode subordinar-se aos critérios de verdade e
a transmissão do conhecimento (vulgar ou científico) e de in-
falsidade, inerentes à lógica do discurso descritivo. A licença
formações das mais diferentes índoles, sendo muito utilizada
poética afasta de cogitação qualquer tentativa no sentido de
no intercurso da convivência social. Seus enunciados subme-
vincular suas elaborações aos critérios da Lógica Clássica. Até
tem-se aos valores de verdade e de falsidade, razão pela qual
o presente momento, pelo que sabemos, não se tem notícia da
essa sintaxe é estudada pela Lógica Clássica, também conhe-
descoberta de sistema lógico capaz de explicar o funcionamen-
cida por Lógica Apofântica ou Lógica Alética". Como discurso
to sintático da linguagem expressiva. Não que o discurso poé-
descritivo que é, mantém um vector semântico com as situações
tico prescinda do ângulo sintático, que o descaracterizaria como
indicadas, de modo que seus enunciados serão verdadeiros se
linguagem, mas, pura e simplesmente, porque ninguém ainda
os fatos relatados tiverem realmente acontecido ou vierem a
descobriu, pelo que sabemos, quais as regras que presidem
efetivar-se; e falsos, se não se verificarem na conformidade do
que foi descrito. Note-se que a relação entre o enunciado factu- essa sintaxe. Quando se diz que a linguagem poética não tem
al e o acontecimento por ele informado só é possível se dispu- lógica, na verdade o que se pretende transmitir é que a lingua-
sermos de metalinguagem que afirme ou negue a correspondên- gem que atua nessa função não pode ser governada pelos pa-
cia entre enunciado e fato" ("verdade por correspondência"). drões da Lógica Alética. Nunca que carecesse do plano sintá-
tico, o que seria absurdo.
b) Linguagem expressiva de situações subjetivas é aquela
na qual o emissor exprime seus sentimentos, quer pelo uso de c) Linguagem prescritiva de condutas presta-se à expedição
interjeições (ai!, oba!, oh!), de palavras interjeicionais (viva!, de ordens, de comandos, de prescrições dirigidas ao compor-
apoiado!, fora!) ou de expressões interjeicionais (minha Nossa tamento das pessoas. Seu campo é vasto, abrangendo condutas
Senhora!, quem dera!), quer por intermédio de orações ou de intersubjetivas e intra-subjetivas. Todas as organizações nor-
períodos. O traço característico da linguagem empregada nes- mativas operam com essa linguagem para incidir no proceder
sa função é a presença de emoções manifestadas pelo reme- humano, canalizando as condutas no sentido de implantar
tente da mensagem, que se expande para comunicar aquilo valores. Um excerto de Lourival Vilanova" diz bem da impor-
que lhe passa n'alma, provocando no receptor, quase sempre, tância desse uso: "Altera-se o mundo físico mediante o trabalho
sentimentos da mesma natureza. e a tecnologia, que o potencia em resultados. E altera-se o
mundo social mediante a linguagem das normas, uma classe
O exemplo típico da linguagem expressiva de situações
da qual é a linguagem das normas do Direito".
subjetivas é a linguagem poética, mas convém referir que pode
revestir-se de outras formas, que não a da poesia, como nas As ordens não são verdadeiras ou falsas, mas sim válidas
reações espontâneas, em que o homem exibe seus sentimentos ou não-válidas. Estes últimos são os valores lógicos da lingua-
gem prescritiva e sua sintaxe é estudada pela chamada Lógica

28.Alethéa, palavra grega que significa verdade.


29. Alfred Tarski, A concepção semântica da verdade: Textos Clássicos de 30. As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo, São Paulo, Noeses,
Tarski, São Paulo, Imprensa Oficial/UNESP, 2007. 2005, p. 42.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

Deôntica, de que faz parte a Lógica Deôntico-jurídica, cujo em que provoca uma tomada de posição do receptor. Ninguém
objeto é a organização sintática da linguagem do direito posi- pode ficar impassível perante uma indagação, seja ela qual for.
tivo. Esta especialização da Lógica Deôntica encontra-se hoje Responderá ou não, afastando-se a possibilidade de conduta
sistematizada, principalmente a partir da obra Deontic Logic, indiferente. Por mais absurda e impertinente que seja a per-
de autoria de Georg Henrik von Wright, publicada em 1951. gunta, o destinatário assumirá uma de duas posturas: ou se
mantém silente, ignorando-a, com o que implementa a condu-
Em Lógica, o vocábulo proposição significa a expressão
ta de não responder; ou apresenta, satisfatoriamente ou não, a
verbal de um juízo. Os estudiosos, entretanto, negaram-se a
juízo do emissor, comportamento que realiza a resposta.
empregá-lo para designar outros juízos que não os descritivos
de situações, subordinados aos critérios de verdade/falsidade. Do mesmo modo que a linguagem prescritiva, as propo-
É curioso sublinhar que Kelsen, evitando a palavra para refe- sições que compõem este discurso não estão sujeitas aos valo-
rir-se às unidades do direito positivo, utilizou-a na expressão res da Lógica Clássica: verdadeiro e falso. Seus critérios são
"proposição jurídica", querendo aludir ao discurso do cientis- outros. Uma pergunta é pertinente ou impertinente; adequada
ta, em nível de metalinguagem. Daí a distinção que fez entre ou inadequada; própria ou imprópria; além do que, como todos
norma jurídica e proposição jurídica. O étimo proposição, con- os demais enunciados, haverá de ser bem formada sintatica-
tudo, serve para denominar qualquer espécie de juízo, seja ele mente, condição indispensável para que tenha sentido.
declarativo, interrogativo, imperativo ou exclamativo. E é assim Sobre a lógica da linguagem das perguntas, Georges Ka-
que o encontramos em Lourival Vilanova, que distingue as linowski 31 nos dá notícias das obras de A. N. Prior, Erotetic logic;
proposições normativas das proposições descritivas, ambas de Stalh, Developpement de la logique des questions; e de
contidas no conceito mais abrangente de proposições jurídicas. Ajdukiewicz, Logiczne podstawy nauczania.
Resta lembrar que a linguagem prescritiva se projeta Deparamos, em alguns teóricos da linguagem, com o tra-
sobre a região material da conduta humana. Mais ainda, que tamento conjunto das funções prescritiva e interrogativa, de-
seu vector semântico atinge única e exclusivamente os fatos e baixo da designação genérica de função conativa, cuja finali-
as condutas possíveis, caindo fora de seu alcance as ocorrências dade seria de influenciar o comportamento do destinatário da
factuais e os comportamentos necessários ou impossíveis. A mensagem. Sob o ângulo pragmático, nada há que objetar, a
consideração vale para todos os campos do deôntico, em par- não ser acrescentando também a função persuasiva. Entretan-
ticular para o do deôntico-jurídico, em que não teria sentido a to, a diretriz que elegemos para presidir nossa classificação
regra que colhesse a conduta necessária - ou impossível, mo- não repousa, exclusivamente, na instância pragmática, levan-
dalizando-a com o "P" (permitido), com o "V" (proibido) ou do em conta aspectos do plano sintático. Repetimos que a linha
com o "O" (obrigatório). diretora que escolhemos considera o animus que move o emis-
d) Linguagem interrogativa ou linguagem das perguntas sor da mensagem, sem desprezar as particularidades sintáticas
ou dos pedidos é a de que se utiliza o ser humano diante de que as linguagens ostentam. Ora, há profundas diferenças de
objetos ou situações que desconhece, ou ainda quando preten- sintaxe entre as três linguagens referidas com o nome de co-
da obter alguma ação de seus semelhantes. As perguntas podem nativas, o que justifica estudá-las separadamente.
ser interplretadas como pedidos de respostas, circunstância
que nos permite reduzir uma linguagem a outra. Em muitas
situações, reflete a insegurança do emissor, ao mesmo tempo 31. Introducción a la lógica jurídica, Buenos Aires, Eudeba, 1973, p. 8.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

e) Linguagem operativa ou performativa é o discurso em Nas atividades diárias do ser humano é de grande intensi-
que os modos de significar são usados para concretizar alguma dade o emprego da linguagem na sua específica função factual.
ação. Como efeito imediato, nada informam, pois sua função Exercendo papel eminentemente introdutório, mantenedor ou
primordial é operativa, dando a concretude que certos eventos terminativo da comunicação, essa linguagem quase nada in-
exigem para sua efetiva realização. Exemplo típico de função forma, sendo que as orações interrogativas que a integram não
performativa é aquela mencionada por Irving M. Copi 32 , em visam à obtenção de respostas, a não ser em gradações ínfimas.
que o sacerdote ou o juiz de paz, para o encerramento da ceri- Quando nos encontramos com pessoa de nossas relações e
mônia, proclama: "eu vos declaro marido e mulher". Tais pala- emitimos a pergunta "como vai?", o objetivo não é travarmos
vras constituem o ato em si, não sendo emitidas com o escopo conhecimento com o estado de saúde física ou psíquica do
imediato de informar. Para o autor citado, a linguagem opera- destinatário, mas de simplesmente saudá-lo - que denotaria
tiva emprega as chamadas "elocuções de desempenho", cujo breve comunicação - ou de prepararmos diálogo mais profun-
papel é realizar, em circunstâncias apropriadas, a ação que do. Da mesma forma, a resposta não costuma trazer dados
relatam ou que transmitem. Tais locuções empregam os verbos explicativos a respeito do que foi perguntado, já que o interlo-
que ele chama de atuantes, entre eles aceitar, aconselhar, des-
cutor percebe, desde logo, tratar-se de linguagem utilizada em
culpar-se, batizar, parabenizar, prometer e sugerir.
sua função fáctica. É bem verdade que a mesma indagação
É oportuna a lembrança de Warat 33 de que "Este uso pre- poderia colocar-se dentro de outro contexto, em que o emissor
supone la existencia de un sistema normativo vigente que le da pergunta estivesse efetivamente interessado em conhecer
otorga sentido objetivo a ciertos atos de voluntad". E agregamos o estado de saúde do receptor. É a sensibilidade psicológica de
que nem sempre o sistema normativo é o jurídico, podendo cada um, ou de terceiros que assistem ao fato comunicacional,
ocorrer sob preceitos de qualquer dos muitos plexos de regras que vai reconhecer a linguagem como empregada na função
que estão presentes no fato social. interrogativa ou fáctica. Nesses domínios, já o dissemos, o ân-
f) Linguagem fáctica. Alude-se, com tal expressão, à lin- gulo pragmático é decisivo.
guagem introdutória da comunicação, bem como todos os re- Interessante exemplo de linguagem cumprindo função
cursos linguísticos empregados para manter o contato comu-
factual nos é oferecido por Francis Vanoye 35 , ao mencionar a
nicacional já estabelecido. Dela faz parte tudo aquilo que, numa
letra da música "Sinal Fechado", de Paulinho da Viola, cujo
mensagem, serve para estabelecer, manter ou cortar o vínculo
trecho inicial transcrevemos:
da comunicação. Para Francis Vanoye 34 , "numa comunicação
telefônica, o tradicional 'alô' estabelece o contato, as expressões
Olá, como vai?
`você está me ouvindo?, um momento por favor' mantêm o
Eu vou indo, e você, tudo bem!
contato, 'vou desligar' interrompe a comunicação".
Tudo bem, eu vou indo, correndo,
pegar meu lugar no futuro. E você?

32. Introducción a la lógica, Tradução de Álvaro Cabral, São Paulo, Mestre Tudo bem, eu vou indo em busca de um sono
Jou, 1981, p. 52. tranquilo, quem sabe?
33. Semiótica y derecho, Buenos Aires, Eikón, 1972, p. 76.
34. Usos da linguagem: problemas e técnicas na produção oral e escrita, 4 2. ed.,
São Paulo, Martins Fontes, 1983, p. 54. 35. Usos da linguagem: problemas e técnicas na produção oral e escrita, cit.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

Quanto tempo.. . registrada em todas as funções que a linguagem desempenha,


Me perdoe a pressa em diferentes níveis de intensidade, circunstância que nos
é a alma dos nossos negócios ... permite identificar uma espécie em que a persuasão exerce
Oh! não tem de quê papel dominante: eis a linguagem a que nominamos de "pro-
eu também só ando a cem.
priamente persuasiva". Aqui, o intuito de quem expede a co-
municação é prioritariamente de convencer o interlocutor,
induzindo-o a aceitar sua argumentação a ponto de estabele-
cer-se o acordo de opiniões. O caráter persuasivo manifesta-se
ostensivamente, com função imediata, pronta e determinante
Vale notar que o encontro se dá ao fechar-se o sinal e da própria razão de ser do discurso. É a linguagem que ocorre
ambos instalam a comunicação, procurando mantê-la median- quando existirem interesses conflitivos ou em situações em
te frases destituídas de sentido preciso, com reiteradas per- que alguém postula algo, reivindicando a justiça, a razoabili-
guntas e correspondentes respostas, mas sem outro objetivo dade ou a conveniência daquilo que é solicitado.
que não o de aproveitar os pouquíssimos instantes de contato,
sustentando a comunicação instaurada. Nos territórios do direito esta linguagem assume extraor-
dinária importância e enorme frequência: é o chamado discur-
Temos para nós que a "função cerimonial", indicada por so judicial. Também o encontramos na discussão de questões
Irving M. Copi 36 , em muitas oportunidades ajusta-se melhor administrativas, sempre que o convencimento da autoridade
no âmbito desta linguagem que ora referimos. As palavras competente seja pressuposto da decisão. Gregorio Robles
introdutórias que enchem os documentos oficiais, os ditos Morchón 37 examina a linguagem empregada pelos juristas nos
pomposos que antecedem certas solenidades e os ritos verbais processos de decisão, propondo uma teoria da decisão jurídica.
que abrem espaço a sermões ou discursos políticos são, todos Afirma que a linguagem do advogado não cria a decisão, ainda
eles, modos de significar que preparam ou sustentam o curso que a propicie por representar uma das partes, oferecendo um
de tipos específicos de interação comunicacional. ponto de vista dentro do diálogo que constitui o processo. Seu
g) Linguagem propriamente persuasiva, como entendemos objetivo não é decidir senão convencer e a retórica jurídica é
melhor chamar, é aquela animada pelo intento imediato de o esquema metódico de que se serve.
convencer, persuadir, induzir, instigar. Falamos em "propria- Vale salientar a propósito o caráter retórico indissociável à
mente persuasiva" porque as mensagens transmitidas com linguagem persuasiva, não incorrendo, com esta afirmativa, no
outras funções sempre têm um quê de persuasivas. Quem se mau vezo de atribuir somente a ela este registro. Sim, porque
comunica para informar alguém acerca de um fato procura toda a função linguística exige o tom retórico, sem o qual a men-
fazer chegar a notícia ao destinatário, de acordo com seu modo sagem não se transmite do enunciador ao enunciatário. Enganam-
de ver o acontecimento. Formulando conceitos, que são inva- -se aqueles que admitem a retórica apenas como expediente da
riavelmente seletores de propriedades, o emissor acentua os função persuasiva, estruturada para facilitar o convencimento
aspectos que correspondam aos seus valores, passando-os ao de quem recebe o impacto da enunciação. Inexiste a "não-retó-
receptor. A presença do animus persuasivo, aliás, pode ser

37. Las regias dei derecho y las regias de los juegos, Universidade de Palma
36. Introdução à lógica, cit., p. 52. de Mallorca, 1984, p. 271.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

rica". E a contra-retórica é retórica também. Resta saber qual a os mais conhecidos modelos de procedimento, no âmbito da
intensidade de sua utilização nos diversos tipos de linguagem. argumentação jurídica, sem intuito classificatório.
Em comentários ligeiros, os recursos a serem utilizados Salta aos olhos que a estrutura sintática da linguagem
pelo cientista variam segundo a região ôntica do objeto a ser jurídica, num processo de decisão judicial ou administrativa,
descrito. Há um tipo de veemência recomendado para o domí- subordina-se a valores lógicos outros que não os do discurso
nio dos entes físico-naturais; outro para o dos ideais e ainda descritivo (verdadeiro/falso) ou prescritivo (válido/não-válido)
outro para o dos culturais, levando-se em conta, neste setor, a ou ainda o da linguagem das perguntas (pertinentes/imperti-
multiplicidade imensa das manifestações objetais 38 . Tudo para nentes). Os sujeitos participantes desenvolvem seus esforços
advertir, de maneira incisiva, que não é qualquer torneio retó- no sentido de obter um fim determinado: o convencimento do
rico que convém ao discurso da Ciência do Direito ou mesmo juiz ou da autoridade competente para decidir. E o próprio
daquel'outros produzidos com o objetivo de convencer a auto- magistrado ou o agente administrativo, ao proferir o ato deci-
ridade competente ou o juiz de direito nos respectivos autos. sório, procurará justificá-lo, argumentando em termos de
Por outro lado, é impossível estipular o espaço de variação da mostrar que o fez para atender a princípios de justiça, de coe-
possibilidade retórica no recinto do jurídico, mesmo porque rência, de segurança, de respeito à ordem jurídica vigente.
um é o do direito posto, outro o da dogmática. Simplesmente isso. Com efeito, se atinarmos bem, veremos que o rigoroso
Caberá à intuição, tomada aqui como órgão, aliás o mais pode- apego à verdade dos enunciados, a precisão ao relatar os acon-
roso instrumento cognoscitivo, a chamada "ciência direta", su- tecimentos factuais, a adequada subsunção dos conceitos dos
gerir os critérios de avaliação do quantum de argumentação re- fatos ao conceito das normas, tudo isso, ainda que sirva de
tórica que deve ser empregada na construção do discurso cien- instrumento valioso para a configuração das peças jurídicas,
tífico, evitando, por todo o modo, a logomaquia e tantas extrava- no contexto processual, cede lugar ao objetivo primeiro, ao
gâncias que rondam e ameaçam a pena de quem escreve. fim último que os interessados almejam alcançar, qual seja o
Com estas modulações, pretendo deixar claro que a lógi- convencimento do órgão decisório. É certo que há expedien-
ca da linguagem persuasiva ou da linguagem que prepara a tes dentro do processo, como os laudos periciais, por exemplo,
decisão é a lógica da argumentação, isto é, uma lógica da in- cuja função preponderante da linguagem não é persuasiva.
terpretação para decidir ou lógica dialógica orientada para a Contudo, tais manifestações, longe estão de predominar, a
decisão". Sobre a Teoria da Argumentação, Tercio Sampaio ponto de exercer função caracterizadora do discurso judicial
Ferraz Jr." tece importantes considerações que merecem de- ou do campo mais amplo da linguagem que trata dos proce-
tida reflexão. Assinalando que a lógica retórica se ocupa da dimentos decisórios.
argumentação como tipo específico de raciocínio, correspon- h) A linguagem afásica consiste num conjunto de enun-
dendo a procedimentos quase lógicos, que não obedecem ao ciados que alguém dirige contra a mensagem de outrem, vi-
rigor exigido pelos sistemas formais, passa a estudar, um a um, sando a obscurecê-la, confundi-la perante o entendimento de
terceiros ou a dificultar sua aceitação, por meio de recursos
linguísticos variados, tudo no pressuposto de que o discurso
38.A propósito, ver pg. 116 do livro. que sofre o impacto da linguagem afásica seja claro, estando
39.Gregórito Robles Morchon, Las regias dei derecho y las regias de los juegos, em condições de ser devidamente apreendido. Cai bem o nome
cit., p. 273. dessa função, pois afasia é termo técnico que designa pertur-
40.Introdução ao estudo do direito, cit., p. 294. bações na comunicação verbal. Neste caso, porém, a afasia não
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

é provocada por lesões que a neuropsicologia e a neurolinguís- aquilo que denomina de ficção ou hipótese, ao passo que o
tica localizaram no hemisfério esquerdo do cérebro humano, discurso correspondente terá função fabuladora.
numa zona específica da linguagem, mas por efeito da contra-
Frise-se que a linguagem desse modo utilizada cobre vasto
mensagem do destinatário.
segmento no quadro geral da comunicação humana, integrando
Na amplitude da discussão judicial, bem o sabemos, é os textos considerados fantasiosos ou fictícios, como as fábulas,
comum que os representantes das partes litigantes utilizem os contos infantis, as novelas, os filmes cinematográficos, os
esse tipo de linguagem para tumultuar o andamento regular mitos, as anedotas e, especialmente para o nosso interesse, as
do feito. Diante de uma peça racionalmente composta, porta- ficções jurídicas, bem como as hipóteses com que trabalham os
dora de forte capacidade de persuasão, o advogado da parte cientistas. Descabe cogitar-se do teor de verdade desses enun-
contrária, não tendo como contrapor-se aos fundamentos de ciados, de tal arte que mesmo na contingência de serem coinci-
ordem fáctica e jurídica, passa a questionar afirmações pacífi- dentes com a realidade, isso não lhes dá preeminência no siste-
cas, levanta problemas sobre palavras, sobre situações estra- ma contextuai. Predominam os casos de falsidade, mas também
nhas ao tema controvertido, com o deliberado escopo de des- é irrelevante para tipificar a atribuição que desempenham.
pertar embaraços e dificuldades na compreensão daquilo que, Tratando-se de uma película cinematográfica ou de represen-
sem esses expedientes, seria perfeitamente admissível. tação teatral de conteúdo histórico, requer-se, é evidente, um
Mas o exercício da linguagem com tão antipáticos fins não mínimo de proposições dotadas do valor-verdade, exatamente
é o único a que se presta o discurso afásico. Pode também en- para reproduzir as situações escolhidas pelo autor.
cobrir o vazio de significação de certas mensagens, neste caso Por outro lado, as histórias imaginárias abrigam somente
cumprindo uma função axiologicamente positiva. Em alguns enunciados falsos, sem que essa contingência enfraqueça o dis-
momentos é o meio de escapar dos domínios estritos da litera- curso. Fique bem claro que os enunciados da linguagem fabu-
lidade da lei, fazendo prevalecer uma solução valorativa da ladora são susceptíveis de apreciação segundo os critérios de
equidade. Nas palavras de Warat 41 : "cuando se puede hacer verdade/falsidade, entretanto, a verificação não importa para os
pasar gato semántico por liebre equitativa". A função afásica fins da mensagem. Sotopondo-se a esses valores, mesmo assim
permite, então, preencher lacunas, completando o discurso ao a dinâmica discursiva continua lentamente sua marcha para
qual se dirige. atingir a finalidade proposta, sem que o respeito àqueles padrões
i) Linguagem fabuladora. Se a função descritiva se desen- ou à sua manifesta inobservância tenham o condão de afetar-lhe
volve mercê de enunciados com pretensão de verdade, há certo a natureza de linguagem fictícia ou fabuladora.
uso pragmático, como aponta Alf Ross 42 , que não faz a propo- O direito, na prescritividade mesma de sua linguagem,
sição depender dos conceitos de verdade e falsidade, exigindo- aproveita-se frequentemente das ficções. Como seu vector
se apenas que tenha significado. Este autor refere-se a tal uso semântico está preparado para incidir na realidade social e
como "apresentação da proposição", que passa a constituir não para com ela coincidir 43, sempre que o legislador das nor-
mas gerais e abstratas estiver premido a esquematizar fatos e

41.Warat, oP. cit., p. 79.


42. Sobre el derecho y la justicia. Tradução de Genaro Carrió, Buenos Aires, 43.Lourival Vilanova, "Analítica do dever-ser", in Escritos jurídicos e filosó-
EUDEBA, 1974, p. 37. ficos, vol. 2, cit., p. 69.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

qualificar objetos, em desacordo com a índole em que normal- especializado, para poder examinar a natureza e pensar nas
mente são tomados, emprega o recurso fabulador. possibilidades do seu trabalho. Nesse átimo, estará discorren-
do sobre a técnica da sua construção científica, examinando o
j) A linguagem que opera na função metalinguística, se-
método de investigação para declará-lo ou explicitá-lo, instan-
gundo Roman Jakobson 44 , focaliza o código, ou seja, o próprio
te em que põe em curso a função metalinguística.
discurso em que se situa. Nela, antecipa-se o emissor às inter-
rogações do destinatário, explicitando fragmentos do discurso
que lhe pareceriam desconhecidos ou absurdos aos ouvidos ou 2.2.3. Formas de linguagem
aos olhos do interlocutor. Antes que o receptor interrompa a
locução para formular perguntas, aquele que fala ou escreve Orientar a atenção para as formas da linguagem significa
esclarece o trecho, oferecendo informações adicionais a res- ingressarmos no terreno da gramática do idioma. Mas a gra-
peito. Há metalinguagem, mas no interior do discurso. A função mática, designada por normativa, cobre cinco setores diferen-
metalinguística, assim versada por Jakobson, pressupõe um tes: a) morfologia; b) fonética; c) sintaxe; d) semântica; e e)
estilística. A divisão nos leva a supor que o estudo das formas
único código e, dentro dele, dois níveis de linguagem conviven-
seria desenvolvido nos quadros da morfologia. Não é assim. A
do na mesma sequência contextual. Difere, portanto, daquelas
morfologia cuida das palavras, isoladamente consideradas,
circunstâncias em que linguagem-objeto e metalinguagem
pesquisando seu modo de formação, sua estrutura, suas pro-
aparecem em momentos distintos e, muitas vezes, elaboradas
priedades e as flexões que podem experimentar. Enquanto isso,
por sujeitos diferentes. Basta essa lembrança para divisarmos
pensamos agora nas formas de discurso como modalidades de
que a expressão não é unívoca: contempla a situação em que
mensagens transmitidas no plexo interacional da comunicação,
o emissor fala da sua própria fala, num único contexto; assim cujo conhecimento se dá no capítulo reservado à sintaxe, par-
como todas as manifestações de linguagem que se ocupam de te da gramática que examina as possíveis opções no que tange
falar sobre outras linguagens, seja do mesmo autor ou de au- à combinação das palavras na frase, para que a exteriorização
tores diferentes. Estipulemos aqui, para efeito do desenvolvi- do pensamento ocorra com clareza. Distribui-se a sintaxe por
mento dos nossos estudos, que a função metalinguística acon- três subcapítulos: a) sintaxe de concordância; b) sintaxe de
tece sempre no interior de um único código, promovida por subordinação (ou de regência); e c) sintaxe de ordem (ou de
um só emissor e, mais adiante, versaremos o assunto das hie- colocação).
rarquias de linguagem.
Dentro dos limites que o interesse temático nos permite,
Para ilustrar com exemplos, lembremos que denunciam estabeleçamos como ponto de partida o conceito de frase para
a presença da função metalinguística frases introduzidas por chegarmos logo aos objetivos que este trabalho projetou atingir.
expressões como isto é, ou seja, ou melhor, por outro modo, em Frase é a palavra ou combinação de palavras com que expres-
outros termos, dito de forma diferente, etc. samos nosso pensamento. É categoria genérica, abrangendo
No campo da Ciência, observamos que o teórico sente muitas as frases nominais, as orações, também conhecidas por sen-
vezes a necessidade de extrapassar os limites do conhecimento tenças, e o período. As frases nominais não têm verbo; as ora-
ções, portadoras de estrutura sintática, apresentam obrigato-
riamente o verbo como elemento essencial e, muitas vezes,
44. Linguística e comunicação. Tradução de José Paulo Paes e Isidoro Bliks- sujeito e complemento como elementos acidentais. Por fim, o
tein, São Paulo, Cultrix, 1991. período, formado por uma oração, uma combinação de oração

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

e frase ou mais de uma oração, será simples, existindo uma só e) Já sossega, depois de tanta luta, já me descansa em paz o
coração - Transcendentalismo, Antero de Quental - forma
sentença; composto, quando houver duas ou mais estruturas
declarativa e função expressiva.
oracionais.
f) Os mais celebrados autores, assim nacionais, que estran-
As frases meramente nominais diferem das sentenças geiros, advogam a mesma tese - forma declarativa e função
porque as primeiras carecem de estrutura sintática, não sendo persuasiva.
passíveis de análise. g) O autor desenvolve seus argumentos sem discutir o cabi-
mento das duas premissas que lhe servem de suporte - forma
Recuperando o sentido genérico de frase, indicam os declarativa e função afásica.
autores seis classes: 1) as declarativas; 2) as interrogativas; 3) h) Eu te batizo em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo
as exclamativas; 4) as imperativas; 5) as optativas; e 6) as im- - forma declarativa e função operativa.
precativas. Consulta ao nosso interesse expositivo reduzir esses i) A tartaruga, perante Aquiles, admite o condicional e seu
tipos a apenas quatro, o que entendemos possível, visto que as antecedente, mas nega o consequente - Diálogo de Aquiles
frases optativas (que manifestam um desejo) e as imprecativas com a tartaruga, em conto de Lewis Carrol - forma decla-
(que contêm uma imprecação), cabem ambas no espaço das rativa e função fabuladora.
exclamativas. j) Tudo bem, eu vou indo, correndo, pegar meu lugar no futu-
ro - trecho de Sinal Fechado - forma declarativa e função
A matéria dessa maneira exposta predispõe nossa mente fáctica.
a imaginar correspondência entre as formas de frases e as di-
versas funções que cumprem na comunicação humana. Tal A dissociação entre forma e função não se verifica apenas
correspondência, contudo, não acontece necessariamente. As com a frase declarativa. Breve esforço da parte do leitor de-
funções de que se utiliza a linguagem não se prendem a formas monstrará que a função da linguagem empregada pelo reme-
determinadas, de modo que o emissor poderá escolher esta ou tente, ao expedir a mensagem, independe da modalidade frá-
aquela, a que melhor lhe aprouver, para transmitir seu comu- sica adotada.
nicado, dependendo dos fatores extralinguísticos que fizer
acompanhar a manifestação verbal. O registro impede que iden-
tifiquemos a função pelo reconhecimento do enunciado textual.
2.2.4. Tipos de linguagem
Façamos então uma experiência, firmando a estrutura da frase Uma classificação estará construída corretamente se tiver
declarativa e procurando ver a que funções pode prestar-se: observado as regras sintáticas do procedimento classificatório,
prescritas pela Lógica dos termos ou Lógica dos predicados.
a) Palmares é cidade do Estado de Pernambuco - forma de-
Trata-se de condição a priori de sua validade semântica. Nada
clarativa e função declarativa.
obsta, entretanto, que, superado o plano sintático, venhamos
b) Estou com muita sede - forma declarativa e função inter- a compor muitas classificações sobre o mesmo objeto, utilizan-
rogativa, imaginando-se um meio de pedir água.
do, para tanto, critérios diferentes sob cuja inspiração possamos
c) O som elevado da televisão está atrapalhando meu trabalho analisá-lo por variados ângulos.
- forma declarativa e função prescritiva.
d) Toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil Já contemplamos a linguagem à luz das inúmeras funções
(art. r do Código Civil) - forma declarativa e função que desempenha no fato concreto da comunicação. De seguida,
prescritiva. vimo-la pelo ponto de referência das possíveis formas gramaticais

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

que presidem o surgimento de frases em língua portuguesa. A linguagem natural, rebelde em termos sintáticos, problemáti-
diretriz, agora, será outra: descansa no grau e no modo de ela- ca no plano semântico, mas extremamente fecunda pelo prisma
boração de mensagens, que serão mencionadas segundo tipos. pragmático.
O Neopositivismo Lógico alude a três tipos de linguagem: Na área dessa linguagem, na qual se aloja o coloquial, não
a) a natural ou ordinária; b) a linguagem técnica; e c) a lingua- haveria espaço para descrições cujo rigor dos enunciados é
gem formalizada. Entendemos que o aspecto que nutre a es- pressuposto de seu valor veritativo. O discurso natural, em face
pecificação admite outros desdobramentos. Falaremos, assim, da latitude de indeterminações semânticas que provoca, ao
em seis tipos de linguagem, a saber: a) a natural, ordinária ou lado da flexibilidade excessiva na construção sintática de suas
vulgar; b) a linguagem técnica; c) a linguagem científica; d) a proposições, jamais atenderia ao caráter analítico-descritivo
linguagem filosófica; e) a linguagem formalizada; e f) a lingua- do saber científico, que requer fórmulas minudentes, precisas,
gem artística. capazes de relatar a sutileza e a finura dos fenômenos que
constituem seu objeto.
a) A linguagem natural aparece como o instrumento por
excelência da comunicação entre as pessoas. Espontaneamen- b) Linguagem técnica é toda aquela que se assenta no
te desenvolvida, não encontra limitações rígidas, vindo forte- discurso natural, mas aproveita em quantidade considerável
mente acompanhada de outros sistemas de significação coad- palavras e expressões de cunho determinado, pertinentes ao
juvantes, entre os quais, quando falada, a mímica. domínio das comunicações científicas. Não chegando a atingir
uma estrutura que se possa dizer sistematizada, busca trans-
Entre suas múltiplas características figura o descompro-
mitir informações imediatas acerca da funcionalidade do ob-
metimento com aspectos demarcatórios do assunto sobre que
jeto, utilizando, para tanto, número maior ou menor de termos
se fala ou escreve: flui com ampla liberdade e corresponde, por
científicos.
isso, à reivindicação própria da comunicação cotidiana. Sobre-
mais, lida com significações muitas vezes imprecisas, não se O intercâmbio socioeconômico dos dias atuais é pródigo
prendendo a esquemas rígidos de formação sintática de enun- em exemplos desse tipo de linguagem. A cada instante, depa-
ciados. A combinação desses fatores prejudica a economia do ramo-nos com manuais de instruções para o manejo de ferra-
discurso, acentuando a dependência das mensagens à boa mentas, máquinas, utensílios eletrodomésticos, veículos, etc.,
compreensão da conjuntura contextual. De contraparte, sua e as recomendações contidas nesses corpos de linguagem em-
dimensão pragmática é riquíssima, evoluindo soltamente entre pregam palavras específicas, de conteúdo fixo, viradas para o
emissor e destinatário. Nela, percebem-se com clareza as pau- objetivo primordial de tornar possível o máximo proveito na
tas valorativas e as inclinações ideológicas dos interlocutores manipulação do bem. Há porção significativa de linguagem
que, em manifestações despreocupadas, exibem suas intenções, descritiva, mas apenas para atender às necessidades explica-
dando a conhecer os vínculos psicológicos e sociais que entre tivas que a exploração das potencialidades do objeto requer.
eles se estabelecem. Sabemos que, para além daqueles manuais acima referi-
Atento a esses traços que lhe são peculiares, o movimen- dos, muitos outros exemplos podem ser sacados, entre eles as
to conhecido por "Filosofia da Linguagem Ordinária" estrutu- bulas que acompanham os remédios, abrigando escritos que
rou-se como reação ao "Empirismo Contemporâneo", princi- se dirigem aos leigos. Nelas, é considerável a presença de ter-
palmente porque este último, ao recolher o discurso científico minologia das ciências médicas, ainda que a finalidade esteja
como exclusivo objeto de suas especulações, deixava de lado a ligada estreitamente à sua administração adequada por quem
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

venha a consumir o medicamento. Difere da linguagem cien- c) Linguagem científica é um discurso que se pode dizer
tífica, toda ela vertida sobre os limites internos da matéria- artificial, porquanto tem origem na linguagem comum, pas-
objeto e sistematicamente organizada, de tal sorte que o feixe sando por um processo de depuração, em que se substituem
de proposições indicativas, governado pelo método, estará apto as locuções carregadas de imprecisão significativa por termos
para produzir conhecimentos e controlar o teor de verdade dos na medida do possível unívocos e suficientemente aptos para
enunciados emitidos. indicar, com exatidão, os fenômenos descritos. Nem sempre,
porém, torna-se exequível a estipulação de vocábulos precisos,
Quanto ao direito positivo, aqui considerado na sua mais procedendo-se então ao que Carnap designou de "processo de
elevada extensão, seja a linguagem do legislador das normas elucidação", no qual se emprega a palavra, explicitando-se, em
gerais e abstratas, seja aquela das normas individuais e con- seguida, o sentido em que foi utilizada. A linguagem científica
cretas, ambas se enquadram no tipo de linguagem técnica. As arma-se, desse modo, para caminhar em direção à idéia limite
regras emanadas do Poder Legislativo, em razão de sua com- de um sistema, consistente e rigoroso, pronto para descrever
postura heterogênea, decorrência inevitável da representati- a realidade objetal de que se ocupa. Esta circunscrição material
vidade política, revela presença menor de termos com acepção há de ser demarcada de maneira firme e o cientista o faz ado-
precisa e predominância incontestável do linguajar comum. Já tando cortes arbitrários e incisivos. A delimitação do objeto é
as normas individuais e concretas, principalmente as exaradas pressuposto do controle da incidência das proposições descri-
pelo Poder Judiciário, costumam revestir-se de mais rigor, tivas, que não poderão extrapolar as lindes traçadas, com o que
penetradas em maior intensidade por vocábulos próprios da se comprometeria a homogeneidade do espaço empiricamen-
Ciência do Direito. Isso, contudo, não lhes tira o caráter de te observado. São questões epistemológicas, mas que integram
linguagem técnica, ainda porque, significativa que seja a pre- o modo de ser da linguagem científica, imprimindo-lhe fisio-
ponderância de termos e expressões artificialmente construí- nomia própria.
dos, para responder à determinação ínsita que a disciplina da Valem para qualquer Ciência as ponderações de Roberto
conduta reclama, mesmo assim jamais poderia adquirir foro J. Vernengo 45 :
de discurso científico por não ser descritiva de objetos, e sim
prescritiva de comportamentos intersubjetivos. "pretenderá formular, en un lenguaje lógicamente coheren-
te, un conjunto de proposiciones verdaderas sobre su tema
Se caso faltassem notas que pudessem justificar tratamen- de investigación, en forma tal que los enunciados que las
to diferenciado entre linguagem técnica e linguagem científica, expresen sean racionalmente controlables, sea en cuanto
a experiência do jurídico serviria, à perfeição, para demonstrar empiricamente verificables, sea en cuanto lógicamente
que, certamente, essas linguagens são de tipos diferentes. derivables de otras proposiciones cuya verdad se asume o
Ninguém ousaria afirmar que o discurso prescritivo das pro- ha sido acreditada."
posições normativas labora tão-somente no campo da comu-
nicação natural. Tais mensagens, entretanto, nunca atingirão Assentadas essas características, a linguagem científica
o status de linguagem científica, remanescendo o adjetivo téc- há de aparecer bem esquematizada sintaticamente, com seu
nica para qualificá-las. Ao contrário do que sucede com outras plano semântico cuidadosamente elaborado, mas enfraquecida
linguágens desse tipo, na jurídica nada há de função descritiva,
apesar de sua forma muitas vezes dissimular esse aspecto re-
levante, que referimos linhas acima. 45. Curso de teoria general del derecho, Buenos Aires, Depalma, 1986, p. 34.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

na dimensão pragmática. O esforço de estruturação sintática questionamento de conceitos fundamentais, em que até as
e o empenho no sentido de evitar as confusões significativas premissas poderão ser submetidas a discussão e substituídas.
trazem como resultado a diminuição do quadro de manobras Este tipo de enfoque é chamado de zetético. A ele se contrapõe
de que dispõem os usuários dessa linguagem, ficando difícil o procedimento dogmático, em que se firmam as premissas,
captar as inclinações ideológicas, pois o texto referencial não como algo intangível, absoluto.
deve conter palavras emotivas, evitando-se o recurso a argu- Tercio Sampaio Ferraz Jr. 47 adverte que em toda investi-
mentos de cunho retórico. No caso do direito, a linguagem gação vamos encontrar os dois enfoques, se bem que algumas
científica fala a respeito de outra linguagem: a linguagem téc- acentuem mais um aspecto que outro. Feliz é o exemplo do
nica do direito positivo. Pretende dizer como ela é, investigan- problema de Deus, examinado pela Filosofia e pela Teologia.
do-a nas suas dimensões semióticas. Sendo assim, convém ao Sirvamo-nos das palavras desse ilustre Professor:
cientista do direito, na composição de seu discurso indicativo,
o uso de palavras emotivamente neutras, que não divirtam a "A primeira, num enfoque zetético, pode pôr em dúvida a
atenção do leitor para fins outros que atendam suas intenções sua existência, pode questionar até mesmo as premissas da
valorativas. E a persuasão há de fazer-se sem qualquer empe- investigação, perguntando-se inclusive se a questão de Deus
nho retórico, mas por força da precisão descritiva da linguagem tem algum sentido. Nestes termos, o seu questionamento é
infinito, pois até admite uma questão sobre a própria ques-
empregada. Bem certo que tudo isso representa uma procura
tão. Já a segunda, num enfoque dogmático, parte da exis-
incessante, a busca de um modelo ideal de Ciência, que por ser
tência de Deus como premissa inatacável."
ideal o homem jamais alcançará. Principalmente se seu objeto
estiver contido na região dos objetos culturais, como o direito.
Toda vez que uma investigação, de caráter zetético ou dog-
Vejamos, a propósito, a penetrante observação de Louri- mático, compuser sistema de proposições orientado para um fe-
val Vilanova 46 : nômeno com fins cognoscitivos, teremos uma teoria. E essa teoria
será Ciência se, e somente se, além de formar um feixe de enun-
"Se o formal permite a neutralidade do comportamento ciados vertido sobre determinado campo objetal, tiver pretensão
cognoscitivo do homem, se o homem concreto, em face das e finalidade veritativas. Sendo assim, as ciências nada mais são
formas e sua articulação em sistema — assim, na Lógica — que teorias (uma só ou combinação delas) animadas pelo objetivo
comporta-se como sujeito puro, quando trava contato com
de apresentar conclusões que se confirmem como verdadeiras.
o mundo dos conteúdos sociais e históricos, vem a travar
contato consigo mesmo, e, em vez da relação sujeito-objeto, Enquanto modo específico de conhecimento da realidade,
mescla-se essa relação com uma inevitável parcela de ati- o assunto da Ciência requer meditações mais profundas, que os
tude prático-valorativa." li mites deste trabalho não comportam. É matéria da Epistemo-
logia ou, em termos mais amplos, da Filosofia das Ciências.
Os problemas suscitados pelo interesse cognoscente do
Para concluir, aquilo que se passa com a Ciência do Direi-
ser humano podem ser investigados por um procedimento
to, em relação a seu objeto, o direito positivo, oferece um bom
que enfatize o aspecto pergunta, abrindo-se o espírito para o
exemplo da diferença entre a linguagem científica e a técnica.

46. "O problema do objeto da teoria geral do estado", in Escritos jurídicos e


filosóficos, vol. 1, São Paulo, Axis Mundi/IBET, 2003, p. 82. 47. Introdução ao estudo do direito, cit., p. 42.

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d) A linguagem filosófica assume foros que a distinguem entre o pensar filosófico e o pensar científico, cada qual mani-
como discurso peculiar. Com efeito, as reflexões sobre a vida festado num tipo de linguagem adequada a seus propósitos,
da criatura humana, na sua trajetória existencial, no papel que suas finalidades e, substancialmente, ao seu modo particular
cumpre como ente da natureza, nos seus anseios de conquistas de ser. Agora, em nenhum plano de indagação o enfoque zeté-
materiais e seus apelos de espiritualidade, enfim, o pensar no tico está tão presente quanto no das especulações da Filosofia.
homem e no que ele representa, o tomar posição perante o Cada teoria filosófica, antes de qualquer outra coisa, revela a
mundo, requer uma linguagem de tipo especial, saturada de perplexidade de uma grande indagação que une os indivíduos
valores, com terminologia própria, tudo para habilitar aquela em torno de suas intermináveis dúvidas existenciais.
investigação que retroverte sobre o conhecimento mesmo, da Uma referência prática ilustrará a distinção que vimos
realidade circundante, como do universo interior, na procura afirmando: se quisermos entender um texto da linguagem dos
do ser em sua totalidade universal. Trata-se de uma linguagem economistas ou dos sociólogos ou dos juristas consultaremos
que incide em todas as regiões ônticas: natural ou física, me- dicionários de terminologia de cada uma daquelas ciências. Da
tafísica, ideal e cultural, de tal modo que seu objeto poderá ser mesma forma, muitos dos termos da linguagem filosófica não
tanto linguístico como extralinguístico. O filósofo medita sobre serão encontrados senão em dicionários de Filosofia, o que
o conhecimento vulgar (doxa) e medita sobre o conhecimento denota estarmos diante de um tipo especial de discurso.
científico (episteme), quando indaga a propósito das condições e) A linguagem formalizada advém da necessidade de
e possibilidades de determinada ciência. Mas, antes de tudo, abandonarmos os conteúdos de significação das linguagens
pensa sobre o próprio conhecimento, o conhecimento em si, idiomáticas, em ordem a surpreender as relações entre classes
colocando-o como foco temático. Numa ascese temporária, sus- de indivíduos ou de elementos. As relações mesmas, com a
pende o interesse pelos objetos do mundo existencial, em atitu- pureza ínsita aos conceitos primitivos, fundantes, não são mui-
de de renúncia momentânea e metodológica, e projeta sua tas vezes perceptíveis no conjunto frásico, por obra das vicis-
atenção no fenômeno que ocorre entre o ser cognoscente e o situdes gramaticais da língua, dos torneios inerentes ao falar
objeto. comum e, principalmente, pelo comprometimento natural do
homem com a realidade circundante. Tudo isso acaba inibindo
Se a Filosofia tem a pretensão de explicar o mundo, com-
a apreensão dos vínculos associativos que aproximam os termos
pondo teorias, estas, para serem legitimamente filosóficas,
e as proposições. A formalização da linguagem aparece como
haverão de romper os limites do estrito campo objetal das ci-
instrumento eficaz para exibirmos relações, sejam elas mate-
ências particulares, para nelas pensarem, em atitude crítica,
máticas, físicas, econômicas, sociológicas, psicológicas ou jurí-
analisando a natureza do trabalho cognoscitivo e as técnicas
dicas. Quando a Geometria, utilizando fórmulas matemáticas,
aplicadas à elaboração do material levantado. O passo subse- 2
enuncia que (h 2 = a 2 + b ), está exprimindo em linguagem
quente é estabelecer a complementariedade daquele segmen-
formalizada uma relação constante para todo triângulo retân-
to do saber, no contexto da teoria geral com que o filósofo se
gulo. Interpretada em linguagem desformalizada, teríamos:
propõe expressar a totalidade do real.
Em todo triângulo retângulo, o quadrado da hipotenusa é igual
Tanto o saber comum como o científico marcam o ponto à soma dos quadrados dos catetos. Ao tratar da operação conhe-
de partida da investigação filosófica, que retribui as contribui- cida como produto, a Aritmética oferece a fórmula (x.y) = (y.x),
ções particulares, esclarecendo-lhes as causas e assentando- indicando com precisão o comportamento das variáveis x e y,
lhes os fundamentos. Nesse ponto, vê-se com nitidez a relação enquanto fatores da multiplicação, e o sinal de igualdade põe
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

em evidência a propriedade comutativa de que desfruta essa venha a ser uma linguagem formalizada. Quero insistir, porém,
operação. Também as relações jurídicas podem exprimir-se num ponto: ao despojarmos o discurso de suas roupagens idio-
mediante esquemas de linguagem formalizada, momento em máticas, há de remanescer um resíduo formal dotado de alguma
que saltam aos nossos olhos as qualidades que lhe são imanen- significação, sob pena de transformar-se o conjunto num mero
tes. Querendo salientar o caráter irreflexivo das relações jurí- cálculo, quer dizer, numa combinação das relações possíveis
dicas ou a assimetria do vínculo que une dois sujeitos, empre- entre os sinais do sistema, sinais esses que nada dizem, que nada
ga o lógico do direito as fórmulas, respectivamente, -(xRx) e comunicam, como adverte Lourival Vilanova 48 .
(xRy) (yRx). No caso da Aritmética, qualquer número que
substitua x ou y mantém constante a relação. Paralelamente, f) Por linguagem artística entendemos aqueles modos de
no liame jurídico, pouco importa o sujeito de direito que este- significar, de funções variadas, reveladores de valor estético. Sir-
ja no tópico de x ou de y: a relação é sempre irreflexiva -(xRx), vamo-nos da literatura, em prosa ou verso, que são modelos ca-
isto é, ninguém pode estar juridicamente relacionado consigo racterísticos, ou da peça jurídica da sentença, ou do relato histó-
mesmo; assim como invariavelmente assimétrica, vale dizer, rico, ou do parecer do jurista especializado. Seja o relatório mé-
se x é credor de y, então y é devedor de x, não sendo possível dico, as palavras introdutórias de um projeto arquitetônico ou
a transposição pura e simples dos termos referente e relato: páginas de um livro de Ciência. Nada disso importa. A função não
-[(xRy) = (yRx)]. Dito de maneira diversa, a relação (xRy) e sua está aqui como fator de identificação: não é o critério. Este é o
conversa (yRx) não são iguais. senso estético, algo que provoca nossa sensibilidade, orientando-
Apesar de toda a formalização, com a simbologia artifi- a em direção ao belo e produzindo aquela satisfação cuja índole
cialmente criada para acentuar os laços que a linguagem co- subjetiva e seu caráter intuitivo impedem seja isolado e definido
mum disfarça, mesmo assim estaremos diante de uma autên- com explicitude. Convocamos novamente a doutrina do jusfiló-
tica linguagem. Há variáveis (x e y) e constante (R), de tal modo sofo pernambucano 49 para ilustrar as noções expostas:
que as variáveis têm um mínimo de significação, recolhendo
"Sob o ponto de vista estético, passa a plano secundário a
em x ou em y quaisquer pessoas (físicas ou jurídicas, de direi-
verificabilidade histórica dos fatos cujo contexto situam-se um
to público ou de direito privado), mas sujeitos de direito. Não
César ou um Henrique IV A linguagem aqui é o sistema de
posso substituir x ou y por nomes de condutas ou de fatos, o símbolos portadores de significações que valem para um uni-
que indica haver, realmente, uma significação muito genérica, verso de formas, de formas do trágico, do sublime e do cômico,
portanto, significação. Também R, como relacional deôntico, e onde as ocorrências e as pessoas são meras possibilidades
surgirá sempre modalizado num dos operadores: O, P e V na ordem dos fatos. Que haja uma confirmação empírica, ou
(obrigado, permitido e proibido), inexistindo uma quarta pos- que haja uma discordância com a realidade histórica, não
sibilidade (lei deôntica do quarto excluído). Estamos, então, acrescenta nem diminui o valor estético das produções artís-
diante de uma linguagem com estrutura sintática rígida e bem ticas. A busca da verdade subjacente à composição literária,
organizada, com plano semântico em que seus termos encon- se é um tema importante sob certos pontos de vista, represen-
ta um vetor de análise irrecusavelmente extra-estético."
tram uma e somente uma significação, e com dimensão prag-
mática, pobre, mas existente.
Adiantamos alguns conceitos, que serão explicados e 48. "Lógica jurídica", in Escritos jurídicos e filosóficos, vol. 2, cit., p. 178.
desenvolvidos em capítulos ulteriores. Fizemo-lo apenas a tí- 49.Lourival Vilanova, As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo, cit.,
tulo de exemplificação, para transmitir idéia sumária do que p. 159.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

O discurso que chama a atenção pelo valor artístico, as- com suas dimensões sintática, semântica e pragmática: uma
sumindo, como de fato assume, qualquer das funções que autêntica linguagem, com a particularidade de ser formalizada.
examinamos, pode igualmente revestir-se das formas grama- Os recursos semióticos, por sua vez, permitem a análise das
ticais disponíveis à expressão do pensamento, o que significa três dimensões que esta linguagem apresenta, cada qual ana-
admitir que, como tipo de linguagem, é critério que pode pre- lisado de acordo com as respectivas bases: (i) as estruturas
valecer entre os demais. O subjetivismo que preside à utilização frasais e as regras lógico-gramaticais nelas contidas; (ii) os tipos
desse valor de referência dá margem a intensos desacordos de de linguagem; e (iii) as funções da linguagem no discurso. De
opinião. Isso, no entanto, não é obstáculo para sua autonomia, um lado, a referida formalização contemplará os vínculos as-
que se afirma a cada instante, na medida em que nos deparamos sociativos que ligam os vários signos de um mesmo sistema,
com textos que despertem em nosso espírito, como primeira expondo à carne viva o plano sintático daquele conjunto, e, na
reação, o sentimento estético que o inspirou. Quem já não leu instância semântica, encontrando-se a significação que é ine-
sentenças ou acórdãos tão harmônicos e bem compostos, esti- rente àquela estrutura formal. De outro, a pragmática da co-
listicamente, que antes de provocar em nós qualquer tomada municação humana indicará a trajetória imprescindível para
de posição acerca da justiça da decisão, ou de seu teor de juri- a determinação do tipo de lógica com que devemos trabalhar.
dicidade, suscitou a admiração pelo modo de expressar-se, pela Ingressemos, agora, nos estudos propriamente da linguagem
nobreza das referências, pela riqueza das imagens e pela com- formalizada, estabelecendo o paralelo entre a lógica e o direito
binação simétrica das formas? Pois bem, é precisamente essa positivo.
linguagem que traz à frente um apelo à sensibilidade estética,
aquela que versamos sob o nome de artística. 2.3. DIREITO E LÓGICA
Vimos, portanto, que em toda a formulação linguística,
fruto das concepções neopositivistas, preza-se a boa formação A Lógica integra a parte da Filosofia que trata do conhe-
da sintaxe frásica e toma-se a verificabilidade como critério cimento. Entre os gregos, inicialmente, assumiu a feição de
semântico para que o texto se enquadre como discurso científi- arte ou dom de produzir argumentos de maneira habilidosa,
co. A linguagem, aqui, é tida como instrumento do saber cientí- com o fito de organizar a mensagem, ensejando o convenci-
fico, empregada pelo intérprete jurídico na constituição do di- mento. Evoluiu, em seguida, para tornar-se um conjunto de
reito positivo. É esta busca da excelência sintática dos neoposi- proposições cujo objetivo ia mais além, oferecendo critérios
para a determinação da própria validade dos esquemas inte-
tivistas que os aproxima da Lógica ou, em outras palavras, da
lectuais que buscavam o valor-verdade. O núcleo das preocu-
linguagem formalizada. O pensar científico, no intuito de preci-
pações lógicas passou a estudar os modos que presidem o
sar a descrição da mensagem legislada, exige métodos que as-
funcionamento do pensar humano, isolando-se a temática do
segurem a estrutura sintática rígida e bem organizada, que, no
pensamento naquilo que se podia considerar o quadro das
plano semântico caminhem ao encontro de termos dotados de
relações possíveis entre as várias formas de manifestação do
uma e somente uma significação. Apenas a Lógica, expressão
intelecto. Essa função tem início com as associações que nosso
da dimensão formal de toda e qualquer linguagem, com recursos
espírito elabora a partir dos materiais oferecidos pela intuição.
da simboflogia, foi capaz de dar substrato a este universo.
Esses materiais são as idéias, noções ou conceitos. Aliás, o
Acontece que o conjunto escolhido para representar o pensamento começa pelo ato da afirmação, que põe o juízo,
plano das unidades lógicas constitui um sistema comunicacional, enquanto este último se exterioriza pela proposição.
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

Foi Aristóteles quem transformou a pesquisa dos conte- Insistamos em que o objeto da Lógica, enquanto Ciência,
údos mentais na secreta intimidade de sua organização interior, é o pensamento da criatura humana, visto na condição de es-
num sistema de enunciados de natureza científica. E o fez de trutura, independentemente de suas causas genéticas e das
modo tão bem composto que Kant admitiu estar diante de um circunstâncias externas que lhe imprimem dinamismo funcio-
corpo de conhecimentos pronto e acabado, não havendo como nal, setores especulativos pertinentes à Psicologia. Interessa à
experimentar novos progressos. Lógica lidar com as entidades formais que organizam a estru-
Com efeito, desvencilhada dos componentes psicológicos tura do pensamento.
que dão vida e movimento às suas estruturas, a Lógica atingiu
As ponderações acima mostram-se de grande relevância
foros de disciplina particular. Enquanto linguagem, é um sis-
para o estudo e a aplicação do direito positivo. Considerada a
tema de significações dotado de regras sintáticas rígidas - com
premissa de que o direito situa-se na região ôntica dos objetos
plano semântico em que seus signos apresentam um e somen-
culturais, a lógica o encontrará como um autêntico cosmos para
te um sentido - e que procura reproduzir, com recursos da
simbologia, as relações que se estabelecem entre termos, pro- dele organizar o seu material ontológico, constituindo verda-
posições e argumentos. Esclareçamos desde já que assim como deiro sistema formalizado de sobrelinguagem. No entanto, fica
a proposição é a expressão verbal do juízo, o termo o é da idéia a advertência: a Lógica não altera o ordenamento jurídico, mas
e o argumento, do raciocínio. o descreve em linguagem formalizada, transformando o objeto
cultural, que é o direito positivo, em objetos ideais, próprios
Nos nossos dias, a lógica se apresenta em linguagem for-
das Ciências Lógicas. Constitui assim a ampliação dos horizon-
malizada, fazendo-se necessário, por isso, referência expressa
tes culturais existentes.
ao sistema notacional adotado. Esse discurso formalizado re-
quer, para explicá-lo, uma metalinguagem que, por sua vez, A Lógica atua do mesmo modo que uma sobrelinguagem
para falar acerca da linguagem-objeto, tem de apresentar-se, da Ciência Jurídica, descrevendo e codificando a própria lin-
obrigatoriamente, desformalizada. É impossível conceber-se guagem descritiva do direito, assim como sobrelinguagem da
metalinguagem formalizada transcodificando linguagem-ob- argumentação jurídica. São, portanto, três linguagens-objeto
jeto também formalizada. O enunciado da linguagem lógica que a análise da Lógica formaliza: (i) a do direito positivo, (ii)
dirá: "p-q"; e a metalógica explicitará, afirmando: "esta fór- a da Ciência do Direito e (iii) a da retórica do direito. Eis o
mula molecular exprime o conectivo condicional, de maneira porquê da afirmativa do Professor Lourivar:
que, sendo verdadeira a proposição 'p', como antecedente,
então a consequente 'g' também o será." "A ciência da Lógica, sim, é que é a sobrelinguagem que
formaliza a linguagem das proposições jurídicas (da ciência
Tomada como Ciência, a Lógica consiste num discurso
jurídica) e a linguagem das normas (do direito positivo),
linguístico que se dirige a determinado campo de entidades.
pois é nesse seu nível que se reduzem as duas capas de
Esse domínio é o universo das formas lógicas, situado na região linguagem a fim de se obterem estruturas formais, consti-
ôntica dos objetos ideais, que, portanto, não têm existência tuídas de variáveis lógicas, de constantes lógicas e de func-
concreta, real; não estão na experiência e são axiologicamente tores intra/interproposicionais."
neutros. Apreendemo-los pelo ato gnosiológico da intelecção
e o método que se lhes aplica é o racional-dedutivo. Essas for-
mas ideais, contudo, só existem onde houver qualquer mani- 50. Lourival Vilanova, "Níveis de linguagem em Kelsen (Norma jurídica/
festação de linguagem, por insignificante que seja. proposição jurídica)", in Escritos jurídicos e filosóficos, vol. 2, cit., p. 216.

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Diante deste poderoso instrumental descritivo que é a e não-válido. Isso, nos horizontes das chamadas "lógicas biva-
Lógica, o exegeta do direito encontrará racionalidade no dis- lentes", porque na pesquisa do plano formal das linguagens,
curso jurídico, sendo capaz, pela utilização das leis e estruturas levando-se em conta suas oscilações funcionais, muitas lógicas
lógicas, de apontar uma infinidade de características, vícios e foram criadas. Com o passar do tempo, apareceram estudos
contradições no ordenamento normativo. alentados sobre a matéria, de tal sorte que se fala, hoje, em
muitas outras lógicas.

2.3.1. A Lógica e seu objeto: "Lógica jurídica" e "Lógicas Pois bem, explorando a temática da linguagem, sob o
jurídicas" enfoque da função pragmática do discurso, vamos nos aproxi-
mando daquilo que chamamos de "Lógica jurídica", expressão
Havemos de convir que a lógica (do grego logiké) é apenas ambígua utilizada para mencionar a linguagem prescritiva do
um ponto de vista sobre o conhecimento. Nesse sentido, ex- direito posto, mas também empregada para fazer referência à
pressaria a dimensão formal de toda e qualquer linguagem, linguagem da Ciência do Direito e ao estudo do complexo de
representada pelo conjunto das regras morfológicas e sintáticas formas de argumentação que surpreende o sentido retórico
que presidem a composição dos signos, bem como o grupamen- das comunicações jurídicas. Essas três "lógicas" se acomodam
dentro do campo semântico da expressão "Lógica jurídica",
to dos modos possíveis de associação entre tais unidades,
com os nomes, respectivamente, de "Lógica deiintico-jurídica",
tendo em vista a geração de estruturas cada vez mais comple-
"Lógica da ciência jurídica" e "Lógica da retórica jurídica".
xas. É "Lógica" também a Ciência que estuda essa estrutura
formal, analisando os entes e as relações que se verificam nes- Convém insistir, porém, que essas formas ideais só existem
se setor do mundo ideal. onde houver qualquer manifestação de linguagem, por insig-
nificante que seja. Não há lógica na floresta, no fundo dos
Mas é importante dizer que, por esse ângulo de análise, oceanos ou no céu estrelado: torna-se impossível investigarmos
a lógica existirá, única e exclusivamente, ali onde houver lin- entes lógicos em qualquer outra porção da existência real que
guagem. Mais ainda, suas variações estarão ligadas às funções não seja um fragmento de linguagem. O saber lógico pressupõe
que a linguagem cumpre no contexto comunicacional, de tal a linguagem, que é seu campo de eleição, e a ela se dirige não
maneira que as alterações do uso linguístico determinarão como fim temático e sim como índice temático, para recolher
modificações importantes nos padrões lógicos a serem empre- a lição de E. Husserl, oportunamente lembrada por Lourival
gados. Dito de outro modo, a pragmática da comunicação Vilanova 51 . Tudo porque o pensamento humano se acha indis-
humana será o caminho imprescindível para a determinação sociavelmente jungido à linguagem, meio exclusivo de fixar o
do tipo de lógica com que devemos trabalhar. Para a linguagem produto da atividade cognoscitiva e de transmiti-lo nas situa-
utilizada em função descritiva de situações objetivas, a Lógica ções comunicacionais. Ora, transportando essas considerações
é chamada "formal", "menor", "Lógica clássica", "alética" ou para o campo do direito, podemos falar numa lógica deiintico-
"apofântica", na qual os valores são a verdade e a falsidade; jurídica que terá como objeto a linguagem dos enunciados
tratando-se da função interrogativa, teremos a lógica erotética, prescritivos e de uma lógica da Ciência do Direito, preocupada
com seus valores cabível ou incabível, pertinente ou imperti- com os enunciados descritivos proferidos pelos juristas.
nente; se a função for a persuasiva, os valores serão o convin-
cente ou o não-convincente; para a linguagem empregada na
função prescritiva de condutas, lidaremos com os valores válido 51. "Lógica Jurídica", in Escritos jurídicos e filosóficos, vol. 2, cit., p. 195.

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Firmado o pressuposto de que chegamos ao mundo da trata-se realmente de raciocínio e sua natureza não pode ser
lógica pela formalização, explicitemos a diferença entre esse outra que a indutiva. Já a indução matemática guarda o cará-
processo e a conhecida "generalização". ter de autêntica dedução, não se confundindo com as duas
primeiras.

2.3.2. Generalização e formalização Retomemos a generalização, enquanto processo, para


dizer que em seu percurso, quer finito ou infinito o universo
A linguagem formalizada, portanto, é aquela que logrará de objetos, desde o primeiro registro à conclusão generalizan-
plenamente substituir todas as palavras do discurso por sím- te, o observador não abandona, um momento que seja, o do-
bolos lógicos para a elaboração dos cálculos proposicionais. mínio demarcado. Em outras palavras, permanecerá operando
Porém, como se dá esta formalização? Será que ela se faz por no mesmo campo semântico, do começo ao fim. Se a área de
um processo de generalização ou mesmo de um processo de verificação constituir-se de metais, por exemplo, sairá o inte-
abstração? Qual o método aplicado pela Lógica para chegar a ressado pesquisando, de espécie em espécie, até chegar ao
esta formalização? conceito genérico que postula obter, mas conservar-se-á sem-
pre, rigorosamente, dentro da região material dos metais. Se
Toda vez que passamos da observação de fatos particula- acaso dirigisse a investigação para o lado jurídico dos contratos
res para uma conclusão geral sobre todos os fatos de uma dada e outro tanto ocorreria, pois o estudioso não cessaria de falar
classe, estaremos diante do processo de generalização. O mé- nessa figura, começando pelos tipos específicos que for encon-
todo que lhe convém é o indutivo, que parte de enunciados trando, até surpreender os traços gerais integrantes de todo e
protocolares observados e, sem esgotar o universo de fatos da qualquer contrato, sem jamais ultrapassar os limites que cir-
mesma índole, pretende extrair lei geral, válida inclusive para cunscrevem a matéria. Eis a característica da generalização:
os acontecimentos não submetidos à experiência. O enunciado atua com conteúdos significativos constantes e uniformes,
conclusivo seria explicativo do subconjunto dos enunciados variando apenas os acidentes que identificam as espécies.
protocolares examinados, bem como de seu complemento, isto
é, aquele formado pelos eventos não empiricamente testados. Formalizar, entretanto, é algo bem diferente. Nesse pro-
O método indutivo ergue-se sobre a base da regularidade ob- cesso, deixamos de lado os núcleos específicos de significação
jetiva dos fenômenos do mundo e da sua cognoscibilidade pelo das palavras para ficar com signos convencionalmente estabe-
homem. Trilhando caminho oposto ao da dedução, pelo racio- lecidos, que não apontam para este ou para aquele objeto e sim
cínio indutivo realizamos a síntese, ao passo que pelo dedutivo para o objeto em geral. No lugar de João ou de Pedro ou de
elaboramos a análise. Mas a indução de que falamos é a incom- Antonio ponho "S", que é o homem em geral, podendo ser
pleta, roteiro interativo e constante no quadro das Ciências substituído tanto por João quanto por Pedro ou por Antonio.
naturais, na Sociologia, na Psicologia, etc. A chamada "indução Trata-se de despojarmos a linguagem natural, técnica, cientí-
completa", cuja conclusão geral exaure a classe dos objetos fica ou qualquer outra, de seus teores estritos de significação,
considerados, supõe universos finitos, além de não muito nu- substituindo-os por símbolos que expressem os objetos em
merosos. Têm-na alguns como simples enumeração, não me- geral, os predicados em geral, além das partículas que cumprem
recendo o nome de "raciocínio". Outros, contudo, a incluem funções meramente sintáticas ou operatórias. Desse modo,
no esquema dedutivo, designando-a de "silogismo indutivo de edificamos um sistema de conhecimentos reduzido às suas
Aristóteles". Todavia, evoluindo o pensamento do particular estruturas formais, em que os materiais empíricos ou intuitivos
para o geral e sacando-se conclusão que difere das premissas, são postos entre parênteses, para que surjam em evidência as

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relações sintáticas do discurso. É o instrumento eficaz para penso que aquela tonalidade se assemelha à cor do céu ou do
contemplarmos os vínculos associativos que ligam os vários mar. Recolho somente a cor de seus olhos, como se isso fosse
signos de um mesmo sistema, expondo abertamente o plano possível, e componho versos que alimentam a imaginação.
sintático daquele conjunto. Por outros meneios, podemos dizer Estamos diante de processo de abstração, mas abstração que se
que é pela formalização que chegamos ao domínio das formas estabelece no mesmo nível do ser físico daquela figura feminina.
lógicas. Sim, porque generalizando não conseguimos despren- Isolei "propriedades físicas que se manifestam juntas", declara
der-nos do campo de irradiação semântica de cada palavra, Lourival Vilanova 52 (em exemplo semelhante). E conclui:
permanecendo, como já vimos, no plano dos conteúdos mate-
riais. Agora, na formalização, há um descontinuitm que repre- "Não é assim a abstração em lógica. A proposição não está
senta verdadeiro salto para o território das entidades lógicas. no mesmo sítio ontológico das letras, sílabas, palavras e
orações da linguagem. (...) A abstração que nos conduz à
É por isso que depois de substituir "João é médico" por "S é
proposição, como proposição, salta para outro plano: o que
P", em que "S" é o tópico dos objetos e "P" o dos predicados, podemos denominar o universo das formas lógicas" (o grifo
posso, perfeitamente, aplicar a proposição "S é P" em domínio é do original).
estranho, para significar que "o próton é integrante do núcleo
dos átomos", que "o metal é bom condutor de eletricidade", Mantenhamos na retentiva a diferença entre a abstração
que "a água do mar é salgada", que "o homem é racional", que isoladora e a abstração lógica.
"a consciência é doadora de significado ao mundo". Note-se
que os exemplos oferecidos ajustam-se todos à mesma forma A formalização ou abstração lógica tornou-se ferramenta
proposicional, variando apenas a circunstância de o objeto, que indispensável ao matemático, ao lógico, ao filósofo, ao linguis-
é sujeito de uma predicação, estar num sintagma nominal mais ta, ao que lida com informática e a todos aqueles que preten-
ou menos complexo, e também assim no que concerne ao sin- derem conhecer a fundo e aprimorar a organização de seu
tagma verbal, onde está o predicamento. Chegaremos então discurso, cuidando zelosamente da dimensão sintática da lin-
ao patamar das formas lógicas e o faremos pelo caminho da guagem. Basta levarmos em conta os sistemas idiomáticos para
formalização. De lá, se quisermos, é fácil retroceder, bastando ver, com clareza, a imprescindibilidade dos controles gramati-
saturar as variáveis lógicas com as significações de uma lin- cais, em grande parte responsáveis pelo sentido preciso das
guagem-de-objeto. É a trajetória inversa: a desformalização. mensagens. Atinemos para que a boa construção da frase é
Desaparecem os símbolos notacionais e, em seus lugares, apa- pressuposto inafastável do entendimento comunicacional e as
recem palavras carregadas de significação e pertencentes a regras de seu uso adequado estão na sintaxe.
certo domínio material. Vale a proposição segundo a qual a
generalização está para a particularização, assim como a for- 2.3.3. O domínio das estruturas lógicas
malização para a desformalização.
Vem ao ponto advertir que a formalização a que nos referi- Vimos que generalizando não atingiremos a região do
mos não se confunde com a atividade de abstração, usada com logos, permanecendo envolvidos com os núcleos de significação
tanta frequência em todos os níveis comunicacionais. Nesta de uma linguagem-de-objeto ou de metalinguagem material.
última, 'a mente humana provoca um corte conceptual, de modo
que logra separar o inseparável. Vejo uma mulher de olhos
azuis e a cor de seus olhos me impressiona. Imediatamente, 52. "Lógica Jurídica", in Escritos jurídicos e filosóficos, vol. 2, cit., pp. 159-160.

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Tão-somente o processo de formalização libertar-nos-á da que a Lógica vai parando por aqui, negando-se a discutir as
concretude imanente daquelas linguagens, propiciando o sal- razões determinantes do ato, para não se imitir nos domínios
to para o universo das formas lógicas, autônomo e irredutível. da Psicologia.
Nele, toparemos com entidades que convivem de modo har- Oferecidas essas considerações propedêuticas, já podemos
monioso, formando um todo que se movimenta por força de dizer que o termo é a expressão verbal da idéia; a proposição,
combinações que o cálculo do conjunto admite. Sabemos da do juízo; e o argumento, do raciocínio. Em outras palavras, as
existência de unidades, como sabemos a maneira pela qual noções, os juízos e os raciocínios são produzidos e permanecem
ocorrem as articulações possíveis entre essas unidades. Mas, em nossa mente. Verbalizados, surgem como termos, proposi-
sobre a natureza das formas lógicas, nada há para afirmar-se: ções e argumentos, respectivamente. Se, ao lidarmos com a
são conceitos primitivos, situados na raiz do fenômeno do co- linguagem da Lógica, ativermo-nos às expressões verbais,
nhecimento, sendo, portanto, indefiníveis. Aliás, são indefiní- entidades físicas que suportam significações, nem por isso
veis não só as formas lógicas, como o próprio domínio que as podemos esquecer estas últimas, no quadro da estrita corres-
recolhe e organiza. Por não consubstanciarem noções derivadas pondência que mantêm com as primeiras.
e sim originárias, fundantes, ser-nos-á vedado o ingresso em
sua ontologia: um véu espesso permanecerá encobrindo tais Vista a proposição internamente, teremos variáveis de
essências. O obstáculo, contudo, não é suficiente para tolher objeto e variáveis de predicado, como categoremas; além de
esforços no sentido de isolar esse cosmos e estudá-lo nas suas partículas que cumprem papéis meramente sintáticos dentro
funções. do esquema proposicional (operadores ou functores e quanti-
ficadores), isto é, sincategoremas. A fórmula clássica da estru-
Alojando-se na região ôntica dos objetos ideais, como já tura proposicional, na Lógica Apofântica: S é P, mostra S e P
dissemos, o ato que apreende as formas lógicas é a intelecção, como categoremas (S é variável de objeto e P variável de pre-
que capta as noções ou conceitos, como simples representação dicado), enquanto o "é" apofântico faz as vezes de sincatego-
mental. Em seguida, praticamos o ato de julgar, pelo que afir-
rema. Há situações em que o termo-objeto, o termo-predicado
mamos ou negamos que a idéia de um predicado convém à ou ambos são compostos, aparecendo então conectivos como
idéia de dado objeto, sujeito da predicação: é o juízo. Passamos,
e e ou ligando os símbolos integrantes. N'outras, o termo vem
então, ao raciocínio, operação em que, de dois ou mais juízos,
afetado por quantificador, do tipo todos, nenhum, alguns, pelo
extraímos um terceiro, que deles deriva de modo necessário.
menos um.
Enquanto atos integrantes do processo cognoscitivo, a apre-
ensão nos leva à idéia, noção ou conceito; o julgamento produz Convenhamos nisso: só com categoremas ou com sinca-
o juízo; e a conjugação de juízos com vistas à obtenção de um tegoremas não posso compor uma estrutura formal dotada de
terceiro manifesta-se como raciocínio. De um lado, atos do validade sintática. A associação de Pedro Paulo alto apóstolo
espírito; de outro, os produtos finais desses atos. É a distinção José forte, contado apenas em categoremas, não permite que
entre processo e produto ou entre noeses e noema. O primeiro cheguemos ao nível de uma construção logicamente bem for-
exprime o ato e o segundo, seu conteúdo. A título de exemplo, mada. Pelo mesmo motivo, se dispusermos tão-só de sincate-
no terreno dos fenômenos naturais, o ato de olhar para o hori- goremas (todos e se então ou) não atingiremos o mínimo neces-
zonte do mar, por onde se desloca um navio, é noeses, ao passo sário para satisfazer as normas sintáticas de composição de
que o navio que surpreendo com o desempenho dessa ativida- enunciados, ainda que nos dois exemplos conheçamos as pa-
de é o conteúdo noemático do ato, ou floema. Importa lembrar lavras utilizadas.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

O universo das formas lógicas, porém, não termina com em termos verbais. Enquanto não merecesse esse cuidado,
as indagações intraproposicionais. Estas se integram em es- continuaria o fenômeno físico que é, todavia, sem capacida-
truturas mais complexas, até alcançar a condição-limite de de de expressão lógica, pois na região dos fatos não há vín-
sistema, "a forma das formas", no dizer de Husserl. E as asso- culos dessa natureza. Os vínculos lógicos existem a partir
ciações se fazem por meio de conectivos que estudaremos em da linguagem, repetimos.
capítulo subsequente (negador, e, ou-includente, ou-excludente,
Sendo assim, como admitir referências a relações como
se ..., então, se e somente se). Outras regras sintáticas, agora da
Lógica Proposicional, disciplinam a conjugação de proposições esta, por exemplo: o evento econômico X implicou o evento
numa combinatória apta para a elaboração de infinitas fórmu- político Y? Há implicações (no sentido estritamente lógico)
las, todas rigorosamente pertinentes ao sistema. entre eventos econômicos e eventos políticos? Evidentemen-
te, não. Incide aqui a figura mediante a qual o homem trans-
porta para o domínio dos objetos da experiência uma relação
2.3.4. Relações lógicas e relações entre os objetos da experiência de índole lógica. É mera transposição que o falar comum in-
sistentemente registra, mas que não se sustenta numa análi-
Os nexos lógicos, como vemos, acontecem num mundo
se rigorosa. Um acontecimento físico ou social é causa de
abstrato cujo ingresso se dá a partir da experiência com a
outras ocorrências físicas ou sociais. A lei que vige é a da
linguagem. Sem este ponto de apoio, ninguém penetra nos
causalidade natural, manifestada em termos de antecedência,
domínios das entidades lógicas. Entretanto, é com o empre-
de simultaneidade ou de sucessividade no tempo, algo intei-
go da linguagem que o ser cognoscente adquire e mantém
ramente estranho ao campo da lógica, ao menos das lógicas
contato com a realidade circundante, comunicando esse
convencionais. A relação de implicação, em contrapartida,
conhecimento a seus semelhantes. É com tal instrumento
instaura-se entre termos, proposições ou feixes de proposições
que ele descreve as mutações que a dinâmica existencial vai
de maneira que o termo, a proposição ou o conjunto delas,
produzindo em sua volta, constante e paulatinamente, até
situado no tópico de antecedente, é condição suficiente do
permitir que ele se aproprie de uma visão objetiva, que lhe
termo, da proposição ou conjunto delas, alojado no lugar
propicie mover-se nessa mesma realidade, cumprindo sua
sintático do consequente que, por sua vez, será condição ne-
trajetória. Ao fazê-lo, verbaliza as relações que ocorrem no
cessária do antecedente.
plano da circunstância tangível, depositando em sua lingua-
gem aquilo que vê realizar-se segundo a lei da causalidade Consignemos a doutrina de Lourival Vilanova 53 :
física ou natural. Um corpo cai, atraído pelo centro da terra,
e com ela se choca. O homem observa atentamente o fenô- "A relação de causa/efeito é uma relação no mundo dos
meno físico provocado na experiência e, pela indução gene- fatos, dos fatos naturais, ou dos fatos socioculturais. Entre
objetos lógicos ou objetos formais não se encontra. As pre-
ralizadora, proclama o enunciado confirmatório da conhe-
missas não causam a conclusão, o enunciado implicante não
cida proposição newtoniana: a matéria atrai a matéria na
causa o enunciado implicado, uma variável de objeto x não
razão direta das massas e na razão inversa do quadrado das é causa ou efeito de outra variável y, uma variável R' não é
distâncias. Pronto: trata-se de um evento do mundo cosmo-
lógico que acaba de ser descrito em linguagem. Surge, ago-
ra, a possibilidade de representá-lo por meio da simbologia 53. Causalidade e relação no direito, 4a ed., São Paulo, Editora Revista dos
lógica. Mas, única e exclusivamente, porque foi transcrito Tribunais, 2000, p. 39.

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causa ou efeito de outra variável R", uma variável de classe Quando, porém, o homem se nutre dos recursos dessa
A não se inclui como causa ou efeito de outra variável B, lógica e se dirige a um determinado segmento especulativo,
nem a relação de pertinência de um indivíduo x 'com sua em atitude cognoscente, aplicando aquelas leis universais ao
classe A' é de causa ou de efeito 54 ". campo particular que foi proposto, surge a Lógica Aplicada,
Lógica Maior, Lógica Material ou, simplesmente, Metodologia.
É que a origem das relações causais-naturais está na ex- Neste exato sentido, Metodologia significa adaptação da Lógi-
periência com os objetos físicos, provocada ou não pelo homem ca Menor a uma específica região material. Tenhamos presen-
no seu contato direto com a natureza. Já as relações lógicas dão- te que a Lógica Menor ou Lógica Apofântica ou Lógica Alética
se na região dos objetos ideais e partem da experiência da lingua- está credenciada tão-só para revelar a sintaxe da linguagem
gem, mas não estão nela, linguagem. Podemos dizer que esses com função descritiva de situações, não servindo à linguagem
dois tipos de relações pertencem a ontologias diferentes, de sorte das ordens, das perguntas ou da linguagem poética.
que as interconexões no mundo dos acontecimentos tangíveis
não constituem sintaxe: são laços criados no plano da realidade Evoquemos, novamente, as considerações a respeito do
física e explicados pela lei da causalidade natural. Só por exces- rumo seguido para alcançar o estrato das formas lógicas: par-
so vamos nos deparar, aqui e ali, com tal transposição. timos da experiência do fato comunicacional e, pelo processo
de formalização, fomos retirando os conteúdos de significação
das palavras, até o ponto de despojarmos o fragmento de lin-
2.3.5. A chamada Lógica formal e a metodologia guagem com que trabalhamos de todo sentido determinado.
Remanesceram símbolos representativos do objeto em geral,
A lógica de que vimos falando é a chamada "Lógica For- do predicado em geral, além de partículas operatórias que
mal" ou "Lógica Menor", que tem por objetivo o estudo das exercem apenas função sintática. Nesse instante, atingimos as
formas do pensamento, isto é, das idéias, dos juízos e dos ra- entidades lógicas, nuamente expostas, como estruturas abertas
ciocínios, bem como de seus correlatos verbais, a saber, dos para receber qualquer tipo de objeto e qualquer tipo de predi-
termos, das proposições e dos argumentos, fazendo-se abstra-
cado, o que lhes atribui status de universalidade.
ção dos conteúdos significativos a que se aplicam aqueles es-
quemas. Trata-se de examinar as estruturas do conhecimento, O procedimento que nos leva ao formal é sempre o mesmo,
independentemente do objeto mesmo do conhecimento, o que variando somente o domínio de objetos a que nos dirigimos.
lhe outorga foros de validade universal, uma vez que suas leis Da multiplicidade dessas variações advém a quantidade de
estão aptas para incidir em qualquer província do saber. Ob- métodos que os muitos setores reclamam em razão de suas
serve-se, contudo, que a locução "Lógica Formal" não pode peculiaridades existenciais. E, nesse meio, há de estar o jurí-
escapar da crítica de pleonástica, pois, como ficou registrado, dico, com seu modo específico de existir. Cada porção do real
o único caminho capaz de conduzir-nos ao domínio das formas representa uma incisão profunda, mas abstrata, imposta pelo
lógicas é o da formalização. A linguagem da lógica é necessa- ângulo de análise que satisfaz o interesse do sujeito do conhe-
riamente formalizada, carecendo de sentido acrescentarmos o cimento. Este, por sua vez, não ignora a natureza contínua e
adjetivo formal. Ao cabo de contas, toda lógica é formal. heterogênea do mundo que o envolve, procurando, enquanto
sujeito transcendental, romper aquela continuidade extensiva
e intensiva para extrair o descontínuo homogêneo sobre o qual
54. No texto transcrito, o professor Vilanova emprega fato como entidade ex- fará incidir o feixe de suas proposições descritivas. Mas é evi-
tralógica, fora, portanto, do âmbito da linguagem, diferentemente do uso que dente que o objeto de tal maneira recortado reivindica um meio
venho recomendando. A ressalva preserva o inteiro cabimento da citação. próprio de aproximação e de exploração cognoscitiva, em outras
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

palavras, um método. Daí a insistente asserção segundo a qual atitudes ideológicas, como se estivesse perante um fenômeno
a cada ciência corresponde uma metodologia, ainda que um da natureza. A neutralidade axiológica impediria, desde o iní-
único método admita técnicas diferentes de implantação e de cio, a compreensão das normas, tolhendo a investigação. Além
operação. A via racional-dedutiva, por exemplo, utilizada para do mais, o conhecimento jurídico já encontra no seu objeto
a intelecção dos objetos ideais, não pode substituir o processo uma auto-explicação, pois o direito fala de si mesmo e este
empírico-indutivo, empregado na explicação generalizadora das falar-de-si é componente material do objeto. Daí a função re-
ciências naturais, em virtude de razões que provêm da própria construtiva do saber jurídico expressa nas proposições da Ci-
ontologia objetal: enquanto os primeiros não têm existência ência do Direito. Noções expostas com segurança e vigor pelo
espaço-temporal, não se prestando à experiência, os últimos são já referido pensador pernambucano.
reais e empíricos, pouco importando o traço comum de neutra- Desta maneira, o procedimento de quem se põe diante do
lidade axiológica que une tais objetos. Ainda mais: os métodos direito com pretensões cognoscitivas há de ser orientado pelas
racional-dedutivo (adequado ao plano dos objetos ideais) e em- possibilidades gnosiológicas do ser humano, levando-se em
pírico-indutivo (objetos naturais) não convêm à investigação dos conta as exigências que o próprio objeto levanta. A Ciência do
objetos culturais, sempre valiosos, positiva ou negativamente. Direito, como sistema autônomo de conhecimentos, tem sua
Aqui, o ato cognoscente já é outro - a compreensão - e o caminho metodologia, podendo exibi-la em face de outros sistemas que
a ser percorrido é o método empírico-dialético. se ocupam da mesma realidade-objeto.
O direito positivo, como camada de linguagem prescritiva
de condutas, é uma construção do ser humano que está longe 2.3.6. Valores lógicos da linguagem do direito positivo e seus
de ser um dado simplesmente ideal, não lhe sendo aplicável, modais
também, as técnicas de investigação do mundo natural. As
unidades normativas selecionam fatos e regulam condutas, Válido e não válido são os dois (e somente dois) valores ló-
fatos e condutas recolhidos no campo do social. Ora, o fato gicos das proposições do direito posto, que não se confundem com
social, como processo de relação, é um fenômeno com sentido os modalizadores das condutas intersubjetivas. Estes são três e
e, sem ele (sentido), que imprime direção aos fatos sociais, é somente três (lei deontológica do quarto excluído): obrigatório
i mpossível compreendê-los. Os fatos jurídicos, quer os previs- (Op), proibido (Vp) e permitido (Pp). O chamado comportamento
tos nos antecedentes das normas, quer os prescritos na fórmu- facultativo (Fp) não é um quarto modal, precisamente porque se
la relacional dos consequentes, apresentam-se na forma de resolve sempre numa permissão bilateral: permitido cumprir a
fenômeno físico, relações de causas e efeitos, mais o sentido, conduta, mas permitido também omiti-la (Pp . P-p).
isto é, o fim jurídico que os permeia. Sem a significação jurídi-
Em linguagem formalizada, dirigindo a atenção para a
ca que presidiu a escolha do evento e inspirou a regulação da
norma jurídica completa, no seu mínimo deôntico, chegaremos
conduta, não se há de falar em fatos jurídicos e relações jurí-
a duas implicações: a da norma primária e a da norma secun-
dicas. Essa parte do mundo empírico pede tratamento especial,
dária, unidas pelo conectivo disjuntor-includente. Consignemos
que atente para seu lado dinâmico de ações e reações, no es- 55
a doutrina de Lourival Vilanova a respeito:
quema de causa e efeito, mas que o considere, fundamental-
mente, naquilo que ele tem de significação, de sentido.
Quem se propuser conhecer o direito positivo não pode 55. Lourival Vilanova, As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo,
aproximar-se dele na condição de sujeito puro, despojado de cit., p. 105.

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"Seguimos a teoria da estrutura dual da norma jurídica: 2.4. PROPOSIÇÃO E LINGUAGEM: ISOLAMENTO
consta de duas partes, que se denominam norma primária TEMÁTICO DA PROPOSIÇÃO
e norma secundária. Naquela, estatuem-se as relações de-
ônticas direitos/deveres, como consequência da verificação Dissemos que a Lógica integra a parte da Filosofia que
de pressupostos, fixados na proposição descritiva de situa-
trata do conhecimento. Tal se dá pelo ato intelectivo do pensar;
ções fácticas ou situações já juridicamente qualificadas;
nesta, preceituam-se as consequências sancionadoras, no
exteriorizado pelas figuras do termo, da proposição e do argu-
pressuposto do não-cumprimento do estatuído na norma mento. Eis a importância da proposição como suporte linguís-
determinante da conduta juridicamente devida. (...) As tico que traduz os juízos pessoais, a saber, asserções de que
denominações adjetivas 'primária' e 'secundária' não expri- algo é algo. O referido ente lógico tem características próprias
mem relações de ordem temporal ou causal, mas de ante- dentro da linguagem que o distingue e o eleva a um patamar
cedente lógico para consequente lógico." único, na medida em que o conhecimento adquire proporções
adequadas a partir das estruturas proposicionais.
A título de exemplo, utilizando o sistema notacional
Enunciado é o produto da atividade psicofísica de enun-
inglês, de Bertrand Russel, podemos representá-la assim:
ciação. Apresenta-se como um conjunto de fonemas ou de
D [(f —> r) v (-r --> s )], o que possibilita perceber a drástica
grafemas que, obedecendo a regras gramaticais de determina-
redução que se promove nos textos do direito positivo, para
do idioma, consubstancia a mensagem expedida pelo sujeito
alcançar a universalidade própria da lógica. Nesse primeiro
emissor para ser recebida pelo destinatário, no contexto da
contato, porém, não aparecem os functores deônticos intrapro-
comunicação. Para a Lógica Apofântica, que opera com a lin-
posicionais, que estão contidos no consequente das implicações.
guagem tomada em sua função exclusivamente descritiva de
Comparece, todavia, o functor interproposicional, representa- situações objetivas, enunciado é toda formação linguística bem
do na fórmula pelo "D". Em termos de metalinguagem, diría- construída, indicativa de um acontecimento efetivo, ostentan-
mos "deve-ser que se ocorrer o fato 'f', então se instaure a do, por isso mesmo, a propriedade de ser verdadeira ou falsa.
relação 'r', ou se não for cumprida a conduta estabelecida na A exigência de ser um segmento de linguagem "bem constru-
relação 'r', seja aplicada a sanção ído" garante ao enunciado aquilo que conhecemos por "senti-
Como se vê, a lógica é apenas um ponto de vista sobre o do completo" e, por conseguinte, sua subordinação às valências
conhecimento, de modo que ultrapassar seus limites conduz ao lógicas mencionadas.
logicismo. Geraldo Ataliba, ao prefaciar a obra "Estruturas ló- Há palavras frequentemente utilizadas como sinônimas de
gicas e o sistema do direito positivo" de Lourival Vilanova, enunciado: "oração", "sentença", "asserção", "proposição". Os
chama a atenção para a circunstância de que a experiência ju- autores alemães empregam o vocábulo "aussage", que significa
rídica integral levará em conta todos os aspectos constituintes "enunciado". Ficaremos, porém, com a orientação anglo-saxô-
do dado: o lógico nos enunciados e o empírico nos dados-de-fato, nica que distingue "sentença", "oração" ("sentence") de "pro-
valorativamente selecionados da realidade física e social (que, posição" ("proposition"). Para os ingleses, "oração" e "senten-
por isso, se qualifica juridicamente, ou se torna juridicamente ça" teriam o mesmo valor semântico de "enunciado", isto é, a
relevante). Considerações desse tope nos permitem perceber expressão oral ou gráfica de uma proposição, enquanto esta
que a lógica, por si só, não é suficiente para nos conduzir à con- seria o conteúdo significativo que o enunciado, sentença ou
creção material da experiência jurídica, isolando, na sua ampli- oração exprimem. Daí que a mesma proposição possa encontrar
tude, tão-só os caracteres formais das normas. diferentes expressões verbais, correspondendo, portanto, a
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

enunciados distintos, num só ou em idiomas diversos. Vejamos com "proposições prescritivas", dirigidas ao comportamento
este exemplo, em que dois enunciados em língua portuguesa inter-humano, no convívio social.
expressam uma única proposição: "o movimento teve a adesão
Recomenda-se muita cautela na utilização dos termos
de muitos parlamentares" e "muitos parlamentares aderiram
"enunciado" e "proposição", especialmente porque a Lógica
ao movimento". Ou este, em idiomas diferentes: "it is raining",
tradicional nominava de "proposição" aquilo que os modernos
"il pleut", "chove". Em ambos os exemplos, segmentos de lin-
autores ingleses chamam de "sentence" e que nós empregare-
guagem sintaticamente diversos portam uma única significa-
mos como "enunciado", "oração" ou "sentença", ao passo que
ção. Em contrapartida, pode ocorrer que uma sentença comu-
anotava como "juízo" o que esses últimos indicam como sendo
nique proposições distintas: "No Brasil, o Presidente da Repú-
"proposição". Como dito anteriormente, trabalharemos com
blica foi deposto". A frase tanto serve para significar o episódio
os vocábulos "proposição" e "enunciado" ("sentença" ou "ora-
de 1945, quanto o de 1964. Conhecemos sua "significação geral",
ção"), à maneira dos ingleses. Como o interesse da Lógica está
mas desconhecemos seu "sentido específico". A dualidade
voltado para a forma das proposições e não dos enunciados, é
"significação geral"/"sentido específico" cumpre, então, inte-
sempre relevante lembrar que as proposições não são enun-
ressante papel para a compreensão do texto.
ciados e os elementos das proposições e das formas de propo-
Cremos que se legitima o uso da palavra "proposição", sições não são palavras nem expressões linguísticas, mas
apesar de algumas críticas advindas principalmente dos nomi- aquilo que significam. A nota serve para divisarmos o campo
nalistas, para quem as proposições não têm existência real, temático da Lógica, em face do objeto de investigação da mor-
pelo que preferem referir-se a sentenças ou orações perten- fologia e da sintaxe gramatical de um idioma qualquer.
centes às linguagens concretas, faladas ou escritas (daí, cálculo
sentencial). Na verdade, as proposições são objetos conceptu-
2.4.1. Linguagem formalizada e representação simbólica: as
ais, o que não importa admitir que desfrutem de existência
formas lógicas nas estruturas proposicionais
autônoma, isto é, que haja "proposições-em-si", independen-
temente de quem possa pensá-las. Nessa linha, a distinção que As particularidades gramaticais de cada língua e os fa-
se estabelece com o termo "enunciado" parece-nos bastante tores pragmáticos que estão presentes no fato comunicacional
útil. Contudo, quando se afirma que a proposição é o conteúdo dificultam sobremaneira a apreensão das entidades lógicas,
de um enunciado descritivo (declarativo, indicativo ou teoré- sendo necessário formalizar o discurso para percebermos os
tico), temos que advertir tratar-se de um excesso. O asserto vínculos associativos que unem os termos, as proposições e
vale para as proposições da linguagem descritiva mas, como os conjuntos de proposições, na figura maior de sistema. Ora,
sabemos, esta não é a única função que a linguagem desempe- formalizar implica um salto para o domínio das formas lógicas
nha no fenômeno comunicacional. Ali onde houver enunciados e tal procedimento se dá pelo deliberado abandono dos con-
linguísticos, seja qual for a função, encontraremos proposições teúdos concretos de significação, substituindo as palavras e
com o sentido daquelas sentenças. A redução se explica por expressões da linguagem de que tratamos por signos conven-
motivos históricos, já que a linguagem descritiva de situações cionalmente estabelecidos, portadores de um mínimo semân-
foi pioneira e intensamente estudada. Hoje, entretanto, pode- tico, qual seja o de representar um sujeito qualquer, um
mos falar de proposições interrogativas, imperativas, exclama- predicado qualquer, uma proposição qualquer, um sistema
tivas, etc. No estudo das normas jurídicas, por exemplo, lidamos qualquer. Sem esse resíduo significativo não poderíamos falar
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de signos, muitos menos de linguagem. Sucede que o conjun- Admitamos que é possível estudar-se Lógica com os me-
to escolhido para representar o plano das unidades lógicas ros recursos da linguagem comum, como o fez Aristóteles e o
constitui um sistema comunicacional, com suas dimensões fizeram tantos outros. Durante muitos séculos foi escasso o
sintática, semântica e pragmática. nível de formalização da linguagem dos lógicos. Leibnitz, pio-
A fim de que possa referir-se de modo apropriado aos neiramente, concebeu a possibilidade de uma Lógica inteira-
objetos ideais com que trabalha, faz-se preocupação constante mente formalizada, expondo as idéias fundamentais daquilo
que viria a ser hoje a chamada "Lógica Simbólica" ou "Lógica
da Lógica operar com o máximo de rigor. No capítulo "Lógica
Matemática". Os primeiros resultados concretos, porém, foram
dos predicados" (melhor seria "Lógica dos termos"), para
colhidos por A. de Morgan e G. Boole, seguindo-se os trabalhos
exemplificar, pretendendo ocupar-se da compostura interna
de C. S. Peirce, G. Frege, G. Peano, A. N. Whitehead e B. Rus-
da proposição, o lógico detém-se no estudo do termo sujeito,
sel, que construíram sistemas totalmente desvinculados da
do termo predicado, da cópula apofântica, dos quantificadores,
linguagem idiomática. Com efeito, a substituição de certos
sugerindo uma convenção sígnica em que as unidades simbó- nomes por símbolos de variáveis já denuncia algum grau de
licas, não podendo ser ambíguas, pois a linguagem há de ser formalização, como no exemplo "X" vende o bem imóvel para
precisa, venham a ter uma e somente uma significação. Ima- "Y". Entretanto, dizemos que a linguagem estará plenamente
ginemos um acontecimento comunicativo do falar comum: formalizada quando lograrmos substituir todas as palavras do
"João ajuda seu pai". "Pai", nesta frase, denota um termo, está discurso por símbolos lógicos. Eis um caso: [(p-q) . p] q,
no lugar do nome de pessoa, de um substantivo próprio. En- da Lógica Proposicional Alética, em que "p" e "q" são variáveis
tretanto, quando dizemos "Antonio é pai de João", a palavra de proposição, "-->" e "." são símbolos de constantes (conectivos
"pai" é o nome de uma relação: "ser pai de", que tem como condicional e conjuntor) e "H" e "()"são símbolos auxiliares.
seus termos "Antonio" e "João". No primeiro enunciado, a
Não é preciso ressaltar que a adoção de signos que repre-
palavra "pai" está no papel sintático de substantivo próprio,
sentem as formas lógicas facilita sobremaneira a elaboração dos
enquanto que no segundo participa como predicado diádico
cálculos (de predicados, de proposições, de relações), por permi-
ou "relação" entre dois nomes de pessoas. Pois bem, esta am-
tir tábuas combinatórias ricas e sofisticadas, abrindo espaço para
biguidade, que muitas vezes abre caminho para a falácia do a criação de sistemas aptos para descrever as variadas e comple-
equívoco, é algo que se pode considerar ínsito às linguagens xas situações do mundo. Para além do interesse teórico que pos-
idiomáticas, muito mais intensamente, é claro, na comunicação sa suscitar, a matematização da Lógica é a responsável direta por
ordinária e muito menos nos discursos científicos, dada a arti- grandes e relevantes conquistas do nosso tempo, especialmente
ficialidade com que estes últimos são construídos. Para elimi- no campo da informática, com o projeto e aperfeiçoamento de
nar esse e outros problemas que perturbam o fenômeno comu- circuitos digitais ("hardware"), desenvolvimento de programas
nicacional, imprimindo rigidez e determinação às mensagens, ("software") e toda a gama de contribuições que a computação
bem como para outorgar presteza e agilidade à combinatória eletrônica vem exibindo nas sociedades modernas.
entre as formas lógicas dos diversos sistemas, é que a simboli-
zação da linguagem se apresenta como um passo decisivo.
2.4.2. As variáveis e as constantes da Lógica Proposicional
Substituem-se as palavras por meio de letras, números ou si-
Alética
nais, mas sempre de modo arbitrário, segundo as preferências
de quem os escolhe. O requisito indispensável repousa na uni- Entende-se por Lógica Proposicional Alética o capítulo
vocidade tão-somente. da Lógica da Linguagem Descritiva de situações objetivas,
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

também conhecida por "Lógica Apofântica", "Lógica Clás- "Una fórmula está siempre compuesta, en forma exclusiva,
sica", "Lógica Menor" ou "Lógica Formal", que tem como por los signos apuntados, que constituyen — por así decirlo
— su elenco estable. Ningún actor ajeno a la compaffla pue-
objeto o estudo das proposições consideradas como tais, vale
de introducirse en la función... Que variables, conectivas y
dizer, enquanto proposições, analisando-as na relação com signos auxiliares formen el elenco estable del teatro lógico
outras proposições e sem se preocupar com sua estrutura no implica que todos ellos deban estar siempre en escena:
interna. Trata-se de uma Lógica bivalente: seus valores são bastará con que haya, por lo menos una variable."
o verdadeiro "V" e o falso "F", daí o adjetivo "alética", que
vem do grego - "Alethéa" - e significa "verdade". Na condi- As variáveis proposicionais são símbolos que representam
ção de linguagem formalizada que modernamente é, opera uma proposição qualquer, a proposição em geral, e que podem
com fórmulas (atômicas e moleculares), havendo regras de ser substituídas, no instante em que quisermos, por uma dada
construção e de transformação que permitem o chamado proposição, concretamente especificada. Alguns autores pre-
"cálculo de proposições". A esquematização formal em que ferem chamá-las de "letras esquemáticas" ou "letras senten-
são expressas as fórmulas presta-se para mostrar, desde ciais", mas insistamos na advertência de que as proposições
logo, uma série de afirmações da Ciência Lógica, antecipan- com as quais substituiremos as variáveis proposicionais, letras
do-se à própria verificação empírica, para ensejar o asserto esquemáticas ou letras sentenciais, que fazem agora os nossos
sobre a verdade ou falsidade dos enunciados proposicionais. cuidados, são exclusivamente as correspondentes a enunciados
A atenta leitura de certas fórmulas já autoriza afirmarmos descritivos de situações objetivas. Os símbolos de variáveis da
o seu caráter de verdadeira (tautologias) ou de falsa (con- Lógica Proposicional, por significarem uma proposição qual-
tradições). quer, conservam esse mínimo semântico, sem o qual não seriam
Na linguagem de que tratamos haverá símbolos de vari- signos. Não devemos confundir, portanto, a variável proposi-
áveis e símbolos de constantes; os primeiros estão no lugar das cional, que é um lugar sintático, com a proposição concreta
proposições e os últimos representam as conexões entre pro- que, porventura, venha a preencher aquele espaço lógico. Esta
posições. Além disso, no sistema notacional que viremos a pode manifestar-se, verbalmente, pela sentença que bem en-
adotar, há os chamados "símbolos auxiliares", que colaboram tendermos, desde que seja declarativa ou indicativa de uma
no sentido de evitar dificuldades quanto à leitura e interpreta- situação objetiva. Todavia, se tivermos duas ou mais variáveis
ção das expressões formais. Nem sempre, porém, estarão todos proposicionais, a interpretação que dermos a uma das variáveis
os tipos sígnicos mencionados compondo uma única fórmula. será restritiva das demais, ou seja, posso atribuir a "p" um
Aprenderemos, a seguir, que uma variável proposicional, iso- significado qualquer; do mesmo modo a "q". Mas, quando es-
ladamente considerada, já consubstancia uma fórmula e que colher a sentença de "q", terei que excluir aquela primeira,
os símbolos auxiliares são recomendáveis apenas quando hou- outorgada a "p". Ao menos dentro da mesma sequência dis-
ver possibilidade de dúvidas, em face de leituras diferentes. cursiva, pois num segundo momento estarei livre novamente,
para eleger o conteúdo dos enunciados, de tal modo que o
São elucidativas, por isso mesmo, as palavras de Echave, espaço sintático de "p" pode ser empregado para abrigar outra
56
Urquijo e Guibourg : forma descritiva de significação determinada.
Função proposicional é um enunciado que, tendo a estru-
56. Lógica, proposición y norma, Bueno Aires, Astrea, 1981, p. 43. tura sintática de proposição, não se apresenta completa e

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conserva certo grau de indeterminação. Como nem todos os do alfabeto: p, q, r, s, t, etc., acrescentando-lhes aspas simples,
seus termos estão especificados, não há como promover o tes- segundo as necessidades de variação simbólica. Assim, p e p',
te empírico e submetê-la aos valores "verdadeiro" e "falso". q e q', r e r', que lemos "p" e "p-linha", "q" e "q-linha", "r" e
Nada obstante, por revestir a forma sintática inerente às pro- "r-linha".
posições, bastará substituirmos a variável ou as variáveis por As constantes da Lógica Proposicional Apofântica são os
constantes, recolhidas no domínio próprio, para que a expres- conectivos, partículas que cumprem a função operatória de
são se converta em entidade proposicional. Quem enunciar: "o associar as variáveis de proposição para formar estruturas mais
número X é divisível por 3" não estará formulando uma pro- complexas. São em números de 6 (seis): o negador, o conjuntor,
posição. Impossível seria comprovar seu teor de verdade ou de o disjuntor includente, o disjuntor excludente, o condicional
falsidade. Porém, desde que venhamos a trocar "X" pelo nú- ou implicador e o bicondicional ou bi-implicador. O primeiro,
mero 65, imediatamente aquela organização sintática se trans- negador, é monádico, uma vez que atua exclusivamente sobre
forma em proposição, oferecendo ensejo a que lhe prediquemos a fórmula que está à sua direita. Os demais são diádicos ou
o valor falsidade. Igualmente, teremos proposição se o número binários, porquanto unem duas fórmulas, exercendo sobre
consignado for 18, momento em que seu valor lógico será o ambas sua influência sintática. Os conectivos são conhecidos
verdadeiro. também como "conectivos extensionais", "constantes lógicas",
"operadores" ou "functores" e seu papel não apenas se cir-
A idéia de função nasceu na Matemática moderna, junta-
cunscreve a afetar uma fórmula (operadores monádicos) ou
mente com a poderosa noção de variável. Vimos que no enun-
unir fórmulas - uma à direita, outra à esquerda - como no caso
ciado "S é P", "S" e "P" são variáveis (categoremas, na termi-
dos functores diádicos: deles depende o valor lógico das estru-
nologia clássica), enquanto o "é" apofântico aparece como
turas formais, daí a locução "conectivos extensionais".
constante (sincategorema). Uma relação "R" é funcional, ou
simplesmente "função", sempre que a todo elemento "Y" cor- De fato, o valor verdade ou falsidade que venhamos a
responda um elemento "X", tal que "xRy". Por outro giro, se extrair de uma formação lógica bem construída está na estrita
"xRy" e "zRy", então "x-z". Chamam-se "valores do argumen- dependência do tipo de conectivo que aproxima os termos da
to" os objetos que ocupam o lugar sintático de sucessor, tendo composição. Além de inverter o valor da fórmula a que se liga
em vista a relação "R", e "valores em função" aos predecesso- (sempre pelo lado esquerdo), que é propriedade do negador,
res do mesmo vínculo ("xRy"). Num exemplo da Matemática, os demais operadores (diádicos) combinam de certa maneira
se uma variável "x" tem seu valor dependente de outra variá- os valores das expressões componentes, de tal sorte que in-
vel "y", de forma que "x = 2y", é evidente que o valor de "x" fluem, decisivamente, no resultado final, como teremos a
está ligado ao valor de "y", de tal maneira que vale o asserto oportunidade de conhecer ao examinarmos as peculiaridades
segundo o qual "x é função de y", ou, em linguagem formal de cada um, mediante observação atenta das respectivas tabe-
"x = f(y)". Saliente-se, contudo, que nem toda relação entre las de casos possíveis (que alguns autores preferem chamar de
variáveis constitui uma função: em "ser maior do que", não temos "tabelas de verdade").
relação funcional, pois para cada valor de "y" haverá um núme- Há muitas notações para representar as constantes lógi-
ro infinito de valores de "x", satisfazendo a relação "x > y". cas. O negador, por exemplo, manifesta-se por meio dos se-
A convenção mais difundida para signos de variáveis é guintes símbolos: "-", "-", ou " --
p"" (afetando aqui a variável "p"
aquela que os representa por consoantes minúsculas do final por cima e não pela esquerda); o conjuntor, por ".", "A", ou por

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"&"; o disjuntor includente, por "v"; o disjuntor excludente susceptível de duas traduções: x+(y.z) e (x+y).z. Há quem uti-
por "É" ou "w"; o condicional, por " " ou por "o"; o bicondi- lize tão-só os parênteses "( )", justapondo-os nos casos em que
cional, por "n" ou " < - > "ou ainda por "<-÷". Todos esses símbo- a leitura das expressões requer.
los dizem respeito ao sistema notacional de B. Russel conhe-
cido como "notação inglesa". Muito difundido, também, é o 2.4.3. Cálculo proposicional
sistema polaco, proposto por Lukasiewicz, que tem a particu-
laridade de empregar somente letras do alfabeto, de tal modo Fórmula é uma expressão lógica bem construída, com-
que dispensa a utilização dos símbolos auxiliares. Outros exis- posta por apenas um ou por mais símbolos, dentre aqueles
tem, contudo. relacionados no sistema notacional escolhido. Dizer-se que a
Tanto os símbolos de variáveis quanto os de conectivos fórmula é uma expressão lógica bem construída significa ad-
são conceitos fundantes da Lógica Proposicional Alética. A mitir que foi formada em estrita observância às corresponden-
partir deles, e com auxílio de regras de inferência, chegaremos tes regras de construção. São elas:
aos conceitos derivados, exaurindo o sistema.
R1) Uma variável proposicional, isoladamente considerada,
Façamos a comparação: é uma fórmula. Exemplos: "p", "q", "r", etc.
R2) Se antepusermos o negador a uma fórmula constituída
por uma variável proposicional, teremos outra fórmula.
Notação Polaca Notação Inglesa Exemplos: "-p", "-q", -r", etc.
" Np,' 44_,, , 44 ,__,,, , 441399 R3) Uma fórmula ligada a outra fórmula por um, e somente
ou
Negador
um operador diádico, é também uma fórmula. Exemplos:
,, Kpq,,
".", 4, A ,, ou "&" Conjuntor 9 9
“pve 4413„(49, “pE,, q) {4.p.(199, 44i9 >... cf 4134 , 41(w > q) . 14. > q” ,
"Apc , ,, v ,, "(p--.Eq)-(p->q).(q->p)", etc.
Disjuntor includente
"Jpq,, 44 ,, 44 w f,
ou
Disjuntor excludente
Os símbolos auxiliares exercem papel importante para a
44 C pq ff 44_ > ,,, 44_,) 44 D ,,
identificação das expressões formadas na conformidade de R3,
ou
Condicional
" Epq ,, ,,=,, porquanto os conjuntos encerrados entre parênteses, entre
4 ff
"< - >" Bicondicional
colchetes, entre chaves e entre barras, representam uma única
fórmula. A propósito, vê-se que existem, no último exemplo,
Adotaremos o sistema notacional inglês, na primeira de sete fórmulas. Ei-las: a) "p", b) "q", c) "(paq)", d) "(p-> q)", e)
suas variantes: "-" ".", "v", "É" "->" e "(q->p)",f) "(p-> q).(q->p)" e a expressão final que decompõe
o bicondicional: g) "(pci) --(p-> q).(q-> p)".
Como símbolos auxiliares, vamos utilizar os parênteses
"( )", os colchetes "[ ]", as chaves "{ }" e as barras "11". Exa- Nominaremos de fórmulas atômicas aquelas construídas
tamente nessa sequência. Tais pares de sinais gráficos aten- em consonância com R1, vale dizer, uma variável isoladamen-
dem ao objetivo de esclarecer os conectivos dominantes, te considerada. Todas as demais serão moleculares, incluindo-
sendo empregados para indicar grupamentos simbólicos que se a formada de acordo com R2, ou seja, uma única variável
evitem a dualidade de interpretações, com o mesmo efeito da proposicional precedida do operador monádico. A fórmula
linguagem da Álgebra. Assim, a expressão algébrica x+y. z é atômica é também conhecida por "simples", sendo "complexa"

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a molecular. Os termos vêm da Química, na qual os símbolos das que devemos seguir para a movimentação de suas estruturas,
moléculas são obtidos por associações de símbolos de átomos, que atingindo unidades formalmente diferentes, integram o nível
são originários ou primitivos e, portanto, indecomponíveis. da Metalógica, isto é, da linguagem que fala da Lógica, não
Reiteremos a afirmação mediante a qual o valor lógico da devendo confundir-se com as tautologias em que estas leis se
fórmula molecular é uma função do valor das fórmulas atômi- manifestam. São estratos de linguagem de hierarquias diferen-
cas que a compõem, tomando-se como referência o conectivo tes: as fórmulas tautológicas, na posição de linguagem-objeto
empregado. Em outras palavras, uma fórmula complexa será e as regras de inferência, como metalinguagem. Cabe aqui a
verdadeira ou falsa na dependência da verdade ou da falsidade analogia com os manuais de instrução para o bom uso de cer-
das fórmulas simples que nela se integram, mais a consideração tos bens, como automóveis e eletrodomésticos em geral, em
do operador lógico presente. que fica patente a diferença entre o objeto adquirido que, no
caso, não se manifesta como linguagem, e o corpo de normas
Cálculo de um sistema é o conjunto das relações possíveis de procedimento, dele inteiramente distinto.
entre as unidades que o compõem. Tratando-se de um sistema
lógico-proposicional, em que as unidades são expressões sim- Ao converter um dado sistema em objeto de nossa análi-
bólicas chamadas de "fórmulas" (atômicas ou moleculares), se, vemos que é construído por conceitos primitivos e por outros
seu cálculo será representado pelo conjunto das relações pos- conceitos obtidos dos primeiros por derivação, daí chamarem-
síveis entre as fórmulas desse sistema. Assim, fala-se em se "conceitos derivados". O procedimento de derivação é re-
"cálculo de predicados", "cálculo de quantificadores", "cálcu- gulado pelas regras de inferência que, rigorosamente, não
lo de classes", "cálculo proposicional", etc., tudo com referên- pertencem ao sistema, integrando linguagem de sobrenível.
cia ao conjunto das relações que se podem extrair entre os No plano considerado, teremos apenas conceitos primitivos e
predicados, entre os quantificadores, entre as classes, entre as conceitos derivados ou proposições axiomáticas e proposições
proposições de um sistema considerado. teoremáticas.

Ora, dado que o sistema com que operamos é o proposi- Três são as regras de inferência: a) a substituição simples;
cional, formado por elementos que são as fórmulas simples e b) o intercâmbio; e c) o modus ponens (ou regra de separação).
complexas a que nos referimos para apuração do cálculo desse Pela substituição simples, permite-se trocar uma variável
sistema, é preciso conhecer as regras sintáticas de construção qualquer por outra variável ou por uma fórmula molecular,
e de transformação daquelas fórmulas. As regras de construção sem que se altere o valor lógico da expressão. Entretanto, a
já foram examinadas; cabe-nos, então, indagar de que modo substituição há de operar-se em todas as aparições da variável.
aquelas unidades lógicas se modificam, movimentando as es-
truturas: são as regras de transformação, ou de demonstração, Vejamos estes dois exemplos:
também conhecidas como "regras de inferência" e que expri-
(p v q) - (-p . -q)
mem a maneira como é possível transitar, validamente, de uma
(s v q) = - (-s . -q)
fórmula a outra, mais ou menos complexa, mantendo-se rigo-
rosamente dentro do sistema. Dito de outro modo, são instru- substituição da variável "p" pela variável "s".
ções que nos permitem transformar dada proposição em novas (p v q) - (-p . q)
proposições também verdadeiras. Como tais regras falam da [(r = s) v q] = - [- (r = s). q]
linguagem formalizada da Lógica, indicando os procedimentos substituição da variável "p" pela fórmula molecular (r = s).

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Já o intercâmbio autoriza a permuta de toda e qualquer proposicional, vamos encontrar nomes de indivíduos (de pes-
fórmula por outra, desde que lhe seja equivalente. Ao passo soas ou de objetos) e outras palavras ou expressões que desig-
que a substituição simples, quando realizada numa variável, nam qualidades (propriedades) atribuídas aos nomes. Além
pressupõe a necessidade de implementá-la em todas as apari- disso, em alguns casos, em vez de propriedades ligadas aos
ções dessa variável, no intercâmbio, a substituição pode operar- nomes, temos uma relação entre indivíduos. São duas as formas
se apenas uma vez, segundo o interesse de quem exercita. Na do predicado: aparece como (i) característica ou propriedade
fórmula tautológica: [(p -> q) . (q -> r)] -> (p -> r), conhecida conferida a um indivíduo; ou (ii) à maneira de uma relação que
como "transitividade do condicional", podemos promover o vincula dois ou mais indivíduos. Atinemos para os exemplos:
intercâmbio de "(p -> q)" por "(-p v q)", dada a equivalência
entre as duas expressões simbólicas: "(p -> q) (-p v q)". E, 1. Pierce era americano.
mesmo que houvesse outras manifestações da fórmula inter- 2. Cabral foi um grande descobridor.
cambiada, a substituição seria opcional: ou promovemos o
3. Sócrates foi mestre de Platão.
intercâmbio em uma só aparição, ou o fazemos em algumas
delas, ou, finalmente, em todas. Nisso se distingue da substi- 4. Três é maior do que dois.
tuição pura e simples.
5. Rodolfo prefere o esporte aos estudos.
No modus ponens, ou regra de separação, se admitirmos
6. Na lista dos aprovados, Otávio esteve abaixo de Júlio,
um condicional "(p -> q)" como verdadeiro, e afirmarmos a
Pedro e Augusto.
verdade do antecedente "p", necessariamente teremos que
reconhecer a verdade do consequente "q" (o antecedente é 7. Considerando-se os dez primeiros números inteiros, 6
condição suficiente do consequente). Diz-se também "regra de é menor que 7, 8, 9 e 10.
separação" porque este raciocínio "afasta", "isola", "separa" o
consequente da fórmula molecular "(p -> q)". Em todos eles, sem contar com os nomes, as demais pa-
lavras ou expressões cumprem o papel de predicados. Nos
Se as regras de substituição e de intercâmbio representam exemplos 1 e 2, os predicados guardam a forma de qualidades,
procedimentos auxiliares para a movimentação das estruturas características ou propriedades que reconhecemos aos indiví-
do cálculo proposicional, o princípio do modus ponens, transi- duos (no caso, pessoas) Pierce e Cabral. Nos enunciados sub-
tando das premissas para a conclusão do pensamento, pode
sequentes (3, 4, 5, 6 e 7), aquilo que encontramos é uma relação:
ser qualificado de raciocínio dedutivo por excelência.
entre dois nomes de pessoas, como em 3; entre dois nomes de
As chamadas "regras de inferência" são, em rigor, proce- números, como em 4; entre três nomes, sendo um de pessoas
dimentos de demonstração, preceitos de como conduzir as e dois de atividade, como em 5; entre quatro nomes de pessoas,
provas neste campo do conhecimento formal. como em 6; e, finalmente, entre cinco nomes de números, tal
como em 7. Isso nos permite afirmar que os predicados são
2.5. TEORIA DAS RELAÇÕES monádicos (quando se referem, isoladamente, a um indivíduo)
ou poliádicos (quando vinculam dois ou mais indivíduos). Vê-
Càrnap utilizou "predicado" para indicar o símbolo de se, então, nos mencionados exemplos, que em 1 e 2 os predi-
propriedades ou de relação atribuíveis a um indivíduo. Expos- cados são monádicos; em 3 e 4 são diádicos (ou binários); em
to de modo distinto, na composição interior de um enunciado 5 o predicado é triádico; em 6 é tetrádico; e em 7 é pentádico.

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Em face do que foi dito, portanto, é intuitivo perceber que do cálculo proposicional, negamos aquela relação: "-(xRy)",
o tema "Teoria das Relações" nada mais é que um subcapítulo que significa afirmar a inexistência da relação R entre os ob-
da Lógica dos Predicados ou mesmo "Lógica dos Predicados jetos x e y.
Poliádicos". Trata-se de uma parte importantíssima da Lógica
A variável de objeto "x" ocupa o tópico de predecessor da
e seu desenvolvimento inicial é atribuído a A. de Morgan e a
relação "R". A outra variável de objeto "y" figura na posição
Charles S. Peirce, principalmente no que diz respeito ao cha-
de sucessor. Diremos, assim, que todo o objeto que tenha rela-
mado "Cálculo de Relações". Lembremo-nos que em todo o
ção "R" com algum objeto "y" é um predecessor com respeito
segmento do saber científico, seja ele qual for, encontramos a
à relação "R"; igualmente, todo o objeto "y" para o qual exista
descrição de relações entre os mais variados entes, físicos, um objeto "x" tal que "xRy" é um sucessor com respeito à re-
ideais, culturais ou metafísicos, e que o "substractum" desses lação "R". Para designar esta posição sintática, os lógicos em-
vínculos há de ser conhecido no plano dos estudos lógicos. De pregam também os termos "anterior" e "posterior"; região
fato, tanto as relações matemáticas, químicas, biológicas, fisio- anterior e região posterior; bem como região esquerda e região
lógicas, quanto as relações históricas, antropológicas, psicoló- direita.
gicas, sociológicas, éticas e jurídicas hão de ser colhidas, nos
seus fundamentos últimos, no domínio da Lógica dos Predica- A classe de todos os predecessores, tendo em vista a re-
dos Poliádicos ou, o que é a mesma coisa, no âmbito da Teoria lação "R", é chamada de domínio e a classe de todos os suces-
das Relações. Eis um dos motivos pelos quais a Lógica é con- sores, de contradomínio ou de domínio recíproco da relação
siderada como a base de todas as outras ciências, seja pela "R". No vínculo de paternidade, por exemplo, a coleção de
circunstância de que em cada raciocínio que empregamos todos os pais forma o domínio, enquanto a dos filhos, seu con-
estão presentes conceitos no universo da Lógica, seja porque tradomínio ou domínio recíproco. Tomando-se como referência
toda inferência, para ser correta, há de conformar-se aos câ- a relação jurídica de venda e compra, todos os vendedores
integrarão seu domínio e todos os compradores, seu contrado-
nones dessa disciplina.
mínio, já que os primeiros ocupam o lugar de predecessores
ou anteriores, ao mesmo tempo em que os últimos estão no
2.5.1. Simbolização: relações de primeira ordem e relações de tópico de sucessores ou posteriores.
segunda ordem Existem relações de diversas ordens. Relações de primei-
A representação das variáveis e constantes lógicas me- ra ordem são aquelas que ocorrem entre nomes de indivíduos
diante símbolos arbitrariamente convencionados é um dos ou de objetos, ao passo que as relações de segunda ordem en-
laçam não indivíduos ou objetos, mas classes ou relações de
mais significativos traços da Lógica atual, conhecida por isso
primeira ordem, isto é, são relações que se estabelecem entre
como Lógica Simbólica ou Lógica Matemática. Adotemos,
relações. O critério é idêntico para falarmos de relações de
pois, as letras maiúsculas "R", "5", ..., para simbolizar relações
terceira, quarta ou enésima ordem. Vezes há, contudo, em que
e as minúsculas "x", "y", ..., para denotar as variáveis de no-
nos deparamos com relações mistas, nas quais figura um nome
mes de indivíduos ou de objetos, mais simplesmente, variáveis
de indivíduo na região anterior (predecessor) e uma classe de
de objetos.
indivíduos na região posterior (sucessor). Para os objetivos
Teremos, então, "xRy" no lugar do enunciado "o objeto x deste estudo, porém, lidaremos mais frequentemente com
tem a relação R com o objeto y". Da mesma forma, mas agora relações de primeira ordem, em que tanto predecessores como
com a utilização do negador ("-"), símbolo que já conhecemos sucessores são nomes de indivíduos.
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

2.5.2. As propriedades, as funções e as qualidades das relações vínculo figura no plano das relações pluriunívocas ou posterior-
unívocas, considerando-se que, na hipótese, vários "x" podem
Dada a relação - "xRy" - notamos que pode estar cons- ser esposas de um único "y".
truída de tal modo que a um "x" corresponda um único "y"; a
"x" correspondam vários "y"; a um "y", vários "x"; ou a vários Finalmente, há relações que são pluriplurívocas porquan-
"x" correspondam vários "y". Exemplifiquemos. Na relação de to vários nomes podem assumir o espaço da região anterior, o
paternidade, expressa simbolicamente por xRy, podemos enun- mesmo sucedendo com o lugar de sucessor. São exemplos:
ciar: "x é pai de y". Um pai pode ter vários filhos, todavia, um
conhecido de
filho terá somente um pai.
x amigo de y
,
y colega de
y 99
x
y999 Nelas, são diversos os nomes aptos para figurar no pólo
de predecessor ou no posto de sucessor. Teríamos:
Relações como essa denominamos uni-plurívocas (porque
há um só nome na região anterior e vários na posterior). Cha- x' y,
mam-na, também, de anterior-unívoca (pois o nome que está
na posição de predecessor é único). No campo da Matemática,
x" y ,,
esta categoria assume extraordinária importância e é conhe-
cida como relação funcional ou, simplesmente, função. Reco-
y9
nhecemo-la sempre que a todo objeto "y" corresponder um x'"
único objeto "x", tal que "xRy". A relação "x é pai de y" é tipi-
camente uma relação funcional, visto que para toda pessoa "y" Cumpre advertir que nem toda relação é uma função. Este
existe unicamente outra pessoa "x", que é pai de "y". último termo tem sentido mais restrito, aplicando-se apenas
Na relação conversa, isto é, "yRx", ou "y é filho de x", às relações uni-plurívocas e às uni-unívocas ou biunívocas.
temos um vínculo pluriunívoco ou posterior-unívoco, consoan- Três características são particularmente relevantes para
te queiramos salientar o perfil total da relação, ou vê-la apenas
a teoria das relações. Vamos examiná-las:
por um dos lados.

a) Reflexividade
y,
y99 Diz-se que uma relação é reflexiva se o nome do indivíduo
x
inscrito no predecessor, ou no sucessor, estiver em correspon-
y ,,,
dência com ele próprio. Dito de outra maneira, sempre que a
relação for universalmente válida com anteriores e posteriores
Dé outra parte, a relação "x é esposa de y" é unívoca, tam- idênticos. A classe das relações reflexivas é o conjunto total dos
bém conhecida como função biunívoca (Matemática), ao menos vínculos que existem entre uma coisa e a mesma coisa, por
na concepção cristã de matrimônio. Entre os maometanos, esse força da identidade dos termos neles atrelados. Utilizando a
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

simbologia, teremos: "xRx". São exemplos de relações reflexi- modificação, ressalvado o caso das relações simétricas, altera-se
vas: a igualdade, a congruência e a equivalência. Aliás, nesses o vínculo. Observamos alguns exemplos desse paralelismo:
casos, a reflexividade é total, porque tais relações são sempre
reflexivas. Em contraparte, há vínculos que nunca podem ser
reflexivos, configurando-se, por via de consequência, como Relação original Relação conversa
irreflexivos. São todos aqueles em que se torna impossível que
o mesmo nome ocupe o espaço de predecessor e sucessor, no "x é maior do que y" "y é menor do que x"
âmbito da mesma relação. A título de exemplo, encontramos
inúmeras relações, tais como "maior que", "pai de", "ao norte "x é pai de y" "y é filho de x"
de", "mais velho que", "casado com", etc. Hipótese genuína de
relação irreflexiva é a jurídica, dado que ninguém pode estar, "x é marido de y" "y é mulher de x"
juridicamente, em relação consigo próprio. O direito pressupõe,
"x é professor de y" "y é aluno de x"
inexoravelmente, dois sujeitos distintos, no mínimo, como
imperativo de sua fundamental bilateralidade.
"x está ao norte de y" "y está ao sul de x"
Entre as relações reflexivas (que sempre o são) e as irre-
flexivas (que nunca poderão ser reflexivas), encontramos as
assim chamadas semi-reflexivas, as quais assumem por vezes Também no quadro de estudo das relações simétricas po-
um ou outro caráter, como em "elogiar", "quadrado de", "res- demos falar de uma categoria intermediária: as relações semi-
peitar", "estar satisfeito com", etc. "X" tanto pode elogiar "y", simétricas, que se apresentam ou não com as características
como "elogiar-se"; "4 é o quadrado de 2", mas "1 é o quadrado descritas, dependendo da situação. No exemplo "x ama y", este
de 1"; "x" pode respeitar "y", como pode, também, "respeitar- amor pode ser unilateral, assim como correspondido. Outro
se", "um pai pode estar satisfeito com o filho", porém pode, tanto acontece com "x aprende de y" ou "x coopera com y".
igualmente, "estar satisfeito consigo mesmo".
c) Transitividade
b) Simetria Uma relação é transitiva, numa classe K, se, para três
Uma relação é simétrica quando, se ocorre entre "x" e elementos quaisquer "x", "y" e "z" dessa classe, as condições
"y", também se dá entre "y" e "x". São simétricas as relações: "xRy" e "yRz" sempre implicam "xRz". Vimos, no cálculo pro-
"casada com", "vizinho de", "compatível com", "paralela a", e posicional, que a transitividade é uma das propriedades do
muitas outras. conectivo condicional, de sorte que "[(p->q).(q-r)]->(p-> r)]".
Aqui, as variáveis são proposições e não nomes de indivíduos.
Já empregamos, linhas acima, a expressão "relação con- Tomemos, no entanto, alguns exemplos da linguagem ordiná-
versa", sem defini-la. Vamos fazê-lo agora, para enfatizar a ria, envolvendo indivíduos. "Se um tigre é maior do que um
circunstância de que, numa relação simétrica, o objeto e seu gato e um gato é maior do que um rato, então o tigre é maior
converso são iguais. Relação conversa é aquela que se obtém do que o rato." "Se Artur é mais velho do que Pedro e Pedro é
pela inversão da ordem de sucessão de seus membros. Opera- mais velho do que José, então Artur é mais velho do que José."
se uma troca de posições, em que o sucessor passa ao tópico Vê -se que as relações "mais velho do que", "maior do que",
de predecessor e este assume o lugar do sucessor. Com tal "superior a", "preferível a" são transitivas.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

Nada obstante, relações há que nunca são transitivas, Salienta-se, aqui, a propriedade transitiva inerente à re-
como, por exemplo, "x é mãe de y" ou "y é pai de z". Nesses lação de identidade (iii).
casos, se "x" é mãe de "y" que é mãe de "z", então "x" é avó
"Se x =zey = z, então x = y"
de "z" e nunca "mãe de z". São denominadas, por isso, in-
transitivas. De acordo com esta formulação, se dois objetos são iguais
a um terceiro, então são iguais entre si (iv).
Entre umas e outras, porém, temos as relações semitran-
sitivas, como "ser amigo de", "conhecer", etc., as quais se Para concluir, registre-se que os termos "igualdade" e
apresentam ora como transitivas, ora como intransitivas, de- "identidade", sempre que utilizados no campo da Lógica, são
sinônimos.
pendendo das circunstâncias.

2.5.3. Sobre a relação de identidade 2.5.4. Cálculo das relações


Cálculo pode ser definido como o conjunto de relações
Entre os conceitos lógicos não pertencentes ao cálculo
entre os símbolos de um sistema. Tratando-se de assunto em
proposicional, como ensina Alfred Tarski, o de maior impor-
que os símbolos do sistema representam relações, teremos
tância é, provavelmente, o conceito de relação de identidade. então um conjunto de relações entre relações.
Sua definição foi formulada por G. W. Leibniz (1646-1716),
aproximadamente nestes termos: O cálculo de relações é uma parte do tema maior, a Teoria
das Relações. Seu objetivo principal é o estabelecimento de
"x = y se, e somente se, x tiver toda a propriedade que y leis formais que regem as operações por meio das quais se
tenha, e y tiver toda a propriedade que tenha x." constroem relações a partir de outras relações dadas.
A forma lógica é a do bicondicional (se, e somente se), como Comecemos por aludir a dois importantes conceitos des-
convém a uma definição bem composta. Nela, o sinal "=", que se cálculo: relação universal e relação nula.
se pretende definir, está empregado unicamente no definiendum,
não aparecendo no definiens, aspecto que a recomenda. (i) Relação universal
Tomando-a como ponto de partida, os lógicos deduziram A relação universal é aquela que vincula todo indivíduo
outras leis pertencentes à teoria da identidade, das quais as a todo indivíduo, dentro de determinado contexto. Mudando
mais importantes são as seguintes: as palavras, é a relação que se mantém entre quaisquer dos
indivíduos do conjunto universo. O símbolo que a exprime é
"Todo objeto é igual a si mesmo: x = x" "V". Isolando-se a classe dos advogados, a relação "ser colega
Esta lei (i), tal qual enunciada, chama a atenção para o de" está presente para qualquer par de seus membros. É exem-
caráter reflexivo da identidade. plo de relação universal, válida, naturalmente, dentro do men-
cionado universo de discurso.
"Se x = y, então y = x"
Qiier significar (ii) que a relação de identidade é simétri- (h) Relação nula
ca, sendo iguais, ela e sua conversa.
Relação nula ou vazia é aquela que nunca se estabelece
"Se x = y e y = z, então x = z" entre pares de indivíduos do conjunto tomado como universo
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de referência. Só existiria entre termos que não possuem iden- (v) Inclusão de relações
tidade. Como a identidade é a relação que todo indivíduo man- Uma relação está incluída em outra se, e somente se,
tém consigo mesmo, relação nula ou vazia é aquela que não se quando a primeira se instaurar entre dois indivíduos, então a
instala, no quadro, é claro, de determinado universo discursi- segunda, inevitavelmente, também ocorrerá. Exemplo de ope-
vo. Para o conjunto de indivíduos solteiros (na acepção restri- ração dessa natureza é a que se passa entre as relações "menor
ta da palavra), "ser casado com" é uma relação nula. Repre- que" e "maior que", ambas incluídas na relação "ser de distin-
senta-se assim: "A". to tamanho". Igualmente, "ser pai de", "ser filho de", "ser tio
de", "ser irmão de", todas se incluem na relação mais abran-
(iii) Complemento de uma relação gente "ser parente de". O símbolo próprio é "<-", também
utilizado na teoria de classes.
Complemento de uma relação R se define como a classe
de pares ordenados de indivíduos entre os quais não se dá essa (vi) Produto absoluto de relações
relação. Se R é a relação "estar casado com" (que se configura
Também conhecida por "intersecção de relações", esta
como a classe de todos os "x" e de todos os "y", tal que "x" está operação consiste na conjunção de duas relações dadas, ou seja,
casado com "y"), o complemento de "R" será R', ou seja, a na classe de todos os pares ordenados entre os quais se dá a
classe de todos os "x" e de todos os "y", tal que "x" não está primeira juntamente com a segunda. Exemplo: se R é a relação
casado com "y", ou ainda, a classe de todos os pares de indiví- "irmão de" e S a relação "maior que", o produto absoluto ou
duos entre os quais não se dá a relação matrimonial. produto lógico ou intersecção das duas relações será a terceira
(T), interpretada como "irmão maior de". Sua representação se
(iv) Soma ou união absoluta de relações faz pelo símbolo "n", à semelhança da teoria de classes.

Dadas as relações R e S, podemos dizer que a soma lógi- Se confrontarmos a soma lógica com o produto lógico das
ca ou união dessas relações é a classe de todos os pares orde- relações, veremos que, enquanto a soma segue o modelo formal
nados entre os quais se dá somente a primeira relação, ou do disjuntor, o produto acompanha o do conjuntor. Por isso,
em toda a intersecção de relações encontraremos, em lingua-
apenas a segunda, ou ainda ambas. O resultado, isto é, a soma
gem simbólica:
lógica, é uma nova relação. Se interpretarmos R como "irmão
de" e S como "irmã de", teremos a relação-soma, chamemo-la x (R)"S) y (xRy) . (xRy)
T, que está representada por "irmão e irmã de". A soma lógica
das relações "filho de", "neto de" e "bisneto de" será a relação (vii) Produto relativo de relações
"descendente". Tal qual se emprega na teoria das classes, a Produto relativo de R e S é a relação que se instaura entre
notação simbólica é "U". Assim: "RUS" significa a soma lógica todos os "x" e todos os "y", de maneira que haverá um "z" com
ou a união das relações R e S. Atente-se para a circunstância o qual "x" mantém a relação R e "y" mantém a relação S. Re-
de que a união de relações segue o modelo da disjunção, de tal presenta-se por "R/S". Por outro giro, afirmamos que se dá o
sorte que inclui os pares ordenados da primeira relação (R), produto relativo R/S entre dois indivíduos "x" e "y" se, e so-
mente se, existir um terceiro indivíduo - "z" -, tal que, simul-
ou da segunda (S), ou de ambas as relações (R e S). Enunciado
taneamente, "xRz" e "zSy". Figuremos um exemplo em que a
em linguagem simbólica, teríamos:
relação R é "ser marido de" e a relação S interpreta-se como
x (RUS) y E---- (xRy) v (xSy) "ser filha de". Neste caso, o produto relativo R/S se estabelece

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

entre "x" e "y" se houver uma terceira pessoas - "z" -, tal que Pai (sogro) Mãe (sogra)
"x é marido de z" e "z é filha de y".
Na hipótese, o produto relativo R/S indica a relação "ser
genro de".
Há uma diferença essencial entre o produto absoluto e o
produto relativo de relações. Ao passo que o primeiro se perfaz
com os indivíduos "x" e "y", exclusivamente, o segundo pressupõe Filha Marido Filho Mulher
um outro indivíduo, que ocupa a região posterior na relação R, e (genro) (nora)
a região anterior, na relação S. Esse terceiro elemento - "z" - per-
mite o aparecimento do produto relativo R/S, entre "x" e "y". O
elemento "z" não consta da relação final, pois esta vinculará ape- Nos produtos relativos de relações os "fatores" não são
nas "x" e "y"; todavia, intervém na produção do resultado, facili- passíveis de comutação. Assim, o irmão do pai é o tio, enquan-
tando o trânsito de "x" para se ligar a "y". Analisemos as seguin- to que o pai do irmão é o próprio pai. O marido da irmã é o
tes situações: "x é irmã de z" e "z é mãe de y", logo "x é a tia cunhado; pelo contrário, a irmã do marido é a cunhada. A mãe
materna de y" (produto relativo daquelas duas relações). Outro do marido é sogra, ao passo que o marido da mãe é o pai.
exemplo: suponhamos que se trate de definir a expressão relacio-
nal "x é o assassino do irmão de y". Vemos, de pronto, que há duas Vamos examinar, finalmente, a relação processual, aque-
relações: "ser assassino de" e "ser irmão de". De que forma com- la que se estabelece entre juiz, autor e réu. Consideramo-la
binar os dois vínculos? Tentemos operar com o produto absoluto. triádica, numa visão integral. Se isolarmos, porém, a relação
Obteremos: x(RnS)37 -=(xRy).(xSy), vale dizer, "x matou seu irmão", "autor/réu", saberemos que é o produto relativo de duas outras:
porque "x assassinou y" e "x é irmão de y". Conclui-se que o "autor/juiz" e "juiz/réu", atuando o magistrado, neste caso,
produto absoluto não serve para os objetivos daquela mensagem como elemento que possibilita o trânsito do autor, para se ligar
inicial. Na verdade, a questão se resolve pela operação chamada ao réu num vínculo jurídico-processual implícito. Vejamos:
"produto relativo", na qual se une "x" a "y", de tal arte que há um
"z" que "x" assassinou e que era irmão de "y". Juiz

(xRz) . (zSy)
O produto relativo de relações tem enorme aplicação na
vida prática e, por meio dele, conseguimos entender e explicar
uma série de relações tipicamente jurídicas. Utilizemos, agora,
alguns gráficos.
Pai Irmão (tio)
Autor Réu

(viii) Potências de uma relação


Do mesmo modo como podemos elevar um número ao
quadrado, também poderemos, mediante o produto relativo,
formar as potências de uma relação:
Filho (sobrinho)
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

Ri = R ( R = S) = (R' = S') (equivalência entre a igualdade de


relações e respectivas conversas).
R2 = R/R
R 3 = R 2/R
2.5.5. Aplicação da teoria das relações
Em geral,
A título elucidativo do que acabamos de expor sobre a
Rn = Rn 1/R
Teoria das Relações, vamos aos exemplos do domínio que nos
interessa, retomando os conceitos fundamentais da Ciência do
Para entender o que significa elevar uma relação a certa
potência, nada como considerar a relação "ser pai de": Direito dentro de uma concepção relacional.
Fato jurídico é a parte do suporte fáctico que o legislador,
R = ser pai de mediante a expedição de juízos valorativos, recortou do uni-
R' = ser pai de verso social para introduzir no mundo jurídico. Pontes de
Miranda" argumenta que o suporte factual, que está no mundo,
R 2 = ser avô de
R 3 = ser bisavô de "não entra, sempre, todo ele. As mais das vezes, despe-se
de aparências, de circunstâncias, de que o direito abstraiu;
R 4 = ser trisavô de e outras vezes se veste de aparências, de formalismo, ou se
reveste de certas circunstâncias, fisicamente estranhas a
R 5 = ser tetravô de
ele, para poder entrar no mundo jurídico. A própria morte
não é fato que entre nu, em sua rudeza, em sua definitivi-
(ix) Algumas leis da lógica das relações dade no mundo jurídico".

- -R = R (dupla negação aplicada à lógica das relações) Ao promover essas incisões no plano da realidade social,
R U S= S U R (comutatividade da soma das relações) o legislador tem de levar em conta a estrutura lógica da norma
que vai compor, uma vez que as descrições factuais serão as-
R n S= S n R (comutatividade do produto absoluto)
sociadas implicacionalmente a prescrições de conduta. Estará
RUSm-( -R n S) (lei de DE MORGAN para relações ) às voltas, então, com as combinações possíveis entre os ante-
cedentes e os consequentes de cada unidade, de tal sorte que
R n S = - (-R U -S) (lei de DE MORGAN para relações)
teremos as seguintes possibilidades: a) F' / R'; b) F' / R', R",
(R <- S) = ( -S <- -R) (contraposição da inclusão) R'"...; c) F', F", R'; d) F', F",F'".../ R', R" R'"... Equivale a
[(R <- S) . (-S <- -R)] -> (R <- T) (transitividade da inclusão) dizer, em linguagem desformalizada: a) um fato (F') pode estar
ligado a uma única relação jurídica (R'); b) o mesmo fato (F')
[(R/S)/T] [R/(S/T)] (associatividade do produto relativo) pode associar-se a dois ou mais vínculos jurídicos (R', R", R"'...);
(R<- S) -> [(T/R) <- (T/S)] (inclusão dos produtos relativos) c) dois ou mais fatos ( F', F", podem provocar a mesma
R': = R (a conversa da conversa é a própria relação)
(R <- S) = (R' <- S') (equivalência entre a inclusão de 57. Pontes de Miranda. Tratado de direito privado, 4a ed., Tomo I, São Paulo,
relações e respectivas conversas) Revista dos Tribunais, 1974, p. 20.

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relação (R'); e d) dois ou mais fatos (F', F", F"...) podem irradiar distintas: a da regra-matriz de direito ao crédito pelo valor do
duas ou mais relações de direito (R', R", R'"...). i mposto pago nas compras para o processo de industrialização
Já notamos que a Teoria das Relações (ou Lógica dos (N') e a da regra-matriz de incidência do IPI (N"). Esse exem-
Predicados Poliádicos) não admite outras junções, somente plo demonstra caso típico da possibilidade lógica d).
essas: a) um com um; b) um com vários; c) vários com um; e d) As bases da Teoria das Relações, explicadas acima, faci-
vários com vários. E o legislador, como todos os demais seres litam muito a compreensão dos institutos de direito de manei-
pensantes, será prisioneiro dessa combinatória formal. ra geral e, no caso, daqueles do direito tributário, impregnados
Bem sabemos, contudo, que o mesmo fato social pode pelo legislador de uma dificuldade operativa ímpar. Essa aná-
sofrer tantos cortes jurídico-conceptuais quanto o desejar a lise relacional demonstra de maneira formalizada a Lógica
autoridade que legisla, dando ensejo à incidência de normas Deôntica, como linguagem objeto, existente entre as unidades
jurídicas diferentes. Ao confluírem sobre a mesma base de sistêmicas desse universo axiológico que é o direito. A Lógica
incidência, as várias regras vão projetando, um a um, os dis- dos Predicados ou "Lógica dos Predicados Poliádicos" preo-
tintos fatos jurídicos, dos quais se irradiam as peculiares cupa-se em estudar esses cálculos de relações, uma vez que
eficácias. estrutura, como sobrelinguagem (apofântica) que é, de manei-
ra lógica e formal as frases normativas.
Se, desde já, quisermos transportar essas reflexões para
um caso concreto, cumpre verificar de pronto quais os tipos de Agora, aplicando-se essa teoria a uma situação concreta,
relações existentes na estrutura normativa daquele fato jurí- observa-se que ela traz soluções cognoscitivas imprescindíveis
dico que nos interessa. para a boa compreensão da subsunção que ocorre entre os
fatos jurídicos e as normas de direito.
Neste sentido, a fim de não deixar nenhuma dúvida sobre
o assunto, trago exemplo no âmbito do direito tributário. As- Neste sentido e no intuito de esclarecer quaisquer dúvidas,
sunto polêmico e muito atual é o que tange ao crédito-prêmio vale apresentar outra situação tributária. Citemos. Para saber
do IPI. A dúvida estaria na seguinte indagação: este crédito da incidência ou não de ICMS na atividade de transporte pres-
continuaria válido mesmo em casos em que há isenção tribu- tado por uma empresa brasileira que executa serviço de courier
tária sobre a atividade de industrialização tal qual ocorre na a uma empresa estrangeira, é fundamental atinar para a teoria
região de Manaus? Para a solução da dúvida, cumpre verificar das relações, tendo em vista que nos ajudará a definir, dentre
que, nestes casos, será possível perceber que não se trata, os tipos de relações e classes, onde aquele específico vínculo
apenas, de uma regra de direito, porquanto dois foram os cor- se enquadra. No exemplo mencionado, observadas as relações
tes conceptuais promovidos no suporte fáctico, como duas normativas possíveis, interessa-nos a "inclusão de relações".
foram as relações jurídicas que se propagaram pela ocorrência Uma relação está incluída em outra se, e somente se,
dos respectivos acontecimentos: a obrigação tributária e o instaurando-se a primeira entre dois indivíduos, a segunda,
58
vínculo no bojo do qual emergiu o direito ao crédito. Duas inevitavelmente, também ocorrer. Esclarece Helmut Seiffert
ocorrências do mundo físico-social, sendo uma de aquisição que a relação de classe inclusiva dá-se quando uma classe A
de insumos para o processo de industrialização (F') e outra contém totalmente uma classe B. Nesse caso, todo elemento
operação de compra e venda mercantil (F"), entre Manaus e
qualquer outro Estado, tendo por objeto produtos industrializa-
dos, abriram espaço para a percussão de duas normas jurídicas 58. Introdución a la lógica, Barcelona, Herder, 1977, pp. 78-79.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

de B é também elemento de A, uma vez que A inclui B. Sendo e dos quantificadores (universal e existencial). Os nomes são
assim, o serviço de transporte realizado por uma prestadora palavras tomadas voluntariamente para designar indivíduos e
de serviço de courier encontra-se incluso no serviço de trans- seus atributos, num determinado contexto de comunicação.
porte internacional. Isso porque a contratação do serviço de Ao mesmo tempo em que todos os nomes são nomes de alguma
transporte internacional consiste na coleta de documentos no coisa, real ou imaginária, nem todas as coisas têm nome priva-
domicílio do remetente, localizado no exterior, e sua entrega tivo. Algumas reivindicam designação distinta, em função da
ao destinatário, em território nacional. Todavia, para que essa sua individualidade, como acontece com as pessoas e com
prestação de serviço seja concretizada, é necessário outra re- certos lugares que se tornam famosos. Mas há objetos que não
lação, nela inclusa, consistente na subcontratação da empresa têm nome próprio, de tal maneira que, se for preciso indicá-los,
brasileira que prestará o serviço de courier em nome da em- empregam-se nomes gerais, aptos para abrangê-los em núme-
presa internacional, para finalizar esse serviço no país. Cha- ro indefinido. Com efeito, um nome geral é susceptível de ser
maremos, respectivamente, de empresa A e empresa B. Não aplicado, no mesmo sentido, a um número indefinido de coisas.
resta qualquer dúvida, por conseguinte, de que a relação con- Um nome geral denota uma classe de objetos que apre-
sistente em prestar serviço de transporte internacional, pela sentam o mesmo atributo. Neste sentido, "atributo" significa
empresa estrangeira B, é classe inclusiva, que contém, neces- a propriedade que certo objeto manifesta e todo nome, cuja
sariamente, a finalização do serviço pela empresa brasileira A. significação está constituída de atributos é, em potencial, o
Em consequência, estando a atividade da empresa A embutida nome de um número indefinido de objetos. Portanto, todo
naquela contratada com a empresa B, não pode dela ser disso- nome, geral ou individual, cria uma classe de objetos (de alguns
ciada. Trata-se, pois, de uma relação componente da prestação objetos, como no geral, ou de apenas um, como nos nomes
do serviço de transporte internacional. próprios). Um nome geral é introduzido no discurso em face
da necessidade de palavra que denote determinada classe de
Portanto, mesmo havendo subcontratação para transpor-
objetos e de seus atributos peculiares. Definamos, então, clas-
te em trecho interno, não se descaracteriza a relação de trans-
se como "a extensão de um conceito geral ou universal", na
porte internacional, não constituindo, o transbordo, nova
lição de Albert Menne 59 , lembrando que o nome individual tem
prestação de serviço. A subcontratação de parcela do serviço
o condão de exaurir seu universo, sendo, portanto, também
de transporte não implica quebra da unidade da operação, que universal. Ou, finalmente, como a relação dos nomes de objetos
é de natureza internacional. que satisfazem a função proposicional "f(x)".
São dois exemplos que ilustram a teoria das relações com Ao examinar a estrutura interna do enunciado, a Lógica
o pragmatismo da realização jurídico-tributária, comprovando dos Termos se ocupa, além da definição, das operações de
a seriedade e a aplicabilidade do estudo lógico-relacional. classificação e de divisão. Classificar é distribuir em classes, é
dividir os termos segundo a ordem da extensão ou, para dizer
2.6. TEORIA DAS CLASSES de modo mais preciso, é separar os objetos em classes de acor-
do com as semelhanças que entre eles existam, mantendo-os
A Lógica dos Predicados, ou Lógica dos Termos, como em posições fixas e exatamente determinadas em relação às
pensai :nos ser mais apropriado referir, compreende o estudo
da composição interna dos enunciados simples e, dentro deles,
a análise dos termos sujeito e predicado, da cópula apofântica 59. Introducción a la lógica, Madrid, Editorial Gredos, 1969, p. 140.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

demais classes. Os diversos grupos de uma classificação rece- Toda classe é susceptível de ser dividida em outras classes.
bem o nome de espécies e de gêneros, sendo que espécies É princípio fundamental em Lógica que a faculdade de esta-
designam os grupos contidos em um grupo mais extenso, en- belecer classes é ilimitada enquanto existir uma diferença,
quanto gênero é o grupo mais extenso que contém as espécies. pequena que seja, para ensejar a distinção. O número de clas-
A presença de atributos ou caracteres que distinguem deter- ses possíveis é, por conseguinte, infinito; e existem, de fato,
minada espécie de todas as demais espécies de um mesmo tantas classes quantos nomes, gerais e próprios. Porém, se
gênero denomina-se "diferença", ao passo que "diferença es- examinarmos, uma a uma, as classes assim formadas, como a
pecífica" é o nome que se dá ao conjunto das qualidades que dos contratos ou das plantas, a classe dos elementos químicos
se acrescentam ao gênero para a determinação da espécie, de ou dos planetas, e se considerarmos em que particularidade os
tal modo que é lícito enunciar: "a espécie é igual ao gênero indivíduos de uma classe diferem dos que a ela não pertencem,
mais a diferença específica (E = G + De)". Tomando o exemplo encontraremos sob esse aspecto uma diferença bastante nítida
da linha curva, podemos classificá-la em circunferência, elipse,
entre duas classes distintas.
parábola, hipérbole, espiral, etc. Se adicionarmos ao gênero
(linha curva) as diferenças peculiares a cada qual, teremos as Por outro lado, o expediente classificatório pode dar sen-
espécies anunciadas. Obviamente que as qualidades somente tido artificial a uma palavra em decorrência da necessidade
gerais não se prestam à divisão do gênero em espécies. técnica de uma Ciência particular. Isto porque cada gênero di-
Com efeito, o gênero compreende a espécie. Disto decor- fere dos outros, não necessariamente por um só atributo, senão
re que o gênero denota mais que a espécie ou é predicado de por número indefinido de atributos. A taxa, por exemplo, é es-
um número maior de indivíduos. Em contraponto, a espécie pécie do gênero tributo, tomando-se como critério de distinção
deve conotar mais que o gênero, pois, além de conotar todos a circunstância de sua hipótese de incidência abrigar sempre
os atributos que o gênero conota, apresenta um plus de cono- uma atuação do Estado, efetiva ou potencial, referida ao sujeito
tação que é, justamente, a diferença ou diferença especifica. passivo. Entretanto, outra é a característica segundo a qual, para
Daí por que estabelecer o significado de diferença como aqui- as taxas, não há falar-se em competências privativas.
lo que deve ser adicionado à conotação do gênero, para com- Realmente, não existem limites à liberdade de fazer clas-
pletar a conotação da espécie.
sificações que, no fundo, consubstancia-se em separar em
Nessa linha, os princípios que devem dirigir a classifica- classes, em grupos, formando subclasses, subdomínios, sub-
ção, como procedimento lógico, informam que não há nomes conjuntos. Ao sujeito do conhecimento é reservado o direito
que sejam exclusivamente gêneros ou apenas espécies. Tais de fundar a classe que lhe aprouver e segundo a particularida-
palavras são termos relativos, aplicados a certos predicados de que se mostrar mais conveniente aos seus propósitos. Res-
para explicar sua relação com dado sujeito. Desse modo, a salvemos, porém, que se a conveniência prática é motivo sufi-
classe que aparece como gênero relativamente à subclasse ou ciente para autorizar as principais demarcações de nossos
espécie que contém, pode ser, ela mesma, uma espécie em objetos, a fortiori devemos estar atentos para a correção do
relação a uma classe mais compreensiva (gênero superior). As processo de circunscrição, garantindo que os gêneros e as es-
normas individuais e concretas consubstanciam espécies de
pécies sejam, efetivamente, gêneros e espécies.
normas jurídicas; todavia, formam o gênero de que são espécies
as norrhas individuais e concretas veiculadas pelo Poder Judi- A operação que nos permite distinguir as espécies de um
ciário que, por sua vez, são o gênero com relação às individuais gênero dado é a divisão, assim entendido o expediente lógico
e concretas postas por sentenças. em virtude do qual a extensão do termo se distribui em classes,

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

com base em critério tomado por fundamento da divisão. Mas, são classes que exprimem gêneros ou espécies e, como tais,
evitemos a confusão entre dividir e desintegrar. Quando afir- passíveis de distribuição em outras classes, segundo, eviden-
mamos que "o ano tem 12 meses" ou que "o livro consta de dez temente, as diretrizes do critério escolhido para a divisão. Com
capítulos" estamos diante de procedimento chamado "desin- os recursos da classificação, o homem vai reordenando a rea-
tegração", que pode ser reconhecido na medida em que os lidade que o cerca, para aumentá-la ou para aprofundá-la
elementos desintegrados do todo não conservam seus traços consoante seus interesses e suas necessidades, numa atividade
básicos, não sendo possível, neles, perceber o conteúdo do sem fim, que jamais alcança o domínio total e a abrangência
conceito desintegrado. Um capítulo do livro não é o livro, assim plena. E salientamos esse caráter reordenador porque assim
como o mês não é o ano. Em contranota, quando dizemos que como a classificação pressupõe a existência de classe a ser
"seres vivos se dividem em animais e plantas", tanto podemos distribuída em subclasses, o aumento ou aprofundamento da
predicar dos animais a condição de seres vivos quanto das realidade, como algo constituído pela linguagem, antessupõe
plantas. também a afirmação da própria realidade enquanto tal.
Importa mencionar as regras que presidem a operação A Lógica reserva à temática da classificação um capítulo
de dividir que é, afinal de contas, o processo empregado para
inteiro, denominado Teoria das Classes, em que se estuda o
classificar os termos. A inobservância de tais preceitos provo-
conceito de classe e o quadro de suas propriedades gerais.
ca erros inevitáveis que maculam o raciocínio, comprometen- Como disciplina autônoma, foi criada e desenvolvida pelo ma-
do a manifestação do pensamento e prejudicando a comunica-
temático alemão G. Cantor (1845/1918), recebendo, nesse setor
ção entre as pessoas.
do conhecimento, o nome de "Teoria dos Conjuntos".
São elas: 1) A divisão há de ser proporcionada, significan-
Visto que todos os nomes são classes de elementos, inclu-
do dizer que a extensão do termo divisível há de ser igual à
sive os nomes individuais (domínios ou conjuntos formados
soma das extensões dos membros da divisão. 2) Há de funda-
por um único objeto), não só a comunicação cotidiana, com sua
mentar-se num único critério. 3) Os membros da divisão devem
linguagem livre e descomprometida, mas a Matemática, a Bo-
excluir-se mutuamente. 4) Deve fluir ininterruptamente, evi-
tânica, a Zoologia, a Sociologia, o Direito e todas as demais
tando aquilo que se chama "salto na divisão".
ciências lidam, necessária e insistentemente, com essas enti-
Cumpre advertir que a boa classificação depende não só dades. Ali onde houver linguagem, natural ou técnica, cientí-
do processo de bem dividir o termo, mas, antes disso, de ela- fica ou filosófica, haverá, certamente, classes e operações entre
borarmos uma definição adequada de seu conceito. E definir classes, com o aparecimento de gêneros, espécies e subespécies.
é operação lógica demarcatória dos limites, das fronteiras, dos Isso, em qualquer das regiões ônticas: seja a dos objetos natu-
lindes que isolam o campo de irradiação semântica de uma rais ou dos ideais; a dos metafísicos ou dos culturais. E frases
idéia, noção ou conceito. Com a definição, outorgamos à idéia como "o indivíduo x é elemento do conjunto C", "o objeto y
sua identidade, que há de ser respeitada do início ao fim do pertence à classe K" ou "o domínio D contém como elemento
discurso. o indivíduo z", são expressões que denunciam a presença des-
Ora, se dissemos e redissemos que nossa realidade é sa categoria formal que, em linguagem simbólica, escrevemos
constituída pela linguagem; que o mundo jurídico se estabele- "x E K" ("x está em K").
ce pela linguagem do direito; claro está que as unidades desses Dito isto, é imprescindível ter em mente - recordando -
sistemas sígnicos, em grande parte nomes, gerais e próprios, que as coisas não mudam de nome, nós é que mudamos o modo
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

de nomear as coisas. Portanto, não existem nomes verdadeiros O código-posição denota uma classe de mercadorias que
ou falsos das coisas. Apenas existem nomes aceitos, nomes apresentam o mesmo atributo e atributo é a propriedade que
rejeitados e nomes menos aceitos que outros, como nos ensina manifesta um dado objeto. Todo código cuja significação este-
ja constituída de atributos é, em potencial, o código de um
Ricardo Guibourg. Esta possibilidade de inventar nomes para
número indefinido de mercadorias. Portanto, todo código-po-
as coisas chama-se "liberdade de estipulação". Ao inventar
sição cria uma classe de objetos.
nomes (ou ao aceitar os já inventados), traçamos limites na
realidade, como se a cortássemos idealmente em pedaços e, ao Tomemos por exemplo a máscara utilizada na codificação
assinalar cada nome, identificássemos o pedaço que, segundo da tabela NBM/SH-TIPI:
nossa decisão, corresponderia a esse nome.
"XXXXXYZZzz"

2.6.1. Aplicabilidade prática: o sistema harmonizado de Três são as divisões: código-posição "XXXX", código
subposição "YY" e código-item/subitem "ZZzz". Cada uma das
designação e de codificação de mercadorias, a
letras representa um número. Assim, considerando que o sis-
nomenclatura brasileira e a tabela do imposto sobre tema numérico empregado seja o decimal e tratando-se de
produtos industrializados variáveis numéricas, é lícito concluir que:
O sistema harmonizado de designação e de codificação de 1 - o código-posição "XXXX" pode apresentar variação
mercadorias é conteúdo aprovado pela Convenção Internacional combinacional de 0000 até 9 999, isto é, 10 000 combinações
(Bruxelas, 14/06/83), à qual o Brasil aderiu em 31/10/86. Ela é a possíveis;
base da nomenclatura brasileira de mercadorias que, por sua 2 - o código subposição "YY" pode apresentar variação
vez, é a fonte da implantação da tabela de incidência do impos- combinacional de 00 até 99, ou seja, 100 combinações
to sobre produtos industrializados (TIPI). São, todas, classifica- possíveis; e
ções codificadas, isto é, expedientes artificiais que nos possibi-
3 - o código-item/subitem "ZZzz" pode apresentar varia-
litam repartir dado setor de objetos em subsetores específicos,
ção combinacional de 0000 até 9 999, isto é, 10 000 combi-
consoante determinado critério, fixando-se para cada classe não
nações possíveis.
um nome, mas um número ou um código alfanumérico.
Revestindo o caráter artificial de todas as classificações, Infere-se, ainda, da ordem das variáveis de grupo, o
a que estrutura a tabela de incidência do IPI criou uma outra seguinte:
realidade, reordenando a até então existente. Cada código 4 - o código-posição "XXXX" descreve 10 000 gêneros
denota um conjunto de mercadorias e, idealmente, cada mer- possíveis e cada um desses pode apresentar 100 espécies
cadoria tem um código ao qual se subsome. Algumas, mesmo diferentes em relação ao código-subposição "YY";
semelhantes, exigem e recebem códigos distintos.
5 - o código subposição "YY", que é espécie em relação
O sistema harmonizado, como aprovado na Convenção a "XXXX", é gênero em função do código-item/subitem
Internacional, opera com seis dígitos, correspondendo a posi- "ZZzz". Nesse sentido, o código-subposição "YY" des-
ções e subposições de mercadorias, mas a NBM/SH (TIPI/TAB) creve até 100 gêneros distintos e cada um deles pode
sobrepõe-se àquele sistema para acrescentar-lhe matriz de su- apresentar até 10 000 espécies diferentes em relação ao
bespécies, mediante a particularização de itens e de subitens. código "ZZzz";

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

6 - deduz-se que o código-posição "XXXX" é sempre functor", uma vez que, inaugurando a relação implicacional, é
variável de gênero; o código-item/subitem "ZZzz" é vari- ponente também do functor intraproposicional.
ável de espécie em relação a "YY" e variável de subespé-
Adverte muito bem Lourival Vilanova que, na linguagem
cie em relação a "XXXX"; o código subposição "YY" é
falada e escrita do direito positivo, não nos deparamos com o
variável de espécie em relação a "XXXX" e de gênero em
dever-ser, com a função sintática de modal-deôntico neutro.
relação a "ZZzz".
"Generalizando, obtenho o conceito de norma jurídica. Agora,
2.7. O DEVER-SER COMO ENTIDADE RELACIONAL só formalizando obtenho o conceito de `dever-ser': ultrapas-
sando a linguagem da Teoria Geral do Direito para ingressar
Kelsen insistiu na diferença entre as leis da natureza, na linguagem formal da Lógica° (o grifo é do original)."
submetidas ao princípio da causalidade física, e as leis jurídicas,
articuladas pela imputabilidade deôntica. Lá, a síntese do ser; Em linguagens extrajurídicas, a expressão dever-ser traz
aqui, a do dever-ser. Nas duas causalidades temos a implicação, o sentido de algo que pode ser, que tem a possibilidade de
o conectivo condicional atrelando o antecedente ao consequen- acontecer, ou também, revelando o modo alético da necessida-
te. Entretanto, quando usado e não simplesmente mencionado, de, aquilo que tem-de-ser. Na região do jurídico, porém, o
o dever-ser denota uma região, um domínio ontológico que se dever-ser estará sempre ligado às condutas inter-humanas,
contrapõe ao território do ser, em que as proposições implican- tendo, portanto, significação, ainda que nada denote, pois não
te e implicada são postas por um ato de autoridade: D (p-->q) aponta para objetos do mundo, inexistindo fatos ou situações
(deve-ser que p implique q). Falamos, por isso, num operador que lhe possam especificamente corresponder. Aliás, seja como
deôntico interproposicional, ponente da implicação. Não fora sintagma verbal, seja como sintagma nominal, o dever-ser
o ato de vontade da autoridade que legisla e a proposição-hi- exprime sempre conceitos relacionais. Assim, para que nos
pótese não estaria conectada à proposição-tese. Daí por que aproximemos mais desse operador responsável pela síntese
esse operador deôntico seja chamado de neutro, visto que fundamental do próprio domínio do jurídico, sirvamo-nos no-
nunca aparece modalizado. vamente da lição do Professor Vilanova 61 :

Cumpre acrescentar, contudo, que no arcabouço norma- "Em rigor, o 'dever-ser' é expressão sintática, é uma partí-
tivo, enquanto estrutura lógica, encontraremos outro dever-ser cula operatória que se encontra na estrutura dos enunciados
expresso num dos operadores deônticos, mas inserto no con- normativos, participando na sua lei de composição interna.
sequente da norma, dentro da proposição-tese, ostentando Como partícula, carece de significação per se, não é por-si-
caráter intraproposicional e aproximando dois ou mais sujeitos, só bastante para conduzir a uma expressão completa."
em torno de uma previsão de conduta que deve ser cumprida
por um e pode ser exigida pelo outro. Este dever-ser, na con- Por isso mesmo, o que está ao nosso alcance é a regra de uso
dição de conectivo intraproposicional, triparte-se nos modais dessa expressão sintática, movendo-se na articulação interna
"proibido" (V), "permitido" (P) e "obrigatório" (0), diferente-
mente do primeiro, responsável pela implicação, e que nunca
se mbdaliza. Se chamarmos de "functor deôntico" aquele pre- 60.Lourival Vilanova, "Analítica do dever-ser", in Escritos jurídicos e filosó-
sente na proposição-tese da norma jurídica, seguindo a termi- ficos, vol. 2, cit., pp. 53-54.
nologia de Georges Kalinowski, o primeiro será "functor-de- 61.Idem, ibidem, p. 59.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

dos enunciados deônticos e, convém insistir, também no interior Enquanto isso prosperam teorias em várias direções: teorias
do enunciado que cumpre a função de apódose ou consequen- sobre os fatos jurídicos, teorias sobre as relações jurídicas,
te. Iremos examinar a proposição-tese ou consequente norma- teorias sobre as estruturas institucionais, teorias sobre o siste-
tivo, mais à frente, ocasião em que reencontraremos esse ma e sobre seus valores, teorias, enfim, acerca das categorias
functor, entreligando, como anunciamos, dois ou mais sujeitos fundamentais do fenômeno jurídico.
de direito, acerca de uma conduta tipificada pela regra.
Devo esclarecer, contudo, que a visão normativa a que me
refiro não pretende assumir caráter absoluto que a levaria,
2.8. TEORIA DA NORMA JURÍDICA certamente, ao "normativismo", entendido o termo como algo
excessivo, que se põe logo em franca competição com outros
A norma jurídica tem sido, muitas vezes, o ponto de refe- esquemas de compreensão, afastando iniciativas epistemoló-
rência para importantes construções interpretativas do direito. gicas que se dirigem aos diferentes setores de que se compõe
Torna-se difícil compreender, por isso mesmo, o papel de pou- o fenômeno. A teoria da norma de que falo há de cingir-se à
co relevo que algumas propostas cognoscentes de grande en-
manifestação do deôntico, em sua unidade monádica, no seu
vergadura lhe atribuem. Em Pontes de Miranda, por exemplo,
arcabouço lógico, mas também em sua projeção semântica e
que desenvolveu com muito cuidado temas como "o fato jurí-
em sua dimensão pragmática, examinando a norma por dentro,
dico", "a incidência", "a validade" e a "eficácia", não encontra-
num enfoque intranormativo, e por fora, numa tomada extra-
mos a estrutura completa da norma jurídica, como bem anota
normativa, norma com norma, na sua multiplicidade finita,
Lourival Vilanova 62 . Ele, Pontes, o grande dogmático, que par-
tira de um positivismo filosófico que o levou ao positivismo porém indeterminada.
jurídico-sociológico; que observou minuciosamente a tessitura Tenho por imprescindível a investigação estrutural das
relacional que a experiência com o direito oferece, aplicando- unidades do sistema, vale dizer, as normas jurídicas, nas ins-
lhe com destreza, diga-se de passagem, as categorias lógicas tâncias semióticas a que já me referi. A doutrina atual do Di-
da relação; ele mesmo que levou tão a sério o direito processu- reito Tributário vive, abertamente, esse momento histórico de
al, a ponto de chamá-lo "o ramo do direito mais rente à vida"; sua evolução: começou, tendo por núcleo de sustentação a
pois bem, o jurista alagoano, que teorizou fartamente sobre o chamada "obrigação tributária"; em seguida, ocupou-se do
material empírico que o contato com o direito proporciona, em "fato gerador"; e agora encontrou na norma jurídica a fonte de
nenhum momento se mostrou estimulado a compor uma teoria suas especulações.
da norma, preferindo falar simplesmente em "incidência da
regra de direito".
2.8.1. Ambiguidade do termo "norma jurídica"
Mas a concepção ponteana é tão só um exemplo. Mesmo
autores que dispensaram tratamento mais abrangente ao A teoria comunicacional do direito vem se irradiando,
tema das normas jurídicas não procuraram surpreendê-la, tanto na Europa, com a obra de Gregorio Robles Morchón,
ingressando, com entusiasmo, na intimidade de sua essência. quanto em outros países, como o Brasil, ainda que debaixo de
diversas designações, sendo o caso das "doutrinas pragmáticas"
e do "constructivismo lógico-semântico". Tratar o direito como
62. "A teoria do direito em Pontes de Miranda", in Escritos jurídicos e filosó- algo que necessariamente se manifesta em linguagem prescri-
ficos, vol. 1, op. cit., p. 410. tiva, inserido numa realidade recortada em textos que cumprem
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

as mais diversas funções, abriu horizontes largos para o trabalho que as construções normativas exibem, logo no exame do pri-
científico, permitindo oportuna e fecunda conciliação entre as meiro instante. Mas é difícil admitir que o comando deôntico-
concepções hermenêuticas e as iniciativas de cunho analítico. jurídico deixe de revestir aquela estrutura imputativa traba-
lhada por Hans Kelsen e tão bem desenvolvida por Lourival
Por outro lado, uma série de ajustes hão de ser feitos para
encurtar as distâncias entre tais propostas. Um deles é a deli- Vilanova, como denominador comum e último reduto das co-
municações que se estabelecem entre o editor da regra e seus
mitação das proporções do chamado princípio da "homogenei-
destinatários.
dade sintática" das normas do sistema, em face da heteroge-
neidade linguística dos enunciados do direito positivo. De fato, Fixemos aqui um marco importante: quando se proclama
como nos adverte Celso Lafer, "(...) o que caracteriza o Direito o cânone da "homogeneidade sintática" das regras do direito,
Positivo, no mundo contemporâneo, é a sua contínua mudan- o campo de referência estará circunscrito às normas em sen-
ça. Daí a necessidade de conhecer, identificar e qualificar as tido estrito, vale dizer, aquelas que oferecem a mensagem ju-
normas como jurídicas pela sua forma 63 ". rídica com sentido completo (se ocorrer o fato F, instalar-se-á
a relação deôntica R entre os sujeitos S' e S"), mesmo que essa
Com efeito, a ambiguidade da expressão "normas jurídicas"
completude seja momentânea e relativa, querendo significar,
para nominar indiscriminadamente as unidades do conjunto,
apenas, que a unidade dispõe do mínimo indispensável para
não demora a provocar dúvidas semânticas que o texto discur-
transmitir uma comunicação de dever-ser. E mais, sua elabo-
sivo não consegue suplantar nos seus primeiros desdobramen-
ração é preparada com as significações dos meros enunciados
tos. E a clássica distinção entre "sentido amplo" e "sentido es-
do ordenamento, o que implica reconhecer que será tecida com
trito", conquanto favoreça a superação dos problemas introdu-
o material semântico das normas jurídicas em sentido amplo.
tórios, passa a reclamar novos esforços de teor analítico.
Penso que tais elucidações afastem, desde logo, algumas
A despeito disso, porém, interessa manter o secular modo
dificuldades atinentes à singela dicotomia "homogeneidade/ he-
de distinguir, empregando "normas jurídicas em sentido amplo"
terogeneidade", sobretudo porque a teoria comunicacional em-
para aludir aos conteúdos significativos das frases do direito
prega esses signos voltada para a organização linguística do dis-
posto, vale dizer, aos enunciados prescritivos, não enquanto
curso jurídico, ao passo que o "constructivismo lógico-semântico"
manifestações empíricas do ordenamento, mas como significa-
restringe esses nomes a planos distintos da análise semiótica.
ções que seriam construídas pelo intérprete. Ao mesmo tempo,
a composição articulada dessas significações, de tal sorte que Uma coisa são os enunciados prescritivos, isto é, usados na
produza mensagens com sentido deôntico-juridico completo, função pragmática de prescrever condutas; outras, as normas
receberia o nome de "normas jurídicas em sentido estrito". jurídicas, como significações construídas a partir dos textos po-
sitivados e estruturadas consoante a forma lógica dos juízos
Por certo que ninguém ousaria negar a diversidade de
condicionais, compostos pela associação de duas ou mais propo-
formas sintáticas e a multiplicidade dos conteúdos semânticos
sições prescritivas. É exatamente o que ensina Riccardo Guastini 64 ,
de modo peremptório: "um documento normativo (uma fonte del
diritto) è um aggregato di enunciati del discorso prescritivo".
63. Celsp Lafer, A ruptura totalitária e a reconstrução dos direitos humanos: um
diálogo com Hannah Arendt, São Paulo, Tese de concurso para provimento
de cargo de professor titular do Departamento de Filosofia e Teoria Geral
do Direito da Faculdade de Direito da USR 1988, p. 53. 64. Riccardo Guastini, Delle fonti alie norme, p. 16.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

Gomes Canotilho 65 percorre o mesmo caminho epistemo- a norma como construção "a partir dos enunciados" e não
lógico, firmado, entre outros, na posição daquele jurista italia- "contida ou involucrada nos enunciados". Todavia, a expressão
no. Todavia, acaba por acolher doutrina que não me parece "o intérprete produz a norma" cai como uma luva ao sentido
rigorosa, ao conceber a possibilidade de norma sem base em que outorgamos às unidades normativas. Adverte o autor, no
enunciados prescritivos. Ao citar como exemplo o princípio do entanto, que o intérprete produz a norma na acepção de que,
procedimento justo (due process), arremata: "Este princípio não posto o enunciado pela autoridade competente, ele, intérprete,
está enunciado linguisticamente; não tem disposição, mas resul- passa a construir a regra de direito. Outra proporção semân-
tica seria a de expedir o próprio enunciado, a contar do qual
ta de várias disposições constitucionais(...)". Ora, se resulta de
será edificada a norma, tarefa do órgão indicado pelo sistema.
várias disposições constitucionais, assenta-se não em um enun-
ciado apenas, mas em vários, o que infirma o pensamento do Seja como for, o processo de interpretação não pode abrir
autor português. Sucede que as construções de sentido têm de mão das unidades enunciativas esparsas do sistema positivo,
partir da instância dos enunciados linguísticos, independente- elaborando suas significações frásicas para, somente depois,
mente do número de formulações expressas que venham a organizar as entidades normativas (sentido estrito). Principal-
servir-lhe de fundamento. Haverá, então, uma forma direta e mente porque o sentido completo das mensagens do direito
i mediata de produzir normas jurídicas; outra, indireta e me- depende da integração de enunciados que indiquem as pessoas
diata, mas sempre tomando como ponto de referência a plata- (físicas e jurídicas), suas capacidades ou competências, as ações
forma textual do direito posto. que podem ou devem praticar, tudo em determinadas condições
de espaço e de tempo. A teoria comunicacional, aliás, trata
Também Eros Grau, distinguindo "texto" de "norma", admiravelmente bem desse tema, organizando os enunciados
afirma que a atividade interpretativa é um processo intelectivo, do direito positivo (ordenamento) de tal modo que facilite as
pelo qual, partindo-se de fórmulas linguísticas contidas nos providências subsequentes da montagem comunicativa.
atos normativos (textos, enunciados, preceitos, disposições),
66
alcançamos a determinação de seu conteúdo normativo . Em
outro escrito, retrilhando a mesma idéia, aduz: 2.8.2. Estrutura lógica: análise da hipótese normativa

A derradeira síntese das articulações que se processam


"è volta al discernimento degli enunciati semantici veico-
lati daí precetti (enunciati, disposizione, testi). ['interprete
entre as duas peças daqueles juízos, postulando uma mensagem
libera la norma dal suo invólucro (il texto); in questo senso, deôntica portadora de sentido completo, pressupõe, desse
l'interprete `produce la norma'"(grifo do autor)". modo, uma proposição-antecedente, descritiva de possível
evento do mundo social, na condição de suposto normativo,
A doutrina do ilustre publicista se aproxima do ponto de i mplicando uma proposição-tese, de caráter relacional, no tó-
vista que expusemos, com a pequena diferença de que tomamos pico do consequente. A regra assume, portanto, uma feição
dual, estando as proposições implicante e implicada unidas por
um ato de vontade da autoridade que legisla. E esse ato de
vontade, de quem detém o poder jurídico de criar normas,
65.Direito constitucional e teoria da Constituição, 4a ed, Coimbra, Almedina,
2000, p1 208.
expressa-se por um dever-ser neutro, no sentido de que não
aparece modalizado nas formas "proibido", "permitido" e
66. Eros Roberto Grau, Licitação e contrato administrativo, São Paulo, Ma-
lheiros, 1995, pp. 5-6. "obrigatório". "Se o antecedente, então deve-ser o consequente".
67.Idem, La doppia destrutturazione del diritto, Milão, Edizioni Unicopli, p. 59. Assim diz toda e qualquer norma jurídico-positiva.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

A proposição antecedente funcionará como descritora de inoperante para a regulação das condutas intersubjetivas.
um evento de possível ocorrência no campo da experiência Tratar-se-ia de um sem-sentido deôntico, ainda que pudesse
social, sem que isso importe submetê-la ao critério de verifica- satisfazer a critérios de organização sintática.
ção empírica, assumindo os valores "verdadeiro" e "falso", pois
Havendo grande similitude entre as proposições tipifica-
não se trata, absolutamente, de uma proposição cognoscente
doras de classes de fatos, como é a hipótese normativa, e
do real, apenas de proposição tipificadora de um conjunto de
eventos. Nesta linha, Florence Haret 68 afirmou: aquel'outras cognoscentes do real, seus traços individualiza-
dores não se evidenciam, à primeira vista. Uma observação
"... o direito positivo se utiliza da linguagem em função fa- lógica, contudo, pode dar bem a dimensão do antecedente em
buladora, toda vez que o legislador, no momento em que face de proposições que dele se aproximem: a hipótese, como
elabora a lei, opera com signo apto a significar algo, sem a norma na sua integralidade, pressupõe-se como válida antes
que lhe seja demandado a sua verdade ou a falsidade em- mesmo que os fatos ocorram, e permanece como tal ainda que
pírica, para ser signo válido no sistema e constitutivo de os mesmos eventos (necessariamente possíveis) nunca venham
realidade jurídica".
a verificar-se no plano da realidade. Paralelamente, diante de
um enunciado declarativo ou teorético, teremos de aguardar
Faz-se oportuno lembrar que o suposto, qualificando
o teste empírico para então expedirmos juízo de valor lógico
normativamente sucessos do mundo real-social, como todos
sobre a proposição correspondente. Só depois da experiência
os demais conceitos, é seletor de propriedades, operando como
será possível dizer da verdade ou falsidade dos enunciados
redutor das complexidades dos acontecimentos recolhidos
descritivos, ressalvando-se, por certo, aqueles tautológicos e
valorativamente. Todos os conceitos, antes de mais nada, são
contraconceitos, assim como cada fato será um contrafato e os contraditórios.
cada significação uma contra-significação. Apresentam-se Anote-se que o suposto normativo não se dirige aos acon-
como seletores de propriedades, e os antecedentes normativos, tecimentos do mundo com o fim de regrá-los. Seria um inusi-
conceitos jurídicos que são, elegem aspectos determinados, tado absurdo obrigar, proibir ou permitir as ocorrências factu-
promovendo cortes no fato bruto tomado como ponto de refe- ais, pois as subespécies deônticas estarão unicamente no
rência para as consequências normativas. E essa seletividade prescritos. A hipótese guarda com a realidade uma relação
tem caráter eminentemente axiológico. semântica de cunho descritivo, mas não cognoscente, e esta é
O antecedente da norma jurídica assenta-se no modo sua dimensão denotativa ou referencial.
ontológico da possibilidade, quer dizer, os eventos da realidade Se a proposição-hipótese é descritora de fato de possível
tangível nele recolhidos terão de pertencer ao campo do pos- ocorrência no contexto social, a proposição-tese funciona
sível. Se a hipótese fizer a previsão de fato impossível, a con- como prescritora de condutas intersubjetivas. A consequência
sequência que prescreve uma relação deôntica entre dois ou mais normativa apresenta-se, invariavelmente, como uma propo-
sujeitos nunca se instalará, não podendo a regra ter eficácia sição relacional, enlaçando dois ou mais sujeitos de direito
social. Estaria comprometida no lado semântico, tornando-se
em torno de uma conduta regulada como proibida, permitida
ou obrigatória.

68. As presunções e a linguagem prescritiva do direito, in Revista de Direito O antecedente da norma, salientamos, assenta-se no modo
Tributário, vol. 97, São Paulo, Malheiros, p. 114. ontológico da possibilidade, devendo a escolha do legislador

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

recair sobre fatos de possível ocorrência no plano dos aconte- pelo passivo. O elemento prestacional fala diretamente da
cimentos sociais. Agora, quando versamos sobre o consequen- conduta, modalizada como obrigatória, proibida ou permitida.
te, outro tanto há de ser dito, porque a modalização das con- Entretanto, como o comportamento devido figura em estado
dutas interpessoais somente terá sentido dentro do quadro de determinação ou de determinabilidade, ao fazer referência
geral da possibilidade. Não faria sentido prescrever compor- à conduta terá de especificar, também, qual é seu objeto (pagar
tamento obrigatório, proibitivo ou permissivo a alguém, se o valor em dinheiro, construir um viaduto, não se estabelecer
destinatário, por força das circunstâncias, estivesse tolhido de em certo bairro com particular tipo de comércio, etc.). O ele-
praticar outras condutas. Careceria de sentido deôntico obrigar mento prestacional de toda e qualquer relação jurídica assume
alguém a ficar em uma sala, proibido de sair, se a sala estivesse relevância precisamente na caracterização da conduta que
trancada, de modo que a saída fosse impossível. Também cairia satisfaz o direito subjetivo de que está investido o sujeito ativo,
em solo estéril permitir, nessas condições, que a pessoa lá per- outorgando o caráter de certeza e segurança de que as intera-
manecesse. Ao disciplinar condutas intersubjetivas, o legislador ções sociais necessitam. É nesse ponto que os interessados vão
opera no pressuposto da possibilidade. Ali onde houver duas ou ficar sabendo qual a orientação que devem imprimir às respec-
mais condutas possíveis, existirá sentido em proibir, permitir ou tivas condutas, evitando a ilicitude e realizando os valores que
obrigar certo comportamento perante outrem. a ordem jurídica instituiu.
Para encerrar este tópico, quero dizer que a concepção
2.8.3. Estrutura lógica da norma: análise do consequente de norma que temos operado é a chamada "hilética", qual seja,
a que toma as unidades normativas, de modo semelhante às
Para a Teoria Geral do Direito, "relação jurídica" é defi- proposições, como o significado prescritivo de certas formula-
nida como o vínculo abstrato segundo o qual, por força da ções linguísticas.
imputação normativa, uma pessoa, chamada de sujeito ativo,
tem o direito subjetivo de exigir de outra, denominada sujeito "En la otra versión, denominada "concepción expresiva", lo
passivo, o cumprimento de certa prestação. Para que se ins- distintivo de una norma no reside en su aspecto semántico
taure um fato relacional, vale dizer, para que se configure o sino en el uso de un contendo proposicional, y por ello, la
enunciado pelo qual irrompe a relação jurídica, são necessários identificación de una norma supone recurrir a una análisis
dois elementos: o subjetivo e o prestacional. No primeiro, sub- pragmático del lenguaje"".
jetivo, encontramos os sujeitos de direito postos em relação:
um, no tópico de sujeito ativo, investido do direito subjetivo de E, inserindo-se na corrente hilética, o Professor Lourival
exigir certa prestação; outro, na posição passiva, cometido do Vilanova" registra bem a distinção apontada:
dever subjetivo de cumprir a conduta que corresponda à exi-
gência do sujeito pretensor. Ambos, porém, necessariamente "O uso é sempre relação pragmática. É externo ao enunciado.
sujeitos de direito. Nada altera tratar-se de pessoa física ou É relação pragmática intersubjetiva, não relação sintática na
jurídica, de direito público ou de direito privado, nacional ou
estrangeira.
69.Pablo Eugênio Navarro, La eficacia del derecho, Madrid, Centro de Es-
Ao lado do elemento subjetivo, o enunciado relacional tudios Constitucionales, 1990, p. 31.
contém uma prestação como conteúdo do direito de que é titu- 70.Lourival Vilanova, "Analítica do dever-ser", in Escritos jurídicos e filosó-
lar o sujeito ativo e, ao mesmo tempo, do dever a ser cumprido ficos, vol. 2, cit., p. 54.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

estrutura do enunciado, nem relação semântica de referên- deônticas, a despeito do modo descritivo ou informativo de que
cia denotativa com as situações que deonticamente quali- se serviu o editor da regra. Vejo nisso um expediente correto
ficam" (grifos no original). e sobremaneira útil para a devida compreensão do fenômeno
jurídico, além de oferecer instrumento apropriado e eficaz para
Todo e qualquer vínculo jurídico voltado a um objeto as elaborações descritivas da dogmática.
prestacional apresenta essa composição sintática: liame entre
pelos menos dois sujeitos de direito. Tão só pela observação do 2.8.5. O conceito de "norma completa": norma primária e norma
conteúdo semântico das relações jurídicas é que estas podem secundária
ser objeto de distinção.
As normas jurídicas têm a organização interna das propo-
sições condicionais, em que se enlaça determinada consequên-
2.8.4. Sistema jurídico como conjunto homogêneo de enunciados cia à realização de um fato. Dentro desse arcabouço, a hipótese
deônticos refere-se a um fato de possível ocorrência, enquanto o conse-
quente prescreve a relação jurídica que se vai instaurar, onde e
Kelsen sempre chamou a atenção para a circunstância de
quando acontecer o fato cogitado no suposto normativo. Redu-
que todas as normas do sistema convergem para um único zindo complexidades, podemos representar a norma jurídica da
ponto, axiomaticamente concebido para dar fundamento de seguinte forma: H ---> C, onde a hipótese (H) alude à descrição
validade à constituição positiva. Esse aspecto confere, decisi- de um fato e a consequência (C) prescreve os efeitos jurídicos
vamente, caráter unitário ao conjunto, e a multiplicidade de que o acontecimento irá provocar, razão pela qual se fala em
normas, como entidades da mesma índole, outorga-lhe o timbre descritor e prescritor, sendo o primeiro para designar o antece-
de homogeneidade. dente normativo e o segundo para indicar seu consequente.
Sabemos que o legislador emprega, muitas vezes, a lin- Mas a norma de que falamos é unidade de um sistema,
guagem informativa ou expressiva, como forma de veicular tomado aqui como conjunto de partes que entram em relação
suas mensagens. A despeito disso, entretanto, sua linguagem formando um todo unitário. O todo unitário é o sistema; as
mantém, invariavelmente, uma função diretiva ou prescritiva, partes, unidades que o compõem, configuram o repertório; e
dobrando-se para o contexto social e nele atuando para tecer a as relações entre essas partes tecem sua estrutura.
disciplina da conduta entre as pessoas. Seu discurso se organi-
As regras jurídicas não existem isoladamente, mas sempre
za em sistema e, ainda que as unidades exerçam papéis diferen- num contexto de normas com relações particulares entre si.
tes na composição interna do conjunto (normas de conduta e Atentar para a norma, na sua individualidade, em detrimento
normas de estrutura), todas elas exibem idêntica arquitetura do sistema é, na contundente metáfora de Norberto Bobbio 71 ,
formal. Há homogeneidade, mas homogeneidade sob o ângulo "considerar-se a árvore, mas não a floresta". Construir a norma
puramente sintático, uma vez que nos planos semântico e prag- aplicável é tomar os sentidos de enunciados prescritos no con-
mático o que se dá é um forte grau de heterogeneidade, único texto do sistema de que fazem parte. A norma é proposição
meio de que dispõe o legislador para cobrir a imensa e variável prescritiva decorrente do todo que é o ordenamento jurídico.
gama de situações sobre que deve incidir a regulação do direito,
na pluralidade extensiva e intensiva do real-social.
Com admitir uma só esquematização formal para todas 71. Teoria do ordenamento jurídico, Trad. Maria Celeste Cordeiro Leite dos
as normas do sistema poderemos reescrevê-las em fórmulas Santos, Brasília/São Paulo, UNB/Polis, 1991, p. 19.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

Enquanto corpo de linguagem vertido sobre o setor material secundária apareceria da seguinte forma: [D(p.-q)-->Sn]. E com
das condutas intersubjetivas, o direito aparece como conjunto o desdobramento de Sn: (S'RS"), em que "p" é a ocorrência
coordenado de normas, de tal modo que uma regra jurídica do fato jurídico; ".", o conectivo conjuntor; "-q", a conduta
jamais se encontra isolada, monadicamente só: está sempre descumpridora do dever; o operador implicacional; e Sn
ligada a outras normas, integrando determinado sistema de a sanção, desdobrada em S', como sujeito ativo (o mesmo da
direito positivo. relação da norma primária; R, o relacional deôntico; e S'", o
Depende a norma, pois, desse complexo produto de rela- Estado-Juiz, perante quem se postula o exercício da coativi-
ções entre as unidades do conjunto. É produzida por um ato dade jurídica). A Teoria Geral do Direito refere-se à relação
(do Legislativo, do Executivo, do Judiciário ou mesmo do par- jurídica prevista na norma primária como de índole material,
ticular), sua fonte material. Mas, ao ingressar o enunciado enquanto a estatuída na norma secundária seria de direito
linguístico no sistema do direito posto, seu sentido experimen- formal (na acepção de processual, adjetiva).
ta inevitável acomodação às diretrizes do ordenamento. A Não seguimos a terminologia inicialmente acolhida por
norma é sempre o produto dessa transfiguração significativa. Kelsen: norma primária a que prescreve a sanção e secundária a
Na completude, as regras do direito têm feição dúplice: que estipula o dever jurídico a ser cumprido. Fico na linha de
(i) norma primária (ou endonorma, na terminologia de Cossio), pensamento de Lourival Vilanova, coincidente, aliás, com o recuo
a que prescreve um dever, se e quando acontecer o fato pre- doutrinário registrado na obra póstuma do mestre de Viena".
visto no suposto; (ii) norma secundária (ou perinorma, segun- As duas entidades que, juntas, formam a norma comple-
do Cossio), a que prescreve uma providência sancionatória, ta, expressam a mensagem deôntica-jurídica na sua integri-
aplicada pelo Estado-Juiz, no caso de descumprimento da dade constitutiva, significando a orientação da conduta,
conduta estatuída na norma primária. juntamente com a providência coercitiva que o ordenamento
Inexistem regras jurídicas sem as correspondentes san- prevê para seu descumprimento. Em representação formal:
ções, isto é, normas sancionatórias. A organização interna de D{(p-q) v [(p-4-q) S]}. Ambas são válidas no sistema, ainda
cada qual, porém, será sempre a mesma, o que permite produ- que somente uma venha a ser aplicada ao caso concreto. Por
zir-se um único estudo lógico para a análise de ambas. Tanto isso mesmo, empregamos o disjuntor includente ("v") que
na primária como na secundária, a estrutura formal é uma só suscita o trilema: uma ou outra ou ambas. A utilização desse
[D (p->q)]. Varia tão-somente o lado semântico, porque na disjuntor tem a propriedade de mostrar que as duas regras são
norma secundária o antecedente aponta, necessariamente, simultaneamente válidas, mas que a aplicação de uma exclui
para um comportamento violador de dever previsto na tese de a da outra.
norma primária, ao passo que o consequente prescreve relação
jurídica em que o sujeito ativo é o mesmo, mas agora o Estado, 2.8.6. Espécies normativas
exercitando sua função jurisdicional, passa a ocupar a posição
de sujeito passivo. Por isso, o que existe entre ambas é uma Parece-nos perfeitamente justificada e coerente a adoção
relação-de-ordem não simétrica, como agudamente pondera das qualidades "abstrato" e "concreto" ao modo como se toma
Lourival Vilanova". Apresentada em notação simbólica, a norma

73. Hans Kelsen, Teoria geral das normas, Porto Alegre, Sergio Antonio
72. As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo, cit., p. 105. Fabris, 1986, p. 181.

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o fato descrito no antecedente. A tipificação de um conjunto um dado sistema jurídico. Observadas essas reflexões, o ante-
de fatos realiza uma previsão abstrata, ao passo que a conduta cedente das normas abstratas e gerais representará, invaria-
especificada no espaço e no tempo dá caráter concreto ao co- velmente, uma previsão hipotética, relacionando as notas que
mando normativo. Embora revista caracteres próprios, a exis- o acontecimento social há de ter, para ser considerado fato
tência do antecedente está intimamente atrelada ao consequen- jurídico. Será, portanto, um enunciado conotativo, que se com-
te, vista na pujança da unidade deôntica, que, por seu turno, põe ora de uma classe ou conjunto, enumerando os indivíduos
terá outro perfil semântico. Levando em conta tais considera- que a compõem, ora indicando as notas ou nota que o indivíduo
ções, a relação jurídica será geral ou individual, reportando-se precisa ter para pertencer à classe ou conjunto. A primeira é
o qualificativo ao quadro de seus destinatários: geral, aquela a forma tabular; a segunda, forma-de-construção. A modalidade
que se dirige a um conjunto de sujeitos indeterminados quan- em que, quase sempre, manifesta-se a proposição normativa
to ao número; individual, a que se volta a certo indivíduo ou a geral e abstrata não é a forma tabular, mas a forma-de-constru-
grupo identificado de pessoas. ção. Nela se estatuem as notas (conotação) que os sujeitos ou as
ações devem ter para pertencer ao conjunto. Em posição sub-
Pudemos relevar, outrossim, que argutos conhecedores
sequente, teremos o consequente normativo que, por seu turno,
têm se limitado à apreciação do antecedente normativo, ao
trará conduta invariavelmente determinada em termos gerais,
qualificar as normas jurídicas de gerais e individuais, abstratas voltada para um conjunto indeterminado de pessoas.
e concretas. Apesar da fecundidade de notações, a redução não
se justifica. A diferença repousa em que a compostura da nor- Agora, em abono desse matiz e considerando a feição
ma reclama atenção para o consequente: tanto pode haver dúplice de toda norma completa, depararemo-nos, no plano
indicação individualizada das pessoas envolvidas no vínculo semântico, com dois diferentes tipos gerais e abstratos: a nor-
como pode existir alusão genérica aos sujeitos da relação. Uma ma geral e abstrata primária e a norma geral e abstrata secun-
coisa é certa: é possível que o antecedente descreva fato con- dária. Na primeira, acomoda-se um enunciado que prescreve
um dever: "Se ocorrer o fato E então dever-ser a conduta Q".
creto, consumado no tempo e no espaço; com o consequente,
Na segunda, instala-se um enunciado que prescreve uma pro-
porém, será isso impossível, uma vez que a prescrição da con-
vidência sancionatória hipotética: "Se ocorrido o fato F e des-
duta devida há de ser posta, necessariamente, em termos
cumprido o dever da conduta Q, então deve-ser a relação
abstratos. Briga com a concepção jurídico-reguladora de com-
sancionatória Sn entre o sujeito do dever e o Estado-Juiz".
portamentos intersubjetivos imaginar prescrição de conduta
Ambas estruturas guardaram homogeneidade sintática, abrin-
que já se consolidou no tempo, estando, portanto, imutável.
do-se para receber apenas o plano dos conteúdos. Comprova-
Seria um sem-sentido deôntico.
se, mais uma vez, a heterogeneidade semântica invariavelmen-
Sopesadas essas premissas, poderemos classificar as nor- te presente no domínio das estruturas normativas.
mas em quatro espécies: (i) abstrata e geral; (ii) concreta e
Penso ser inevitável, porém, insistir num ponto que se me
geral; (iii) abstrata e individual; e (iv) concreta e individual.
afigura vital para a compreensão do assunto: a norma geral e
Bem, passemos a examinar uma a uma.
abstrata, para alcançar o inteiro teor de sua juridicidade, reivin-
A norma abstrata e geral adota o termo abstrato, em seu dica, incisivamente, a edição de norma individual e concreta.
antecedente, no bojo do qual preceitua enunciado hipotético Uma ordem jurídica não se realiza de modo efetivo, motivando
descritivo de um fato, e geral, em seu consequente, onde re- alterações no terreno da realidade social, sem que os comandos
pousa a regulação de conduta de todos aqueles submetidos a gerais e abstratos ganhem concreção em normas individuais.
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O fenômeno da incidência normativa opera, pois, com a individual e concreta pressupõem um ato ponente de norma,
descrição de um acontecimento do mundo físico-social, ocor- juridicizado pela competência jurídica de inserir norma no
rido em condições determinadas de espaço e de tempo, que sistema que lhe prescreve o direito positivo. Torna-se preciso,
guarda estreita consonância com os critérios estabelecidos na como pede a teoria das fontes do direito, que um veículo intro-
hipótese da norma geral e abstrata (regra-matriz de incidência). dutor (ato jurídico-administrativo do lançamento, por exemplo)
Por isso mesmo, a consequência desse enunciado será, por faça a inserção da regra no sistema. Significa dizer: unidade
motivo de necessidade deôntica, o surgimento de outro enun- normativa alguma entra no ordenamento sem outra norma que
ciado protocolar, denotativo, com a particularidade de ser re- a conduza. O preceito introduzido é a disciplina dos compor-
lacional, vale dizer, instituidor de uma relação entre dois ou tamentos inter-humanos pretendida pelo legislador, indepen-
mais sujeitos de direito. Este segundo enunciado, como sequ- dente de ser abstrata ou concreta e geral ou individual, ao
ência lógica e não cronológica, há de manter-se, também, em passo que a entidade introdutora é igualmente norma, porém
rígida conformidade ao que for estabelecido nos critérios da concreta e geral. Lembremo-nos de que a regra incumbida de
consequência da norma geral e abstrata. Em um, na norma conduzir a prescrição para dentro da ordenação positiva é de
fundamental importância para montar a hierarquia do conjun-
geral e abstrata, temos enunciado conotativo; em outro, na
to, axioma do próprio sistema jurídico.
norma individual e concreta, um enunciado denotativo. Ambos
com a prescritividade inerente à linguagem jurídica. Em sua estrutura completa de significação, a norma geral
e concreta tem como suposto ou antecedente um acontecimen-
O fato, portanto, ocorre apenas quando o acontecimento
to devidamente demarcado no espaço e no tempo, identificada
for descrito no antecedente de uma norma individual e con-
a autoridade que a expediu. Muitas vezes vêm numeradas, como
creta. O átimo de constituição, saliente-se, não pode ser con-
é o caso das leis, dos decretos, das portarias, ou referidas dire-
fundido com o momento da ocorrência a que ele se reporta, e
tamente ao número do processo, do procedimento ou da auto-
que, por seu intermédio, adquire teor de juridicidade.
ridade administrativa que lhe deu ensejo. A verdade é que a
Posto isto, pretendo deixar claro que, em notações para- hipótese dessa norma refere-se a um fato efetivamente acon-
lelas ao que se postulou em planos abstratos, a norma primária tecido. Já o consequente revela o exercício de conduta autori-
e a norma secundária, em termos individuais e concretos, zada a certo e determinado sujeito de direitos e que se preten-
apresentam ordens semânticas diversas. Prescreve, a primeira, de respeitada por todos os demais da comunidade. Nesse
o fato típico denotativo previsto no suposto do dever, identifi- sentido é geral.
cando o próprio acontecimento relatado no antecedente da
Quando faço alusão ao conteúdo do ato competencial
norma individual e concreta; e a conduta regulada, identifican- introdutor de norma, estou me referindo àquilo que a conduta
do os sujeitos da relação e seu objeto. A segunda, por sua vez, autorizada do sujeito competente da norma introdutora reali-
em seu antecedente, alude, com determinação, à ocorrência za: à norma ou às normas gerais e abstratas, gerais e concretas,
do fato típico e à conduta descumpridora do dever em termos individuais e concretas ou individuais e abstratas, inseridas no
concretos; e, em seu consequente, à própria sanção, vinculan- ordenamento por força da juridicidade da regra introdutora.
do Estado-Juiz e sujeito de dever por meio de uma relação Essas normas introduzidas são o próprio objeto da norma in-
concreta, portadora de coatividade jurídica. trodutora. Implica reconhecer que, sem tal núcleo de signifi-
Seguindo o degrau das estruturas normativas, percebe- cação, o veículo introdutor fica oco, vazio, perdendo o sentido
remos que tanto a norma geral e abstrata quanto a norma de sua existência.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

Sua importância, em termos sistemáticos, aloja-se em dois ao consequente individualizado, uma vez que já se pode deter-
pontos: a) são os instrumentos apropriados para inserir regras minar os sujeitos e o objeto da relação veiculada pela consulta.
jurídicas no sistema positivo; e, além disso, b) funcionam como
Outros dois exemplos bastante férteis são a servidão de
referencial para montar a hierarquia do conjunto. Afinal de passagem e o regime especial. Ao conceder servidão de passa-
contas, temos de ser coerentes com as premissas que declara- gem em sentença, o Juiz expede uma norma individual e abs-
mos. Se o direito é tomado como conjunto de normas válidas, trata. No antecedente não indica fato determinado no tempo
num determinado território e num preciso momento do tempo e no espaço, mas uma hipótese factual que se desdobra no
histórico, tudo dentro dele serão normas, em homenagem ao tempo. Diante da análise linguística do vocábulo "passagem",
princípio epistemológico da uniformidade do objeto. Daí por perceberemos que ele nada mais é que a substantivação do
que as entidades "leis", "contratos", "atos administrativos", verbo "passar", caracterizando a inexistência do fator tempo-
"desapropriação", "matrimônio", "tributo", etc., reduzidos à ral na expressão. Para além do rigor, servidão de passagem não
expressão mais simples, assumem a condição de normas jurí- quer dizer servidão do que se passou, descartando-se com isso
dicas. E a prova está na circunstância segundo a qual a insti- a possibilidade de fato jurídico concreto. O antecedente da
tuição, a modificação e a extinção dessas figuras se operam por norma prescindirá necessariamente de uma previsão abstrata,
regras de direito. ao passo que nada ocorrerá com a norma individual e abstrata
No plano das formulações normativas, fazendo-se menção quando o beneficiário passar pelo prédio serviente, pois seu
ao conteúdo da norma geral e concreta em termos primários direito de passagem estará garantido enquanto perdurar a
ou secundários, iremos nos deparar com uma importante sec- prescritividade daquele enunciado normativo. Em seu conse-
ção semântica. Dado que a aplicação da norma secundária quente, por outro lado, encontraremos um vínculo relacional
sujeito competente como unicamente ao Estado-Juiz, esta vem no seio do qual são identificados os sujeitos de direito e de
a constituir um subconjunto dentro daquele em que se inscre- dever, bem como o objeto da relação jurídica, revelando que se
vem os sujeitos competentes da norma primária. Nesta, é su- trata de enunciado individual.
jeito de direito o Estado-legislativo, o Estado-executivo e o Tudo se dará da mesma forma com o regime especial. Há
Estado-judiciário, bem como os particulares, uma vez que há de notar-se, em determinados casos, por necessidade pragmá-
hipóteses em que a lei autoriza ao próprio particular a efetivação tica ou por objetivos sancionatórios, a autoridade administra-
da norma jurídica. O conteúdo da norma primária abrange aque- tiva, a requerimento do interessado ou de ofício, adota regime
le da norma secundária, no entanto, com maior amplitude. especial para o cumprimento das obrigações fiscais e o faz por
Por fim, depuraremos a norma individual e abstrata, me- intermédio de norma individual e abstrata. Em seu anteceden-
nos frequente no sistema que as três explicitadas acima. É te, prescreve qualquer tratamento diferenciado da regra geral,
aquela que toma o fato descrito no antecedente como uma ti- tal como a alteração das formas usuais de emissão de docu-
pificação de um conjunto de fatos; e que, no quadro de seus mentos fiscais, de escrituração, apuração e recolhimento dos
destinatários, volta-se a certo indivíduo ou a grupo identifica- tributos; e, em seu consequente, caracteriza os beneficiários
do regime, formalizando o vinculo jurídico entre a autoridade
do de pessoas. Seria o caso, por exemplo, de uma consulta
fiscal, r m que o interessado, ainda inerte, questiona ao Fisco administrativa e o sujeito de direito.
a possibilidade de determinada conduta para fins tributários. Eis, ainda que a breve trecho, um panorama do cenário
A resposta.do Fisco trará à luz uma norma individual e abstra- normativo no ordenamento jurídico. O evolver dos tempos e o
ta: justapondo o antecedente hipotético (objeto da consulta), desenvolvimento gradativo da Ciência do Direito com alicerce

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

no "constructivismo lógico-semântico" e na estrutura lógica penso, inscreve-se o esquema da regra-matriz de incidência.


da regra-matriz de incidência, tudo isso se encarregou de de- Além de oferecer ao analista um ponto de partida rigorosamen-
monstrar, pouco a pouco, a eficiência do critério subjacente a te correto, sob o ângulo formal, favorece o trabalho subsequen-
essa classificação. te de ingresso nos planos semântico e pragmático, tendo em
vista a substituição de suas variáveis lógicas pelos conteúdos
2.9. A REGRA-MATRIZ DE INCIDÊNCIA da linguagem do direito positivo.
Com efeito, o conhecimento do sistema jurídico-prescri-
A construção da regra-matriz de incidência, como instru-
tivo não pode continuar livre e descomprometido de padrões
mento metódico que organiza o texto bruto do direito positivo,
metodológicos como tem acontecido em múltiplas manifesta-
propondo a compreensão da mensagem legislada num contex-
ções de nossa doutrina. Antes de tudo, a investigação científi-
to comunicacional bem concebido e racionalmente estrutura-
ca requer método, como critério seguro para conduzir o pen-
do, é um subproduto da teoria da norma jurídica, o que signi-
samento na caminhada expositiva. Feito isso, pode o autor até
fica reconhecer tratar-se de contribuição efetiva da Teoria
Geral e da Filosofia do Direito, expandindo as fronteiras do trazer para o espaço discursivo proposições de outras áreas,
território científico. É claro que nesse percurso vai um reposi- as quais permanecerão como elementos ancilares, ao longo do
cionamento do agente do saber jurídico que assume uma cos- eixo temático, este sim, governado por uma diretriz definida
mo-visão situada, declaradamente, no âmbito do chamado e, obviamente, compatível com o fenômeno-objeto.
"giro-linguístico". De qualquer modo, o esquema da regra- Assentemos a premissa, reconhecida unanimamente no
matriz é um desdobramento aplicativo do "constructivismo seio da Filosofia do Direito, segundo a qual toda norma jurídi-
lógico-semântico" sugerido com tanta precisão na obra e no ca tem estrutura lógica de um juízo hipotético, em que o legis-
pensamento de Lourival Vilanova. E sua repercussão no direi- lador (sentido amplo) enlaça uma consequência jurídica (rela-
to tributário vem acontecendo com surpreendente intensidade.
ção deôntica entre dois ou mais sujeitos), desde que aconteci-
Somam-se, hoje, centenas de textos que empregam essa orien-
do o fato previsto no antecedente. Fala-se, por isso, em ante-
tação epistemológica para aprofundar a investigação em ma-
cedente e consequente, suposto e mandamento, hipótese e tese,
téria de tributos, certamente pelo seu vigor analítico e pela
fecundidade das notações semânticas e pragmáticas que sus- prótase e apódose, pressuposto e estatuição, descritor e pres-
cita, valendo ressaltar que têm sido auspiciosos os resultados critor. A regulação da conduta se dá com a aplicação dos modais
práticos dessa proposição elaborada, originariamente, no pla- deônticos (permitido, proibido e obrigatório), mas sempre na
no teórico. Sua utilização nos conduz àquele momento decisi- dependência do acontecimento factual previsto na hipótese.
vo em que a teoria e a prática se encontram para propiciar o Obviamente, o evento descrito no pressuposto há de situar-se
domínio da mente humana sobre o mundo circundante, parti- no campo do possível, sob pena de jamais obter-se a disciplina
cularmente, no nosso caso, a propósito das complexidades do dos comportamentos intersubjetivos. Também a conduta, mo-
fenômeno jurídico da incidência tributária. dalizada deonticamente, não pode localizar-se na região do
necessário ou do impossível, pois a norma assim construída
não chegaria a ter sentido jurídico. Resta, como é evidente, o
2.9.1. O método da regra-matriz de incidência tributária
intervalo das condutas possíveis.
Dentre os recursos epistemológicos mais úteis e operativos Muito bem. Ocupemo-nos com a hipótese ou descritor da
para a compreensão do fenômeno jurídico-tributário, segundo norma jurídica, polarizando nossa atenção nos enunciados de
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

regras que instituem tributos. O legislador formula conceitos Ht = Cm (v.c) . Ce . Ct


sobre os fatos do mundo real-social, escolhendo aqueles que onde "Ht" é a hipótese tributária, "Cm" o critério material,
ostentem signos presuntivos de riqueza econômica. Entretan- "v" o verbo, "c" o complemento, "Ce" o critério espacial,
to, dada a multiplicidade de aspectos que dizem respeito a todo "Cr o critério temporal e "." o símbolo do conjuntor.
e qualquer acontecimento, o legislador vê-se compelido a se-
lecionar caracteres, eleger traços, indicar meios de identifica- O critério material é o núcleo do conceito mencionado na
ção do fato que quer juridicizar, que aparecerá, então, como hipótese normativa. Nele há referência a um comportamento
corte ou recorte daquilo que seria o fato bruto. Pontes de Mi- de pessoas físicas ou jurídicas, condicionado por circunstâncias
randa utilizou suporte fáctico para designar o fato bruto e o de espaço e de tempo, de tal sorte que o isolamento desse cri-
fato jurídico para referir-se àquela porção demarcada pelas tério, para fins cognoscitivos, é claro, antessupõe a abstração
notas da descrição hipotética. Acrescentemos que o fato bruto, das condições de lugar e de momento estipuladas para a rea-
o suporte fáctico, é plurilateral; o fato jurídico é que é, todo ele lização do evento. Já o critério espacial é o plexo de indicações,
e exclusivamente, jurídico. mesmo tácitas e latentes, que cumprem o objetivo de assinalar
o lugar preciso em que a ação há de acontecer. O critério tem-
Prever a ocorrência de um evento é oferecer critérios
poral, por fim, oferece elementos para saber, com exatidão, em
de identificação, de tal modo que possa vir a ser reconheci-
que preciso instante ocorre o fato descrito.
do ao ensejo de sua concretização. Ajeita-se aqui a distinção
sobre que tanto insistiu Alfredo Augusto Becker, entre a Na regra-matriz de incidência tributária, vale dizer, aque-
formulação abstrata redigida pelo legislador e o fato que se la responsável pelo impacto da exação, quando reduzida à sua
verifica no mundo empírico, sempre relacionado a condições estrutura formal, no mínimo irredutível que é o ponto de con-
espaço-temporais. Para nominar-lhes, Geraldo Ataliba su- fluência das indagações lógicas, vamos encontrar o pressupos-
geriu "hipótese de incidência" e "fato imponível", mas pre- to ou antecedente representado simbolicamente da maneira
ferimos operar com "hipótese tributária" e "fato jurídico supramencionada. Sabemos, contudo, que a interpretação não
tributário", assinalando que o importante é discernir as duas se esgota no plano formal, havendo necessidade de investigar-
situações, evitando, com isso, a possível ambiguidade da mos os conteúdos de significação que a linguagem do direito
expressão fato gerador. positivo carrega e, ainda, os modos como os utentes dessa lin-
guagem empregam seus signos. O passo subsequente, então,
Retornando à linha do raciocínio inicial, descrever um
será preencher as variáveis daquela fórmula lógica com as
fato social é apresentar as notas conceptuais que elegemos
constantes do direito posto.
para transmitir sua idéia a nossos interlocutores. Significa
apontar critérios de identificação, diretrizes para seu reco- Esse preenchimento de conteúdos concretos, como era
nhecimento, toda vez que ocorra no contexto social, ainda de se esperar, ocorre por meio da enunciação dos fatos jurídicos,
que o sucesso pertença ao mundo dos objetos físicos ou na- ou seja, pela transformação dos eventos factuais em linguagem
turais. Em outras palavras, equivale a consignar o critério deôntico-jurídica. Concretizado o evento hipoteticamente des-
material (verbo + complemento), o critério espacial e o crité- crito no suposto da norma de incidência, instaura-se uma re-
rio temporal, isto é, o núcleo do acontecimento fáctico e seus lação deôntica entre dois ou mais sujeitos, tal qual prevista no
condicionantes de espaço e de tempo. Em linguagem forma- consequente ou prescritor normativo. Se a proposição-hipoté-
lizada teremos: tica opera como descritor de um fato de possível ocorrência no

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

mundo exterior, a proposição-tese funciona como prescritor instância seguinte, o isolamento da incidência como ativida-
de um vínculo abstrato, entre dois ou mais sujeitos de direito, de de feição lógica, composta pelas operações de subsunção e
mediante o qual o sujeito ativo, credor ou pretensor, terá o de implicação, não só decompõe algo que não fora estudado
direito subjetivo de exigir do sujeito passivo ou devedor o cum- com mais vagar, em outros tempos, como deixa assentado que
primento de determinada prestação (expressa em pecúnia, no o ser humano, e só ele, com seu aparato mental, autor de um
caso da obrigação tributária). ato de fala que manifesta o teor de sua vontade, poderá fazer
com que a "norma incida", aplicando a regra geral e abstrata
Adotando o pressuposto de que no universo jurídico não
às situações concretas do mundo. No contradomínio, estão os
há relação de causalidade, porém de imputabilidade, como bem
preciosos efeitos da realização do fato jurídico, isto é, o relato
o demonstrou Kelsen, podemos dizer que a hipótese implica a
em linguagem de um evento que teria ocorrido no domínio dos
tese ou consequência, do mesmo modo que o fato jurídico im-
objetos da experiência e sua implicação inexorável: o nasci-
plica a relação jurídica. Esta será sempre irreflexiva, por im-
mento da obrigação tributária.
posição da própria ontologia do direito, e dar-se-á por existen-
te quando dois sujeitos, no mínimo, se encontrarem deontica- As regras do direito juridicizam os fatos sociais (entre eles,
mente atrelados. Não é preciso que as duas pessoas, termos da os naturais que interessem de algum modo à sociedade), fa-
relação, estejam determinadas. Basta uma. É o que se passa zendo irromper relações jurídicas, no seio das quais aparecem
com a promessa de recompensa, com os títulos ao portador ou os direitos subjetivos e os deveres correlatos. Daí dizer-se que
com a declaração unilateral de vontade. a incidência da regra faz nascer o vínculo entre sujeitos de
direito, por força da imputação normativa. E a norma tributá-
Em face de tais considerações que se pode afirmar que o
ria não refoge desse quadro de atuação que é universal, valen-
prescritor da regra-matriz de incidência contém dois critérios: o
do para todo espaço e para todo o tempo histórico.
pessoal (sujeito ativo e passivo) e o quantitativo (base de cálculo
e alíquota). Nada mais é necessário para que possamos iden- Como decorrência do acontecimento do evento previsto
tificar uma obrigação tributária, espécie do gênero relação hipoteticamente na norma tributária, instala-se o fato, consti-
jurídica. Sua representação lógica poderia ser expressa com a tuído pela linguagem competente, irradiando-se o efeito jurí-
seguinte notação simbólica: Csta"Cp(sa.sp).Cq(bc.al). Em que dico próprio, qual seja o liame abstrato, mediante o qual uma
"Cst" é o consequente tributário; "Cp" é o critério pessoal; "sa" pessoa, na qualidade de sujeito ativo, ficará investida do direi-
o sujeito ativo; "sp" o sujeito passivo; "Cq" o critério quantita- to subjetivo de exigir de outra, chamada de "sujeito passivo",
tivo; "bc" a base de cálculo; "al" a alíquota; e "." novamente o o cumprimento de determinada prestação pecuniária. Empre-
conjuntor ou multiplicador lógico. gando a terminologia do Código Tributário Nacional, diríamos:
"ocorreu o 'fato gerador' (em concreto), surgindo daí a obriga-
ção tributária"; é a fenomenologia da chamada incidência dos
2.9.2. Escalonamento da incidência normativa na óptica da tributos.
teoria comunicacional
Em rigor, não é o texto normativo que incide sobre o fato
No primeiro plano, a adoção da teoria da regra-matriz social, tornando-o jurídico. É o ser humano que, buscando fun-
outorga inegável caráter de potencialização ao pensamento damento de validade em norma geral e abstrata, constrói a
do sujeito que investiga, instrumentalizando-o para explorar norma jurídica individual e concreta, na sua bimembridade
camadas mais profundas da linguagem do direito posto. Na constitutiva, empregando, para tanto, a linguagem que o sistema
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

estabelece como adequada, vale dizer, a linguagem competen- jurídica válida e vigente; por outro, a realização do evento ju-
te. Isso é o que reitera Gabriel Ivo 74 : ridicamente vertido em linguagem, que o sistema indique como
própria e adequada.
"É a aplicação, portanto, que dá o sentido da incidência.
Separar os dois momentos como se um, o da incidência, Como verificado, a mesma norma pode incidir sobre
fosse algo mecânico ou mesmo divino que nunca erra ou acontecimentos diferentes, produzindo, com isso, fatos jurídi-
falha, e o outro, o da aplicação, como algo humano, vil, su- cos distintos. Paralelamente, normas diferentes podem incidir
jeito ao erro, é inadequado. É pensar que nada precisa da sobre o mesmo suporte fáctico, engendrando também fatos
interpretação. E mais, a incidência automática e infalível juridicamente diversos. Um único fato social comparece aos
reforça a idéia de neutralidade do aplicador. Assim, a inci- olhos do jurista como dois fatos jurídicos distintos porque ob-
dência terá sempre o sentido que o homem lhe der. Melhor:
jeto da incidência de normas jurídicas diversas. Eis aí, desde
a incidência é realizada pelo homem. A norma não incide
por força própria: é incidida". logo, uma observação que me parece preciosa.

O intérprete instaura, desse modo, o fato jurídico e relata


seus efeitos prescritivos, consubstanciados no laço obrigacional
que vai atrelar os sujeitos da relação, como órgãos habilitados
para o seu exercício. E tal atividade, que consiste na expedição
de uma norma individual e concreta, somente será possível se
houver outra norma, geral e abstrata, que lhe sirva de funda-
mento de validade.
Aquilo que se convencionou chamar de "incidência" é, no
fundo, uma operação lógica entre conceitos conotativos (da
norma geral e abstrata) e conceitos denotativos (da norma
individual e concreta). É a relação entre o conceito da hipóte-
se de auferir renda (conotação) e o conceito do fato de uma
dada pessoa "A" auferir renda no tempo histórico e no espaço
do convívio social (denotação). Exatamente porque se dá entre
conceitos de extensão diversa, tal operação é conhecida como
"inclusão de um elemento" (o fato protocolarmente identifi-
cado) na classe correspondente, expressa no enunciado co-
notativo da hipótese tributária. Utiliza-se também a palavra
"subsunção" para fazer referência a esse processo do quadra-
mento do fato na ambitude da norma. Tecnicamente, interes-
sa sublinhar que a incidência requer, por um lado, a norma

74. Norma jurídica: produção e controle, cit., p. 62.

152 153
Capítulo 3
TEORIA HERMENÊUTICA

Sumário: 3.1. O movimento do "giro-linguísti-


co" e a superação dos métodos científicos
tradicionais - 3.1.1. O "giro-linguístico" e a
desconstrução da verdade absoluta - 3.1.2. O
direito como sistema comunicacional - 3.1.3. O
conteúdo semântico do vocábulo "comunicação"
- 3.1.4. - Comunicação, língua e realidade na
concepção de Vilém Flusser - 3.1.5. A construção
da realidade para o direito e o mundo da facti-
cidade jurídica. 3.2. Direito e valores - 3.2.1.
Direito na sua dimensão axiológica - 3.2.2. Ca-
racterísticas do valor. 3.3. Direito e interpreta-
ção - 3.3.1. O percurso gerador de sentido e as
estruturas sígnicas do sistema jurídico - 3.3.2.
Interpretação e semiótica do direito: texto e
contexto - 3.3.3. Interpretação e Lógica formal
do direito: o mínimo irredutível da mensagem
deôntica - 3.3.4. Reflexo do método na constru-
ção do texto - 3.3.5. Axiomas da interpretação e
os limites do exegeta - 3.3.5.1. Interdisciplinari-
dade e intertextualidade - 3.3.5.1.1. Interdisci-
plinaridade e disciplinaridade - 3.3.5.2. Inesgo-
tabilidade da interpretação - 3.3.6. As diferentes
técnicas interpretativas e o direito. 3.4. Ciência
e experiência - 3.4.1. A conversação da prática
com a teoria nos domínios do direito.

155
PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

3.1. O MOVIMENTO DO "GIRO-LINGUÍSTICO" E A mantendo-se fiel aos pontos de partida, para elaborar um sis-
SUPERAÇÃO DOS MÉTODOS CIENTÍFICOS tema descritivo consistente, dando a conhecer como se apro-
TRADICIONAIS xima, vê e recolhe o objeto da investigação. Agora, as medita-
ções que tal conhecimento venha a suscitar, em termos de re-
Mais do que mera presença de proposições descritivas de flexões ulteriores, serão matéria de outras conjecturas, tecidas
origens estranhas, a doutrina do direito tributário ostentou, pelo pensamento humano que não cessa, não se detém, porque
durante considerável espaço de tempo, a confluência de métodos a linguagem apta para falar do mundo é inesgotável.
diversos, naquela "mancebia irregular" a que se referiu Alfredo
Neste ponto, nutro uma convicção que me parece acerta-
Augusto Becker. E o resultado foi o que todos sabem: a falência,
da: a expansão dos horizontes do saber do exegeta do direito
enquanto "conhecimento multidisciplinar", da nossa velha "Ci-
positivado só será possível por meio de um método dogmático,
ência das Finanças", que ousou ter a pretensão de relatar a
restritivo do conteúdo da realidade semântica difusa, fundan-
atividade financeira do Estado sob todos os aspectos possíveis.
do este corte metodológico em premissas sólidas.
Esta seria, como foi, tentativa vã de descrever o mesmo objeto
segundo ângulos cognoscentes distintos: econômico, histórico, Nunca é demais lembrar que escrever "pensando", me-
antropológico, jurídico, ético e tantos mais, porquanto sabemos diante corpo de asserções fundadas em premissas explícitas,
que a cada Ciência cabe um, e somente um método. dista de ser um trabalho fácil. Pelo contrário, é acontecimento
Como reação, a pretexto de repudiar o que não fosse es- inusual, sobretudo em face da doutrina dominante, com seu
tritamente jurídico, a comunidade científica acabou despre- viés de tradição meramente expositiva, fincada em argumentos
zando domínios importantes para a disciplina das condutas de autoridade, como garantia, quase que exclusiva, da proce-
inter-humanas. dência dos enunciados.

Antes de caracterizar-se como singela procura da origi- De uns anos para cá, no entanto, para benefício da comu-
nalidade, em certa medida providência necessária nas elabo- nidade jurídica, com o movimento do "giro-linguístico", e,
rações da Academia, o caráter expansionista, em termos me- posteriormente, do constructivismo lógico-semântico preconi-
todológicos, é o resultado da busca de novos modelos, de outras zado pelo mestre Lourival Vilanova, verifica-se uma grande
forMas de expressão, de paradigmas diferentes dos usuais, no tendência, por parte de alguns exegetas, em se aperfeiçoar a
trato com o fenômeno do direito. Sobre a utilidade concreta Teoria Geral do Direito fazendo uso de expedientes epistemo-
dessas contribuições, como acréscimos efetivos no mundo da lógicos ricos em método, que visam a aprofundar o conheci-
experiência, só o passar do tempo poderá dizer. mento da matéria. E neste movimento, obviamente, encontra-
se envolvido também o direito tributário brasileiro.
De uma coisa, porém, estou convencido: justificam-se
plenamente sob o enfoque da pesquisa científica, da reflexão O estudo do direito tributário, no Brasil, tem exibido in-
aprofundada, da investigação intelectual conduzida no âmbito vejável sentido de verticalidade. A circunstância da farta ela-
desse padrão especulativo, de tal sorte que sua repercussão boração da matéria no altiplano da Constituição e a consciên-
prática passe a ser mera questão circunstancial que as premên- cia de que o conhecimento do direito administrativo é impres-
cias dá vida algumas vezes antecipam, outras protelam. cindível para a boa compreensão da sistemática tributária, tudo
Espera-se do cientista do direito que escolha as premissas, sustentado por uma base sólida de Teoria Geral, Lógica Jurí-
penetradas, é claro, pelos valores que compuserem sua ideologia, dica e por sadias reflexões de Filosofia do Direito, enformaram

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

uma doutrina que vem se distinguindo pela densidade e apri- de sair do âmbito do conhecimento especializado, para exami-
moramento de suas elaborações, pela seriedade da pesquisa e nar a natureza de seu trabalho, inspecionando a técnica da
pela produção de um coerente discurso científico. Óbvio que construção científica, a fim de arrumar organicamente o ma-
tais predicados não atingem a generalidade dos trabalhos, mas terial da investigação, que é o campo próprio da metodologia
é traço bem característico em número razoável de escritos jurídica.
publicados nos últimos anos.
Foi com esta preocupação em "escrever bem e pensando"
Diríamos que a primeira causa é de índole histórica, en- que o constructivismo lógico-semântico tomou força em toda
sejada pelo modo minucioso segundo o qual o constituinte comunidade científica. A busca incessante de se aperfeiçoar a
brasileiro estabeleceu o campo das possibilidades impositivas, Teoria Geral, com o objetivo de aprofundar o conhecimento da
obrigando o estudioso a ingressar no exame acurado da ordem matéria, tornou-se a base do movimento que introduziu, no
constitucional, como pressuposto indeclinável do entendimen- campo epistemológico do direito, mudanças ideológicas rele-
to das instituições tributárias. Outras causas, porém, hão de
vantes. Transportando-se este panorama para o quadro das
ser creditadas à sensibilidade de nossos pesquisadores, que inovações teóricas do movimento, breve investigação nos de-
perceberam, oportunamente, a necessidade do controle na
monstrará o enorme passo dado pela Ciência do Direito.
construção da linguagem científica no âmbito do direito, enfa-
tizando a Teoria Geral e, para o coroamento da pesquisa, esti-
mulando as meditações acerca da natureza do processo cog- 3.1.1. O "giro -linguístico" e a desconstrução da verdade absoluta
noscitivo e de suas projeções efectuais. Este último esforço,
que retroverte sobre a própria construção do discurso, encon- Atravessamos o tempo do "giro-linguístico", concepção
tra limitações, mas, ao mesmo tempo, trava contato com suas do mundo que progride, a velas pandas, quer nas declarações
virtudes e potencialidades. estridentes de seus adeptos mais fervorosos, quer no remo
surdo das construções implícitas dos autores contemporâneos.
No domínio das chamadas "Ciências Sociais", a postura
A cada dia, com o cruzamento vertiginoso das comunicações,
axiológica do ser cognoscente é pressuposta, já que, sem valor,
aquilo que fora tido como "verdade" dissolve-se num abrir e
que é o sentido específico do homem e da sua liberdade, ele
mesmo não existe como tal e não há como falar em cultura. A fechar de olhos, como se nunca tivesse existido, e emerge nova
polaridade se estabelece em termos diferentes. Há cabimento teoria para proclamar, em alto e bom som, também em nome
de enunciados de outras ciências na linguagem da dogmática, da "verdade", o novo estado de coisas que o saber científico
desde que não interfiram naquilo que conhecemos por "mode- anuncia.
lo do raciocínio da Ciência do Direito em sentido estrito". Em exemplo recentíssimo, temos Plutão, "o nono planeta",
Vale dizer, o autor pode, perfeitamente, enriquecer seu que acaba de ser inapelavelmente desqualificado pelos "avan-
discurso descritivo com orações estranhas, desde que o faça a ços" da Astronomia. Pequena substituição na camada de lin-
título de observações marginais. Torna-se possível, então, tras- guagem que outorgava àquela esfera celeste a condição de
ladar sentenças da Economia, da Ciência Política, da Sociologia, planeta foi o suficiente para desclassificá-lo, oferecendo à co-
da História, da Antropologia para ajudar no esclarecimento munidade das Ciências outro panorama do nosso sistema solar.
indicativo, para servir de contraste, de pano de fundo, jamais Mas é curioso perceber que enquanto isso, indiferente às lin-
para fundamentar o modo de ser peculiar do pensamento ju- guagens que nós produzimos sobre ele, Plutão continua cum-
rídico. Tudo isso, sem falar da necessidade que o teórico tem prindo sua trajetória, como se nada houvesse acontecido.
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

Quando Nietzsche asseverou que a Ciência aspirava ao saber teorias. Em outras palavras, firmado o pressuposto da indeter-
sem ater-se a suas eventuais consequências, já antevia modifica- minabilidade da "verdade última", já que não consta haver
ções como essa, que estendem sobre nós o manto do ceticismo, tribunal credenciado para enunciá-la, isso não impediria a
porém não impedem o progresso do conhecimento e a marcha elaboração de um discurso preciso, consistente, dotado de
inexorável da pesquisa, levantando apenas novas conjecturas que força preditiva, porém com assomos de simplicidade, unifican-
proporcionam outras refutações, para lembrar Popper. do fenômenos que pareceriam desconexos à compreensão
daqueles que partissem do chamado "conhecimento vulgar".
As conquistas do "giro" fazem sentir-se em todos os qua-
drantes da existência humana. Ali onde houver o fenômeno do Pondere-se: ultrapassar o modelo que trabalha com a
conhecimento, estarão interessados, como fatores essenciais, "verdade absoluta", no âmbito da linguagem empregada em
o sujeito, o objeto e a possibilidade de o sujeito captar, ainda função descritiva, não significa prescindir dos valores "verda-
que a seu modo, a realidade desse objeto. deiro/falso". Obviamente, quem transmite uma notícia, uma
informação, o faz "em nome da verdade", sem o que não teria
Reflexões desse gênero conduziram o pensamento a uma
sentido a proposição expedida a título de mensagem. Tal reco-
desconstrução da verdade objetiva e a correspondente tomada
nhecimento, contudo, não tolhe as livres especulações de nos-
de consciência dos limites intrínsecos do ser humano, com a
sa mente a respeito do valor metafísico "verdade". Há, portan-
subsequente ruína do modelo científico representado por mé-
to, duas dimensões operativas: (i) uma, de caráter eminente-
todos aplicáveis aos múltiplos setores da experiência física e
mente lógico, que advém da necessidade imanente ao ser hu-
social. Plantado no princípio da auto-referencialidade da lin-
mano de lidar com a "verdade" e com a "falsidade" das propo-
guagem, eis a assunção do movimento do "giro-linguístico". É
sições; e (ii) outra, de índole ontológica, a concepção de "ver-
a retórica, não como singelo domínio de técnicas de persuasão,
dade" como valor filosófico.
mas, fundamentalmente, como o modelo filosófico adequado
Para a compreensão do mundo. Têm-se como não mais exis- Com estes torneios, pretendo deixar claro que a superação
tente aquele espaço excessivamente privilegiado da racionali- dos métodos científicos tradicionais pelo movimento do "giro-
dade, apoiado nos auspiciosos resultados colhidos pela Ciência, linguístico" deixou de encontrar-se tão-só no degrau do valor
tão enaltecido e reverenciado nos tempos do Iluminismo. da "verdade"; crava, da mesma forma, uma nova postura cog-
noscitiva perante o que se entende por "sujeito", por "objeto"
O abandono puro e simples da matriz convencional de e pelo próprio "conhecimento". Levando-se em conta essas
recorte cartesiano poderia resvalar para um relativismo exa- injunções para delinear os traços do movimento, após o "giro-
cerbado, representando o perigo de nos movermos em direção linguístico", passou-se a exigir o próprio conhecer da lingua-
ao anarquismo metodológico, sem perspectivas austeras para gem, condição primeira para a apreensão do objeto. Eis o re-
o projeto científico. Nada obstante, a Filosofia das Ciências sultado desta transposição de sistemas referenciais.
continua sua trajetória, cogitando de recursos compatíveis com
a produção de paradigmas novos, nos quais se estabeleçam Uma vez estabelecidas as fronteiras da nova visão cientí-
conhecimentos rigorosos, desvencilhados do referencial im- fico-filosófica, postula-se agora do intérprete muito mais que
placável da "verdade absoluta", mas habilitados a manter de concepções subjetivistas (em que se focaliza o sujeito) ou dou-
Pé o prestígio do discurso científico nos domínios do saber. trinas objetivistas (nas quais há o privilégio para o conheci-
mento do objeto). Tais cortes cognitivos causavam mudanças
É possível estruturar sistemas de objetivações que satisfaçam no modo de aproximação do intérprete tendo em vista a aqui-
aos anseios do espírito, preservando a incomensurabilidade das sição do conhecimento.
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

3.1.2. O direito como sistema comunicacional do direito posto, que são numerosos os casos de discrepância
entre a proposição prescritiva e a situação do mundo recolhida
Neste contexto, penso que nos dias atuais seja temerário como conteúdo da linguagem ordinária, utilizada no cotidiano.
tratar do jurídico sem atinar a seu meio exclusivo de manifes- A autoridade que legisla passa por alto pela conformação da
tação: a linguagem. Não toda e qualquer linguagem, mas a linguagem vivida no ambiente social, tomando o acontecimen-
verbal-escrita, em que se estabilizam as condutas intersubje- to como convém à disciplina de seus interesses regulatórios,
tivas, ganhando objetividade no universo do discurso. E o exibindo, com isso, a manifesta independência que existe entre
pressuposto do "cerco inapelável da linguagem" nos conduzi- os dois segmentos sígnicos.
rá, certamente, a uma concepção semiótica dos textos jurídicos,
em que as dimensões sintáticas ou lógicas, semânticas e prag- Claro está que dessa observação advêm consequências
máticas, funcionam como instrumentos preciosos do aprofun- fundamentais para a compreensão do fenômeno jurídico. Entre
damento cognoscitivo. elas, cabe referir: a) o discurso normativo, para reger os com-
portamentos entre pessoas, não pode ater-se, pura e simples-
Além disso, a presença de uma eficaz teoria das normas
mente, à linguagem mediante a qual aquelas condutas se efe-
abre as portas ao cientista para uma série de evoluções que o
tivam no meio social, sob pena de ficar tolhido pelos mesmos
pensamento pode organizar, na construção de sentidos ade-
quados para compreender o sistema do direito posto. fatores que o condicionam. Por isso mesmo, permite-se-lhe
tanto confirmar proposições factuais como alterá-las pela in-
Orientar as condutas inter-humanas, no sentido de pro- firmação, total ou parcialmente, ao talante do legislador, com
piciar a realização de valores caros aos sentimentos sociais, o que se constrói o plano da facticidade jurídica; b) disso de-
num determinado setor do tempo histórico, tem sido o primor-
corre uma configuração semiótica bem distinta entre os dois
dial objetivo do direito. Essa pré-ordenação de comportamen-
corpus, com suas peculiares dimensões sintáticas, semânticas
tos possíveis, no âmbito do relacionamento intersubjetivo,
e pragmáticas, nitidamente diferentes; c) e uma conclusão
porém, é apenas estimulada, instigada, provocada pelos meca-
incisiva, no sentido de que o intervalo dessa diferença é ocu-
nismos linguísticos de que se pode servir o instrumento jurí-
pado por construções em que o autor dos preceitos normativos
dico, porquanto sabemos que a linguagem, ainda que proferi-
da com a autoridade coativa dos órgãos do Poder Público, não opera com liberdade, vigiada pela Lógica Deôntica e pelos
chega a tocar materialmente os eventos e as condutas por ela imperativos do próprio sistema, é certo, mas imprescindível
regulados. O legislador, tomado aqui em seu sentido amplo, para os fins reguladores a que se destina a linguagem do direi-
tem de mexer com crenças, hábitos sociais, sentimentos e es- to positivo.
ti mativas; tem de apreender, historicamente, a marcha do so- Ora, como a demarcação do objeto é da responsabilidade
cial, para que lhe seja possível motivar os destinatários da regra do cientista, atento aos limites epistemológicos do correspon-
jurídica, induzindo-os no sentido de realizar as expectativas dente campo de investigação, nada impede que seu interesse
normativas. venha a incidir exatamente no espaço daquela diferença a que
Agora, esse poder retórico que atravessa de cima a baixo aludi linhas acima, enfrentando indagações como: até que
a mesagem legislada, e sem o qual ficará irremediavelmente ponto o editor da norma jurídica pode desprender-se das formas
comprometida a eficácia social da norma, faz com que o dis- usuais encontradas no exame do tecido social, sob o pretexto
curso jurídico-prescritivo assuma ares de autonomia com re- de disciplinar os comportamentos interpessoais? Que expe-
lação à linguagem da realidade. Verifica-se, ao percorrer textos dientes retóricos estaria ele credenciado a empregar? Como

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

funcionariam esses recursos que, no final das contas, outorgam possibilitou atingir níveis mais profundos de observação e
tal supremacia à linguagem do legislador? também desenvolver uma análise mais fina e penetrante do
As respostas dessas e outras indagações se enlaçam estri- trabalho construtivo da Ciência. Tal perspectiva sacode a cons-
tamente na escolha da concepção filosófica adotada pelo intér- ciência e mexe com as concepções convencionais que estamos
acostumados a encontrar.
prete do direito na compreensão do direito posto e na constru-
ção da facticidade jurídica. E muitas podem ser! Eis que, por O direito, no seu particularíssimo modo de existir, mani-
esse vezo metodológico apresentado acima, fica claro meu festa-se necessariamente na forma de linguagem. E linguagem
apreço pelas concepções do constructivismo lógico-semântico. é texto. Agora, a proposição segundo a qual "tudo é texto", o
chamado "cerco inapelável da linguagem", como asserção fi-
Certo é que o direito, tomado como um grande fato comu-
losófica da mais alta indagação, não nos cabe discutir neste
nicacional, é concepção relativamente recente, tendo em vista
espaço e nesta oportunidade.
a perspectiva histórica, numa análise longitudinal da realidade.
Situa-se, como não poderia deixar de ser, no marco da filosofia
da linguagem, mas pressupõe interessante combinação entre 3.1.3. O conteúdo semântico do vocábulo "comunicação"
o método analítico e a hermenêutica, fazendo avançar seu
programa de estruturação de uma nova e instigante Teoria do Partindo da premissa de que, ao interpretarmos os textos
Direito, que se ocupa das normas jurídicas enquanto mensagens jurídico-positivos, devemos buscar no discurso científico o
conteúdo semântico dos vocábulos, passarei a fazê-lo no que
produzidas pela autoridade competente e dirigidas aos inte-
tange ao termo "comunicação", objetivando explanar a con-
grantes da comunidade social. Tais mensagens vêm animadas
cepção do direito como formador de um grande processo co-
pelo tom da juridicidade, isto é, são prescritivas de condutas,
municacional. Animado por este propósito, impõe-se observar
orientando o comportamento das pessoas de tal modo que se
o significado a ele atribuído pela Semiótica, disciplina que
estabeleçam os valores presentes na consciência coletiva.
estuda os elementos pertinentes à comunicação, pois essa ma-
O direito como sistema de comunicação - cujas unidades téria, na qualidade de Teoria Geral dos Signos, estará mais
são ações comunicativas e, como tais e enquanto tais, devem autorizada a dizer, de forma precisa, que é e como funciona o
ser observadas e exploradas - impõe que qualquer iniciativa fenômeno da comunicação.
para intensificar o estudo desses fenômenos leve em conta o A palavra "comunicação", assim como a quase totalidade
conjunto, percorrendo o estudo do emitente, da mensagem, do dos termos idiomáticos conhecidos, padece do problema da
canal e do receptor, devidamente integrados no processo dia- ambiguidade. No falar quotidiano, e até mesmo em obras que
lético do acontecimento comunicacional. pretendem esclarecer o significado dos vocábulos (dicionários),
Tenho a firme convicção de que essa proposta epistemo- "comunicação" seria uma palavra utilizada em ocasiões diver-
lógica é sumamente enriquecedora, oferecendo perspectivas sas, com sentidos variados. Cientificamente, porém, a situação
valiosas para quem se aproxima do direito em atitude cognos- é outra. "Comunicação" deve ser entendida em conformidade
centy. E o testemunho vivo desse reconhecimento já está con- com a Ciência que estuda os signos, isto é, a Semiótica, aban-
signádo em numerosos escritos da dogmática brasileira, prin- donando-se os sentidos resultantes dos usos comuns.
cipalmente no campo do direito tributário. A investigação do Na acepção mais geral, o termo "comunicação" designa qual-
fenômeno jurídico, com os recursos da teoria comunicacional, quer processo de intercâmbio de uma mensagem entre um emissor
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

e um receptor". Para que isso seja possível, porém, necessária se O significado de cada um desses elementos deve ser de-
faz a coalescência de determinados componentes que, segundo li mitado: (1) emissor: é a fonte da mensagem, aquele que com-
Roman Jakobson 76 , são seis: remetente, mensagem, destinatário, porta as informações a serem transmitidas; (2) canal: é o su-
contexto, código e contato. Utilizando esses elementos para descre- porte físico necessário à transmissão da mensagem, sendo o
ver o processo da interação comunicacional, temos a seguinte si- meio pelo qual os sinais são transmitidos (é o "ar", para o caso
tuação: O remetente (1) envia uma mensagem (2) ao destinatário (3). da comunicação oral, mas pode apresentar-se em formas di-
Para ser eficaz, a mensagem requer um contexto (4) a que se refere,
versas, como faixas de frequência de rádio, luzes, sistemas
apreensível pelo destinatário, e que seja verbal ou susceptível de
mecânicos ou eletrônicos, etc.); (3) mensagem: é a informação
verbalização; um código (5) total ou parcialmente comum ao reme-
transmitida; (4) código ou repertório (comum a ambos): é o con-
tente e ao destinatário; e, finalmente, um contato (6), um canal físi-
co e uma conexão psicológica entre o remetente e o destinatário, junto de signos e regras de combinações próprias a um sistema
que os capacite a entrar e permanecer em comunicação. de sinais, conhecido e utilizado por um grupo de indivíduos
ou, em outras palavras, é o quadro das regras de formação
Umberto Eco" define o processo comunicativo como a (morfologia) e de transformação (sintaxe) de signos; (5) recep-
passagem de um sinal que parte de uma fonte, mediante um
tor: a pessoa que recebe a mensagem, o destinatário da infor-
transmissor, ao longo de um canal, até o destinatário. J. Teixei-
mação; (6) conexão psicológica: é a concentração subjetiva do
ra Coelho Netto 78 também adota semelhante definição de pro-
emissor e receptor na expedição e na recepção da mensagem;
cesso comunicacional. Segundo esse autor, u'a mensagem é
e (7) contexto: é o meio envolvente e a realidade que circuns-
elaborada pela fonte, com elementos extraídos de um determi-
crevem o fenômeno observado.
nado repertório, sendo transmitida por um canal e decodifica-
da por um receptor, que, para tanto, utilizará elementos extra- É forçoso concluir que o processo comunicativo, segundo
ídos de outro repertório, que tenha algum ponto em comum teóricos da comunicação e linguistas, consiste na transmissão, de
com o repertório da fonte. uma pessoa para outra, de informação codificada. O esquema da
Em síntese, o processo comunicacional, seja ele de que comunicação supõe, portanto, a transmissão de u'a mensagem,
espécie for, apresenta a seguinte esquematização: por meio de um canal, entre o emissor e o receptor, que possuem
em comum, ao menos parcialmente, o repertório necessário para
a decodificação da mensagem. Eis o conteúdo semântico cienti-
CONTEXTO ficamente atribuído ao vocábulo "comunicação".
emissor - canal - mensagem - código - receptor - conexão Tomando este pano de fundo, situaremos o direito como
psicológica um fato comunicacional.
Considerando que o direito existe para disciplinar os
comportamentos humanos no convívio social, o consequente
75.Gérard Durozoi e André Roussel, Dicionário de filosofia, Trad. Marinha normativo é a categoria fundamental do conhecimento jurídi-
Appenzeller, Campinas, Papirus, 1993, p. 95. co. Forma-se, invariavelmente, por uma proposição relacional,
76.Lingitistica e comunicação, São Paulo, Cultrix, 1991, p. 123. enlaçando dois ou mais sujeitos de direito em torno de uma
77.Tratado geral de semiótica, 2a ed., São Paulo, Perspectiva, 1991, p. 5. conduta regulada como proibida, permitida ou obrigatória.
78. Semiótica, informação e comunicação, 3 2 ed., São Paulo, Perspectiva, Para terem sentido e, portanto, serem devidamente compre-
1990, p. 123. endidos pelo destinatário, os comandos jurídicos devem reves-
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

tir um quantum de estrutura formal. Em simbolismo lógico, Para que haja comunicação da mensagem jurídica geral
teríamos: D[F —> (S'RS")], que se interpreta da seguinte forma: e abstrata e sua eficácia é necessário, portanto, o fenômeno da
"deve-ser que, dado o fato F, então se instale a relação jurídica incidência, que é a percussão da norma, por meio da juridici-
R, entre os sujeitos S' e S"." Apenas com esse esquema formal zação do acontecimento do mundo da experiência social, fa-
haverá possibilidade de sentido deôntico completo. Sua com- zendo propagar efeitos peculiares na disciplina das condutas
posição sintática é constante: um juízo condicional, em que se interpessoais.
associa uma consequência à realização de um acontecimento As normas jurídicas, entretanto, não incidem por força
fáctico previsto no antecedente, fazendo-o por meio implica- própria. É indispensável que seja efetuada sua aplicação, isto
cional. Eis o porquê de afirmar-se ser a norma jurídica a uni-
é, que alguém interprete a amplitude dos preceitos legais, fa-
dade irredutível de manifestação do deôntico.
zendo-os incidir no caso particular e sacando, assim, a norma
Na hierarquia do direito posto, há forte tendência de que individual e concreta. A incidência das normas jurídicas requer
as normas gerais e abstratas se concentrem nos escalões mais o homem, como elemento intercalar, movimentando as estru-
altos, surgindo as gerais e concretas, individuais e abstratas e turas do direito, construindo, a partir de normas gerais e abs-
individuais e concretas à medida que o direito vai se positivan- tratas, outras gerais e abstratas, gerais e concretas, individuais
do, com vistas à regulação das condutas interpessoais. Carac- e abstratas, ou individuais e concretas, para, com isso, imprimir
teriza-se o processo de positivação exatamente por esse avan- positividade ao sistema, até atingir o máximo de motivação das
ço em direção aos comportamentos humanos, que se dá na consciências e, dessa forma, tentar mexer na direção axiológi-
produção das mensagens normativas expedidas pelo agente ca dos comportamentos intersubjetivos. É no homem que en-
competente (emissor) por meio de linguagem escrita (canal) contramos a fonte da mensagem jurídica; é nele que se arma-
segundo os preceitos do direito positivo (código). As normas zenam as informações a serem transmitidas.
gerais e abstratas, dada sua generalidade e posta sua abstração,
não têm condições efetivas de atuar num caso materialmente Não é qualquer sujeito de direito, porém, que está habi-
definido. Ao projetar-se em direção à região das interações litado a aplicar a norma jurídica. Este aparece, já foi dito, como
sociais, desencadeiam uma continuidade de regras que progri- um grande fato comunicacional, sendo a criação normativa
dem para atingir o caso especificado. Isso demonstra a neces- confiada a órgãos credenciados pelo sistema. O sujeito produ-
sidade da especificação da mensagem ínsita ao processo co- zirá regras apenas na medida em que participe, efetivamente,
municacional do direito positivo. daquele processo, integrando o fato concreto da comunicação
jurídica. Sempre que não estiver inserido nesse processo, per-
Em suma, as normas gerais e abstratas não ferem direta-
manecendo de fora, não atuando, mas simplesmente estudan-
mente as condutas intersubjetivas para regulá-las. Exigem o
do, descrevendo, conhecendo o direito positivo, formulará, se
processo de positivação, vale dizer, reclamam a presença de
muito, propostas de normas, hipóteses sobre composição de
norma individual e concreta a fim de que a disciplina prevista
estruturas normativas. A construção dessas unidades irredu-
para a generalidade dos casos possa chegar ao sucesso efeti-
vamente ocorrido, modalizando deonticamente as condutas. A tíveis de significação do deôntico-jurídico pressupõe a inserção
mensagem do direito, neste processo jurídico-comunicacional, de enunciados prescritivos na ordenação total, revestindo todos
exige a tipificação no espaço e no tempo do comando norma- os caracteres formais exigidos pelo sistema, e isso é tarefa pri-
tivo antecedente bem como, no consequente, do indivíduo ou vativa dos órgãos, pessoas físicas ou jurídicas, para tanto ha-
do grupo identificado de pessoas. bilitadas. Somente sujeito de direito, indicado pela lei, poderá,

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

por intermédio da norma individual e concreta, recolher os constituindo-se a "realidade". Haveria, portanto, um mundo
elementos verificados no acontecimento efetivo da vida social, "aparente" caótico e um mundo "real" ordenado. O espírito
proceder à operação lógica de subsunção e expedir a norma humano avançaria da "aparência" para a "realidade". Os ins-
individual e concreta, constituindo em linguagem a relação trumentos desse avanço seriam a Filosofia, a Religião, as Ci-
jurídica. Em outras palavras, e transportadas essas reflexões ências e as Artes, métodos pelos quais o espírito tenta romper
ao campo do fato comunicacional, só será emissor da mensagem as "aparências" constituindo e propagando a "realidade".
jurídica aquele que estiver assim qualificado pelo código co-
municacional, ou seja, pelo ordenamento positivo. Gustavo Bernardo Krauser oferece interessantes e suges-
tivos aspectos da concepção de Flusser no Prefácio do livro
Resumindo. Falar em incidência normativa ou subsunção
Língua e Realidade 81 . Dele me servi para esse breve resumo.
do fato à norma, portanto, é descrever o processo comunica-
cional do direito, indicando os elementos participantes na As objeções que se têm levantado contra as idéias de
construção da mensagem legislada. Flusser são de três ordens: a) as que negam a possibilidade
do espírito em penetrar as aparências (o ceticismo); b) as que
negam a realidade, seja qual for (o niilismo); e c) as que afir-
3.1.4. Comunicação, língua e realidade na concepção de Vilém
mam a impossibilidade de articular e comunicar a penetração
Flusser
(o misticismo). Críticas epistemológicas, as primeiras; obje-
Vilém Flusser" afirmou que universo, conhecimento, ver- ções ontológicas, as segundas; e obstáculos de cunho religio-
dade e realidade são aspectos linguísticos, de tal modo que a so, as últimas.
língua é, forma, cria e propaga a realidade". Aquilo que nos Flusser, porém, combate-os com argumentos convincen-
chega pela via dos sentidos (intuição sensível), e que chamamos
tes, afirmando que o conhecimento absoluto, a realidade fun-
de "realidade", é dado bruto, que se torna real apenas no con-
damental e a verdade imediata não passam de conceitos ocos
texto da língua, única responsável pelo seu aparecimento.
e desnecessários para a construção de um cosmos. A estrutura
Assim, todas as palavras são metáforas. As ciências, como ca-
madas de linguagem, longe de serem válidas para todas as desse cosmos se identifica com a língua, lembrando que logos,
línguas, são, elas próprias, outras línguas que precisam ser a palavra, é o fundamento do mundo dos gregos pré-filosóficos;
traduzidas para as demais. O autor tcheco foi fortemente in- nama-rupa, a palavra-forma, o fundamento do mundo dos
fluenciado por Wittgenstein e por Husserl, criando seu método hindus pré-vedistas; hachem hacadoc, o nome santo, é o Deus
de análise fenomenológica da linguagem, o que lhe permitiu dos judeus. E conclui, para dizer que o evangelho tem início
captar a língua como elemento vivo, capaz de transformar o com a frase: No começo era o verbo. É preciso advertir que, para
caos dos dados imediatos, no cosmos das palavras preenchidas Flusser, o intelecto, com sua infra-estrutura, os sentidos, e sua
de sentido. superestrutura, o espírito (ou qualquer outra palavra), formam
Prosseguindo com o pensamento desse autor, o mundo é o Eu. O Eu é, portanto, uma árvore cujas raízes, os sentidos,
"aparentemente" caótico, mas, pela linguagem, pode ser ordenado, estão ancoradas no chão da realidade, cujo tronco é o intelec-
to e cumpre a função de transportar a seiva colhida pelas raízes,

79.Vilém Flusser, Língua e realidade, 2a ed., São Paulo, Annablume, 2004.


80.Idem, ibidem, p. 33. 81. Vilém Flusser, Língua e realidade, 2a ed., São Paulo, Annablume, 2004.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

transformada até a copa, o espírito, para produzir folhas, flores também pelo setor privado, este último, aliás, o mais fecundo
83
e frutos 82 . E, mais adiante , e numeroso, se bem que de menor hierarquia que as outras
fontes. São tais enunciados articulados na forma implicacional
"Ele sabe dos sentidos e dos dados brutos que colhe, mas das estruturas normativas e organizados na configuração su-
sabe deles em forma de palavras. Quando estende a mão perior de sistema; eles, repito, que são, formam, criam e propa-
para apreendê-los, transformam-se em palavras. Isto justa-
gam a realidade jurídica.
mente caracteriza o intelecto: consiste de palavras, modifi-
ca palavras, reorganiza palavras, e as transporta ao espíri- No livro Direito Tributário - Fundamentos Jurídicos da
to, o qual, possivelmente, o ultrapassa. O intelecto é, por- Incidência, procurei transmitir essa proposição afirmativa com
tanto, produto e produtor da língua, 'pensa'." as seguintes palavras: Digamos, então, que sobre essa linguagem
(a social) incide a linguagem prescritiva do direito positivo,
Curioso e sugestivo, também, é o tropo de linguagem juridicizando fatos e condutas, valoradas com o sinal positivo
utilizado por Flusser ao distinguir intelecto stricto sensu do lato da licitude e negativo da ilicitude. A partir daí, aparece o direi-
sensu 84 . Na primeira acepção, intelecto comparar-se-ia a uma to como sobrelinguagem, ou linguagem de sobrenível, cortando
tecelagem que usa palavras como fios. No sentido lato, o local a realidade social com a incisão profunda da juridicidade. Ora,
disporia de uma ante-sala na qual funcionaria uma fiação que como toda a linguagem é redutora do mundo sobre o qual incide,
transforma algodão bruto (dados dos sentidos) em fios (pala- a sobrelinguagem do direito positivo vem separar, no domínio do
vras). Acrescentando que a maioria das matérias-primas já vem
real-social, o setor juridicizado do setor não juridicizado, vem
na forma de fios. desenhar, enfim, o território da facticidade jurídica 85 .
Para não alongar o assunto, e procurando ser bem obje-
3.1.5. A construção da realidade para o direito e o mundo da tivo, quero manifestar a convicção plena de que a realidade
facticidade jurídica jurídica é constituída, em toda a sua extensão, em todos os seus
momentos e manifestações, em todas as suas instâncias orga-
O grande mérito de Flusser situa-se na força retórica de
nizacionais, pela linguagem do direito posto, entrando nessa
seus argumentos, que tiveram a virtude de demonstrar, o quan-
função configuradora tanto as normas gerais e abstratas e
to se pode fazê-lo nessa difícil região do conhecimento, que a
gerais e concretas como as individuais e abstratas e as indivi-
língua é, forma, cria e propaga a realidade. Pois então, o terri-
tório das condutas intersubjetivas, campo de eleição do direito, duais e concretas, as quais decompostas, exibem a multiplici-
sendo, como de fato pensamos ser, a realidade jurídica por dade imensa dos enunciados jurídico-prescritivos.
excelência, é construído pela linguagem do direito positivo,
tomado aqui na sua mais ampla significação, quer dizer, o con- 3.2. DIREITO E VALORES
junto dos enunciados prescritivos emitidos pelo Poder Legis-
lativo, pelo Poder Judiciário, pelo Poder Administrativo e Examinamos, no capítulo anterior, a figura dos objetos
culturais, como sínteses do ser e do dever-ser. Ao construir tais

82.Língua e realidade, cit., p. 46.


83.Idem, ibidem, p. 47. 85.Paulo de Barros Carvalho, Direito tributário: Fundamentos jurídicos da
84.Idem, ibidem, p. 40. incidência, 5a ed., Saraiva, São Paulo, p. 13.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

objetos, o ser humano pretende alcançar um fim, que, na ex- aprova o comportamento prescrito, ou mesmo o tem por ne-
pressão de Miguel Reale 86 , nada mais é do que um valor toma- cessário para o convívio social. Caso o functor escolhido seja o
do enquanto razão de ser da conduta. Naquele momento, fiz "proibido", fica nítida a desaprovação social da conduta, ma-
notar que o direito preenche, na integridade, os requisitos nifestando-se inequívoco valor negativo. Vê-se que o valor está
próprios aos objetos culturais, cujo ato gnosiológico adequado na raiz mesma do dever-ser, isto é, na sua configuração lógico-
é a compreensão. Pois bem. Parece-me imprescindível analisar, formal.
agora, a projeção axiológica do direito, tendo em vista a apro- Foi Rudolf Hermann Lotze, um dos grandes metafísicos
ximação que pretendemos estabelecer. alemães e dos mais representativos pensadores do seu século,
que introduziu a categoria valor na problemática da filosofia
3.2.1. Direito na sua dimensão axiológica moderna. Haveria uma ordem dos valores distinta da ordem
do ser, como o mundo das validades irreais, de uma objetivi-
Não é exagero referir que o dado valorativo está presente dade puramente espiritual. Newton Sucupira 87 apresenta al-
em toda configuração do jurídico, desde seus aspectos formais guns princípios gerais que norteavam a teoria de Lotze e que
(lógicos), como nos planos semântico e pragmático. Em outras se encontram na filosofia dos valores do neokantismo de Baden
palavras, ali onde houver direito, haverá, certamente, o ele- e em outros filósofos: 1) os valores repousam sobre validades
mento axiológico. A demonstração deste asserto não é difícil e irreais; 2) constituem campo autônomo junto e sobre o ser
pode ser feita com singelas lembranças das manifestações ju- concreto; 3) o valor é sempre uma relação ligada a um sujeito;
rídicas, em pontos diversos da existência desse fenômeno. Vou 4) não é atividade puramente teorética, mas uma faculdade
tecer algumas considerações, a título de exemplo, pois o exem- prática que nos conduz à apreensão do valor.
plo sempre foi ponto de apoio fundamental, importantíssimo
Como referiu Tercio Sampaio Ferraz Jr.", valores são
para a absorção e fixação do conhecimento.
preferências por núcleos de significação, ou melhor, são centros
Ao escolher, na multiplicidade intensiva e extensiva do significativos que expressam preferibilidade por certos conte-
real-social, quais os acontecimentos que serão postos na con- údos de expectativa. Podemos dizer que é a não-indiferença
dição de antecedente de normas tributárias, o legislador exer- de alguma coisa relativamente a um sujeito ou a uma consci-
ce uma preferência: recolhe um, deixando todos os demais. ência motivada. É uma relação entre o sujeito dotado de uma
Nesse instante, sem dúvida, emite um juízo de valor, de tal necessidade qualquer e um objeto ou algo que possua qualida-
sorte que a mera presença de um enunciado sobre condutas de ou possibilidade real de satisfazê-lo. Valor é um vínculo que
humanas em interferência subjetiva, figurando na hipótese da se institui entre o agente do conhecimento e o objeto, tal que
regra jurídica, já significa o exercício da função axiológica de o sujeito, movido por uma necessidade, não se comporta com
quem legisla. Outro tanto se diga no que atina ao modo de indiferença, atribuindo-lhe qualidades positivas ou negativas.
regular a conduta entre os sujeitos postos em relação deôntica. Luiz Fernando Coelho" salienta a quase unanimidade das
As possibilidades são três, e somente três: obrigatória, permi-
tida ou proibida. Os modais "obrigatório" e "permitido" trazem
a marca de um valor positivo, porque revelam que a sociedade 87. Tobias Barreto e a filosofia alemã, Rio de Janeiro, Gama Filho, 2001, pp.
149-150.
88.Introdução ao estudo do direito, cit., p. 111.
86. Introdução à filosofia, 3a ed., São Paulo, Saraiva, 1994, p. 145. 89.Aulas de introdução ao direito, São Paulo, Manole, 2004, p. 15.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

opiniões no sentido de que os valores não têm expressão ônti- como equivalente nominal de "avaliação ideológica", e, neste
ca, isto é, eles não são, não consistem em algo, mas valem, e só sentido, funciona como fator que gera equilíbrio, calibrando
se pode predicar sua existência como algo aderente ao ser e as diversas instâncias do ordenamento normativo.
não como alguma coisa que tenha um ser. Haveria uma depen-
Sobre a temática dos valores, além dos trabalhos especí-
dência ontológica dos valores com relação ao ser.
ficos de Johannes Hessen, Max Scheler, Nicolai Hartmann e
Registre-se, entretanto, que essa forte inclinação das Miguel Reale, vale a pena consultar outros autores, como Hein-
opiniões filosóficas para o niilismo dos valores recebe o impac- rich Rickert, Wilhelm Windelband e Emil Lask.
to da noção fenomenológica de objeto como correlato intencio-
nal da consciência cognitiva. Isso permite que os valores sejam
objetivamente pensados como ser-em-si. Podemos, então, fo-
3.2.2. Características do valor
calizar a justiça como dado supremo para o direito, a igualda-
Miguel Reale", desvinculando os valores dos objetos ide-
de, a segurança, a boa fé e assim por diante.
ais, logrou dar status autônomo à Axiologia ou Teoria dos Va-
Não é excessivo, porém, falar na inexistência, propria- lores. Consoante as lições do jusfilósofo, seguindo a trilha de
mente dita, dos valores. Seu existir consistiria apenas no ato Hessen, há traços que assinalam a presença de valores, permi-
psicológico de valorar, segundo o qual, atribuímos a objetos, tindo identificá-los em contraste com entidades próximas. São
aqui considerados em toda a sua plenitude semântica, quali- eles: a) a bipolaridade, apenas possível entre os objetos meta-
dades positivas ou negativas. E o que nos dá acesso ao reino físicos e culturais, que é marca obrigatória dos valores. Onde
dos valores é a intuição emocional, não a sensível nem a intelec- houver valor, haverá, como contraponto, o desvalor, de tal modo
tual. Tomados, porém, isoladamente, tais atributos assumiriam que os valores positivos e negativos implicam-se mutuamente,
a feição de objetos metafísicos: a justiça em si, a beleza em si, daí b) a implicação recíproca. A terceira nota c) é a necessida-
etc. Enfim, os valores não são, mas valem. Dito de outra manei- de de sentido ou referibilidade, querendo significar que o valor
ra, os valores seriam aquelas entidades cujo modo específico de importa sempre uma tomada de posição do ser humano peran-
ser é o valer. Eles são na medida em que valem. Por outro lado, te alguma coisa, a que está referido. Além disso, as estimativas
as ideologias constituem prismas, critérios de avaliação de va- são d) entidades vetoriais, apontando para uma direção deter-
lores. Como pondera Tercio, são valores que filtram outros va- minada, para um fim, e denunciando, com isso, preferibilidade.
lores. A ideologia vai se formando com a consolidação de valo- Por outro lado, e) não sendo passíveis de medição, os valores
res em posições de preeminência, de tal modo que definida a são incomensuráveis, mas f) apresentam forte tendência à
composição desse bloco axiológico, passa ele a submeter outros graduação hierárquica, o que exprime a inclinação de se aco-
valores que pretendam ingressar no sistema de estimativas do modarem em ordem escalonada, quando se encontram em
indivíduo, selecionando-os em função de sua compatibilidade relações mútuas, tomando como referência o mesmo sujeito
com aquela camada que fundamenta a estrutura. É a experiên- axiológico. O fato de não poderem ser mensurados mostra a
cia de vida de cada um que vai, paulatinamente, tecendo a con- flagrante incompatibilidade entre o reconhecimento das esti-
figuração desse esquema seletor, em organizações que podem mativas e sua medição, seja qual for o padrão adotado. Entenda-
ser categorizadas e reconhecidas por aspectos peculiares, so- se por incomensurabilidade, portanto, o sem-sentido semântico
mente seus. Daí a proposição afirmativa segundo a qual a valo-
ração ideológica tem por objeto imediato os próprios valores.
Aliás, utiliza-se com muita propriedade o termo "ideologia" 90. Introdução à filosofia, cit., p. 141.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

que representaria estabelecer proporções de medida aos valo- entre o agente do conhecimento e o objeto, tal que o sujeito,
res. Além das características lembradas, g) os valores requerem movido por uma necessidade, não se comporta com indiferen-
sempre objetos da experiência para neles assumir objetividade. ça, atribuindo-lhe qualidades positivas ou negativas.
Não se revelam sem algo que os suporte e sem uma ou mais
Bem se vê que o deparar com valores leva o intérprete,
consciências às quais se refiram. A objetividade é consequên-
necessariamente, a esse mundo de subjetividades, até porque
cia da particular condição ontológica dos valores. Se eles se
eles se entrelaçam formando redes cada vez mais complexas,
configuram como qualidades aderentes, que os seres humanos
que dificultam a percepção da hierarquia e tornam a análise
predicam dos objetos (reais e ideais), hão de requerer, invaria-
uma função das ideologias dos sujeitos cognoscentes.
velmente, a presença desses mesmos objetos. Chamamos, aqui,
de "objetividade" a esse atributo intrínseco a todos os valores, Em relação sucinta, para que possamos reter na memória
a despeito de sua verificação cognoscitiva processar-se mais essas informações sintáticas sobre valores, eis o rol dos dez
emocional do que racionalmente. elementos mencionados, sem que a ordem signifique predo-
minância de uns em face de outros.
Ainda sobre a composição lógica dos valores, é preciso
dizer que h) eles vão sendo construídos na evolução do proces- a) Bipolaridade.
so histórico e social, o que lhes dá o timbre de historicidade.
b) Implicação recíproca.
Com efeito, os valores não caem do céu, mas vão sendo depo-
sitados, gradativamente, ao longo da trajetória existencial dos c) Referibilidade.
homens. O elemento da historicidade nos valores significa, d) Preferibilidade.
portanto, que eles não aparecem do nada, de um momento para
outro, tratando-se de uma particularidade importante que e) Incomensurabilidade.
integra sua estrutura lógica. Outro, porém, é i) a inexauribili- f) Tendência à graduação hierárquica.
dade, exibindo, a cada passo, que os valores sempre excedem
os bens em que se objetivam. Mesmo que o belo seja insisten- g) Objetividade.
temente atribuído a uma obra de arte, sobrará esse valor esté- h) Historicidade.
tico para muitos outros objetos do mundo. Tal transcendência
i) Inexauribilidade.
é própria às estimativas, de modo que o bem em que o valor se
manifesta não consegue contê-lo, aprisioná-lo, evitando sua j) Atributividade.
expansão para os múltiplos setores da vida social.
Como derradeira marca na configuração sintática ou ló- 3.3. DIREITO E INTERPRETAÇÃO
gica dos valores, convém mencionar a j) atributividade, aspec-
to relevantíssimo que enaltece o ato de valoração, deixando Desde os idos do "constructivismo lógico-semântico" ou,
acesa a lembrança de que os valores são preferências por nú- simplesmente, "constructivismo lógico", a relevância da aná-
cleos de significação ou centros significativos que expressam lise epistemológica é algo imprescindível na elaboração cien-
uma preferibilidade por certos conteúdos de expectativa, como tífica. Os leitores, de um modo geral, sabem identificar o tra-
já fico iu dito linhas acima. Ao mesmo tempo, acentua o caráter balho desenvolvido com método, seguindo um roteiro prede-
de não indiferença de um sujeito ou de uma consciência moti- terminado, para distingui-lo daquel'outro, meramente infor-
vada, em face de algo que esteja à sua frente. É uma relação mativo, voltado apenas ao fim de informar ou de transmitir a

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

notícia. Quem lê ou quem ouve o discurso, mesmo não poden- o direito positivo se apresenta aos nossos olhos como objeto
do justificar sua impressão, percebe quando a mensagem vem cultural por excelência, plasmado numa linguagem que porta,
impregnada de certas reflexões que lhe dão gravidade e senti- necessariamente, conteúdos axiológicos. Agora, esse oferecer-
do de aprofundamento. se em linguagem significa dizer que aparece na amplitude de
um texto, fincado este num determinado corpus que nos permi-
De outra parte, o direito posto, na sua continuidade nor-
te construir o discurso, utilizada aqui a palavra na acepção de
mativa, oferece flagrante heterogeneidade de conteúdos, vista
plano de conteúdo, a ser percorrido no processo gerativo de
sua pretensão de regular as condutas intersubjetivas no con-
sentido. Surgirá o texto quando promovermos a união do plano
texto social. Daí a divisão, de cunho puramente metodológico, de conteúdo ao plano de expressão, vale dizer, quando se mani-
entre os vários ramos do sistema jurídico, providência estraté-
festar um empírico objetivado, que é o plano expressional.
gica do sujeito do conhecimento para poder aproximar-se do
objeto que pretende conhecer. A proposta que se contém neste subcapítulo levanta-se
igualmente sobre alguns pressupostos, como não poderia ser
A todo o instante, porém, instado pelas dificuldades da diferente, e procura instrumentos adequados para a exploração,
interpretação, envolvido com toda a sorte de peculiaridades em níveis mais profundos, dos textos do direito positivado,
desse ente cultural que é o direito, o exegeta vê-se na contin- decompondo-os em quatro subsistemas, todos eles qualificados
gência de lançar um olhar retrospectivo, recuperando o espa- como jurídicos. As mencionadas incisões, como é óbvio, são de
ço das noções fundamentais, ali onde estão depositados os caráter meramente epistemológico, não podendo ser vistas as
conceitos básicos de sua Ciência. Ei-lo de volta à Teoria Geral fronteiras dos subsistemas no trato superficial com a literali-
do Direito; ei-lo refletindo sobre o conhecimento jurídico, numa dade dos textos.
posição de filósofo do seu saber, para regressar com toda a
força, dando sustentação a suas teses no domínio das dogmá-
ticas. E nesta tarefa cognoscitiva, elaboraremos os cortes me- 3.3.1. O percurso gerador de sentido e as estruturas sígnicas
todológicos que a matéria exige. do sistema jurídico
Já observamos que, dentre os muitos traços que lhe são Um dos alicerces que suportam esta construção reside no
peculiares, o direito oferece o dado da linguagem como seu discernir entre enunciados e normas jurídicas, com os diferen-
integrante constitutivo. A linguagem não só fala do objeto (Ci- tes campos de irradiação semântica a que já aludimos. Se bem
ência do Direito), como participa de sua constituição (direito que ambas as entidades se revistam de caráter conativo ou
positivo). Se é verdade que não há fenômeno jurídico sem directivo, pois, mais que as outras, a função da linguagem
prescrições escritas ou não escritas; também é certo que não apropriada à regulação das condutas intersubjetivas é verda-
podemos cogitar de manifestação do direito sem uma lingua- deiramente a prescritiva, os primeiros (os enunciados) se
gem, idiomática ou não, que lhe sirva de veículo de expressão. apresentam como frases, digamos assim, soltas, como estrutu-
Mantenho presente a concepção pela qual interpretar é atribuir ras atômicas, plenas de sentido, uma vez que a expressão sem
valores aos símbolos, isto é, adjudicar-lhes significações e, por sentido não pode aspirar à dignidade de enunciado. Entretan-
meio dessas, referências a objetos. to, sem encerrar uma unidade completa de significação deôn-
'(lenho assinalando, também, que a linguagem, típica re- tica, na medida em que permanecem na expectativa de juntar-
alização do espírito humano, é sempre um objeto da cultura e, se a outras unidades da mesma índole. Com efeito, terão que
como tal, carrega consigo valores. Como decorrência imediata, conjugar-se a outros enunciados, consoante específica estru-

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

tura lógico-molecular, para formar normas jurídicas, estas sim, partir do enunciado expresso da Federação, combinado com o
expressões completas de significação deôntico-jurídica. Por da autonomia dos Municípios); o princípio da supremacia do
certo que também as normas ou regras do direto posto, en- interesse público ao do particular (reconhecido pela leitura aten-
quanto manifestações mínimas e, portanto, irredutíveis do ta dos enunciados explícitos, relativos à disciplina da atividade
conjunto, permanecerão à espera de outras unidades da mes- administrativa do Estado).
ma espécie, para a composição do sistema jurídico-normativo.
Seguindo esta construção exegética e partindo da premis-
Entretanto, são elas as unidades desse domínio, do mesmo
sa da unicidade do texto jurídico-positivo que se pode alcançar
modo que os enunciados também o são no conjunto próprio,
os quatro subsistemas pelos quais se locomovem obrigatoria-
que é o sistema de enunciados jurídico-prescritivos.
mente todos aqueles que se dispõem a conhecer o sistema ju
Aproveito para inserir, aqui, pequena digressão. Tenho rídico normativo: a) o conjunto de enunciados, tomados no
insistido na tese de que normas são as significações construídas plano da expressão; b) o conjunto de conteúdos de significação
a partir dos suportes físicos dos enunciados prescritivos. No dos enunciados prescritivos; c) o domínio articulado de signi-
sentido amplo, a cada enunciado corresponderá uma signifi- ficações normativas; e d) os vínculos de coordenação e de su-
cação, mesmo porque não seria gramaticalmente correto falar- bordinação que se estabelecem entre as regras jurídicas.
se em enunciado (nem frase) sem o sentido que a ele atribuímos.
Penso que seja suficiente mencionar "suporte físico de enun- Há que se tomar nota que o comportamento de quem
ciado prescritivo" para referir-me à fórmula digital, ao texto pretende interpretar o direito para conhecê-lo deve ser orien-
no seu âmbito estreito, à base material gravada no documento tado pela busca incessante da compreensão desses textos
legislado. As normas são da ordem das significações. Em sen- prescritivos. Ora, como todo texto tem um plano de expressão,
tido amplo, quaisquer significações. Porém, em acepção res- de natureza material, e um plano de conteúdo, por onde in-
trita, aquelas que se articularem na forma lógica dos juízos gressa a subjetividade do agente para compor as significações
hipotético-condicionais: Se ocorrer o fato F, instalar-se-á a da mensagem, é pelo primeiro, vale dizer, a partir do contato
relação R entre dois ou mais sujeitos de direito (S' e S"). Rei- com a literalidade textual, com o plano dos significantes ou com
tero a terminologia para facilitar as comparações e os paralelos o chamado plano da expressão, como algo objetivado, isto é,
que ordinariamente o leitor estabelece cada vez que lhe acode posto intersubjetivamente, ali onde estão as estruturas morfo-
à mente o ponto de vista de outros autores. Distinções como lógicas e gramaticais, que o intérprete inicia o processo de
esta, se formuladas com clareza, alimentam a possibilidade interpretação, propriamente dito, passando a construir os
criativa de quem reflete, sugerindo idéias que aprofundam a conteúdos significativos dos vários enunciados ou frases pres-
busca intelectual e enriquecem o pensamento. critivas para, enfim, ordená-los na forma estrutural de normas
São exemplos de enunciados expressos: homens e mulheres jurídicas, articulando essas entidades para construir um domí-
são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição nio. Se retivermos a observação de que o direito se manifesta
(art. 5 2 , inciso I, da CR); Brasília é a Capital Federal (art. 18, § 1 2 , sempre nesses quatro planos: o das formulações literais, o de
da CR). Outros, porém, não têm forma expressa, aparecendo na suas significações enquanto enunciados prescritivos, o das
i mplicitude do texto, fundados que são em enunciados explícitos. normas jurídicas, como unidades de sentido obtidas mediante
São od implícitos, obtidos por derivação lógica dos enunciados grupamento de significações que obedecem a determinado
expressos, como, por exemplo, o da isonomia jurídica entre as esquema formal (implicação) e o dos vínculos de coordenação
pessoas políticas de direito constitucional interno (produzido a e de subordinação que se estabelecem entre as regras jurídicas
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- e se pensarmos que todo nosso empenho se dirige para es- com o complexo de significações enunciativas, unificadas em
truturar essas normas contidas num estrato de linguagem - não forma lógica determinada (estrutura implicacional) e a expres-
será difícil verificar a gama imensa de obstáculos que se levan- são literal desses enunciados, ou mesmo os conteúdos de sen-
tam no percurso gerativo de sentido ou, em termos mais sim- tido que tais enunciados apresentem, quando isoladamente
ples, na trajetória da interpretação. considerados. O plano dos significantes (plano de expressão)
A missão do exegeta dos textos jurídico-positivos, ainda é o veículo que manifesta, graficamente (no direito escrito), a
que possa parecer facilitada pela eventual coincidência da mensagem expedida pelo autor. Na sua implexa totalidade,
mensagem prescritiva com a sequência das fórmulas gráficas constitui o sistema morfológico e gramatical do direito posto,
utilizadas pelo legislador (no direito escrito), oferece ingentes conjunto de frases prescritivas introduzidas por fatos jurídicos
dificuldades se a proposta for de um exame mais sério e atila que a ordenação positiva para tanto credencia.
do. E, sendo o direito um objeto da cultura, invariavelmente
Com propósitos analíticos, entretanto, podemos isolar
penetrado por valores, teremos, de um lado, as estimativas,
frase por frase, enunciado por enunciado, compondo um do-
sempre cambiantes em função da ideologia de quem interpre-
mínio de significações, antes de agrupar os conteúdos segundo
ta; de outro, os intrincados problemas que cercam a metalin-
fórmulas moleculares caracterizadas pelo conectivo implica-
guagem, também inçada de dúvidas sintáticas e de problemas
cional. Nesse momento intermediário, estaremos diante daqui-
de ordem semântica e pragmática.
lo que poderíamos chamar de "sistema de significações propo-
Tudo isso, porém, não nos impede de declarar que conhe- sicionais". Agora, num patamar mais elevado de elaboração,
cer o direito é, em última análise, compreendê-lo, interpretá-lo, juntaremos significações, algumas no tópico de antecedente,
construindo o conteúdo, o sentido e o alcance da comunicação outras no lugar sintático de consequente, tudo para constituir
legislada. Tal empresa, contudo, nada tem de singela. Requer as entidades mínimas e irredutíveis (com o perdão do pleonas-
o envolvimento do exegeta com as proporções inteiras do todo mo) de manifestação do deôntico, com sentido completo, uma
sistemático, incursionando pelos escalões mais altos e de lá vez que as frases prescritivas, insularmente tomadas, são tam-
regressando com os vetores axiológicos ditados por juízos que bém portadoras de sentido. Formaremos, desse modo, as uni-
chamamos de "princípios". dades normativas, regras ou normas jurídicas que, articuladas
A lei, vista sob certo ângulo, representa o texto, na sua em relações de coordenação e de subordinação, acabarão com-
dimensão de veículo de prescrições jurídicas. Constituição, pondo a forma superior do sistema normativo.
emenda constitucional, lei complementar, lei delegada, lei or- Colho o ensejo para reiterar que os quatro subsistemas a
dinária, medida provisória, resoluções, decretos, sentenças,
que me refiro são constitutivos do texto, entendida a palavra
acórdãos, contratos e atos administrativos, enquanto suportes
como produto da enunciação e, portanto, na sua ampla dimen-
materiais de linguagem deôntico jurídica, pertencem à plata-
são semântica. Nunca é demais insistir que as subdivisões em
forma da expressão dos textos prescritivos e, como tais, são
sistemas respondem a cortes metódicos que os objetivos da
veículos introdutórios de normas jurídicas, constituindo a base
investigação analítica impõem ao espírito do pesquisador. Te-
empírica do conhecimento do direito posto.
nhamos presente que a norma jurídica é uma estrutura cate-
Já/a norma jurídica é juízo implicacional construído pelo gorial construída, epistemologicamente, pelo intérprete, a
intérprete em função da experiência no trato com esses supor- partir das significações que a leitura dos documentos do direito
tes comunicacionais. Por isso, não há que se confundir norma positivo desperta em seu espírito. É por isso que, quase sempre,
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não coincidem com os sentidos imediatos dos enunciados em ao mesmo tempo, para a referência aos entes significados,
que o legislador distribui a matéria no corpo físico da lei. Pro- perfazendo aquela estrutura triádica ou trilateral que é própria
vém daí que, na maioria das vezes, a leitura de um único arti- das unidades sígnicas. Nele, texto, as manifestações subjetivas
go será insuficiente para a compreensão da regra jurídica. E, ganham objetividade, tornando-se intersubjetivas. Em qual-
quando isso acontece, o exegeta se vê na contingência de con- quer sistema de signos, o esforço de decodificação tomará por
sultar outros preceitos do mesmo diploma, e até a sair dele, base o texto e o desenvolvimento hermenêutico fixará nessa
fazendo incursões pelo sistema. A proposição que dá forma à instância material todo o apoio de suas construções.
91
norma jurídica, ensina Lourival Vilanova : Na linguagem escrita, ainda que as palavras possam ser
decompostas em semas e sememas, continuam sendo as unida-
"é uma estrutura lógica. Estrutura sintático-gramatical é a des significativas e se dispõem em sequências que formam as
sentença ou oração, modo expressional frástico (de frase) da associações sintagmáticas (sintagmas verbais e nominais). As
síntese conceptual que é a norma. A norma não é a oralida-
associações paradigmáticas, fluindo num eixo de estruturas
de ou a escritura da linguagem, nem é o ato-de-querer ou
ausentes, já pertencem ao domínio do contexto porque não têm
pensar ocorrente no sujeito emitente da norma, ou no su-
natureza material. Surge logo uma distinção que há de ser
jeito receptor da norma, nem é, tampouco, a situação obje-
tiva que ela denota. A norma jurídica é uma estrutura lógi-
feita: texto no sentido estrito e texto em acepção ampla. Stric-
co-sintática de significação (...)" (os grifos são do original). to sensu, o texto se restringe ao plano dos enunciados enquan-
to suporte de significação, de caráter eminentemente físico,
expresso na sequência material do eixo sintagmático. Mas não
há texto sem contexto, pois a compreensão da mensagem pres-
3.3.2. Interpretação e semiótica do direito: texto e contexto
supõe necessariamente uma série de associações que poderí-
Tendo o signo status lógico de uma relação que se estabe- amos referir como linguísticas e extralinguísticas. Neste sen-
lece entre o suporte físico, a significação e o significado, para tido, aliás, a implicitude é constitutiva do próprio texto. Have-
utilizar a terminologia de E. Husserl, pode dizer-se que toda rá, portanto, um contexto de linguagem envolvendo imediata-
linguagem, como conjunto sígnico que é, também oferece esses mente o texto, como as associações do eixo paradigmático, e
três ângulos de análise, ou seja, compõe-se de um substrato outro, de índole extralinguística, contornando os dois primei-
material, de natureza física, que lhe sirva de suporte, uma di- ros. Desse modo, podemos mencionar o texto segundo um
mensão ideal na representação que se forma na mente dos ponto de vista interno, elegendo como foco temático a organi-
falantes (plano de significação) e o campo dos significados, vale zação que faz dele uma totalidade de sentido - operando como
dizer, dos objetos referidos pelos signos e com os quais eles objeto de significação no fato comunicacional que se dá entre
mantêm relação semântica. Nessa conformação, o texto ocupa emissor e receptor da mensagem - e outro corte metodológico
o tópico de suporte físico, base material para produzir a repre- que centraliza suas atenções no texto enquanto instrumento
sentação na consciência do homem (significação) e, também, da comunicação entre dois sujeitos, tomado agora como obje-
termo da relação semântica com os objetos significados. O to cultural e, por conseguinte, inserido no processo histórico-
texto é o ponto de partida para a formação das significações e, social, onde atuam determinadas formações ideológicas. Fala-se,
portanto, numa análise interna, recaindo sobre os procedimen-
tos e mecanismos que armam sua estrutura, e numa análise
externa, envolvendo a circunstância histórica e sociológica em
91. Lourival Vilanova, "Níveis de linguagem em Kelsen (Norma jurídica/
proposição jurídica)" in Escritos jurídicos e filosóficos, vol. 2, cit., p. 208. que o texto foi produzido.

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Ora, se tomarmos o texto na sua dimensão estritamente 3.3.3. Interpretação e Lógica formal do direito: o mínimo
material - que é, aliás, a acepção básica, como aquilo que foi irredutível da mensagem deôntica
tecido, circunscrevendo nosso interesse ao conjunto dos pro-
dutos dos atos de enunciação, o que importa ingressar na es- O direito, sabemos, é um fenômeno complexo. Um modo,
quematização estrutural em que se manifesta -, poderemos porém, de estudá-lo sem ter de enfrentar o problema de sua
compreender a razão pela qual os enunciados linguísticos não ontologia é isolar as unidades normativas. Ali onde houver
direito, haverá normas jurídicas (Kelsen). Ao que poderíamos
contêm, em si mesmos, significações. São objetos percebidos
acrescentar: e onde houver normas jurídicas haverá, certamen-
pelos nossos órgãos sensoriais que, a partir de tais percepções
te, uma linguagem em que tais normas se manifestem.
ensejam, intra- subjetivamente, as correspondentes significa-
ções. São estímulos que desencadeiam em nós produções de Aprisionando, então, a linguagem prescritiva de um di-
sentido. Vê-se, desde agora, que não é correta a proposição reito positivo historicamente dado, estaremos em condições de
segundo a qual, dos enunciados prescritivos do direito posto, iniciar o processo de aproximação com o conjunto das entida-
extraímos o conteúdo, o sentido e o alcance dos comandos des normativas, expressões irredutíveis de manifestação do
jurídicos. Impossível seria retirar conteúdos de significação de deôntico. Para esse fim será utilíssima a distinção entre texto
entidades meramente físicas. De tais enunciados partimos, isto e contexto, ou entre texto em sentido estrito e texto em sentido
sim, para a construção das significações, dos sentidos, no pro- amplo, como já podemos depreender a partir da análise do item
cesso conhecido como "interpretação". antecedente.
É preciso explicar, contudo, o significado da locução "uni-
Observando esse mesmo rigor, adverte Umberto Eco 92 :
dade irredutível de manifestação do deôntico". É que os co-
"É mister, porém, estabelecermos aqui uma diferença entre
mandos jurídicos, para terem sentido e, portanto, serem devi-
a mensagem como forma significante e a mensagem como damente compreendidos pelo destinatário, devem revestir um
sistema de significados. A mensagem como forma signifi- quantum de estrutura formal. Por certo que ninguém entende-
cante é a configuração gráfica ou acústica 'I vitelli dei ro- ria uma ordem, em todo o seu alcance, apenas com a indicação
mani sono belli', que pode subsistir mesmo se não for rece- da conduta desejada: "pague a quantia de x reais". Adviriam
bida, ou se for recebida por um japonês que não conheça o logo algumas perguntas e, no segmento das respectivas res-
código língua italiana. Ao contrário, a mensagem como postas, chegaríamos à fórmula que nos dá o sentido completo.
sistema de significados é a forma significante que o desti- Supondo identificado o sujeito que deve cumprir o comando,
natário, baseado em códigos determinados, preenche de
perguntaria este: "pagar a quem? Quando? Por quê?" Ao aten-
sentido."
der a tais indagações, iríamos perfazendo aquele mínimo irre-
dutível que possibilita a mensagem do direito.
Para os efeitos que pretendemos, importa discernir o
texto, enquanto instância material, expresso em marcas de Penso que a explicação possa também servir como fator
tinta sobre o papel ou mediante sons (fonemas), com sua na- de discernimento entre aquilo que se conhece por meras "or-
tureza eminentemente física, do plano do conteúdo, do contex- dens", "prescrições" ou "comandos" e a entidade da "norma
to, seja o linguístico, seja o extralinguístico. jurídica" ou da "regra de direito", expressões tomadas como
sinônimas, em toda a extensão deste trabalho.
Em simbolismo lógico, teríamos: D[F.-->(S' R S")], que se
92. A estrutura ausente, São Paulo, Perspectiva, 1976, p. 42. interpreta assim: deve-ser que, dado o fato F, então se instale
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a relação jurídica R, entre os sujeitos S' e S". Seja qual for a O direito, como sistema de objetivações que projeta as
ordem advinda dos enunciados prescritivos, sem esse esquema formas pretendidas para a interação social, manifesta-se inva-
formal inexistirá possibilidade de sentido deôntico completo. riavelmente pela linguagem, seja ela escrita ou não escrita,
pouco importa. Sistema de signos utilizado para a comunicação,
Ao nos aproximarmos da linguagem do direito posto, em
a linguagem jurídica assume, desde logo, a função de conteúdos
atitude gnosiológica, aceitando o isolamento das normas jurí-
prescritivos voltados para o setor específico das condutas in-
dicas como expediente que imprime uniformidade ao objeto,
tersubj etivas.
imperioso se faz um ajuste semântico da maior relevância. De
fato, o discurso produzido pelo legislador (em sentido amplo) À proposta epistemológica de isolar o dado jurídico iden-
é, todo ele, redutível a regras jurídicas, cuja composição sintá- tificando-lhe as normas, acresceu-se a verificação, até certo
tica é absolutamente constante: um juízo condicional, em que ponto tardia, de que tais entidades não teriam outro meio de
se associa uma consequência à realização de um acontecimento aparição, no contexto da realidade social, que não fosse pela
fáctico previsto no antecedente. Agora, a implicação é o conec- linguagem técnica, concebida pelo legislador para canalizar os
tivo das formações normativas, após a leitura dos enunciados comportamentos inter-humanos em direção aos valores que a
prescritivos. E enfatizo a sequência temporal exatamente para sociedade quer ver concretizados.
deixar claro que os enunciados prescritivos recebem tratamen- Travar contato com a linguagem do direito, portanto, é o
to formal ao serem acolhidos em nossa mente, que os agrupa ponto de partida, inafastável, incisivo, para o conhecimento
e dispõe na conformidade lógica daquela fórmula iterativa que das estruturas mesmas do fenômeno jurídico. Aliás, ninguém
mencionamos. Vê-se que os enunciados prescritivos ingressam, lograria construir o ato hermenêutico, oferecendo sentido ao
na estrutura sintática das normas, na condição de proposição- produto legislado, sem iniciar seu trabalho pelo plano da ex-
hipótese (antecedente) e de proposição-tese (consequente). E pressão ou da literalidade textual, suporte físico das significa-
tudo isso se dá porque firmamos a norma jurídica como unidade ções do direito. Daí a extraordinária importância da semiótica,
mínima e irredutível de significação do deôntico. Quero trans- como teoria geral dos signos de toda e qualquer linguagem,
mitir, dessa maneira, que reconheço força prescritiva às frases teoria responsável pelas radicais transformações dos costumes
isoladas dos textos positivados. Nada obstante, esse teor prescri- da comunidade jurídica, no mundo contemporâneo. Nessa linha
tivo não basta, ficando na dependência de integrações em unida- de reflexão, não seria excessivo afirmar que a teoria dos signos,
des normativas, como mínimos deônticos completos. Somente a tomando o direito positivo como sistema de objetivações, re-
norma jurídica, tomada em sua integridade constitutiva, terá o corta-o, metodologicamente - é claro - nos três planos da
condão de expressar o sentido cabal dos mandamentos da auto- análise semiótica: sintático, semântico e pragmático, atraves-
ridade que legisla. sando o discurso prescritivo de cima a baixo, num invejável
esforço de decomposição. E esse modo peculiar de investigação
está provocando sensível mudança nos paradigmas clássicos
3.3.4. Reflexo do método na construção do texto de estudo, podendo ser identificado como autêntica revolução
nos padrões científicos.
Sabe-se quão difícil é sustentar a correção do pensamento
sem fazer concessões; instaurar o processo comunicacional, pas- Fique consignado, porém, que a derivação de caminho,
sando a mensagem científica com o rigor necessário, sem provo- longe de representar mera operação de contorno, justifica-se
car os ruídos que a precisão vocabular muitas vezes suscita. plenamente. A instância da pesquisa semântica, dentre as

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outras opções de análise semiótica, é algo de grande especifi- pressupõe o trabalho penoso de enfrentar o percurso gerador
cidade, de tal sorte que o arsenal terminológico existente, na de sentido, fazendo com que o texto possa dialogar com outros
busca da precisão indispensável às rigorosas articulações de textos, no caminho da intertextualidade, onde se instala a con-
sentido, sobre ser complexo, é formado por termos que muitas versação das mensagens com outras mensagens, passadas,
vezes vêm em outro idioma, tal qual o inglês, aceito pela comu- presentes e futuras, numa trajetória sem fim, expressão da
nidade jurídica por convenção de caráter internacional. inesgotabilidade. Antes, porém, de tocar nesses dois pontos,
axiomas que são de todo e qualquer empenho interpretativo,
A título exemplificativo, estamos convictos de que nin- creio que se ajeita aqui uma advertência, que faço utilizando-
guém poderá responder à pergunta, aparentemente singela, me de um meneio de linguagem ao gosto de Rui Barbosa: o
sobre a incidência ou não de tributos como o ICMS e o ISSQN, vocábulo "interpretação" padece, como tantos outros, da am-
nos casos de serviços de acesso à "rede das redes" (internet) biguidade processo/produto, uma vez que alude à atividade de
ou de serviços prestados por seu intermédio, se não dispuser construção de sentido, por um lado, e da própria compreensão,
do domínio semântico adequado àquele aparato de signos. de outro. Relatado com signos diversos, percorrer as dificul-
Acrescente-se a tanto que a manipulação de significações rei- dades e vicissitudes do trajeto formador do sentido realiza o
vindica, necessariamente, certo nível de conhecimento de processo, ao passo que a conquista das significações da mensa-
formas operacionais, inerentes ao veículo da comunicação, vale gem textual consubstancia o produto. A distinção é importante
dizer, dos meios de produção, de armazenamento, de transmis- como dado semântico inerente à pesquisa sobre o termo.
são e de recepção de elementos sígnicos. Retorno, entretanto, aos dois pontos que suportam o tra-
Aliás, é oportuno lembrar que as alterações produzidas balho interpretativo, como axiomas da interpretação: intertex-
pelo homem no mundo circundante, por mais desenvolvidos tualidade e inesgotabilidade. Como disse, a intertextualidade
que sejam o instrumental e a técnica utilizados em determina- é formada pelo intenso diálogo que os textos mantêm entre si,
do setor, terão de apoiar-se, invariavelmente, na chamada sejam eles passados, presentes ou futuros, pouco importando
"causalidade física ou natural", isto é, no saber efetivo das as relações de dependência estabelecidas entre eles. Assim que
relações "meio/fim". Daí por que, pondo entre parênteses o inseridos no sistema, iniciam a conversação com outros conte-
údos, intra-sistêmicos e extra-sistêmicos, num denso intercâm-
dado jurídico, numa ascese provisória, ingressamos em tópicos
bio de comunicações. Normas de lei ordinária dialogando com
da teoria da comunicação, para de lá regressar com elementos
escritos constitucionais, com outras regras já revogadas, com
informativos imprescindíveis ao conhecimento da matéria.
dispositivos insertos em atos normativos infralegais, além das
Enfatiza-se, com isso, a experiência efetiva do princípio da
conversações que se instalam com mensagens advindas dos
intertextualidade, interior e exterior ao direito, sem a qual se
mais diversos setores do direito posto. Com o advento da lei
tornaria impraticável o ato de interpretação.
nova, institui-se complexa e extensa rede de comunicações
jurídicas e extrajurídicas, repito, perfazendo o universo do
3.3.5. Axiomas da interpretação e os limites do exegeta conteúdo, delimitado, unicamente, pelos horizontes de nossa
cultura. A inesgotabilidade, por sua vez, é a idéia de que toda
Reitero que interpretar o direito é conhecê-lo, atribuindo a interpretação é infinita, nunca restrita a determinado campo
valorá aos símbolos, isto é, adjudicando-lhes significações e, semântico. Daí a inferência de que todo texto poderá ser sem-
por meio dessas, fazer referência aos objetos do mundo, na pre reinterpretado. Eis as duas regras que aprisionam o ato de
linha dos ensinamentos de Lourival Vilanova. A interpretação interpretação do sujeito cognoscente.

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da intertextualidade. Simultaneamente, porém, não haveria


Segundo os padrões da moderna Ciência da Interpretação, cabimento falar-se numa interdisciplinaridade prescindindo-se
o sujeito do conhecimento não "extrai" ou "descobre" o senti- do valor individual das disciplinas postas em relação, o que
do que se achava oculto no texto. Ele o "constrói" em função significa reconhecer a bi-implicação desses conceitos.
de sua ideologia e, principalmente, dentro dos limites de seu
"mundo", vale dizer, do seu universo de linguagem. Exsurge, Consignada a ressalva, é preciso dizer que a intertextua-
com muita força, o axioma da inesgotabilidade do sentido - ao lidade no direito se apresenta em dois níveis bem característi-
lado da intertextualidade - que opera não só no território do cos: (i) o estritamente jurídico, que se estabelece entre os vários
sistema do direito posto, mas o transcende, na direção de outros ramos do ordenamento (intertextualidade, interna ou intraju-
segmentos do saber. rídica); e (ii) o chamado jurídico em acepção lata, abrangendo
todos os setores que têm o direito como objeto, mas o conside-
Os predicados da inesgotabilidade e da intertextualidade ram sob ângulo externo, vale dizer, em relação com outras
não significam ausência de limites para a tarefa interpretativa. propostas cognoscentes, assim como a Sociologia do Direito, a
A interpretação toma por base o texto: nele tem início, por ele História do Direito, a Antropologia Cultural do Direito, etc.
se conduz e, até o intercâmbio com outros discursos, instaura- (intertextualidade externa ou extrajurídica). Quanto ao "direi-
se a partir dele. Ora, o texto de que falamos é o jurídico-posi- to comparado", tanto cabe na primeira classe quanto na se-
tivo e o ingresso no plano de seu conteúdo tem de levar em gunda, dependendo da perspectiva em que se coloca o sujeito
conta as diretrizes do sistema. Em princípio, como bem salien- do conhecimento.
tou Kelsen, teríamos molduras dentro das quais múltiplas
Quando Kelsen põe acento na impossibilidade de sepa-
significações podem ser inseridas. Mas esse é apenas um pon-
rarmos até o direito público do direito privado, em termos
to de vista sobre a linguagem das normas, mais precisamente
metodológicos, proclamando a unidade do sistema de normas
aquele que privilegia o ângulo sintático ou lógico. Claro está
como imperativo da construção de uma Ciência, já se nota a
que, no processo de produção normativa, os aplicadores esta-
convicção firme de reconhecer a intertextualidade intrajurídi-
rão lidando com os materiais semânticos ocorrentes na cadeia
ca, chamando a atenção, pioneiramente, para seu caráter
de positivação, pois não teria cabimento prescindir dos conte-
axiomático. Dito de outro modo, a intertextualidade é o pro-
údos concretos, justamente aqueles que se aproximam das
cesso constitutivo, ou melhor, o procedimento elementar para
condutas interpessoais, postulando implementar os valores e
a composição do texto, que, partindo de duas ou mais materia-
as estimativas que a sociedade adota.
lidades textuais, desenha e atualiza o sentido naquela particu-
lar situação de interdiscursividade. Para José Luiz Fiorin 93 :
3.3.5.1. Interdisciplinaridade e intertextualidade "Ela é o processo da relação dialógica não somente entre duas
`posturas de sentido', mas também entre duas materialidades
As questões mais difíceis acerca do caráter disciplinar ou linguísticas."
interdisciplinar do conhecimento científico perdem substância
Ora, como a demarcação do objeto científico é apenas
diante do reconhecimento inevitável da intertextualidade.
o "corte" inicial no continuum heterogêneo da realidade
Tomado o saber da Ciência como algo que se apresenta inva-
riavélmente em linguagem, constituindo-se na forma e no
sentido de texto, não teria propósito sustentar o projeto do
93. "Interdiscursividade e intertextualidade", in Bakhtin: outros conceitos-
isolamento disciplinar sem ferir de maneira frontal o axioma chave. Beth Brait (org.), São Paulo, Contexto, 2006, p. 184.

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circundante, para propiciar o descontinuum homogêneo de de depuração de idéias seletivamente ordenadas. Não acredi-
cada Ciência em particular (Rickert), dentro deste último, to ser possível, por isso mesmo, isolar-se, dentro do social, o
muitos outros cortes e recortes podem ser traçados, dependen- fato jurídico, sem uma série de cortes e recortes que represen-
do das metas e dos objetivos de aprofundamento que o agente tem, numa ascese temporária, o despojamento daquele fato
se proponha alcançar, preservada a condição de que permane- cultural maior de suas colorações políticas, econômicas, éticas,
ça aberta a via do retorno à esquematização inicial, e seja históricas etc., bem como dos resquícios de envolvimento do
sempre possível ao sujeito cientista combinar as classes e sub- observador, no fluxo inquieto de sua estrutura emocional.
classes do domínio total, dentro, é claro, dos limites que a ló- Sem disciplinas, é claro, não teremos as interdisciplinas,
gica do sistema permitir. mas o próprio saber disciplinar, em função do princípio da
intertextualidade, avança na direção dos outros setores do
3.3.5.1.1. Interdisciplinaridade e disciplinaridade conhecimento, buscando a indispensável complementaridade.
O paradoxo é inevitável: o disciplinar leva ao interdisciplinar
A escolha do caráter disciplinar ou interdisciplinar, como e este último faz retornar ao primeiro. A relação de implicação
estratégia para a construção do discurso científico, além de e polaridade, tão presente no pensamento de Miguel Reale,
opção incontornável, continua sendo tema discutido nos cír- manifesta-se também aqui, uma vez que o perfil metódico que
culos epistemológicos, juntamente com a própria amplitude da venha a ser adotado, se-lo-á, certamente, para demarcar uma
inter-relação das disciplinas, conteúdo de outra decisão a ser porção da cultura.
tomada pelo cientista. Tudo para perseguir aquele quantum de Dois outros obstáculos, na forma de desafios, estarão no
objetividade que pretende ter contraparte na carga mínima de caminho do estudioso, mesmo que se admita superada aquela
subjetividade. situação paradoxal: (i) quais as proporções do corte e (ii) que
Tem-se como certo, nos dias de hoje, que o conhecimen- critérios utilizar para a condução do raciocínio no trato com o
to científico do fenômeno social, seja ele qual for, advém da objeto já constituído (digamos, recortado).
experiência, aparecendo sempre como uma síntese necessa- Aquilo que podemos esperar de quem empreenda a aven-
riamente a posteriori. Ele, o fato social, na sua congênita e tura do conhecimento, no campo do social, a esta altura, é uma
inesgotável plurilateralidade de aspectos, reivindica, enquan- atitude de reflexão, de prudência, em respeito mesmo às in-
to objeto, uma sequência de incisões que lhe modelem o for- trínsecas limitações e à própria finitude do ser humano. Esta
mato para a adequada apreensão do espírito humano. Está tomada de consciência, contudo, não pode representar a re-
presente nessa atividade tanto a objetivação do sujeito como a núncia do seguir adiante, expressa nas decisões que lhe pare-
subjetivação do objeto, em pleno relacionamento dialético. Isso cerem mais sustentáveis ao seu projeto descritivo.
i mpede a concepção do "fato puro", seja ele econômico, histó-
rico, político, jurídico ou qualquer outra qualidade que se lhe
3.3.5.2. Inesgotabilidade da interpretação
queira atribuir. Tais fatos, como bem salientou Lourival Vila-
nova", são elaborações conceptuais, subprodutos de técnicas Inesgotabilidade é outra coluna que sustenta o processo
interpretativo. O programa de pesquisa para acesso à compre-
ensão é, efetivamente, interminável. Conhecer e operar os
94. As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo, cit., p. 65. textos, aprofundando o saber, é obra de uma vida inteira, mesmo
196 197
PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

que se trate de algo simples, aparentemente accessível ao exame com base nos métodos empregados em sistemas de linguagens.
do primeiro instante. A instável relação entre os homens, no E o conhecimento de toda e qualquer manifestação de linguagem
turbulento convívio social, gera inevitáveis mutações semânticas, pede a investigação de seus três planos fundamentais: a sintaxe,
numa sucessão crescente de alterações que se processam no a semântica e a pragmática. Só assim reuniremos condições de
interior do espírito humano. Aquilo que nos parecia objeto de analisar o conjunto de símbolos gráficos e auditivos que o ser
inabalável convicção, em determinado momento de nossa exis- humano emprega para transmitir conhecimentos, emoções,
tência, fica desde logo sujeito a novas conformações que os fatos formular perguntas, ou, como é o caso do direito positivo,
e as pessoas vão suscitando, no intrincado entrelaçamento da transmitir ordens, substanciadas em direitos e deveres garan-
convivência social. O mundo experimenta mudanças estruturais tidos por sanções.
de configuração sob todos os ângulos de análise que possamos
O plano sintático é formado pelo relacionamento que os
imaginar. E essa congênita instabilidade, que atinge as quatro
símbolos linguísticos mantêm entre si, sem qualquer alusão ao
regiões ônticas, está particularmente presente no reino dos
mundo exterior ao sistema. O semântico diz respeito às ligações
objetos culturais, território onde se demoram as prescrições
dos símbolos com os objetos significados, as quais, tratando-se
jurídico-normativas. Os signos do direito surgem e vão se trans-
da linguagem jurídica, são os modos de referência à realidade:
formando ao sabor das circunstâncias. Os fatores pragmáticos,
qualificar fatos para alterar normativamente a conduta. E o
que intervêm na trajetória dos atos comunicativos, provocam
pragmático é tecido pelas formas segundo as quais os utentes
inevitáveis modificações no campo de irradiação dos valores
da linguagem a empregam na comunidade do discurso e na
significativos, motivo pelo qual a historicidade é aspecto indis-
comunidade social para motivar comportamentos.
sociável do estudo das mensagens comunicacionais.
Pertencem ao plano sintático todos os critérios que se
Considerações desse tope já nos permitem ver a flagran-
detêm no arranjo dos signos jurídicos. A boa disposição das
te instabilidade que acompanha a vida das palavras e das ex-
palavras, na frase normativa, é condição para o sentido da
pressões de uma língua, tomada aqui como instituição e siste-
mensagem. A chamada interpretação literal é um passo nesse
ma; e o direito pode ser visto como tal".
longo caminho e o método lógico de interpretação também
opera no nível da sintaxe. Aliás, a Lógica Jurídica ou Lógica
3.3.6. As diferentes técnicas interpretativas e o direito Deôntica desenvolve-se a partir das estruturas sintáticas. E
não é só isso. Aquele trabalho prévio a que Carlos Maximiliano
A doutrina tem aconselhado vários métodos de interpre- chama de crítica é igualmente atividade no campo da sintaxe,
tação, quais sejam: literal ou gramatical, histórico ou histórico- consistente na verificação da constitucionalidade da regra, da
evolutivo, lógico, teleológico e sistemático. Contudo, tomado o autenticidade do preceito, em função do procedimento legis-
direito positivo como camada linguística vazada em termos lativo que o teve como resultado, ou da competência do juiz
prescritivos, com um vetor dirigido ao comportamento social,
que proferiu a sentença. São todos exercícios que o exegeta faz
nas relações de intersubjetividade, este deve ser interpretado
sob o ângulo sintático.
Não há qualquer exagero ao afirmar que os problemas
95. Essas lembranças reafirmam, com força incisiva, a relatividade do conhe- relativos à validade das normas jurídicas, à constitucionalidade
cimento, proposição tão bem desenvolvida na obra de Vilém Flusser —Língua de regras do sistema são questões que têm um lado sintático
e Realidade. 2a ed., São Paulo, Annablume, 2004. e, em parte, podem ser estudadas no plano da gramática jurí-
198 199
PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

dica. Dizem respeito à correta posição que as unidades norma- Nas situações do mundo real, durante todo o trajeto do
tivas devem manter no arcabouço do direito. percurso gerador de sentido, o pensamento do exegeta lida
Por sua vez, situam-se no prisma semântico os importan- com dados exclusivamente jurídicos: analisa hipóteses de in-
tes estudos das denotações e conotações dos termos jurídicos. cidência, compara bases de cálculo, aplica alíquotas, confere
Desenvolveremos atividade semântica, por exemplo, quando qualificações normativas de eventuais sujeitos passivos. Até os
tratarmos da significação dos vocábulos "suspensão" e "isen- valores que quantificam as operações, muito embora expressos
ção" do pagamento. em pecúnia, comparecem como o resultado de procedimentos
regidos pelo direito, de tal modo que não sobra espaço para
Implementa-se a investigação da linguagem pela verifi-
conjecturas de outra índole, que pudessem recomendar o em-
cação do plano pragmático. E aqui radicam muitos dos proble-
prego de categorias e formas do pensar dos economistas. As
mas atinentes à eficácia, à vigência e à aplicação das normas
próprias vantagens ou desvantagens aferidas entre os resulta-
jurídicas, incluindo-se o próprio fato da interpretação, com seu
dos obtidos entrariam num jogo comparativo de prestações
forte ângulo pragmático. A aplicação do direito é promovida
tributárias, realizadas estas na estrita conformidade dos parâ-
por alguém que pertence ao contexto social por ele regulado e
emprega os signos jurídicos em conformidade com pautas metros legais. Vê-se que interpretações dessa natureza nada
axiológicas comuns à sociedade. têm de econômicas, tecidas que são com elementos, categorias
e formas necessariamente prescritas em textos do direito po-
Na proposta epistemológica do direito, não me canso de sitivo e desenvolvidas mediante fórmulas procedimentais
repetir que todo trabalho com aspirações mais sérias há de igualmente contidas naqueles textos.
expor previamente seu método, assim entendido o conjunto de
técnicas utilizadas pelo analista para demarcar o objeto, colo- Atingindo esse ponto, não é difícil distribuir as citadas
cando-o como foco temático e, em seguida, penetrar seu con- técnicas de interpretação pelas três plataformas da investigação
teúdo. Parece apropriado efetuar breves considerações sobre linguística. Os métodos literal e lógico estão no plano sintático,
o itinerário do pensamento, no sentido de abrir caminho para enquanto o histórico e o teleológico influem tanto no nível se-
que o leitor possa percorrê-lo com desenvoltura, consciente do mântico quanto no pragmático. O critério sistemático da inter-
plano traçado pelo autor. A informação, que é de grande utili- pretação envolve os três planos e é, por isso mesmo, exaustivo
dade até para ensejar a iterativa conferência do rigor exposi- da linguagem do direito. Isoladamente, só o último (sistemático)
tivo, volta-se, fundamentalmente, para esclarecer o trajeto que tem condições de prevalecer, exatamente porque ante-supõe os
será trilhado, facilitando sobremaneira o entendimento das anteriores. É, assim, considerado o método por excelência.
proposições apresentadas.
De qualquer modo, a exegese dos textos legais, para ser
A norma jurídica somente pode ser compreendida com completa, tem de valer-se de incursões nos níveis sintático,
base no conhecimento do ordenamento do direito. A tarefa de semântico e pragmático da linguagem jurídica, única forma de
interpretar qualquer unidade do direito positivo é, portanto,
se chegar ao conteúdo intelectual.
uma função da estrutura sistêmica de que faz parte, compare-
cendo a chamada técnica de interpretação literal como pres-
suposto para o ingresso no interior do sistema. Afinal, ninguém 3.4. CIÊNCIA E EXPERIÊNCIA
poderá imitir-se no conhecimento da ordem jurídico-positiva
sem travar contato com o suporte físico (plano de expressão) O dinamismo da convivência humana, na sua incessante e
do produto legislado. surpreendente criatividade, vai produzindo novas manifestações
200 201
PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

de relacionamento entre as pessoas, expandindo ações, desen- O jurista, exegeta das proporções inteiras deste todo
volvendo instrumentos e aperfeiçoando técnicas de aproxima- sistemático, pela atitude cognoscitiva de interpretação, é o
ção. Enquanto série interligada de ações e omissões, esse ponto de intersecção destes dois mundos sígnicos: realidade
mundo circunstante das condutas intersubjetivas, feito de e direito positivo, em toda sua complexidade. Tal empresa
proximidades e de distâncias, dá-se no espaço físico e no espa- dista de ser fácil, pedindo ao exegeta uma interpretação que
ço social, perfazendo uma sequência indeterminável em termos mantenha as proporções inteiras destes dois sistemas de lin-
quantitativos e qualitativamente inexaustiva. O fluxo do acon- guagem. Neste viés, é algo sem sentido cogitarmos do saber,
tecer histórico é imprevisível e suas incontidas mutações em termos rigorosos, isolando a teoria da prática. A episte-
acrescentam uma dificuldade enorme para o fim de gerar mo- mologia pressupõe a dialética e a interdependência entre as
dos de controle e nutrir expectativas de padronizar conteúdos. proposições teoréticas e os objetos do mundo, de tal sorte que
Daí por que o sistema jurídico, abrindo mão das ocorrências aquelas, ordenadas racionalmente, possam descrever estes
efetivas, se atém a formas de interação, a pautas de comporta- últimos de modo satisfatório.
mento com referentes semânticos genéricos, providência que
No mesmo sentido, é perceptível o quão árdua é a tarefa
é sempre um posterius em relação ao fato social objeto das
de executar a projeção dos modelos teóricos, quando os preci-
normas e que provoca o inevitável descompasso entre os dois
pitamos sobre o espaço do mundo objetivo, tendo em vista as
planos: o da realidade social e o do ordenamento jurídico que
dificuldades que cercam o desempenho dos iniciantes. Entre
sobre ela incide, numa "circularidade" que chama a atenção
a linguagem da teoria e a linguagem da prática, no dia-a-dia
do observador e passa a ser um dos traços bem característicos
da turbulenta vida social, interpõe-se outra camada linguística,
da concepção pós-moderna do direito. Esse intervalo feito pelo
que eu chamaria de linguagem técnico-empírica, porque con-
destempo, tido às vezes como demora ou atraso, encerra, para
siste em fazer valer categorias abstratas, artificialmente con-
outros, o quantum de sabedoria, de equilíbrio, de comedimen-
cebidas no âmbito da verdade por coerência, incidindo na
to, de prudência, que as construções jurídico-prescritivas
plataforma das construções quase sempre desordenadas do
portam como seu apanágio ou, quando menos, como marca
contato entre as pessoas, no tecido da existência comunitária.
indelével de seu caráter.
Dizendo de modo mais simples, é a preciosa linguagem da
Seja como for, é naquele vazio cronológico que acontecem experiência, responsável pela intermediação entre as propos-
as coisas, se instalam as novidades, surgem costumes auspi- tas do saber teorético e os contundentes reclamos da pragmá-
ciosos ou preocupantes, propostas de modificação pela via da tica da comunicação jurídica.
instauração, da restauração, da revolução, mas é sobretudo
De fato, essa linguagem intercalar não se oferece ao do-
nessa fração de tempo que a sociedade se dá conta dos bens
mínio logo no exame do primeiro instante. Às vezes, são ne-
culturais que ela mesma produziu, das técnicas inovadoras que
cessários longos anos de atividade atenta e aplicação cuidado-
foram inventadas pelo crescimento do domínio operacional do
sa, para que o profissional possa dizer-se experiente.
ser humano sobre a natureza que o cerca. Em ritmo surdo, às
vezes até sem ele o perceber, avança o homem no domínio Por outro lado, a realidade social oferece uma natural
cognoscente das leis naturais, transformando meros laços de resistência às iniciativas de regulação de condutas operadas
causalidade física em relações de meio-fim: eis o aparecimen- pelo processo de positivação do direito, intervalo que é objeto
to de novas regras técnicas. de estudo pelas teses sobre a eficácia jurídica. Ajeitando essas

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

reflexões, assim se expressou Lourival Vilanova 96 : "O jurista, Não se pode perder de vista a noção fundamental de que
no sentido mais abrangente, é o ponto de intersecção da teoria tanto a realidade normada quanto as próprias regras do direi-
e da prática, da ciência e da experiência (...)." to positivo aparecem sempre na forma de texto. Nada melhor,
portanto, que a concepção semiótica para submetê-lo a uma
O direito positivo, enquanto camada de linguagem prescri-
crítica rigorosa, passando e repassando a estrutura da ordem
tiva, se projeta sobre o contexto social, regulando as condutas
jurídica vigente, no que atina aos tributos, mediante uma série
intersubjetivas e direcionando-as para os valores que a socieda-
de considerações de cunho sintático, semântico e pragmático.
de quer ver praticados. Em momento algum, todavia, o fenôme-
no jurídico é reduzido à singela expressão das normas que inte-
gram a sua ontologia. A opção pelo tratamento semiótico da 3.4.1. A conversação da prática com a teoria nos domínios do
linguagem normativa é decisão de cunho metodológico, que se direito
projeta na cognição do processo ontológico do objeto de conhe-
cimento em que atua o homem pelo sistema lógico da linguagem. Faz algum tempo que a comunidade jurídica brasileira
Eis o apontamento e o surgimento de um método científico que vem reivindicando trabalhos específicos sobre as figuras im-
toma por base as evoluções nos campos da filosofia, epistemo- positivas do nosso sistema tributário. As obras gerais, de boa
logia e teoria comunicacional destes últimos dois séculos. qualidade, diga-se de passagem, oferecem um roteiro seguro
para as necessárias incursões do estudioso nos vários campos
Habitar o espírito do nosso tempo, como diria G. Vattimo
de incidência, propiciando aos interessados o acesso a instru-
é, de certo modo, participar desse mundo de incertezas, aca-
tar essa multidiversidade que a todo instante nos deixa ad- mentos institucionais que permitem a compreensão adequa-
mirados, escapando, minutos depois, do nosso controle; é da daquelas entidades do direito posto. A despeito dessa
tomar consciência do extraordinário salto tecnológico havido doutrina firmada na parte geral da temática tributária, de-
no setor da comunicação, com informações que se cruzam e senvolveu-se um sentimento de carência com relação aos
entrecruzam em múltiplos sentidos, acrescentando outras e impostos, particularmente considerados, às taxas e às contri-
inesperadas combinatórias ao tecido já hipercomplexo das buições, uma vez que a vivência empírica da sociedade bra-
sociedades atuais. sileira já se mostrava substanciosa, exigindo, por assim dizer,
um esforço de organização da experiência, de reflexão sobre
Agora, bem, um dos ângulos da disciplina jurídica das esse material precioso que advém da prática reiterada e cons-
novas situações comunicacionais é o tributário. Importa refle- tante da aplicação normativa.
tir, por isso mesmo, com que amplitude de compreensão nosso
sistema constitucional vai permitir às pessoas políticas abran- No final das contas, o direito se constrói na experiência,
gê-las, dimensioná-las, mas, sobretudo, definir as linhas de- no entretecer paulatino das expectativas normativas envolvidas
marcatórias das várias unidades operacionais. E essa temática, nos múltiplos conflitos de interesse, filtrados em linguagem
nos dias de hoje, é algo que se afigura difícil e pressupõe o competente e submetidos à apreciação de órgãos credenciados
conhecimento minucioso do universo factual em que se pro- pelo ordenamento. Já se pode falar, hoje, numa vivência con-
cessam as condutas. creta, efetiva, rica de variações e de alternativas, na existência
de cada um dos tributos brasileiros, principalmente dos im-
postos. Estes não representam mais, como outrora, meras
96. "Fundamentos do estado do direito", in Escritos jurídicos e filosóficos, construções de linguagem, à espera do longo e penoso pro-
vol. 1, cit., p. 414. cesso de concretização. Vemo-los, agora, integrados numa

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PAULO DE BARROS CARVALHO

realidade vivida e construída pela sociedade brasileira, por-


tanto, por isso mesmo, dotadas de respeitável carga pragmá-
tica e que, agregada às outras duas instâncias semióticas,
poderá propiciar uma visão mais ampla e fecunda da lingua-
gem jurídico-tributária.

206
Capítulo 1
SISTEMA CONSTITUCIONAL
TRIBUTÁRIO

Sumário: 1.1. Sistema Constitucional Tributário


—1.1.1. Sistema do direito positivo e sistema da
Ciência do Direito —1.1.2. Teubner e o direito
como sistema autopoiético — 1.1.3. A impossibili-
dade de traduções perfeitas entre os idiomas da
mesma família e a conversação que entre eles se
estabelece, segundo a concepção de Vilém Flus-
ser — 1.1.4. Axioma da hierarquia no direito posto
—1.1.5. O axioma da validade — 1.1.6. Sistema
tributário nacional e a Lei n. 5.172/66 — 1.1.7.
Sobre a reforma constitucional — considerações
de ordem política. 1.2. Competência tributária
—1.2.1. Competência legislativa tributária e os
limites constitucionalmente estabelecidos — 1.2.2.
Competência legislativa e a aptidão de inovar o
sistema jurídico — 1.2.3. Competência residual —
1.2.4. Competência extraordinária — 1.2.5. Com-
petência tributária e capacidade tributária ativa
—1.2.6. Fiscalidade, extrafiscalidade e parafisca-
lidade — 1.2.7. Competência legislativa e ICMS.
1.3. Os princípios jurídicos tributários — 1.3.1.
Os "princípios" na textura das várias linguagens
jurídicas — 1.3.2. Os "princípios" e a compreensão
do direito — 1.3.3. A classificação dos "princípios"
em razão dos critérios de objetividade que presidem
sua aplicação aos casos concretos — 1.3.4. Limites
objetivos como mecanismos realizadores do valor

209
PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

- 1.3.5. Os sobreprincípios no sistema jurídico 1.1. SISTEMA CONSTITUCIONAL TRIBUTÁRIO


tributário - 1.3.5.1. O sobreprincípio da seguran-
ça jurídica - 1.3.5.1.1. O primado da segurança Dentre os muitos legados que a obra fecunda de Geraldo
jurídica no tempo - 1.3.5.2. O sobreprincípio da Ataliba nos deixou, está a necessidade premente de partirmos
certeza do direito - 1.3.5.3. O sobreprincípio da do Texto Constitucional para podermos compreender as devi-
igualdade - 1.3.5.4. Sobreprincípio da liberdade
das proporções do sistema tributário brasileiro. Sem uma to-
- 1.3.5.5. Sobreprincípio da justiça - 1.3.6. Os
princípios formadores do Estado - 1.3.6.1. Prin- mada de posição consciente a respeito das diretrizes sobran-
cípios da Federação e da República - 1.3.6.2. O ceiras estabelecidas pela Lei Suprema, fica difícil, para não
princípio da separação dos poderes - 1.3.6.3. dizer impossível, isolarmos a planta básica dos tributos, per-
Princípio da isonomia das pessoas políticas de cebendo as peculariaridades de um subdomínio normativo cuja
direito constitucional interno - 1.3.6.4. O princípio complexidade vem crescendo numa velocidade espantosa. Mais
da autonomia dos Municípios - 1.3.7. Os limites
do que nunca, o esforço da atividade cognoscente, neste setor,
objetivos no direito tributário - 1.3.7.1. Princípio
reivindica uma drástica redução da multiplicidade extensiva
da legalidade tributária - 1.3.7.2. O princípio da
tipicidade tributária - 1.3.7.3. O princípio da an- de funções, órgãos e atividades, inerentes ao fenômeno imposi-
terioridade - 1.3.7.4. O princípio da irretroativi- tivo, para que possa aparecer, como resíduo, um plexo racional
dade da lei tributária - 1.3.7.4.1. A retroatividade de enunciados, orientadores do raciocínio que vai nos conduzir
das leis interpretativas - 1.3.7.4.2. Aplicação pros- à inteligência dos numerosos comandos prescritivos.
pectiva de conteúdos decisórios e modulação de
efeitos em decisão de (in) constitucionalidade: Na verdade, a mensagem do saudoso professor não se
Integração entre o sobreprincípio da Segurança li mitava à mera escolha do ponto de partida, mas proclamava,
Jurídica e a retroatividade das leis tributárias - como providência indispensável, nessa linha de investigação,
1.3.7.5. Princípio da não-cumulatividade - o saber da trilogia direito constitucional, direito administrativo
1.3.7.5.1. A norma decorrente do regime jurídico e direito tributário, sustentada pelo hábil meneio das categorias
da não-cumulatividade - 1.3.8. Princípio da proi-
da Teoria Geral do Direito.
bição de tributo com efeito de confisco - 1.3.9.
Princípio da capacidade contributiva. 1.4. Imu- Sem abandonarmos, por um instante sequer, esse precio-
nidades tributárias 1.4.1. Noção corrente de
-
so caminho especulativo, que tem como pressuposto o isola-
imunidade tributária - 1.4.2. Teoria da imunida-
mento das normas, à maneira de Kelsen, podemos acrescentar
de como técnica legislativa de exoneração - 1.4.3.
as conquistas da semiótica e de outras Ciências da linguagem
Conceito e definição do instituto: sua natureza
jurídica - 1.4.4. Sistema constitucional tributário como algo também imprescindível no prosseguimento dos
e as imunidades - 1.4.5. Paralelo entre imunida- objetivos cognoscitivos do jurista pós-moderno, tendo em vis-
des e isenções - 1.4.6. Imunidade recíproca - 1.4.7. ta as construções de sentido que os textos legislados provocam
Imunidade dos templos de qualquer culto - 1.4.8. em nossa mente. Em outras palavras, o jurista aparece como
Imunidade dos partidos políticos e das institui- o intérprete, por excelência, dos textos prescritivos do direito
ções educacionais ou assistenciais - 1.4.9. Imuni-
posto, atravessando, com sua análise construtiva, o sistema das
dade do livro, dos periódicos e do papel destina-
normas positivadas, em que os comportamentos interpessoais
do à sua impressão - 1.4.10. Outras hipóteses de
imunidade - 1.4.11. Imunidades de taxas e de se encontram modalizados em obrigatórios (0), proibidos (V)
contribuições. e permitidos (P).

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

Dentro desta análise semiótica do sistema, o conhecimen- resultado desse intenso labor estruturante, sem contradições,
to de toda e qualquer manifestação de linguagem jurídica pede isento de ambiguidades e pronto para ser compreendido pelo
a investigação de seus três planos fundamentais: a sintaxe, a destinatário. O ordenamento seria o texto bruto, tal como me-
semântica e a pragmática. No sistema normativo do direito ditado pelos órgãos competentes e tomado na multiplicidade
temos que o aspecto sintático se apresenta nas articulações das das decisões concretas em que se manifesta a autoridade de
normas entre si. É sintática a relação entre a norma da Cons- quem legisla. Melhor: seria o conjunto ou a totalidade das
tituição e aquela da lei ordinária, assim como puramente sin- mensagens legisladas, que integrariam um domínio heterogê-
tático é o vínculo entre a regra que estipula o dever e a outra neo, uma vez que produzidas em tempos diversos e em dife-
que veicula a sanção. De ordem sintática, também, a estrutura 4,
rentes condições de aparecimento.
intranormativa e, dentro dela, o laço condicional que une an-
tecedente (hipótese) ao consequente. Observado segundo esses padrões, o direito posto não
alcançaria o status de sistema, reservando-se o termo para
Por sua vez, semântica jurídica é o campo das significações
designar a contribuição do cientista, a atividade do jurista que,
do direito. É o meio de referência que as normas guardam com
pacientemente, compõe as partes e outorga ao conjunto o sen-
relação aos fatos e comportamentos tipificados. Essa relação é
tido superior de um todo organizado. Ordenamento e direito
justamente a ponte que liga a linguagem normativa à conduta
positivo, de um lado, sistema e Ciência do Direito, de outro,
do mundo social que ela regula. O aspecto semântico nos leva
seriam binômios paralelos, em que os dois últimos termos im-
ao tormentoso espaço das acepções dos vocábulos jurídicos, às
vezes vagos, imprecisos e multissignificativos. plicam os primeiros.

Mas, para além do estudo da arrumação dos termos jurí- Ora, a despeito de tomar as variações terminológicas como
dicos dentro da fraseologia da lei (sintaxe) e da pesquisa dos precioso recurso para a construção da descritividade própria
seus significados (semântica), o conhecimento da linguagem do discurso científico, não vejo como se pode negar a condição
do direito supõe a indagação da maneira como os sujeitos a de sistema a um estrato de linguagem tal como se apresenta o
utilizam dentro da comunidade em que vivem (pragmática). direito positivo. Qualquer que seja o tecido de linguagem de
Como motivar a conduta, realizando os valores da ordem jurí- que tratamos, terá ele, necessariamente, aquele mínimo de
dica, é o grande tema da pragmática. racionalidade inerente às entidades lógicas, de que o ser siste-
ma é uma das formas. Pouco importa, aqui, se o teor da men-
sagem é prescritivo, interrogativo, exclamativo ou meramente
1.1.1. Sistema do direito positivo e sistema da Ciência do
descritivo. A verdade é que o material bruto dos comandos
Direito
legislados, mesmo antes de receber o tratamento hermenêuti-
Não são poucos os autores que insistem na distinção entre co do cientista dogmático, já se afirma como expressão linguís-
ordenamento e sistema, tendo em vista o direito positivo. Os tica de um ato de fala, inserido no contexto comunicacional
enunciados prescritivos, assim que postos em circulação, como que se instaura entre enunciador e enunciatário. E o asserto
conjuntos de decisões emanadas das fontes de produção do se confirma quando pensamos que o trabalho sistematizado
direito, formariam matéria bruta a ser ordenada pelo cientista que a doutrina elabora, em nível de sobrelinguagem, pode,
à custá. de ingentes esforços de interpretação e organização perfeitamente, ser objeto de sucessivas construções hermenêu-
das unidades normativas em escalões hierárquicos, até atingir ticas porque a compreensão é inesgotável. Ali onde houver um
o nível apurado de sistema, entidade que apareceria como texto, haverá sempre a possibilidade de interpretá-lo, de reor-
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

ganizá-lo, de repensá-lo, dando origem a novos textos de nível Mas não só o direito positivo se apresenta como sistema,
linguístico superior. Sistema é o discurso da Ciência do Direi- como também a Ciência que dele se ocupa assume foros siste-
to, mas sistema também é o domínio finito, mas indeterminável, máticos. O direito positivo é um sistema nomoempírico pres-
do direito positivo. critivo, onde a racionalidade do homem é empregada com
Advirto, portanto, que emprego, livremente, no curso objetivos diretivos e vazada em linguagem técnica. A Ciência
desta obra, "ordenamento" como sinônimo de "ordem positiva", que o descreve, todavia, mostra-se um sistema não só nomo-
"direito posto" e "direito positivo". empírico, mas também teorético ou declarativo, vertido em
linguagem que se propõe ser eminentemente científica.
Assim sendo, as normas jurídicas formam um sistema, na
medida em que se relacionam de várias maneiras, segundo um Como sistema nomoempírico teorético que é, a Ciência do
princípio unificador. Trata-se do direito posto, que aparece no Direito tem de ter uma hipótese-limite, sobre a qual possa cons-
mundo integrado numa camada de linguagem prescritiva. truir suas estruturas. Do mesmo modo que as outras Ciências,
Produto do homem para disciplinar a convivência social, o vê-se o estudioso do direito na contingência de fixar um axioma
direito pertence à região ôntica dos objetos culturais, dirigin- que sirva de base última para o desenvolvimento do seu dis-
do-se, finalisticamente, ao campo material das condutas in- curso descritivo, evitando assim o regressus ad infinitum. A
tersubj etivas . descoberta da norma hipotética fundamental, empreendida
O sistema do direito oferece uma particularidade digna por Hans Kelsen, é o postulado capaz de dar sustentação à
de registro: suas normas estão dispostas numa estrutura hie- Ciência do Direito, demarcando-lhe o campo especulativo e
rarquizada, regida pela fundamentação ou derivação que se atribuindo unidade ao objeto de investigação. A norma hipo-
opera tanto no aspecto material quanto no formal ou proces- tética fundamental, entretanto, não se prova nem se explica.
sual, o que lhe imprime possibilidade dinâmica, regulando, ele É uma proposição axiomática, que se toma sem discussão de
próprio, sua criação e suas transformações. Examinando o sua origem genética, para que seja possível edificar o conheci-
sistema de baixo para cima, cada unidade normativa se encon- mento científico de determinado direito positivo. Ela dá legi-
tra fundada, material e formalmente, em normas superiores. ti midade à Constituição, não cabendo cogitações de fatos que
Invertendo-se o prisma de observação, verifica-se que das a antecedam. Com ela se inicia o processo derivativo e nela se
regras superiores derivam, material e formalmente, regras de esgota o procedimento de fundamentação. É fruto de um arti-
menor hierarquia. A Carta Magna exerce esse papel funda- fício do pensamento humano e a Filosofia do Direito a tem
mental na dinâmica do sistema, pois nela estão traçadas as como pressuposto gnosiológico do conhecimento jurídico.
características dominantes das várias instituições que a legis-
lação comum posteriormente desenvolverá. Sua existência Não deve causar espécie a circunstância de a Ciência do
i mprime, decisivamente, caráter unitário ao conjunto, e a mul- Direito precisar de um axioma, enunciado que se dá por ver-
tiplicidade de normas, como entidades da mesma índole, lhe dadeiro sem demonstração, para fincar a raiz do seu sistema.
confere o timbre de homogeneidade. Isso autoriza dizermos Tal acontece em todo o sistema científico: a Geometria, a Ma-
que o sistema também empírico do direito é unitário e homo- temática, a Sociologia, a Psicologia e as demais Ciências partem
gêneo, 'afirmação que vale para referência ao direito nacional sempre de proposições escolhidas arbitrariamente ou de evi-
de um país ou, para aludirmos ao direito internacional, com- dência imediata, não demonstráveis, e sobre elas desdobra a
posto pela conjunção do pluralismo dos sistemas nacionais. organização descritiva dos respectivos objetos.
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

A contar da CR, reafirmamos, as restantes normas do sistema direito se consubstancia num sistema que vive em clausura
distribuem-se em vários escalões hierárquicos, ficando nas bases comunicativa (isto é, comunica acerca de si próprio), então
da pirâmide as regras individuais de máxima concretude. Concep- deixou de ser possível conceber sua origem num Direito Na-
ção dessa ordem propicia uma análise estática do ordenamento tural, num Direito Divino, ou numa qualquer essência pré-
jurídico — nomoestática — e uma análise dinâmica do funciona- estabelecida e exterior ao próprio sistema jurídico: não há
mento do sistema positivo — nomodinâmica. Na primeira, as Direito fora do Direito.
unidades normativas são surpreendidas num determinado ins-
O sistema jurídico aparece aqui concebido como sistema
tante, como se fossem fotografadas; na segunda, é possível indagar
auto-referencial e auto-reprodutivo de actos de comunicação
do ordenamento nas suas constantes mutações, quer no que diz
particulares (os actos jurídicos), ou seja, um sistema constituído
com a criação de regras novas, quer no que atina às transformações
por eventos comunicativos específicos que, simultaneamente,
internas que o complexo de normas tem idoneidade para produzir.
se auto-reproduzem à luz do código binário "lícito/ilícito", se
No plano da nomodinâmica nos deparamos, entre a norma fun-
articulam recursiva e circularmente entre si, definem as frontei-
dante e a norma fundada, com o ser humano, suas crenças, seus
ras do sistema jurídico, e constroem seu meio envolvente próprio
valores, suas ideologias, atuando para movimentar o sistema,
("realidade jurídica"): numa palavra, um sistema comunicativo
positivando-o e realizando, assim, efetivamente o direito.
"normativamente fechado". Sempre que as normas jurídicas
entram no cálculo de outros subsistemas, apenas o fazem porque
1.1.2. Teubner e o direito como sistema autopoiético as mesmas foram tidas como importantes pelos códigos binários
correspondentes (Moral, Religião, Economia etc).
Cabe, aqui, algumas palavras quanto à nomoestática aci-
ma referida, para fins de identificar a importância de uma Vê-se que a Teoria dos Sistemas, no modelo autopoiético,
análise sincrônica do ordenamento jurídico. ressalta com tintas fortes a autonomia do direito e o quanto
parece estranho interpretar a realidade jurídico-tributária em
Para Teubner, o Direito constitui um sistema autopoiético termos econômicos, contábeis, entre tantos outros pontos de
de segundo grau, autonomizando-se em face da Sociedade, en- vistas possíveis, de maneira a tomar tal interpretação como se
quanto sistema autopoiético de primeiro grau, graças à consti- prescritiva fosse.
tuição auto-referencial dos seus próprios componentes sistêmicos
e à articulação destes num hiperciclo 96-A
1.1.3. A impossibilidade de traduções perfeitas entre os
E continua o autor alemão, referindo-se ao direito como idiomas da mesma família e a conversação que entre eles
subsistema social autopoiético de comunicação, que se auto- se estabelece, segundo a concepção de Vilém Flusser
nomizou do sistema social geral graças à emergência de um
código próprio e diferenciado, suficientemente estável para No seu Língua e Realidade, Flusser dá uma contribuição
funcionar como centro de gravidade e princípio energético de valiosa ao estudo da tradução entre idiomas. Além de estabe-
um processo de auto-produção recursiva, fechada e circular lecer proposições sugestivas a respeito de a língua ser a reali-
de comunicações especificamente jurídicas. Segundo ele, se o dade, formar a realidade e criar a realidade 96-B, mencionando

96-A. TEUBNER, Gunther. O direito como sistema autopoiético. Trad. José 96-B. BERNARDO, Gustavo. Prefácio do livro Língua e Realidade. 2a ed.,
Engrácia Antunes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989. la reimp. São Paulo: Annablume, p. 17.
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

a conversação que se institui entre tais ordens para formar as No âmbito destas investigações, chegaremos à conclusão
várias culturas, o pensador Tcheco proclama, com bastante cla- de que toda construção de linguagem pode ser observada como
reza, que as Ciências são línguas, de tal modo que as observações jurídica, econômica, antropológica, histórica, política, contábel,
aplicáveis aos sistemas idiomáticos se acomodam perfeitamente etc.; tudo dependendo do critério adotado pelo corte metodo-
ao esquema organizacional das Ciências. Ouçamo-lo. "A ciência lógico empreendido. Existe interpretação econômica da reali-
sensu stricto, tal qual a conhecemos no Ocidente, desde o Renas- dade jurídica? Sim, para os economistas. Existirá interpretação
cimento, equivale, deste ponto de vista, ao aparecimento de uma contábil dela? Certamente, para o contabilista. No entanto,
nova língua." 96-c E Gustavo Bernardo Krause, ao prefaciar essa uma vez assumido o critério jurídico, o enunciado construído
obra prima, como ele mesmo reconhece, reproduz o texto de será, único e exclusivamente, jurídico; e claro, terá natureza
Flusser: "a ciência, longe de ser válida para todas as línguas, é jurídica, não econômica ou contábil, entre outras matérias.
ela própria uma língua a ser traduzida para as demais." 96-D Esse Como já anotado, o direito não pede emprestado conceitos de
argumento se encontra presente também no artigo do mesmo fatos para outras disciplinas. Ele mesmo constrói seu universo,
autor, subsequente a este nessa revista, destacando que advém seu objeto, suas categorias e unidades de significação. O para-
daí o dilema da tradução. Eis a razão e a pertinência de se reunir doxo inevitável, e que causa perplexidade no trabalho herme-
aos estudos tributários a "filosofia da palavra" de Krause. nêutico, justifica a circunstância do disciplinar levar ao inter-
Vilém Flusser, de fato, não admite a possibilidade de uma disciplinar e este último fazer retornar ao primeiro. Com já
tradução perfeita, mesmo em se tratando de línguas flexionais, lembrei em outros momentos deste trabalho, sem disciplinas,
com organizações parecidas. Torna-se possível aproximadamen- portanto, não teremos as interdisciplinas, mas o próprio saber
te, graças às semelhanças existentes entre as estruturas dos disciplinar, em função do princípio da intertextualidade, avan-
idiomas. Daí o adágio consagrado: tradutore, traditore. Entre as ça na direção dos outros setores do conhecimento, buscando
realidades criadas e formadas por duas línguas diferentes, ain- a indispensável complementariedade. Tanto o jurídico quanto
da que semelhantes, há um abismo que tem de ser transposto, o econômico fazem parte do domínio social e, por ter este re-
momento em que surgem as inevitáveis distorções. ferente comum, justifica-se que entre um e outro haja aspectos
ou áreas que se entrecruzem, podendo ensejar uma tradução
Ora, se o Direito (tomado aqui como Ciência) e a Econo- aproximada e, em parâmetros mais amplos, uma densa e pro-
mia, são dois sistemas cognoscentes distintos, entre eles so- fícua conversação.
mente poderá haver uma tradução aproximada, com a presen-
ça de termos e expressões intraduzíveis que determinam fre-
quentes descompassos. Podem, contudo, manter uma conver- 1.1.4. Axioma da hierarquia no sistema do direito posto
sação ampla, que envolva também o saber a respeito de outros
segmentos do tecido social, como a Ciência Política, a Sociolo- Sem hierarquia não há sistema de direito, pois ninguém
gia (em sentido estrito), as Ciências Contábeis, a Psicologia poderia apontar o fundamento de validade das unidades com-
Social, a História etc. ponentes, não se sabendo qual deva prevalecer. Uma regra há
de ter, para desfrutar de juridicidade, seu fundamento em ou-
tra que lhe seja superior. E isso vale tanto para o direito públi-
96-C. FLUSSER, Vilém. Língua e Realidade. Editora Anna Blume, São co como para o direito privado, sem qualquer distinção. Daí
Paulo. 2a. edição, p. 54. ser possível afirmar, peremptoriamente, que o princípio da
96-D.Idem, p.19. hierarquia é um axioma. A maneira como cada direito positivo
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

a realiza, todavia, é que pode variar, uma vez que o legislador ministerial, instrução normativa, circular, ordem de serviço,
a tece conforme os critérios que adota. Os mais comuns são, ato declaratório e outros atos normativos expedidos pelas
como sabemos, o de que a lei posterior prevalece sobre a an- autoridades administrativas.
terior; a lei especial sobre a geral; a superior sobre a inferior. Qualquer tipo de obrigação tributária ou de dever instru-
Saliente-se, contudo, que tais orientações são construídas his- mental que seja instituído por esta última classe de instrumen-
toricamente pelo sistema, como instrumentos de consagração tos introdutores, sem fundamento de validade naquelas normas
do postulado da hierarquia. de superior hierarquia, será, com efeito, incompatível com o
Não confundamos, portanto, o axioma da hierarquia com ordenamento jurídico e deverá ter sua invalidade reconhecida
os critérios que o legislador adota para implantá-la. Hierarquia pelos órgãos competentes da Administração Pública ou do
tem de existir sempre, de uma forma ou de outra, onde houver Poder Judiciário.
direito positivo. Tão só a visão do direito positivo como um todo, assimi-
A Constituição da República, em seu artigo 5 4 , inciso II, lado nas suas relações internas de coordenação e de subordi-
nação (hierarquia), tudo sob o manto dos grandes princípios
estabelece que "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de
que o sistema consagra e prestigia, é que terá o vigor de efun-
fazer alguma coisa senão em virtude de lei". Entenda-se "lei"
dir luzes para o discernimento apropriado de questões contro-
no sentido amplo e teremos o quadro dos instrumentos primá-
versas observadas no mundo jurídico.
rios de introdução de normas no direito brasileiro, válido para
as quatro ordens jurídicas que constituem o sistema total, quais As normas se conjugam de tal modo que as de menor
sejam: a) o sistema nacional; b) o sistema federal; c) os sistemas hierarquia buscam seu fundamento de validade, necessaria-
estaduais; e d) os sistemas municipais. A lei e os estatutos nor- mente, em outras de superior hierarquia, até chegarmos ao
mativos que têm força de lei são os únicos veículos credencia- patamar da Constituição, ponto de partida do processo deriva-
dos a promover o ingresso de regras inaugurais no universo tivo e ponto de chegada do esforço de regressão. Vê-se, de
jurídico brasileiro, sendo por isso designados "instrumentos pronto, que a hierarquia exsurge como autêntico axioma de
primários". São eles: lei constitucional, lei complementar, lei toda e qualquer ordem positiva, como também os chamados
ordinária, lei delegada e até mesmo as medidas provisórias, "princípios ontológicos do direito" 96- E.
além das resoluções e dos decretos-legislativos.
Todas as demais normas reguladoras das condutas hu- 1.1.5. O axioma da validade
manas intersubjetivas, neste país, têm juridicidade condicio-
Muita diferença existe entre os mundos do "ser" e do
nada às disposições legais, quer emanem de preceitos gerais
dever-ser. São duas realidades que não se confundem, apre-
e abstratos, quer individuais e concretos. Por essa razão, re-
sentando peculiaridades tais que nos levam a uma considera-
cebem o nome de "instrumentos secundários". Não possuem,
ção própria e exclusiva. São dois corpos de linguagem, dois
por si só, a força vinculante capaz de alterar as estruturas do
mundo jurídico-positivo. Realizam, simplesmente, os coman-
dos qúe a lei autoriza e na precisa dimensão que lhes foi es-
96 - E. No direito privado, tudo que não estiver expressamente proibido estará
tipulada. São normas complementares das leis e a elas subor- juridicamente permitido; no direito público, tudo que não estiver expressa-
dinadas, representadas por decreto regulamentar, instrução mente autorizado estará juridicamente proibido.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

discursos linguísticos, cada qual portador de um tipo de orga- condições de tempo, integra o mundo do dever-ser, isto é, seus
nização lógica e de funções semânticas e pragmáticas diversas. enunciados são prescritivos, impondo como as coisas hão de
O mundo normativo tem sua existência própria. ocorrer. Com isso, o direito cria sua própria realidade, admi-
tindo e conhecendo como reais apenas os fatos produzidos na
Diferentemente do que ocorre na realidade do "ser", em
forma linguística prevista pelo ordenamento.
que a causalidade é natural, no mundo do dever-ser a causali-
dade é normativa, ou seja, demanda que o homem a construa, Vale a proporção: a linguagem natural está para a reali-
enlaçando um fato a uma relação jurídica mediante conectivo dade em que vivemos (realidade social), assim como a lingua-
i mplicacional deôntico. Exemplificando. Ao soltarmos um lápis, gem do direito está para a realidade jurídica. Dito de outra
ele inevitavelmente cai, em razão da gravidade, ou seja, em maneira, da mesma forma que a linguagem natural constitui
virtude de uma relação naturalmente existente (ser). Por outro nosso mundo circundante, a que chamamos de "realidade", a
lado, ao depararmos com uma placa contendo a inscrição "não linguagem do direito cria o domínio do jurídico, isto é, o campo
fume", não significa a impossibilidade física de praticar o ato material das condutas intersubjetivas, dentro do qual nascem,
ali tipificado, mas sim que um ser humano está manifestando vivem e morrem as relações disciplinadas pelo direito. Se não
sua vontade de que não haja pessoas fumando naquele local há fato sem articulação de linguagem, também inexistirá fato
(dever-ser). Tanto que, independentemente dessa regra vir a ser jurídico sem a linguagem específica que o relate como tal.
observada ou não, o preceito continua válido.
Para aclarar a assertiva, tomemos a situação em que um
Em suma, o mundo do "ser" é disciplinado pela causali- sujeito S' empresta quantia em dinheiro para S". Caso S' não
dade natural, em que há relações de implicação exprimindo consiga expressar sua reivindicação mediante as provas que o
nexo formalmente necessário entre os fatos naturais e seus direito prescreve como ajustadas à espécie, faltando, portanto,
efeitos. Já no universo jurídico, inexiste necessidade lógica ou
a linguagem jurídica competente para narrar o acontecimento,
factualmente fundada de a hipótese implicar a consequência,
é descabido falar em fato jurídico ou norma válida, inserida no
sendo a própria norma quem estatui o vínculo implicacional
sistema. Conserva sua natureza factual porque descrito em
por meio do dever-ser.
linguagem ordinária, porém não alcança a dignidade de fato
Agora, o leitor estará se perguntando qual o vínculo lógi- ou norma jurídica, por ausência da expressão verbal adequada.
co destes efeitos com a temática da validade no direito positivo.
Inseridos, portanto, dentro dessa autoconstitutividade da
Pois bem, enquanto na lei da causalidade natural a relação
realidade deôntica, um mandamento qualquer só adquire status
entre antecedente e consequente é descritiva, na lei de causa-
de jurídico por pertencer a determinado sistema de direito po-
lidade jurídica é o sistema jurídico que determina, dentre as
sitivo e o critério de pertinência é exatamente o sinal decisivo
possíveis hipóteses e consequências, as relações que devem se
estabelecer. É o ato de vontade da autoridade que legisla ex- de sua validade. Uma norma "N" é válida no sistema jurídico
presso por um dever-ser neutro, isto é, que não aparece moda- "S" se, e somente se, pertencer a esse conjunto, o que significa
lizado nas formas "proibido", "permitido" e "obrigatório", o admitir que foi produzida por órgão previsto pelo sistema, con-
responsável pela conexão deôntica entre proposição-antece- soante procedimento específico nele também estipulado.
dente e proposição-tese. Para a lógica deôntica, as normas jurídicas, proposições
O direito positivo, sendo tomado como o conjunto de nor- prescritivas que são, têm sua valência própria. Delas, não se
mas jurídicas válidas em determinado espaço e em certas pode dizer que sejam verdadeiras ou falsas, valores imanentes

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

às proposições descritivas da Ciência do Direito, mas as nor- Por fim, não posso deixar de enfatizar que as colocações
mas jurídicas serão sempre válidas ou inválidas, com referên- de caráter teorético serão básicas para a compreensão dos
cia a determinado sistema "S". E ser norma válida quer sig- problemas, além do que tem sido o caminho que, com mais
nificar que mantém relação de pertinencialidade com o sis- eficiência e segurança, me tem guiado na solução de questões
tema "S", ou que nele foi posta por órgão legitimado a pro- práticas.
duzi-la, mediante procedimento estabelecido para esse fim.
Nesse sentido, Lourival Vilanova 97 lembrou, com sutileza de
análise, que: 1.1.6. Sistema tributário nacional e a Lei n. 5.172/66

"No direito, são as regras do processo legislativo, ou quais- A Lei n. 5.172/66 cumpre, em termos de sistema tributário
quer outras regras-de-regras, que estabelecem como nacional, relevante papel de mecanismo de ajuste, calibrando
constituir, reformar ou desconstituir normas válidas. A a produção legislativa ordinária em sintonia com os manda-
validade é, assim, validade no interior do sistema positivo. mentos supremos da Constituição de 1988. Posso afirmar, de
Normas de outra procedência, ou de outro conteúdo, para forma resumida, que exercendo sua missão, essa lei assegura
ingressar no sistema, requerem regra-de-regra que as o funcionamento do sistema, quer introduzindo preceitos que
juridicize, que as convalide. A correspondência com tais
regulem as limitações constitucionais ao exercício do poder de
regras 'processuais' dá-lhes relação-de-pertinência em
tributar, quer dispondo sobre conflitos de competência entre
face do sistema positivo."
as pessoas políticas de direito constitucional interno, ou disci-
plinando certas matérias que o constituinte entendeu merece-
Eis a razão de se entender que a validade das normas
doras de cuidados especiais. Tudo visando à uniformidade e
aparece como um dos conceitos fundantes no domínio do
harmonia do ordenamento como um todo.
jurídico.
Pode dizer-se auspiciosa a experiência vivida pela comu-
Essa advertência nos conduz a três conclusões imediatas:
nidade jurídica brasileira com o advento do Código Tributário
a) em termos jurídico-normativos, existir e valer são grandezas
Nacional. Em face de uma estrutura rica e minuciosa, como
semânticas que se equivalem; e b) o conhecimento de qualquer
a prevista pela Lei Básica, as construções doutrinárias en-
das unidades normativas pressupõe contato com a totalidade
contraram repercussão na jurisprudência, que debateu, am-
do conjunto. Como já dissera Carnelutti, "em torno de uma
plamente e com abertura de propósitos, os temas imprescin-
simples relação jurídica gira todo o sistema do direito positivo".
díveis à implantação dos tributos concebidos pelo Texto Su-
Breve exame dessas considerações preliminares nos premo. Ao mesmo tempo, institutos caríssimos para a com-
aponta o despropósito consistente em procurar o teor signifi- postura do sistema tributário passaram por um processo de
cativo de uma regra de direito, nos estritos termos de sua evolução e de acabamento normativo digno de nota. O resul-
configuração literal, ao mesmo tempo em que convoca nossa tado não demorou a aparecer: a despeito das críticas que
atenção para uma análise mais profunda das estruturas do venhamos a formular sobre os excessos cometidos e, ainda
direito positivo brasileiro. que impondo carga tributária incompatível com as aspirações
das forças produtivas da sociedade em que vivemos, o sistema
não deixa de ser rápido, operativo e funcional, respondendo
97. Lourival Vilanova, Estruturas lógicas e o sistema do direito positivo, cit., ao mais singelo impulso, com resultados quase que imediatos
p. 19.
e previsíveis.
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

Analisando de outra maneira, as queixas sobre eventuais sua organização entitativa, nada mais almeja do que preparar-
injustiças com que nos deparamos na relação mantida entre se, aparelhar-se, preordenar-se para implantá-los.
os sujeitos da obrigação tributária no Brasil estão longe de
Ora, a sociedade brasileira vive momentos de inquietação.
comprometer o sistema na dinâmica de sua operatividade
O debate sobre matérias relativamente simples, cuja solução
funcional. Por esse ângulo, merece aplausos sinceros de reco-
já se encontrava sedimentada na experiência jurídica nacional,
nhecimento e de admiração.
mercê de remansosa e pacífica jurisprudência, apoiada em
sólida doutrina, conduziu nossas consciências, de maneira
1.1.7. Sobre reforma constitucional - considerações de ordem vertiginosa, ao questionamento de princípios fundamentais,
política sem que pudéssemos perceber o que estava se passando. Aquilo
que há de mais caro para a dignidade de um sistema de direi-
O procedimento de tomar o direito como fato da cultura,
to positivo foi posto em tela de juízo, desafiando nosso espírito
de reconhecer-lhe o caráter retórico e de compreendê-lo como
e estimulando nossas inteligências, ao reivindicar uma tomada
produto efetivo de um tempo histórico marcado pela presença
sensível de invariantes axiológicas, está longe de ser mera tá- de posição firme e contundente. Chegando-se a esse ponto,
tica aproximativa do estudioso para tentar compreender a não cabem mais tergiversações e os expedientes retóricos
textura do fenômeno jurídico. Ainda que em certos momentos somente serão admitidos para fundamentar a decisão de
a ordem normativa possa parecer mero conjunto de estratégias manter a segurança jurídica, garantindo a estabilidade das
discursivas voltadas a regrar condutas interpessoais e, desse relações já reconhecidas pelo direito, ou de anunciar, em alto
modo, concretizar o exercício do mando, firmando ideologias, e bom som, que chegou o reino da incerteza, que o ordena-
tudo isso junto há de processar-se no âmbito de horizontes mento vigente já não assegura, com seriedade, o teor de suas
definidos, em que as palavras utilizadas pelo legislador, a des- diretrizes, que as pomposas manifestações dos tribunais su-
peito de sua larga amplitude semântica, ingressem numa periores devem ser recebidas com reservas, porque, a qual-
combinatória previsível, calculável, mantida sob o controle das quer momento, podem ser revistas, desmanchando-se as
estruturas sociais dominantes. A possibilidade de estabelecer orientações jurídicas até então vigentes, sem outras garantias
expectativas de comportamento e de torná-las efetivas ao longo para os jurisdicionados.
do tempo impede que o direito assuma feição caótica e dá-lhe Trata-se de pura idealização pensar na possibilidade de
a condição de apresentar-se como sistema de proposições ar-
funcionamento de um subsistema social qualquer sem a boa
ticuladas, pronto para realizar as diretrizes supremas que a
integração dos demais subsistemas que formam o tecido social
sociedade idealiza.
pleno. Não cabe cogitar da implantação de um primoroso mo-
Com efeito, os valores e sobrevalores que a Constituição delo econômico, por exemplo, sem a sustentação das estruturas
proclama hão de ser partilhados entre os cidadãos, não como políticas e jurídicas que com ele se implicam. As virtudes da
quimeras ou formas utópicas simplesmente desejadas e con- Constituição de 1988, que são muitas, fizeram imaginar um
servadas como relíquias na memória social, mas como algo Brasil avançado e democrático, em que os direitos e garantias
pragmaticamente realizável, apto, a qualquer instante, para dos cidadãos se multiplicariam em várias direções. Mas bastou
cumprir seu papel demarcatório, balizador, autêntica fronteira a prática dos primeiros anos para nos fazer ver que as previsões
nos hemisférios da nossa cultura. A propósito, vale a afirmação da Carta Suprema não se concretizariam sem o suporte de um
peremptória de que o direito positivo, visto como um todo, na plano econômico consistente e amparado, por sua vez, em

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

procedimentos políticos e administrativos compatíveis com as determinou que o imposto sobre a renda e proventos de qual-
dimensões do projeto. Algumas expectativas se frustraram, é quer natureza fosse progressivo, e "curiosamente", a partir
certo, mas ficou a lição da experiência vivida intensamente na desse marco, a legislação infraconstitucional passou a adotar
operosidade turbulenta do convívio social, caracterizado pela tabela com apenas duas faixas de alíquotas, para a pessoa físi-
instabilidade de suas relações. ca, fora a de isenção, negando acatamento ao princípio superior,
O sistema tributário brasileiro surgiu no âmago desse de redação cristalina. Isso nos faz refletir: será que o recente
processo empírico onde o direito aparece e comparece como amor à progressividade é algo concreto, efetivo, um anseio
autêntico produto da cultura, acumulando-se no seu histori- consciente de uma comunidade jurídica treinada nas vicissi-
cismo para projetar o entusiasmo de uma sociedade que olha tudes da difícil relação Fisco-contribuinte, ou, de modo diver-
para o futuro e pretende vivê-lo com a consciência de suas so, é pretexto oportuno para a implantação de outra sorte de
conquistas e com a força do seu espírito. medidas?
Sua configuração jurídica reflete bem a complexidade das Aspirar à simplificação, à racionalidade, à eficiência eco-
instituições básicas de um Estado igualmente complexo. Seria nômica, à eficiência administrativa, à progressividade, ao
até ingenuidade supor que num sistema em que convivem fortalecimento da federação e da autonomia municipal, é o
pessoas dotadas de autonomia legislativa, financeira, adminis- lugar comum de todos aqueles que se referem, em tom retóri-
trativa e política, pudessem existir diretrizes simples e trans- co, ao sistema tributário nacional. Considerá-lo, porém, como
parentes que, em conjugação elementar com outras providên- um eficiente produto da experiência jurídica, política e econô-
cias, tivessem o condão de esquematizar uma organização mica do nosso país, curtido, demoradamente, no dia-a-dia das
operativa e eficiente. discussões administrativas e judiciais, bem como no pensamen-
O sistema que temos foi forjado na prática das nossas to aturado da dogmática, é algo que aponta para sugestões de
instituições, nasceu e cresceu entre as alternâncias de uma muito equilíbrio e prudência. Mexer em alguma coisa que apre-
história política agitada, irrequieta, no meio de incertezas eco- senta tal rendimento, com respostas ágeis e prontas aos estímu-
nômicas internas e externas. Sua fisionomia é a do Brasil dos los da sociedade, como tem sido iterativamente demonstrado, é
nossos tempos, com suas dificuldades, suas limitações, mas um passo difícil e que pode deixar marcas indesejadas.
também com suas grandezas e, para que não dizer, com a sur- Devemos reconhecer, por outro lado, que a carga tributária
preendente vitalidade de um país jovem, que marca, incisiva- é excessiva, sufocando setores da economia e afetando a com-
mente, sua presença no concerto das nações. petitividade de nossos produtos, além de vários outros desvios
Aquilo que de negativo se lhe atribuem nem sempre cor- que não escapariam à atenção de um observador pouco exi-
responde à realidade. Antes, porém, revela posturas de cunho gente do cotidiano. Entretanto, sob pena de um erro histórico
ideológico já conhecido de outras circunstâncias. Querem mu- irreparável, essas anomalias não podem ser atribuídas ao sis-
dar o sistema em nome de uma simplificação mais retórica do tema, que em si mesmo é bom, capaz de propiciar arrecadações
que efetiva; em nome da "racionalidade", princípio de difícil vultosas aos cofres do Poder Público, que está preparado para
identificação, uma vez que dele precisamos para dele falarmos; operar de muitas maneiras diferentes, entre elas e até nessas
em nome, até, de uma "progressividade" que viria a imprimir linhas que são tidas como inequívocas distorções. Em suma,
projeção mais dinâmica e justa à administração de certos gra- creio que o sistema tributário nacional possa ser acionado de
vames. Mal se lembram, contudo, que a Constituição de 1988 formas positivas, levando-se às últimas consequências diretrizes
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constitucionais que estão aí, à nossa frente, e, por uma série aproveitarmos o ensejo para estabelecer os limites que estão
de razões, não foram ainda mobilizadas. faltando? Por que não emendarmos a Constituição em trechos
Tenho para mim que tais lembranças devem ser consig- como esse, atendendo às reivindicações dos especialistas, para
nadas, no momento mesmo em que entra em jogo a própria aperfeiçoar um sistema que vem sendo construído como a
manutenção da integridade sistêmica do Estado brasileiro. projeção do sentimento histórico da sociedade brasileira?
Vivemos o processo de uma decisão significativa e importante.
E a melhor contribuição que o jurista poderia oferecer está na
1.2. COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA
manifestação axiologicamente neutra (na medida do possível)
a respeito do quanto percebe existir no trato com o real. Se a Da concepção global de sistema jurídico-positivo, tomada
pretensão é alterar, efetivamente, algumas competências cons- a expressão como conjunto de normas associadas segundo
titucionais, assunto delicado que pode abalar em seus funda-
critérios de organização prescritiva, e todas elas voltadas para
mentos a organização jurídica nacional, requer-se domínio
o campo material das condutas interpessoais, extraímos o
técnico e conhecimento especializado sobre a matéria.
subsistema das normas constitucionais e, de dentro dele, outro
Tomemos o quadro das chamadas "contribuições inter- subsistema, qual seja o subsistema constitucional tributário.
ventivas". Singelo apanhado histórico registra que sua utiliza- Pode dizer-se, ainda que em traços largos e sobremodo abran-
ção vem crescendo substancialmente nos últimos anos. Se as gentes, que neste subsistema serão suas unidades integrantes
facilidades que a pessoa política União tem encontrado, num as normas constitucionais que versam, direta ou indiretamen-
campo por assim dizer nebuloso em termos competenciais, em
te, matéria tributária.
que a incidência dos cânones superiores não é nítida pela pró-
pria estrutura de linguagem do Texto Básico; se tais facilidades, Entre os assuntos tratados pelo Texto Maior está o da com-
repito, favorecem o aspecto da fruição integral desses recursos, petência legislativa tributária. Expressão de uma das diversas
não incluídos no rol daqueles que devem ser distribuídos entre formas empregadas pelo constituinte para traçar o desenho das
Estados, Distrito Federal e Municípios, tudo isso contou, cer- competências legiferantes voltadas à instituição de tributos, os
tamente, para chamar a atenção do poder político sobre as princípios constitucionais assumem especial relevância,
"vantagens" jurídicas e econômicas desse tipo de gravame, configurando preceitos a serem observados pelo legislador
explorado até aqui com grande vigor e determinação. infraconstitucional, no momento da criação das normas jurí-
A jurisprudência, ao seu jeito, vai construindo o sentido dicas tributárias. Por esta razão, o subsistema de que falamos
que lhe parece ser o mais justo, refletindo a inconstância dos é fortemente marcado por enunciados de cunho axiológico,
relacionamentos sociais, enquanto a doutrina acompanha esse revelando a orientação do legislador constituinte em impregnar
processo de configuração, procurando encontrar o perfil de as normas de inferior hierarquia com uma série de conteúdos
uma outorga de competência que o legislador constituinte não de preferência por núcleos significativos.
adscreveu de maneira expressa.
Eis um ponto de real interesse para o programa de uma 1.2.1. Competência legislativa tributária e os limites consti-
reforma constitucional, que envolve diretamente o bom fun- tucionalmente estabelecidos
cionamento das instituições, garantindo o contribuinte e o
próprio Estado-administração contra excessos que a Carta A Carta Fundamental traçou minuciosamente o campo e
Magna esteve longe de conceber e de autorizar. Por que não os limites da tributação, erigindo um feixe de princípios cons-
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

titucionais com o fim de proteger os cidadãos de abusos do Lógico, em situações desse jaez cabe-nos tão-somente especi-
Estado na instituição e exigência de tributos. Desse modo, o ficar o sentido em que estamos empregando a dicção, para
legislador, ao criar as figuras de exação, deve percorrer o ca- afastar, por esse modo, as possíveis ambiguidades.
minho determinado pelo Texto Maior, observando atentamen- Quadra advertir, portanto, que a mensagem não é dirigi-
te as diretrizes por ele eleitas. da somente ao legislador das normas gerais e abstratas, mas,
O primeiro é o cânone da legalidade, projetando-se sobre igualmente, ao administrador público, ao juiz e a todos aqueles
todos os domínios do direito e inserido no artigo 5 2 , II, do Tex- a quem incumba cumprir ou fazer cumprir a lei. No desempe-
to Constitucional vigente: "ninguém será obrigado a fazer ou nho das respectivas funções, a todos se volta o mandamento
deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei". No setor constitucional, que há de ser cumprido. Qualquer tipo de im-
do direito tributário, porém, esse imperativo ganha feição de posição tributária que se pretenda instituir há de curvar-se aos
maior severidade, por força do que se conclui da leitura do ditames desse primado, conquista secular dos povos civilizados
artigo 150, I, do mesmo Diploma: "sem prejuízo de outras ga- que permanece como barreira intransponível para os apetites
rantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos arrecadatórios do Estado-administração.
Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I - exigir ou
O mesmo cabe dizer das demais regras impositivas de
aumentar tributo sem lei que o estabeleça". Em outras palavras, comportamentos aos contribuintes. Em linha de princípio, o
qualquer das pessoas políticas de direito constitucional inter-
veículo introdutor da norma tributária no ordenamento há de
no somente poderá instituir tributos, isto é, descrever a regra-
ser sempre a lei (sentido lato). O princípio da estrita legalidade,
matriz de incidência, ou aumentar os existentes, majorando a
todavia, vem acrescer os rigores procedimentais em matéria
base de cálculo ou a alíquota, mediante expedição de lei.
de tributo, dizendo mais do que isso: estabelece que a lei ad-
Não podemos deixar de considerar que têm, igualmente, ventícia traga, no seu bojo, os elementos descritores do fato
competência tributária o Presidente da República, ao expedir jurídico e os dados prescritores da relação obrigacional. Esse
um decreto sobre IR, ou seu Ministro ao editar a correspon- plus caracteriza a tipicidade tributária.
dente instrução ministerial; o magistrado e o tribunal que vão
A tipicidade tributária significa a exata adequação do fato
julgar a causa; o agente da administração encarregado de lavrar
à norma, e, por isso mesmo, o surgimento da relação jurídica
o ato de lançamento, bem como os órgãos que irão participar
se condicionará ao evento da subsunção, que é a plena corres-
da discussão administrativa instaurada com a peça impugna-
pondência entre o fato jurídico tributário e a hipótese de inci-
tória; aquele sujeito de direito privado habilitado a receber o
dência, fazendo surgir a obrigação correspondente, nos exatos
pagamento de tributo (bancos, por exemplo); ou mesmo o par-
termos previstos em lei. Não se verificando o perfeito quadra-
ticular que, por força de lei, está investido na condição de
mento, inexistirá obrigação tributária. Nesse percurso, ou
praticar a sequência procedimental que culminará com a pro-
ocorre a subsunção do fato à regra, ou não, afastando-se ter-
dução de norma jurídica tributária, individual e concreta (casos
de IPI, ICMS, ISS, etc.). Todos eles operam revestidos de com- ceira possibilidade. Perfaz-se aqui a eficácia da lei lógica do
petência tributária, o que mostra a multiplicidade de traços terceiro excluído: a proposição "p" é verdadeira ou falsa,
signifiCativos que a locução está pronta para exibir. Não haveria inadmitindo-se situação intermediária. Por outro lado, ocorri-
por que adjudicar o privilégio a qualquer delas, em detrimen- do o fato, a relação obrigacional que nasce há de ser exatamen-
to das demais. Como sugeriram expoentes do Neopositivismo te aquela estipulada no consequente normativo.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

Em síntese, no trajeto de construção de sentido das nor- Manifesta-se, de fato, a competência tributária, ao desen-
mas tributárias (acepção estrita), os enunciados que versam as cadearem-se os mecanismos jurídicos do processo legislativo,
competências (normas indiretas da ação, para Gregorio Robles acionado, respectivamente, nos planos federal, estadual e mu-
Morchón 98 ), são decisivos para a estipulação das fronteiras nicipal. Por esse iter, rigidamente seguido em obediência às
dentro das quais o factum tributário pode acontecer. proposições prescritivas existentes, a União, os Estados, o Dis-
trito Federal e os Municípios elaboram as leis (acepção larga),
São três condições necessárias para o estabelecimento de
que são promulgadas e, logo depois, expostas ao conhecimento
vínculo tributário válido: sem lei anterior que descreva o even-
geral pelo ato da publicação. Vencidas as dificuldades desse
to, obrigação tributária não nasce (princípio da legalidade);
curso formativo, ingressam os textos legislados no ordenamento
sem subsunção do fato à hipótese normativa, também não
em vigor, surgindo a disciplina jurídica de novas situações tri-
(princípio da tipicidade); havendo previsão legal e a correspon-
butárias, no quadro do relacionamento da comunidade social.
dente subsunção do fato à norma e, após a devida transforma-
Foi exercida a competência, enriquecendo-se o direito positivo
ção na linguagem competente, os elementos do liame jurídico
com o acréscimo de outras unidades normativas sobre tributos.
irradiado devem equivaler àqueles prescritos na lei. O desres-
peito a esses cânones fulminará, decisivamente, qualquer Transportando-se isto para o quadro das formulações
pretensão de cunho tributário. normativas e adotando pressuposto de que toda norma jurídi-
ca é sintaticamente homogênea, variando apenas em planos
É da tradição do direito brasileiro reger a matéria das
semânticos e pragmáticos, podemos afirmar que, com a com-
competências no altiplano constitucional, deixando bem claro
petência tributária, deparar-nos-emos com a mesma estrutura
o poder jurídico atribuído às pessoas, aos órgãos e às institui-
normativa bipartida. Tácio Lacerda Gama 99 , analisando o tema
ções. E, no que concerne ao direito tributário, é procedimento
sobre a contribuição de intervenção, acertadamente compõe
iterativo, traço inconfundível do nosso sistema, principalmen-
essa estrutura normativa, asseverando que:
te pela abundância principiológica, como já demonstramos, e
pela maneira exaustiva com que os constituintes foram mol- "a norma de competência tributária em sentido estrito re-
dando as leis fundamentais, no correr da História. Esse pecu- quer a reunião das proposições construídas a partir da
liar modo de conceber os paradigmas constitucionais que leitura do direito positivo numa estrutura lógico-condicio-
sempre regeram as relações tributárias no Brasil foi anotado nal. No antecedente dessa norma, descreve-se um fato — o
com riqueza de pormenor por Geraldo Ataliba, no seu clássico processo de enunciação necessário à criação dos tributos —,
imputa-se a esse fato uma relação jurídica, cujo objeto con-
Sistema Constitucional Tributário Brasileiro, obra insuperável
siste na faculdade de criar tributos. De forma análoga ao
que indica a necessidade premente de estabelecer-se o texto que se dá com as demais normas jurídicas, sem que se
da constituição como patamar a partir do qual os processos construa essa norma em sentido estrito, a análise da com-
interpretativos hão de desenvolver-se, para chegar ao sentido petência estará incompleta."
que o exegeta tem por bem atribuir ao material linguístico
bruto do direito positivo. Eis um breve resumo da competência no direito tributário.

98. Gregorio Robles Morchón, Teoria del derecho: fundamentos de teoria 99. Tácio Lacerda Gama, Contribuição de intervenção no domínio econômico,
comunicacional del derecho, Madrid, Civitas, 1998. São Paulo, Quartier Latin, 2003, p. 73.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

1.2.2. Competência legislativa tributária e a aptidão de inovar a) Quanto aos impostos (tributos não-vinculados de acor-
o sistema jurídico do com a classificação de Geraldo Ataliba), os elementos rele-
vantes para sua fisionomia jurídica encontram-se estipulados
"Competência", com as acepções encontradas no direito no sistema constitucional tributário brasileiro de modo minu-
positivo e na doutrina, é termo próprio do vocabulário técnico- cioso. As situações susceptíveis de integrar o critério material
jurídico. Quando empregado na Constituição para autorizar as dos impostos de competência da União, dos Estados, do Dis-
pessoas políticas de direito constitucional interno a legislar sobre trito Federal e dos Municípios foram previstas nos artigos 153,
matéria tributária, falamos em "competência tributária". Trata-se 155 e 156, remanescendo aberta apenas a faixa de competência
de especificação da competência legislativa, posta como aptidão tributária da União, em face da possibilidade residual estabe-
de que são dotadas aquelas pessoas para expedir regras jurídicas, lecida no artigo 154, I, do Texto Supremo.
inovando o ordenamento, e que se opera pela observância de uma b) As taxas e contribuições de melhoria, tributos direta e
série de atos, cujo conjunto caracteriza o procedimento legislati- indiretamente vinculados à atuação estatal, respectivamente,
vo. A despeito de a locução experimentar outras tantas acepções podem ser instituídos por qualquer das pessoas políticas. Con-
na própria simbologia do direito tributário brasileiro, focalizarei quanto à primeira vista pareça que o constituinte não repartiu
esse modo de emprego da expressão, circunscrito à atividade de entre elas o poder para criar taxas, tal equívoco se desfaz por
legislar sobre o assunto, em termos inaugurais. meio do exame dos dispositivos constitucionais que disciplinam
as competências administrativas das várias esferas: União,
No plexo de faculdades legislativas que o constituinte
Estados, Distrito Federal e Municípios só estão autorizados a
estabeleceu, figura aquela de editar normas disciplinadoras do
instituir e cobrar taxas na medida em que desempenhem a
segmento das imposições tributárias, desde a que contemple
atividade que serve de pressuposto para sua exigência. O mes-
o próprio fenômeno da incidência, até as que disponham a
mo raciocínio deve ser efetuado com relação às contribuições
propósito de uma imensa gama de providências, circundando
de melhoria: tendo em vista a necessária vinculação (ainda que
o núcleo da regra-matriz e tornando possível a realização con- indireta) à atuação estatal, é permitida sua instituição apenas
creta dos direitos subjetivos de que é titular o sujeito ativo, bem pela pessoa jurídica de direito público que realizar a obra pú-
como dos deveres cometidos ao sujeito passivo. blica geradora de valorização nos imóveis circunvizinhos.
A competência tributária é, em síntese, uma das parcelas c) Os empréstimos compulsórios, por sua vez, são de com-
entre as prerrogativas legiferantes das quais são portadoras as petência privativa da União. Não obstante essa exação possa
pessoas políticas, consubstanciada na faculdade de legislar revestir qualquer das formas que correspondam às espécies
para a produção de normas jurídicas sobre tributos. Configura do gênero tributo (imposto, taxa ou contribuição de melhoria),
tema eminentemente constitucional. Uma vez cristalizada a conforme a hipótese de incidência e base de cálculo eleitos pelo
delimitação do poder legiferante, pelo seu legítimo agente (o legislador, a disciplina jurídico-tributária à qual está sujeita
constituinte), a matéria dá-se por pronta e acabada, carecendo apresenta peculiaridades, relacionadas no artigo 148, incisos I
de sentido sua reabertura em nível infraconstitucional. e II, da Constituição. A União só está autorizada a fazer uso
A Constituição da República é extremamente analítica, desse tributo (i) para atender a despesas extraordinárias, de-
relaciónando as hipóteses em que as pessoas jurídicas de di- correntes de calamidade pública, de guerra externa ou sua
reito público, por intermédio dos respectivos poderes legisla- i minência; e (ii) no caso de investimento público de caráter
tivos, estão habilitadas à instituição de tributos: urgente e de relevante interesse nacional, devendo introduzi-los

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

no ordenamento, necessariamente, por meio da edição de lei conformam o regime tributário desses tributos. Por isso, além
complementar. de prescrever os dispositivos que fundamentam a regra-matriz
de incidência tributária, a norma de competência determina,
d) Por fim, a Carta Magna faculta, no artigo 149, a criação também, qual destino deve ser dado ao produto de arrecadação.
100
de contribuições sociais, de intervenção no domínio econô- Como percebeu de maneira inaugural Tácio Lacerda Gama, é
mico e de interesse de categorias profissionais e econômicas. a norma de competência que vincula a instituição da norma
Essas competências são exclusivas da União, salvo as contri- tributária à norma financeira que prescreve a destinação do
buições sociais cobradas dos servidores públicos, destinadas produto arrecadado. Eis suas palavras:
ao financiamento de seus sistemas de previdência e assistência
social, cuja exigência é autorizada aos Estados, Distrito Federal "... à construção da norma de competência que regula a
e Municípios, e da contribuição para custeio do serviço de criação das contribuições (...), seria possível separar os enun-
iluminação pública, atribuída aos Municípios e Distrito Federal ciados que delimitam a criação de uma dessas contribuições
pelo artigo 149-A e parágrafo único, introduzidos pela Emenda em dois blocos distintos, mas inter-relacionados: de um lado,
surgiria o conjunto de enunciados que delimitam a instituição
Constitucional n. 39/2002. Também com relação a esse tributo
da regra-matriz de incidência possível; do outro, agrupar se--

o constituinte foi expresso ao impor limitações à atuação legis-


ia o conjunto de enunciados que indicam afinalidade especial
lativa infraconstitucional, prescrevendo observância ao regime ,
que enseja a instituição do tributo' ioi (grifos no original).
jurídico tributário, com especial rigor no que diz respeito às
contribuições sociais destinadas ao financiamento da seguri- Nesses termos, observa-se quão rígido é o sistema cons-
dade social, para as quais delimitou os conteúdos susceptíveis titucional tributário brasileiro, não podendo esse fato ser
de tributação, estatuindo, para o exercício de competência ignorado pelo legislador infraconstitucional ou pelo aplicador
residual, o cumprimento dos requisitos do artigo 154, I, do do direito.
Texto Maior (artigo 195, § 4 2 , da CR/88). Além disso, todas as
contribuições previstas no art. 149 devem observância aos
1.2.3. Competência residual
artigos 146, III, e 150, I e III, que determinam, respectivamen-
te, submissão do exercício da competência às normas gerais A Constituição de 1988 deu autorização expressa para que
de direito tributário, a observância do princípio da estrita le- a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios legis-
galidade tributária, bem como os da anterioridade, da irretro- lassem sobre determinados impostos, mas, além disso, outorgou
atividade e todos os demais que se apliquem indiretamente ao à União a chamada "faixa de competência residual", contida
gênero tributo. no artigo 154, I, bem como a previsão do inciso II do mesmo
Ressalta-se que a norma de competência, nos domínios dispositivo, conhecida como competência extraordinária. Exa-
das contribuições, tem a função de aglutinar os elementos que minemos a primeira.
Prescreve o mencionado artigo 154, I, da Constituição
brasileira:
100. À semelhança do que ocorre com os empréstimos compulsórios, também
as contribuições podem assumir a feição de impostos ou taxas, conforme sua
hipótese de incidência, confirmada pela base de cálculo, seja vinculada ou
não-vinculada a uma atuação estatal. 101. Contribuições de intervenção no domínio econômico, ob. cit., p. 84.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

"A União poderá instituir: extravagantes). E a competência residual permaneceu inativa,


I — mediante lei complementar, impostos não previstos no decorando a tábua de possibilidades legiferantes do ente federal.
artigo anterior, desde que sejam não-cumulativos e não
tenham fato gerador ou base de cálculo próprios dos discri-
Por outro lado, a disjunção "fato gerador" ou base de
minados nesta Constituição". cálculo não exprime bem aquilo que uma interpretação siste-
mática do Texto Constitucional reivindica. Ambos devem ser
A titularidade competencial é da pessoa política União, considerados conjuntamente. Formam, aliás, o binômio que dá
que deverá exercê-la por meio de lei complementar, com o a feição tipológica do tributo. É comparando a hipótese de
quorum estipulado no artigo 69 da Lei Maior, vale dizer, com incidência com a base de cálculo que saberemos distinguir im-
maioria absoluta. Em outras palavras, a previsão do art. 154, I, postos de taxas e, destas, a contribuição de melhoria. Em outras
da CF/88 requer ser somente lei complementar o veículo intro- palavras, por este critério que apontaremos as diferenças entre
dutor do tributo que tem por fundamento de validade a com- os impostos, as taxas e as contribuições de melhoria.
petência residual, contendo-se nesta lei, portanto, todos os Para efeito de demarcação do espaço jurídico da compe-
elementos que compõem a regra-matriz de incidência da exa- tência residual, entretanto, o binômio hipótese de incidência/
ção instituída. E a autorização delimita apenas o ponto de base de cálculo aparece como pressuposto indeclinável, não
partida: impostos não previstos no artigo anterior. A contar daí, podendo a nova exação utilizar qualquer das hipóteses ou ba-
a área a ser explorada pela entidade tributante fica indetermi- ses de cálculo arroladas para a competência dos Estados, dos
nada, expandindo-se até onde puder ir o talento criativo do seu Municípios ou do Distrito Federal. Respeitados esses limites e
legislador. Os limites referidos, quais sejam, a não-cumulativi- empregado o instrumento próprio - lei complementar -, a União
dade e a circunstância de não terem "fato gerador" ou base de poderá criar o imposto que bem lhe aprouver.
cálculo próprios dos discriminados na Constituição, por serem
requisitos de técnica jurídica, não interferem no tamanho da 1.2.4. Competência extraordinária
competência residual, mas sim no modo de realizá-la. Não so-
beja repisar que tais limitações têm por destinatário o legisla- Também coube à União a competência constitucional para
dor infraconstitucional, encontrando-se fora de sua abrangên- instituir impostos extraordinários, compreendidos ou não no
cia o poder constituinte derivado. Nestes termos, emenda à campo que lhe fora outorgado, os quais serão suprimidos, gra-
Constituição poderia tratar sobre competência residual sem dativamente, cessadas as causas de sua criação. Em decorrên-
tomar em conta tais enunciados limitativos, afirmativa esta já cia, justamente, deste enunciado, a privatividade, caracterís-
consolidada no STF em voto do Eminente Min. Carlos Velloso tica atribuída pela doutrina tradicional às competências legis-
(julgamento da ADIn 939/DF) inclusive. lativas, não se sustenta. Autorizada a União a legislar sobre
competências de outros entes políticos, confere-se-lhe aptidão
Ajeita-se aqui uma observação de cunho histórico, mas
legislativa concorrente aos Estados, Distrito e Municípios. Daí
que nos parece procedente: há muito que a União dispõe de
dizer-se privativos, no Brasil, somente os impostos outorgados
faixa residual de competência tributária. Em vez de movimen-
à União. Em outros termos, a privatividade fica reduzida tão
tá-la ; nas ocasiões em que necessitou, preferiu servir-se de
só à faixa de competência do Poder Público Federal.
expedientes desaconselháveis, como a singela mudança de
nomes (chamando impostos pela designação de taxas, emprés- Além de ser uma pessoa política de direito constitucional
timos compulsórios, contribuições e uma sorte de epítetos interno, a União foi investida dessa competência por força de

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

sua condição de pessoa política no concerto das nações, impor- ordinário aos ditames da anterioridade, tanto aquela prevista
ta dizer, pessoa política de direito constitucional externo. no inciso III, b, do art. 150 (exercício financeiro seguinte) quan-
O pressuposto, porém, é explícito: na iminência ou no caso to aquel'outra enunciada na alínea c do mesmo inciso (nona-
de guerra externa. De fato, para enfrentar as vicissitudes de gesimal). No entanto, o constituinte entendeu por bem pres-
guerra externa, ou de sua iminência, entendeu por bem o crever expressamente não se aplicar aos impostos extraordi-
constituinte de 1988 atribuir tal autorização legiferante ao ente nários as regras da anterioridade, conforme prescrição do
federal, consignando-a na redação do artigo 154, II. Convém parágrafo 1 2 do art. 150.
esclarecer, todavia, que por guerra externa haveremos de en-
tender aquela de que participe o Brasil, diretamente, ou a si- 1.2.5. Competência tributária e capacidade tributária ativa
tuação de beligerância internacional que provoque detrimen-
tos ao equilíbrio econômico-social brasileiro. É claro que na No curso do presente subitem, tomaremos competência
segunda hipótese os efeitos do conflito internacional hão de tributária com a significação acima especificada, vale dizer, de
ser tais que se equiparem àqueles que seriam suscitados caso legislar (pelo Poder Legislativo, já que "legislador", em sentido
o Brasil participasse efetivamente da guerra. Diga-se o mesmo amplo, todos nós o somos). Esta não se confunde com a capa-
da iminência de guerra externa. cidade tributária ativa. Uma coisa é poder legislar, desenhando
No falar cotidiano, os impostos originários de competên- o perfil jurídico de um gravame ou regulando os expedientes
cia extraordinária poderão vir com o qualificativo de finalida- necessários à sua funcionalidade; outra é reunir credenciais
de específica, sendo aqueles que se determinam pela sua vin- para integrar a relação jurídica, no tópico de sujeito ativo. O
culação a um objetivo pré-fixado. Um imperativo, entretanto, estudo da competência tributária é um momento anterior à
deve ser observado. Cessadas as causas que determinaram a existência mesma do tributo, situando-se no plano constitucio-
criação dos impostos extraordinários, serão eles suprimidos, nal. Já a capacidade tributária ativa, que tem como contrano-
gradativamente. Logo, deixando de existir a causa, deve-se ta a capacidade tributária passiva, é tema a ser considerado no
extinguir a referida exação, o que se dá somente mediante a ensejo do desempenho das competências, quando o legislador
expedição de um novo enunciado jurídico-normativo que re- elege as pessoas componentes do vínculo abstrato, que se ins-
vogue o imposto instituído. tala no instante em que acontece, no mundo físico e social, o
Satisfeito o pressuposto, o legislador federal poderá editar fato previsto na hipótese normativa.
normas jurídicas que venham a instituir impostos, dentro ou A distinção justifica-se plenamente. Reiteradas vezes, a
fora de seu âmbito de competência, isto é, poderá servir-se pessoa que exercita a competência tributária se coloca na po-
daquelas exações que foram concedidas, inicialmente, aos sição de sujeito ativo, aparecendo como credora da prestação
Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, o que caracteri- a ser cumprida pelo devedor. É muito frequente acumularem-
zaria hipótese de bitributação constitucionalmente autorizada; se as funções de sujeito impositor e de sujeito credor numa
como também de sua própria competência, resultando na pessoa só. Além disso, uma razão de ordem constitucional nos
constitucionalidade de específicas situações de 'bis in idem'. leva a realçar a diferença: a competência tributária é intrans-
Por último, é intuitivo crer que o exercício da competên- ferível, enquanto a capacidade tributária ativa não o é. Quem
cia extraordinária, em decorrência do próprio pressuposto recebeu poderes para legislar pode exercê-los, não estando,
escolhido pelo Texto Maior, não enseja submissão do legislador porém, compelido a fazê-lo, com exceção do ICMS, que há de

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

ser instituído e mantido, obrigatoriamente, pelas pessoas po- de inequívocas providências no sentido de prestigiar certas
líticas competentes (Estados-membros e Distrito Federal). situações, tidas como social, política ou economicamente va-
Todavia, em caso de não-aproveitamento da faculdade legisla- liosas, às quais o legislador dispensa tratamento mais confor-
tiva, a pessoa competente estará impedida de transferi-la a tável ou menos gravoso. A essa forma de manejar elementos
qualquer outra. Trata-se do princípio da indelegabilidade da jurídicos usados na configuração dos tributos, perseguindo
competência tributária, que se põe entre as diretrizes implícitas objetivos alheios aos meramente arrecadatórios, dá-se o nome
e que é uma projeção daquele postulado genérico do artigo 2 2 de "extrafiscalidade". Alguns exemplos esclarecerão bem o
da Constituição, aplicável, por isso, a todo o campo da ativida- assunto. A lei do Imposto Territorial Rural (ITR), ao fazer in-
de legislativa. A esse regime jurídico não está submetida a cidir a exação de maneira mais onerosa, no caso dos imóveis
capacidade tributária ativa. inexplorados ou de baixa produtividade, busca atender, em
É perfeitamente possível que a pessoa habilitada para primeiro plano, a finalidades de ordem social e econômica e
legislar sobre tributos edite a lei, nomeando outra entidade não ao incremento de receita. A legislação do Imposto sobre a
para compor o liame, na condição de sujeito titular de direitos Renda e proventos de qualquer natureza (IR) permite o abati-
subjetivos, o que nos propicia reconhecer que a capacidade mento de verbas gastas em determinados investimentos, tidos
tributária ativa é transferível. Acredito que esse comentário como de interesse social ou econômico, tal o reflorestamento,
explique a distinção que deve ser estabelecida entre compe- justamente para incentivar a formação de reservas florestais
tência tributária e capacidade tributária ativa. no país. Em outras passagens, na composição de sua base de
cálculo, seja entre as deduções ou entre os abatimentos da
1.2.6. Fiscalidade, extrafiscalidade e parafiscalidade renda bruta, insere medidas que caracterizam, com nitidez, a
extrafiscalidade. Quanto ao IPI, a própria Constituição pres-
Os signos fiscalidade, extrafiscalidade e parafiscalidade creve que suas alíquotas serão seletivas em função da essen-
são termos usualmente empregados no discurso da Ciência do cialidade dos produtos (artigo 153, § 3 2 , I), fixando um critério
Direito para representar valores finalísticos que o legislador que leva o legislador ordinário a estabelecer percentuais mais
imprime na lei tributária, manipulando as categorias jurídicas
elevados para os produtos supérfluos. Os chamados "tributos
postas à sua disposição. Raríssimas são as referências que a eles
aduaneiros" — impostos de importação e de exportação — têm
faz o direito positivo, tratando-se de construções puramente
apresentado relevantíssimas utilidades na tomada de iniciativas
doutrinárias. O modo como se dá a utilização do instrumental
diretoras da política econômica. Haja vista para a tributação dos
jurídico-tributário é o fator que identifica o gravame em uma
automóveis importados do exterior que, em dado momento
das três classes. Fala-se, assim, em "fiscalidade" sempre que a
organização jurídica do tributo denuncie que os objetivos que histórico, foi desestimulante ao extremo, para impulsionar a
presidiram sua instituição, ou que governam certos aspectos indústria automobilística nacional.
da sua estrutura, estejam voltados ao fim exclusivo de abaste- Há tributos que se prestam, admiravelmente, para a in-
cer os cofres públicos, sem que outros interesses — sociais, trodução de expedientes extrafiscais. Outros, no entanto, in-
políticos ou econômicos — interfiram no direcionamento da clinam-se mais ao setor da fiscalidade. Não existe, porém,
atividade impositiva. entidade tributária que se possa dizer pura, no sentido de re-
A experiência jurídica nos mostra, porém, que vezes sem alizar tão-só a fiscalidade, ou, unicamente, a extrafiscalidade.
conta a compostura da legislação de um tributo vem pontilhada Os dois objetivos convivem, harmônicos, na mesma figura

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

impositiva, sendo apenas lícito verificar que, por vezes, um Em algumas oportunidades, porém, verificamos que a lei
predomina sobre o outro. instituidora do gravame indica sujeito ativo diferente daquele
que detém a respectiva competência, o que nos conduz à con-
Consistindo a extrafiscalidade no uso de fórmulas jurídi-
clusão de que uma é a pessoa competente, outra a pessoa
co-tributárias para a obtenção de metas que prevalecem sobre
credenciada a postular o cumprimento da prestação. Ora,
os fins simplesmente arrecadatórios de recursos monetários, sempre que isso ocorrer, apontando a lei sujeito ativo diverso
o regime que há de dirigir tal atividade não poderia deixar de do portador da competência impositiva, estará o estudioso
ser aquele próprio das exações tributárias. Significa, portanto, habilitado a reconhecer duas situações juridicamente distintas:
que, ao construir suas pretensões extrafiscais, deverá o legis- a) o sujeito ativo, que não é titular da competência, recebe
lador pautar-se, inteiramente, dentro dos parâmetros consti- atribuições de arrecadar e fiscalizar o tributo, executando as
tucionais, observando as limitações de sua competência impo- 2
normas legais correspondentes (CTN, artigo 7 ), com as garan-
sitiva e os princípios superiores que regem a matéria, assim tias e privilégios processuais que competem à pessoa que le-
entendidos tanto os dispositivos expressos quanto os implícitos. gislou (CTN, artigo 7 2 , § 1 2 ), mas não fica com o produto arre-
Não tem cabimento aludir-se a regime especial, visto que o cadado, isto é, transfere os recursos ao ente político; ou b) o
instrumento jurídico utilizado é invariavelmente o mesmo, sujeito ativo indicado recebe as mesmas atribuições do item a,
modificando-se tão-somente a finalidade do seu emprego. acrescidas da disponibilidade sobre os valores arrecadados,
para que os aplique no desempenho de suas atividades espe-
Tenho insistido, reiteradamente, por fim, que só as pessoas
cíficas. Nesta última hipótese, temos consubstanciado o fenô-
políticas — União, Estados, Distrito Federal e Municípios — dis-
meno jurídico da parafiscalidade.
põem de competência tributária, na acepção que especificamos,
pois são as únicas dotadas de Poder Legislativo e, por via de con- Firmado esse preâmbulo, podemos definir "parafiscali-
sequência, com possibilidades de produzir inovações na ordem dade" como o fenômeno jurídico que consiste na circunstância
jurídica. E exercer a competência tributária nada mais é que de a lei tributária nomear sujeito ativo diverso da pessoa que
editar leis que instituam tributos ou regulem sua funcionalidade. a expediu, atribuindo-lhe a disponibilidade dos recursos aufe-
ridos, tendo em vista o implemento de seus objetivos peculiares.
A competência tributária pressupõe a capacidade ativa. A propósito adverte Paulo Ayres Barretol° :
2

Vale dizer, às três entidades a quem se outorgou a faculdade


de expedir leis fiscais, atribuiu-se a prerrogativa de serem "A não coincidência entre a titularidade da competência
sujeitos ativos de relações jurídicas de cunho tributário. Desse i mpositiva e a indicação do sujeito ativo da relação jurídica
modo, sendo a União competente para legislar sobre o IPI, será não desnaturam o caráter tributário da exigência. Da mesma
forma, a disponibilidade do recurso ao eleito para figurar no
ela, em princípio, a pessoa capaz de integrar a relação jurídica,
pólo ativo dessa mesma relação jurídica, com o objetivo de
na condição de titular do direito subjetivo de exigir o mencio-
aplicação nos propósitos que motivaram a sua exigência, não
nado imposto. Assim ocorre com grande número de tributos, modifica a sua natureza tributária. A parafiscalidade harmo-
tanto vinculados como não-vinculados. Omitindo-se o legisla- niza-se plenamente com o conceito de tributo."
dor a propósito do sujeito ativo do vínculo que irá desabrochar
com o acontecimento do fato jurídico tributário, podemos per-
feitamente entender que se referiu a si próprio, na qualidade 102. Contribuições: regime jurídico, destinação e controle, São Paulo, Noeses,
de pessoa jurídica de direito público. 2006, p. 99.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

Dois aspectos, por conseguinte, hão de ser atendidos para a obrigação, satisfazendo o devedor o pagamento que lhe cabia
que possamos isolar o chamado tributo parafiscal: 1) sujeito perante o sujeito pretensor. Transcorrido esse momento, ingres-
ativo indicado expressamente na lei instituidora da exação, samos no terreno do direito financeiro. Recordemo-nos, para
diferente da pessoa política que exerceu a competência; e 2) encerrar, do teor do artigo 4 4 do Código Tributário Nacional,
atribuição, também expressa, do produto arrecadado, à pessoa que afirma ser irrelevante para a qualificação jurídica específi-
apontada para figurar como sujeito ativo. ca do tributo a destinação legal do produto da arrecadação.
Poderão ser sujeitos ativos de "tributos parafiscais" as
pessoas jurídicas de direito público, com ou sem personalidade 1.2.7. Competência legislativa e ICMS
política, e as entidades paraestatais, que são pessoas jurídicas
O imposto sobre operações relativas à circulação de mer-
de direito privado, mas que desenvolvem atividades de inte-
cadorias e sobre prestações de serviços de transporte interes-
resse público.
tadual e intermunicipal e de comunicação, mais conhecido pela
Inúmeros são os casos de tributação parafiscal no direito sigla ICMS, foi outorgado à competência dos Estados e do
positivo brasileiro. As contribuições previdenciárias (INSS Distrito Federal, consoante o artigo 155, II, da Lei Suprema.
— autarquia federal); as quantias exigidas pela OAB (Ordem dos Dessa maneira, considerando o feixe de normas constitucionais
Advogados do Brasil — autarquia federal) e muitos outros. que disciplinam a matéria, veremos que a uniformidade de sua
implantação jurídica, em todo o território brasileiro, com a
Todas as espécies impositivas são instrumentos idôneos
adoção de medidas harmonizadoras que permitem a sistema-
da parafiscalidade. Quer as exações vinculadas (taxas e con-
tização da cobrança, aliadas a outros expedientes assecurató-
tribuições de melhoria), quer as não-vinculadas (impostos). A rios do regular intercâmbio entre os sujeitos tributantes, tudo
contribuição previdenciária que se reclama do empregado, por isso nos leva a concluir pelo indisfarçável caráter nacional do
exemplo, tem a natureza jurídica de taxa. Já com relação ao gravame. Tais aspectos exprimem feição peculiar à chamada
empregador, o tributo assume a feição de imposto. Não temos competência legislativa do ICMS. Passemos à análise.
notícias concretas a respeito do uso da contribuição de melhoria,
Torna-se necessário lembrar que a competência tributária
dentro do esquema da parafiscalidade, o que não impede sua
é exercida por intermédio de lei (ordinária ou, excepcional-
inclusão entre as formas jurídicas disponíveis para esse fim.
mente, complementar) e ela é, de modo geral, facultativa, vale
Por manipular categorias próprias às espécies tributárias, dizer, o ente público é livre para instituir o tributo que lhe foi
seria até despiciendo lembrar que o estatuto da parafiscalidade conferido pela Lei Maior. A única exceção a esse característico
está estreitamente subordinado ao regime jurídico-constitu- traço do exercício da competência refere-se ao ICMS, pois que,
cional dos tributos. Uma advertência, contudo, não pode ficar pelas regras próprias, os Estados e o Distrito Federal estão
sem registro: o tema, a bem do rigor, não pertence ao domínio obrigados a implantar e a arrecadar a exação, em decorrência
especulativo do direito tributário, uma vez que a nota caracte- do que dispõe o artigo 155, da Lei Suprema:
rística de sua definição jurídica reside na conjuntura de as
i mportâncias recebidas incorporarem-se ao patrimônio do "§ aQ será não-cumulativo, compensando-se o que for devi-
do em cada operação relativa à circulação de mercadorias
sujeito ativo, que as investe em seus objetivos primordiais, ou prestação de serviços com o montante cobrado nas ante-
quando sabemos que o ponto terminal das investigações jurí- riores pelo mesmo ou outro Estado ou pelo Distrito Federal;
dico-tributárias é, precisamente, o instante em que se extingue (...)
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

XII - cabe à lei complementar: a integração de legislações estaduais, muitas vezes diversas e
(...)
conflitantes. Nutro com convicção de que somente com os
f) prever casos de manutenção de crédito, relativamente à convênios pôde ser alcançada a integração de todos esses sub-
remessa para outro Estado e exportação para o exterior, de sistemas normativos de ICMS elaborados pelos Estados e pelo
serviços e de mercadorias; Distrito Federal.
g) regular a forma como, mediante deliberação dos Estados Agora, outro ponto é examinar os convênios sob o lado da
e do Distrito Federal, isenções, incentivos e benefícios fiscais
sua juridicidade. Os convênios, continuo dizendo, são uma
serão concedidos e revogados (...)."
aberração em termos de ofensa ao princípio da legalidade.
Estes hão de ser, segundo a estipulação constitucional, firmados
Por esse modo, é forçosa a ilação de que os Estados e o
e ratificados pelos Estados. Quando se diz "firmados pelos
Distrito Federal não podem deixar de obedecer, direta ou in-
Estados" e "ratificados pelos Estados", não significa, eviden-
diretamente, à letra constitucional, tal como inserida na alínea
temente, a possibilidade de o Secretário de Fazenda celebrar
g, do artigo 155, cabendo-lhes produzir a legislação correspon-
o convênio, trazê-lo de volta para seu Estado, levá-lo ao Gover-
dente ao gravame.
nador e este chancelá-lo. Não! Quando se diz isso - e nós sa-
Sabemos que o ICMS é o tributo com a maior participação bemos que no Brasil ninguém será obrigado a fazer ou não
no montante das receitas do sistema brasileiro e isso mostra fazer alguma coisa senão em virtude de lei - pressupõe-se o
não só sua importância, como também nos faz pensar que a estabelecimento do convênio e, depois, sua ratificação pela
supremacia de que desfruta, hoje, vem sendo conquistada Assembléia mediante Decreto-legislativo.
gradativamente. O Estado do Rio Grande do Sul foi o primeiro a submeter
Em congressos internacionais, tenho notado uma curio- os convênios à apreciação do Poder Legislativo. Em todo caso,
sidade muito grande por parte de professores e especialistas essa subordinação ao poder legislativo, que é positiva e faz
de outros países com relação a esse tributo aqui no Brasil. Eles respeitar o princípio da legalidade, vem sendo feita de forma
indagam como é possível um imposto dessa natureza, de cará- automática. Não tenho notícias de convênios que foram rejei-
ter nacional, sendo produzido por focos ejetores de normas tão tados. Tem-se uma aprovação automática, o que tira, de certo
diferentes (quer dizer, as unidades federadas, e, além disso, o modo, o valor da iniciativa do Estado do Rio Grande do Sul,
Distrito Federal) funcionar bem, já que a experiência de outros pois caberia ao Poder Legislativo manifestar-se, discutindo os
países se dá de forma bem diferente. Quer dizer, o órgão que termos do acordo, para depois aprová-lo.
gera as normas, a fonte normativa do imposto, nos demais Outro tanto ocorre no plano internacional com os acordos
países, é o poder central, ficando muito mais fácil, naturalmen- entre nações. Nós sabemos que o Presidente da República pode
te, implantar e administrar o tributo. Diante dessa indagação, celebrar tratados ou convenções internacionais e, no entanto,
entendi que a única resposta plausível seria a seguinte: os esses tratados dependem do referendum legislativo, ato próprio
convênios, tão combatidos, sob certos aspectos, e sobre os quais do nosso Parlamento, que o ratifica, aprovando-o. Como o
os juristas se manifestam com reservas, na verdade têm pro- convênio teria essa força? Eis uma questão a ser refletida e que
piciado a integração e a possibilidade de o ICMS adquirir o a legislação, como está hoje, não nos dá resposta adequada.
vulto que vem hoje no quadro de participação das receitas no
sistema brasileiro. Vejam bem: esse é um aspecto positivo dos O importante é destacar, em se tratando de convênios,
convênios, pois se tornaram um instrumental significante para que o princípio da legalidade não pode ser afastado em prol do

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

pragmatismo e do interesse executivo. A ratificação efetiva e que se levar em conta o conjunto ou subconjunto em que ele é
fundamentada pelo Poder Legislativo é o que confere validade tomado elucidando o texto ("princípio") dentro do contexto.
a tais diplomas normativos, tornando-os válidos e juridicamen- Tornou-se necessário apresentar os princípios na textura das
te executáveis. Entender de outra forma é aniquilar o princípio várias linguagens jurídicas, como o primeiro corte metodoló-
federativo, o princípio da legalidade e tantos outros que sus- gico a ser feito no presente estudo e, a partir daí, prosseguir
tentam o sistema. elaborando outros cortes, classificando em critérios objetivos,
buscando com isso identificar na ordem do direito, em geral,
no sistema jurídico formador do Estado brasileiro e no direito
1.3. OS PRINCÍPIOS JURÍDICOS TRIBUTÁRIOS tributário os primados que integram a estrutura e que servem
de alicerce para a compreensão dos diversos microssistemas
Venho insistindo na tese de que, com a linguagem, o homem
do direito. Vejamos.
vai criando novos nomes e novos fatos, na conformidade de seus
interesses e de suas necessidades, atribuindo valores de acordo
com a sociedade em que vive num dado momento histórico. Com 1.3.1. Os "princípios" na textura das várias linguagens jurídicas
o passar do tempo, aqueles mesmos vocábulos, já conhecidos,
Empregamos "linguagem jurídica" para designar os sis-
passam a assumir novas acepções, tanto uns como outros incor-
temas de comunicação que se prestam ao objetivo de realizar
porando-se ao patrimônio linguístico por força de incessantes
ou de aludir ao fenômeno jurídico. Por essa locução mencio-
mutações sociais. É a linguagem constituindo realidades novas e
naremos o chamado direito posto, a Dogmática Jurídica ou
alargando as fronteiras do nosso conhecimento. Ciência do Direito em sentido estrito, bem como todos aqueles
Conhecer é saber emitir proposições sobre determinadas setores do conhecimento que tomam o sistema do direito po-
situações, pessoas ou coisas. A partir do momento em que fa- sitivo como objeto de suas indagações, ainda que não o façam
lamos sobre algo, conferindo acepções, definindo, dividindo, em termos exclusivos. Nessa linha de pensamento, é linguagem
classificando em gênero e espécies, conhecemos mais profun- jurídica a da Filosofia do Direito e, dentro dela, a da Lógica
damente aquele objeto que nos é dado. E, nesse sentido, todo Jurídica, a da Epistemologia do Direito, a da Axiologia do Di-
objeto, seja ele natural, metafísico, ideal, e, no nosso caso, cul- reito e a da Ontologia Jurídica. Mas serão também "linguagem
tural, está submetido a esse processo cognitivo. Trata-se do jurídica" a Sociologia do Direito, a Antropologia Cultural do
"cerco inapelável da linguagem". Direito, a História do Direito e tantas mais que levem em con-
ta de objeto o sistema das normas positivadas.
O vocábulo "princípio" porta, em si, uma infinidade de
De um lado, como linguagem-objeto, temos determinada
acepções, que podem variar segundo os valores da sociedade
ordem jurídico-normativa, operando num ponto do tempo
num dado intervalo da sua história. No direito, ele nada mais
histórico e sobre dado espaço territorial; de outro, como meta-
é do que uma linguagem que traduz para o mundo jurídico-
linguagem descritiva, a Ciência do Direito em sentido estrito
prescritivo, não o real, mas um ponto de vista sobre o real,
ou Dogmática Jurídica, voltada somente a compreender e re-
caracterizado segundo os padrões de valores daquele que o latar sua linguagem-objeto. A Filosofia do Direito comparece
interpreta.
aqui na condição de metalinguagem se suas reflexões incidirem
No labor de definir o que seja o princípio no ordenamen- sobre a linguagem do direito positivo. As meditações filosóficas,
to jurídico e, mais especificamente, no direito tributário, há entretanto, trabalham muitas vezes sobre construções científicas,
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

momento em que assumem a hierarquia de meta-metalin- a apenas um, ficando a repetição por conta do interesse retó-
guagem. Outro tanto vale para os demais segmentos contidos rico do legislador.
no âmbito das "Ciências Jurídicas em sentido amplo".
Bem, até aqui vimos princípios empíricos, ontológicos e
Firmados nessas ponderações é lícito asseverar a existên- lógicos. Examinemos outros. A "norma fundamental" kelse-
cia de "princípios jurídicos" em todos os setores da investigação niana é um princípio epistemológico-jurídico, colocado na
do direito. E é com tal dimensão significativa que enunciamos condição de pressuposto da atividade cognoscitiva do direito.
os princípios ou leis ditas ontológicas: "tudo que não estiver Sem a "norma fundamental", ou regressaríamos ao infinito,
juridicamente proibido, estará juridicamente permitido" (apli- jamais começando a tarefa cognoscente, ou sacrificaríamos o
cável ao direito privado) e "tudo que não estiver juridicamen- cânone do isolamento do objeto, sem o que o estudo não atin-
te permitido, estará juridicamente proibido" (válido para o giria a dignidade de Ciência. Outros princípios epistemológi-
campo do direito público); os princípios jurídicos empirica- co-jurídicos são os da "homogeneidade sintática" e da "hete-
mente verificáveis, como, por exemplo: "de acordo com a rogeneidade semântica" das unidades normativas. Já nos
Constituição vigente, o Brasil é uma República Federativa" domínios axiológicos mencionemos o "princípio da justiça",
(princípios federativo e republicano). Há o princípio lógico- da "igualdade", da "segurança", da "racionalidade", entre
jurídico segundo o qual "toda conduta obrigatória está neces- muitos outros.
sariamente permitida" (em linguagem formalizada, diremos: Vistos por outro prisma, os "princípios" seriam gerais (a
(Op-Pp), em que "O" é o modal "obrigatório", "P", o "permi- legalidade referida no art. P, II, da Constituição de 1988) ou
tido" e "p" uma conduta qualquer). Esse "princípio" ou "lei" específicos (a legalidade tributária instituída no art. 150, I, do
da lógica deemtico-jurídica, aliás, é o fundamento da conhecida mesmo Estatuto). Além disso, há os explícitos (art. 150, III -
"ação de consignação em pagamento". Ao lado dele, por opor- princípio da anterioridade tributária) e os implícitos (princípio
tuno, podemos indicar a lei lógica da "idempotência do con- da isonomia das pessoas políticas - União, Estados, Distrito
juntor", aplicada ao direito: "se duas ou mais normas servirem- Federal e Municípios). Cumpre observar que os princípios
se do mesmo antecedente e prescreverem idêntica regulação mencionados estão distribuídos entre a linguagem-objeto (di-
da conduta, então todas elas equivalem a uma só". Expliquemos reito positivo) e as metalinguagens jurídicas acima indicadas.
o princípio, formalizando-o e, depois, mediante exemplo prá- Pois bem. Demos exemplos, tecemos considerações, elucidamos
tico e objetivo. A "lei" da idempotência do conjuntor (utilizada algum conteúdo, mas permaneceu aberta a questão principal:
para o universo jurídico) assim se exprime em linguagem formal: que é princípio?
( Vp.Vp.Vp.Vp.Vp)=Vp, onde "V" é a notação simbólica da
"proibição"; "p", uma conduta qualquer; ".", o conectivo da
1.3.2. Os "princípios" e a compreensão do direito
conjunção lógica; e a equivalência. No sistema da Consti-
tuição de 1967, havia três preceitos consagrando a "legalidade Empregaremos como hipótese de trabalho o estudo do
tributária": um genérico e dois específicos. Quer significar, por direito sob o ponto de vista dogmático, a partir das estruturas
outro giro, que o legislador constitucional prescrevia: "só é normativas existentes aqui e agora, que se projetam sobre a
permitido exigir tributo novo ou aumentar os existentes por realidade social para ordená-la, no que tange às relações inter-
meio de lei". Tal era o conteúdo de três normas constitucionais. pessoais que nela se estabelecem, canalizando o fluxo das
Pelo princípio da idempotência do conjuntor, os três equivaliam condutas em direção a certos valores que a sociedade quer
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

implantados. Reconhecemos no fenômeno jurídico algo extre- exemplo, a Psicologia e outras Ciências que poderiam explicar
mamente complexo, em que interferem fatores de naturezas aspectos parciais do fenômeno.
distintas, num intensivo processo de miscigenação. Afigura-
Todavia, se os fatos são jurídicos porque previstos em
se-nos um trabalho dificílimo ingressar na ontologia, para
antecedentes normativos, remanesceria apenas um, o mais
extrair dados de sua intimidade existencial, caso isto, porven-
importante porque fundador do próprio sistema, sem a qua-
tura, seja possível, premissa que não pretendemos discutir.
lificação de jurídico, circunstância que viria a comprometer
Nossa concepção há de caminhar predominantemente no pa-
a uniformidade objetal: trata-se do acontecimento que dá
drão analítico da linguagem, respeitando aquela complexidade
origem à Constituição. É precisamente neste tópico que Kel-
que salientamos como ínsita ao dado jurídico, mas ao mesmo
sen trouxe a singela, porém genial contribuição da "norma
tempo refletindo na consideração de que ali onde houver re-
gulação jurídica haverá, inexoravelmente, proposições norma- fundamental", não posta, mas pressuposta, juridicizando
tivas que, escritas ou não escritas, hão de manifestar-se em aquele fato que ficara de fora, por imprimir-lhe o timbre de
linguagem. normatividade que lhe faltava. Fecha-se assim o conjunto,
isolado na especificidade de seu objeto, uniforme porque
Ora, se isolarmos o universo normativo, naquilo que ele composto tão-somente de normas jurídicas, de tal modo que
tem de fenômeno linguístico, aparecerá diante de nós um ob- nele, conjunto, não encontraremos senão descritores e pres-
jeto uniforme (somente normas jurídicas), todas compostas na critores, bem como suas contrapartes factuais: fatos jurídicos
mesma organização sintática, vale dizer, mediante juízo hipo- e relações jurídicas.
tético em que o legislador (sentido amplo) imputa, ao aconte-
cimento de um fato previsto no antecedente, uma relação de- O corolário natural de tudo quanto se expôs é que o direi-
ôntica entre dois ou mais sujeitos, como consequente. A pre- to positivo, formado unicamente por normas jurídicas, não
visão fáctica ou "descritor", como suposto, implica a disciplina comportaria a presença de outras entidades, como, por exem-
da conduta intersubjetiva, contida no "prescritor" (Lourival plo, princípios. Estes não existem ao lado de normas, co-par-
Vilanova). Nunca será demasiado insistir que tanto a ocorrên- ticipando da integridade do ordenamento. Não estão ao lado
cia factual como o comportamento regulado, têm de ser possí- das unidades normativas, justapondo-se ou contrapondo-se a
veis, para que a regra venha a ser aplicada, tornando-se indi- elas. Acaso estivessem, seriam formações linguísticas portado-
vidualmente eficaz. ras de uma estrutura sintática. E qual é esta configuração ló-
gica? Ninguém, certamente, saberá responder a tal pergunta,
Sobressai à evidência a homogeneidade sintática suso
porque "princípios" são "normas jurídicas" carregadas de
referida, porquanto todas as unidades do sistema terão idên-
forte conotação axiológica. É o nome que se dá a regras do
tica estrutura lógica, a despeito da multiplicidade extensiva
direito positivo que introduzem valores relevantes para o sis-
de seus vectores semânticos. O direito positivo, então, apre-
tema, influindo vigorosamente sobre a orientação de setores
sentar-se-á aos olhos da Dogmática como um conjunto finito,
da ordem jurídica.
mas indeterminado de normas jurídicas, nas quais surpreen-
deremos fatos jurídicos e relações jurídicas, associados por A tipificação dos fatos que ingressam pela porta aberta
um ato de vontade de quem pôs as regras no sistema, ato das hipóteses normativas se dá mediante conceitos que o
psicológico este que o cientista coloca entre parênteses me- legislador formula: conceitos sobre os acontecimentos do
tódico, para não se imitir em territórios alheios, como, por mundo e conceitos sobre as condutas inter-humanas. Ocorre
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

que todo o conceito, que tem como correlato expressional o Tal é a conclusão a que chegou Genaro Carrió, percorren-
termo, assim como o juízo o tem na proposição, todo o con- do caminhos um pouco distintos, em seu opúsculo sobre "Prin-
ceito, repetimos, é seletor de propriedades não só no direito, cipios Jurídicos y Positivismo Jurídico 103 ":
como em qualquer região do conhecimento. Conceituar im-
porta selecionar caracteres, escolher traços, separar aspectos, "De lo expuesto se sigue que no existe la pretendida 'dife-
desprezando os demais. As singularidades irrelevantes, o rencia lógica' entre las regias jurídicas y las pautas dei tipo
de la que expresa que a nadie debe permitírsele beneficiar-
legislador as deixa de lado, mesmo porque são em tal quan- se con su propria trasgresión."
tidade que o trabalho ganharia proporções infinitas. E surge
o conceito, após a aplicação do critério seletivo que o legis-
O autor argentino não chega a esse resultado partindo
lador adotou, critério este que nada mais é que um juízo de das premissas que elegemos. Seu objetivo foi, antes de mais
valor expedido em consonância com sua ideologia, tomada a nada, questionar a procedência de crítica ao positivismo jurí-
palavra, neste ensejo, como pauta de valores, tábua de refe- dico, que o Professor Ronald M. Dworkin, da Universidade de
rências axiológicas. Assim, valora o legislador fatos e condu- Oxford, apresentou com o trabalho "The model of rules 104 ", e
tas, tecendo o conteúdo de significação das normas jurídicas segundo o qual a análise e consideração adequada dos princí-
ou, em outras palavras, saturando as variáveis lógicas daque- pios ficaria prejudicada pela concepção positivista do fenôme-
la estrutura sintática que é comum a todas as unidades do no jurídico, já que tal concepção do direito não deixa ver o
sistema. E, ao enfatizar esse ângulo da construção jurídico- papel central que na prática os princípios desempenham. É
normativa, estamos apenas reconhecendo ao direito positivo nesse sentido que parte do sistema de Hart 105 , para dele retirar
a condição de objeto cultural, anteriormente consignada. argumentos que demonstrem a plena compatibilidade entre
Mantenhamos na retentiva que os objetos do mundo cultural as normas jurídicas, examinadas pelo ângulo de sua positivação
são, invariavelmente, portadores de valores, como também e os princípios que com elas combinam para formar o sistema
os metafísicos, o que não se verifica com os objetos da natu- do direito positivo.
reza e com os da região ôntica dos ideais, ambos axiologica-
Tendo seu pensamento mais próximo de Hart, em virtude
mente neutros. das ligações que sempre manteve com a Universidade de Oxford,
Até esta parte, estabelecemos duas proposições que Carrió entende que o positivismo de Kelsen ofereceria menos
aceitamos por verdadeiras: a) o direito positivo é formado, recursos à sustentação de sua tese, não lhe permitindo dar os
única e exclusivamente, por normas jurídicas (para efeitos passos de que necessitava para alojar os princípios dentro da
dogmáticos), apresentando todas o mesmo esquema sintático ordem jurídica, consoante os critérios que lhe pareciam justos.
(i mplicação), ainda que saturadas com enunciados semânticos Nossa posição, contudo, é bem diversa, ainda que tenha-
diversos (heterogeneidade semântica); e b) por outro lado, mos de intuir certos desdobramentos que o mestre de Viena
como construção do ser humano, sempre imerso em sua cir-
cunstância (Gasset), é um produto cultural e, desse modo,
portador de valores, significa dizer, carrega consigo uma por- 103.Buenos Aires, Abeledo-Perrot, 1970.
ção axiológica que há de ser compreendida pelo sujeito cog- 104.35 University of Chicago Law Review 14, 1967.
noscente - o sentido normativo, indicativo dos fins (thelos) 105.O conceito de direito, Tradução de Armindo Ribeiro Mendes, Lisboa,
que com ela se pretende alcançar. Fundação Calouste Gulbenkian, 1961.

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não empreendeu. Que não seja isso motivo de censuras, por- apanhando como exemplo a filosofia de Schopenhauer, que a
quanto Carlos Cossio proclamou ter ido além de Kelsen sem "vontade se constitui naquele ímpeto cego e irresistível que
haver transbordado os limites do próprio sistema kelseniano consubstancia o querer-viver universal"; entre os objetos ideais,
(foi além de Kelsen sem sair de Kelsen). E, de fato, há desdo- que a "transitividade" é uma lei lógica: [(p-->q).(q r)]—>(p—>r),
bramentos que se afiguram como corolários de uma teoria, não assim como a "reflexividade" também o é (xRy) -* (yRx); em
destacados por aquele que a concebeu, mas que podem perfei- Economia, falamos em "lei da oferta e da procura", ao mesmo
tamente ser percebidos por quem se dispuser a segui-la. tempo em que afirmamos que a "História é fundamentalmen-
te diacrônica", para ingressarmos nos domínios dos objetos
O que importa é que Genaro Carrió chega aos mesmos
culturais, onde ao lado de "leis" ou "princípios" descritivos,
resultados, não só admitindo a existência de "princípios" den-
vamos encontrar as prescrições éticas, religiosas, morais, etc.,
tro da ordem jurídica positiva, como reconhecendo que não há
que ostentam o porte de autênticos "princípios".
qualquer desencontro entre o esquema lógico das normas e o
daqueles primados. Ainda que não ingresse na análise dos Como desdobramento dessa descritividade e prescritivi-
"valores", fala, insistentemente, no "peso" dos princípios, o dade, lidamos com "princípios gerais" e "específicos", "explí-
que basta para identificar a referida concordância. citos" ou "implícitos", classificando- os como "empíricos",
"lógicos", "ontológicos", "epistemológicos" e "axiológicos".
Oferecidas essas observações propedêuticas, já podemos Tudo isso é índice da riqueza significativa que a palavra exibe,
antever que, no campo das significações, o uso do signo "prin- compelindo-nos a um esforço de elucidação para demarcar o
cípio" oferecerá farta variedade conotativa, de tal sorte que, sentido próprio que desejamos imprimir ao vocábulo, dentro
com elas, será possível alcançar todas as circunscrições de de seu plano de irradiação semântica. Impõe-se uma decisão
objetos, atuando nas quatro regiões ônticas. para cada caso concreto, principalmente se a proposta discur-
Como ficou consignado, princípio é palavra que frequen- siva pretender foros de seriedade científica.
ta com intensidade o discurso filosófico, expressando o "início", Neste tema, há que se ter como premissa que, sendo ob-
o "ponto de origem", o "ponto de partida", a "hipótese-limite" jeto do mundo da cultura, o direito e, mais particularmente as
escolhida como proposta de trabalho. Exprime também as normas jurídicas, estão sempre impregnadas de valor. Esse
formas de síntese com que se movimentam as meditações filo- componente axiológico, invariavelmente presente na comuni-
sóficas ("ser", "não-ser", "vir-a- ser" e "dever-ser"), além do cação normativa, experimenta variações de intensidade de
que tem presença obrigatória ali onde qualquer teoria nutrir norma para norma, de tal sorte que existem preceitos forte-
pretensões científicas, pois toda ciência repousa em um ou mente carregados de valor e que, em função de seu papel
mais axiomas (postulados). Cada "princípio", seja ele um sim- sintático no conjunto, acabam exercendo significativa influên-
ples termo ou um enunciado mais complexo, é sempre suscep- cia sobre grandes porções do ordenamento, informando o
tível de expressão em forma proposicional, descritiva ou pres- vector de compreensão de múltiplos segmentos.
critiva. Agora, o símbolo linguístico que mais se aproxima Em direito, utiliza-se o termo "princípio" para denotar as
desse vocábulo, na ordem das significações, é "lei". Dizemos, regras de que falamos, mas também se emprega a palavra para
por isso, que há uma lei, em Física, segundo a qual "o calor apontar normas que fixam importantes critérios objetivos, além
dilata 'os corpos", "os metais são bons condutores de eletrici- de ser usada, igualmente, para significar o próprio valor, inde-
dade", "a matéria atrai a matéria na razão direta das massas e pendentemente da estrutura a que está agregado e, do mesmo
na razão inversa do quadrado das distâncias"; na Metafísica, modo, o limite objetivo sem a consideração da norma.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

Assim, nessa breve digressão semântica, já divisamos determinação. Noutras, porém, ficam subjacentes à dicção do
quatro usos distintos: a) como norma jurídica de posição pri- produto legislado, suscitando um esforço de feitio indutivo para
vilegiada e portadora de valor expressivo; b) como norma jurí- percebê-los e isolá-los. São os princípios implícitos. Entre eles
dica de posição privilegiada que estipula limites objetivos; c) e os expressos não se pode falar em supremacia, a não ser pelo
como os valores insertos em regras jurídicas de posição privi- conteúdo intrínseco que representam para a ideologia do in-
legiada, mas considerados independentemente das estruturas térprete, momento em que surge a oportunidade de princípios
normativas; e d) como limite objetivo estipulado em regra de e de sobreprincípios.
forte hierarquia, tomado, porém, sem levar em conta a estru-
Há formulações específicas que atinam à ordenação em
tura da norma. Nos dois primeiros, temos "princípio" como
vigor no Brasil, determinações normativas contidas no Texto
"norma"; nos dois últimos, "princípio" como "valor" ou como
Supremo e que de lá se irradiam aos múltiplos segmentos dis-
"critério objetivo".
ciplinadores das condutas interpessoais. Sendo assim, ninguém
Entrevemos na consideração do signo "princípio", distin- pode ignorar os princípios da Federação e da República, a di-
guindo-o como "valor" ou como "princípio objetivo", um pas- retriz que consagra a autonomia municipal, o primado da
so decisivo, de importantes efeitos práticos. Isso porque, se isonomia entre as pessoas políticas de direito constitucional
reconhecermos no enunciado prescritivo campo para a atri- interno, os cânones da supremacia do interesse público sobre
buição de valores, teremos que ingressar, forçosamente, nos o privado e o da indisponibilidade dos interesses públicos, bem
domínios da Axiologia, para estudá-los segundo as caracterís- como o catálogo dos direitos e garantias individuais. É efetiva-
ticas próprias das estimativas. mente longa e minuciosa a listagem dos valores que a Consti-
tuição da República estabeleceu como planta básica, a partir
A par dessas significações, outras existem empregadas
da qual hão de compor-se as cadeias de normas estruturadas
nos campos da Ciência, da Epistemologia, da Lógica, da Meta-
deonticamente para regular os comportamentos entre as enti-
física, essas três últimas como partes da Filosofia, e também
dades dotadas de personalidade jurídica.
nos horizontes do conhecimento vulgar. Tais variações, contu-
do, não são muito frequentes no discurso jurídico, pelo que No território dos tributos, por tocarem direitos relevan-
ficaremos com as quatro significações que assinalamos linhas tíssimos para o ser humano, como o da liberdade e o da pro-
atrás. Nesse sentido, para evitar ambiguidades, quando men- priedade, o legislador constitucional redobrou os cuidados de
cionarmos os princípios do sistema positivo brasileiro, e enten- elaboração normativa, estatuindo princípios fundamentais de
dermos necessário, faremos consignar em que acepção o termo proteção aos direitos do cidadão, ao mesmo tempo em que deu
foi utilizado. cumprimento aos desígnios superiores da Federação, da Re-
pública e da autonomia dos Municípios. E a complexidade
Seja como for, os princípios aparecem como linhas dire-
desse sistema fez com que a disciplina prescritiva em matéria
tivas que iluminam a compreensão de setores normativos,
tributária atingisse níveis intensos, havendo uma multiplici-
imprimindo-lhes caráter de unidade relativa e servindo de
dade de preceitos normativos dirigidos tanto aos agentes dos
fator de agregação num dado feixe de normas. Exercem eles
poderes tributantes como aos sujeitos passivos, atribuindo, a
uma reação centrípeta, atraindo em torno de si regras jurídicas
ambos, deveres e direitos correlatos.
que caem sob seu raio de influência e manifestam a força de
sua presença. Algumas vezes constam de preceito expresso, Exatamente por ser o sistema constitucional tributário
logrando o legislador constitucional enunciá-los com clareza e tão intrincado, trazendo rigorosa delimitação das esferas

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

competenciais dos entes federativos, influenciada por vasta ou majoradora do tributo. O princípio que prestigia a casa como
quantidade de princípios, o exame acerca da constitucionali- asilo inviolável do indivíduo (art. 5 4 , XI, da Constituição), bem
dade de qualquer exação tributária deve compreender a tota- como o que protege o sigilo de correspondência, das comuni-
lidade de permissões e vedações juridicizadas pelo constituinte. cações telegráficas e das telecomunicações telefônicas, todos
Há muitos princípios constitucionais gerais, válidos para eles, em maior ou menor amplitude, podem acomodar-se rigo-
a plenitude do ordenamento e, por isso, influindo, decisiva- rosamente no plano da aplicação factual.
mente, no setor dos fenômenos jurídico-tributários. Conside- Apesar da aparente simplicidade operativa, o critério que
raremos, um a um, aqueles de maior expressividade. anima essa classificação procura transmitir uma objetividade
que os valores não têm nem podem ter. A natureza eminente-
mente subjetiva desses núcleos significativos jamais poderá
1.3.3. A classificação dos "princípios" em razão dos critérios
ser aprisionada, como se fora mero fato cosmológico insular-
de objetividade que presidem sua aplicação aos casos
mente levado à análise. Fiquemos com sua operacionalidade,
concretos
mas desde que reconheçamos ser impossível fixar diretrizes
É sedutora, ao menos no exame do primeiro instante, a objetivas e, portanto, com validade intersubjetiva, para delimi-
classificação dos princípios levando-se em conta o grau de tar valores. O que distrai nossa atenção entre as duas classes
objetividade que se verifica no momento de sua efetiva aplica- de princípios é que o legislador atribui valores (sempre subje-
ção. Há princípios que são postos em termos vagos e excessi- tivos) a situações diferentes: incertas, indecisas, indetermina-
vamente genéricos, ao lado de outros, enunciados de modo tão das, as primeiras; limitadas e rigidamente delineadas, as últi-
preciso, que passam a ser escassas as dissenções a respeito de mas. Reflitamos sobre este tópico e estaremos autorizados a
sua incidência numa situação concreta. Vamos aos exemplos. utilizar a classificação. Caso contrário, seremos surpreendidos
A Lei Fundamental, no art. 37, caput, expressa-se de maneira quando o legislador empregar o mesmo valor em hipóteses
vaga ao impor que a administração pública obedeça ao princí- abertas, sem fronteiras onde o desenho recortado do suporte
pio da "moralidade", tornando-se no mínimo duvidosa e dis- fáctico (Pontes de Miranda) não corresponda aos traços que a
cutível sua indicação numa faixa enorme de eventos reais. A realidade material sugerir aos nossos sentidos. Eis o princípio
"função social da propriedade" (art. 5Q, XXIII, da Constituição) da "igualdade" que pode ser tomado como exemplo. Ao proje-
acha-se também envolvida por forte teor de indeterminação. tar-se num dado acontecimento do mundo, essa diretriz expe-
E o mesmo se diga da "liberdade", da "segurança", da "racio- rimenta curiosas configurações. Sabemos quanto difícil seria
nalidade", do "bem comum", da "finalidade pública", etc. Bem sustentar a discriminação entre homens e mulheres, no pro-
certo que toda a palavra encerra alguma vaguidade, mas que- cesso de seleção para ingresso na carreira do Ministério Públi-
ro insistir na existência de fórmulas expressionais onde predo- co. A singela invocação do art. 5Q, I, da Carta Constitucional
mina densamente a indeterminação, ao lado de outras de fácil vigente seria o bastante para tolher qualquer entendimento
e intuitivo reconhecimento, em que a ocorrência do mundo discriminatório. Ao mesmo tempo, em matéria publicada na
exterior está visivelmente demarcada, sobrando pouco espaço Folha de S. Paulo, em janeiro de 1992, Flávia Piovesan discutiu
para os desacordos de opinião. É o caso da irretroatividade tri- a interessante tese de benefícios pleiteados por pessoas do
butária' (art. 150, inciso III, a, da Lei Magna). Basta saber o mesmo sexo vivendo "maritalmente". Tudo sobre o funda-
momento em que se deu o fato jurídico tributário e confrontá-lo mento daquela norma que sobranceira estaria impregnando
com aquele que marcou o início da vigência da lei instituidora o sentido das demais regras do ordenamento. Num caso, o

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

primeiro, a mera alusão ao primado da igualdade tem a força empregando com os efeitos que a visão estática sugere. De nada
suficiente para decidir o problema. No segundo, em que a adiantam direitos e garantias individuais, placidamente inscri-
complexidade do desenho típico se vê agravada pela presença tos na Lei Maior, se os órgãos a quem compete efetivá-los não
de outros valores, numa combinatória que suscita considera- o fizerem com a dimensão que o bom uso jurídico requer. Ago-
ções mais profundas, o mesmo princípio perde seu aparente ra, já na pragmática da comunicação jurídica se é fácil perceber
conteúdo de objetividade não se prestando mais para, sem e comprovar os "limites objetivos", outro tanto não se dá com
outros meneios retóricos, encaminhar a solução exegética. os valores. Este é o caso, por exemplo, do sobreprincípio da
segurança jurídica.
Recobremos a lembrança de que as expressões linguísticas
conservam sempre um mínimo de vaguidade em sua integrida- Não é preciso dizer mais. Convencionou-se que tal valor
de compositiva, inafastável por maior que seja o esforço de ar- é, basicamente, a igualdade, a legalidade e a legalidade estrita,
gumentação para efeito de convencimento. Não há como escapar a universalidade da jurisdição, a vedação do emprego do tri-
dessa porção movediça que se aloja nos termos e nos enunciados buto com efeitos confiscatórios, a irretroatividade e a anterio-
proposicionais, alimentando, incessantemente, os estudos se- ridade, ao lado do princípio que consagra o direito à ampla
mânticos. Admitir esse traço, porém, longe de trazer a insegu- defesa e ao devido processo legal, todos, em verdade, limites
rança que desde logo imaginamos, significa reconhecer que há objetivos realizadores do valor da segurança jurídica.
uma matéria-prima própria para o discurso persuasivo, tecendo
Experimentemos associar à segurança jurídica o limite
a linguagem jurídica que antecede a decisão normativa.
objetivo da anterioridade. Com base neste preceito de direito
tributário, se o tributo foi introduzido por ato infralegal, o que
1.3.4. Limites objetivos como mecanismos realizadores do se prova com facilidade, ficaremos seguros em dizer que o
valor princípio foi violado. Fique bem claro que o tributo cuja norma
foi publicada em determinado exercício somente poderá inci-
Apesar de tudo o que se disse, o direito existe para cumprir dir sobre fatos que vierem a ocorrer no ano seguinte, dando
o fim específico de regrar os comportamentos humanos nas margem para que os destinatários planejem suas atividades
suas relações de interpessoalidade, implantando os valores que econômicas, já cientes do custo representado pelo novo encargo.
a sociedade almeja alcançar. As normas gerais e abstratas, É limite objetivo que opera, decisivamente, para a realização
principalmente as contidas na Lei Fundamental, exercem um do sobreprincípio da segurança jurídica. Seu sentido experi-
papel relevantíssimo, pois são o fundamento de validade de menta inevitável acomodação neste primado, vetor axiológico
todas as demais indicam os rumos e os caminhos que as regras do princípio da anterioridade, de modo que o contribuinte não
inferiores haverão de seguir. Porém, é nas normas individuais seja surpreendido com exigência tributária inesperada.
e concretas que o direito se efetiva, se concretiza, se mostra
como realidade normada, produto final do intenso e penoso Da mesma forma se dá com o princípio da legalidade, li-
trabalho de positivação. É o preciso instante em que a lingua- mite objetivo que se presta, ao mesmo tempo, para oferecer
gem do direito toca o tecido social, ferindo a possibilidade da segurança jurídica aos cidadãos, na certeza de que não serão
conduta intersubjetiva. Daí porque não basta o trabalho preli- compelidos a praticar ações diversas daquelas prescritas por
minar de conhecer a feição estática do ordenamento positivo. representantes legislativos, e para assegurar observância ao
Torna-se imperioso pesquisarmos o lado pragmático da lingua- primado constitucional da tripartição dos poderes. O princípio
gem normativa, para saber se os utentes desses signos os estão da legalidade compele o intérprete, como é o caso dos julgadores,

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

a procurar frases prescritivas, única e exclusivamente, entre do direito posto. Não cremos existir uma "região de valores",
as introduzidas no ordenamento positivo por via de lei ou de existente em si, como o topos uranos de Platão ou qualquer
diploma que tenha o mesmo status. Se do consequente da regra tipo de sistema suprapositivo de valores, ao modo de algumas
advier obrigação de dar, fazer ou não-fazer alguma coisa, sua vertentes jusnaturalistas. Aqueles de que nos ocupamos são os
construção reivindicará a seleção de enunciados colhidos ape- postos, centros significativos abstratos, mas positivados no or-
nas e tão-somente no plano legal. denamento e que ficam ao sabor de nossa intuição emocional.
E assim também o é com o princípio da irretroatividade Se tais observações forem procedentes, cabe cogitar de
das leis. Renovo, neste momento, a posição segundo a qual, uma hierarquia de valores jurídicos ou, de outra maneira, de
abaixo da justiça, o ideal maior do direito é a segurança jurídi- uma classificação hierárquica das normas do direito positivo,
ca, sobreprincípio que se irradia por todo o ordenamento e tem elegendo-se como critério a intensidade axiológica nelas pre-
sua concretização viabilizada por meio de outros princípios, sente. Todavia, plantadas essas premissas, aquilo que se não
tal como o da legalidade, da irretroatividade das leis e tantos pode admitir, consoante assentamos linhas atrás, é a coales-
outros que podemos enunciar. O exemplo toma em conta o cência de "normas" e "princípios", como se fossem entidades
valor da segurança jurídica, mas a regra é válida para todos os diferentes, convivendo pacificamente no sistema das proposi-
valores que ordenam a organização jurídico-tributária brasi- ções prescritivas do direito. Os princípios são normas, com
leira. Citemos, por exemplo, o valor do não-confisco, da isono - todas as implicações que esta proposição apodítica venha a
mia ou até mesmo o da capacidade contributiva. Em suma, os suscitar, mas são também valores, na medida em que lhes adju-
princípios limites objetivos trabalham no sentido de realizar dicamos um vector semântico axiologicamente determinado.
tais valores, funcionam como verdadeiros mecanismos que dão
Com efeito, os valores e sobrevalores que a Constituição
força de eficácia a estes primados axiológicos do direito.
proclama hão de ser partilhados entre os cidadãos, não corno
quimeras ou formas utópicas simplesmente desejadas e con-
1.3.5. Os sobreprincípios no sistema jurídico tributário servadas como relíquias na memória social, mas como algo
pragmaticamente realizável, apto, a qualquer instante, para
Toda vez que houver acordo, ou que um número expres- cumprir seu papel demarcatório, balizador, autêntica fronteira
sivo de pessoas reconhecerem que a norma "N" conduz um nos hemisférios da nossa cultura. A propósito, vale a afirmação
vector axiológico forte, cumprindo papel de relevo para a com- peremptória de que o direito positivo, visto como um todo, na
preensão de segmentos importantes do sistema de proposições sua organização entitativa, nada mais almeja do que preparar-
prescritivas, estaremos diante de um "princípio". Quer isto se, aparelhar-se, pré-ordenar-se para implantá-los.
significar, por outros torneios, que "princípio" é uma regra
Corolário inevitável da aplicação desses princípios é o
portadora de núcleos significativos de grande magnitude in-
preâmbulo da Constituição Brasileira de 1988, plataforma, por
fluenciando visivelmente a orientação de cadeias normativas,
excelência, da ideologia constitucional. Lá se encontram os
às quais outorga caráter de unidade relativa, servindo de fator
valores jurídicos da mais alta hierarquia, objetivando "insti-
de agregação para outras regras do ordenamento.
tuir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercí-
Advirta-se, entretanto, que ao aludirmos a "valores" es- cio dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança,
tamos indicando somente aqueles que julgamos depositados o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como
pelo legislador (consciente ou inconscientemente) na linguagem valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na Entre as grandes diretrizes que formam o estrato axioló-
ordem interna e internacional, com a solução pacífica das con- gico das normas tributárias no Brasil, já anotamos, algumas se
trovérsias, (...)". A despeito de seu caráter moral e político, o apresentam como conteúdos de enunciados expressos, enquan-
texto do preâmbulo é texto de lei, no interior do qual se encon- to outras se encontram na implicitude dos textos do direito
tram normas jurídicas vinculantes. Nelas, estão disciplinados posto. Todas, porém, com a mesma força vinculante. Aliás,
valores dos quais se retiram direitos e deveres subjetivos cons- quanto à dita implicitude do sobreprincípio da segurança ju-
titucionalmente garantidos. rídica, salientemos, a propósito, o fato de não se ter notícia de
Na pragmática da comunicação jurídica é muito difícil per- que algum ordenamento a contenha como regra explícita.
ceber e comprovar os "valores" impregnados nas formulações Efetiva-se pela atuação de outros princípios, como o da legali-
normativas da Constituição da República Federativa do Brasil. dade, da anterioridade, da igualdade, da irretroatividade, da
Experimentemos, por exemplo, lidar com o valor "justiça", com universalidade da jurisdição, etc. Isso, contudo, em termos de
"segurança jurídica", com "igualdade". Demoremo-nos, agora, concepção estática, de análise das normas, de avaliação de um
em cada um desses magnos princípios, procurando discernir o sistema normativo sem considerarmos suas projeções sobre o
que os tornaram predicados indispensáveis a qualquer ordem meio social. Se nos detivermos em um direito positivo, histo-
jurídica que se pretenda racional nas sociedades pós-modernas. ricamente dado e isolarmos o conjunto de suas normas (tanto
as somente válidas, como também as vigentes), indagando dos
teores de sua racionalidade; do nível de congruência e harmo-
1.3.5.1. O sobreprincípio da segurança jurídica
nia que as proposições apresentam; dos vínculos de coordena-
Vivemos um tempo histórico de grandes questionamentos ção e de subordinação que armam os vários patamares da or-
constitucionais, sobretudo em matéria tributária. As raízes do dem posta; da rede de relações sintáticas e semânticas que
nosso sistema, cravadas no Texto Supremo, fazem com que a respondem pela tessitura do todo; então será possível imitirmos
atenção dos estudiosos seja convocada para o inevitável deba- um juízo de realidade que conclua pela existência do primado
te sobre o conteúdo de princípios fundamentais, conduzindo de segurança, justamente porque neste ordenamento empírico
os feitos à apreciação do Supremo Tribunal Federal. Fica até estão cravados aqueles valores que operam para realizá-lo. Se
difícil imaginar assunto tributário que possa ser inteiramente a esse tipo de verificação circunscrevemos nosso interesse pelo
resolvido em escalões inferiores, passando à margem das di- sistema, mesmo que não identifiquemos a primazia daquela
retrizes axiológicas ou dos limites objetivos estabelecidos na diretriz, não será difícil implantá-la. Bastaria instituir os valo-
Carta Magna. Por sem dúvida que tal consideração eleva, des- res que lhe servem de suporte, os princípios que, conjugados,
de logo, esse ramo do direito público, outorgando-lhe status de formariam os fundamentos a partir dos quais se levanta. Assim,
grande categoria, pois discutir temas de direito tributário pas- vista por esse ângulo, será difícil encontrarmos uma ordem
sa a significar, em última análise, resolver tópicos da mais alta jurídico-normativa que não ostente o princípio da segurança.
indagação jurídica, social, política e econômica. E, se o setor especulativo é o do Direito Tributário, praticamen-
Por outro lado, a estabilidade das relações jurídicas tri- te todos os países do mundo ocidental, ao reconhecerem aqueles
butárias, diante das manifestações da nossa mais alta corte de vetores que se articulam axiologicamente, proclamam, na sua
justiça, torna-se assunto sobremaneira delicado, requerendo i mplicitude, essa diretriz suprema. A circunstância de figurarem
atenção especialíssima do intérprete, porquanto está em jogo no texto, ou no contexto, não modifica o teor de prescritividade
o sobreprincípio da segurança jurídica. da estimativa, que funciona como vetor valorativo que penetra
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

as demais regras do sistema, impregnando-lhes, fortemente, Qualquer agressão a essa sentença constitucional representa-
a dimensão semântica. Por isso mesmo são colocadas no alti- rá, ao mesmo tempo, uma investida à estabilidade dos súditos
plano da Constituição. De lá, precisamente onde começam e um ataque direto ao bem da certeza do direito.
todos os processos de positivação das normas jurídicas, descem
Contudo, entre um conceito e outro utilizados para definir
aqueles primados para os vários escalões da ordem legislada,
o princípio da irretroatividade, não há por que confundir a
até atingir as regras terminais do sistema, timbrando os pre-
certeza do direito naquela acepção de índole sintática, com o
ceitos que ferem diretamente as condutas em interferência
cânone da segurança jurídica. Aquele é atributo essencial, sem
intersubjetiva, com a força axiológica dos mandamentos cons-
o que não se produz enunciado normativo com sentido deônti-
titucionalmente consagrados.
co; este último é decorrência de fatores sistêmicos que utilizam
O princípio da certeza do direito traduz as pretensões do o primeiro de modo racional e objetivo, mas dirigido à implan-
primado da segurança jurídica no momento em que, de um tação de um valor específico, qual seja o de coordenar o fluxo
lado, (i) exige do enunciado normativo a especificação do fato das interações inter-humanas, no sentido de propagar no seio
e da conduta regrada, bem como, de outro, (ii) requer previsi- da comunidade social o sentimento de previsibilidade quanto
bilidade do conteúdo da coatividade normativa. Ambos apon- aos efeitos jurídicos da regulação da conduta. Tal sentimento
tam para a certeza da mensagem jurídica, permitindo a com- tranquiliza os cidadãos, abrindo espaço para o planejamento
preensão do conteúdo, nos planos concretos e abstratos. de ações futuras, cuja disciplina jurídica conhecem, confiantes
Pensamos que esse segundo significado (ii) quadra melhor no que estão no modo pelo qual a aplicação das normas do direi-
âmbito do princípio da segurança jurídica. A relação entre tais to se realiza. Concomitantemente, a certeza do tratamento
princípios é evidentemente complexa, devendo ser melhor normativo dos fatos já consumados, dos direitos adquiridos e
elucidada no próximo item deste estudo. da força da coisa julgada, lhes dá a garantia do passado. Essa
Mas, ao lado da certeza, em qualquer das duas dimensões bidirecionalidade passado/futuro é fundamental para que se
de significado, outros valores constitucionais, explícitos e im- estabeleça o clima de segurança das relações jurídicas, motivo
plícitos, operam para concretizar o sobrevalor da segurança por que dissemos que o princípio depende de fatores sistêmicos.
jurídica. Diremos que em um dado sistema existe este sobre- Quanto ao passado, exige-se um único postulado: o da irretroa-
princípio, pairando sobre a relação entre Fisco e contribuinte, tividade. No que aponta para o futuro, entretanto, muitos são os
sempre que nos depararmos com um feixe de estimativas, in- expedientes principiológicos necessários para que se possa falar
tegradas para garantir o desempenho da atividade jurídico- na efetividade do primado da segurança jurídica. Desnecessário
tributária pelo Estado-administração. encarecer que a segurança das relações jurídicas é indissociável
do valor justiça, e sua realização concreta se traduz numa con-
quista paulatinamente perseguida pelos povos cultos.
1.3.5.1.1. O primado da segurança jurídica no tempo
Observado sob o ponto-de-vista do passado, o simples
As leis não podem retroagir, alcançando o direito adquirido, vedar que a lei não prejudique o direito adquirido, o ato jurí-
o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. É o comando do art. 5 2 , dico perfeito e a coisa julgada, seria o bastante para obstar
XXXVI da CF/88. Nesse princípio, que vem impregnado de gran- qualquer incursão do legislador dos tributos pelo segmento
de força, podemos sentir com luminosa clareza seu vetor imedia- dos fatos sociais que, por se terem constituído cronologicamen-
to, qual seja a realização do primado da segurança jurídica. te antes da edição legal, ficariam a salvo de novas obrigações.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

Qual o motivo do zelo constitucional? Sabemos que o legisla- Há ocasiões excepcionais, entretanto, em que se concede
dor das normas gerais e abstratas, a começar por aquelas ao legislador a possibilidade de atribuir às leis sentido retroa-
fundantes da ordem jurídica, comete seus desassisos, seja pela tivo. O Código Tributário Nacional discorre sobre o assunto,
ausência de regras disciplinadoras - anomia -, seja pela po- ao cristalizar, no art. 106 e seus incisos, as hipóteses em que a
nência de normas contrárias e contraditórias, seja ainda pela lei se aplica a fato pretérito. Interessa-nos, nesta oportunidade,
i mpressão, juridicamente falsa, mas aparentemente útil, de as chamadas leis interpretativas. Segundo o inciso I, do art. 106
que prescrevendo a mesma coisa duas ou mais vezes, outor- do CTN, assumindo a lei expressamente esse caráter, pode ser
gará a eficácia que a regra não logrou alcançar na formulação aplicada a fatos passados, excluindo-se a aplicação de penali-
singular. Se em termos dogmáticos representa um ledo enga- dades à infração dos dispositivos interpretados.
no, nada modificando no panorama concreto da regulação
As leis interpretativas exibem um traço bem peculiar,
das condutas, pelo ângulo histórico ou sociológico encontra-
na medida em que não visam à criação de novas regras de
se a explicação do fato.
conduta para a sociedade, circunscrevendo seus objetivos ao
Com efeito, o enunciado normativo que protege o direito esclarecimento de dúvidas levantadas em razão da dubieda-
adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada, conhecido de dos vocábulos linguísticos constantes da lei interpretada.
como princípio da irretroatividade das leis, não vinha sendo, é Encaradas sob esse ângulo, despem-se da natureza inovado-
bom que se reconheça, impedimento suficientemente forte ra que acompanha a atividade legislativa, retrotraindo ao
para obstar certas iniciativas de entidades tributantes, em início da vigência da lei interpretada, explicando com fórmu-
especial a União, no sentido de atingir fatos passados, já con- las elucidativas sua mensagem antes obscura. Este, no en-
sumados no tempo, debaixo de plexos normativos segundo os tanto, será objeto de enfoque em momento subsequente
quais os administrados orientaram a direção de seus negócios. deste trabalho.
Isso marcou decisivamente o meio jurídico e, na primeira opor-
tunidade, que ocorreu com a instalação da Assembléia Nacio-
1.3.5.2. O sobreprincípio da certeza do direito
nal Constituinte, fez empenho em consignar outra prescrição
explícita, dirigida rigorosamente para o território das preten-
Trata-se, também, de um sobreprincípio, estando acima
sões tributárias, surgindo, então, o princípio de que falamos.
de outros primados e regendo toda e qualquer porção da ordem
Por outro lado, como expressão do imperativo da segu- jurídica. O sobreprincípio da certeza do direito experimenta
rança do direito, as normas jurídicas voltam-se para a frente, uma dualidade de sentido que não pode ser ignorada: (i) ex-
para o porvir, para o futuro, obviamente depois de oferecido prime a circunstância de que o comando jurídico, atuando
ao conhecimento dos administrados seu inteiro teor, o que se numa das três modalidades do deôntico (proibido, permitido
dá pela publicação do texto legal. Na linha de realização des- e obrigatório), requer, com assomos de necessidade absoluta,
se valor supremo, da mesma forma está o enunciado do inci- que a conduta regrada esteja rigorosamente especificada (al-
so XXXVI art 5. da Carta Magna. Fere a consciência jurídica guém, estando obrigado, tendo a permissão ou estando proi-
das nações civilizadas a idéia de que a lei possa colher fatos bido, deve saber, especificamente, qual a conduta que lhe foi
pretéritos, já consolidados e cujos efeitos se canalizaram re- i mputada, comportamento esse que não se compadece com
gularmente em consonância com as diretrizes da ordem a dúvida, com a inexatidão, com a incerteza); (ii) ao mesmo
institucional. tempo, certeza do direito significa previsibilidade, isto é, o
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

administrado tem o direito de saber, com antecedência, qual 1.3.5.3. O sobreprincípio da igualdade
o conteúdo e alcance dos preceitos que lhe serão imputados,
para que possa programar-se, tomando iniciativas e dirigindo O sobreprincípio da igualdade, por seu turno, está conti-
suas atividades consoante a orientação que lhe advenha da do na formulação expressa do art. 5 2 , caput, da Constituição e
legislação vigente. É aquilo que alguns preferem chamar de reflete uma tendência axiológica de extraordinária importância.
"princípio da não-surpresa". Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer na-
tureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros resi-
Como valor imprescindível do ordenamento, sua presen-
dentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade,
ça é assegurada nos vários subsistemas, nas diversas institui-
à igualdade, à segurança e à propriedade. Seu destinatário é o
ções e no âmago de cada unidade normativa, por mais insig- legislador, entendido aqui na sua proporção semântica mais
nificante que seja. A certeza do direito é algo que se situa na larga possível, isto é, os órgãos da atividade legislativa e todos
própria raiz do dever-ser, é ínsita ao deôntico, sendo incom- aqueles que expedirem normas dotadas de juridicidade.
patível imaginá-lo sem determinação específica. Na sentença
de um magistrado, que põe fim a uma controvérsia, seria No domínio do direito tributário, o artigo 150, II, da Car-
absurdo figurarmos um juízo de probabilidade, em que o ato ta Magna, proíbe à União, Estados, Distrito Federal e Municí-
jurisdicional declarasse, como exemplifica Lourival Vilanoval° 6 , pios a instituição de tratamento desigual a contribuintes que
que "A possivelmente deve reparar o dano causado por ato se encontrem em situação equivalente. Não deverá haver qual-
quer discrimen com base na ocupação profissional ou função
ilícito seu". Não é sentenciar, diz o mestre, ou estatuir, com
pretensão de validade, o certum no conflito de condutas. E exercida. O intuito é garantir a tributação justa (sobrevalor).
ainda que consideremos as obrigações alternativas, em que Isto não significa, contudo, que todos os contribuintes devam
o devedor pode optar pela prestação A, B ou C, sobre uma receber tratamento tributário igual, mas, sim, que as pessoas,
físicas ou jurídicas, encontrando-se em situações econômicas
delas há de recair, enfaticamente, sua escolha, como impera-
idênticas, ficarão submetidas ao mesmo regime jurídico, com
tivo inexorável da certeza jurídica. Substanciando a necessi-
as particularidades que lhe forem próprias. Caberá à legislação
dade premente da segurança do indivíduo, o sistema empíri-
de cada tributo, tomando em consideração as notas singulares
co do direito elege a certeza como postulado indispensável
das diversas classes de sujeitos passivos, eleger fatos distintivos
para a convivência social organizada.
que sejam hábeis para atender às especificidades dos casos
O princípio da certeza jurídica é implícito, mas todas as submetidos à imposição, de tal maneira que se mantenha a
superiores diretrizes do ordenamento operam no sentido de correspondente equivalência entre as múltiplas situações em-
realizá-lo. píricas sobre as quais haverá de incidir a percussão tributária.
Além do caráter sintático dessa acepção, outra muito di- O estabelecer itens de desigualdade entre os destinatários
fundida é aquela que toma "certeza" com o sentido de "previ- da norma, achando-se esses em situações jurídico-econômicas
sibilidade", de tal modo que os destinatários dos comandos semelhantes, exige a observância de rigorosa e manifesta pro-
jurídicos hão de poder organizar suas condutas na conformi- porcionalidade, marca decisiva da própria isonomia com que
dade dos teores normativos existentes. foram tratadas as ocorrências distintas, e que se traduz numa
equação reveladora da aplicação do princípio da igualdade tri-
butária. Afinal, todos sabemos que o real é irrepetível, não ha-
106. As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo, cit., p. 232. vendo, nem podendo haver, dois sucessos totalmente iguais.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

Resta ao legislador, portanto, assegurar a estabilidade bem-estar social. Longe disso, por lidar com direitos funda-
funcional do diploma normativo de modo que a lei possa irra- mentais (propriedade e liberdade), a ordem jurídica cerca de
diar sua eficácia por toda a extensão do domínio pretendido, garantias o direito que cada um tem de responder pela carga
fazendo-o, contudo, uniformemente, sem oscilações que esca- tributária de forma igualitária, recolhendo aos cofres públicos
pem da equação montada para realizar o equilíbrio da ativida- i mportâncias do mesmo tamanho econômico daquelas que
de impositiva. Dentro daquele seguimento, os sujeitos saberão, qualquer outro sujeito de direitos venha a arcar, encontrando-
previamente, o modo pelo qual serão alcançados pela incidên- se em situação idêntica.
cia da regra tributária, assegurada a proporção entre as inevi-
A isonomia de que desfrutam os sujeitos passivos das
táveis desigualdades existentes. obrigações tributárias, além disso, é uma estimativa da mais
Tudo seria fácil se o princípio da isonomia não fosse um elevada relevância, pois de sua concreta efetividade, em cada
autêntico valor. Para o universo do direito, múltiplos são os situação empírica, dependem dois sobrevalores, quais sejam,
critérios que podem ser tomados para a realização da igual- o da segurança das relações jurídico-tributárias e o da "justiça
dade. Há isonomia entre pessoas qualificadas como maiores da tributação". Percebe-se, claramente, que sem igualdade na
para os atos da vida civil, para fins eleitorais, criminais; há distribuição das cargas tributárias não atingiremos os níveis
igualdade entre pessoas do mesmo sexo, nacionalidade, cor, adequados de segurança, impedindo a realização suprema da
grupo profissional, político e social. Quando a estimativa justiça na implantação dos tributos.
"igualdade" é empregada no direito tributário, o critério é
José Artur Lima Gonçalves 107 , em aprofundado estudo
bem objetivo: dois sujeitos de direito que apresentarem si-
sobre o tema, e perfeitamente consciente do que significa o
nais de riqueza expressos no mesmo padrão monetário ha-
implemento desse valor em cada caso concreto, propõe ao in-
verão de sofrer a tributação em proporções absolutamente
térprete um itinerário seguro:
iguais.
Exemplificando, podemos mencionar a situação de duas "Para que se afira a existência ou não de ofensa ao princípio
empresas localizadas em território nacional, em que uma delas da isonomia em matéria tributária, sugere-se que o pesqui-
aufira o dobro de receita do valor obtido pela outra: o montan- sador siga o seguinte roteiro sistemático ao deparar-se com
a norma que crie discriminação:
te da COFINS devida por uma será exatamente o dobro da
1. dissecar a regra-matriz de incidência tributária em seus
outra. Isso quer dizer que o critério jurídico da igualdade, para
cinco critérios;
fins de incidência tributária, tem como ponto de referência a
2. identificar qual é o elemento de discriminação utilizado
variação jurídico-econômica da base de cálculo, podendo, em
pela norma analisada;
casos muito específicos, ser temperado por providências de
3. verificar se há correlação lógica entre o elemento de dis-
natureza extrafiscal.
criminação e a diferenciação de tratamento procedida; e,
Aproveito para afirmar que o direito, reconhecendo na 4. investigar se há relação de subordinação e pertinência
igualdade tributária um valor, trata de colocar parâmetros lógica entre a discriminação procedida e os valores posi-
incisivos, tendo em vista estabilizar as expectativas normativas. tivados no texto constitucional."
Não fora assim e cada um empregaria suas referências subje-
tivas, construindo "isonomias" que consultassem antes suas
inclinações ideológicas, acarretando profunda insegurança ao 107. Isonomia na norma tributária, São Paulo, Malheiros, 1993, p. 75.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

Encaixa-se bem, neste tópico, a observação mediante 1.3.5.4. O sobreprincípio da liberdade


a qual o direito positivo introduz uma série de proposições
prescritivas tendo em vista tolher o trabalho exegético, para Adotando o pressuposto de que o sobreprincípio da liberda-
evitar, por esse modo, que o aplicador mobilize valores que de é um direito fundamental, podemos dizer que se encontra
lhe são próprios, pondo em jogo sua ideologia em detrimen- permeado por todo o sistema jurídico prescritivo em diferentes
feições. Temos a liberdade legiferante de que os Parlamentos são
to das orientações axiológicas que o sistema consagra. Ain-
portadores, dentro dos limites constitucionais; a liberdade políti-
da que não se elimine a participação subjetiva do operador,
ca entre os entes do Estado-governo; a liberdade de associação,
reduz seu exercício a padrões mínimos, aptos para garantir
entre pessoas individuais, empresas ou sindicatos; a liberdade de
que o ordenamento cumpra sua trajetória reguladora sem
expressão, opinião e difusão, garantida, na ordem tributária, pe-
interferências estranhas ao projeto que a sociedade solene-
las imunidades; a liberdade de tráfego no direito tributário; entre
mente adotou.
tantas outras liberdades explícitas ou implícitas no texto consti-
É conferido à lei tributária desigualar situações, aten- tucional. Essas figuras vêm a aparecer, mediatamente, na reali-
dendo a peculiaridades de categorias de contribuintes, mas zação do Estado Democrático Brasileiro, em que se impõe sistema
somente quando houver relação de imanência entre o ele- que equilibra liberdades e limitações de direitos.
mento diferencial e o regime conferido aos que estão inclu-
O ordenamento jurídico, como forma de tornar possível
ídos na classe diferenciada. O princípio da isonomia é agre-
a coexistência do homem em comunidade, garante, efetiva-
dido quando o tratamento diverso, dispensado pelo legisla-
mente, o cumprimento das suas ordens, ainda que, para tanto,
dor a várias pessoas, não encontra motivo razoável. Na lição
seja necessária a adoção de medidas punitivas que afetem a
de Celso Antônio Bandeira de Mello 108 , "há ofensa ao pre-
própria liberdade das pessoas. Daí por que, ao criar um direi-
ceito constitucional da isonomia quando (...) a norma atribui
to subjetivo, concomitantemente o legislador enlaça um dever
tratamento jurídico diferente em atenção a fator de discrimen
ou, em segunda instância, uma providência sancionatória ao
adotado que, entretanto, não guarda relação de pertinência
não-cumprimento do referido dever. Só o direito coage me-
lógica com a disparidade de regimes outorgados (...)", e diante o emprego da força, com a aplicação, em último grau,
também quando "a norma supõe relação de pertinência ló- das penas privativas da liberdade ou por meio da execução
gica existente em abstrato, mas o discrimen estabelecido forçada. Essa maneira de coagir, de garantir o cumprimento
conduz a efeitos contrapostos ou de qualquer modo disso- dos direitos e dos deveres estatuídos em suas regras, é que
nantes dos interesses prestigiados constitucionalmente". Em assinala o direito, apartando-o de outros sistemas de normas.
suma, para realizar-se a isonomia, não basta tratar diferen-
temente os desiguais. É preciso que o tratamento diferen- Dentre as liberdades constitucionais, cumpre relevar, num
ciado dê-se em razão dessa diferença, ou seja, que o trata- primeiro momento, o fraseado do art. 5 4 , XIII, que garante o
mento diferenciado tenha relação com o critério discrimi- livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, aten-
nante eleito. didas as qualificações profissionais que a lei estabelecer. Nes-
se mesmo sentido, garante também a "liberdade de associação
para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar" (art. 5 4 , XVII,
108. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade, 3a ed., São Paulo, Malheiros,
da CR/88), bem como dispõe que "a criação de associações e,
2003, p. 47. na forma da lei, a de cooperativas independem de autorização,

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

sendo vedada a interferência estatal em seu funcionamento" em seu fato gerador a designação de "circulação de mercadoria"
(art. 5 2 , XVIII, da CR/88). Mais a frente ainda completa esta- como base de tributação.
tuindo que "as entidades associativas, quando expressamente
A liberdade de tráfego vem reafirmar o princípio federa-
autorizadas, têm legitimidade para representar seus filiados
tivo, formador do Estado brasileiro, vedando a todos os entes
judicial ou extrajudicialmente" (art. 5 2 , XXI, da CR/88). Há que
políticos "estabelecer limitações ao tráfego de pessoas ou bens,
se tomar nota que as leis sobre tributo não podem tolher o livre
por meio de tributos interestaduais ou intermunicipais", como
exercício do trabalho e da livre associação, a que tem direito o
se depreende do próprio texto do artigo. Isto quer dizer que
cidadão brasileiro. Como bem tutelado no plano da Constitui-
não poderá compor o antecedente da norma, em nenhum tipo
ção, é um limite a mais que confrange as iniciativas legislativas
tributário (imposto, taxa ou contribuição), o predicado "ope-
em matéria tributária.
ração interestaduais ou intermunicipais". Em outras palavras,
Outras vezes, vamos deparar com o étimo "liberdade" não será tomado como base de tributação o simples fato de se
querendo apontar as garantias de expressão, conforme dis- configurar deslocamento de pessoa ou bem entre Estados e
posto nos arts. 5 2 , IX, e 220 da CR/88. Dessa forma, "a mani- Municípios, garantindo o movimento livre das massas popula-
festação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, cionais e do comércio.
sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qual-
quer restrição", proibindo, por intermédio do que foi dispos- 1.3.5.5. O sobreprincípio da justiça
to, qualquer tipo de censura pelo Estado aos sujeitos de di-
reito. No domínio tributário, o Texto Magno, por meio das O princípio da justiça é uma diretriz suprema. Na sua
imunidades, garantiu a liberdade de expressão religiosa (so- explicitude, pois está expressa no Preâmbulo da CR/88, pe-
bre os templos de qualquer culto), política (sobre patrimônio, netra de tal modo as unidades normativas do ordenamento
renda ou serviços dos partidos políticos), sindical (sobre en- que todos o proclamam, fazendo dele até lugar comum, que
tidades sindicais dos trabalhadores), da educação (sobre se presta para justificar interesses antagônicos e até descon-
instituições de educação e de assistência social, sem fins lu- certantes. Como valor que é, participa daquela subjetividade
crativos) e de imprensa (sobre livros, jornais, periódicos e o que mencionamos, ajustando-se diferentemente nas escalas
papel destinado a sua impressão), desonerando tais institutos hierárquicas das mais variadas ideologias. Os sistemas jurí-
e instituições da carga tributária. Trata-se de reafirmação do dicos dos povos civilizados projetam-no para figurar no sub-
princípio da liberdade que a Constituição prestigia no seu art. solo de todos os preceitos, seja qual for a porção da conduta
5 2 . Nenhum óbice há de ser criado para impedir ou dificultar a ser disciplinada.
esses direitos de todo cidadão. E entendeu o constituinte de
Realiza-se o primado da justiça quando implementamos
eximi-lo também do ônus representado pela exigência de
outros princípios, o que equivale a elegê-lo como sobreprin-
i mpostos (art. 150, VI, da CR/88).
cípio. E na plataforma privilegiada dos sobreprincípios
Por fim, a propósito, vale a lembrança peremptória, no ocupa lugar preeminente. Nenhum outro o sobrepuja, ainda
domínio tributário, da liberdade de tráfego, prestigiada pelo porque para ele trabalham. Querem alguns, por isso mesmo,
art. 150, V, da CR/88 de que é apenas exceção a cobrança de que esse valor se apresente como o sobreprincípio funda-
pedágio pela utilização de vias conservadas pelo Poder Públi- mental, construído pela conjunção eficaz dos demais sobre-
co e o ICMS em razão de estar constitucionalmente garantido princípios.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

1.3.6. Os princípios formadores do Estado sujeito passivo, em ocasiões como essa, insurgir-se contra a
exigência federal, sobre o fundamento de que não fora respei-
Pertencendo ao estrato mesmo da Constituição, da qual tada a autonomia das unidades federadas, consagradas no art.
se destaca por mero expediente lógico de cunho didático, o 1 2-da Constituição.
subsistema constitucional dos princípios formadores do Nesse ponto, as hipóteses mais comuns de violação de
Estado realiza as funções do todo, dispondo sobre os poderes direitos e garantias individuais parecem alojar-se nos artigos
capitais do Estado, nos diversos campos da política, da ad- 155, § 2 4 , XII, e 146 da CR/88, este, justamente, prevê a edição
ministração e, de nosso interesse atual, da tributação, ao de normas gerais de direito tributário, rubrica de que nos ocu-
lado de medidas que asseguram as garantias imprescindíveis paremos em momento subsecutivo.
à liberdade das pessoas, diante daqueles poderes. Empre-
ende, na trama normativa, uma construção harmoniosa e Importa firmar, por enquanto, a infringência de direitos
conciliadora, que visa a atingir a forma do Estado brasileiro e garantias individuais do contribuinte ou de terceiros, ligados
e, a partir dessa formação, abstrair os conteúdos dos valores à relação jurídico-tributária, sempre que desrespeitado for o
supremos da certeza, da liberdade, da igualdade, da justiça, princípio da Federação, salvaguarda intangível da autonomia
pela segurança das relações jurídicas que se estabelecem dos Estados.
entre Administração e administrados. E, ao fazê-lo, enuncia O ser "República" Federativa é pretender uma forma de
normas que são verdadeiros princípios, tal o poder agluti- governo na qual o povo, soberano, investe seus representantes
nante de que são portadoras, permeando, penetrando e in- em funções de poderes diferentes. No modelo atual, são eles
fluenciando um número inominável de outras regras que lhe tripartidos em: legislativo, executivo e judiciário.
são subordinadas. Do ponto de vista da cidadania, define-se como a forma
de estado que atribui condição especial ao povo na formação
1.3.6.1. Princípios da Federação e da República do regimento constitucional interno. Em seu aspecto estru-
tural, apresenta-se como conjunto de instituições ordenadas
O princípio federativo, inscritos no art. 1 2 da Constituição, para o fim de preservar os direitos individuais e coletivos
está endereçado, inequivocamente, aos legisladores da União, bem como a representação legítima de seus administrados.
dos Estados-membros e do Distrito Federal. Contudo, não há Nesse ponto, Geraldo Ataliba asseverou com sutileza de
negar que enquanto expresse a autonomia recíproca das uni- análise em seu República e Constituição", que "a Repúbli-
dades federadas, sob o manto da Lei Fundamental, represen- ca, tal como plasmada pelos sucessivos constituintes brasi-
tará fonte inesgotável de direitos e garantias individuais. A leiros, traduz-se num conjunto de instituições cujo funcio-
experiência brasileira nesse sentido, aliás, é bem sugestiva. namento harmônico visa a assegurar, da melhor maneira
Que de vezes a União tem invadido as províncias da compe- possível, a eficácia de seu princípio básico, consistente na
tência estadual, a pretexto de legislar sobre seus impostos soberania popular".
privativos, ou tirando proveito da atribuição que os arts. 147 e
154, do Texto Maior lhe adjudicam, em claro detrimento dos
outros entes federativos e, em muitas oportunidades, arranhando 109. Geraldo Ataliba, República e Constituição, 2a ed., São Paulo, Malheiros,
o patrimônio jurídico dos próprios contribuintes. Cabe ao 1998, p. 89.

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Nesse tópico, é preciso dizer enfaticamente que princípio ao mesmo tempo em que o Estado lhes confere poderes, esti-
nenhum se encontra isolado no sistema. Corolário inevitável pula uma série de responsabilidades que lhes fazem contra-
da aplicação desse postulado é a confluência dos preceitos partida. Eis as condições de base em que deve enquadrar-se o
republicanos e federativos no Estado brasileiro. Ambos são regime jurídico brasileiro republicano.
atributos indissociáveis, fundamento da forma atual da Nação,
e, juntos, determinam como os outros princípios devem ser
1.3.6.2. Princípio da separação dos poderes
interpretados. Nenhuma lei pode ser interpretada sem que se
conforme à exegese desses dois princípios. Nesses termos,
Apesar do poder estatal ser uno e indivisível, como repe-
podemos apresentar afirmativa peremptória de que um não é
tidamente advertido por Rousseau, para que se opere seu ra-
o outro, mas um está pelo outro. Tanto o princípio republicano
cional e responsável exercício, este é partido em três segmen-
quanto o princípio federativo são os alicerces necessários da
tos, objetivando atender à complexidade das tarefas estatais e
presente formação do Estado brasileiro.
à consequente necessidade de especialização dos órgãos do
Demoremo-nos, porém, num ponto: a despeito de apre- Estado, no desempenho dessas tarefas. Fala-se, assim, em se-
sentarem-se no mesmo Diploma e, portanto, serem normas de paração dos poderes, consistente na divisão do exercício do
sobrenível, os princípios adquirem diferentes relevâncias na poder estatal.
formulação do sentido completo normativo. E os postulados
O conceito de separação dos poderes designa princípio
da Federação e da República exercem no direito positivo bra-
sileiro função determinante. Tal conclusão se depura de vários de organização política que, mediante a repartição de compe-
fatores: (i) na atual Constituição esses princípios se manifestam tências jurídicas, estrutura órgãos com funções específicas. No
expressamente representados no art. 1 2 , marca do início do ordenamento brasileiro, o assunto encontra-se disciplinado,
ordenamento jurídico vigente; (ii) além disso, por diversas expressamente, no artigo 2 2 da Constituição da República, nos
vezes, repete-se o preceito em outras formulações normativas, termos do qual "são Poderes da União, independentes e har-
explícita ou implicitamente; e, por fim; (iii) encontra-se, a for- mônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário". A
ma federativa de Estado, garantida entre as cláusulas pétreas independência e a harmonia entre os poderes do Estado indi-
do art. 60, § 4 2 , da CR/88 não sendo, portanto, objeto de emen- cam, como princípio, que cada um deles projeta uma esfera
da constitucional. própria de atuação, cuja demarcação tem por fundamento de
validade a própria norma constitucional. Ao Legislativo con-
No regime republicano, a forma federativa assegura o
fere, preponderantemente, a função de editar normas gerais e
sistema de representação dos administrados pela Administra-
abstratas; ao Executivo o dever de efetivá-las mediante a edição
ção Pública. Nele garantem-se os instrumentos que permitem
de normas individuais e concretas; e, finalmente, ao Judiciário,
a representação, bem como os meios de controle e fiscalização
a tarefa de dirimir os inevitáveis conflitos na aplicação das
dos mandantes sobre seus mandatários. Nesse sentido, utiliza-
110, normas jurídicas produzidas pelo sistema. Nessa projeção das
se do princípio "Poder contendo poder" ou nos termos nor-
fontes, não está previsto o setor privado responsável pela pro-
te-americanos adota o regime do "Check and Balance", no qual,
dução intensiva de normas que, a todo momento, enriquecem
o ordenamento positivo.
110. Geraldo Ataliba, República e Constituição, 2a ed., São Paulo, Malheiros, Justamente para atender às estipulações dessa índole é
1998, p. 48. que ao Poder Judiciário é vedado extrapolar os limites da lei,
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emitindo normas individuais e concretas que não se encontrem Sobremais, é preciso salientar que todo esse arcabouço
fundamentadas nos preceitos gerais e abstratos emitidos pelo montado pelo legislador constituinte foi concebido dentro de
Legislativo. Eis a presença inafastável da legalidade, pressu- padrões que tendem à fixidez, pois a Constituição brasileira é
posto do universo jurídico. rígida, prevendo, expressamente, os meios e modos de possíveis
modificações, todos eles reivindicando procedimentos especiais
Na qualidade de subdomínio da ordenação jurídico-posi-
e mais complicados que os do rito comum. Aliás, em obra de
tiva, nosso sistema tributário traz a marca indelével das parti- imenso valor doutrinário, Geraldo Ataliba pôs em evidência
cularidades do constitucionalismo praticado no Brasil. O esse traço, aliado, no setor específico dos tributos, àquilo que
quadro formado pela coexistência das quatro classes de pes- chamou de "abundância", quer dizer, o legislador constituinte,
soas políticas de direito constitucional interno (União, Estados- ao estabelecer um número sobremaneira elevado de preceitos
membros, Distrito Federal e Municípios), todas desfrutando de a propósito de matéria tributária, fê-lo no corpo de uma Cons-
autonomia e estruturadas como entidades que se autocom- tituição rígida, aspecto que imprime ao subsistema tributário
põem, buscando o fundamento de validade de suas normas brasileiro um caráter de amplitude e firmeza sem paralelo nos
diretamente na Constituição da República, exibe, desde logo, ordenamentos de países que seguem o modelo do direito con-
uma feição peculiar ao sistema do direito posto, colocando de tinental europeu.
manifesto sua grande complexidade. Isso, ainda, passando por
Torna-se necessário um esforço concentrado para mer-
alto pela existência de outro ente político, a própria União, mas
gulhar na amplitude textual e isolar os princípios fundamentais
investida agora de soberania e operando como pessoa de di-
da ordem jurídica vigente para, daí avante, projetar estratégias
reito constitucional na ordem externa, no direito das gentes.
de compreensão, passando à fase de construir o conteúdo,
Sabemos, perfeitamente, quão difícil tem sido a articula- sentido e alcance do produto legislado.
ção dessas entidades, justapostas como detentoras de faixas
próprias de competência impositiva, na medida em que se 1.3.6.3. Princípio da isonomia das pessoas políticas de direito
entrecruzam os problemas de ordem jurídica, política e social. constitucional interno
Tudo para respeitar o modelo federativo implantado pela
Constituição de 1988, mas que, de resto, já vem atravessando O conceito de isonomia não é de fácil determinação. Au-
a tradição histórica e jurídica do país há muito tempo. tores ilustres pretenderam demarcá-lo, encontrando acerbas
dificuldades, pois os valores não podem ser objetivados. Em
Em verdade, não é fácil manter o equilíbrio e a harmonia
função de sua plasticidade, amolda-se diferentemente aos
das pessoas políticas de direito interno, assim no plano estático
múltiplos campos de incidência material das regras jurídicas,
como, e principalmente, na dinâmica do seu funcionamento.
o que torna penosa a indicação precisa do seu conteúdo. Celso
São quatro focos ejetores de normas cujo fundamento de vali-
Antônio Bandeira de Mellom, como já vimos, tem importante
dade está plantado na Lei das leis, não havendo vínculos de
contribuição ao estudo dos obstáculos que se interpõem no cami-
subordinação entre essas esferas parciais de governo. São qua-
nho de um exame científico e aprofundado acerca desse tema.
tro fontes de produção normativa que hão de manter-se em
constante sintonia, integradas por obra de diretrizes superiores
que lhes asseguram o movimento simultâneo, tendo em vista a 111. Conteúdo jurídico do princípio da igualdade, 3a ed., São Paulo, Malhei-
realização dos valores supremos que a Constituição proclama. ros, 2003.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

Já identificamos em subitem anterior a presença da acep- implícito, construído a partir de duas formulações expressas:
ção de isonomia como equivalente ao conceito de igualdade de a que assegura o princípio federativo (autonomia dos Estados
todos perante a lei. Por outro lado, em linha de princípio, ve- sob a égide da CR, art. 1 2 ) e a que consagra a autonomia dos
rificaremos que isonomia está presente também na formação Municípios (art. 13, § 2Q; art. 18, caput, e § 4 2 ; art. 23, caput, e
do Estado, veiculando predicados normativos entre as pessoas parágrafo único; arts. 29, 30, 44, 45, 46 e 53 da CR/88). E é nes-
políticas de direito constitucional interno, garantindo trata- se último que iremos focalizar nossas atenções no momento.
mento igual e autonômico entre si.
Sabemos que as mensagens prescritivas dos arts. 18 a 57
O art. 18, caput da CR/88, estatui que "A organização po- da Constituição do Brasil realizam o "princípio da autonomia
lítico-administrativa da República Federativa do Brasil com- dos Municípios", confirmado pela análise do sistema vigente.
preende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, Nada obstante, juristas de renome, menos inclinados ao "mu-
todos autônomos, nos termos desta Constituição." A despeito nicipalismo", conquanto não neguem a indigitada autonomia,
de sua redação imprópria, uma vez que os Municípios não reduzem drasticamente a relevância dessas pessoas políticas,
compõem a Federação brasileira, põe, em pé de igualdade, as em suas interpretações, chegando ao ponto de designá-las por
entidades políticas, firmando ainda sua autonomia. "entes menores". Esforçados nessa mesma inspiração, com-
A premissa autoriza dizermos que esse princípio funciona preendem, ao pé da letra, o que preceitua o art. 187, parágrafo
como fator de paridade entre as entidades políticas de direito único, do Código Tributário Nacional, sobre violarem de ma-
interno, reafirmando os princípios da Federação e da autonomia neira frontal o princípio implícito da isonomia das pessoas
dos Municípios, sem os quais não se alcança a isonomia das políticas de direito constitucional interno, chegando ao resul-
pessoas políticas de direito interno e o inverso da mesma tado deplorável de admitir a "ordem" que o dispositivo esta-
forma é verdadeiro. Em outros termos, a isonomia de que des- belece, com o que relegam os Municípios a uma condição de
frutam os entes políticos é uma estimativa da mais elevada flagrante inferioridade em face dos Estados, do Distrito Fede-
relevância, pois de sua concreta efetividade dependem dois ral e da União.
sobrevalores, quais sejam, o da Federação e o da autonomia
dos Municípios. Percebe-se, claramente, que sem isonomia A autonomia municipal se reflete em diferentes passa-
entre as pessoas políticas não atingiremos os níveis adequados gens no texto constitucional, quando o próprio texto da Car-
do federalismo, impedindo a realização suprema da autonomia ta Magna os autoriza a ter símbolos próprios (art. 13, § 2 2 ),
dos Municípios. indica expressamente que União, Estados, Distrito Federal e
Municípios são todos autônomos entre si (art. 18, caput), im-
Por esse modo, é forçosa a ilação de que os princípios
põe consulta prévia à população municipal nos casos de cria-
formadores do Estado brasileiro são um emaranhado de normas
ção, incorporação, fusão ou desmembramento de Municípios
que só adquirem significação completa quando colocadas em
(art. 18, § ,V), dentre tantos outros que vão aos poucos com-
combinatória. Isonomia, Federação e autonomia dos Municípios
provando, de uma vez por todas, a existente e necessária
são o reflexo de uma só idéia: o Estado brasileiro.
autonomia dos Municípios.

1.3.6.4. Princípio da autonomia dos Municípios Justamente para atender às estipulações dessa índole é
que a Constituição da República, ao dispor sobre as competên-
A oração que proclama a isonomia das pessoas políticas cias legislativas, estabelece autonomia e competência munici-
de direito constitucional interno apresenta-se como enunciado pais para dispor sobre a matéria tributária. Em seu inciso III,

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

do art. 30, prescreve, de forma abrangente, competir aos Mu- cerrada; da anterioridade e da irretroatividade da lei tributária;
nicípios a instituição e arrecadação dos tributos de sua com- da não-cumulatividade nos casos de IPI e ICMS; entre tantos
petência, bem como aplicação de suas rendas. Reafirmando outros.
peremptoriamente esse princípio, a fiscalização do Município
Por outro lado, não há como negar que os cânones da
será exercida pelo próprio Poder Legislativo Municipal, me-
legalidade, da anterioridade e da irretroatividade trazem con-
diante controle externo, e pelos sistemas de controle interno
sigo uma carga axiológica expressiva, na medida em que re-
do Poder Executivo Municipal. É uma prova de sua autonomia.
presentam conquistas seculares mantidas e anunciadas pela
Mais a frente, ainda no domínio tributário, assegura a compe-
tradição do nosso direito.
tência equiparando os Municípios às outras entidades por meio
do art. 145, caput; e, por fim, coloca-os no rol das imunidades,
inviabilizando que União, Estados, Distrito Federal onerem o 1.3.7.1. Princípio da legalidade tributária
patrimônio municipal com impostos. Do exposto percebe-se a
condição de igualdade que se encontram os Municípios em O princípio da legalidade é introduzido no sistema jurídi-
relação aos Estados, ao Distrito Federal e à União. co quer na formulação genérica do artigo 5 2 , II, da CR, quer
em sua conformação específica para o direito tributário (artigo
150, I, da CR). A análise do texto legal se desenvolve a partir
1.3.7. Os limites objetivos no direito tributário deste plano constitucional, onde se situa, aliás, o enunciado
normativo daquele valor, expandindo-se pelo corpo do sistema,
Os "limites objetivos" distinguem-se dos valores, pois são
com integral respeito à hierarquia. É tomando posições firmes
concebidos para atingir certas metas, certos fins. Estes, sim,
do texto da Carta Magna, racionalmente compostas e fundadas
assumem o porte de valores. Aqueles limites não são valores,
sempre em doutrina segura, que o exegeta compõe a linguagem
são procedimentos, se os considerarmos em si mesmos, mas
descritiva, imprimindo seriedade ao discurso.
voltam-se para realizar valores, de forma indireta, mediata,
que são os fins para os quais estão preordenados os procedi- Nunca serão demais os estudos que evoluírem em torno
mentos. Os princípios de direito tributário, por seu turno, ge- de valores com a magnitude do princípio da legalidade, a des-
ralmente se expressam como "limites objetivos", posto como peito do timbre subjetivo que os faz resvalarem, frequentemen-
sobre-regras que visam a implementar os valores estipulados te, pela quadra das especulações ideológicas, distanciando-se,
no ordenamento jurídico. em certa medida, do objetivo final do labor cognoscente. Sua
i mportância marca com tal intensidade a presença do fenôme-
A despeito dos "limites objetivos" perseguirem valores
como objetivos teleológicos da norma, não entram em jogo, no jurídico que não seria exagerado afirmar tratar-se de dado
aqui, as motivações subjetivas do legislador ou mesmo da pró- inafastável, decisivo para a compreensão dessa realidade. Re-
pria sociedade na sua positivação, tornando-se muito mais fletir sobre o princípio da legalidade, aqui, equivale a meditar
simples a construção de sentido dos enunciados. E na aplicação sobre o próprio direito.
prática do direito esses limites saltam aos olhos, sendo de veri- O princípio da legalidade é limite objetivo que se presta,
ficação pronta e imediata. Expressão de uma das diversas formas ao mesmo tempo, para oferecer segurança jurídica aos cida-
empregadas, observa-se os princípios tributários, tal como um dãos, na certeza de que não serão compelidos a praticar ações
limite objetivo, nos primados da legalidade e da tipicidade diversas daquelas prescritas por representantes legislativos, e

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

para assegurar observância ao primado constitucional da tri- via de lei delegada, não há essa possibilidade. Entretanto, exis-
partição dos poderes. O princípio da legalidade compele o in- tem aqueles que aceitam a medida provisória com a virtude de
térprete, como é o caso dos julgadores, a procurar frases pres- criar tributos também. Não é minha interpretação.
critivas, única e exclusivamente, entre as introduzidas no or-
Uma exigência, contudo, se faz presente: na lei tributária
denamento positivo por via de lei ou de diploma que tenha o
há que se conter todos os elementos necessários à chamada
mesmo status. Se do consequente da regra advier obrigação
regra-matriz de incidência, isto é, aquele mínimo irredutível,
de dar, fazer ou não-fazer alguma coisa, sua construção reivin-
aquela unidade monádica que caracteriza a percussão do tri-
dicará a seleção de enunciados colhidos apenas e tão-somente
buto, vale dizer, a descrição de um evento de possível ocorrên-
no plano legal.
cia para a norma poder operar, e a prescrição de uma relação
Isso se aplica, na plenitude, à regra-matriz de incidência jurídica que vai nascer quando ocorrer esse acontecimento.
tributária: sua estrutura lógico-sintática há de ser saturada Nessa proposição consequencial, também chamada de conse-
com as significações do direito positivo. Pela diretriz da estrita quência tributária, existem não só dois sujeitos, mas uma
legalidade, não podem ser utilizados outros enunciados, senão conduta que pode ser exigida pelo titular do direito subjetivo
aqueles introduzidos por lei. Seja a menção genérica do acon- e que deve ser cumprida por aquele que foi cometido do dever
tecimento factual, com seus critérios compositivos (material, jurídico. Tal conduta no direito tributário está ligada à entrega
espacial e temporal), seja a regulação da conduta, firmada no de uma quantia em dinheiro e essa apuração em valor devido
consequente, também com seus critérios próprios, vale dizer, ao Fisco pressupõe a conjugação de dois fatores: a base de
indicação dos sujeitos ativo e passivo (critério pessoal), bem cálculo e a alíquota. Temos aqui um dado importantíssimo para
como da base de cálculo e da alíquota (critério quantitativo), a compreensão do direito tributário brasileiro: um primado
tudo há de vir expresso em enunciados legais. que decorre dessas ponderações e que se apresenta como o
binômio "hipótese de incidência/base de cálculo".
1.3.7.2. Princípio da tipicidade tributária Acredito, pessoalmente, que o artigo 4 4 do Código Tribu-
tário Nacional, ao dizer que a natureza específica do tributo é
Quando se reclama a observância do princípio da legali- definida pelo fato gerador, nos fornece uma pequena contri-
dade inscrito no art. 150, inciso I, da Constituição de 88, repe- buição, mas não diz tudo. A natureza específica do tributo é
tindo de certo modo o que já dissera o art. 5 2 , no seu inciso II, dada pela conjugação da hipótese da incidência e da base de
o que se quer exprimir é a exigência da lei ordinária. Diria "em cálculo. Vou dar dois exemplos práticos que me parecem bem
princípio", porque "lei", neste passo, está usada num sentido elucidativos: um, ocorrido no Estado do Rio Grande do Sul, em
que permite várias acepções. Eis novamente o cientista do Município gaúcho que, pretendendo ampliar a faixa da inci-
direito ou o jurista prático olhando para o direito positivo como dência do IPTU, no caso de imóveis dados em locação, escolheu
um fenômeno de linguagem e procurando, dentro das acepções como base de cálculo o montante percebido pelo locador, no
desse vocábulo, escolher uma que pode não ser a do outro. ano anterior. Alfredo Augusto Becker imediatamente apontou:
Gostaria que "lei" fosse interpretada aqui no seu sentido de lei "eis uma invasão de competência, trata-se de uma inconstitu-
ordinária, mas sabemos que o ordenamento brasileiro assim cionalidade", o Município estará invadindo a competência fe-
não dispõe. Há uma série de tributos que são criados, em vir- deral, pois o montante percebido pelo locador no ano imedia-
tude de imposição constitucional, por lei complementar. Já pela tamente anterior é um dos integrantes daquilo que se chama
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

de rendimento bruto, colhido pelo imposto sobre a renda e competência residual, preferindo criar impostos com nome de
proventos de qualquer natureza. Percebe-se, claramente, nes- taxas, impostos com nome de empréstimos compulsórios, im-
te caso, que a base de cálculo, ao dimensionar o critério mate- postos com nome de depósito para viagens, impostos com nome
rial da hipótese de incidência, serve para definir aquilo que se de salário-educação, etc., em vez de utilizar da competência
pretende tributar pelo Município: a renda do proprietário e residual constitucionalmente estabelecida.
não a propriedade predial e territorial urbana. Ora, de ver está que o artigo 145, § 2 2 , da CR/88, impõe
Quero utilizar também de um excelente parecer do Pro- que as taxas tenham base de cálculo diferente dos impostos e,
fessor Geraldo Ataliba ao identificar na "taxa de melhoramen- ao criar a faixa de competência residual, inscrita no artigo 154,
to dos portos", não uma taxa, mas um imposto. Por quê? Porque I do mesmo Diploma encontraremos também o seguinte:
a base de cálculo deixava de medir atividade estatal diretamen-
te ligada ao obrigado, e voltava-se para um fato qualquer, in- "A União poderá instituir, mediante lei complementar, im-
postos não previstos no artigo anterior, desde que sejam
dependente de atuação do Poder Público. Ao detectar a base
não-cumulativos e não tenham fato gerador ou base de
de cálculo, confrontando-a com o critério material da hipótese
cálculo próprios dos discriminados nesta Constituição".
de incidência, concluiu: "isto é imposto, não uma taxa".
O artigo 4 2 - repito - do Código Tributário Nacional, Mas, aí não há o conjuntor "e" e, sim, o disjuntor "ou"?
quando prescreve que a denominação e o destino do produto Quer dizer, tendo fato gerador ou base de cálculo está satisfei-
da arrecadação são irrelevantes para dizer da natureza jurídi- ta a exigência constitucional? Creio que com breve interpre-
ca específica do tributo e que esta é dada pelo fato gerador, diz tação do sistema do direito positivo brasileiro, em especial, do
pouco. Pelo fato gerador, nós teríamos a hipótese de incidência sistema constitucional, verificaremos que é um simples trope-
daquele imposto predial e territorial urbano mencionado por ço do legislador. Empreendeu redação no sentido de significar
Alfredo Augusto Becker. Agora, a base de cálculo está medin- que só lhe é vedada a competência de instituir novos tributos
do outra realidade que não a de ser proprietário, ter o domínio com fato gerador e base de cálculo iguais aos impostos.
útil ou a posse de imóvel no perímetro urbano do Município.
Tal estilo interpretativo caracteriza instante delicado da
Faz-se necessária, todavia, a observação do princípio da tarefa elaborada pelo legislador constituinte, porque teve cui-
tipologia dos tributos. Dá-me o caminho para discernir os im- dado muito grande em delinear as competências da União, dos
postos dos impostos e os impostos das taxas. Esse critério tem Estados, dos Municípios, do Distrito Federal, salvaguardando
fundamento constitucional, não é mera criação doutrinária. diretrizes consagradas como intangíveis, entre elas a da Fede-
Nesse sentido, temos o art. 145, § 2 2 , da CR, onde se encontra ração. É demarcando a zona de competência da União que o
disposto: "As taxas não poderão ter base de cálculo própria de legislador constituinte decretou, digamos assim, a Federação.
impostos". Também foi em respeito ao princípio da autonomia dos Muni-
O legislador quando discerniu impostos de taxas escolheu cípios que outorgou competência para que tais pessoas políti-
como critério ter base de cálculo diferente. Em outro momen- cas de direito constitucional interno instituíssem seus tributos.
to, quando quis criar a faixa de competência residual da União, Trata-se, portanto, de momento sumamente importante da
que, por incrível que pareça, nunca foi utilizada, empregou o atividade constitucional o demarcar das competências. E foi
mesmo critério discriminador. Na verdade, a União não sabe nessa atividade delicadíssima que o legislador, intuitivamente
ou não desejou saber, até hoje, se dispunha ou não de faixa de ou não, escolheu e utilizou o mencionado critério, que põe em

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

confronto a hipótese de incidência com a base de cálculo do artigo 142 do Código Tributário Nacional, traduz uma conquis-
tributo. A prática nos mostra que se nós aceitarmos, pura e ta no campo da segurança dos administrados, em face dos
simplesmente, aquilo que o legislador diz ser o fato gerador de poderes do Estado moderno, de tal maneira que o exercício da
certo gravame, correremos o risco de ficar redondamente en- administração tributária encontra-se tolhido, em qualquer de
ganados pela singela leitura do texto. seus movimentos, pela necessidade de aderência total aos ter-
Parece-me fundamental entender, quanto ao princípio da mos específicos da lei, não podendo abrigar qualquer tipo de
tipicidade tributária, que o exercício do poder impositivo-fiscal, subjetividade própria aos atos de competência discricionária.
no Brasil, encontra-se orientado por uma série de vetores, No procedimento administrativo de gestão tributária não
voltados especialmente para organizar as relações que nesse se permite ao funcionário da Fazenda o emprego de recursos
setor se estabelecem. São os chamados "princípios constitucio- imaginativos, por mais evidente que pareça ser o comporta-
nais tributários", na maioria explícitos, e a que deve submeter- mento delituoso do sujeito passivo. Para tanto, a mesma lei
se a legislação infraconstitucional, sempre que o tema da elabo- instituidora do gravame, juntamente com outros diplomas que
ração normativa seja a instituição, administração e cobrança de regem a atividade administrativa, oferece um quadro expres-
tributos. Pois bem, entre tais comandos, em posição de indiscu- sivo de providências, com expedientes das mais variadas espé-
tível preeminência, situa-se o princípio da tipicidade tributária, cies, tudo com o escopo de possibilitar a correta fiscalização do
que se define em duas dimensões: (i) no plano legislativo, como cumprimento das obrigações e deveres estatuídos.
a estrita necessidade de que a lei adventícia traga no seu bojo,
Seguindo esta ordem de considerações, surgem como
de modo expresso e inequívoco, os elementos descritores do fato
notas características do Sistema Tributário Brasileiro a impos-
jurídico e os dados prescritores da relação obrigacional; e (ii) no
sibilidade de instituir, arrecadar e fiscalizar tributos fora dos
plano da facticidade, como exigência da estrita subsunção do
estritos limites legalmente prescritos. Com efeito, para que um
evento aos preceitos estabelecidos na regra tributária que o
sujeito seja convocado a participar de uma relação jurídica,
prevê, vinculando-se, obviamente, à adequada correspondência
tenha ela natureza tributária ou sancionatória, os seus contor-
estabelecida entre a obrigação que adveio do fato protocolar e
nos, bem como os das hipóteses que lhes antecedem logica-
a previsão genérica constante da norma abstrata, conhecida
mente, devem ser introduzidos por instrumento introdutor
como "regra-matriz de incidência".
primário. Vejamos o porquê.
Corolário inevitável da aplicação desse princípio é a ne-
cessidade de que os deveres sejam introduzidos no sistema de
direito positivo por veículos introdutores primários, com força 1.3.7.3. Princípio da anterioridade
de lei, portanto. E mais, que os agentes da Administração Pú-
O art. 150, I, veda a possibilidade de exigir-se ou aumen-
blica, no exercício de suas funções de gestão tributária, indi-
tar-se tributo sem que a lei o estabeleça (princípio da legalida-
quem, pormenorizadamente, todos os elementos do tipo nor-
de estrita), enquanto o inc. III consagra os cânones da irretro-
mativo existentes na concreção do fato que se pretende tribu-
atividade (letra a) e da anterioridade (letra b). Fixemos nossa
tar e, bem assim, dos traços jurídicos que apontam uma con-
atenção nesse último. A diretriz da anterioridade, com toda a
duta como ilícita.
força de sua presença na sistemática impositiva brasileira, é
Por outro lado, o princípio da vinculabilidade da tributa- um "limite objetivo". Sua comprovação em linguagem compe-
ção, retirado da implicitude do Texto Supremo e inserido no tente (a linguagem das provas admitidas em direito) é de uma

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simplicidade franciscana: basta exibir o documento oficial exercício financeiro. Não se trata de problema de eficácia, mas
relativo ao veículo que introduziu normas jurídicas no sistema única e exclusivamente de vigência. Na hipótese, o que ocorre
do direito positivo, com a comprovação do momento em que é a convergência de dois fatores condicionantes, que interagem
se tornou de conhecimento público, e poderemos saber, ime- provocando o deslocamento do termo inicial da vigência, de
diatamente, se houve ou não respeito ao princípio da anterio- modo que a regra jurídica que entraria em vigor quarenta e
ridade. Dessa linha de raciocínio não discrepa a legalidade. Se cinco dias depois de publicada ou na data que estabelecer
o tributo foi introduzido por ato infralegal, o que se prova com continua sem força vinculante, até que advenha o primeiro dia
facilidade, ficaremos seguros de que o princípio foi violado. do novo exercício financeiro. Isso nos autoriza a falar numa
Seu sentido experimenta inevitável acomodação no primado vigência predicada pela norma e noutra imperiosamente esta-
belecida pelo sistema. São reflexões dessa natureza que nos
da segurança jurídica, vetor axiológico do princípio da ante-
permitem entender o conteúdo do art. 104 do Código Tributá-
rioridade, de modo que o contribuinte não seja surpreendido
rio Nacional, exarado em consonância com o art. 150, III, b e c,
com exigência tributária inesperada.
da Constituição da República.
Em função de sua plasticidade, o princípio da anteriori-
dade para muitos parece amoldar-se ora como recorte da efi-
1.3.7.4. Princípio da irretroatividade da lei tributária
cácia ora como recorte da vigência. Nesse ponto, é preciso
dizer enfaticamente que a vigência das normas tributárias no Entre as limitações do poder de tributar inscreveu o cons-
tempo carrega uma particularidade que deve ser posta em tituinte de 1988 o princípio da irretroatividade (artigo 150, III,
relevo. Aquelas que instituem ou majoram tributos hão de a). Por certo que a prescrição é despicienda, visto que a diretriz
respeitar não somente o princípio da legalidade, inerente à contida no artigo 5 2 , XXXVI, da Constituição da República, é
tipicidade cerrada das figuras tributárias, como também outro portadora desse mesmo conteúdo axiológico, irradiando-se por
limite, qual seja, aquele sobranceiramente enunciado no corpo todo o universo do direito positivo, incluindo, portanto, a região
do art. 150, III, b, e que consiste na necessidade de terem sido das imposições tributárias.
publicadas antes do início do exercício financeiro em que se
A Constituição da República estabelece no artigo 5 2 , in-
pretenda cobrar a exação. É o princípio da anterioridade, que
ciso XXXVI, que "a lei não prejudicará o direito adquirido, o
comporta apenas as exceções enunciadas no § 1 2 do mesmo
ato jurídico perfeito e a coisa julgada" enquanto, de maneira
preceptivo constitucional. Ora, se bem sopesarmos a conjuga-
mais restritiva estabelece, no capítulo concernente ao sistema
ção desses dois condicionantes, legalidade e anterioridade,
tributário, que:
teremos que inferir que as normas jurídicas que decretam
tributo novo, ou nova faixa de incidência para tributo já exis-
"Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contri-
tente, ou ainda que venham a aumentá-lo, como expressão buinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal
econômica, devem sujeitar-se à resultante da combinação dos e aos Municípios:
dois limites. (...)
Não advogamos a tese de que tais normas (as que criam III — cobrar tributos:
ou aumentam tributos) entrem, efetivamente, em vigor, nas a) em relação a fatos geradores ocorridos antes do início da
datas que estipulem, deixando a eficácia jurídica dos fatos vigência da lei que os houver instituído ou aumentado;
previstos em suas hipóteses protelada até o início do próximo (...)"

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

Observe-se: o simples vedar que a lei não prejudique o administrados orientaram a direção de seus negócios. Isso
direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada já marcou decisivamente o meio jurídico e, na primeira oportu-
seriam o bastante para obstar qualquer incursão do legislador nidade, que ocorreu com a instalação da Assembléia Nacional
dos tributos pelo segmento dos fatos sociais que, por se terem Constituinte, fez empenho em consignar outra prescrição ex-
constituído cronologicamente antes da edição legal, ficariam plícita, dirigida rigorosamente para o território das pretensões
a salvo de novas obrigações. Qual o motivo do zelo constitucio- tributárias, surgindo, então, o princípio de que falamos.
nal? Ora, sabemos que o legislador das normas gerais e abs- No Brasil, não pode haver tributo sem prévia descrição
tratas, a começar por aquelas fundantes da ordem jurídica, legal, conforme dispõe o artigo 150, da Constituição de 1988,
comete seus desassisos, seja pela ausência de regras discipli-
que contém, em si, vedação à retroatividade. Impera, nos do-
nadoras, seja pela ponência de normas contrárias e contradi- mínios do direito tributário, a mesma regra do direito penal:
tórias, seja ainda pela impressão juridicamente falsa, mas
nullum crimen, nulla poena nine praevia lege.
aparentemente útil, de que, prescrevendo a mesma coisa duas
ou mais vezes, outorgará a eficácia que a regra não logrou al- Lei retroativa é aquela que rege fato ocorrido antes de
cançar na formulação singular. Se em termos dogmáticos repre- sua vigência, proibição que a Carta Magna estabelece como
senta um ledo engano, nada modificando o panorama concreto princípio geral, abrindo particularíssimas exceções para as
da regulação das condutas, pelo ângulo histórico ou sociológico hipóteses de preceitos interpretativos ou, no caso de infrações
encontraram alguns escritores a explicação do fato. e de sanções, para beneficiar o acusado. Tudo em homenagem
à estabilização e segurança das relações jurídicas, cercadas
Neste ponto, é preciso dizer, enfaticamente, que o desres-
de muitos cuidados e garantias, quando entram em jogo o
peito à coisa julgada não pode ser admitido sob pretexto algum.
patrimônio e a liberdade dos cidadãos, caso típico das exações
Mexe com a estabilidade das relações jurídicas, prerrogativa
tributárias.
inafastável de sistema que tenha um quantum de coerência
interna e que pretenda atuar, também, com aquele mínimo de
eficácia que a ordem normativa há de ter para ser reconhecida 1.3.7.4.1. A retroatividade das leis interpretativas
como tal. Desatender à coisa julgada é, em última análise,
quebrar a hierarquia do ordenamento, porque investe contra Como expressão do imperativo da segurança do direito,
a primazia do Judiciário para dizer do direito ao caso concreto; as normas jurídicas voltam-se para frente, para o porvir, para
é transgredir o princípio da exclusividade da jurisdição, con- o futuro, obviamente depois de oferecido ao conhecimento dos
duta que desarticula o sistema, comprometendo a função re- administrados seu inteiro teor, o que se dá pela publicação do
guladora que o direito se propõe cumprir com o fito de implan- texto legal. Na linha de realização desse valor supremo, estatui
tar os valores que a sociedade quer ver realizados. a Carta Magna que a lei não prejudicará o direito adquirido, o
ato jurídico perfeito e a coisa julgada. Fere a consciência jurí-
Com efeito, o enunciado normativo que protege o direito dica das nações civilizadas a idéia de que a lei possa colher
adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada, conhecido fatos "pretéritos", já consolidados e cujos efeitos se canalizaram
como "princípio da irretroatividade das leis", não vinha sendo, regularmente em consonância com as diretrizes da ordem
é bom que se reconheça, obstáculo suficientemente forte para
institucional.
impedir certas iniciativas de entidades tributantes, em especial
a União, no sentido de atingir fatos passados, já consumados Há ocasiões, entretanto, em que se concede ao legislador
no tempo, debaixo de plexos normativos segundo os quais os a possibilidade de atribuir às leis sentido retroativo. O Código

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Tributário Nacional discorre sobre o assunto, ao cristalizar, assevera Nuno Sá Gomes" 2 serem inovadoras as normas revo-
no artigo 106 e seus incisos, as hipóteses em que a lei se apli- gatórias, pois a extinção de um regime jurídico conduz à apli-
ca a fato "pretérito". Interessa-nos, nesta oportunidade, o teor cação da regra geral, ou reconduz as relações que deixaram de
do inciso I, que alude às chamadas "leis interpretativas". ser reguladas à esfera da liberdade. Implicam alteração no
Segundo tal dispositivo, assumindo a lei expressamente esse ordenamento até mesmo as leis novas que veiculem regras
caráter, pode ser aplicada a acontecimentos passados, excluin- idênticas às antes existentes, na medida em que, sendo a lei
do-se a aplicação de penalidades à infração dos dispositivos nova informada por outros princípios e tendo diverso enqua-
interpretados. dramento sistemático, haverá sentido necessariamente inova-
As leis interpretativas exibem um traço bem peculiar, na dor, devendo lembrar-se que a occasio legis, a razão de ser
medida em que não visam à criação de novas regras de condu- imediata da nova lei, é também diferente, sendo outra, por
ta para a sociedade, circunscrevendo seus objetivos ao escla- igual, a atividade da enunciação de que decorre. São também
recimento de dúvidas levantadas em razão da ambiguidades inovadoras as leis novas que, em face de uma interpretação
dos vocábulos linguísticos constantes da lei interpretada. En- uniforme e pacífica, atribuem sentido diferente à lei antiga ou,
caradas sob esse ângulo, despem-se da natureza inovadora que ainda, embora sendo controvertida a interpretação daquela,
acompanha a atividade legislativa, retrotraindo ao início da orientam o acolhimento de uma solução inteiramente nova, que
vigência da lei interpretada, explicando com fórmulas elucida- exorbita da controvérsia sobre o respectivo sentido.
tivas sua mensagem antes obscura. Tem-se por interpretativas apenas as leis que objetivam
As leis tributárias ditas "interpretativas", assim como fixar a significação de norma jurídica que suscite dúvidas no
qualquer outra lei que pretensamente assuma esse caráter, seu sentido e alcance ou que possa vir a suscitá-las. Apresenta-
devem ser examinadas com particular cautela. Não pode o se como pressuposto da lei interpretativa, portanto, a existên-
legislador, sob o pretexto de esclarecer pontos obscuros de uma cia de incerteza sobre o significado normativo do preceito in-
lei ou de revelar seu verdadeiro sentido, utilizar-se de outros terpretado, incerteza esta que decorre da possibilidade de in-
diplomas, supostamente interpretativos, para estabelecer aos terpretações variadas, as quais se pretende uniformizar por
destinatários os rigores de uma retroatividade ilimitada. meio do preceito interpretativo. Procura-se, pois, com essa
Inicialmente, cumpre distinguir lei interpretativa de lei espécie de procedimento legislativo, resolver problema de
inovadora. As leis interpretativas, como já anotei, circuns- certeza e de igualdade na aplicação da lei.
crevem seus objetivos ao esclarecimento de dúvidas. A qua- Muitas vezes, porém, não obstante as leis ou dispositivos
se totalidade das legislações, todavia, mostra-se inovadora, legais sejam denominados "interpretativos", acabam por inovar
introduzindo alterações nas regras prescritivas de condutas. as regras supostamente interpretadas, modificando-lhes as
A dificuldade de se produzir norma que nada altere no or- disposições. Isso acontece, por exemplo, quando a interpreta-
denamento é tão acentuada que torna quase impossível ção da lei antiga é pacífica, ou quando, existente a controvérsia,
identificar-se preceito exclusivamente interpretativo, signi- venha a nova legislação indicar uma solução que jamais foi
ficando mera declaração do sentido e alcance de preceito já admitida em face do regramento pretérito. Reitero, portanto,
existente.
Examinando o rol de possíveis alterações legislativas para,
a partir delas, identificar os caracteres da lei interpretativa, 112. Manual de direito fiscal, v. II, Lisboa, Rei dos Livros, 1997, p. 333.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

que somente quando verificar-se o escopo de elucidar os termos garantia individuais do estatuto político, a lei interpretativa há
de dispositivo legal cujo conteúdo gere controvérsia, pode falar- de ser limitada à sua função específica de esclarecer e suprir
se em natureza interpretativa da norma. Ainda assim, é preci- o que foi legislado, sem introduzir novo significado, mais one-
so ter cuidado com a significação conferida por esse veículo, roso para o cidadão. Lei que interpreta outra há de ser retro-
que não pode distanciar-se do foco das dúvidas existentes, quer ativa apenas se destinada a eliminar as obscuridades e ambi-
dizer, é-lhe vedado alterar entendimentos já consolidados, guidades. Não se admite, contudo, que lei falsamente interpre-
restringir ou ampliar direitos. tativa retroaja, atingindo situações consolidadas. Verificando-
se a criação de qualquer espécie de obrigação, dever ou ônus,
Existe forte corrente doutrinária que rejeita, terminante-
a legislação é tida por inovadora, alcançando somente os acon-
mente, a atribuição de caráter retroativo às leis interpretativas.
113 tecimentos futuros.
Esse é o posicionamento adotado por Carlos Maximiliano ,
para quem a chamada "interpretação autêntica", emanada do Pelo que se expôs, fica evidente a circunstância de que, a
próprio poder que produziu o ato interpretado, pretendendo despeito do disposto no artigo 106, I, do Código Tributário
aclarar seu sentido e alcance, só se aplica aos casos futuros: Nacional, não basta que a lei seja expressamente interpretativa:
não vigora desde a data do ato interpretado, uma vez que deve é preciso que esta se caracterize, materialmente, como inter-
respeitar os direitos adquiridos em consequência do entendi- pretativa, objetivando tão-somente esclarecer controvérsias
existentes, sem que isso implique restrição a direitos e garan-
mento conferido, até então, pelo órgão aplicador (Judiciário ou
tias constitucionais conferidos aos destinatários.
Executivo). Semelhante é o posicionamento do Ministro Carlos
Mário da Silva Velloso" 4 , manifestando que:
1.3.7.4.2. Aplicação prospectiva de conteúdos decisórios e
"Nos sistemas constitucionais como o nosso, em que a regra modulação de efeitos em decisão de (in) constitu-
da irretroatividade situa-se em nível constitucional e não cionalidade: Integração entre o sobreprincípio da
apenas de lei ordinária, impossível falar-se em lei interpre- Segurança Jurídica e a retroatividade das leis
tativa. Admiti-la, seria permitir ao legislador ordinário, a
tributárias
pretexto de estabelecer regra de interpretação da lei, a
pretexto de fornecer a interpretação autêntica da lei, fazê-
la retroagir."
A introdução de dois novos dispositivos de lei, no ano de
1999, respectivamente art. 27 da lei 9.868/99 e art. 11 da lei
9.882/99 deu a luz a novos debates sobre matérias de extrema
Com maior razão, sendo a lei inovadora, não há que falar
na produção de efeitos retroativos. No ordenamento brasileiro, relevância: a modulação de efeitos em decisão de (in) constitu-
cionalidade. Hoje, nos tribunais superiores, admite-se em be-
em que a irretroatividade da lei em relação às situações jurí-
nefício do interesse público e em situação excepcional, isto é,
dicas definitivamente constituídas assume caráter de direito e
nas hipóteses em que a declaração de nulidade, com seus nor-
mais efeitos ex tunc, resultaria em grave ameaça a todo o sis-
tema legislativo vigente, atribuir efeito pro futuro à declaração
113. Hermenêutica e aplicação do direito, 9a ed., Rio de Janeiro, Forense,
1979, p. 87. incidental de inconstitucionalidade. A referida inovação con-
114."Irretroatividade da lei tributária - Irretroatividade e anterioridade - Im-
duziu nossas consciências, de maneira vertiginosa, ao questio-
posto de renda e empréstimo compulsório", in Revista de Direito Tributário namento de princípios fundamentais. Aquilo que há de mais
n. 45, p. 85. caro para a dignidade de um sistema de direito positivo está

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

sendo posto em tela de juízo, desafiando nosso espírito e esti- e transparentes que, em conjugação elementar com outras
mulando nossas inteligências, ao reivindicar uma tomada de providências, tivessem o condão de esquematizar uma orga-
posição firme e contundente. Chegando-se a esse ponto, não nização operativa e eficiente.
cabem mais tergiversações e os expedientes retóricos somente O sistema que temos foi forjado na prática das nossas
serão admitidos para fundamentar a decisão de manter a se- instituições, nasceu e cresceu entre as alternâncias de uma
gurança jurídica, garantindo a estabilidade das relações já história política agitada, irrequieta, no meio de incertezas eco-
reconhecidas pelo direito, ou de anunciar, em alto e bom som, nômicas internas e externas. Sua fisionomia é a do Brasil dos
que chegou o reino da incerteza, que o ordenamento vigente nossos tempos, com suas dificuldades, suas limitações, mas
já não assegura, com seriedade, o teor de suas diretrizes, que as também com suas grandezas e, para que não dizer, com a sur-
pomposas manifestações dos tribunais superiores devem ser preendente vitalidade de um país jovem, que marca, incisiva-
recebidas com reservas, porque, a qualquer momento, podem mente, sua presença no concerto das nações.
ser revistas, desmanchando-se as orientações jurídicas até então
vigentes, sem outras garantias para os jurisdicionados. Tenho para mim que tais lembranças devem ser consig-
nadas, no momento mesmo em que entra em jogo a própria
Trata-se de pura idealização pensar na possibilidade de manutenção da integridade sistêmica do Estado brasileiro.
funcionamento de um subsistema social qualquer sem a boa Vivemos o processo de uma decisão significativa e importante.
integração dos demais subsistemas que formam o tecido social E a melhor contribuição que o jurista poderia oferecer está na
pleno. Não cabe cogitar da implantação de um primoroso mo- manifestação axiologicamente neutra (na medida do possível)
delo econômico, por exemplo, sem a sustentação das estruturas a respeito do quanto percebe existir no trato com o real. Se a
políticas e jurídicas que com ele se implicam. As virtudes da pretensão é alterar, efetivamente, a modulação dos efeitos das
Constituição de 1988, que são muitas, fizeram imaginar um decisões em controle de (in) constitucionalidade, assunto de-
Brasil avançado e democrático, em que os direitos e garantias licado que pode abalar em seus fundamentos a organização
dos cidadãos se multiplicariam em várias direções. Mas bastou jurídica nacional, requer-se domínio técnico e conhecimento
a prática dos primeiros anos para nos fazer ver que as previsões especializado sobre a matéria.
da Carta Suprema não se concretizariam sem o suporte de um
Eis um ponto de real interesse, que envolve diretamente
judiciário digno de suas decisões.
o bom funcionamento das instituições, garantindo, no domínio
O sistema jurídico brasileiro surgiu no âmago desse pro- do direito tributário, o contribuinte e o próprio Estado-admi-
cesso empírico onde o direito aparece e comparece como au- nistração contra excessos que a Carta Magna esteve longe de
têntico produto da cultura, acumulando-se no seu historicismo conceber e de autorizar. Por que não aproveitarmos o ensejo
para projetar o entusiasmo de uma sociedade que olha para o para estabelecer os limites que estão faltando? Por que não
futuro e pretende vivê-lo com a consciência de suas conquistas emendarmos a Constituição em trechos como esse, atendendo
e com a força do seu espírito. às reivindicações dos especialistas, para aperfeiçoar um siste-
ma que vem sendo construído como a projeção do sentimento
Sua configuração jurídica reflete bem a complexidade
histórico da sociedade brasileira?
das instituições básicas de um Estado igualmente complexo.
Seriá até ingenuidade supor que num sistema em que convi- O Direito é senhor do tempo, frase difundida nos textos mais
vem pessoas dotadas de autonomia legislativa, financeira, conhecidos de Filosofia e de Teoria Geral. Seja para estipular,
administrativa e política, pudessem existir diretrizes simples reduzir ou ampliar a eficácia da disciplina dos comportamentos

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

intersubjetivos, o legislador, no seu sentido mais amplo (o do declaração de inconstitucionalidade pode dar-se a qualquer
Poder Legislativo, o do Judiciário, o do Executivo ou o do Setor tempo, ou seja, o direito de ação não preclui, passou-se a ob-
Privado), isto é, todas aquelas que, investidas de competência servar que a aplicação da pena de nulidade, como regra, pre-
pela ordem jurídica em vigor, têm a prerrogativa de fazer in- judicaria não somente a certeza do direito, mas também e
serir normas no sistema, tanto as gerais e abstratas, como as principalmente o próprio direito, enquanto sistema prescritivo
individuais e concretas ou as individuais e abstratas, o legisla- de condutas, uma vez que toda norma goza da presunção de
dor, repita-se, está devidamente credenciado a manipular o constitucionalidade até ser expulsa do sistema. A providência
tempo tendo em vista a configuração dos projetos regulatórios ensejaria clima de instabilidade, depreciando o sentimento de
que bem lhe aprouver. certeza das mensagens normativas, um dos pilares de susten-
tação da ordem jurídico-positiva.
Alarga o intervalo temporal que ele mesmo estabelece
quando prescreve, como no caso da decadência tributária, que Foi na extensão desta medida, para atender a situações
o prazo é de 5 (cinco) anos, por exemplo, mas que o termo ini- peculiares e excepcionais, que a anulabilidade de norma in-
cial de contagem é o primeiro dia do exercício seguinte àquele constitucional com a modulação de seus efeitos surgiu como
em que a Fazenda poderia ter celebrado o ato de lançamento. i mportante instrumento para salvaguardar o princípio da Su-
Pode reduzi-lo, assim como opera com o prazo de prescrição premacia da Constituição e outros valores fundamentais como
(também de cinco anos), fixando o termo inicial, contudo, para o primado da Segurança jurídica.
a data em que o contribuinte tiver ciência da pretensão tribu- Nesse contexto, foram promulgadas em 1.999 duas Leis
tária, conquanto a Fazenda não tenha ainda manifestado inér- ordinárias - a Lei n. 9.868/99 e a Lei n. 9.882/99 -, anunciando,
cia como titular do direito de ação, ao menos no que diz res- entre seus preceitos, dois dispositivos da maior relevância, que
peito aos primeiros trinta dias do ato notificatório. Em outros inovaram o tema da modulação dos efeitos no ordenamento
casos, faz retroagir a norma aplicável, para atender a motivos jurídico brasileiro. Vejamos:
que julga satisfazer aos ideais de justiça. O Presidente da Re-
pública, mediante decreto, instaura o "horário de verão", Art. 27, da Lei n. 9.868/99. Ao declarar a inconstitucionali-
mexendo nos ponteiros do relógio, para adiantá-los por uma dade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de
segurança jurídica ou de excepcional interesse social,
hora. Os particulares, no domínio de suas possibilidades jurí-
poderá, o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois
dico-contratuais, dispõem como bem lhes parece acerca do
terços de seus membros, restringir os efeitos daquela decla-
tempo das prestações firmadas. E o Poder Judiciário, dizendo ração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu
o direito aos casos concretos, institui o lapso temporal que trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser
melhor consultar à realização do que entende por justo. É fixado. (Grifo posterior).
nesse sentido que se diz, metaforicamente, que o Direito é se- Art. 11, da Lei n. 9.882/99. Ao declarar a inconstitucionali-
nhor do tempo. dade de lei ou ato normativo, no processo de arguição de
descumprimento de preceito fundamental, e tendo em vista
Demoremo-nos um pouco no tópico da modulação de razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse
efeitos. Tratando-se de controle concentrado, em ações obje- social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de
tivas , de inconstitucionalidade, como princípio geral, declarava- dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela
se a 'nulidade da norma, revogando o enunciado em termos declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de
retrospectivos, isto é, ipserjuri ab initio, o que significa atribuir seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a
efeitos ex tunc ao ato decisório. Estabelecido, porém, que a ser fixado. (Grifo posterior).

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

Diante dos textos de Lei acima referidos, a Suprema Cor- "A Constituição de 1988 instituiu o concurso público como
te passou a decidir sobre os efeitos da declaração de inconsti- forma de acesso aos cargos públicos. CF, art. 37, II. Pedido de
tucionalidade segundo dois critérios subjetivos: (i) a Seguran- desconstituição de ato administrativo que deferiu, mediante
ça jurídica e (ii) o excepcional interesse social, buscando, concurso interno, a progressão de servidores públicos. Acon-
dessa maneira, temperar os efeitos negativos da modificação tece que, à época dos fatos 1987 a 1992 -, o entendimento a
-

respeito do tema não era pacífico, certo que, apenas em


de situações jurídicas já consolidadas no âmbito social. Isso
17/02/1993, é que o Supremo Tribunal Federal suspendeu, com
nos permite enunciar a proposição pela qual foi sobre o fun-
efeito ex nunc, a eficácia do art. 8a, III, art. 10, parágrafo
damento desses Diplomas normativos e na linha do que pro- único; art. 13, § 4" art. 17 e art. 33,1Y da Lei 8.112, de 1990,
clama o art. 102 da Constituição da República - atributivo ao dispositivos esses que foram declarados inconstitucionais em
STF, da guarda da Constituição - que o Colendo Superior Tri- 27-08-1998: ADI 837 DF, relator o Ministro Moreira Alves, DJ
bunal encontrou os supedâneos que lhe permitem restringir de 25-6-1999. O princípio da boa fé e da segurança jurídi-
os efeitos da declaração de inconstitucionalidade, consoante ca autorizam a adoção do efeito ex nunc para a decisão
seus próprios critérios decisórios, operando sempre em nome que decreta a inconstitucionalidade. Ademais, os prejuízos
que adviriam para a Administração seriam maiores que
do elevado princípio da Segurança jurídica e do excepcional
eventuais vantagens do desfazimento dos atos administrati-
interesse social. O asserto pode ser confirmado nos julgados
vos." (Grifos nossos)" 4-B .
que abaixo coligimos:

RECURSO EXTRAORDINÁRIO. MUNICÍPIOS. CÂMARA DE Consoante se vê nos exemplos acima, que ilustram o po-
VEREADORES. COMPOSIÇÃO. AUTONOMIA MUNICIPAL. sicionamento do Supremo Tribunal Federal, a introdução dos
LIMITES CONSTITUCIONAIS. NÚMERO DE VEREADORES supramencionados dispositivos, em 1999, atribuiu àquela Cor-
PROPORCIONAL À POPULAÇÃO. CF; ARTIGO 29, IV APLI- te competência para conceder pena de anulabilidade às deci-
CAÇÃO DE CRITÉRIO ARITMÉTICO RÍGIDO. INVOCAÇÃO sões que declaram inconstitucional determinada norma, pos-
DOS PRINCÍPIOS DA ISONOMIA E DA RAZOABILIDADE.
sibilitando a estipulação de efeitos ex nunc e pro futuro, a fim
INCOMPATIBILIDADE ENTRES POPULAÇÃO E O NÚME-
RO DE VEREADORES. INCONSTITUCIONALIDADE INCI- de resguardar as relações jurídicas que se firmarem sob o
DENTER TANTUM DA NORMA MUNICIPAL. EFEITOS manto da norma posteriormente tida por inconstitucional.
PARA O FUTURO. SITUAÇÃO EXCEPCIONAL. Lembremos: tudo em homenagem ao princípio da segurança
(...)
jurídica e ao excepcional interesse social.
7. Efeitos. Princípio da segurança jurídica. Situação ex- O Ministro Leitão de Abreu, em acórdão de que foi relator,
cepcional em que a declaração de nulidade, com seus em maio de 1977, já inscrevia palavras que se acomodam bem
normais efeitos ex tunc, resultaria em grave ameaça a
todo o sistema legislativo vigente. Prevalência do inte-
ao assunto que faz aqui nossos cuidados. Asseverou: A tutela
resse público para assegurar, em caráter de exceção, da boa fé exige que, em determinadas circunstâncias, notada-
efeitos pro futuro à declaração incidental de inconstitu- mente quando, sob a lei declarada inconstitucional, se estabele-
cionalidade. Recurso extraordinário conhecido e, em parte, ceram relações entre o particular e o poder público, se apure,
2,114 A
provido. (Grifos nossos); e prudencialmente, até que ponto a retroatividade da decisão, que

114-A. STF, RE 273.844/SP, Rel. Min. Maurício Correa, Pleno, DJ 21.05.2004, 114-B. STF, RE 442.683, Rel. Min. Carlos Velloso, julgamento em 13.12.05,
p. 34 DJ de 24.4.06.

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decreta a inconstitucionalidade, pode atingir, prejudicando-o, o Disse-o com muita propriedade o Professor Cândido
agente que teve por legítimo o ato e, fundado nele, operou na Rangel Dinamarco, traçando o paralelo entre a retroatividade
presunção de que estava procedendo sob o amparo do direito legislativa e a judiciária:
objetivo.
Para elas (empresas) o impacto de uma tal mudança juris-
É invocando os mesmos critérios subjetivos - Segurança prudencial seria em tudo e por tudo equivalente ao impacto
jurídica e excepcional interesse social - que se pretende pro- que sobre suas respectivas esferas de direitos produziria uma
teger, hoje, as relações jurídicas formuladas em vista do or- alteração legislativa.
denamento tributário vigente, resguardando-se todas as si-
tuações jurídicas já firmadas pelos contribuintes que, de boa Qual diferença haveria entre a retroatividade dessa mudan-
fé, acreditaram naquilo que já dispunha a lei e, com base nela, ça jurisprudencial e a lei nova?
consolidaram suas relações de direito. Ora, de ver está que
não seria justo surpreender aqueles jurisdicionados que se-
Mas, como me parece que ficou bastante claro, o que aqui
guiram as diretrizes vigentes ao tempo da lei, agravado pelas repudio é outra coisa, a saber: a abrupta imposição de uma
sanções da ilicitude, precisamente quando da mudança de nova jurisprudência, em um tema de tanta repercussão na
entendimento jurisprudencial, pela nova orientação deste vida e higidez das empresas, sem levar em conta todas aque-
Egrégio Tribunal. las situações criadas e consumadas diante da expectativa
criada pelo próprio Poder Judiciário.
Lembremos que nosso ordenamento positivo rejeita com
força e veemência a retroação das normas jurídicas para atin- Ora, em si mesmo o expresso veto constitucional à retroati-
vidade das leis (Constituição, art. 5 4, inc. XXXVI) comporta
gir situações consolidadas no tempo. As exceções são pouquís-
fácil extensão analógica capaz de produzir sua imposição à
simas e literalmente consignadas. Certo que as disposições
jurisprudência nova, que não deverá atingir situações pre-
fazem referência ao direito posto pelo Poder Legislativo, pelas téritas, já consumadas sob a égide da antiga c.
114-

leis complementares, delegadas, ordinárias, medidas provisó-


rias, decretos legislativos e resoluções. Todavia, esses são ins-
A verdade é que não há disciplina expressa sobre a veda-
trumentos introdutores de normas emanados por aquele Poder
ção do uso retroativo da jurisprudência, no que concerne ao
da República. A rejeição é a mesma quando se tratar de normas
controle difuso de constitucionalidade. A construção vem nas-
postas por decretos do Chefe do Executivo, por instruções
cendo e se ampliando com supedâneo na própria experiência
ministeriais, por portarias, etc., unidades normativas exaradas
jurídica do dia-a-dia. Mesmo antes da vigência da Lei n. 9.868/99,
pelo Poder Administrativo. E, da mesma forma, aplica-se ao
Poder Judiciário, foco ejetor de normas preponderantemente o Ministro Gilmar Ferreira Mendes já se manifestava favora-
individuais e concretas, se bem que haja muitas individuais e velmente ao que veio representar o conteúdo do art. 27 daque-
abstratas (servidão de passagem, por exemplo) e até gerais e le Estatuto. E, como fez anotar o Professor Cândido Rangel
abstratas, como os Regimentos, votados e aprovados pelos Dinamarco, naquele mesmo parecer: Uma pesquisa revela que
Ministros que compõem a Corte. Quando o assunto gira em ao menos dez entre os onze Ministros da Corte já se manifestaram
torno de normas jurídicas, nosso pensamento se projeta, desde
logo, pára o Legislativo, mas é um equívoco pensar que os
demais Poderes não editem regras jurídicas (aqui empregada 114-C. Parecer produzido em 09 de maio de 2005 e publicado em volume
a expressão como equivalente nominal de normas). conjunto pela Editora Manole Ltda.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

nesse sentido, o que mostra que a tese não é sequer tão inovado- É em vista de todo o exposto que entendo cumprirem
ra quanto à primeira vista me pareceu,... papel de grande relevância no subdomínio das significações
dos enunciados as sentenças prescritivas implícitas, compostas,
De fato, a modulação dos efeitos em benefício da Segu-
por derivação lógica, de formulações expressas do direito po-
rança jurídica já é tema conhecido da Suprema Corte que,
sitivo, onde se encontram tanto o magno princípio da seguran-
apreciando matéria referente à fidelidade partidária, mani-
ça jurídica quanto o limite objetivo da irretroatividade. E é
festou-se de forma peremptória pela possibilidade de conces- justamente mediante estes valores que o direito adquire a
são de efeitos ex nunc diante de hipótese de mudança subs-
possibilidade de estabelecer expectativas de comportamento
tancial da jurisprudência assentada sobre o assunto. Eis um e de torná-las efetivas ao longo do tempo, impedindo-se com
fragmento: isso que o próprio ordenamento jurídico assuma feição caótica.
Com alicerce nestes primados, o direito ganha a condição de
"Diante da mudança substancial da jurisprudência da Corte apresentar-se como sistema de proposições articuladas, pron-
acerca do tema, que vinha sendo no sentido da inaplicabili-
to para realizar as diretrizes supremas que a sociedade ideali-
dade do princípio da fidelidade partidária aos parlamentares
empossados, e atento ao princípio da segurança jurídica, za. Com base nestes ideais que a Carta Magna do Estado
reputou-se necessário estabelecer um marco temporal a deli- Brasileiro, em seus artigos 5Q, XXXVI, e 150, III, "a" da CF/88,
mitar o início da eficácia do pronunciamento da matéria em constrói e autentica o sentimento de previsibilidade quanto
exame.'" 14- D ( Grifos nossos) aos efeitos jurídicos da regulação da conduta.
A jurisprudência, como se viu, ao seu jeito, vai construin-
Com efeito, as turmas estão vinculadas à declaração de do o sentido que lhe parece ser o mais justo, refletindo a in-
constitucionalidade do plenário a partir de sua publicação, constância dos relacionamentos sociais, enquanto a doutrina
consoante os termos há muito assentados neste C. Tribunal: acompanha esse processo de configuração, procurando encon-
trar o perfil de uma outorga de competência que o legislador
"I - Controle incidente de Constitucionalidade: vínculo constituinte não adscreveu de maneira expressa. Enquanto
das turmas do STF à precedente declaração plenária da
doutrinador, renovo a posição segundo a qual, abaixo da justi-
constitucionalidade ou inconstitucionalidade de lei ou
ato normativo, salvo proposta de revisão de qualquer dos
ça, o ideal maior do direito é a segurança jurídica, sobreprin-
Ministros (RISTF, arts. 101 e 103). cípio que se irradia por todo o ordenamento e tem sua concre-
II - Contribuição social sobre o lucro: L 7.689/88: constitucio- tização viabilizada por meio de outros princípios, tal como o
nalidade, com exceção do art. 8 a, declarada pelo plenário da irretroatividade das leis. Com ela não se compatibiliza dis-
(RREE 146.733, M. Alves, e 138.284, Velloso), que é de aplicar- positivo que, além de determinar ao Judiciário que este modi-
se ao caso, afilha de novos argumentos de relevo. "114-E ( Grifos fique orientação pacificada, pretende ser aplicado retroativa-
nossos) mente. Qualquer violação a essas diretrizes supremas compro-
mete, irremediavelmente, a realização do princípio implícito
da certeza, como previsibilidade, e, ainda, o grande postulado,
114-D. STF, MS 26.602, Rel. Min. Eros Grau, MS 26.603, Rel. Min. Celso de também inexpresso, da segurança jurídica.
Mello, MS 26.604, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgamento em 04.10.07, Infor-
mativo 482. Em face do exposto, fica claro ser o direito o senhor do
114-E. STF, AgRgAI 160174-5, la. turma, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ seu tempo, controlando a bidirecionalidade passado/futuro das
17.02.1995. relações jurídicas que ele mesmo prescreve, fundando o clima
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

de segurança que o sistema exige de si mesmo como condição Fica a pergunta: a não-cumulatividade é um valor cons-
para a sua própria existência, motivo por que dissemos que o titucional ou um limite objetivo que se quer cumprido por todos
sobreprincipio da segurança jurídica depende de fatores sistê- os sujeitos envolvidos na atividade de implantação do sistema
micos. A irretroatividade é o primado que se ocupa do passado; tributário nacional? A resposta pressupõe a consideração do
enquanto que, para o futuro, muitos são os expedientes princi- signo "princípio", distinguindo-o como "valor" ou como "limi-
piológicos necessários para que se possa falar na efetividade do te objetivo", o que já foi feito acima num passo decisivo de
primado da segurança jurídica, como já vimos anteriormente. i mportantes efeitos práticos.
A modulação dos efeitos em benefício da segurança jurí- Resumidamente, os "limites objetivos" distinguem-se dos
dica é tema conhecido pela Suprema Corte que se manifestara, valores pois são postos para atingir certas metas, certos fins.
já em 1977, pela possibilidade de concessão de efeitos ex nunc Estes, sim, assumem o porte de valores. Aqueles limites não
são valores, se os considerarmos em si mesmos, mas voltam-se
diante de hipótese de mudança substancial da jurisprudência
para realizar valores de forma indireta, mediata.
assentada sobre o assunto. Ora, de ver está, não seria justo
surpreender aqueles jurisdicionados que seguiram as diretrizes O princípio da não-cumulatividade dista de ser um valor.
vigentes ao tempo da lei, agravado pelas sanções da ilicitude, É um "limite objetivo", mas que se verte, mediatamente, à
precisamente quando da mudança de entendimento jurispru- realização de certos valores, como o da justiça da tributação,
dencial, pela nova orientação deste Egrégio Tribunal. o do respeito à capacidade contributiva do administrado, o da
uniformidade na distribuição da carga tributária, etc.
De fato, não há disciplina expressa sobre a vedação do
uso retroativo da jurisprudência, no que concerne ao controle Apresenta-se como técnica que opera sobre o conjunto
difuso de constitucionalidade. No entanto, em vista das sen- das operações econômicas entre os vários setores da vida social,
tenças prescritivas implícitas, compostas, por derivação lógica, para que o impacto da percussão tributária não provoque cer-
tas distorções já conhecidas pela experiência histórica, como
de formulações expressas do direito positivo, onde se encon-
a tributação em cascata, com efeitos danosos na apuração dos
tram tanto o magno princípio da segurança jurídica quanto o
preços e crescimento estimulado na aceleração inflacionária.
limite objetivo da irretroatividade, o direito adquire a possibi-
E entre as possibilidades de disciplina jurídica neutralizadoras
lidade de estabelecer expectativas de comportamento e de
daqueles desvios de natureza econômica, nosso constituinte
torná-las efetivas ao longo do tempo, impedindo-se com isso
adotou determinado caminho, mediante a estipulação de um
que o próprio ordenamento jurídico assuma feição caótica.
verdadeiro limite objetivo.

1.3.7.5. Princípio da não cumulatividade


-
1.3.7.5.1. A norma decorrente do regime jurídico da não-
cumulatividade
A Constituição da República de 1988, cuidando da insti-
tuição do IPI e do ICMS, prescreveu que ambos seriam não- 116
Rubens Gomes de Sousa afirmou que "impostos diretos
cumulativos, compensando-se o que for devido em cada ope- seriam os suportados em definitivo pelo contribuinte obrigado
ração com o montante cobrado nas anterioresn 5 .

116. Compêndio de legislação tributária, São Paulo, Resenha Tributária,


115. IPI: art. 153, § 3Q, II; ICMS: art. 155, § 2 4 , 1. 1975, p. 170.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

por lei ao seu pagamento", ao passo que os indiretos configu- fato irrelevante para o direito tributário, uma vez que tal pessoa
rariam os que não figurava na relação jurídica do tributo, mas tão-só no vín-
culo econômico.
"são ou podem ser transferidos por aquele contribuinte para
O problema, contudo, não é tão simples quanto parece,
outra pessoa que por sua vez os transferirá ou suportará
em definitivo; por isso se diz que no imposto indireto há pois, não obstante seja correto afirmar que o contribuinte de
dois contribuintes, o de direito (a pessoa obrigada por lei fato não compõe a relação jurídica do imposto, este não chega
ao pagamento) e o de fato (a pessoa que arcará em defini- a perder a relevância para o direito tributário, porquanto par-
tivo com o ônus do imposto). Essa transferência do ônus ticipa de outra relação jurídica específica, importantíssima para
fiscal de uma pessoa para outra se chama repercussão ou a concretização do primado constitucional da não-cumulativi-
translação do imposto".
dade: a relação jurídica dentro da qual surge o direito ao crédi-
to do contribuinte em face da Fazenda Pública.
Vê-se que se tratava de perfil mais econômico do que
Neste sentido, observado o princípio da não-cumulativi-
jurídico, certamente pela influência desagregadora que a Ci-
dade, veremos que, na incidência tributária dos impostos
ência das Finanças provocava no desenvolvimento do raciocí-
"indiretos", não se trata de apenas uma regra-matriz, porquanto
nio jurídico. É, não resta dúvida, um ângulo de consideração
dois foram os cortes conceptuais promovidos no mesmo supor-
do fenômeno. Outro será, entretanto, o jurídico, complementar
te fáctico, como duas foram as relações jurídicas, e consequen-
ao primeiro e a todos os demais, na descritividade das altera-
temente a atuação de dois sujeitos de direito diferentes, que se
ções por que passam as relações sociais, com a percussão das
propagam pela ocorrência dos respectivos acontecimentos: a
regras do direito na plataforma das condutas intersubjetivas.
obrigação tributária e o vínculo no bojo do qual emergiu o di-
O próprio Rubens Gomes de Sousa, com a sensibilidade reito ao reembolso (direito ao crédito).
que fez dele o grande sistematizador do direito tributário bra- Elucidando por meio de exemplos, observa-se que,
sileiro, assinala que tal proposta classificatória, elaborada pela numa única ocorrência do mundo físico-social (venda de
Ciência das Finanças a partir da observação do mecanismo da mercadorias ou prestação de serviços de transporte interes-
repercussão do imposto, foi muito criticada por apresentar tadual e intermunicipal ou de comunicação), abriu-se espa-
critério distintivo haurido nos confins da economia 117 . ço para o impacto de duas normas jurídicas distintas: a da
Esse e outros indicadores fizeram com que a doutrina re- regra-matriz de incidência do ICMS e a da regra que estipula
formadora, conduzida por Alfredo Augusto Becker, buscasse o direito ao reembolso pelo valor do imposto pago nas opera-
definir critérios mais seguros entre os dois subsistemas sociais, ções realizadas.
para que os institutos jurídico-tributários pudessem ser isolados Tal se dá também com o IPI. A relação jurídica tributária
com firmeza, a partir de instrumentos de trabalho que perten- do crédito de IPI nasce como eficácia do fato da aquisição de
cessem exclusivamente ao direito. E foi caminhando nessa insumos pelo contribuinte, antes que se inicie o processo de
trajetória que se demonstrou ser o conceito de contribuinte de industrialização que, por sua vez, dará ensejo ao fato jurídico
tributário do IPI, antecedente da norma jurídica que estabele-
ce a relação obrigacional tributária. Tudo na forma de duas
117. Geraldo Ataliba, Hipótese de incidência tributária, São Paulo, Malheiros, previsões normativas entrelaçando-se, harmonicamente, na
1992, p. 126. trama prescritiva daquela figura de tributo.

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Quero reiterar, portanto, que há u'a norma juridicizan- titularidade de bens móveis com características de durabilida-
do as aquisições de que necessita o contribuinte para desen- de, nos quais a incidência acontece periodicamente, caindo de
cadear o processo de industrialização, regra que prescreve maneira sistemática para suscitar novas relações tributárias.
em seu consequente o direito de crédito do comprador pe- Exemplo do primeiro caso é o imposto predial e territorial
rante o Poder Público Federal, no montante do valor pago a urbano, da competência dos Municípios, bem como o imposto
título de IPI. territorial rural, do âmbito da União. Modelo do segundo é o
i mposto sobre veículos automotores, da esfera dos Estados e
Penso que o desprestígio do contribuinte de fato, a ponto
de chegar a ser tido por irrelevante para o direito tributário, do Distrito Federal. De evidência, qualquer excesso impositivo
originou-se pela generalização indevida dessa categoria, toma- acarretará em cada um de nós a sensação de confisco.
da a partir do consumidor final. Este, sim, nada representa na Já com os bens de consumo, cujo gravame se incorpora
fenomenologia jurídica dos tributos, a despeito de ocupar no preço, permite-se cogitar de taxações altíssimas, sem que
posição importante no quadro social, político e econômico da se alvitre sombras de efeitos confiscatórios. É o caso do IPI e
incidência tributária. dos impostos que oneram o mercado exterior. Também o ICMS
Lembremo-nos, porém, que nem todo contribuinte de fato prestar-se-ia a manifestações desse tipo, sem falar nos proble-
é consumidor final. Outros há cumprindo papel decisivo na mas paralelos que o expediente desencadearia no campo eco-
implantação dos tributos sotopostos ao princípio constitucional nômico, desdobrados que estão do quadro objetal de nossas
da não-cumulatividade. especulações. E só para mostrar a complexidade do assunto,
não custa lembrar que o ISS, dos Municípios, exibe com faci-
Eis a sistemática desta diretriz, fundamental na percus-
lidade o aparecimento de iniciativas confiscatórias.
são dos impostos indiretos, para resguardar os valores da
justiça da tributação, o respeito à capacidade contributiva do Também nas contribuições, a tributação com falta de
administrado e o da uniformidade na distribuição da carga moderação viola o direito de propriedade, repudiada pelo
tributária. ordenamento. Quando da imposição tributária decorrer
substancial redução do patrimônio ou da renda, estar-se-á
1.3.8. Princípio da proibição de tributo com efeito de confisco diante de verdadeiro aniquilamento do direito de proprie-
dade. Consequentemente, exagerada oneração da folha de
Aqui está outro princípio de difícil configuração. A idéia salários, da receita ou do faturamento, ou do lucro, median-
de confisco não tem em si mesma essa dificuldade. O problema te exigência de contribuições para a seguridade social, não
reside na definição do conceito, na delimitação da idéia, como fugirá da coima de inconstitucionalidade, por caracterização
limite a partir do qual incide a vedação do artigo 150, IV, da de confisco.
Constituição da República. Aquilo que para alguns tem efeitos
Enfim, o princípio que veda o confisco no âmbito tributá-
confiscatórios, para outros pode perfeitamente apresentar-se
rio encontra aplicação em todas as espécies de tributo, inclu-
como forma lídima de exigência tributária.
sive nas contribuições, as quais, reitero, apresentam indiscu-
A intuição, que sabemos ser poderoso instrumento cog- tível natureza jurídico-tributária. Considerando que a tributa-
noscitivo, indica-nos alguns casos de flagrante confisco. Como ção interfere no patrimônio dos cidadãos, subtraindo parcelas
terreno fecundo, que facilita a identificação do princípio, estão deste, é inadmissível a imposição de ônus insuportáveis, ainda
os tributos que gravam a propriedade imobiliária e mesmo a que se vise à arrecadação de recursos para fins específicos,
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como ocorre com a contribuição destinada ao custeio da segu- o fez a Constituição de 1967, este persistiria no direito brasilei-
ridade social. Também essa figura tributária deve observância ro como formulação implícita nas dobras do primado da igual-
à razoabilidade, sendo vedada sua imposição excessiva, de dade. E o estudo sistemático do direito positivo apresenta o
modo que ultrapasse os limites da capacidade contributiva dos material mais propício à reabertura do assunto, como preten-
particulares. demos demonstrar.
Ao recortar, no plano da realidade social, aqueles fatos
1.3.9. Princípio da capacidade contributiva que julga de porte adequado para fazerem nascer a obrigação
tributária, o político sai à procura de acontecimentos que sabe
Um dos temas que mais atormenta a dogmática é a dis- haverão de ser medidos segundo parâmetros econômicos, uma
cussão sobre a natureza jurídica da famosa capacidade contri- vez que o vínculo jurídico a eles atrelado deve ter como objeto
butiva, em função do que, na Constituição de 1946 e na atual uma prestação pecuniária. Em princípio, pode o legislador
Constituição de 1988 em seu artigo 145 118 , § 1 2 , as cargas tribu- prever como hipótese qualquer fato social lícito, abrangendo,
tárias haveriam de ser dosadas pelo legislador. A capacidade dessa maneira, tanto os permitidos quanto os obrigatórios. E
contributiva do sujeito passivo sempre foi o padrão de referên- será "em princípio" pois, justamente, a tarefa de eleição dos
cia básico para aferir-se o impacto da carga tributária e o cri- supostos tributários está visceralmente jungida à existência ou
tério comum dos juízos de valor sobre o cabimento e a propor- não de princípios retores da atividade impositiva do Estado,
ção do expediente impositivo. Mensurar-se a possibilidade no mais das vezes alçados a nível constitucional. É o que acon-
econômica de contribuir para o erário com o pagamento de tece no Brasil, onde toda a elaboração legislativa tributária
tributos é o grande desafio de todos os que lidam com esse deve ser condicionada ao princípio da igualdade. O emprego
delicado instrumento de satisfação dos interesses públicos, deste cânone só é viável, em termos de tributação, na exata
sendo o modo como é avaliado o grau de refinamento dos vários medida em que se considera a capacidade de contribuir de
sistemas de direito tributário. Muitos se queixam, entre nós, quem vai arcar com o gravame fiscal.
do avanço desmedido no patrimônio dos contribuintes, por
Diante desse quadro, aliás corriqueiro nos sistemas tri-
parte daqueles que legislam, sem que haja atinência aos signos
butários modernos, há necessidade premente de ater-se o le-
presuntivos de riqueza sobre os quais se projeta a iniciativa
gislador à procura de fatos que demonstrem signos de riqueza,
das autoridades tributantes, o que compromete os esquemas
pois somente assim poderá distribuir a carga tributária de modo
de justiça, de certeza e de segurança, predicados indispensáveis
uniforme e com satisfatória atinência ao princípio da igualda-
a qualquer ordenamento que se pretenda racional nas socie- de. Ter presente que, de uma ocorrência insusceptível de ava-
dades pós-modernas. liação patrimonial, jamais conseguirá extrair cifras monetárias
Vimo-nos manifestando, há muito tempo, no sentido de que traduzam, de alguma forma, um valor em dinheiro. Lem-
que, mesmo se a atual Constituição nada previsse expressa- brar-se dos exemplos clássicos que a doutrina relata, acerca
mente sobre o princípio da capacidade contributiva, tal como da tentativa de exigências fiscais fundadas no pressuposto de
um prédio ter mais ou menos janelas, ou das caricaturas ine-
rentes à tributação de pessoas físicas, em virtude da cor dos
118. O § 1 4 do art. 145 é incisivo ao determinar que os impostos serão gradu- olhos, da tez ou do tamanho do nariz. Passa, então, a derivar
ados segundo a capacidade econômica do contribuinte. seu interesse para o lado dos eventos que ostentem signos de

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riqueza, passíveis, por vários ângulos, de ser comensurados e, -jurídico) de o legislador escolher fatos que exibam conteúdo
por esse caminho, colhe a substância apropriada para satisfa- econômico. Ao fazê-lo, estará realizando esse princípio, porém,
zer os anseios do Estado, que consiste na captação de parce- não há cogitar-se, ainda, de aplicação do cânone da igualdade
las do patrimônio de seus súditos, sempre que estes partici- tributária. Este terá como pressuposto a satisfação da capaci-
parem de fatos daquela natureza. Da providência contida na dade contributiva absoluta, equivale a dizer, a presunção de
escolha de fatos presuntivos de fortuna econômica decorre a que, por participar de fatos economicamente expressivos, as
possibilidade de o legislador, subsequentemente, distribuir a pessoas estejam demonstrando condições de contribuir ao
carga tributária de maneira equitativa, estabelecendo, pro- Erário. O plano da obediência ao princípio da igualdade na
porcionadamente às dimensões do evento, o grau de contri- i mposição fiscal cingir-se-ia àquele da capacidade contributiva
buição dos que dele participaram. Daí por que Jarach tenha relativa, ou melhor, sempre que o legislador, tendo escolhido
se referido à igualdade como "condiciones iguales de capacidad para suposto de normas tributárias fatos que demonstrem
contributiva"'" e Perez de Ayala inclua tal capacidade entre "Los signos de riqueza, deva dosar igualitariamente a carga impo-
principios superiores de la imposición y la justicia fiscal""°. sitiva. Nesse estádio é que se poderá aludir à igualdade cons-
121 titucionalmente prevista, pois é de todo possível o emprego dos
Acentua Fernando Vicente-Arche Domingo , ao apreciar
instrumentos que existem à disposição do legislador (base de
o conceito de capacidade contributiva e reportando-se à ad-
cálculo, alíquota, isenções), no sentido de atender às desigual-
vertência de Giardina, que devemos distinguir a capacidade
dades sociais e mesmo individuais, na fase de instituição do
contributiva absoluta daquela relativa:
ônus tributário. E isso representa a satisfação de um dever
"La capacidad contributiva absoluta es la aptitud para jurídico e não simplesmente pré-jurídico, como acontece no
concurrir a las cargas públicas. La capacidad contributiva caso da capacidade contributiva absoluta.
relativa es el criterio que ha de orientar la determinación Podemos resumir o que dissemos em duas proposições
de la concreta carga tributaria."
afirmativas bem sintéticas: realizar o princípio pré-jurídico da
Dentre os autores que entendem relevante o estudo da capacidade contributiva absoluta ou objetiva retrata a eleição,
pela autoridade legislativa competente, de fatos que ostentem
capacidade contributiva, para a boa compreensão da proble-
signos de riqueza; por outro lado, tornar efetivo o princípio da
mática jurídico-tributária, a colocação do jurista espanhol é
capacidade contributiva relativa ou subjetiva quer expressar a
das mais férteis e coerentes.
repartição do impacto tributário, de tal modo que os partici-
Segundo seu pensamento, pode ser entendida a capaci- pantes do acontecimento contribuam de acordo com o tamanho
dade contributiva absoluta como consistindo no dever (pré- econômico do evento.
A segunda proposição, transportada para a linguagem
técnico-jurídica, significa a realização do princípio da igualda-
119.Dino Jarach, El hecho imponible, 2a ed., Buenos Aires, Abeledo Perrot,
de, previsto no art. 5 2 , caput, do Texto Supremo. Todavia, só se
p. 126.
torna exequível na exata medida em que se concretize, no
120.José Luis Perez de Ayala, Derecho tributario, Madrid, Editorial de De-
recho )y'inanciero, 1968, p. 85. plano pré-jurídico, a satisfação do princípio da capacidade
121.Fernando Vicente-Arche Domingo, Seminario de Derecho Financiero de contributiva absoluta ou objetiva, selecionando o legislador
la Universidad Complutense, org. Femando Sainz De Bujanda, Madrid, 1967, ocorrências que demonstrem fecundidade econômica, pois,
p. 190. apenas desse modo, terá ele meios de dimensioná-las, extraindo
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a parcela pecuniária que constituirá a prestação devida pelo Ainda que nos pareça interessante a visão dicotômica de
sujeito passivo, guardadas as proporções do acontecimento. Arche-Domingo, bem como a argumentação envolvente e sutil
Com estes torneios, firmemos que, no terreno do direito de Maffezzoni, qualquer delas podendo abrir ensanchas a ob-
tributário, a igualdade impositiva está irremediavelmente ligada servações elucidativas, cremos que continua sendo categoria
ao conteúdo econômico dos fatos escolhidos pela lei, que são me- vaga e imprecisa, que condiciona o raciocínio do jurista em
didos pela entidade que conhecemos por base de cálculo. A simples terreno alheio à sua Ciência, tolhendo-o no seu método, sem
contingência de um êxito do mundo físico não ter qualquer atri- que desse trabalho nada possa extrair de útil, em termos ex-
buto apto para quantificá-lo já diz de sua imprestabilidade para clusivamente jurídicos.
fins impositivos, visto que o cânone da igualdade é um imperativo Consoante ousamos supor, no Brasil, o sistema do direito
constitucional, que ficará tolhido à míngua da possibilidade de positivo exibe, em todas as figuras tributárias conhecidas, a
seleção de um dado capaz de avaliá-lo na sua intensidade. observância do princípio da capacidade contributiva absoluta,
Acolhida essa tese, seria lícito concluir pela inconstitucio- uma vez que os fatos escolhidos são aqueles que denotam sig-
nalidade de lei que, elegendo fatos de conteúdo econômico para nos de riqueza. Em outras palavras, por capacidade contribu-
supostos tributários e, portanto, satisfazendo ao princípio da tiva deve entender-se apenas a absoluta e, mesmo assim, como
capacidade contributiva absoluta, não dispusesse dos instru- dado pré-jurídico. Realizar o princípio da capacidade contri-
mentos jurídicos ao alcance do legislador para o fim de esta- butiva quer significar, portanto, a opção a que se entrega o
belecer, igualmente, a satisfação do princípio da capacidade legislador, quando elege para antecedente das normas tribu-
contributiva relativa. tárias fatos de conteúdo econômico que, por terem essa natu-
reza, fazem pressupor que as pessoas que deles participam
Importaria considerar, ainda, com base na posição de
apresentem condições de colaborar com o Estado mediante
Fernando Vicente-Arche Domingo, que a escolha, pelo legisla-
parcelas de seu patrimônio.
dor, de fatos destituídos de expressão econômica viria a inibi-lo
na tarefa de manejar os diversos recursos à sua disposição, com
vistas a realizar o princípio da igualdade tributária, violando- 1.4. IMUNIDADES TRIBUTÁRIAS
o de modo oblíquo.
Durante muitos anos, o assunto das imunidades tributá-
Federico Maffezzoni, enfatizando a importância desse rias permaneceu, entre nós, encerrado nos limites doutrinários
princípio no Direito Tributário italiano, declara ser ele: das preciosas lições de Aliomar Baleeiro. O jurista baiano, com
o peso de sua autoridade científica, implantou um sistema de
"...inscindibilmente, coneso, nel sistema della nostra Cos-
tituzione, con altri tre principi o ordini di principi e preci- proposições descritivas rico e atrativo, mediante o qual a ma-
samente: il principio di progressività sancito dali' art. 53 téria foi exposta em consistente plano discursivo.
Cost., i principi distributivi extrafiscali sinteticamente
Acontece que, entre os axiomas da atual linguística do
enunciati nell' art. 41 Cost. e il principio di uguaglianza
sancito dali' art. 3 Cost.
'9122 texto, dois fatores existem para impedir, decisivamente, a
estagnação das construções interpretativas: intertextualidade
e inesgotabilidade do sentido.
122. Federico Maffezzoni, Il principio di capacita contributiva nel diritto O primeiro, desde logo, põe a produção de linguagem em
finanziario, Torino, UTET, 1970, p. 281. contato com todos os demais textos existentes, a ele ligados
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direta ou indiretamente; ao passo que o segundo leva em con- Uma coleção de referências pode ser aduzida para bem
ta a irrepetibilidade do real, físico e social, para concluir ser ilustrar o estado de calmaria em que se detém a doutrina, todas
impossível a reprodução exata das condições pragmáticas em elas colhidas em obras de argutos conhecedores desse ramo da
que foi expedida a mensagem. Ainda que emissor e receptor sejam especulação jurídica. Assim é que pregoam o caráter político
os mesmos e idêntico o teor digital da comunicação, ter-se-á das imunidades tributárias, sobre aconselhar os recursos da
alterado o meio envolvente, o que provoca, inevitavelmente, Ciência das Finanças para a interpretação e aplicação da Lei
modificação interpretativa. Fundamenta1 123 ; salientam a condição de verdadeiras limitações
constitucionais às competências tributárias, consubstanciando
Essas considerações conduzem o pensamento a mutações
hipóteses de não-incidência juridicamente qualificadas no
constantes diante do objeto do conhecimento, e de forma mais
Texto Supremo' 24 ; aludem a uma exclusão do próprio poder de
enfática quando se tratar de bens da cultura, como o direito, 26
tributar 125 ; ou a uma supressão da competência impositival .
em que os valores fazem-se presentes de modo invariável.
Todos a vêem como aplicável unicamente aos impostos e, de
É o que se dá com a linha temática das "imunidades tribu- modo invariável, lembram o importante papel da incidência,
tárias". O passar do tempo foi levantando dúvidas, estruturando nesse ponto anulada pelo preceito que imuniza 127 . Não faltam
problemas, sugerindo novos esquemas de avaliação dos dados aqueles, contudo, que lhe atribuem a qualidade de ser sempre
da experiência, rendendo espaço, assim, ao aparecimento de ampla e indivisível, não admitindo restrições ou meios-termos.
diferentes propostas de compreensão. E nosso direito positivo, O instituto não comportaria fracionamentosm.
no seu plano empírico, tem oferecido discussões interessantes. Há consenso entre os especialistas no consignar as diferen-
A todo momento deparamo-nos com situações conflitivas que ças entre imunidade, isenção e não-incidência, convindo dizer
envolvem imunidades, seja como argumento de defesa, seja como que, ultimamente, vem prosperando a lição mediante a qual as
investidas do legislador para contorná-las, transpondo, por esse três categorias mereceriam considerar-se casos de não-incidência,
modo, o importante obstáculo inscrito no Texto Maior. agregando-se a cada uma, pela ordem, as seguintes expressões:
estabelecida na Constituição (imunidade); prevista em lei (isen-
1.4.1. Noção corrente de imunidade tributária ção); e pura e simples (não-incidência em sentido estreito).

Alimento a convicção de que o estudo científico das imu-


nidades jurídico-tributárias não encontrou ainda uma elabo- 123.Aliomar Baleeiro, Limitações constitucionais ao poder de tributar, 4a ed.,
ração teórica metodologicamente adequada ao conhecimento Rio de Janeiro, Forense, 1998, pp. 2-7.
de sua fenomenologia. O menos impertinente fiscal da coerên- 124.Bernardo Ribeiro de Moraes, Sistema tributário na Constituição de 1969,
São Paulo, Revista dos Tribunais, 1973, p. 467.
cia própria às asserções doutrinárias descobrirá desvios lógicos
de acentuada gravidade na descrição do instituto, ao lado de 125.Ruy Barbosa Nogueira, Curso de direito tributário, 5a ed., São Paulo,
Saraiva, 1980, p. 172.
abundantes colocações de índole econômica, sociológica, ética,
126.Amílcar de Araújo Falcão, Fato gerador da obrigação tributária, 5a ed.,
histórica e, em grande profusão, de cunho político. Entre os Rio de Janeiro, Forense, 1994, p. 117.
autores que mais destramente cuidaram do assunto, há poucas 127. Hugo de Brito Machado, Curso de direito tributário, Rio de Janeiro,
discrepâncias, reinando certo equilíbrio de conceitos, singular Forense, 1981, p. 151.
e estranho, num tema que teria tudo para provocar as mais 128.Fábio Leopoldo de Oliveira, Curso expositivo de direito tributário, Re-
acesas discussões acadêmicas. senha Tributária, 1976, p. 50.

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Gilberto de Ulhôa Cantou°, com a força de sua autoridade a) A imunidade é uma limitação constitucional às competências
de renomado jurisconsulto, dá bem a dimensão corrente dessa tributárias
entidade do direito positivo:
O raciocínio não procede. Inexiste cronologia que justifi-
que a outorga de prerrogativas de inovar a ordem jurídica, pelo
"Imunidade é impossibilidade de incidência, que decorre
de uma proibição imanente porque constitucional, impos- exercício de competências tributárias definidas pelo legislador
sibilidade de um ente público dotado de poder impositivo constitucional, para, em momento subsequente, ser mutilada
exercê-lo em relação a certos fatos, atos ou pessoas. Portan- ou limitada pelo recurso da imunidade. Aliás, a regra que imu-
to, é, tipicamente, uma limitação da competência tributária, niza é uma das múltiplas formas de demarcação de competên-
que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios cia. Congrega-se às demais para produzir o campo dentro do
sofrem por força da Carta Magna, porque os setores a eles
qual as pessoas políticas haverão de operar, legislando sobre
reservados na partilha da competência impositiva já lhes
matéria tributária. Ora, o que limita a competência vem em
são confiados com exclusão desses fatos, atos ou pessoas."
sentido contrário a ela, buscando amputá-la ou suprimi-la, en-
quanto a norma que firma a hipótese de imunidade colabora no
Se conjugarmos os elementos que mais agudamente des-
pertam a atenção dos estudiosos, procurando o denominador desenho constitucional da faixa de competência adjudicada às
comum dos pensamentos dominantes, teremos a imunidade entidades tributantes. Dirige-se ao legislador ordinário para
como um obstáculo posto pelo legislador constituinte, limitador formar, juntamente com outros mandamentos constitucionais,
da competência outorgada às pessoas políticas de direito cons- o feixe de atribuições entregue às pessoas investidas de poder
titucional interno, excludente do respectivo poder tributário, político. Aparentemente, difere dos outros meios empregados
na medida em que impede a incidência da norma impositiva, por mera questão sintática. Enquanto o constituinte declara que
aplicável aos tributos não vinculados (impostos), e que não compete à União instituir o imposto sobre produtos industriali-
comportaria fracionamentos, vale dizer, assume foros absolutos, zados, menciona que é vedado a qualquer dos entes dotados de
protegendo de maneira cabal as pessoas, fatos e situações que possibilidade legiferante gravar os livros e os periódicos, assim
o dispositivo mencione. como o papel destinado à sua impressão. São expedientes de
técnica legislativa utilizados para talhar, com zelo e segurança,
O tema das imunidades há de ser sobrepensado. Um pas-
a via por onde deverão fluir as medidas inovadoras daquela
so que nos parece importante, nesse caminho, é submetermos
as cláusulas do conceito habitual ao teste de congruência lógi- pessoa, no que tange aos assuntos tributários.
ca, perguntando do cabimento semântico de cada afirmação, Mas é curioso refletir que toda atribuição de competência,
à luz de seus desdobramentos sistêmicos. É o que faremos de ainda que versada em termos positivos e categóricos, importa
seguida, sem que a avaliação crítica possa representar qualquer uma limitação. Entretanto, nem por isso estaríamos autorizados
irreverência ao ingente labor expositivo dos juristas invocados. a falar em imunidade, para os casos que ultrapassem os limites
Uma a uma, colocaremos em evidência as assertivas conferidos. Se assim não fosse, poderíamos declarar-nos imu-
utilizadas no enunciado corrente na doutrina, verificando-lhe nes à tributação de nossas rendas e proventos de qualquer
as premissas. natureza pelo Município, uma vez que tal iniciativa se encontra
inequivocamente defesa, nos dizeres da Constituição. Nesse
mesmo rumo, todos os administrados estariam imunes a exi-
129. Gilberto de Ulhôa Canto, Temas de direito tributário, vol. 111/190, Alba. gências tributárias não determinadas por lei, em virtude de
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existir princípio lapidar que consagra o cânone da estrita le- tanto, utilizou, indiscriminadamente, os modais deônticos na
galidade. E, assim por diante, cada investida do Fisco, violado- linguagem do produto legislado, isto é, permitiu (fazer ou omi-
ra dos primados da igualdade, da anterioridade, da universa- tir), obrigou (a fazer ou a omitir) e proibiu (de fazer ou de omi-
lidade da jurisdição e de todo o amplo catálogo de direitos e tir). Por essa maneira, fixou a fraseologia constitucional a larga
garantias que o Estatuto Maior prevê, suscitaria a invocação pauta de diretrizes que se vira ao legislador ordinário, demar-
do versátil instituto da imunidade. Forçando mais o raciocínio, cando-lhe a competência tributária.
não seria desatino reduzir o Capítulo I do Título VI da Consti-
Quem esteja familiarizado com as categorias lógicas do
tuição a uma tábua de limitações, que passaríamos a denomi-
Direito, mesmo sem ter partes de bom jurista, nada acharia de
nar "Imunidades tributárias".
anormal se o inciso II do art. 5 2 da CR, em vez de proclamar
A linha proposta não leva o pensamento ao miolo do pro- que "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma
blema da imunidade, deixando remanescer breve noção, que coisa senão em virtude de lei", estatuísse que "as obrigações
entrevemos insatisfatória, ao processo de conhecimento cien- de fazer ou de não fazer haverão de ser estabelecidas em lei".
tífico. Em última ratio, concebemos os dispositivos que identi- Alterado ficou, tão-somente, o esquema oracional empregado no
ficam a chamada imunidade tributária como singelas regras texto, sem qualquer prejuízo para a mensagem nele exarada.
que colaboram no desenho do quadro das competências, ex-
Uma lembrança final encerra este arrazoado que já vai
postas, todavia, por meio de esquemas sintáticos proibitivos
ou vedatórios. Nada mais. E o fenômeno não é inusitado, como longo: dada a interdefinibilidade dos modais deônticos, o le-
bem esclarece este trecho de Lourival Vilanova"°: gislador pode vedar ou proibir simplesmente negando a per-
missão ou obrigando a não fazer, o que implica manter a mes-
"Dada a interdefinibilidade dos modais deônticos explica-se ma mensagem, com alteração da estrutura frásica do idioma.
por que as normas de direito positivo possam ser formula- Ainda assim, permanecendo forma sintática redutível à proi-
das ora como obrigações, ora como permissões, com o adi- bição, teremos hipótese de imunidade.
tivo da negação que reestabelece a equivalência desses modais
(...). Tanto faz a norma dizer que o locatário fica proibido de
sublocar a coisa dada em locação, como dizer que não está b) Imunidade como exclusão ou supressão do poder tributário
permitido, como que é obrigatório não sublocar, sem o con-
A idéia que se contém nesse juízo hospeda idêntico ab-
sentimento expresso ou tácito do locador. A negação incidiu
surdo, apresentado de modo mais grosseiro. A etimologia dos
ora no verbo deôntico, ora na classe de ação, que se conver-
teu num omitir. Ficar proibido de fazer, como não ter per- verbos excluir e suprimir fala mais alto que qualquer argumen-
missão de fazer, como ficar obrigado a omitir um especifi- to. De origens latinas, o primeiro vem de excludere e todos os
cado tipo de ação, vêm a ser normativamente equivalentes." significados que se lhe atribuem guardam a acepção de pôr de
(os grifos são do autor). parte, expulsar, excetuar, afastar, tirar da lista. O outro proveio
de supprimere, com o sentido de extinguir, fazer desaparecer,
O magistério do eminente pensador bem se acomoda ao eliminar, anular, cortar, deixar de fora. É justamente essa a
assunto de que tratamos. O constituinte estabeleceu muitas grandeza semântica que inspira o emprego de exclusão ou
prescrições sobre o exercício da atividade impositiva. Para supressão do poder tributário, se bem que entre os dois verbos
haja sensível diferença sematológica. Ao passo que excluir
pressupõe a expulsão de algo que estivera incluído, suprimir
130. As Estruturas Lógicas e o Sistema do Direito Positivo, cit., p. 232. traz à mente o ato de anular, de eliminar, de cancelar. O ponto
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

de convergência é a condição de existir alguém, alguma coisa "Aliás, a respeito das chamadas 'limitações constitucionais
ou algum fato que se inscreva no quadro sotoposto ao poder ao poder de tributar', lembraria que a competência já nasce
constitucionalmente delimitada. A competência é uma afir-
tributário, razão necessária e suficiente para que seja objeto
mação de liberdade, mas é também uma limitação; uma
de exclusão ou de supressão.
autorização para o exercício das faculdades, das atribuições
O exame moderado e objetivo daquilo que a doutrina tributárias dos entes políticos, que nascem com uma limi-
quer exprimir com o uso desses vocábulos sugere tratamento tação constitucional, que lhes é inerente" (foi grifado).
diferente.
Tolera o emprego da locução "limitações constitucionais
De fato, só um apelo direto ao método diacrônico, ineren-
ao poder de tributar", chegando a falar no instituto como "um
te à investigação histórica, porém incomportável no plano da
princípio constitucional de exclusão de competência tributá-
Ciência do Direito, poderia ter o condão de suster raciocínio
ria". Imediatamente, porém, se recompõe, dizendo, às abertas
desse quilate. Carrega dentro de si a suposição de dois instan-
e publicadas, que:
tes cronologicamente distintos: um, em que fossem definidas
as faixas de competências tributárias entregues às entidades "A rigor, portanto, a imunidade não subtrai competências
políticas; outro, posterior, quando se introduzem preceitos tributárias, pois essa é apenas a soma das atribuições fiscais
excludentes ou supressores de parcelas daqueles canais. que a Constituição Federal outorgou ao poder tributante e
o campo material constitucionalmente imune nunca pertenceu
Seja como for, no trajeto de tal concepção se levanta um
à competência deste. A competência tributária já nasce limi-
obstáculo intransponível: a análise do fenômeno jurídico, em tada" 1 " (sublinhamos).
termos dogmáticos, é, substancialmente, de natureza sincrô-
nica. Vale para aqui e para agora. O direito de ontem já não Para além do rigor, o apontamento do mestre pernambu-
existe, e o de amanhã não sabemos qual será. Cabe-nos sele- cano alcançou síntese expositiva.
cionar princípios e aglutinar normas, segundo o critério asso-
ciativo do entrelaçamento vertical (subordinação hierárquica) Resumindo, a imunidade não exclui nem suprime compe-
e horizontal (coordenação), para montarmos o arcabouço do tências tributárias, uma vez que estas representam o resultado
sistema jurídico em vigor, descrevendo-o metodologicamente. de uma conjunção de normas constitucionais, entre elas, as de
i munidade. A competência para legislar, quando surge, já vem
Nisso consiste o trabalho do cientista de Direito, em sentido
estrito, enunciador frio e atento da realidade que observa: o com as demarcações que os preceitos da Constituição fixaram.
direito positivo.
c) Imunidade como providência constitucional que impede a
José Souto Maior Borges"' firmou em manifestações incidência tributária - hipótese de não-incidência constitu-
passadas convicção nesse sentido, ensinando que se deve evi- cionalmente qualificada
tar o uso de expressões que denotem aquela reprochável cro-
Se as regras que imunizam são normas de competência,
nologia, naturalmente em homenagem à precisão dos conceitos
como todos consentem, seus destinatários exclusivos são aquelas
jurídicos. Citemo-lo:

131. José Souto Maior Borges, Elementos de direito tributário, São Paulo, 132. José Souto Maior Borges, Isenções tributárias, 2a ed., Sugestões Lite-
Revista dos Tribunais, 1978, p. 134. rárias, 1980, p. 181.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

pessoas jurídicas de direito público dotadas de personalidade preceder os dispositivos editados em função dos poderes ou-
política. Tais entes constituem o pequeno universo tomado torgados. E a proposição não admite comutatividade. Seria
como alvo e objetivo final das chamadas regras sobre tributa- incompreensível analisar a norma jurídica que cria o tributo
ção, que a Lei Superior sobejamente abriga. Formam o corpo e, portanto, define a incidência, sem antes observar, atenta-
das perfiladas leis sobre leis tributárias, que, assim considera- mente, os canais que a Constituição elegeu para esse fim.
das, não são portadoras de alusões diretas e imediatas ao tópi- Servem bem, por analogia, os argumentos que alinhávamos
co da incidência, tema exclusivo dos enunciados normativos para demonstrar não ser o tributo uma criatura constitucional,
que criam, propriamente, os tributos. As regras de imunidade surgindo sempre no andaime da legislação ordinária (direito
são normas de estrutura, enquanto as de incidência são pre- positivo brasileiro).
ceitos de conduta. No plano constitucional, o objeto da preo-
cupação normativa é definir os campos de competência das Cravada a premissa, não temos por que aludir às imuni-
entidades tributantes. As prescrições editadas nesse nível não dades como barreiras, embaraços ou obstâncias à incidência
dos tributos, como se tem copiosamente difundido.
cuidam da percussão do gravame, que é algo inerente à regra-
matriz, erigida na plataforma do legislador ordinário. Supomos Distrações desse gênero conduziram o pensamento mais
não ser precisamente essa a hora adequada para pensar na em voga na doutrina à proclamação solene de que a imunida-
fenomenologia da incidência, quando estamos tratando de de representaria caso de não-incidência constitucionalmente
estabelecer os parâmetros de atuosidade legiferante das uni- qualificada. Aqui, encontramos novamente rompido o fio da
dades políticas. Fique ressalvado, porém, que a sentença não idéia, nos longos giros do discurso descritivo das regras imu-
abrange as menções indiretas, mediatas ou oblíquas, implicita- nizantes. Bernardo Ribeiro de Moraes, rebatendo a proposta,
mente contidas nas entrevozes dos comandos que estipulam deu-se pressa em aduzir a seguinte advertência:
as prerrogativas. Exatamente porque seria absurdo focalizar
atribuições dessa natureza sem tocar, de modo genérico, no "Não aceitamos a expressão 'não-incidência constitucional-
alvo perseguido pelo sistema, que é, em última instância, o mente qualificada' para exprimir a imunidade, porque
entendemos que a regra jurídica constitucional de imuni-
impacto jurídico da exação. Tudo concorre para afirmar que,
dade incide sempre, como qualquer regra jurídica. É uma
não sendo o específico momento de disciplinar a ocorrência do regra como qualquer outra regra positiva. Incide sobre os
fato e o concomitante aparecimento do vínculo, também não fatos imunes, para vedar a sua tributação. Daí ser imprópria
será o tempo cientificamente correto para vermos levantados a denominação 'hipótese de não incidência'."
os obstáculos impeditivos do nascimento da obrigação (que
ainda não foi descrita pelo legislador), ou imaginarmos fatores A afirmação leva a acreditar que a norma constitucional
que obstruam o fato típico (que somente virá a lume com a lei possa não incidir, o que é inaceitável. A censura tem procedên-
instituidora do gravame). A sucessividade não é temporal. É cia, mas não foi nesse sentido que a locução surgiu e vem sendo
lógica, do mesmo teor daquela que nos compele a examinar empregada. A crítica presta-se a uma de suas acepções, preci-
primeiro a prestação, para depois cogitarmos do descumpri- samente aquela que sugere ter inexistido o fenômeno da sub-
mento do dever, antecedente da regra sancionatória, ou a que sunção do fato à regra e, por conseguinte, não haveria falar em
nos manda verificar a premissa maior e a menor antes da con- efeitos jurídicos. É por incidir que a proposição normativa qua-
clusão, no raciocínio inferencial-dedutivo. Os preceitos que lifica pessoas, coisas e estados de coisas, bem como é incidindo
definem a adjudicação de competências tributárias hão de que o sistema, como um todo, atinge a disciplina integral do

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

relacionamento intersubjetivo. Realmente, asseverar que a existencial. Em obséquio a esse intento cumpre relegar a locu-
regra não incide equivale a negar-lhe tom de juridicidade, ção não-incidência constitucionalmente qualificada ao espaço
marca universal das unidades jurídico-normativas. Norma que comum das definições impróprias, que não se hão de acomodar
não tenha essa virtude está à margem do direito ou não foi num corpo de linguagem de pretensões científicas.
produzida segundo os ditames do ordenamento em vigor.
Há, porém, outra porção de significado que muitas vezes d) A imunidade é aplicável tão-somente aos tributos não-vincu-
aparece colorindo o verbo incidir, na linguagem da Ciência lados (impostos)
do Direito: é aquela que denota o surgimento da obrigação Querem, quase todos, que a imunidade seja uma institui-
tributária, no preciso instante em que se deu a realização do ção jurídica que diga respeito unicamente aos impostos, for-
fato jurídico. Na sentença ocorreu o pressuposto de fato e nas- rando-se a ela os demais tributos. Tudo sobre o fundamento
ceu a obrigação tributária vemos consubstanciada a fenome- de que o texto do Diploma Básico, ao transmitir as hipóteses
nologia da incidência. E foi com tal carga significativa que clássicas veiculadas pelo art. 150, VI, cita, nominalmente, a
certos autores empregaram a dicção não-incidência, onde o espécie de tributos que Geraldo Ataliba 134 qualifica de não-
não prefixo muda a valência proposicional, de tal forma que vinculados. Além do mais, insistem alguns na circunstância de
poderíamos enunciá-la assim: inexistiu fato sotoposto à norma que os impostos são concebidos para o atendimento das des-
tributária, razão pela qual não se instalou o vínculo obriga- pesas gerais que o Estado se propõe, ao passo que as taxas e a
cional. Exibe a incompossibilidade de exigência do tributo, contribuição de melhoria, antessupondo uma prestação direta,
pela inocorrência do fato descrito no antecedente da regra. imediata e pessoal ao interessado, não comportariam o bene-
E, se assim é, esvazia-se o cabimento da crítica, voltada que fício da imunidade, por todos os títulos incompatível com
está à consideração do vocábulo de acordo com o primeiro aqueles tipos impositivos.
dos sentidos que expusemos. Nada mais infundado! A redução é descabida, transpare-
cendo como o produto de exame meramente literal (e apres-
As duas vertentes semânticas da expressão não-incidência
sado) ou como o resultado de considerações metajurídicas, que
mostram que, no mínimo, é uma fórmula ambígua, que pode
não se prendem ao contexto do direito positivo que vige. Que
conduzir o intérprete a lugares assimétricos, de difícil conci-
motivo de ordem superior ditaria o princípio de que o legisla-
liação lógica. Isso não escapou ao crivo de Sacha Calmon Na-
dor constituinte, no exercício de suas prerrogativas, pudesse
varro Coelho 133 , ao predicar o disparate de admitir-se a inci-
estar impedido de organizar as competências tributárias, de
dência de regra que não incida. É certo que a relação formal tal modo que tolhesse a decretação de certas taxas ou impos-
antagônica que se estabelece entre enunciados da mesma va- sibilitasse a criação de contribuições de melhoria? Com asso-
lência, e que denominamos contradição, na referida hipótese mos jurídicos, nenhum. Se a Constituição fala e refala nos
pode até ser resolvida, aceitavelmente, mas daria azo ao outro impostos, tratando-os com a intimidade de quem os conhece
entendimento, que reputamos prescindível. Mais difícil, sem pelo nome, é natural que utilize expedientes como a imunida-
dúvida, procurarmos a essência do fenômeno e, tirado o véu de para lhes tracejar a feição. Com os gravames vinculados,
que recobre as estruturas, compreendê-lo na sua intimidade sendo as menções constitucionais mais reduzidas, nem por isso

133. Sacha Calmon Navarro Coelho, Teoria geral do tributo e da exoneração 134. Hipótese de incidência tributária, 2a ed., São Paulo, Revista dos Tribu-
tributária, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1982, p. 130. nais, pp. 131-148.

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deixou o constituinte de alcançá-los, como prova o versículo legitimidade em função da pessoa que realizar a atuação espe-
do art. 151, I, que estatui o primado da uniformidade. Ei-lo, na cífica. Isso vale para as taxas cobradas em razão do exercício
sua forma genuína: do poder de polícia, como também para aquelas instituídas
É vedado à União: com fundamento na prestação de serviços públicos. E, em
idêntica proporção, aplica-se às contribuições de melhoria, que
I — instituir tributo que não seja uniforme em todo o territó- poderão ser criadas por qualquer uma daquelas pessoas, des-
rio nacional ou que implique distinção ou preferência em de que se verifique o pressuposto de fato, qual seja a valoriza-
relação a Estado, ao Distrito Federal ou a Município, em ção imobiliária como decorrência da realização de obra públi-
detrimento de outro, admitida a concessão de incentivos
ca. Acrescente-se, é claro, o caso das outras contribuições.
fiscais destinados a promover o equilíbrio do desenvolvimen-
to socioeconômico entre as diferentes regiões do País. Além dessa outorga genérica, vemos que o legislador
constitucional sublinha a contingência de que não se pode
Em comentário ligeiro, Aliomar Baleeirous evoca a lem- tomar como base de cálculo das taxas a que tenha servido para
brança de que o "dispositivo, que aparece em todas as Consti- dimensionar a incidência dos impostos (art. 145, § 2'2 ), que
tuições desde a de 1891, refere-se a tributo e, portanto, compre- expressa, por outra retórica, a necessidade incontornável de
ende, por definição legal e não apenas teórica, os impostos, as fixar-se base de cálculo nas taxas, imperativo que não foi ainda
taxas e a contribuição de melhoria" (grifo do original.) devidamente digerido por nossa doutrina.
Sabemos que a forma de apurar o valor lógico dos enun- Se é verdade que assim sucede no plano das imposições
ciados descritivos da Ciência do Direito é confrontá-los com o vinculadas, algo completamente diverso se dá no que concerne
resultado da experiência; e o padrão empírico para os testes aos impostos. Aqui, o constituinte se manteve demoradamen-
da Dogmática é o exame do direito positivo: uma vez confir- te, traçando, retraçando, bordando, burilando e cinzelando, de
mados, serão tidos por verdadeiros; mas, sempre que negados, forma atremada, um sistema minucioso, feito com zelo e pene-
considerar-se-ão falsos. Se assim é, bastaria o preceito consti- trado de tantos escrúpulos que até chega a confundir o aplica-
tucional estabelecido no art. 5 2 , XXXIV, a e b, para exibir a dor menos precatado. Não deve surpreender, então, que apa-
falsidade da proposição afirmativa, segundo a qual "a imuni- reça um número significativo de referências constitucionais
dade é aplicável tão-somente aos tributos não-vinculados especialmente voltadas ao regime desse e daquele imposto.
(impostos)". Nem é desarrazoado supor que, no meio de tantas disposições
sobre uma única exação não vinculada, venha o legislador
Ao refletirmos acerca dos modos e dos meios que o político
constitucional a declarar, em tom peremptório, que a compe-
utiliza para esboçar as competências tributárias das pessoas
tência privativa da União para instituir o imposto sobre a
dotadas de poder legislativo, iremos observar que as exações
renda não deve se estender às ajudas de custo e às diárias pa-
vinculadas (taxas e contribuição de melhoria) mereceram escas-
gas pelos cofres públicos, na forma da lei, com o que estabele-
sas referências, fundamentalmente concentradas no princípio
ceu a hipótese para a pessoa física.
de que, em tese, poderiam ser criadas tanto pela União quanto
pelos Estados, Distrito Federal e Municípios, firmando-se a Levemos em conta essas injunções, colhidas na linguagem
do direito positivo brasileiro, e teremos explicada, por inteiro,
a razão pela qual quase todas as imunidades aludem a impos-
135. Direito tributário brasileiro, 10a ed., Rio de Janeiro, Forense, p. 95. tos. Subsistem, contudo, alguns preceitos, como os dois a que
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

fizemos referência, em que nos é dado ver que o instituto é do Direito sugere, tem a força de desmanchar vetustas senten-
perfeitamente compatível com a sistemática das taxas, da con- ças, que a tradição jurídica vai carregando pelos tempos afora,
tribuição de melhoria e das demais contribuições. sem saber ao menos por quê.

A proposição afirmativa de que a imunidade é instituto Não trepidaríamos em inscrever nessa pauta de proposi-
que só se refere aos impostos carece de consistência veritativa. ções levianas mais aquela que identifica a presente rubrica.
Traduz exacerbada extensão de uma particularidade constitu- Dizer que as imunidades são sempre amplas e indivisíveis, que
cional que pode ser facilmente enunciada mediante a ponde- não suportam fracionamentos, protegendo de maneira abso-
luta as pessoas, bens ou situações que relatam, é discorrer sem
ração de outros fatores, também extraídos da disciplina do
compromisso; é descrever sem cuidado, sem o desvelo ne-
Texto Superior. Não sobeja repetir que, mesmo em termos li-
cessário à construção científica. Certamente por afirmações
terais, a Constituição brasileira abriga regras de competência
semelhantes é que Alfredo Augusto Becker tanto insiste no
da natureza daquelas que se conhecem pelo nome de imuni-
chamado sistema dos fundamentos óbvios, tal a frequência com
dades tributárias, e que trazem alusão explícita às taxas e à
que pontificam no fraseado jurídico-tributário enunciados
contribuição de melhoria, o que basta para exibir a falsidade gratuitos, vazios de conteúdo, de significação precária, mas
da proposição descritiva. com garbosa e imponente aparência de sabedoria.
Vejamos, nesse sentido, o que preceitua o art. 195, § 7 2 , da Ao estender às autarquias a intangibilidade, por meio dos
Constituição da República: São isentas de contribuição para a impostos, do patrimônio, renda e serviços atrelados às suas fina-
seguridade social as entidades beneficentes de assistência social lidades, ou delas decorrentes, o § 2 2 do art. 150 da Constituição
que atendam às exigências estabelecidas em lei. Com a ressalva estabeleceu um fracionamento que separa, induvidosamente, de
do tropeço redacional, em que o legislador empregou isenção um lado, as atividades ligadas aos objetivos primordiais daqueles
por imunidade, vê-se que há impedimento expresso para a entes; de outro, o exercício de funções paralelas, marginais, epi-
exigência de contribuição social das entidades beneficentes sódicas, que porventura as autarquias e as fundações instituídas
referidas no dispositivo. Ora, ainda que para nós contribuição e mantidas pelo Poder Público venham a desempenhar.
social tenha a natureza jurídica de imposto ou de taxa, sabemos E aproximamos dessa hipótese todas aquelas em que o
que a orientação predominante é outra, discernindo essa figu- legislador constitucional subordina o desfrute da imunidade à
ra, nitidamente, dos impostos. observância de requisitos previstos em lei (complementar, no
caso), como, por exemplo, a do art. 150, VI, c, da Constituição
e) A imunidade é sempre ampla e indivisível, não comportando da República de 1988.
fracionamentos
Que da amplitude? Que da indivisibilidade?
Como a Ciência do Direito é um sistema de linguagem,
É evidente que todo fato social que ingressa para o mun-
que fala de seu objeto - o direito positivo - por sua vez também
do jurídico pela porta aberta dos supostos normativos, uma
expresso numa capa de linguagem, é compreensível a existên- vez realizado, provoca a incidência e é colhido em cheio, ir-
cia de disparidades semânticas e desencontros descritivos. radiando os efeitos jurídicos que lhe são imputados. Se a isso
Talvez por isso acabe sendo campo sobremodo favorável a
,
querem os autores denominar amplitude e indivisibilidade,
combinações de frases e jogos de palavras, capazes de descon- operam com engano, pois o fenômeno não é atributo das
certar o mais prevenido observador. Entretanto, um breve imunidades, mas de todas as disposições prescritivas do
instante de meditação, que a Ciência recomenda e a importância direito posto. Exista uma regra que qualifique um evento,
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

associando-lhe determinados efeitos, e a consequência propagar- imunizantes e isencionais para compor uma única hipótese de
se-á de modo absoluto, direto e contundente, toda vez que o fato incidência: a da norma jurídica de tributação. Frisa o autor
acontecer. A incidência se dá, invariavelmente, de maneira au- baiano, radicado em Minas Gerais, que imunidades e isenções
tomática e infalível, desde que seja produzida a linguagem apresentam a mesma dinâmica funcional, com a diferença de
competente. O cumprimento do dever que satisfaz o direito as primeiras terem origem na Constituição e as últimas decor-
subjetivo correlato pode ou não verificar-se, momento em que rerem de leis infraconstitucionais, complementares ou ordiná-
rias. Tanto umas quanto outras, ainda que ostentando o mesmo
se cogitará de outro antecedente normativo - o da regra sancio-
esquema de funcionalidade, são exonerações internas, qualita-
natória. A aplicação de ambas ao caso concreto, porém, no que
tivas, que penetram os supostos das normas de tributação.
toca à obediência e respeitabilidade dos respectivos destinatá-
rios, é algo que há de ser estudado em outra matéria, também Inobstante a reconhecida integridade científica do Autor,
cognoscente em relação ao direito - a Sociologia Jurídica. aspecto que recomenda a teoria, cremos que duas objeções a
comprometem de modo fulminante e irremediável. Passemos
a examiná-las.
1.4.2. Teoria da imunidade como técnica legislativa de exoneração É corretíssimo asseverar a distinção entre lei e norma,
Há crescente insatisfação, no seio da moderna doutrina do nem sempre assinalada com o devido rigor. Podemos dizer,
perfeitamente, em analogia com os símbolos quaisquer, que o
direito tributário brasileiro, com respeito ao modelo tradicional
texto escrito de lei está para a norma jurídica tal qual o vocá-
de descrição do fenômeno jurídico da imunidade. A demonstra-
bulo está para sua significação. Nas duas situações temos o
ção cristalina desse asserto é a procura constante de novos rumos
suporte físico, signo gravado no papel, que se refere a uma
que vem ocorrendo nas recentes obras de cunho científico. To-
realidade pensada do mundo exterior que todos nós conhece-
memos, entre outras, a proposta de Sacha Calmon Navarro mos (significado) e a partir do qual construímos um conceito
Coelho' 36 , que vê a imunidade como técnica legislativa de exo- ou juízo lógico (significação). Pois bem, nessa estrutura triádi-
neração, de tal arte que os dispositivos dessa índole "entram na ca, o conjunto dos textos do direito positivo ocupa o tópico de
composição da hipótese de incidência das normas de tributação, suporte físico, como se fora o repositório das significações que
configurando-lhe o alcance e fixando-lhe os lindes". Para o ilus- o jurista elabora sob a forma de juízos lógicos, e que se repor-
tre Professor, a regra constitucional que põe a imunidade atua ta ao comportamento humano, no quadro de suas relações
no plano da hipótese de incidência, excluindo de certos fatos ou intersubjetivas (significado). Aproximar a significação ao su-
aspectos destes a virtude jurígena. Tudo baseado na premissa, porte material que a suscita, confundindo-os, é transgredir
aliás, incontestável, de que as normas não derivam de textos determinações da própria teoria geral do conhecimento, um
legais isolados, mas do contexto jurídico positivo, considerado atentado epistemológico de severa gravidade. E nesse erro
como um todo. Exsurgem, então, como a resultante de um plexo cursivamente incorrem todos os juristas que prestigiam a in-
de leis ou de artigos de leis em vigor no sistema. E nessa conju- terpretação literal. Não é demasia a preocupação de Sasha
gação de preceitos que se entretecem, as leis e os artigos de leis Calmon em demarcar noções que parecem cediças, dado o
que definem os fatos tributáveis se harmonizam com as previsões descuido que vem grassando com referência aos princípios
elementares da compreensão ontológica do direito. Que uma
lei possa não ser suficiente para transmitir a integralidade
136. Teoria geral do tributo e da exoneração tributária, Revista dos Tribunais, existencial de uma norma jurídica é acontecimento corriquei-
1982, pp. 121-149. ro. Muitas vezes são numerosos os dispositivos de lei necessários

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para a formação de um único juízo hipotético, arquitetura lógica última e primordial do seu equilíbrio, enquanto sistema. Rompi-
da unidade normativa. Ligeira reflexão sobre esse fato possi- das as ligações hierárquicas, passaríamos, de imediato, para o
bilita ver o intérprete de textos jurídicos como alguém que âmbito de um singelo esquema linear, e, juntadas as normas de
empreende trabalho verdadeiramente compositivo: pesquisa mesmo status, ao ponto de vê-las fundidas, encontraríamos uma
o ordenamento em vigor, esmiuçando diplomas e vasculhando figura punctiforme. Quando se menciona o equilíbrio da ordem
estatutos, para surpreender o conteúdo da mensagem legislada. jurídica em vigor, introduzimos, ao jeito de condição, que cada
Até aqui, pensamos inexistir qualquer discrepância com unidade normativa mantenha íntegra sua estrutura lógica, para
a dicção do insigne Professor. Todavia, há espaço enorme entre que possamos contemplá-las, confrontá-las e coordená-las, res-
essa colocação teorética, que admitimos sem ressalvas, e a peitando sempre a posição que o sistema a elas atribuiu.
assertiva de que as normas tributárias entram em processo de
Não é precisamente esse o efeito que se obtém da aplica-
fusão, a tal ponto que as proposições imunizantes, bem como
ção da citada teoria. Seu autor predica o cruzamento dos ar-
as de isenção, passem a fazer parte do arcabouço íntimo de
cabouços normativos, pela via de imiscuir o preceito imunizan-
uma terceira, a chamada "norma de tributação". Trocando em
miúdos: se é válido reconhecer que da combinação de "n" dis- te, por inteiro, no antecedente da regra de tributação. É o
positivos de lei posso construir uma única norma jurídica, o significado de seu gráfico' 37 :
mesmo não ocorre com a proposta mediante a qual de várias
regras hei de colher uma outra, que represente o produto final "H= A - (B + C)
da conjugação de todas, como se fora a força resultante de um
onde:
feixe de vetores. São coisas substancialmente diversas.
Como já observado em capítulos anteriores, as proposições H = hipótese de incidência
normativas do direito posto se articulam segundo padrões
A = fatos tributáveis
associativos lógicos, entre os quais sobreleva o vínculo de su-
bordinação, que conduz à hierarquia, ao lado das relações B = fatos imunes
coordenativas, fatores determinantes da estrutura piramidal
C = fatos isentos."
do ordenamento jurídico, assim como o concebera Adolph
Merkl. Mas tal organização hierárquica pressupõe, de maneira
Neles, os fatos imunes, descritos no conteúdo das pres-
indeclinável, que as entidades normativas preservam seu mí-
crições de imunidade, ingressam no suposto da norma de tri-
nimo irredutível para que seja possível notar os laços subordi-
butação, desaparecendo ao serem subtraídos (ao lado dos fatos
nativos e reconhecer as linhas de coordenação que fazem do
direito um sistema, ainda que se utilize esse termo no seu sen- isentos) dos fatos tributáveis. E isso já vem como pretexto para
tido livre e, portanto, menos rigoroso. a segunda grande objeção à tese exposta.

A tão decantada arquitetura piramidal se constrói pela dis- Com efeito, não se pode extrair de um conjunto elementos
tribuição escalonada das normas jurídicas, nos diversos patama- que não lhe pertencem. A subtração apresentada no esquema
res da ordem positiva, o que nos abre a possibilidade de contem- formal que transcrevemos é simplesmente impossível: os fatos
plar a supremacia de umas com relação às outras. Acaso nos
fosse dado promover a união das disposições prescritivas de es-
taturas diferentes, de tal forma que se interpenetrassem intrin- 137. Sacha Calmon Navarro Coelho, Teoria geral do tributo e da exoneração
secamente, cairia por terra o edifício do direito, abalado na razão tributária, cit., p. 132.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

i munes não estão e nunca estiveram contidos na classe dos abriga lacunas, hiatos, fissuras normativas, que começam a
fatos tributáveis. Juridicamente, aliás, têm a natureza de fatos desaparecer com a decisão jurisdicional integrativa.
intributáveis, por força de expressa determinação constitucio-
nal. O equívoco reside na premissa. O raciocínio parte do b) Normas de aplicação e normas de construção. As imunidades
pressuposto de que todos os acontecimentos da realidade tan- como sobrenormas tributárias
gível estão disponíveis ao impacto tributário, sentença que só No percurso desse processo de positivação do direito, que
é válida em termos extrajurídicos.
tende ao fechamento, no nível da linguagem-objeto, e que o
Para encerrar esse esforço crítico, cumpre dizer que, se consegue no estrato da metalinguagem científica, observare-
o objetivo da aludida construção teórica foi explicitar os efeitos mos normas de aplicação de outras normas, ao lado de normas
que se desencadeiam no mundo factual, por força da percussão de construção de outras normas. As últimas, também nomina-
de normas imunizantes, o trajeto escolhido não nos parece ter das de "regras de produção", de "formação" ou de "transfor-
sido o mais adequado, justamente porque mexe em conceitos mação" de normas, assumem extraordinária importância para
jurídicos fundamentais, perturbando noções sedimentadas e a configuração do direito positivo, como sistema e como estru-
extremamente caras à moderna Teoria Geral do Direito. tura, razão pela qual o jusfilósofo pernambucano insistem:

"o sistema de proposições normativas contém, como parte


1.4.3. Conceito e definição do instituto: sua natureza jurídica integrante de si mesmo, as regras (proposição) de formação
e de transformação de suas proposições. As normas que es-
a) O processo de positivação das normas jurídicas. Completude tatuem como criar outras normas, isto é, normas-de-normas,
da Ciência e vocação de completude do Direito Positivo ou proposições-de-proposições, não são regras sintáticas
fora do sistema. Estão no interior dele. Não são metassis-
No sistema do direito positivo vamos encontrar uma su- temáticas. Apesar de constituírem um nível de metalin-
cessão de normas, em número finito mas indeterminável, en- guagem (uma linguagem que diz como fazer para criar
trelaçadas de modo complexo. Ao descrevê-las, a Ciência do novas estruturas de linguagem), inserem-se dentro do
Direito formula enunciados de compostura formal ôntica ou sistema" (grifos nossos).
apofântica, procurando arrumá-las segundo critérios associa-
tivos de coordenação (associação horizontal) e de subordinação Muito bem. Firmemo-nos, precisamente, no campo de
(associação vertical-hierarquia). É nessa última sintaxe que o eleição das normas que estabelecem de que modo criar novas
conjunto de regras jurídicas se desdobra, com início na norma regras, pois é nessa subclasse normativa que iremos encontrar
fundamental, hipótese-limite do sistema, até a norma indivi- as prescrições de imunidades tributárias. Não nos esqueçamos,
dual, que Kelsen toma como a concrescência máxima, verda- porém, de que as normas de construção também são regras de
deiro ato terminal da cadeia elaborativa de proposições pres- aplicação, excetuando-se a norma fundamental e o derradeiro
critivas. E, assim, o direito posto persegue sua completude, ato de positivação do direito (norma individual), visto que a pri-
para ser sistema, realizando a vocação de completabilidade meira é tão-só preceito de construção e a segunda unicamente
que lhe é inerente. A lembrança é útil, cabendo distinguir a
plenitude lógica, que é própria de toda Ciência, da mera ten-
dência à completude, que vemos no ordenamento das regras 138. Lourival Vilanova, As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo,
jurídicas. Nunca é demais reafirmar que o direito positivo cit., p. 154.
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de aplicação. Tirantes as duas, demarcadoras da finitude do sis- O critério que anima tais construções está fundado nos
tema empírico, todas as demais "posuen dos caras, como la testa meios de expressão da linguagem natural do legislador, recain-
de Jano. Si se las examina desde arriba, aparecen ante nosotros do a análise nas variações gramaticais de certos verbos, obser-
como atos de aplicación; si desde abajo, como normas"" 9 . vados em função dos tempos, modos e formas de conjugação.
É bem de ver que utilizada dessa maneira a diretriz não pode
As manifestações normativas que exprimem as imunida-
representar instrumento hábil e seguro para nos conduzir ao
des tributárias incluem-se no subdomínio das sobrenormas,
fim proposto. A falta de precisão, a liberdade expressional e a
metaproposições prescritivas que colaboram, positiva ou ne-
atecnia que integram o corpo da linguagem-objeto pelejam
gativamente, para traçar a área de competência das pessoas
contra sua racionalidade, tornando-a inidônea. O caminho há
titulares de poder político, mencionando-lhes os limites mate-
de ser outro.
riais e formais da atividade legiferante. São as "normas de
ordem superior", cujo conteúdo se expresa por "atos normati-
c) Método para o isolamento temático do instituto das imunidades
vos", na terminologia de von Wrighti".
O cunho deôntico do direito identifica-se pelo functor de-
Chegamos até aqui com o propósito de reconhecer que
ver-ser, que se apresenta em três modalidades: "obrigado",
espécie normativa realiza a figura da imunidade, e já sabemos
"proibido" e "permitido", esse último no sentido de permissão
tratar-se de regra que dispõe acerca da construção de outras
unilateral e bilateral. Dominando tais operadores poderemos
regras. Além disso, salientamos que o espaço frequentado por
enunciar, corretamente, a proposição normativa que bem nos
tais normas é o patamar hierárquico da Constituição da Repú- aprouver e, agregando-lhes a partícula de negação, inverteremos
blica, porquanto é lá que estão depositadas as linhas definido- a valência dos três modais. Isto nos leva a concluir não ser a
ras da competência tributária, no direito positivo brasileiro. As combinação gramatical ou a modesta associação de palavras aos
referidas aproximações, se bem que relevantes, não bastam, símbolos do deôntico que nos irá modificar a substância da
ainda, para o isolamento científico do instituto. Teremos que mensagem. Já vimos que a linguagem do direito positivo, por
avançar mais, discernindo caracteres, separando conotações não ter compromisso com a Ciência, é uma linguagem natural
e descobrindo traços que nos ofereçam a possível integridade e técnica. O político expede, simplesmente, um ato de vontade
estrutural desse grupamento de normas. Prossigamos colocan- revestido de formalidades que o habilitam a ingressar nos do-
do sob foco temático a concepção doutrinária mais influente mínios do ordenamento jurídico. Daí por diante, passando a
entre nós. pertencer à região ontológica do direito, aquele ato se vê despo-
Tem-se entendido que apenas as prescrições formuladas jado dos seus pressupostos psicológicos, integrando-se no uni-
em termos imperativos-negativos - "não incidirá", "não incide" verso das proposições normativas com o conteúdo e com os
- ou proibitivos - "é vedado" - ou excepcionadores - "salvo valores objetivados no seu enunciado. Nesse momento é que
ajuda de custo..." - satisfazem o conceito. aparece a Ciência do Direito, como linguagem de nível superior
que procura descrever, mediante formas científicas, a linguagem
técnica empregada pelo legislador. Por virtude de ser um siste-
139.Eduardo Garcia Maynez, Introducción al estúdio del derecho, México, ma lógico - e não empírico - a Ciência do Direito terá que so-
Editorial Porrúa, 1973, p. 85. correr-se da Lógica seja para estudar as estruturas formais de
140.G. Henrik Von Wright, Norma y Acción: Una investigación lógica. Tra- seu objeto (Lógica deôntica), seja para compreender a natureza
dução espanhola de Pedro Garcia Ferrero, Madrid, Tecnos, p. 196. alética de suas próprias proposições (Lógica Apofântica).
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Agora, sim. Esta sobrelinguagem ou linguagem de sobre- o teor satisfatório de esclarecimento, necessário à aplicação da
nível que se obtém por um processo de formalização, partindo norma ao caso concreto. A linguagem do direito posto, onde
do direito posto e transitando pela Ciência do Direito e pela foram depositadas as significações dos atos de vontade do polí-
Teoria Geral do Direito, haverá de estar expressa de modo tico, é o ponto de partida para a análise lógica e o ponto de che-
preciso e determinado. No plano lógico, não há espaço para gada da análise semântica. Mais uma vez transparece a impor-
vocábulos, expressões ou frases ambíguas ou plurissignificati- tância da afirmação segundo a qual o autêntico jurista é o ló-
vas. A linguagem das formas lógicas é fundamentalmente gico, o semântico e o pragmático da linguagem do direito, re-
unívoca. Seus termos têm uma e somente uma significação. alizando, a cada instante, as três grandes divisões da Semióti-
Eis por que, galgando as alturas das sedificações lógicas, por ca: sintaxe, semântica e pragmática.
meio de sucessivas formalizações, teremos eliminado as difi-
Retornemos da digressão para considerar que, no degrau
culdades semânticas que o falar leigo do legislador consagra.
das estruturas lógicas, quando o produto legislado é surpre-
Rigorosamente ali, naquele reduto de abstração, encon- endido na sua intimidade entitativa, desembaraçado do re-
trar-nos-emos com 141
as estruturas formais, dotadas, como diz vestimento de linguagem natural que o encobria, vamos ver
Lourival Vilanova , de um mínimo de significação, o suficien- que os modais deônticos exsurgem plenamente aptos para
te contudo, para denunciar a arquitetura interior da proposição entrar na combinatória formal governada pelas leis lógicas.
142
normativa. É o que recomenda Georges Kalinowski : As palavras não mais confundem e o analista experimenta
inusitada sensação de segurança, porque, nesse tempo, lida
"fazemos abstração também das formas gramaticais desses com elementos estáveis, não sujeitos às vicissitudes que o
verbos, das conjugações ativa e passiva, dos modos, dos acompanham e o atormentam em quase todo o desenvolvi-
tempos, das pessoas e do singular e do plural. Pois as dife- mento do seu trabalho.
renças de significação que criam essas formas, por impor-
tantes que sejam no terreno da linguística, se apagam to- É bom refletir: os autores nacionais que se ocuparam do
talmente no nível da Lógica, a partir do momento em que tema, por uma série de razões que não cabe indagar, sequer
se adota uma linguagem puramente simbólica, que pode exploraram inteiramente a camada de linguagem do próprio
ser interpretada de modo que tenha rigorosamente em
direito positivo. Não esgotaram as categoriais e métodos da
conta todas as formas gramaticais em questão".
Ciência ou da Teoria Geral do Direito, muito menos da Lógica
Jurídica. Desse jeito, seria muito difícil pôr o dedo no ponto
E o esforço, cremos, não representa mero exercício in-
certo do problema, vendo sutilmente, ali onde estava a linha
telectual que adestre a mente, numa atividade lúdica. Repro-
demarcatória dos preceitos de imunidade, em contraste com
duz imperativo irrefragável, que precede o estádio de desfor-
as demais regras atinentes ao desenho da competência tribu-
malização, em que o estudioso prossegue, num trabalho de
tária. Não é outro o motivo que nos permite dizer, sem qualquer
regresso, mas agora saturando as variáveis lógicas com os
cerimônia científica, que a diretriz escolhida pela doutrina
significados colhidos na planície do direito positivo, até atingir
dominante converte o sistema constitucional tributário num
extenso catálogo de imunidades, assunto que retomaremos
mais à frente.
141.As :estruturas lógicas e o sistema do direito positivo, cit., p. 49.
142. Lógica del discurso normativo, trad. de Juan Ramon Capella, Madrid, Qual a explicação adequada? Que sorte de especulações
Tecnos, p. 27. poderia iluminar a compreensão de tópico tão significativo para
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o estudo do Direito Constitucional e do Direito Tributário? a) Normas que permitem obrigar (PO)
Achamos que o método de investigação não pode ser outro que
b) Normas que obrigam a obrigar (00)
não aquele preconizado linhas atrás: partimos da sintaxe do
direito posto e, com emprego de processos de formalização, c) Normas que proíbem obrigar (VO)
buscarmos o resíduo que se tem, quando liberamos as normas d) Normas que permitem permitir (PP)
jurídicas positivas de suas roupagens de linguagem natural.
e) Normas que obrigam a permitir (OP)
Toparemos com a proposição normativa da imunidade crua-
mente exposta nos seus elementos constitutivos, o que nos f) Normas que proíbem permitir (VP)
propiciará examiná-la, em cotejo com outras normas de mesma g) Normas que permitem proibir (PV)
índole, para saber se hospeda ou não timbre específico que
autorize discriminações. h) Normas que obrigam a proibir (OV)
i) Normas que proíbem proibir (VV)
d) As categorias de Norberto Bobbio e a formalização das normas
de imunidade. Seu núcleo deôntico Antes de mais nada, duas notações a respeito da classifi-
Norberto Bobbiom percorreu esse trâmite esmiuçando o cação. Os símbolos (P), (0) e (V) querem dizer, respectivamen-
arcabouço jurídico, o italiano, para conseguir a redução das te, permitido, obrigado e proibido, não constando da dicção
sobrenormas às expressões fundamentais do deôntico. Sua original do acatado Professor da Universidade de Turim. De-
inestimável contribuição, por assumir foros de universalidade mais, as diversas combinações não têm caráter comutativo,
para o direito, como objeto do mundo cultural, facilita a pro- equivale a afirmar que (OP) e (PO) não são a mesma coisa. A
posta que nos dispusemos a oferecer. ordem dos signos é importante para traduzir esta compreensão
da regra que declara como outras regras podem, devem ou não
Deveras, após encetar a formalização das regras de cons- podem ser criadas.
trução de outras regras, o mencionado teórico chega a encontrar
a presença de modalizadores deônticos combinados dois a dois, O momento não esconde o elevado grau de elaboração
de tal sorte que o constituinte "permite", "obriga" ou "proíbe" teorética. Nada obstante, a aplicação prática é pronta e ime-
o exercício da própria atividade de edição normativa, enquanto diata, o que nos traz à lembrança o ensinamento sempre vivo
o segundo, reduzido aos mesmos símbolos ("permitido", "obri- de Pontes de Miranda, de que não há diferença entre a teoria
gado" ou "proibido"), determina os elementos de conteúdo e/ou e a prática, pois o que existe, efetivamente, é o conhecimento
de forma que o preceito há de ter ou de evitar. Por meio desse do objeto.
expediente, Bobbio distingue nove categorias de normas de Deixando de lado os exemplos que Bobbio aduz, por se
sobrenível, utilizando-as para enunciar disposições da Consti- reportarem ao direito italiano, não é penoso verificar as inú-
tuição italiana. Vamos apresentá-las, em vernáculo, associando meras correlações entre as categorias expostas e prescrições
a cada qual a correspondente expressão simbólica. explícitas de nosso Diploma Constitucional. Os dispositivos que
outorgam a competência para instituir tributos estão, todos
eles, contidos na letra "a", isto é, são normas que permitem
143. Norberto Bobbio, Teoria dell'ordinamento giuridico, Turim, G. Giappi- obrigar (PO), entendendo "obrigar" por disciplinar, regular,
chelli Editore, pp. 37-39. criar direitos, obrigações e sanções. Os entes políticos, a quem
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é deferida a possibilidade de inovar a ordem jurídica, criando (VO) - "proibido obrigar" - fazendo entrever que o constituinte
tributos, não estão obrigados a fazê-lo. Há, simplesmente, per- estatui uma vedação que inibe o legislador ordinário de regular
missão constitucional determinada, donde o simbolismo (PO), específicas matérias. Aquele que comanda (legislador constitu-
isto é, "normas que permitem obrigar". Certos mandamentos cional) firma a proibição de que o destinatário da regra (o legis-
constitucionais, que também falam da formação de outras re- lador infraconstitucional) discipline certas situações, obviamen-
gras, aparecem de modo diferente, já que se manifestam por te para tolher o surgimento de vínculos jurídico-tributários.
diversa associação deôntica. É o caso, por exemplo, do coman- Saquemos o rico exemplo do art. 150, IV, da CR. Nele há
do que emerge do art. 155, § 2Q, inciso II, quando o constituin- várias normas imunizantes. Todas elas, porém, reduzidas à
te alude à não-cumulatividade do gravame: "será não cumu- expressão mais simples, substanciam proibições claras e pe-
lativo, compensando-se o que for devido em cada operação remptórias, com indicação precisa do objeto da interdição.
relativa à circulação de mercadorias ou prestação de serviços Esses os dois elementos que põem à calva a fisionomia própria
com o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou outro das regras de imunidade. Delas não se separam, o que torna
Estado ou pelo Distrito Federal". Tal mensagem, que se não fácil identificá-las, a cada passo.
confunde com a primeira, expressa "norma que obriga a obri-
A doutrina tradicional tem prestigiado esses aspectos,
gar", o que representa uma determinação inequívoca do legis-
como já foi lembrado. Todavia, falar apenas em proibição ex-
lador da Constituição no sentido de que a disciplina do impos-
pressa, com objeto determinado, ainda não é suficiente. Outro
to consagre o princípio da não- cumulatividade. Formalizando,
ponto tem de ser explanado, sem o que a compreensão do tema
teremos (00). E, de entremeio, poderíamos apontar uma ter-
não poderá ser integral. Para tanto, algumas considerações
ceira norma constitucional, asilada na formulação daquele
metajurídicas serão imprescindíveis.
mesmo dispositivo, mas com vistas ao legislador complementar,
de sorte que expeça lei, definindo os termos da não-cumulati-
vidade. Em linguagem formal encontraremos novamente os e) Técnicas do constituinte para impedir o exercício da ativida-
de legislativa. Os princípios ontológicos. Proibição forte e
signos (00).
proibição fraca
A propósito, registre-se a presença de três comandos da
As proibições da atividade legiferante, advindas do Texto
Lei Suprema convivendo num único esquema oracional, con-
Supremo, assumem duas formas bem distintas. Veda-se a ini-
substanciado na redação do citado art. 155, § 2Q, inciso II. Dele,
ciativa do legislador infraconstitucional para editar normas
diríamos que se desprendem três grupos de dois functores,
jurídicas, tanto pela via do impedimento expresso quanto pela
aqui consignados desse modo: (PO), (00) e (00). Cada precei-
circunstância de o legislador constituinte não atribuir poderes
to está encerrado dentro de parênteses e a expressão pode ser
à pessoa política considerada. A não adjudicação de prerrogati-
lida assim: "é permitido ao legislador dos Estados instituir a
vas para legislar sobre determinados assuntos é obstáculo tão
disciplina jurídica do ICMS. Ao fazê-lo estará obrigado a adotar
poderoso como a vedação explícita, se atinarmos aos resultados
o princípio da não-cumulatividade, nos termos de lei comple-
objetivos que provoca. Tudo por virtude do princípio ontológico
mentar que será editada para esse fim".
- "aquilo que não estiver permitido estará proibido" - comple-
É a hora de cifrar a composição deôntica peculiar que as mento perfeito daquel'outro - "o que não estiver proibido esta-
normas de imunidade apresentam. Se as reduzirmos ao mínimo rá permitido". Com tais postulados, pretendem alguns o fecha-
simbólico, vamos nos deparar, iterativamente, com a combinação mento do direito positivo, uma vez que abrangeriam, reunidos,
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todos os comportamentos possíveis do homem, nas suas rela- Não há de ser assim, porém. O comando que imuniza
ções de inter-humanidade. O primeiro está voltado para o di- ingressa no universo do direito positivo por intermédio de uma
reito público, operando no terreno das normas de construção. autêntica norma jurídica, entendida a expressão na plenitude
O segundo, por sua vez, ilumina as regras de aplicação, viradas, do seu significado lógico. E a vedação tácita, implícita ou oblí-
diretamente, para as disciplinas da conduta das pessoas. qua, proibição fraca que é, não entra no ordenamento como
Transportando-se o primado ontológico que se aplica às conteúdo de regra jurídica e por isso não pertence à região
normas de direito público para o quadro das imposições tribu- normativa do direito positivo por intermédio de uma autêntica
tárias, descobriremos uma proibição igualmente eficaz, um norma jurídica. Uma é norma jurídica (proibição forte), a outra,
obstáculo também consistente, porquanto o político não pode não (proibição fraca). Sobre a dúvida, Garcia Maynez 145 leciona,
ultrapassar os limites da sua competência, quer desrespeitan- com sutileza:
do vedações explícitas, quer editando normas que não tenham
fundamento de validade em dispositivo constitucional próprio. "El principio `lo que no está juridicamente permitido está
A reflexão nos põe diante de uma similitude de efeitos tal que juridicamente prohibido' son juicios enunciativos y, e o ipso,
autoriza asseverarmos existirem dois modos de proibição: a no pueden servir como pautas para suprimir lagunas o
resolver casos concretos de la experiência jurídica. Lo dicho
expressa, gravada fisicamente no texto legal, e a implícita, isto
equivale a sostener que no son normas explícitas o implíci-
é, aquela que se depreende pela ausência de permissão osten-
tas — sino verdades de razón que expresan determinadas
siva. As últimas são em número infinito, abarcando todo o conexiones de orden formal entre lo juridicamente prohi-
conjunto das ações humanas não tipificadas para fins tributá- bido y lo juridicamente permitido (...)."
rios. As duas providências vedatórias apareciam como alterna-
tivas do legislador constitucional, no instante da decisão política, O pensamento de Von Wright 146 , pioneiro da formalização
e poderíamos chamá-las de "proibição forte" (expressa) e "proi- da linguagem normativa, chega a idêntica ilação. Para ele: "Los
bição fraca" (implícita), à maneira de von Wright' 44 , quando permissos débiles no son en absoluto prescriciones o normas.
menciona a "permissão forte" e "a "permissão fraca". Solo un permiso fuerte es um caráter de las normas" (sublinha-
De fato, articulando o raciocínio, não seria nenhum des- mos). E a analogia entre normas que permitem e que proíbem
tempero aludir à imunidade de que os súditos do Município se nos afigura plenamente cabível.
desfrutariam de não sofrerem exigências de IPTU por parte
do Estado-membro. A unidade federada esbarraria num em- f) As imunidades como regras de incompetência de objeto deter-
peço constitucional de grandes dimensões, inequívoca inter- minado
dição aos seus propósitos. Muito bem. Se estamos ao pé de um Supomos demonstrado, há muito tempo, o teorema de
obstáculo posto pelo constituinte, que impede o exercício da que normas de conteúdos deônticos diferentes irradiam efeitos
atividade legislativa ordinária, no que tange à instituição de jurídicos distintos. O fenômeno é atribuído à utilização dos três
tributo, soaria até natural chamar a vedação implícita pelo
nome de "imunidade".

145.Eduardo Garcia Maynez, Lógica del raciocínio jurídico, México, Fondo


de Cultura Económica, 1964, p. 52.
144. G. Henrik Von Wright, Norma y acción: Una investigación lógica. Tradu-
146.G. Henrik Von Wright, Norma y acción: una investigación lógica. Tradu-
ção espanhola de Pedro Garcia Ferrero, Madrid, Technos, 1970, p. 101. ção espanhola de Pedro Garcia Ferrero, Madrid, Technos, 1970, p. 102.
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modais - "permitido", "obrigado" e "proibido" - que, a despei- g) Definição do conceito de imunidade tributária
to de realizarem o mesmo elemento implicacional - o functor Ao coordenar as ponderações que até aqui expusemos,
dever-ser - fazem-no cada qual a sua maneira. A verdade é que
começa a aparecer o vulto jurídico da entidade. É mister,
permitir, obrigar ou proibir são formas específicas de influir
agora, demarcá-lo, delimitá-lo, defini-lo, atentos, porém, às
no comportamento das pessoas, formando o tecido da ordem
próprias críticas que aduzimos páginas atrás, a fim de que
jurídica. Sendo assim, cumpre discernir, entre as muitas regras
não venhamos, por um tropeço metodológico, nelas nos en-
de construção, as que permitem obrigar (normas que outorgam
redar. Recortamos o conceito de imunidade tributária, única
competência) das que proíbem obrigar (normas que declaram
e exclusivamente, com o auxílio de elementos jurídicos subs-
a incompetência). Em símbolos formais, diremos: (PO) (VO),
tanciais à sua natureza, pelo que podemos exibi-la como a
permanecendo constante a modalidade (0), que participa dos
classe finita e imediatamente determinável de normas jurídicas,
dois núcleos associativos.
contidas no texto da Constituição da República, e que estabe-
Ora, como nominamos, as permissivas (PO) de regras que lecem, de modo expresso, a incompetência das pessoas políticas
conferem competência, boa razão existe em chamarmos as de direito constitucional interno para expedir regras institui-
proibitivas (VO) de normas que declaram a incompetência, não doras de tributos que alcancem situações específicas e suficien-
incorrendo no mau vezo de definir pela negativa, visto que é a temente caracterizadas.
descrição genuína do próprio miolo da disposição normativa
Com essa definição, que é relativamente breve, ficam bem
que põe o impedimento constitucional.
acentuadas as linhas básicas da figura, desprezadas que foram
Mas a declaração de incompetência tem de vir acompa- todas as notas estranhas à compostura do raciocínio jurídico.
nhada de um objeto determinado. Não pode ser vaga ou gené-
Vejamos:
rica. O comando que proíbe há de dizer, claramente, aquilo que
está proibido, individualizando as categorias de pessoas, situ-
ações e/ou coisas alcançadas pelo dispositivo. Para que se 1) É uma classe finita e imediatamente determinável
configure a existência de uma regra de imunidade tributária é A cláusula é relevante para demonstrar que as imunidades
mister que a vedação, sobre ser expressa, assuma o satisfatório tributárias são somente aquelas explicitadas na Carta Magna,
grau de especificidade. Não cabe na rubrica a interdição incer- compondo um grupo de elementos que, a qualquer momento,
ta, imprecisa, indefinida, que deixe dúvidas ao intérprete acer- pode ser determinado nas suas várias unidades. A finitude é
ca da qualificação jurídica das pessoas, situações ou coisas. traço diferencial importante, se levarmos em conta a infinitu-
de própria das proibições implícitas.
A determinação do objeto sobressai com nitidez em qual-
quer dos exemplos de que nossa Constituição é farta. Tomemos
a mensagem exarada pelo art. 150, IV, que já foi trazido à cola- 2) De normas jurídicas
ção. Em todas as alíneas, os segmentos sobre os quais está O tópico é fundamental. Com indicar que as imunidades
i mpedida a produção de normas tributárias apresentam-se são normas jurídicas, estaremos afastando a idéia de imiscuir-
devidamente caracterizados, seja nas hipóteses em que a des- mos no seu conceito a multiplicidade de vedações tácitas,
crição típica impõe a presença de certa pessoa (imunidade originadas pela lembrança do princípio ontológico mediante o
subjetiva), seja também naquelas em que o fato referido com- qual o que não estiver permitido estará proibido, aplicável à
porta agente indiscriminado (imunidade objetiva). disciplina do direito público. Este é um princípio implícito,
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utilíssimo para a compreensão do sistema positivo, como juízo 5) Para expedir regras instituidoras de tributos que alcancem
enunciativo que é, mas não se reveste dos caracteres lógico- situações específicas e suficientemente caracterizadas
formais das regras jurídicas, como realidade que integre a A incompetência que a edição constitucional estipula
região ôntica do jurídico-normativo. evidentemente que não há de sufocar por inteiro a atuosidade
legiferante das pessoas investidas de personalidade política no
3) Contidas no texto da Constituição da República campo tributário. O impedimento se refere apenas à instituição
O universo do direito positivo brasileiro abriga muitas de tributos, como que se evita sejam aquelas situações onera-
interdições explícitas que, num instante considerado, podem das por via desse instrumento jurídico-impositivo. Em contra-
ter o condão de inibir a atividade legislativa ordinária, escala nota, não havendo exigência de gravame, estarão livres para
hierárquica em que nascem as regras tributárias em sentido estatuir as providências administrativas que bem convierem
estrito. Tão-somente aquelas que irromperem do próprio tex- aos fins públicos.
to da Lei Fundamental, entretanto, guardarão a fisionomia Para que fique delineado o perfil do instituto, cabe obser-
jurídica de normas de imunidade. O quadro das proposições var a necessidade premente de que a situação esteja tipificada,
normativas de nível constitucional é seu precípuo campo de de tal arte que nenhum outro expediente seja preciso para sua
eleição. perfeita identificação no mundo factual. A qualificação utiliza-
da pelo comando constitucional tem de ser bastante em si
4) E que estabelecem, de modo expresso, a incompetência das mesma para compor hipótese de imunidade, o que não exclui
pessoas políticas de direito constitucional interno a participação do legislador complementar na regulação dos
condicionantes fácticos definidos pela norma imunizante.
É imperioso que o núcleo deôntico do comando constitu-
cional denuncie uma proibição inequívoca, dirigida aos legis-
ladores infraconstitucionais e tolhendo-os no que tange à 1.4.4. Sistema constitucional tributário e as imunidades
emissão de regras jurídicas instituidoras de tributos. O isola-
Ocupar-se do sistema tributário a partir do texto consti-
mento do núcleo de cada proposição normativa pressupõe o
tucional é imposição inarredável, quando se trata do direito
emprego do processo de formalização, pelo qual se caminha
brasileiro, dadas as peculiaridades e a tradição histórica de
em busca das estruturas lógicas. E quando nos deparamos com
nossas instituições. Em matéria de tributos, o sistema, que
a associação dos modais (VO) - proibido obrigar - teremos
Christian Wolff chamou de "nexus veritatum", foi concebido e
achado a afirmação ostensiva e peremptória de incompetência,
está cravado no Estatuto Supremo, de tal modo que estudá-lo
justamente o contrário daquelas outras (P0) - permitido obrigar a sério supõe reflexões aturadas a respeito da organização
- que atribuem poderes para legislar. Daí falar-se em normas constitucional do ordenamento vigente. O assunto, sempre é
que estabelecem a incompetência. bom frisar, foi versado de maneira inexcedível por Geraldo .

A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios Ataliba, que demonstrou o asserto em páginas memoráveis.
são as três pessoas de direito constitucional interno que men- Por outro lado, uma das posturas cognoscentes de quem
cionamos. No direito brasileiro são as únicas dotadas de per- toma o jurídico como objeto de preocupações é, certamente, a
sonalidade política e, portanto, credenciadas a legislar, inovan- de descrevê-lo no seu processo crescente e contínuo de produ-
do a ordem jurídica. ção de normas jurídicas, momento em que se revela o impulso
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

do direito para se dirigir à concrescência da vida humana em Vale salientar, a propósito, que a concepção do sistema
sociedade. A vocação de projetar-se com esse vetor direcional tributário montado pelo constituinte se assenta na estrutura
para o plano das interações entre os indivíduos mostra o ju- mesma da formação jurídica do Estado brasileiro, com o intei-
rídico em pleno vigor de sua experiência, atuando para rea- ro teor de sua complexidade, uma vez que na raiz de todas as
lizar seus objetivos e, desse modo, implantar os valores que variações está presente a Federação, a República e os Municí-
persegue. pios autônomos, bem como suas implicações imediatas e indi-
retas. E o caminho percorrido para a consecução desse traça-
A escolha, porém, do segmento que será isolado para fins
do foi o da repartição das competências entre as pessoas jurí-
da "construção descritiva"; do intervalo de normas a ser fixado
dicas dotadas de personalidade política: Estados, Municípios,
metodologicamente como o "domínio do objeto", é decisão de
Distrito Federal e União. Neste sentido, dizer como se apre-
puro caráter subjetivo, inspirada pelas preferências e inclina-
senta o direito posto em determinado território, surpreendido
ções de cada observador ao conceber a elaboração do trabalho.
em intervalo de tempo devidamente especificado, é referir os
Sobre o tema, aliás, é preciso dizer que carece de sentido emi-
atos normativos do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do
tir juízos de valor a respeito do maior ou menor cabimento no
Poder Executivo, bem como os expedientes lavrados pelos
separar-se determinada porção do direito posto, já que a pre-
particulares, no âmbito da "competência" que o sistema lhes
tensa "neutralidade científica" garantiria sempre a legitimida-
atribui.
de da indicação.
Ora, entre as regras competenciais estão as de "imunida-
Acontece que o ser humano, atrelado inexoravelmente
des", como preceitos delimitadores negativos do exercício le-
aos tempos e aos espaços do seu contorno existencial, contido
giferante. Quando se percorre o eixo temático das imunidades
pelos horizontes de sua cultura, mesmo naquelas contingências
tributárias, ilustrando as prescrições constitucionais com a
em que se sente tomado de forma arrebatadora pelos encantos
sequência do processo de positivação, até chegar às normas
da razão, não pode apartar-se, um instante sequer, dos quadros
individuais e concretas que dão sentido de eficácia ao sistema
e dos padrões axiológicos que lhe são ínsitos. E os valores atu-
normativo, estar-se-á delineando o próprio desenho compe-
am, ainda que silenciosamente, presidindo as decisões de cada
tencial trazido pela Constituição.
conduta, de cada decisão, acompanhando de perto a mutável
e turbulenta vida social. Sob o enfoque dessas atribuições constitucionais, as enti-
dades tributantes, no exercício de suas prerrogativas, ficam
Com esses torneios, pretendo deixar claro que seria lícito
atreladas a cadeias de normas cujo fundamento último são os
ao autor de uma obra jurídico-científica demarcar a região que
preceitos competenciais contidos e demarcados no Texto Su-
melhor lhe aprouvesse do direito positivo para, sobre ela, fazer
premo, na forma indicativa expressa de autorizações e de veda-
incidir seu esforço descritivo. A ninguém caberia impugnar-lhe
ções, estas últimas designadas pelo nome de "imunidades".
a escolha ou censurar-lhe a iniciativa. Todavia, não posso dei-
xar de enaltecer que a opção pela via constitucional, pelo en- Sendo assim, uma vez cristalizada a delimitação do poder
foque da Lei Suprema, onde repousam os fundamentos de legiferante, pelo legítimo agente (o constituinte), a matéria se
validade de todas as regras do sistema, oferece uma visão dá por pronta e acabada, carecendo de sentido sua reabertura
grandiôsa do objeto, além de ordenar a descritividade, fazendo- em nível infraconstitucional. Nesses termos, observa-se quão
a iniciar-se pela fundação última de todas as indagações que rígido é o sistema constitucional tributário brasileiro, aspecto
se situem na esfera própria da juridicidade. que não pode ser ignorado pelo legislador (em sentido amplo)
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

infraconstitucional. Por esse motivo, a União, os Estados, o conjuntamente, em disposições de um mesmo capítulo, ressal-
Distrito Federal e os Municípios, ao instituírem uma exação tando os autores pontos aproximativos entre as duas realidades
cuja competência lhes foi atribuída pela Carta Magna, devem normativas. Traçam, dessa maneira, linhas paralelas por onde
ater-se aos limites ali estabelecidos, elegendo como fatos tri- correm os temas, mantendo suas peculiaridades, mas, ao mes-
butáveis somente aqueles que não se enquadrem no conceito mo tempo, mostrando caracteres de similitude. Anunciam que,
delimitado pelos dispositivos sobre as imunidades. no final das contas, seja no caso de imunidade ou na hipótese
de isenção, inexiste o dever prestacional tributário, aspecto
Com supedâneo nessas premissas é possível preencher o
que justifica o paralelismo entre as instituições.
arranjo sintático da regra-matriz de incidência tributária com
a linguagem do direito positivo, saturando as variáveis lógicas Visão dessa ordem não se coaduna com a devida compre-
com o conteúdo semântico constitucionalmente previsto e ensão do papel sistemático que a norma de imunidade e a de
identificando o arquétipo constitucional da imunidade. isenção desempenham na fenomenologia jurídico-tributária
em nosso país. O paralelo não se justifica. São proposições
Os tratados e as convenções internacionais também rece-
normativas de tal modo diferentes na composição do ordena-
bem refinado tratamento. É tema que vem debatido com argu-
mento positivo que pouquíssimas são as regiões de contato.
mentos vigorosos e convincentes o modo de situar as regras
Poderíamos sublinhar tão-somente três sinais comuns: a cir-
que autorizam a União, enquanto pessoa jurídica no contexto
cunstância de serem normas jurídicas válidas no sistema; in-
do direito das gentes, a "desonerar" impostos estaduais, do
tegrarem a classe das regras de estrutura; e tratarem de ma-
Distrito Federal e dos Municípios; mas, neste instante, não nos
téria tributária. Quanto ao mais, uma distância abissal separa
cabe prolongar esta discussão.
as duas espécies de unidades normativas.
Por essas e outras que, no tocante às imunidades tributá-
rias, há que se ater à idéia de que são manifestações normativas O preceito de imunidade exerce a função de colaborar, de
forma especial, no desenho das competências impositivas. São
que se incluem no subdomínio das sobrenormas, metaproposi-
ções prescritivas, colaborando, com esquemas negativos, para normas constitucionais. Não cuidam da problemática da inci-
traçar a área de competência das pessoas titulares de poder dência, atuando em instante que antecede, na lógica do sistema,
político e mencionando-lhes os limites materiais e formais da o momento da percussão tributária. Já a isenção se dá no pla-
atividade legiferante. Chegamos até aqui com o propósito de no da legislação ordinária. Sua dinâmica pressupõe um encon-
reconhecer que espécie normativa é a figura da imunidade, e já tro normativo, em que ela, regra de isenção, opera como expe-
sabemos tratar-se de regra que dispõe acerca da construção de diente redutor do campo de abrangência dos critérios da hipó-
outras regras. Além disso, salientamos que o espaço frequentado tese ou da consequência da regra-matriz do tributo, como te-
por tais normas é o patamar hierárquico da Constituição da Re- remos a oportunidade de descrever em capítulo ulterior.
pública, porquanto é lá que estão depositadas as linhas definido- Com esses torneios, pretendo deixar claro que são cate-
ras da competência tributária, no direito positivo brasileiro. gorias jurídicas distintas, que não se interpenetram. Não man-
têm qualquer tipo de relacionamento no processo de derivação
1.4.5. Paralelo entre imunidades e isenções ou de fundamentação, a não ser em termos muito oblíquos e
indiretos, como já tive oportunidade de salientar. A conclusão
É da tradição dos escritos da dogmática jurídico-tributá- é no sentido de que não se pode delinear paralelismo entre as
ria brasileira estudar os institutos da imunidade e da isenção mencionadas instituições, como o faz a doutrina brasileira.
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

1.4.6. Imunidade recíproca Predomina a orientação no sentido de que tais fatos não seriam
alcançados pela imunidade, uma vez que os efeitos econômicos
A imunidade recíproca, prevista no art. 150, VI, a, da iriam beneficiar elementos estranhos ao Poder Público, refu-
Constituição é uma decorrência pronta e imediata do postula- gindo do espírito da providência constitucional. A relação ju-
do da isonomia dos entes constitucionais, sustentado pela es- rídica se instala entre sujeito pretensor e sujeito devedor, sem
trutura federativa do Estado brasileiro e pela autonomia dos que haja qualquer participação integrativa dos terceiros bene-
Municípios. Na verdade, encerraria imensa contradição ima- ficiados. E a pessoa jurídica de direito constitucional interno
ginar o princípio da paridade jurídica daquelas entidades e, não pode ocupar essa posição, no setor das exigências tributá-
simultaneamente, conceder pudessem elas exercitar suas com- rias. A tese foi brilhantemente sustentada pelo saudoso Min.
petências impositivas sobre o patrimônio, a renda e os serviços, Bilac Pinto, em memoráveis acórdãos do Supremo Tribunal
umas com relação às outras. Entendemos, na linha do pensa- Federal. E a formulação teórica não pode ficar conspurcada
mento de Francisco Campos 147 , Oswaldo Aranha Bandeira de pela contingência de a entidade tributante, comparecendo
Mellous e Geraldo Atalibam, que, se não houvesse disposição como contribuinte de fato, ter de arcar com o peso da exação,
expressa nesse sentido, estaríamos forçados a admitir o prin-
pois aquilo que desembolsa não é tributo, na lídima expressão
cípio da imunidade recíproca, como corolário indispensável da de seu perfil jurídico.
conjugação do esquema federativo de Estado com a diretriz da
autonomia municipal. Continuaria a imunidade, ainda que A imunidade recíproca é extensiva às autarquias federais,
implícita, com o mesmo vigor que a formulação expressa lhe estaduais e municipais, por obra da disposição contida no art.
outorgou. 150, § 2a, no que atina ao patrimônio, renda e serviços vincu-
lados às suas finalidades essenciais, mas não se aplica aos
É em nome do cânone da supremacia do interesse públi-
serviços públicos concedidos, nem exonera o promitente com-
co ao do particular que a atividade de administração tributária
prador da obrigação de pagar o imposto que grave a promessa
ganha foros de efetividade prática. E não poderíamos compre-
de venda e compra de bens imóveis.
ender como, debaixo dessa mesma linha diretiva, uma pessoa
jurídica de direito público, munida de personalidade política
e autonomia, pelos dizeres explícitos da Constituição, viesse a 1.4.7. Imunidade dos templos de qualquer culto
submeter-se aos poderes de fiscalização e de controle, que são
ínsitos ao desempenho daquele tipo de atividade. Estão imunes os templos de qualquer culto. Trata-se de
reafirmação do princípio da liberdade de crença e prática re-
Problema surge no instante em que se traz ao debate a ligiosa, que a Constituição prestigia no art. 5 2 , incisos VI a VIII.
aplicabilidade da regra que imuniza os impostos cujo encargo Nenhum óbice há de ser criado para impedir ou dificultar esse
econômico seja transferido a terceiros, como no IPI e no ICMS. direito de todo cidadão. E entendeu o constituinte de eximi-lo
também do ônus representado pela exigência de impostos (art.
150, VI, b).
147. Direito constitucional, Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1956, v. 1, p. 18.
148. Tributação dos bens, rendas e serviços das entidades da federação, Dúvidas surgiram sobre a amplitude semântica do vocá-
Revista de Direito, 9: pp. 124 125.
-
bulo culto, pois, na conformidade da acepção que tomarmos, a
149. Sistema tributário constitucional brasileiro, São Paulo, Revista dos Tri- outra palavra - templo - ficará prejudicada. Somos por uma
bunais, 1968, p. 54. interpretação extremamente lassa da locução culto religioso.
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

Cabem no campo de sua irradiação semântica todas as formas E o Código Tributário Nacional, extraindo com acerto o autên-
racionalmente possíveis de manifestação organizada de reli- tico teor de sua competência, oferece, no art. 14, os pressupos-
giosidade, por mais estrambóticas, extravagantes ou exóticas tos para o implemento do desígnio do constituinte. São eles:
que sejam. E as edificações onde se realizarem esses rituais
haverão de ser consideradas templos. Prescindível dizer que o I - não distribuírem qualquer parcela de seu patri-
interesse da coletividade e todos os valores fundamentais tu- mônio ou de suas rendas, a qualquer título;
telados pela ordem jurídica concorrem para estabelecer os li-
mites de efusão da fé religiosa e a devida utilização dos templos II - aplicarem integralmente, no País, os seus re-
onde se realize. E quanto ao âmbito de compreensão destes cursos na manutenção dos seus objetivos institu-
últimos (os templos), também há de prevalecer uma exegese cionais;
bem larga, atentando-se, apenas, para os fins específicos de III - manterem escrituração de suas receitas e des-
sua utilização. pesas em livros revestidos de formalidades capazes
de assegurar sua exatidão.
1.4.8. Imunidade dos partidos políticos e das instituições
educacionais ou assistenciais Neste ponto, a Lei n. 5.172/66 veicula uma verdadeira
norma geral de direito tributário, na sua função reguladora das
As pessoas tributantes são incompetentes para atingir limitações constitucionais ao poder de tributar (CR, art. 146, II).
com seus impostos o patrimônio, a renda e os serviços dos
Como a regra constitucional é de eficácia contida, ficando
partidos políticos, inclusive suas fundações, das entidades
seus efeitos diferidos para o momento da efetiva comprovação
sindicais dos trabalhadores, das instituições de educação e de
das exigências firmadas no Código Tributário, pensamos que
assistência social, observados os requisitos da lei (art. 150, VI,
deve haver requerimento do interessado à autoridade admi-
c). Os partidos são células de capital relevância para a organi-
nistrativa competente, que apreciará a situação objetiva, con-
zação política da sociedade, saindo de seus quadros os repre-
ferindo seu quadramento às exigências da Lei n. 5.172/66, após
sentantes dos vários setores comunitários, que dentro deles
o que reconhecerá a imunidade do partido político ou da ins-
discutem e aprovam os programas e as grandes teses de inte-
tituição educacional ou assistencial.
resse coletivo. As instituições de educação e de assistência
social desenvolvem atividade básica, que, a princípio, cumpri-
ria ao Estado desempenhar. Antevendo as dificuldades de o 1.4.9. Imunidade do livro, dos periódicos e do papel destinado
Poder Público vir a empreendê-la na medida suficiente, o le- à sua impressão
gislador constituinte decidiu proteger tais iniciativas com a
outorga da imunidade. Tanto uns quanto outros, não sofrendo A redação do art. 150, VI, d, da CR menciona o livro, o
i mposições por tributos não vinculados, mas na condição de jornal, os periódicos, e o papel destinado à sua impressão. Há
observarem os quesitos estabelecidos em lei. indisfarçável redundância, porquanto o jornal é um periódico,
aliás, de periodicidade diária, na maioria das vezes, segundo
Apesar do entendimento contrário de alguns autores,
sua própria etimologia.
parece-nos de cristalina evidência que a lei a que se reporta o
comando constitucional é a complementar, mais precisamente Qualquer livro ou periódico, e bem assim o papel utiliza-
aquela prevista no art. 146, II, da Constituição da República. do para sua impressão, sem restrições ou reservas, estarão à

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

margem dos anseios tributários do Estado, no que concerne que onera as operações de crédito, câmbio e seguro, ou relativas
aos impostos. De nada vale arguir que a frequência da edição a títulos ou valores mobiliários, pode alcançar o ouro, desde que
seja pequena, que o livro tenha características especiais, ou, seja ele definido em lei como ativo financeiro ou instrumento
ainda, que o papel não seja o mais indicado para a impressão. cambial. Esse o mandamento inscrito no art. 153, § 5 2 .
Provado o destino que se lhe dê, haverá a imunidade. Para essa Trata-se de imunidade, também, a hipótese mencionada
hipótese, sendo uma disposição de eficácia plena e aplicabili- no art. 155, § 2 2 , X, a, da CR, envolvendo, agora, o ICMS, no
dade imediata, nada tem a lei que complementar. que concerne às operações que destinem mercadorias para o
Discute-se a propósito da inclusão das listas telefônicas exterior e aos serviços prestados a destinatários situados fora
no âmbito de alcance da regra imunizante do art. 150, VI, d, da do território nacional. Como igualmente estarão imunes as
CR. É fácil perceber o manifesto descabimento da pretensão operações que destinem a outros Estados petróleo, inclusive lu-
fazendária. Certificado que as listas telefônicas têm periodici- brificantes, combustíveis líquidos e gasosos dele derivados, e
dade, que no caso é anual, não pode prosperar qualquer hesi- energia elétrica (art. 155, § 2 2 , X, b, da CR).
tação no reconhecimento da imunidade. Na alínea seguinte (c), desta vez de modo afirmativo, o
A imunidade dos livros, periódicos e do papel destinado legislador constitucional reitera a imunidade do ouro em rela-
à sua impressão é classificada, por muitos, como do tipo obje- ção ao ICMS, nos estritos termos do citado art. 153, § 5 2 , da CR.
tivo, pouco importando as qualificações pessoais da entidade No inciso subsequente (XI), fica estabelecida a imunidade do
que opera com esses bens. ICMS, mas outorgada em estrutura frasal diferente. Diz o le-
gislador que esse gravame (ICMS) "não compreenderá, em sua
base de cálculo, o montante do imposto sobre produtos indus-
1.4.10. Outras hipóteses de imunidade trializados, quando a operação, realizada entre contribuintes
e relativa a produto destinado à industrialização ou à comer-
Encetamos sucinta descrição das referências constitucio-
cialização, configure fato gerador dos dois impostos (grifo nosso).
nais do art. 150, VI, da CR. Outras normas há, no Texto Supre-
E, para encerrar a lista de previsões do art. 155, seu § 3 2 esti-
mo, que definem a incompetência do legislador infraconstitu-
pula que as operações relativas a energia elétrica, serviços de
cional para colher, com impostos, pessoas, coisas ou estados de
telecomunicações, derivados de petróleo, combustíveis e mi-
coisas. Citemos, concisamente, algumas.
nerais do País, estarão imunes a outros impostos, com exceção
2
É preceito imunizante aquele gravado no art. 153, § 3 , do ICMS, imposto de importação e exportação.
III, da CR, segundo o qual o IPI não incidirá sobre produtos
Quanto ao imposto sobre transmissão de bens e direitos,
industrializados destinados ao exterior. inscrito no art. 156, II, da CR, há a imunidade referida no § 2 2 ,
2
Outrossim, é de imunidade a previsão do art. 153, § 4 , II, I, vedando a incidência desse tributo sobre a transmissão de
ao proclamar que o imposto territorial rural não incidirá sobre bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídi-
pequenas glebas rurais, definidas em lei, quando as explore, só ca em realização de capital, ou na transmissão de bens ou di-
ou comsua família, o proprietário que não possua outro imóvel. reitos decorrentes de fusão, incorporação, cisão ou extinção de
Da mesma forma, é consagrada a imunidade do ouro, com pessoa jurídica, salvo se, nesses casos, a atividade preponderan-
relação a todos os impostos que não aquele previsto no art. 153, te do adquirente for a compra e venda desses bens ou direitos,
V. Significa dizer, por outra retórica, que somente o imposto locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

Curioso observar que a previsão do art. 156, § 3 2 , II, da civil de casamento e da certidão de óbito, por determi-
CR, que parece ser, à primeira vista, caso de imunidade, não nação do art. 5Q, LXXVI, a e b, da CR.
se configura como tal, precisamente porque remete à lei com- 6. Quem impetrar habeas corpus e habeas data estará
plementar e, como vimos, a proibição deve exaurir-se no alti- imune às custas (taxas) judiciais correspondentes, bem
plano da Constituição. como todos aqueles que, na forma da lei, praticarem
Por outro lado, são operações imunes aquelas previstas atos necessários ao exercício da cidadania, na confor-
no § 5Q do art. 184 da CR, a despeito de o legislador constituin- midade do que prevê o art. 5 2 , LXXVII, da CR.
te ter empregado o termo "isentas". Bem de ver que não será
7.A contribuição para a seguridade social somente inci-
a atecnia do editor da regra que irá comprometer a compreen- dirá sobre os valores dos proventos da aposentadoria e
são da figura.
pensão, concedidos pelo regime do art. 40 da CR, que
superem o limite máximo estabelecido para os benefí-
1.4.11. Imunidades de taxas e de contribuições cios do programa geral de previdência social de que
trata o art. 201 (art. 40, § 18, da CR). Desse modo, as
A comprovação empírica de que as imunidades transcendem quantias situadas abaixo desse patamar estão imunes
os impostos, alcançando taxas e contribuições, pode ser facilmen- à referida contribuição previdenciária.
te verificada atinando-se às situações abaixo relacionadas.
8. Conquanto o legislador constitucional mencione a pa-
1. "São a todos assegurados, independentemente do paga- lavra "isentas", há imunidade à contribuição para a
mento de taxas (grifo nosso): seguridade social por parte das entidades beneficentes
a) o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de assistência social que atendam às exigências estabele-
de direito ou contra ilegalidade ou abuso de poder; cidas em lei, consoante dispõe o art. 195, III, § 7Q, da CR.
b) a obtenção de certidões em repartições públicas, para 9. Nos termos do art. 149, § 2 2 , I, da CR (com redação dada
defesa de direitos e esclarecimento de situações de in- pela Emenda Constitucional n. 33/2001), há imunidade
teresse pessoal" (art. 5 2 , XXXIV, da CR). das contribuições de intervenção no domínio econômi-
2. Garantindo a gratuidade do casamento civil, o art. 226, co, relativamente às receitas oriundas de operações de
§ 1Q, da CR, impede a cobrança de taxa pela correspon- exportação.
dente celebração.
3. Sempre que o serviço de transporte coletivo urbano for
remunerado por via de taxa, prevalecerá a imunidade
para os maiores de 65 (sessenta e cinco) anos, a que
refere o art. 230, § 2Q, da CR.
4. O cidadão que propuser ação popular, nos termos do
art. 5Q, LXXIII, da CR, estará imune às custas judiciais
(taxas).
5. Àqueles reconhecidamente pobres, nos termos da lei,
é conferida a imunidade referente às taxas do registro
376 377
Capítulo 2
LEI COMPLEMENTAR TRIBUTÁRIA
Sumário: 2.1. Normas gerais de direito tributário
—2.1.1 Funções e limites das "normas gerais de di-
reito tributário" — 2.1.2. Hierarquia das leis comple-
mentares: hierarquia formal e hierarquia material
—2.1.3. Lei complementar e regras de estrutura —
2.1.4. O Código Tributário Nacional perante a
Constituição da República — 2.1.4.1. Normas gerais
de direito tributário na estrutura do CTN — 2.1.4.2.
Exegese sistemática e compreensão do alcance das
normas gerais de direito tributário. 2.2. Tributo —
2.2.1. Conceito de tributo — 2.2.2. Classificação das
espécies tributárias — 2.2.3. Comentários sobre o
preço público no direito tributário — 2.2.3.1. A con-
traprestação de serviços públicos e a cobrança de
tarifas — 2.2.4. Aplicabilidade da classificação das
espécies tributárias: a "contribuição ao FUST". 2.3.
Fontes do direito — 2.3.1. A noção de fonte do direi-
to — 2.3.1. A noção de fonte do direito — 2.3.2. O di-
reito como linguagem empregada na função prag-
mática de regular condutas — 2.3.3. A prescritivida-
de do direito no Preâmbulo da Constituição — 2.3.4.
O perfil do preâmbulo no direito positivo brasileiro
—2.3.4.1. Retórica e Preâmbulo — 2.3.4.2. Preâmbu-
lo, ementa e exposição de motivos — 2.3.4.3. Súmu-
la dominante e Súmula vinculante — 2.3.4.4. O
preâmbulo como feixe de marcas da enunciação,
meio eficaz de acesso ao quadro axiológico que
presidiu a edição do Texto Constitucional — 2.3.4.5.
Comandos de sobrenível — prescrições sobre pres-
crições — 2.3.5. O axioma da hierarquia das normas
e a teoria das fontes do direito — 2.3.6. Fonte do di-
reito e fonte da Ciência do Direito — 2.3.7. Revogação
tributária — 2.3.8. Revogação e anulação dos atos

379
PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

jurídicos administrativos. 2.4. Sistema e norma: pectos da extinção do crédito na forma do vínculo
validade, vigência, eficácia e interpretação da obrigacional disposto no CTN - 2.9.3. Causas extin-
legislação tributária - 2.4.1. Sistema e norma: a tivas no Código Tributário Nacional - 2.9.4. Paga-
validade da norma jurídica tributária - 2.4.2. mento e pagamento indevido - 2.9.5. Compensação
Sistema e norma: a vigência da norma jurídica - 2.9.5.1. A norma geral e abstrata da compensação
tributária - 2.4.2.1. A relação lógico-jurídica entre tributária - 2.9.5.2. A norma individual e concreta
a vigência e os princípios constitucionais da irre- da compensação tributária - 2.9.5.3. A compensação
troatividade e da anterioridade no direito tribu- tributária pleiteada na esfera judicial - 2.9.6. Tran-
tário - 2.4.3. Eficácia jurídica, técnica e social - sação - 2.9.7. Remissão - 2.9.8. Decadência - 2.9.8.1.
2.4.4. Interpretação da legislação tributária e seus Decadência como norma, procedimento e ato -
princípios regentes - 2.4.5. Noções conclusivas. 2.9.8.2. Prazo decadencial aplicável às contribuições
2.5. Conceitos gerais da hipótese de incidência previdenciárias - 2.9.9. Prescrição - 2.9.9.1. Inter-
tributária - 2.5.1. Os critérios da "hipótese tribu- rupção do prazo prescricional - 2.9.9.2. Suspensão
tária" - 2.5.1.1. Critério material - 2.5.1.2. Critério do prazo prescricional - 2.9.9.3. Prescrição como
espacial - 2.5.1.3. Critério temporal - 2.5.2. Classifi- forma extintiva da obrigação tributária - 2.9.10.
cação dos fatos jurídicos na conformidade do crité- Conversão de depósito em renda - 2.9.11. Pagamen-
rio temporal da hipótese tributária - 2.5.2.1. Classi- to antecipado e homologação do lançamento -
ficação jurídica com base no critério temporal das 2.9.12. O paradoxo da homologação tácita - 2.9.13.
"hipóteses tributárias" - 2.5.3. Fenomenologia da Decisão administrativa irreformável - 2.9.14. Deci-
incidência tributária e o necessário quadramento são judicial passada em julgado - 2.9.15. Dação em
do fato à norma - 2.5.3.1. A incidência tributária e pagamento em bens imóveis na forma e condições
o "tipo estrutural" - 2.5.4. Interpretação dos fatos: estabelecidas em lei. 2.10. "Exclusão" do crédito
delimitação do conteúdo de "fato puro", "fato con- tributário - 2.10.1. Teoria da norma e as isenções
tábil" e "fato jurídico" - 2.5.5. Considerações finais tributárias - 2.10.2. Evolução semântica da descri-
sobre a hipótese tributária. 2.6. Conceitos gerais ção jurídico-científica da isenção - 2.10.3. Isenções
da obrigação tributária - 2.6.1. Composição inter- tributárias e extrafiscalidade - 2.10.4. Anistia fiscal.
na do liame obrigacional - 2.6.2. Obrigação tributá-
ria no CTN - 2.6.3. Obrigação tributária e os deveres
instrumentais - 2.6.4. 0 fato jurídico tributário e seu
efeito peculiar instaurar o vínculo obrigacional -
2.1. NORMAS GERAIS DE DIREITO TRIBUTÁRIO
2.6.5. Crédito, débito e obrigação tributária: limites
conceptuais. 2.7. Crédito tributário e lançamento A ordenação jurídica é una e indecomponível. Seus elemen-
- 2.7.1. Surgimento do crédito tributário - 2.7.2. tos - as unidades normativas - se acham irremediavelmente
Noções preliminares do lançamento tributário - entrelaçados pelos vínculos de hierarquia e pelas relações de
2.7.3. Significado da palavra "lançamento" e a coordenação, de tal modo que tentar conhecer regras jurídicas
constituição do crédito pelo sujeito passivo - 2.7.4. isoladas, como se prescindissem da totalidade do conjunto, seria
Lançamento: norma, procedimento e ato - 2.7.5.
ignorá-la enquanto sistema de proposições prescritivas. Seu
Auto de infração e lançamento tributário - 2.7.6.
Lançamento, "lançamento por homologação" e discurso se organiza em sistema e, ainda que as unidades exerçam
prazo decadencial para restituição do indébito. 2.8. papéis diferentes na composição interna do conjunto (normas
Suspensão da exigibilidade do crédito tributário de conduta e normas de estrutura), todas elas exibem idêntica
- 2.8.1. As hipóteses do artigo 151 do CTN - 2.8.2. arquitetura formal. Há homogeneidade, mas homogeneidade sob
Moratória e a sua disciplina jurídico-tributária - o ângulo puramente sintático, uma vez que nos planos semânti-
2.8.3. Depósito do montante integral do crédito -
2.8.4. Concessão de medida liminar em mandado
co e pragmático o que se dá é forte grau de heterogeneidade,
de segurança - 2.8.5. Parcelamento. 2.9. Extinção único meio de que dispõe o legislador para cobrir a imensa e
das obrigações tributárias - 2.9.1. O fenômeno da variável gama de situações sobre que deve incidir a regulação do
desintegração da obrigação tributária - 2.9.2. As- direito, na pluralidade extensiva e intensiva do real-social.
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

A secção das normas em dois tipos, sob o critério da fun- i mplícitos, aptos a condicionarem o raciocínio exegético e con-
ção que exercem no sistema, apesar de se apresentar como terem a progressão de estimativas individuais dentro de padrões
estrutura de cunho meramente metodológico, é bastante rica, axiológicos garantidores de uniformidade, harmonia e unidade
na medida em que nos permite separar os diferentes regimes no grande factum comunicativo que é o direito.
jurídicos que a elas o direito impõe. Outrossim, em planos
epistemológicos, as normas jurídicas, como unidades atômicas O delicado relacionamento entre União, Estados-membros,
do sistema, cumprem dois papéis diferentes: umas disciplinam, Municípios e Distrito Federal, pessoas políticas portadoras de
pronta e diretamente, o comportamento - são as regras de autonomia, dá-se pela distribuição rígida das competências im-
conduta; enquanto outras se ocupam também do proceder do positivas, estabelecidas em faixas exclusivas pela técnica tabular,
homem no seio da sociedade, porém o fazem de maneira me- vale dizer, enumerando-se imposto por imposto, com suas espe-
diata e indireta - são as regras de estrutura. E é nessas últimas cificidades. Por sua vez, para as taxas e contribuições de melhoria
que se encontram as normas gerais de direito tributário. há parâmetros seguros que eliminam, quase por completo, a
Tais formulações normativas gerais mostram-se presentes possibilidade de entrechoques jurídicos de pretensão tributante,
no ato de aplicação do direito, quando, no curso do processo de tendo em vista que União, Estados, Distrito Federal e Municípios
positivação das estruturas individuais e concretas, são verificadas só estão autorizados a instituir e cobrar taxas conforme desem-
todas as regras superiores que lhe dão fundamento de validade. penhem a atividade que serve de pressuposto para sua exigência,
É pela aplicação que se constrói o direito em cadeias sucessivas sendo permitida a instituição de contribuição de melhoria apenas
de regras, a contar da norma fundamental, axioma básico da pela pessoa jurídica de direito público que realizar a obra pública
existência do direito enquanto sistema, passando pelas normas
geradora de valorização imobiliária dos particulares.
gerais, até chegar àquelas particulares, não passíveis de ulteriores
desdobramentos, e que funcionam como pontos terminais do Não obstante essa pormenorizada distribuição das com-
processo derivativo de produção do direito. Nesses entremeios, petências entre as pessoas políticas, há campos da incidência
as normas gerais vão tecendo a estrutura das outras regras, pelo tributária que ensejam dúvidas sobre o ente constitucional-
direito positivadas, não sendo possível que se faça construção de mente autorizado a exigir tributos com relação a determinados
norma individual e concreta nenhuma sem que se passe pelos fatos, em razão, como bem anota Sacha Calmon Navarro Coelho 15 °,
li mites normativos impostos pelas normas gerais de direito.
da "insuficiência intelectiva dos relatos constitucionais pelas
pessoas políticas destinatárias das regras de competência, rela-
2.1.1. Funções e limites das "normas gerais de direito tributário' tivamente aos fatos geradores de seus tributos". Por esse motivo,
preocupado em manter o esquema federativo e a autonomia
A despeito de complexo, nosso ordenamento tributário tem
dos Municípios, o constituinte atribuiu à lei complementar, com
sua racionalidade, de tal sorte que seus destinatários, se dese-
jarem, não ficarão perdidos, entregues à prática de construções sua natureza ontológico-formal, a incumbência de servir de
de sentido desenvolvidas livremente, cada qual emitindo inter- veículo introdutor de normas destinadas a prevenir conflitos
pretações talhadas por seu exclusivo modo de compreensão e e, consequentemente, invasões de competência (art. 146,1, da
orientadas por sua particular ideologia. O direito posto fixa va- Carta Magna).
lores, impõe direcionamento à regulação das condutas, empre-
gando sempre os modais deônticos obrigatório (Op), proibido
(Vp) e permitido (Pp), mas sofreando os arroubos intelectivos 150. Comentários à Constituição de 1988: sistema tributário, Rio de Janeiro,
do receptor das mensagens, mediante vetores expressos ou Forense, 1990, p. 124.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

A legislação complementar cumpre assim, em termos hierarquia formal e hierarquia material. Aliás, a subordinação
tributários, relevante papel de mecanismo de ajuste, calibran- hierárquica, no direito, é uma construção do sistema positivo,
do a produção legislativa ordinária em sintonia com os man- nunca uma necessidade reclamada pela ontologia objetal. Dito
damentos supremos da Constituição da República. de outra maneira, não é a regulação da conduta, em si mesma,
O conteúdo de tais considerações força-nos a concluir que que pede a formação escalonada das normas jurídicas, mas
se atinarmos à significação axiológica dos grandes princípios uma decisão que provém do ato de vontade do detentor do
constitucionais; se observarmos os limites objetivos que a poder político, numa sociedade historicamente dada.
Constituição estabelece; e se nos ativermos ao dinamismo da Interessa-nos agora o enfoque semântico da hierarquia,
legislação complementar, exercitando as funções que lhe são que, como já dissemos, pode dar-se no aspecto formal e no
próprias, poderemos compreender, adequadamente, os coman- aspecto material. A primeira, quando a norma superior dita
dos tributários, atribuindo-lhes o conteúdo, sentido e alcance apenas os pressupostos de forma que a norma subordinada há
que a racionalidade do sistema impõe. Tudo, entretanto, no de respeitar; a segunda, sempre que a regra subordinante
pressuposto de que se observe, com o máximo rigor, com toda preceituar os conteúdos de significação da norma inferior. O
a radicalização e com inexcedível intransigência, o axioma modo como as leis são produzidas, seus requisitos procedimen-
fundamental da hierarquia, juntamente com o princípio da tais, desde a propositura até a sanção (quando houver); os es-
reserva legal, considerado como aquele segundo o qual os quemas de alteração ou modificação de umas pelas outras;
conteúdos deônticos devem ser introduzidos no ordenamento como também os meios de revogação parcial ou total (ab-ro-
mediante o veículo normativo eleito pela regra competencial. gação), tudo isso concerne ao segmento de indagações da
Sem observação a tais peculiaridades, o sistema se dissolve, hierarquia formal entre regras jurídicas. No domínio material,
transformando-se num amontoado de proposições prescritivas, porém, a hierarquia se manifesta diversamente, indo a norma
sem organização sintática e sem critério que nos possa orientar subordinada colher na compostura semiológica da norma su-
para estabelecer a multiplicidade intensiva e extensiva das bordinante o núcleo do assunto sobre o qual pretende dispor.
normas jurídicas, nos vários patamares do direito posto.
Deste modo, a partir da CR/88, no que concerne ao campo
material, a situação continua a mesma da ordem jurídica an-
2.1.2. Hierarquia das leis complementares: hierarquia formal terior, vale dizer, muitas normas introduzidas no sistema por
e hierarquia material lei ordinária, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios deverão procurar o âmbito de validade material de
Embora revista caracteres peculiares, a existência das seu conteúdo prescritivo em normas da legislação complemen-
normas gerais no direito tributário está intimamente enredada tar. O exemplo eloquente está nas regras que dispõem sobre
à hierarquia do ordenamento positivo. Não há sistema de di- conflitos de competência entre as entidades tributantes. Ins-
reito sem hierarquia, pois seria impossível indicar o fundamen-
talando-se a possibilidade, o legislador complementar expedi-
to de validade das unidades componentes. Decorre disto a
rá disposição normativa cujo conteúdo deverá ser observado
afirmação peremptória, que já falamos, de que o princípio da
e absorvido pelas pessoas políticas interessadas. Trata-se de
hierarquia é um axioma.
hipótese de hierarquia material, em que a regra veiculada por
Há a hierarquia sintática, de cunho eminentemente lógi- lei complementar submete suas inferiores hierárquicas: as
co, assim como há a hierarquia semântica, que se biparte em introduzidas por lei ordinária. Não nos esqueçamos, contudo,
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

de que existem porções privativas para atuação da lei comple- constituinte. Firmemos o alerta, outrossim, que, partindo-se
mentar tributária e o exemplo típico é o das limitações consti- do plano da expressão, não podemos nos deixar envolver pela
tucionais ao poder de tributar. Neste ponto, como os campos literalidade do texto, devendo buscar, incessantemente, as
de irradiação semântica são necessariamente diferentes, não estruturas mais profundas.
há como e por que falar-se em relação de hierarquia. Confirma-
se aqui a precisão da doutrina de Souto Maior Borges quanto A lei complementar, com sua natureza singular, matéria
à impossibilidade de uma visão unitária sobre o tema da su- especialmente prevista na Constituição e quorum qualificado
premacia das leis complementares tributárias. a que alude o artigo 69 deste Diploma - maioria absoluta nas
duas Casas do Congresso — cumpre hoje função institucional
Foi no terreno da hierarquia formal que a Constituição de da mais elevada importância para a estruturação da ordem
1988 trouxe uma inovação de grande alcance para o estudo e jurídica brasileira. Aparece como significativo instrumento de
o entendimento adequado da categoria legislativa que exami- articulação das normas do sistema, recebendo numerosos co-
namos. Logo no parágrafo único do seu artigo 59 instituiu que metimentos nas mais diferentes matérias de que se ocupou o
"Lei complementar disporá sobre a elaboração, redação, altera- legislador constituinte. Viu afirmada sua posição intercalar,
ção e consolidação das leis". submetida aos ditames da Lei Maior e, ao mesmo tempo, su-
Se, como dissemos, as relações de subordinação entre bordinando os demais diplomas legais. Não há como negar-lhe,
normas, bem como as de coordenação, são tecidas pelo sistema agora, supremacia hierárquica com relação às outras leis que,
do direito positivo, o nosso, inaugurado em 1988, houve por por disposição expressa no parágrafo único do art. 59, nela
bem estabelecer que as leis, todas elas, com nome ou com sta- terão que buscar o fundamento formal de suas validades.
tus de lei, fiquem sujeitas aos critérios que o diploma comple- Para temas tributários, a Lei Básica de 1988 prescreveu
mentar previsto no art. 59, parágrafo único da CR estabeleceu, muitas intervenções de legislação complementar, que vão des-
critérios estes prescritos pela Lei Complementar n. 95/98. Note- de a expedição de normas gerais (artigo 146, III) até a própria
se que seu papel é meramente formal, porque nada diz sobre instituição de tributos, como no caso da competência residual
a matéria que servirá de conteúdo significativo às demais leis. da União (artigo 154, I), ou na hipótese de empréstimos com-
Entretanto, nenhuma lei ordinária, delegada, medida provisória, pulsórios (artigo 148, I e II), passando por uma série de assun-
decreto legislativo ou resolução poderá inobservar as formali- tos dos mais variados matizes. Assim é que o imposto sobre
dades impostas por essa Lei Complementar. É a consagração da heranças e doações (artigo 155, I) será regulado por lei com-
superioridade hierárquica formal dessa espécie do processo plementar, tendo em vista a competência para sua criação nas
legislativo com relação às previstas nos outros itens. 2
duas situações previstas no mesmo artigo 155, § 1 , III, a e b.
Esta categoria de estatuto legislativo recebe as incumbências
2.1.3. Lei complementar e regras de estrutura do inc. XII, alíneas a até i, onde valiosos tópicos do ICMS são
referidos. Para mais, cabe à lei complementar "definir os ser-
Fixemos atenção na lei complementar como instrumento viços de qualquer natureza, não compreendidos no artigo 155, II
introdutório de normas gerais de direito tributário, prestigian- (artigo 156, III)", bem como fixar as alíquotas máximas e míni-
do os Primados da Federação e da autonomia municipal para, mas do imposto sobre serviços de qualquer natureza, podendo
dentro desse contexto, encontrar-se a amplitude semântica que excluir da sua incidência exportações de serviços para o exte-
devemos outorgar às locuções empregadas pelo legislador rior, além de regular a forma e as condições como isenções,
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

incentivos e benefícios fiscais serão concedidos e revogados Cabe notar que esse novo enunciado extintivo do crédito,
(artigo 156, § 3Q, I a III). no entanto, não se confunde com a regra-matriz de incidência
Não excede recordar que a Lei n. 5.172/66 - Código Tri- tributária, pois esta continua veiculando o dever de pagar em
butário Nacional - foi aprovada como lei ordinária da União, dinheiro, jamais mediante a entrega de bens. Outra é a norma
visto que naquele tempo a lei complementar não apresentava que preverá a possibilidade de o contribuinte cumprir com a
o caráter ontológico-formal que só foi estabelecido com o ad- obrigação mediante entrega de bem imóvel.
vento da Constituição de 1967. Todavia, com as mutações No âmbito processual, da mesma forma, introduziu novi-
ocorridas no ordenamento anterior, a citada lei adquiriu eficá- dades. Até janeiro de 2001, o direito positivo fazia menção
cia de lei complementar, pelo motivo de ferir matéria reserva- apenas à liminar em processos de mandado de segurança. A
da, exclusivamente, a esse tipo de ato legislativo. E, com tal jurisprudência, contudo, já vinha sufragando, com apoio na
índole, foi recepcionada pela Constituição de 1988.
doutrina dominante, o mesmo efeito suspensivo para os casos
É importante lembrar que houve alterações significativas de provimentos dessa natureza em outras ações judiciais. E a
no ordenamento jurídico tributário brasileiro, com o advento Lei Complementar n. 104/2001 confirmou a tendência, tornan-
de uma série de normas inseridas por emendas constitucionais do-a manifestação explícita, de tal sorte que medidas liminares
e, bem assim, por leis complementares e outros veículos nor- e tutelas antecipadas em quaisquer ações suspendem a exigi-
mativos de hierarquia inferior. Especialmente a Lei Comple- bilidade do crédito tributário, mantidas as características
mentares n. 104, de 10 de janeiro de 2001. processuais de cada entidade.
A Lei Complementar n. 104/2001 acrescentou ao sistema Outra relevante alteração promovida pela mencionada
inúmeros enunciados que de certa forma contribuíram para Lei foi que, no âmbito judicial, a compensação, mediante apro-
pacificar as divergências já discutidas nos tribunais superiores. veitamento de tributos indevidamente recolhidos, somente será
Em outros pontos, no entanto, não logrou tanto êxito fomen- autorizada após o trânsito em julgado da decisão.
tando maiores incertezas. Dentre as principais inovações,
Quanto às hipóteses de suspensão da exigibilidade do
veiculou mais uma modalidade de extinção do crédito tributá-
crédito, inseriu no inciso VI do artigo 151 do Código Tributário
rio, qual seja a dação em pagamento em bens imóveis, na forma
Nacional a figura do "parcelamento", distinguindo-o, em planos
e condições estabelecidas em lei. Em regra, o pagamento só
era feito em moeda corrente, cheque ou vale postal (artigo 162, literais, da moratória. Distrações desse gênero conduziram o
I, CTN), mas, nos casos previstos em lei, poderia ser efetuado pensamento a reformular nova interpretação do termo, bus-
em estampilha, papel selado ou mediante processo mecânico cando alcançar sua amplitude semântica. De fato, o parcela-
(artigo 162, II, CTN). O sistema não admitia, portanto, a pres- mento também suspende a exigibilidade do crédito tributário,
tação in natura, contraditando aquilo que faz supor o artigo 3Q a ele se aplicando as disposições atinentes ao instituto da mo-
do Código Tributário Nacional, quando enuncia que pode ser ratória. Essa característica coloca ambas as figuras tributárias
em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir. Com a Lei sob um mesmo plano, confirmando, mais uma vez, ser o par-
Complementar n. 104, de 10 de janeiro de 2001, tornou-se pos- celamento uma espécie do gênero moratória.
sível realizar a extinção do crédito mediante dação em paga- Por último, cumpre mencionar ainda, no tocante às ino-
mento em bens imóveis, na forma e condições previstas em lei vações trazidas pela LC n. 104/2001, a inclusão no artigo 116
ordinária de cada ente político. do parágrafo único, dispondo:
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

"A autoridade administrativa poderá desconsiderar atos atribuída a função de introduzir no ordenamento jurídico nor-
e negócios jurídicos praticados com a finalidade de dis- mas gerais de direito tributário, voltadas à regulação de maté-
simular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a na- ria necessária para evitar conflitos de competência entre as
tureza dos elementos constitutivos da obrigação tributá-
entidades tributantes, bem como para regular as limitações
ria, observados os procedimentos a serem estabelecidos
constitucionais ao poder de tributar, atuando como mecanismo
em lei ordinária."
de ajuste que assegura o funcionamento do sistema. Tão só
nesse sentido é que há de ser entendido o artigo 146, III, da
O ordenamento brasileiro, a meu ver, já autorizava a des-
Constituição da República. Ao dispor sobre a definição de tri-
consideração de negócios jurídicos dissimulados, a exemplo do
butos e suas espécies, fato gerador, base de cálculo, contribuin-
disposto no art. 149, VII, do Código Tributário Nacional. O
tes, obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência
preceito comentado veio apenas ratificar regra existente no
tributárias, a lei complementar pode fazê-lo apenas com as
sistema em vigor que confere possibilidade à Administração
finalidades acima relacionadas. Está habilitado o Código Tri-
de desconsiderar os negócios fictícios ou dissimulados.
butário Nacional, portanto, a dispor sobre esses institutos em
termos definitórios, objetivando evitar o caos e a desarmonia
2.1.4. O Código Tributário Nacional perante a Constituição da que a imprecisão de suas significações certamente causaria.
República
É oportuno acentuar que os comandos constitucionais 2.1.4.1. Normas gerais de direito tributário na estrutura
têm importantes desdobramentos na legislação complementar, do CTN
o que faz do Código Tributário Nacional uma forte base de
Sabemos que o legislador exprime-se numa linguagem
fundamentação para as unidades do conjunto.
técnica, miscigenação de termos colhidos na experiência co-
Os comandos jurídicos introduzidos por esse Diploma mum e de vocábulos científicos e, ao depositar nos textos do
normativo não se circunscrevem à esfera de uma ou outra pes- direito positivo as significações de seus atos de vontade, muito
soa jurídica de direito público interno, isoladamente. Ao contrá- embora o faça com intenção de racionalidade, acaba por incor-
rio, sendo lei nacional, suas determinações dirigem-se a todos rer numa série de vícios, responsáveis por antinomias, pleo-
os entes da Federação. Eis um dos principais fatores que, na nasmos, ambiguidades de toda ordem, falhas sintáticas, cons-
151
lição de José Souto Maior Borges , a diferencia da lei federal. truções impróprias e até fórmulas vazias de sentido. Esse
Isso não significa, porém, ser ilimitado o âmbito material trato, de certa forma inconsequente da matéria legislada, obri-
susceptível de ser por ele regulado. Apresentando força de lei ga o cientista do Direito a um penoso trabalho de reconstrução,
complementar, sua disciplina não pode promover invasão da de natureza compositiva, promovendo o arranjo lógico dos
competência legislativa das demais pessoas políticas, ficando preceitos nos seus escalões hierárquicos de origem, desenvol-
restrita às áreas que constitucionalmente lhe foram reservadas. vendo ingentes pesquisas nos planos semântico e pragmático,
No que diz respeito especificamente à matéria tributária, foi-lhe tudo para obter, do sistema, um produto isento de contradições
e idôneo para o fim a que se destina. Dista de ser verdadeira a
lição, tão cediça em nossos clássicos, de que a lei não contém
151. Lei complementar tributária, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1975,
erros, redundâncias, palavras inúteis. A prática no meneio dos
p. 68. diplomas legislativos desmente, com absoluta reiteração, o

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

vetusto e teimoso preconceito. É lícito afirmar que nenhum ato normas para o interior do ordenamento, alheio ao significado
normativo está livre de tais defeitos, fruto que é do trabalho do orgânico que nele possa representar a edição de tais regras. E
homem, prisioneiro eterno de suas imanentes limitações. O o sistema resiste, com todos os pesares, mantendo-se inclinado
Código Civil anterior (1916), modelo excelso de linguagem à racionalidade...
escorreita, onde o zelo pela precisão da frase e a pureza na
Para suplantarmos situações desse jaez é que fizemos
concepção dos institutos ultrapassaram as melhores expecta-
inserir a advertência de que não devemos esperar do legislador
tivas, de nacionais e de estrangeiros, nem por isso se forrou
a edificação de um sistema logicamente bem construído, har-
aos percalços do labor humano, averbando tropeços.
mônico e cheio de sentido integrativo, quando a composição
Esse intróito quer suavizar a gravidade com que venhamos dos Parlamentos é profundamente heterogênea, em termos
a nos deter na questão das normas gerais de direito tributário, culturais, intelectuais, sociais, ideológicos e políticos. Essa
em face da sistematização produzida pelo Código Tributário tarefa difícil está reservada, única e exclusivamente, ao cien-
Nacional. tista, munido de seu instrumental epistemológico e animado
Quem soabrir a Lei n. 5.172/66 encontrará, logo no seu para descrever o direito positivo nas articulações da sua inti-
art. 1 2 , a seguinte afirmação: Esta Lei regula... o sistema tribu- midade constitutiva, transformando a multiplicidade caótica
tário nacional e estabelece... as normas gerais de direito tribu- de normas numa construção congruente e cósmica.
tário aplicáveis à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos À margem do problema de ter sido esse o real objetivo do
Municípios, sem prejuízo da respectiva legislação complementar, político que editou tais regras, as normas gerais de direito
supletiva ou regulamentar. Ora, o leigo, o leitor incauto ou tributário pertencem ao sistema tributário nacional, subordi-
aquele intérprete aferrado ao ligeiro e superficial exame da nando-se ao regime jurídico da Lei Maior e arrancando dele
tessitura gráfica dos textos jurídicos, ficará atônito diante de todas as projeções e efeitos capazes de irradiar. Afigura-se como
algo que jamais imaginara: as normas gerais de direito tribu- um capítulo de enorme influência no desdobramento do siste-
tário não pertencem ao sistema tributário nacional! Certamen- ma, com assegurar e implementar princípios capitais firmados
te, irão acudir-lhe à idéia pensamentos tão absurdos como no plano da Constituição. Bastaria, para consignar essa impor-
esses: hão de pertencer, então, ao sistema financeiro? Ao sis- tância, conferir o rol de temas que sob tal rubrica são versados
tema monetário? Ao sistema previdenciário? E qual não será pelo Código Tributário, ao desenvolver e aprofundar institutos,
seu estado de admiração quando, ao percorrer com os olhos a categorias e formas indispensáveis ao manejo do tributo. É
compostura integral do Código, o vê dividido em dois livros: nesse Livro Segundo que a Lei n. 5.172/66 desceu aos porme-
Livro Primeiro — Sistema Tributário Nacional; Livro Segundo nores que tangem a incidência, prescrevendo as consequências
— Normas Gerais de Direito Tributário! Precisamente aqui, peculiares ligadas ao impacto tributário.
neste ponto, aquilo que lhe parecera um desassiso aflora à sua
convicção com a força das confirmações manifestas. Nota que
todas as letras correspondem à orientação perfilhada pelo le- 2.1.4.2. Exegese sistemática e compreensão do alcance das
gislador, que não só disse como de fato fez, separando as duas normas gerais de direito tributário
matérias em livros distintos.
A inserção do art. 146, seus incisos e alíneas, na Constitui-
Quem sabe seja esse um dos exemplos mais sugestivos acer- ção de 1988, com a amplitude de que é portador, refletiu o de-
ca da despreocupação do político, que joga, irrefletidamente, sempenho de um trabalho político bem urdido, para a obtenção
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

de finalidade específica: impor a prevalência, agora com foros constitucionais ao poder de tributar. Pronto: o conteúdo está
normativos, daquela corrente que prosperara, a velas pandas, firmado. Quanto mais não seja, indica, denotativamente, o
entre os mais tradicionais tributaristas brasileiros. Objetivaram campo material, fixando-lhe limites. E como fica a dicção cons-
firmar, de modo mais incisivo, que as normas gerais de direito titucional, que despendeu tanto verbo para dizer algo bem mais
tributário continuavam a ser um canal de livre interferência amplo? Perde-se no âmago de rotunda formulação pleonástica,
da União nos interesses jurídico-tributários dos Estados, do que nada acrescenta. Vejamos. Pode o legislador complementar,
Distrito Federal e dos Municípios. Buscaram, para tanto, uma invocando a disposição do art. 146, III, a, definir um tributo e
fórmula quantitativamente mais forte do que aquela prevista suas espécies? Sim, desde que seja para dispor sobre conflitos
no antigo § 1 2 do art. 18 da Constituição de 1967. Pretenderam de competência. Ser-lhe-á possível mexer no fato gerador, na
que a repetição de vocábulos e a quantidade de termos pudes- base de cálculo e nos contribuintes de determinado imposto?
sem ter o condão de vergar o sistema, deslocando suas raízes Novamente sim, no pressuposto de que o faça para dispor sobre
e deformando princípios fundamentais. conflitos. E quanto à obrigação, lançamento, crédito, prescrição
e decadência tributários? Igualmente, na condição de satisfazer
Fique estabelecido que esta oposição não significa reco-
nhecer o primado da Federação e o da autonomia dos Municí- àquela finalidade primordial.
pios, com ares de uma plenitude que, verdadeiramente, não Com tal interpretação, daremos sentido à expressão nor-
têm. São conceitos relativos, cuja dimensão de significado há mas gerais de direito tributário, prestigiaremos a Federação, a
de ser procurada nos limites internos do nosso sistema, e não autonomia dos Municípios e o princípio da isonomia das pes-
fora. Entretanto, há de existir um minimum semântico sem o soas políticas de direito constitucional interno, além de não
qual tais categorias, tão prestigiadas pelo próprio legislador desprezar, pela coima de contraditórias, as palavras extrava-
constitucional, ficariam vazias de conteúdo e destituídas de gantes do citado art. 146, III, a e b, que passam a engrossar o
sentido. E a interpretação que adversamos resvala, desastro- contingente das redundâncias tão comuns no desempenho da
samente, em mais este obstáculo. Não lograram dizer os limites atividade legislativa.
do conceito de normas gerais de direito tributário, além de in-
cidirem no erro lógico trivial de afirmar a validade do gênero
2.2. TRIBUTO
e, de sequência, confirmar o cabimento da espécie. Chegamos
a pensar até que seria mais consistente, em termos de argu- O legislador, ao escolher os fatos que integrarão a hipóte-
mentação séria, que os sectários da doutrina ortodoxa se man- se de incidência tributária, vale-se de conceitos oferecidos pela
tivessem atrelados à forma do preceito superado, menos osten- Ciência das Finanças Públicas e pela Política Fiscal. Instituído
sivo e mais defensável. o tributo, sua repercussão pode ser objeto de estudo das indi-
Qual a compreensão que devemos ter do papel a ser gitadas disciplinas ou da Ciência do Direito, conforme se trate
cumprido pelas normas gerais de direito tributário, no novo de repercussão econômica ou jurídica, respectivamente.
sistema? Ao observarmos o fenômeno existencial de um deter-
O, primeiro passo é saber que são as tão faladas normas minado sistema de direito positivo, porém, somos imediata-
gerais 'de direito tributário. E a resposta vem depressa: são mente compelidos a abandonar outros prismas, motivo pelo
aquelas que dispõem sobre conflitos de competência entre as qual voltaremos nossa atenção ao exame da repercussão
entidades tributantes e também as que regulam as limitações jurídica do tributo.

394 395
PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

2.2.1. Conceito de tributo Como derradeiro marco, assinale-se a circunstância de o


tributo não constituir sanção de ato ilícito. Elemento suma-
Tributo é nome de uma classe de objetos construídos mente relevante para a compreensão de "tributo" está objeti-
conceptualmente pelo direito positivo. Trata-se de palavra vado nessa frase, em que se determina a feição de licitude para
ambígua que pode denotar distintos conjuntos de entidades o fato que desencadeia o nascimento da obrigação tributária.
(relação jurídica, direito subjetivo, dever jurídico, quantia em Foi oportuna a lembrança trazida pelo artigo 3£' do CTN, uma
dinheiro, norma jurídica e, como prefere o Código Tributário vez que os acontecimentos ilícitos vêm sempre atrelados a
Nacional, a relação jurídica, o fato e a norma que juridiciza o providência sancionatória e, fixando-se o caráter lícito do
fato). Fixarei aqui meu interesse na acepção de "tributo" com evento, separa-se, com clareza, a relação jurídica do tributo da
as proporções semânticas que o artigo 3Q da Lei n. 5.172/66 lhe relação jurídica atinente às penalidades exigidas pelo descum-
outorga, in verbis: primento de deveres tributários. Como são idênticos os víncu-
los, isoladamente observados, é pela associação ao fato que lhe
"Art. 3 4 Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, deu origem que pode ser reconhecida a índole da relação.
em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não
constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada Em face do exposto, tenhamos presente que qualquer
mediante atividade administrativa plenamente vinculada." prestação que tiver ínsitas as características supramencionadas
será tributo, independentemente do nome que se lhe atribuam
É bom salientar dentre as características prescritas pelo ou da destinação que seja dada aos recursos decorrentes de
mencionado artigo, como notas principais, a compulsoriedade, sua cobrança, como informa o artigo V, incisos I e II, da Lei n.
o caráter pecuniário da prestação e o traço do tributo não cons- 5.172/66. Importante considerar, também, que tais caracterís-
tituir sanção de ato ilícito, decorrendo, sempre, de fato lícito. ticas devem estar associadas, não sendo o bastante para con-
figurar determinada prestação como tributo a circunstância
Por compulsoriedade compreende-se a obrigação a de-
de somente uma, ou algumas delas, marcarem presença.
terminado comportamento, afastando-se, de plano, qualquer
cogitação inerente às prestações voluntárias, que recebem o Conforme ficou assentado, para isolar a regra-matriz de
influxo do modal "permitido". Em decorrência, independem incidência tributária é preciso aludir aos critérios material,
da vontade do sujeito passivo, que deve efetivá-la, ainda que espacial e temporal, na proposição hipótese, e aos critérios
contra seu interesse. Concretizado o fato previsto no antece- pessoal e quantitativo, na proposição tese. Dentre tais critérios,
dente da norma jurídica, nasce o elo mediante o qual alguém interessam, para fins de identificação da natureza jurídica do
ficará adstrito a um comportamento obrigatório. tributo, o material e o quantitativo. Isto porque, enquanto o
primeiro é o núcleo da hipótese de incidência, composto por
Por outro lado, a prestação de que se cogita deve ser pecuniá-
verbo e complemento que descrevem abstratamente uma atu-
ria. Tributo se paga em moeda, em pecúnia, outorgando-lhe, a lei,
efeito liberatório suficiente para extinguir o crédito tributário 152 . ação estatal ou um fato do particular, o segundo, no âmbito da
base de cálculo, mensura a intensidade daquela conduta pra-
ticada pela Administração ou pelo contribuinte, conforme o
caso. Nesses critérios é que se encontra o feixe de preceitos
152. Exc i to no caso dos tributos que prescindem do ato de lançamento (tri-
butos sujeitos a "lançamento por homologação"), em que para a extinção do demarcadores dos chamados "traços da enunciação", ou seja,
crédito exige-se, além do pagamento, sua homologação (artigo 156, inciso o conjunto dos elementos que o editor da norma julgou rele-
VII, do Código Tributário Nacional). vante para produzir o acontecimento tributado.
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

Nota-se com nitidez, pelo que já foi relatado, a inaptidão mais, elementos adjetivos. O núcleo é a base de cálculo e con-
da hipótese para, sozinha, dizer qualquer coisa de definitivo fere o gênero jurídico ao tributo".
sobre a estrutura intrínseca do evento a ser colhido pela in-
Relativizando um pouco a posição do mencionado autor,
cidência. Para identificarmos os verdadeiros contornos do
mesmo porque entendo que a base de cálculo está no conse-
fato tributável, faz-se necessário consultar a base de cálculo,
quente da norma e não na hipótese, não há como ignorar a
especialmente se o objetivo é conhecer a natureza jurídica do
gravame. i mportância dessa grandeza que dimensiona o fato, mensuran-
do-o para efeitos de tributação. Partindo de tais considerações,
A tipologia tributária é obtida pela análise do binômio concluo serem três as funções da base de cálculo: a) função
"hipótese de incidência e base de cálculo". Esse princípio de mensuradora, por competir-lhe medir as proporções reais do
dualidade compositiva figura na Carta Magna, consistindo, fato; b) função objetiva, em virtude de compor a específica
pois, em diretriz constitucional, firmada no momento em que determinação do débito; e c) função comparativa, por confirmar,
o legislador realizava o delicado trabalho de montar a rígida infirmar ou afirmar o correto elemento material do anteceden-
discriminação de competências tributárias, preocupado em te normativo.
preservar os princípios da Federação e da autonomia dos Mu-
nicípios. Preceituou o constituinte brasileiro, no artigo 145, Induvidosa é a operatividade do citado elemento do cri-
§ 2 2 , que "as taxas não poderão ter base de cálculo própria de tério quantitativo, centro efetivo das atenções, pois oferece
i mpostos". E, mais adiante, no artigo 154, inciso I, asseverou, caminho seguro para reforçar aquilo que, intuitivamente, a
como requisitos para a União instituir impostos não previstos doutrina e a jurisprudência já vêm afirmando de maneira rei-
em sua competência privativa, que sejam eles criados median- terada: a base de cálculo deve, necessariamente, exteriorizar
te lei complementar, não apresentem caráter de cumulativida- a grandeza do fato descrito no antecedente normativo, motivo
de e "não tenham fato gerador ou base de cálculo próprios dos pelo qual sempre que houver descompasso entre a hipótese de
discriminados nesta Constituição". A mensagem é clara: torna- incidência firmada pelo legislador e a base de cálculo por ele
se imprescindível analisar a hipótese de incidência e a base de escolhida, esta última é que há de prevalecer, orientando o
cálculo para que se possa ingressar na intimidade estrutural intérprete no sentido de determinar a autêntica "natureza
da figura tributária. jurídica" do tributo. Por isso, sendo a medida do fato tributado,
tem o condão de infirmar o critério material oferecido no tex-
Registre-se, porém, que caso não houvesse menção
to, que será substituído por aquel'outro que realmente foi
expressa acerca da relevância da base de cálculo, esta seria
mensurado.
revelada pela própria análise normativa. Tanto que Alfredo
Augusto Becker 153 , sob a vigência da Constituição anterior, Em conclusão, no direito brasileiro o tipo tributário
já entrevia nesse elemento o autêntico núcleo da hipótese encontra-se integrado pelo relacionamento lógico e harmô-
de incidência dos tributos, asseverando que "o espectro nico da hipótese de incidência e da base de cálculo. O binô-
atômico da hipótese de incidência da regra de tributação mio, adequadamente reconhecido, revela a natureza do
revela que em sua composição existe um núcleo e um, ou tributo submetido à investigação, permitindo a análise de
sua compatibilidade relativamente ao sistema constitucional,
sem interferência das imprecisões tão frequentes no discur-
153. Teoria geral do direito tributário, 4' ed., São Paulo, Noeses, 2007, p. 394-6. so legislativo.
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

2.2.2. Classificação das espécies tributárias Tecidas essas considerações, estamos aptos a identificar,
nas várias figuras tributárias, sua natureza jurídica. Será im-
Feita a decomposição analítica da definição estipulativa posto (tributo não-vinculado) quando apresentar na hipótese
de tributo, veiculada pelo artigo 3a do CTN, impõe-se, neste
,
de incidência, confirmada pela base de cálculo, fato alheio a
passo, discorrer acerca das espécies tributárias. No contexto, qualquer atuação do Poder Público. Estaremos diante de taxa
tributo é gênero do qual imposto, taxa e contribuição de me- (tributo diretamente vinculado) se o antecedente normativo
lhoria são espécies, de acordo com a disposição inserta no ar- mencionar fato revelador de atividade estatal, direta e especi-
tigo 145, da Constituição da República Federativa do Brasil. ficamente dirigida ao contribuinte, exibindo, na corresponden-
Desse modo, todas as espécies que conotam as características te base de cálculo, a medida da intensidade da participação do
inerentes ao tributo devem ser examinadas, apontando-se para Estado. E, por fim, reconhecemos contribuição de melhoria
as diferenças específicas. E, não obstante sejam várias as clas- (tributo indiretamente vinculado) na norma jurídica tributária
sificações jurídicas das espécies tributárias, uma vez que, de- que ostentar, no suposto, um efeito da atividade do ente pú-
pendendo do critério empregado a conclusão possa ser diver- blico, qual seja, valorização imobiliária decorrente de obra
sa, optamos pela classificação intranormativa, ou seja, repar- pública, mensurando-a na base de cálculo. Quanto aos em-
timos os tipos de tributo a partir de suas regras-matrizes de préstimos compulsórios, entendo que podem revestir quais-
incidência. Nestas, os elementos úteis ao agrupamento em quer das formas que correspondam às três espécies do gêne-
classes são a hipótese de incidência e a base de cálculo, pelos ro tributo. Para admiti-los como imposto, taxa ou contribuição
motivos expostos linhas acima. Saliento, contudo, que o enfo- de melhoria, basta aplicar o critério composto pelo binômio
que intranormativo não vai afastar a possibilidade do trata- "hipótese de incidência e base de cálculo". Do mesmo modo,
mento extranormativo, como veremos mais abaixo. as contribuições sociais não configuram, pelo ângulo intra-
normativo, espécie tributária autônoma, podendo assumir a
Partindo desses pressupostos, divido os tributos em vin-
feição de taxas ou impostos, consoante o fato tributado seja
culados e não-vinculados, na esteira dos ensinamentos de
atividade estatal ou não.
Geraldo Atalibalm. Os primeiros conotam, em sua hipótese,
uma atividade do Estado direta ou indiretamente relacionada Sempre que o intérprete pretender, na análise de deter
ao contribuinte, ao passo que os segundos apresentam, em seu minada exação, identificar sua espécie tributária, penso que
antecedente normativo, a indicação de aspectos inerentes a deverá recorrer àquele binômio constitucional. Somente este
negócios jurídicos do contribuinte, não relacionados a qualquer é diretriz segura a quem almeja o estudo da feição jurídica de
prestação estatal. Suas bases de cálculo, em consequência, não um tributo. A linguagem do legislador, por assentar-se no dis-
podem ser outra que não: a) o custo da atuação do Estado, curso natural e ser produzida por representantes de vários
quando se tratar de tributo diretamente vinculado; b) a medi- segmentos da sociedade, sem conhecimento jurídico específico,
da dos efeitos dessa atividade, na hipótese de exação indireta- costuma apresentar erros, impropriedades, atecnias, deficiên-
mente vinculada; e c) o valor do fato praticado pelo particular, cias e ambiguidades. O próprio legislador, no inciso I, do artigo
se for o caso de espécie não-vinculada. 4a, do Código Tributário Nacional, prevendo os equívocos e
confusões que poderiam decorrer de sua linguagem, declara
serem irrelevantes, para o fim de qualificação da espécie tri-
154. Hipótese de incidência tributária, 5a ed., São Paulo, Malheiros, 1997, p. butária, "a denominação e demais características formais
121 e ss. adotadas pela lei". Os nomes com que venham a ser designadas
400 401
PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

as prestações tributárias, portanto, hão de ser recebidas pelo Para encerrar o item sobre que discorremos, quero ad-
intérprete sem aquele tom de seriedade e certeza, exigindo vertir que anunciei adotar a proposta bipartida (tributos vin-
cuidadosa verificação. Assim, por exemplo, caso o legislador culados e não-vinculados) sob o influxo da concepção intranor-
mencione a existência de taxa, mas eleja base de cálculo men- mativa, isto é, analisando a norma por dentro. Nada impede e
suradora de fato estranho a qualquer atividade do Poder Pú- tudo recomenda que examinemos a regra jurídica também nas
blico, a espécie tributária será outra, qual seja, um imposto. suas relações extranormativas, quer dizer, as normas com ou-
tras normas, em vínculos de coordenação e de subordinação,
A bem da verdade, porém, é imperativo lembrar outros
o que nos levará a identificar, com boa margem de visibilidade,
posicionamentos doutrinários a propósito do assunto, podendo
as contribuições, que não a de melhoria, no seu espectro mais
identificar-se, sem excesso de pormenor, quatro correntes:
amplo. Trata-se, porém, de outro critério e, portanto, de clas-
bipartida, tripartida, quadripartida e quinquipartida, existindo,
sificação diversa, igualmente susceptível de ser acolhida. Aqui-
ainda, ramificações relativas às três últimas modalidades clas-
lo que penso não ser correto, entretanto, é associar critérios
sificatórias. A corrente tripartida, por exemplo, comporta di-
diferentes para formar uma única classificação, a pretexto de
visão em duas partes: uma, à qual me filio, entende serem
torná-la mais abrangente. Tal procedimento fere os cânones
impostos, taxas e contribuições de melhoria as três espécies
da Lógica e, por isso mesmo, não deve ser aceito. Faz senso
tributárias; outra, considera as contribuições como tributo
admitir, todavia, que o descritor atento do direito positivo venha
autônomo, e a contribuição de melhoria apenas sua subespécie.
a construir quantas classificações lhe pareçam convenientes
De forma semelhante, há quem entenda serem quatro os tipos
para surpreender seu objeto do modo mais eficaz. Quero insis-
de tributo, bem como os que os classificam em cinco. Realmen-
tir que acolher a proposta intranormativa não implica rejeitar
te, não há limites à liberdade de fazer classificações que, no
a concepção extranormativa, no quadro da qual poderei estu-
fundo, consiste na operação lógica de tomar determinada
dar, com riqueza de pormenores, o fenômeno das várias con-
classe e, dentro dela, eleger-se critério pertinente à natureza
tribuições que o sistema brasileiro vem criando com grande
do conjunto, separando tantas classes quanto for possível,
fecundidade nas últimas décadas.
para com isso dar ensejo ao aparecimento de grupos forma-
dores de subclasses, subdomínios, subconjuntos. Como regis-
tra Lourival Vilanova 155 , o homem pode alojar um mesmo dado 2.2.3. Comentários sobre o preço público no direito tributário
em tantas classes quantos critérios definientes seja capaz de
criar para agrupá-los. Ao sujeito do conhecimento é reserva- Preço público, diversamente das taxas, é a contrapresta-
do o direito de fundar a classe que bem lhe aprouver e, se- ção decorrente do consumo de bens ou serviços públicos. O
gundo a particularidade que se mostrar mais conveniente aos conceito genérico de "preço" está demarcado no direito priva-
seus propósitos, desde que, obviamente, permaneça atento à do. O Código Civil brasileiro, ao versar sobre o instituto da
correção do processo de circunscrição dos objetos classifica- compra e venda, fala em preço no artigo 481. Ao cuidar da lo-
dos, garantindo que os gêneros e as espécies sejam, efetiva- cação de coisas, ex vi do artigo 565, utiliza o vocábulo "retri-
mente, gêneros e espécies. buição", empregando essa mesma palavra no artigo 594, que
trata de locação de serviços. Na mesma linha, o Código Tribu-
tário Nacional usa "preço" nos artigos 20, I; 24, II; 47, I; e, no
155. Causalidade e relação no direito, 4a ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, artigo 69, entre outros, para referir-se, respectivamente, às
2000, p. 91. bases de cálculo do Imposto de Importação, do Imposto de

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

Exportação, do Imposto sobre Produtos Industrializados e do concessionárias. Vista do ângulo daquele a quem onera, é o
Imposto sobre Serviços de Transporte e Comunicação, deno- valor pecuniário que os usuários devem pagar à empresa con-
tando, com a utilização desse termo, a perspectiva dimensível cessionária toda vez que se utilizarem do serviço prestado;
da hipótese tributária de cada um dos tributos incidentes sobre examinada pela óptica de quem desempenha, a tarifa é a im-
operações jurídicas de caráter contratual. portância que a empresa concessionária está autorizada a
156 cobrar, dos usuários, em função dos serviços públicos efetiva-
O preço público ou tarifa consiste na remuneração de-
mente realizados. Enfim, sua cobrança visa a i) garantir o
corrente da prestação de serviço de interesse público, ou do
custeio da prestação dos serviços concedidos; remunerar,
fornecimento ou locação de bens públicos, efetivada em regime
de forma justa, o capital investido pelas concessionárias; e iii)
contratual e não imposta compulsoriamente às pessoas, como
melhorar e expandir os serviços, assegurando o equilíbrio
é o caso das obrigações de caráter tributário. Essa é, também,
econômico do contrato.
a compreensão do Supremo Tribunal Federal, expressa pelo
157
ministro Moreira Alves : Ressalte-se que a tarifa tem inequívoco caráter remune-
ratório. Nesse sentido, os valores arrecadados devem conver-
"Preço público é o preço contratual, que constitui contra- gir para a empresa concessionária, que com eles desempenha
prestação de serviços de natureza comercial ou industrial e aprimora os serviços que presta aos usuários. Caso a quan-
- e que, por isso mesmo, podem ser objeto de concessão tia exigida não decorra da prestação de serviço de interesse
para particulares -, serviços esses prestados por meio de
público, exercida pela empresa concessionária, isto é, não
contrato de adesão. Para haver preço público é necessário
apresente conteúdo remuneratório, nem se destine ao custeio
existir contrato, ainda que tacitamente celebrado, e o con-
trato ainda que de adesão, dá a quem pretende celebrá-lo, ou ao implemento dos serviços prestados, não se pode cogi-
se aderir às condições dele, a liberdade de não contratar, tar da existência de tarifa ou preço público, figura que, ne-
atendendo a sua necessidade por outro meio lícito. Quem cessariamente, há de conter os elementos anteriormente
não quiser tomar ônibus, e aderir, portanto, ao contrato de descritos.
transporte, poderá ir, licitamente, por outros meios, ao lugar
de destino. O que não tem sentido é pretender-se a existên- Traçadas essas linhas, cumpre examinar o contrato de
cia de contrato quando o que deve aderir não tem sequer a concessão de serviços públicos, conferindo especial atenção à
liberdade de não contratar, porque, licitamente, não tem sua básica forma de remuneração, por intermédio da tarifa.
meio algum para obter o resultado de que necessita" (RTJ/
STF n. 98).
2.2.3.1. A contraprestação de serviços públicos e a cobrança
Em suma, o preço público ou tarifa remunera o serviço de tarifas
público prestado, sob regime de direito privado, por empresas
A concessão de serviço público pode ser definida como o
conjunto finito de normas jurídicas mediante as quais o Estado
atribui o exercício de um serviço, de interesse público, a alguém
156.O uso já consagrou a equiparação dos termos "preço público" e "tarifa".
que aceita prestá-lo em nome próprio, sob garantia de manuten-
Entretanto, vale ressalvar que "tarifa", na tradição do Direito Financeiro,
significa a tabela de preços e não os preços em si. ção do equilíbrio econômico-financeiro, remunerando-se pela
157."Taxa e preço público", in Caderno de Pesquisa Tributária n. 10, São Paulo, própria exploração, em geral e basicamente por meio de tarifas
Resenha Tributária, 1985, p. 174. cobradas diretamente dos usuários do serviço e submetendo-se

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PAULO DE BARROS CARVALHO

ao regime de direito privado"'. Diz-se geral e basicamente


porque a concessionária poderá remunerar-se de outras for-
1 DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

do equilíbrio econômico-financeiro do contrato de concessão.


Segundo o artigo 37, XXI, da Constituição da República, as
mas, como, por exemplo, veiculação de publicidade. Não obs- obras e os serviços serão contratados com cláusulas que esti-
tante, a tarifa continua sendo o modo mais usual de contra- pulem obrigações de pagamento, mantidas as condições efeti-
prestação do serviço público executado sob regime de contra- vas da proposta. Diante do mandamento constitucional, na
to de concessão. Esse é o principal traço da tarifa, descaracte- hipótese de elevação dos custos dos serviços prestados, as ta-
rizando-se na hipótese de não espelhar, com fidedignidade, o rifas que remuneram as empresas concessionárias devem ser
esforço expendido pelo concessionário para a execução dos proporcionalmente majoradas, a fim de que seja mantida a
serviços. igualdade (equilíbrio) subjacente na oportunidade da celebra-
ção do contrato.
Segundo dispõe o artigo 2 2 , inciso II, da Lei n. 8.987/95,
que regulamenta o artigo 175, da Constituição, disciplinando Muito embora o contrato seja instituição típica do chama-
o regime de concessão e permissão da prestação de serviços do "direito privado", é utilizado no âmbito da Administração
públicos, o contrato de concessão deve ser sempre precedido Pública, apresentando, nessa condição, aspectos peculiares.
de licitação, na modalidade de concorrência. Na oportunidade Maria Helena Diniz 159 , baseada nos ensinamentos de Celso
da apresentação da proposta, compete aos licitantes indicar o Antônio Bandeira de Mello, define o contrato administrativo
valor da tarifa a ser cobrado dos usuários do serviço público. como
O valor assinalado, inclusive, servirá como um dos critérios
para selecionar a empresa vencedora do certame licitatório, "avença tratada entre a administração e terceiros na qual,
de acordo com o artigo 15, inciso I, dessa Lei. Como se vê, o por força de lei, de cláusulas pactuadas ou do tipo de objeto,
valor inicial da tarifa é moldado por meio da manifestação de a permanência do vínculo e as condições preestabelecidas
sujeitam-se a cambiáveis imposições de interesse público,
vontade da empresa concessionária, bem como do poder con- ressalvados os interesses patrimoniais do contratante pri-
cedente. O artigo 9 2 , da Lei de Concessões robora o enunciado vado" (grifo meu).
acima, ao dispor que "a tarifa do serviço público concedido
será fixada pelo preço da proposta vencedora da licitação (...)". Para proteger os interesses do particular contratado, o
Os critérios que coordenam a fixação do valor da tarifa estão direito administrativo admite aquilo que se chama "recompo-
relacionados com os custos do serviço a ser prestado, com as sição de preços". Trata-se de conduta praticada na contingên-
demais formas de receita e com a margem de lucro suficiente cia de modificarem-se as condições necessárias para a execução
para conformar-lhe o caráter remuneratório e a necessária
da avença, em virtude de fatos supervenientes que agravem
modicidade. São esses, portanto, os componentes a serem substancialmente os encargos do executor, passando a onerar
ponderados pelos contratantes para a instituição do valor da
em quantia inesperada a realização da obra, do serviço ou do
tarifa.
fornecimento objeto da contratação. Esclarece Hely Lopes
No que tange à modificação do preço pactuado, o cri- Meirelles' 6 ° que "não se trata, nestes casos, do reajustamento
tério estabelecido pelo Texto Supremo é o da manutenção

159.Dicionário jurídico, vol. 1, São Paulo, Saraiva, 1998, p. 837.


158. Celso Antônio Bandeira de Mello, Curso de direito administrativo, 21a 160.Licitação e contrato administrativo, 14a ed., São Paulo, Malheiros, 2006,
ed., São Paulo, Malheiros, 2006, p. 672. p. 253.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

contratual do preço, mas sim de revisão do próprio ajuste fundamento da "teoria do fato do príncipe" está em que a Ad-
diante de situações novas, imprevistas e imprevisíveis, e por ministração não pode causar danos aos administrados e, mui-
isso mesmo não cogitadas pelas partes no momento da cele- to menos, aos que com ela contratam, motivo pelo qual, sempre
bração do contrato". Aduz também que, se a recomposição dos que o Poder Público tomar atitudes que agravem, por algum
preços não vier a ser efetuada durante a execução do contrato, modo, a execução do acordo, ficará ele obrigado a indenizar o
remanescerá o direito do particular contratado, no sentido de contratante prejudicado. É que a Administração, ao contratar,
receber indenização pelos ônus a ele acarretado. visa ao atendimento de necessidades públicas, enquanto o
Tanto a Lei n. 8.666/93, que regulamenta o artigo 37, XXI, particular objetiva lucro, a ser alcançado por meio da remune-
da Constituição, estabelecendo normas gerais sobre licitações ração avençada nos termos das cláusulas contratuais. Esse
e contratos administrativos pertinentes a obras, serviços, com- lucro, previsto no instrumento contratual, deve ser assegurado
pras, alienações e locações no âmbito do Poder Público, como durante a execução do que foi estabelecido, pois esse equilíbrio
a já referida Lei n. 8.987/95, prescrevem, em diversos artigos, financeiro pactuado não pode sofrer alteração. Di-lo Marcello
a obrigatoriedade da manutenção do equilíbrio econômico- Caetano' 62 :
financeiro, prevendo no edital e no contrato fórmulas de revi-
são do valor, reajustes em razão da alteração unilateral promo- "o contrato assenta, pois, numa determinada equação fi-
nanceira (o valor em dinheiro dos encargos assumidos por
vida pelo poder concedente. E o motivo é singelo: o desequilí-
um dos contraentes deve equivaler ao das vantagens pro-
brio econômico, em desfavor da empresa concessionária, por metidas pelo outro) e as relações contratuais têm de desen-
exemplo, além de colaborar para a má prestação do serviço volver-se na base do equilíbrio estabelecido no ato da esti-
público, poderá determinar o enriquecimento sem causa do pulação".
poder concedente, fato contra o qual operam prescritivamen-
te as normas do sistema. A teoria suso referida foi, inclusive, encampada pelo Es-
Nesse contexto, não tenho dúvidas em afirmar que, ma- tatuto das Licitações e Contratos Administrativos (Lei n.
jorado o ônus da prestação do serviço ou aumentado seu volu- 8.666/93), no § 5 2 do artigo 65, e pela Lei que dispõe sobre o
me, deve ser elevado o valor da tarifa, como forma de manter regime de concessão e permissão da prestação de serviços
o equilíbrio econômico-financeiro do contrato. públicos (Lei n. 8.987/95), no § do artigo 9Q. Os citados dis-
positivos prescrevem, respectivamente:
No que tange à instituição de tributo novo ou ao aumen-
to dos já existentes, estaremos diante daquilo que Hely Lopes "Quaisquer tributos ou encargos legais criados, alterados
Meirelles 161 denomina de "fato do príncipe", ou seja, determi- ou extintos, bem como a superveniência de disposições
nação estatal imprevista que onera a execução do contrato legais, quando ocorridas após a data da apresentação da
administrativo. Esse ônus, sendo extraordinário e extracontra- proposta, de comprovada repercussão nos preços contra-
tual, obriga o Poder Público contratante a compensar os pre- tados, implicarão a revisão destes para mais ou para menos,
juízos suportados pelo contratado na execução do ajuste. O conforme o caso".

161. Licitação e contrato administrativo, 14a ed., São Paulo, Malheiros, 2006, 162. Princípios fundamentais do direito administrativo, Rio de Janeiro, Fo-
p. 242. rense, 1977, p. 255-256.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

E: b) critério espacial: qualquer lugar do território nacional;


c) critério temporal: último dia do mês (mês civil, como
"Ressalvados os impostos sobre a renda, a criação, alteração
ou extinção de quaisquer tributos ou encargos legais, após alude o artigo 8 2 , do Decreto n. 3.624/2000.
a apresentação da proposta, quando comprovado seu im-
pacto, implicará a revisão da tarifa, para mais ou para Consequente normativo:
menos, conforme o caso." d) critério pessoal: (d.1) sujeito ativo: ANATEL; (d.2)
sujeito passivo: prestadores de serviços de telecomunica-
Note-se, do exposto, que o valor das tarifas deve movi- ções;
mentar-se de acordo com a majoração ou redução dos custos
e) critério quantitativo: (e.1) base de cálculo: receita ope-
para execução dos serviços a serem prestados, consubstancian-
racional bruta, decorrente da prestação de serviços de
do nítido enriquecimento ilícito - como já foi dito - seja do
telecomunicações, excluídos o ICMS, PIS e COFINS; (e.2)
Estado ou da empresa concessionária, se o valor das tarifas não
alíquota: 1%.
acompanhar, proporcionalmente, as condições econômicas
iniciais da execução do contrato. Se verificado qualquer dese-
O exame dessa regra-matriz revela que a hipótese de in-
quilíbrio, o poder concedente deverá majorar ou reduzir o
cidência e a base de cálculo especificadas pela Lei n. 9.998/2000,
preço das tarifas cobradas dos usuários.
ao criar a "contribuição" destinada ao FUST, escolheu fato
alheio à atividade estatal, ocupando-se com critérios relativos
2.2.4. Aplicabilidade da classificação das espécies tributárias: à proporcionalização do fato realizado pelo contribuinte. O
a "contribuição ao FUST" tributo foi concebido para ser pago simplesmente por existir
prestação de serviços de telecomunicações, sendo calculado
Na norma jurídica tributária que institui o tributo, deno- sobre os valores auferidos em decorrência da prática dessa
minada "regra-matriz de incidência tributária", identificamos atividade. Tais anotações não deixam dúvidas quanto à espécie
cinco critérios, sendo três na hipótese e dois no consequente. tributária criada pela Lei n. 9.998/2000, sob o nome de "contri-
Aqueles observados no antecedente normativo descrevem o buição para o FUST": trata-se de imposto, tributo não-vincu-
fato (critérios material, espacial e temporal) em decorrência lado à atividade do Estado.
do que se origina a obrigação de recolher o gravame, e os ele-
mentos do vínculo constam dos critérios da consequência De ver está que, em se tratando de imposto, padece a
(critérios pessoal e quantitativo). União de competência para instituir o gravame, pela simples
circunstância de o fato tributado não se encontrar previsto no
Preenchendo esse arranjo sintático com a linguagem do artigo 153, do Texto Maior. Exigência com tal configuração
direito positivo, tomando, para esse fim, a Lei n. 9.998/2000, no jurídica só poderia ser instituída, em legítimos termos consti-
que diz respeito à "contribuição" destinada ao Fundo de Uni- tucionais, se a faixa de competência residual daquela pessoa
versalização dos Serviços de Telecomunicações, teremos: política (União) viesse a ser corretamente acionada, o que im-
plicaria a edição de lei complementar com seu perfil ontológi-
Hipótese normativa:
co-formal devidamente caracterizado. Mas a União não trilhou
a) critério material: prestar serviços de telecomuni- esse caminho, preferindo criar a figura com a feição que men-
cações; cionamos, outorgando-lhe o nome de "contribuição", sem
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refletir na circunstância de que estava dando corpo jurídico a irregularidade que tornaria difícil ao sistema assimilar essa
uma pretensão tributária claramente incompatível com a Cons- "contribuição", inviabilizando-lhe a cobrança coativa.
tituição brasileira. Nas linhas que antecederam, tive a oportunidade de expor
Além disso, examinando a tipologia do encargo tributário a proposição afirmativa segundo a qual o critério jurídico ade-
quado à classificação das espécies tributárias, dentro de uma
destinado ao FUST, verifica-se que o núcleo da sua hipótese
visão intranormativa, é o binômio "hipótese de incidência e
de incidência consiste na prestação de serviços de telecomu-
base de cálculo" e que, na contingência de inexistir compati-
nicações, apresentando, como base de cálculo, a receita ope-
bilidade entre ambos os termos, deve prevalecer a espécie
racional bruta decorrente da prática dessa atividade. Passa à
indicada por aquela última, vale dizer, pela base imponível.
margem, portanto, de mais um dos requisitos prescritos pelo
Considerei, também, que esse raciocínio se aplica às contribui-
artigo 154, I, pois seu esboço tipológico é o mesmo eleito para ções sociais, de intervenção no domínio econômico ou de inte-
o ICMS (imposto sobre operações relativas à circulação de resse das categorias profissionais ou econômicas, que assumem
mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte in- a feição de impostos ou de taxas, conforme suas características
terestadual e intermunicipal e de comunicação), no que se prescritivas. A partir dessa premissa, concluí: a "contribuição"
refere à prestação de serviços de comunicação. Vejamos: a) a destinada ao FUST consubstancia, na realidade, um imposto
hipótese de incidência do ICMS, relativamente a esse aspecto, criado sem observância dos requisitos constitucionais estabe-
consiste em prestar serviços de comunicação, enquanto a ma- lecidos para esse fim.
terialidade da "contribuição" ao FUST é prestar uma espécie
Compus essas observações para deixar patente que, con-
de serviço de comunicação, qual seja, serviços de telecomuni-
quanto considere as contribuições com perfil de impostos ou
cações; b) as bases de cálculo dos dois tributos são idênticas,
de taxas, consoante a relação lógico-semântica que se estabe-
pois tanto um como outro incidem sobre a receita decorrente
lecer entre as hipóteses de incidência e as correspondentes
do serviço de comunicação prestado. Por conseguinte, haven- bases de cálculo, tendo em vista a existência ou não de uma
do identidade entre a hipótese de incidência e a base de cálcu- atividade estatal no antecedente da regra-matriz, há concep-
lo de imposto constitucionalmente previsto (ICMS) e as cor- ções distintas acerca da natureza jurídica dessa exação. Sobre-
respondentes categorias daquele instituído mediante compe- mais, é preciso reconhecer que, mesmo na hipótese de enten-
tência residual da União ("contribuição" ao FUST), torna-se dimento diverso, no que concerne à estrutura básica do indi-
manifesto o descompasso e flagrante a inconstitucionalidade gitado tributo, sua implantação, no caso submetido a exame,
deste último. mostra-se incongruente com os comandos da Lei Fundamental.
Quero consignar, não bastassem os relevantes argumentos Com efeito, mesmo na exegese que identifica a contribuição
acima expostos, que o procedimento legislativo ora analisado como tributo diferente do imposto ou da taxa, remanesceriam
vícios diversos na "contribuição para o FUST", tornando in-
representa, ainda, em termos específicos, o desrespeito ao in-
ciso IV, do artigo 167, da Lei Fundamental, pois, ao mesmo devida sua exigência.
tempo em que o mencionado dispositivo proíbe a vinculação
de receita de impostos a qualquer órgão, fundo ou despesa, 2.3. FONTES DO DIREITO
ressalvados apenas os casos ali expressamente relacionados, a
Lei n. 9.998/2000 destina o gravame ao Fundo de Universaliza- O sopro filosófico, na forma superior de meditação crí-
ção dos Serviços de Telecomunicações (FUST). Eis mais uma tica, que introduziu a Ciência Jurídica às compreensões de

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comunicação e linguagem, se iniciou na segunda década do sem que seja introduzida por outra norma, que chamaremos,
século XX, com o Neopositivismo Lógico, e seguiu avante com daqui avante, de "veículo introdutor de normas". Isso já nos
os outros movimentos científicos que lhe sucederam, em des- autoriza a falar em "normas introduzidas" e "normas introdu-
taque, o "giro-linguístico" e o constructivismo lógico-semânti- toras" ou, em outras palavras, afirmar que "as normas vêm
co, já referidos nas primeiras páginas do livro. sempre aos pares".

A concepção que enalteceu a linguagem e o homem gerou Em todos esses casos, há um procedimento a ser seguido,
uma revolução no campo do saber jurídico. A linguagem, ins- previsto nas normas de competência. Quando se diz que norma
trumento necessário do saber científico passou a servir como válida é aquela produzida por órgão competente, perante o
o próprio modelo de controle dos conhecimentos; enquanto o sistema, e consoante o procedimento nele, sistema, estabele-
cido, não nos detemos na reflexão mediante a qual todo pro-
homem adquiriu posição de relevo, como o centro a partir do
cedimento de elaboração normativa se manifesta como forma
qual os objetos do mundo são considerados.
de realizar o próprio direito. Não é difícil perceber que o sis-
Em abono desse matiz, passou a ser necessário repensar tema de normas, introdutoras e introduzidas, integra o que
a temática das "Fontes do direito", assentando-a sobre bases conhecemos por "direito positivo", ao passo que o conjunto de
teóricas mais firmes e consistentes. Com a separação dos planos eventos aos quais a ordem jurídica atribui teor de juridicidade,
linguísticos do direito - científico e positivo - e a incorporação se tomados na qualidade de enunciação e não de enunciados,
dos institutos da teoria do conhecimento e da linguagem - enun- estarão formando o território das fontes do direito posto.
ciação, enunciação-enunciada, enunciado-enunciado e enun-
Fortes nesses pressupostos não hesitaríamos em procla-
ciado - abandonaram-se as construções segundo as quais lin-
mar que o estudo das fontes do direito está voltado, primor-
guagens normativas ou normas pudessem ser fontes do direi-
dialmente, para o exame dos fatos enquanto enunciações que
to. Verificou-se que a figura de fontes produtoras das normas
fazem nascer regras jurídicas introdutoras. Por isso, as expo-
jurídicas vem aparecer, efetivamente, assentada nos atos de
sições de motivos das legislações não podem ser desprezadas.
fala, como enunciação do intérprete legitimado pelo direito. Na qualidade de marcas deixadas no curso do processo de
Cravadas as premissas, tomaremos essas injunções como pon- enunciação, assumem indiscutível relevância, auxiliando e
to de partida para o estudo que se apresenta em seguida. orientando a atividade do intérprete. Isso nos permitirá operar
com as fontes como algo diferente do direito posto, evitando,
2.3.1. A noção de fonte do direito desse modo, a circularidade ínsita à noção cediça de fontes
como sendo o próprio direito por ele mesmo criado. A propó-
63
O conceito "fonte" beira os limites do sistema jurídico, sito, Tárek Moysés Moussallem' , em seu Fontes do direito
destacando o processo enunciativo do direito. Por fontes do tributário lembra que:
direito havemos de compreender os focos ejetores de regras
jurídicas, isto é, os órgãos habilitados pelo sistema para pro- "a partir da linguagem do veículo introdutor (enunciação-
duzirem normas, numa organização escalonada, bem como a enunciada), reconstruímos a linguagem do procedimen-
própria atividade desenvolvida por essas entidades, tendo em to produtor de enunciados (enunciação), e realizamos o
vista a criação de normas. O significado da expressão fontes
do direito i mplica refletirmos sobre a circunstância de que
regra jurídica alguma ingressa no sistema do direito positivo 163. Fontes do direito tributário, ed., São Paulo, Noeses, 2006, p. 141.

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confronto entre esta e a linguagem da norma de produção 2.3.2. O direito como linguagem empregada na função prag-
normativa (fundamento de validade do veículo introdutor)
mática de regular condutas
para aferirmos se a produção normativa se deu ou não em
conformidade com o prescrito no ordenamento".
Sob certo aspecto, torna-se até confortável transitar pelo
texto do direito, dado que os enunciados prescritivos — suas
Com supedâneo em tais ponderações, dá-se por firmada
unidades — encontram-se soltos, derramados por todo o con-
a concepção que funcionará como base filosófica para se des-
junto, nas mais variadas estruturas frásicas. A forma dà lingua-
constituir determinadas crenças tradicionais no que diz res-
gem, o texto em sentido estrito, ainda que importante, não será
peito às fontes do direito. Pondo de lado o Costume, de nature-
decisiva, principalmente no tema que nos toca no presente
za eminentemente factual, e que só gera efeitos jurídicos
estudo - o Preâmbulo da Carta Maior - porque o predomínio
quando integrante de hipóteses normativas, percebemos que
é da função em que esta linguagem é tomada e, para o subsis-
é corriqueira a concepção tautológica de que a lei seria a pró-
tema do direito positivo, estará sempre voltada para a regula-
pria fonte do sistema normativo.
ção das condutas intersubjetivas. A prescritividade do ordena-
No entanto, esquecem os argutos conhecedores que ao mento jurídico reside no modo como tal linguagem é empre-
postular haver normas que criam normas, direito que cria direi- gada, a despeito da composição sintático-gramatical que pre-
to, numa proposição evidentemente circular, deixam o primeiro sidir seu revestimento. Os enunciados do direito positivo não
termo como resíduo inexplicado. E da sorte desse raciocínio são expressões de atos de objetivação cognoscente. Não pre-
participa a impugnação da dicotomia fontes formais/fontes ma- tendem reproduzir o real-social, descrevendo-lhe os aspectos.
teriais. As primeiras são estudadas como fórmulas que a ordem Longe disso, o vetor semântico que os liga ao "mundo da vida"
jurídica estipula para introduzir regras no sistema, enquanto as contém, invariavelmente, um dever-ser, assim no estado neutro,
últimas se ocupam dos fatos da realidade social que, descritos sem modalização, ou operando por intermédio dos functores
hipoteticamente nos supostos normativos, têm o condão de obrigatório, proibido ou permitido, com o que se exaure o cam-
produzir novas proposições prescritivas para integrar o direito po material das possíveis condutas interpessoais.
posto. Estas, sim, se tomadas como atos de enunciação, são fontes
O dever-ser, frequentemente, comparece disfarçado na
de normas, enriquecem o conjunto, modificando-o de alguma
forma apofântica, como se o legislador estivesse singelamente
maneira. Mas, para que falarmos em fontes materiais, se dispomos
descrevendo situações da vida social ou eventos da natureza,
da expressão tradicional e legítima fatos jurídicos?
a ela relacionados: A existência da pessoa natural termina com
Em posição similar à anterior, embora revista caracteres a morte... (art. 6 do CC/02). A capacidade tributária passiva
próprios, a doutrina da mesma forma não é fonte do direito independe: I — da capacidade civil das pessoas naturais...
positivo. Seu discurso descritivo não altera a natureza prescri- (art. 126 do CTN). Em outros momentos, porém, os modaliza-
tiva do direito. Ajuda a compreendê-lo, entretanto, não o mo- dores deônticos vêm à tona, expressando-se, ostensivamente,
difica. Coloca-se como uma sobrelinguagem que fala da lingua- na linguagem do direito posto, com o que denunciam, de forma
gem deôntica da ordenação jurídica vigente. Nem será ad- evidente, sua função prescritiva: O tutor, antes de assumir a
missível concebê-la como fonte da Ciência do Direito, pois tutela, "é obrigado" a especializar, em hipoteca legal, que será
ela própria pretende ser científica. Quem faz doutrina quer inscrita, os imóveis necessários, para acautelar, sob a sua ad-
construir um discurso científico, reescrevendo as estruturas ministração, os bens do menor (art. 1745 do CC/02). O contri-
prescritivas do sistema normativo. buinte do ITR entregará "obrigatoriamente" em cada ano, o
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

Documento de Informação e Apuração do ITR — DIAT, cor- a igualdade e a justiça como valores supremos de uma socie-
respondente a cada imóvel, observadas datas e condições fixa- dade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na
das pela Secretaria da Receita Federal (art. 8 2 da Lei n. 9.393 harmonia social e comprometida, na ordem interna e inter-
nacional, com a solução pacífica das controvérsias, promul-
de 19-12-96).
gamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO
Enquanto se movimenta entre os enunciados, para com- DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.
preendê-los na sua individualidade, o intérprete dos textos
jurídicos deve saber que manipula frases prescritivas, orienta- o constituinte insere nos domínios do direito posto, proposições
das para o setor dos comportamentos estabelecidos entre su- de ordem introdutória, expondo os motivos e anunciando, em
jeitos de direito. É preciso, contudo, considerá-las na forma em tom prescritivo, o quadro sobre o qual deve o exegeta manter
que se apresentam, para que seja possível, posteriormente, sua interpretação da mensagem constitucional.
congregá-las e convertê-las em unidades normativas, em que
Este, contudo, não tem sido o entendimento da Suprema
o sentido completo da mensagem deôntica venha a aparecer
Corte. Acolhendo a tese da irrelevância jurídica do preâmbu-
com toda a força de sua juridicidade. E esse "considerá-las na
lo, afirmou o Eminente Min. Carlos Velloso ser o referido
forma em que se apresentam" implica, muitas vezes, a utiliza-
texto enunciado estranho ao território jurídico, isto é, não se
ção da Lógica Apofântica, com o modelo clássico "S é P".
situa no âmbito do Direito, mas no domínio da política, refle-
Nesse intervalo, a tomada de consciência sobre a prescritivi-
tindo posição ideológica do constituinte. 163-A E, em abono des-
dade é importante, mas o exegeta não deve se preocupar, ain-
se matiz, concluiu: Não contém o preâmbulo, portanto, relevân-
da, com os cânones da Lógica Deôntico-jurídica, porque o
cia jurídica.
momento da pesquisa requer, tão-somente, a compreensão
""

isolada de enunciados que, quase sempre, se oferecem em Ora, em posição que se opõe pelo vértice, com o respeito
arranjos de forma alética. e a admiração que o ilustre magistrado sem dúvida alguma
merece, creio que suas asserções não devam prevalecer com a
força dogmática que delas se pretende extrair. No subdomínio
2.3.3. A prescritividade do direito no Preâmbulo da Constituição
das significações dos enunciados, cumprem as cláusulas do
Situação que salta aos olhos no tocante à prescritividade preâmbulo papel prescritivo da mais elevada importância,
do direito está justamente na figura do preâmbulo. Percebo impregnando, em função de sua hierarquia e pelo próprio
que, embora revista caracteres próprios, sua existência está efeito da derivação lógica que desencadeiam, todas as unidades
intimamente envolvida na totalidade do sistema jurídico- normativas do direito infra-constitucional. É o que se vê no
normativo, portando, desta maneira, idêntico teor prescritivo caso da "segurança", do "bem-estar", do "desenvolvimento",
ao das estruturas deônticas inseridas mediante artigos, pará- anunciados no preâmbulo como valores supremos a serem
grafos, incisos e alíneas, distribuídas na extensão do diploma. perseguidos por uma sociedade que se apresenta por "fraterna,
Assim, ao enunciar: pluralista e sem preconceitos". Na amplitude dessa providência,

Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia


Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, 163-A. STF, ADIN 2.076-5 ACRE, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Velloso,
destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e indivi- Voto Min. Carlos Velloso, p. 226.
duais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, 163-B. Idem, ibidem.

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vários são os enunciados de forte carga axiológica aduzidos no Constituição da República, e estabelece normas para a conso-
Preâmbulo, todos eles partes constitutivas das formulações lidação dos atos normativos que menciona. E, logo no art. 3 2 ,
proposicionais disciplinadoras de condutas intersubjetivas, alude, impositivamente, às três partes básicas que compõem
bastando lembrar que alguns desses magnos princípios, ma- o estatuto:
nipulados pelos juristas, pertencem à subclasse dos implícitos,
como os primados da justiça, da segurança jurídica e da certe- I - parte preliminar, compreendendo a epígrafe, a ementa, o
za do direito, que não são retomados expressamente no texto preâmbulo, o enunciado do objeto e a indicação do âmbito de
aplicação das disposições normativas;
da Constituição, mas que, é certo, hão de repercutir com in-
tensidade controlada em todas as normas do ordenamento. II parte normativa, compreendendo o texto das normas de
-

conteúdo substantivo relacionadas com a matéria regulada;


Esclareço logo que tal implicitude diz respeito ao corpo arti-
culado de preceitos, pois na declaração preambular encontram- III - parte final, compreendendo as disposições pertinentes
às medidas necessárias à implementação das normas de
se literalmente mencionados.
conteúdo substantivo, às disposições transitórias, se for o
É intuitivo crer que a geração de sentido de uma oração caso, a cláusula de vigência e a cláusula de revogação, quan-
prescritiva qualquer já pressupõe a atinência a esses enuncia- do couber.
dos que funcionam como se fora um texto implícito, ou melhor,
um contexto a ser levado em conta no ato mesmo da atividade Quer isso expressar que a lei tem de conter essas três
interpretativa das formulações legais. De fato, a circunstância porções de linguagem, todas elas integrantes da compostura
de figurarem expressamente na organização do corpo textual, do enunciado posto pelo legislador. Tais menções distam de ser
ou separadamente da distribuição em livros, seções, capítulos, peças optativas ou ornamentais que o autor do documento
artigos, parágrafos, incisos e alíneas, tal condição não modifica escolha segundo as inclinações de sua vontade ou ao interesse
o quantum de prescritividade que o Preâmbulo ostenta, pois, de simplificar o esquema textual. Não. A referida Lei é bem
de todo modo, funciona como vetor valorativo, penetrando as clara ao estabelecer conteúdo prescritivo a cada um daqueles
demais regras do sistema e impregnando-lhes, fortemente, em incisos, deixando patente o animus imperativo das providên-
sua dimensão semântica. Por isso mesmo é colocado no alti- cias. E pouco importa lembrar que o legislador somente utilizou
plano da Constituição. De lá, no lugar preciso de onde começam a palavra normativa na segunda parte. Ressalta à mais pura
todos os processos de positivação das normas jurídicas, irra- obviedade que tanto o inciso I, quanto o III assumem caráter
diam-se aqueles primados para os vários escalões da ordem indissociável do II, formando um bloco de intenso e forte cali-
legislada, até atingir as regras terminais do sistema, timbrando bre deôntico.
os preceitos que ferem diretamente as condutas em interferên-
cia intersubjetiva, com a força axiológica dos mandamentos 2.3.4.1. Retórica e Preâmbulo
constitucionalmente consagrados.
Outro argumento evocado por aqueles que desconsideram
2.3.4. O perfil do preâmbulo no direito positivo brasileiro o preâmbulo como base constitutiva de direitos e deveres está
no entendê-lo como texto meramente retórico, constituindo-se
A Lei Complementar n. 95, de 26 de fevereiro de 1998, de enunciados que colaboram no convencimento, na persuasão
dispõe sobre a elaboração, redação, alteração e consolidação dos jurisdicionados do texto da Constituição da República, sem
das leis, conforme determina o parágrafo único do art. 59 da contudo integrá-lo.
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Acontece que o caráter retórico, como aspecto pragmá- decisão. Sobre a Teoria da Argumentação, Tércio Sampaio
tico da linguagem, é indissociável de toda comunicação que Ferraz Jr. 163- c tece importantes considerações que merecem
se pretenda, de algum modo, persuasiva, não incorrendo, com detida reflexão. Assinalando que a lógica retórica se ocupa da
esta afirmativa, no mau vezo de atribuir somente a ela o dado argumentação como tipo específico de raciocínio, correspon-
registro. Sim, porque toda a função linguística exige o timbre dendo a procedimentos quase lógicos, que não obedecem ao
retórico, sem o qual a mensagem não se transmite do enun- rigor exigido pelos sistemas formais, passa a estudar, um a um,
ciador ao enunciatário. Enganam-se aqueles que admitem a os mais conhecidos modelos de procedimento, no âmbito da
retórica apenas como expediente da função persuasiva, es- argumentação jurídica, sem intuito classificatório.
truturada para facilitar o convencimento de quem recebe o Revela-se de forma clara que a estrutura sintática da
impacto da enunciação. Inexiste a "não-retórica", de tal sor- linguagem jurídica, num processo de decisão judicial ou admi-
te que a contra-retórica é retórica também. Resta saber qual
nistrativa, subordina-se a valores lógicos outros que não os do
a intensidade e os limites de sua utilização nos diversos tipos
discurso descritivo (verdadeiro/falso) ou prescritivo (válido/
de linguagem. não-válido) ou ainda o da linguagem das perguntas (pertinen-
Em comentários ligeiros, os recursos a serem utilizados tes/impertinentes). Os sujeitos participantes desenvolvem seus
pelo cientista, em todo trabalho exegético de descrição, variam esforços no sentido de obter um fim determinado: o convenci-
segundo a região ôntica do objeto a ser conhecido. Há um tipo mento de quem tem o poder de decidir. E no próprio ato deci-
de veemência recomendado para a região dos entes físico- sório, estará a justificativa, pela argumentação, em termos de
naturais; outro para a dos ideais e ainda outro para a dos cul- mostrar que assim o decidiu, isto é, positivou a regra, para
turais, levando-se em conta, neste setor, a multiplicidade atender a princípios de justiça, de coerência, de segurança, de
imensa das manifestações objetais. Tudo para advertir, de respeito à ordem jurídica vigente, entre tantos outros que po-
maneira incisiva, que não é qualquer torneio retórico que con- deriam ser aqui enunciados.
vém ao discurso da Ciência do Direito ou mesmo daquel'outros
produzidos com o objetivo de convencer a autoridade compe-
2.3.4.2. Preâmbulo, ementa e exposição de motivos
tente ou o juiz de direito nos respectivos autos. Por outro lado,
é impossível estipular o espaço de variação da possibilidade Preâmbulo, ementa e exposição de motivos cumprem, de
retórica no recinto do jurídico, mesmo porque um é o do direi- certo modo, o mesmo objetivo: fixam dêiticos de conteúdo que
to posto, outro o da dogmática. Simplesmente isso. Caberá à identificam aspectos relevantes da substância discursiva. As-
intuição, tomada aqui como órgão, aliás o mais poderoso ins- sumem o papel de enunciação enunciada e permitem o ingres-
trumento cognoscitivo, a chamada "ciência direta", sugerir os so do receptor da mensagem no teor do que nela foi transmi-
critérios de avaliação do quantum de argumentação retórica tido. As figuras são muito próximas, consubstanciando algo
que deve ser empregada na construção do discurso científico, relevante a respeito da matéria objeto do ato de vontade do
evitando, por todo o modo, a logomaquia e tantas extravagân- legislador, seja ele Poder Legislativo (lei), Poder Judiciário
cias que rondam e ameaçam a pena de quem escreve. (sentença ou acórdão), Poder executivo (decreto) ou Setor
Com estas modulações, pretendo deixar claro que a lógi-
ca da linguagem persuasiva ou da linguagem que prepara a
decisão é a lógica da argumentação, isto é, uma lógica da in- 163-C. FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo de direito:
terpretação para decidir ou lógica dialógica orientada para a técnica, decisão, dominação. 3a ed., São Paulo: Atlas, 2001, p. 330-1.

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Privado (contrato). A diferença fica por conta do critério mais externo. No subsolo do direito posto, seguindo a linha de pen-
acentuadamente axiológico do preâmbulo, em face do caráter samento de que a realidade jurídica é composta só e somente só
sumular, compendial da ementa e da inclinação preponderan- de normas, isto é, constitui-se, por essência, de linguagem pres-
temente histórica e explicativa da exposição de motivos. O tom critiva de condutas, vamos encontrar a Súmula da jurisprudên-
prescritivo, todavia, está igualmente presente nas três figuras, cia dominante apresentando-se aos olhos do sistema positivo
porquanto quem legisla não está credenciado a manifestar-se como veículo de autonomia apenas formal, porquanto seu con-
de outra maneira que não seja a ordenadora de condutas. Ain- teúdo revela mecanismo de caráter unificador e sistematizante
da que o autor empregue meios sintáticos que sugiram a forma das unidades que já compõem o ordenamento. Não põe direito
de relato descritivo, como é comum, sua função é, fundamen- novo, como as sentenças e os acórdãos. Seu caráter é sistemati-
talmente, disciplinadora de comportamentos intersubjetivos. zador daquilo que já existe. Porém, não é possível, mesmo assim,
Direi que o preâmbulo tende mais para o lado dos valores que deixar de reconhecer-lhe natureza prescritiva, traço peculiar da
a mensagem normativa pretende implantar, ressaltada por isso linguagem empregada na função de comando, como certamen-
mesmo sua tonalidade retórica; ao passo que a ementa visa, te é o modus próprio do jurídico. Trata-se de providência que
antes de tudo, a resumir o produto legislado, extratando-o, seleciona, que organiza, outorgando foros de uniformidade aos
reduzindo-o à sua expressão mais simples. Já a exposição de julgados sobre certas matérias, ao mesmo tempo em que apon-
motivos costuma dar ênfase ao clima histórico-institucional em ta, com firmeza e determinação, a direção da conduta, segundo
que o diploma foi produzido, discutindo, muitas vezes, as teses o quadro das expectativas normativas do sistema. Ao tomar a
em confronto na circunstância da elaboração, para justificar iniciativa do procedimento sumular, o Tribunal exercita compe-
(dar os motivos) a eleição de determinada tendência dogmáti- tência específica, como o faz com relação aos acórdãos e demais
ca. Sua extensão é maior do que as das duas primeiras catego- provimentos de seu domínio de atribuições constitucionais,
rias, funcionando também como introdução no espírito do tema promovendo o compêndio, o resumo, o extrato daquilo que já
sobre o qual dispõe o estatuto. A exposição de motivos, cons- está no âmbito de uma classe de julgados.
tando da enunciação-enunciada, manifesta-se mais próxima Com efeito, pensemos que as manifestações que os Tri-
ao processo de enunciação do "ato de fala" jurídico, enquanto bunais Superiores proferem em tom de Súmula tornam-se
o preâmbulo e a ementa nos remetem à enunciação-enunciada, diretrizes decisórias para aquel'outros que lhes são hierarqui-
porém mais inclinadas ao enunciado do que, propriamente, ao camente inferiores, ao mesmo tempo em que a sociedade as
processo de enunciação. acolhe como expressão eloquente do direito que há de ser
Vale acrescentar que o descompasso entre a ementa e o cumprido no plano das relações intersubjetivas. Além disso, a
conteúdo do documento normativo dá ensejo a embargos de construção dos conteúdos sumulares se faz gradativamente,
declaração, mais um argumento que reafirma a índole de sua pela reiteração de julgamentos acumulados nos horizontes da
prescritividade. mais legítima experiência jurídica. É a consolidação do traba-
lho judicante, produzindo o direito vivo, testado e compassa-
damente aplicado na composição de litígios sobre certos e
2.3.4.3. Súmula dominante e Súmula vinculante
determinados objetos do comportamento social.
Se preâmbulo, ementa e exposição de motivos são mo- Sobre o papel da Súmula ordinária no direito brasileiro,
mentos interiores ao estatuto normativo, a Súmula é algo a ele instituída em 1.963, ao tempo do Eminente Min. Victor Nunes
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

Leal, quando passou a constar do Regimento Interno do Su- (decisões e julgados do Tribunal Superior). Em planos mate-
premo Tribunal Federal, nada melhor do que as palavras con- riais, contudo, seu conteúdo vincula-se àqueles, uma vez que
tidas em acórdão daquela Egrégia Corte, publicado no DJ de a Súmula justamente os unifica e sistematiza para fins de com-
24/05/2005, no AI-AgR 179.560/RJ, da la turma, sendo relator o posição do ordenamento. Também aqui, não põe direito novo,
Ilustre Ministro Celso de Mello: mas funciona como providência necessária na organização e
celeridade dos julgados do Poder Judiciário.
A SÚMULA DA JURISPRUDÊNCIA PREDOMINANTE DO
Em comentários ligeiros, entende-se por súmula vincu-
SUPREMO TRIBUNAL
lante o nome dado a determinado procedimento normativo,
(...)
que, seguindo a sequência de atos exigida pelo art. 103-A da
A formulação sumular, que não se qualifica como " pauta CF (incluído na Constituição da República pela EC 45/2004),
vinculante de julgamento", há de ser entendida, consideradas
traz como resultado norma produzida pelo STF com efeito
as múltiplas funções que lhe são inerentes — função de esta-
bilidade do sistema, função de segurança jurídica, função de vinculante. Veja redação do Texto Constitucional:
orientação jurisprudencial, função de simplificação da ati-
vidade processual e função de previsibilidade decisória, v. g. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provo-
(RDA 78/453-459 — RDA 145/1-20), como resultado paradig- cação, mediante decisão de dois terços dos seus membros,
mático a ser autonomamente observado, sem caráter imposi- após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, apro-
tivo, pelos magistrados e demais Tribunais judiciários nas var súmula que, a partir de sua publicação na imprensa
decisões que venham a proferir") oficial, terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos
do Poder Judiciário e à administração pública direta e indi-
reta, nas esferas federal, estadual e municipal, bem como
Por outros torneios, eis o sentido do texto exarado pelo E.
proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabele-
Supremo Tribunal Federal no fragmento trasladado para esta cida em lei.
peça. E tudo quanto se disse a respeito daquela Elevada Corte
se aplica às Súmulas de consolidação de jurisprudência do A discussão, levantada pelo dispositivo, diz muito mais à
Superior Tribunal de Justiça que, na mesma proporção, per- qualidade vinculante do efeito do decisório do que do próprio
segue as funções de estabilidade do sistema, de segurança procedimento em si, que se encontra prescrito com hialina
jurídica, de orientação jurisprudencial, de simplificação da clareza na Carta Magna. Posto isto, que é efeito vinculante?
atividade processual e de previsibilidade decisória, uma vez Qual a força de eficácia jurídica que se deve atribuir a esta
que na amplitude de sua missão constitucional está o dever de expressão? Firmemos que a norma expedida pelo STF, para
uniformizar a interpretação das leis federais. Apesar de sua fins de uniformizar jurisprudência reiterada, em caráter vin-
vocação sintetizadora, vê-se que não há como equiparar a sú- culante, amarra, conforme texto constitucional, os órgãos do
mula à classe de que tratamos, vale dizer, dos preâmbulos, das
Poder Judiciário e a administração pública direta e indireta, nas
ementas e das exposições de motivos.
esferas federal, estadual e municipal. Logo, uma vez expedida
O momento epistemológico pede ajeitar-se aqui também e publicada na imprensa oficial, a vigência da súmula é ime-
alguns comentários acerca da súmula vinculante. Do mesmo diata e são obrigados (o) a respeitá-la, ao proferir suas próprias
modo que a súmula dominante, a de caráter vinculante é também decisões, os juízes e tribunais, em sua totalidade, incluindo-se
norma externa aos atos que a constituem, isto é, em termos for- as Turmas do próprio STF, no plano do Poder Judiciário; e, no
mais, é veículo normativo autônomo às normas que a instituem âmbito executivo, a administração pública, direta ou indireta,
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

em suas esferas federal, estadual e municipal. Note-se que a manter-se dentro dos limites físicos da natureza, sendo abran-
CF/88 nada diz quanto ao Poder legislativo, que, deste modo, gido pelo espaço, mas sobretudo viver, que é abranger o
encontra-se fora do campo de abrangência normativa e vincu- tempo, rompendo com aquilo que nos parece ser a ordem
lante da Súmula. natural das coisas, para expandir-se livremente no infinito,
onde podem fluir todos os sonhos e são acolhidas as nossas
Em resumo, à diferença dos procedimentos ordinários
aspirações e devaneios.
sumulares, a Súmula vinculante tem duas consequências no
universo jurídico: (i) é imperativa, uma vez que o STF impõe, Efetivamente, o homem vai além do universo físico; trans-
em planos semânticos, um sentido determinado a uma dada cende sua própria existência para alcançar o impossível, o
norma, sentido este que deve ser acolhido de forma obrigatória inefável. Encontra-se sempre em eterna busca: a procura de
pelos sujeitos de direitos enunciados no art. 103-A; e (ii) é co- algo que o ultrapassa. Neste sentido, o que o homem tem de
ercível, tendo em vista que a sua inobservância autoriza o ju- material, como ser vivente, é-lhe muito pouco. Oferece apenas
risdicionado a ingressar com reclamação, no próprio STF, sem o apoio físico indispensável para as aventuras do espírito.
prejuízo de futuras e eventuais sanções que podem ser previs- Basta examinar uma obra de arte qualquer: seu valor
tas em lei. Eis que a condição de ser vinculante comparece aqui estético não descansa na base empírica que recebe o impacto
como elemento interior a essas Súmulas, com o caráter de do desenho e das tintas que lhe são aplicadas, mas no desem-
predicado interno (não vindo de fora). Trata-se daquilo que a penho do artista que, na genialidade de seus traços e na com-
distancia das chamadas Súmulas dominantes. binação inusitada das cores, deixa marcas no objeto. São as
marcas da enunciação no enunciado, como índices da criação
2.3.4.4. O preâmbulo como feixe de marcas da enunciação, artística e modo de objetivação do belo. Vêem-se, neste exem-
meio eficaz de acesso ao quadro axiológico que presi- plo, os transportes do espírito humano sobrepujando as limi-
diu a edição do Texto Constitucional tações da materialidade da vida, naquela síntese do ser com o
dever ser, presente em toda composição do objeto da cultura.
Deixando de lado os argumentos trazidos pela teoria da Quero lembrar, também, que tais objetos acontecem no
irrelevância, mencionadas páginas atrás, quero insistir que o curso da história, arrastando consigo os dados que o passado vai
Preâmbulo constitucional é portador de carga prescritiva como acumulando. Lourival Vilanova, a propósito, refletindo sobre a
qualquer outra porção do direito posto. Distingue-se, porém, porção de historicidade que os acontecimentos sociais carregam,
pela hierarquia. É a palavra do legislador constituinte que declara com linguagem penetrante e expressiva: "Os entes his-
remete à própria instância da enunciação do Texto Maior, tóricos são assim: num ponto do tempo, repousam todos os pontos
anunciando valores que funcionam como verdadeiros dêiticos antecedentes, que se fazem presentes sem perderem seu modo de
para localizar, no tempo e no espaço, o momento e o lugar ser pretéritos. Confluem todos para o presente, que se converte em
cultural em que se implantou a Constituição de 1988. ponto de intersecção do que já se foi com o que está por vir. Com
Não sobeja lembrar, quanto ao âmbito de compreensão isso, o tecido histórico vai se constituindo ponto por ponto, tornan-
deste cenário exegético, aquelas palavras que empreguei no do-se cada vez mais espesso, mais resistente, mais denso".
prefácio do sugestivo livro do Professor José Souto Maior Bor- Transmitindo essas meditações para o quadro das unida-
ges, Ciência Feliz, onde lembrei que as construções do espírito des textuais, da mesma forma que uma obra de arte, todo
permitem à criatura humana não simplesmente existir, que é texto - componente do universo físico que é - transcende sua
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

própria existência, permitindo ao intérprete alcançar o impos- procedimental também nele (sistema) prevista. Seu teor de
sível: aquela camada do ideal com que o espírito humano lida concretude manifesta-se na leitura do antecedente: advêm de
com tanta naturalidade. Em toda escolha lexical, em toda com- um fato efetivamente realizado, isto é, marcado no tempo e situ-
binação frásica, há um pouco de quem os executa - o ser hu- ado no espaço.
mano - sendo depositado no corpo do material com que traba-
Com efeito, pensemos numa sentença: o suposto invoca a
lha, as marcas de suas crenças e ideologias, suas esperanças e
competência específica do magistrado e a situação do processo,
frustrações. E, ao ser retomado pelo exegeta, o homem volta a
recebe um número (que é o do processo) e é proferida em de-
expandir-se livremente, eternizando-se. Nasce e renasce em
terminado ponto do tempo e em certo lugar do espaço (local e
todo ato de enunciação, fazendo-se presente e onipresente.
data da publicação). Reúne, portanto, tudo aquilo que se requer
Para não perder o fio da meada e retornando à linha de de um fato concreto: verbo no pretérito e coordenadas espaço-
raciocínio da qual partimos, quero dizer que o Preâmbulo da temporais definidas. E como a sentença, teremos todas as demais
Constituição é um admirável exemplo de matéria textual fontes formais, sejam aquelas emanadas do Judiciário (acórdãos
pronta para propiciar ao espírito humano suas excursões no e outros atos de cunho jurisdicional), do Legislativo (emendas
mundo de seus sonhos, aspirações, traumas e necessidades, à Constituição, leis, decretos legislativos, resoluções etc.), do
realizando-o ao deixar traços das crenças e ideologias que Executivo (decretos, instruções ministeriais, portarias, ordens
ficaram gravadas, a ferro e fogo, na Constituinte de 88. Nessa de serviço, lançamentos tributários, decisões administrativas e
trajetória, pode dizer-se que o Preâmbulo expandiu o espíri- outros expedientes) ou, no caso, cumpre ressaltar, do constituin-
to de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, te originário (Constituição da República). Acrescentemos aqui
fundada na harmonia social. E com tais exortações fixou co- a multiplicidade de atos que pertenceram também à província
ordenadas relevantíssimas para a interpretação do Texto do ordenamento normativo e que advêm do setor privado (como
Constitucional. os contratos, promessas unilaterais de recompensa e outras
manifestações jurídicas individuais).
Cabe dizer que é perfeitamente possível explicar a função
discursiva do preâmbulo no direito, associando-o ao tema das Em situações desse tope, há sempre um procedimento a
fontes, sob o influxo das enérgicas influências da teoria da ser seguido, previsto nas normas de competência. Quando se
linguagem e, mais especificamente, dos atos de fala. Lembre- diz que norma válida é aquela produzida por órgão competen-
mo-nos de que chamo de fontes materiais aqueles fatos jurídi- te, perante o sistema, e consoante o procedimento nele, sistema,
cos produtores de normas e de fontes formais as normas que estabelecido, não nos detemos na reflexão segundo a qual todo
têm a missão de introduzir no sistema jurídico-prescritivo uma procedimento de elaboração normativa se apresenta como forma
ou mais normas gerais e abstratas, individuais e concretas ou de realizar o próprio direito. Não é difícil perceber que o siste-
individuais e abstratas. Agora, as fontes formais ou veículos ma de normas, introdutoras e introduzidas, é o que conhecemos
introdutores de normas, como parece melhor denominar, serão por direito positivo, ao passo que o conjunto de fatos aos quais
sempre e invariavelmente normas concretas e gerais, pouco a ordem jurídica atribui teor de juridicidade, se tomados na
i mportando o tipo de regras por elas inseridas no ordenamen- qualidade de enunciação e não de enunciados, estarão forman-
to. Comprova-se que são gerais pela circunstância de que todos do o território das fontes do direito posto.
haverão de respeitá-las como normas válidas insertas no siste- É precisamente neste último exemplo - a enunciação pela
ma: foram produzidas pelo órgão competente, segundo a forma Assembléia constituinte do Preâmbulo e do Texto constitucional
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

- que Kelsen trouxe a singela, porém genial contribuição da 2.3.4.5. Comandos de sobrenível - prescrições sobre prescrições
"norma hipotética fundamental", não posta, mas pressupos-
ta, juridicizando aquele fato - procedimento de elaboração Forte nesses pressupostos não hesito em proclamar que
normativa - que ficara de fora, por imprimir-lhe a feição de o estudo das fontes do direito está voltado, primordialmente,
normatividade que lhe faltava. Ao redigir o texto do Preâm- para o exame dos fatos enquanto enunciações que fazem nas-
bulo, a Assembléia Constituinte seguiu itinerário previsto na cer regras jurídicas introdutoras de normas no sistema. Por
norma fundamental que lhe deu competência e, portanto, isso, o Preâmbulo não pode ser desconsiderado na feição de
fundamento de validade. O Preâmbulo, uma vez enunciado, sua juridicidade. Como feixe de marcas deixadas no curso do
torna-se norma válida, tendo em vista que é produzido por processo de enunciação do direito, assume indiscutível rele-
órgão competente perante o sistema e consoante o procedi- vância, auxiliando e orientando a atividade do intérprete.
mento nele admitido, realizando o próprio direito. O domínio Aliás, precisa ficar claro que o Poder Constituinte não foi elei-
de fatos produzidos pela Assembléia Constituinte é recepcio- to para propor sugestões, emitir opiniões, tecer comentários,
nado pela ordem jurídica, na medida em que se lhes atribui formular conselhos, conceber hipóteses ou elaborar proposi-
teor de juridicidade. São eles tomados na qualidade de enun- ções independentes de metalinguagem sobre o discurso de
ciação e não de enunciados, formando, neste ponto, a região estruturação do Estado Brasileiro que adveio de seu trabalho.
das fontes do direito posto. Fecha-se assim o conjunto, isolado No caso do Preâmbulo, admite-se tão só a função metalinguís-
na especificidade de seu objeto, uniforme porque composto tica dentro do Texto, como função de glosa, mas projetada
tão-somente de normas jurídicas, de tal modo que nele, con- sobre o mesmo código que está sendo empregado, vale dizer:
junto, não encontraremos senão descritores e prescritores, é prescrição sobre prescrições, preceitos de sobrenível voltados
bem como suas contrapartes factuais: fatos jurídicos e relações para o mister de resumir, imperativamente, aqueles mesmos
jurídicas. dispositivos que, esparsos na amplitude do discurso constitucio-
nal, cumprem sua missão disciplinadora de comportamentos
O corolário natural deste quadro de indagações é que o intersubjetiv os .
direito positivo, integrado unicamente por normas jurídicas,
não comportaria a presença de outras entidades. Ora, tudo isso
aplicado ao Preâmbulo não é compatível com a existência de 2.3.5. O axioma da hierarquia das normas e a teoria das fontes
textos que componham o direito posto sem, contudo, revestir do direito
caráter prescritivo. Figura desse jaez de forma alguma caberia
Outra coisa, bem distinta, é reconhecermos o enorme inte-
ao lado de normas, co-participando da integridade do ordena-
resse de investigar os plexos de normas que estão credenciados
mento. Não poderia compartilhar do mesmo campo de objetos pelo sistema para o fim de promover a inserção de novas unidades,
que reúne as unidades normativas, justapondo-se ou contra- movimentando-o no sentido de projetar-se sobre a região material
pondo-se a elas. Se porventura estivessem, seriam formações da conduta, e coordenando o fluxo das interações humanas, na
linguísticas portadoras de uma estrutura sintática própria. E direção que implanta os valores fundamentais da sociedade. São
qual seria essa configuração lógica? Ninguém, certamente, normas que falam acerca de normas, regras que dizem como as
saberá responder a tal pergunta, porque o Preâmbulo é forma- regras do direito devem ser postas, alteradas ou expulsas do sis-
do por "normas jurídicas" carregadas de intensa conotação tema. Eis o direito se autocompondo, se retroalimentando, para
axiológica, influindo vigorosamente sobre a orientação de todos absorver as matérias que outros subsistemas do tecido social,
os segmentos da ordem positiva. considerado na sua inteireza (político, econômico, ético, religioso,
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

social em sentido estrito, etc.), vão paulatinamente oferecendo ao Vem a ponto aqui notar que o fenômeno jurídico de que
juízo do legislador, que decide o modo de aproveitá-las para a falamos comporta diversas posições cognoscitivas: a linguagem
regulação do comportamento intersubjetivo. normativa, no seu projetar-se sobre a realidade social, enseja
O estudo da hieraquia das normas, tomada a palavra "n" posturas formais diferentes. São Ciências do Direito tanto
"hieraquia" como axioma é relevantíssimo. Sem ele, nada po- a Sociologia do Direito quanto a História do Direito, a Antro-
deríamos dizer a propósito da situação hierárquica de deter- pologia Cultural do Direito, a Política do Direito, a Psicologia
minado preceito que, por qualquer razão, convocasse os nossos Social do Direito e quantas outras.
cuidados, já que todas as normas jurídicas têm idêntica estru- Pudemos relevar, outrossim, que o estudo das chamadas
tura sintática (homogeneidade lógica), embora dotadas de fontes materiais do direito circunscreve-se ao exame do
conteúdos semânticos diferentes (heterogeneidade semântica).
processo de enunciação dos fatos jurídicos, de tal modo que
É por aceitar que a norma N' entrou pela via constitucional,
neste sentido a teoria dos fatos jurídicos é a teoria das fontes
que reivindico sua supremacia com relação à norma N", posta
dogmáticas do direito. Paralelamente, as indagações relati-
por lei ordinária. É por saber que certa norma individual e con-
creta veio à luz no bojo de um acórdão do Supremo Tribunal vas ao tema das fontes formais correspondem à teoria das
Federal, que me atrevo a declarar sua prevalência em face de normas jurídicas, mais precisamente daquelas que existem
outro acórdão proferido por tribunal de menor hierarquia. Nes- no ordenamento para o fim primordial de servir de veículo
te domínio, recolhemos material precioso para o discurso críti- introdutório de outras regras jurídicas. Já que este campo
co-descritivo da Ciência do Direito, conquanto seja necessário de investigação assume caráter de grande interesse e de
enfatizar que isso nada tem que ver com a temática das fontes. indiscutível utilidade para o cientista, permitindo-lhe situar
as unidades prescritivas nos respectivos patamares da es-
trutura piramidal, nada mais razoável do que compreender
2.3.6. Fonte do direito e fonte da Ciência do Direito
o porquê da insistência dos doutos em discorrer espaçosa-
Desde logo cumpre fazer observação importante e que mente sobre o assunto. A impropriedade fica registrada,
atina ao momento da própria determinação das diferenças mesmo sabendo que nem sempre é fácil ajeitar a linguagem
existentes entre a fonte do direito positivo e a fonte da Ciência à nitidez do pensamento.
do Direito. Com apoio nos alicerces da teoria comunicacional
acima exposta, entendemos que são fontes do direito positivo
2.3.7. Revogação tributária
as materiais, vale dizer, os acontecimentos que se dão no plano
uno e múltiplo do processo de enunciação dos fatos jurídicos,
Há muito que se estuda a revogação de normas jurídicas
abrangendo os fatos sociais em senso estrito e os fatos naturais
mesmo porque o assunto é tão antigo como o próprio direito.
de que participem, direta ou indiretamente, sujeitos de direito.
É no fenômeno revogatório que o sistema vai adquirindo novas
Para que tais eventos adquiram o predicado de fontes, portan-
configurações, como se fosse uma formação de nuvens no céu.
to, mister se faz que encontrem qualificação em hipótese de
normas válidas do sistema. Já por fontes da Ciência do Direito As construções doutrinárias, entretanto, não têm atribuído ao
podemos, numa opção perfeitamente aceitável, congregar tudo tema a importância que ele merece, como dinâmica internor-
aquilo que venha a servir para a boa compreensão do fenôme- mativa de alterar o ordenamento, fazendo com que ele se
no jurídico, tomado agora como a linguagem prescritiva em atualize e avance em direção às condutas interpessoais, para
que se verte o direito. discipliná-las, implantando valores. Os autores permaneceram

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LIN UAGEM E ÉTODO

no nível epidérmico das soluções de conflitos interpretativos superior, produz novas regras. Tudo nos parâmetros previstos
ou na singela explicação das razões pelas quais uma regra pelo sistema jurídico.
deve prevalecer sobre outra, ao regular deonticamente as Ao regular sua própria criação, ele institui o modo pelo
situações da vida social. Mas os tempos mudaram e o "giro- qual se opera a produção, modificação e extinção de suas nor-
linguístico" permitiu que novas perspectivas se abrissem para mas, fazendo-o por meio das denominadas regras de estrutura,
a análise do dado jurídico. Os horizontes normativos, com as as quais representam, para o direito positivo, o mesmo papel
técnicas que se assentam na teoria dos atos de fala e apoiados que as regras da gramática cumprem num idioma historica-
no desenvolvimento das investigações sobre a estrutura do mente dado. Prescrevem estas últimas a forma de combinação
discurso, puderam ser vistos com maior amplitude, de tal dos vocábulos e das expressões para produzirmos orações, isto
modo que as questões atinentes à revogação passaram a ser, é, construções com sentido. À sua semelhança, as chamadas
antes de mais nada, problemas do universo das fontes de regras de estrutura determinam os órgãos do sistema e os ex-
produção do direito. pedientes formais necessários para que se editem normas ju-
rídicas válidas no ordenamento, bem como o modo pelo qual
O pensamento acerca de matéria tão relevante poderia são elas alteradas e desconstituídas.
ser localizado no âmbito do mundo dos objetos culturais,
Conquanto o sistema do direito positivo, sendo composto
onde se manifesta, efetivamente, a experiência jurídica e os
por linguagem prescritiva, admita a existência de contradições
valores que os sujeitos do conhecimento lhe atribuem. To-
entre as unidades do conjunto, o próprio ordenamento costuma
mando a Lógica como premissa há de se considerar no fe- trazer estipulações que determinam qual das normas há de
nômeno da revogação, equilibradamente, a organização prevalecer. Vale lembrar a lição de Lourival Vilanoval" no
sintática do discurso normativo em face da presença inafas- sentido de que:
tável dos fatores axiológicos, numa postura que se movimen-
ta bem na linha das meditações empreendidas pelo mestre "O só fato da contradição não anula ambas as normas. Nem
Lourival Vilanova. Mais ainda, ao refletir sobre o instituto a lei de não-contradição, que é lei lógica e não norma jurí-
da revogação, comparece, ostensivamente, o chamado "cons- dica, indicará qual das duas normas contradizentes preva-
lece. É necessária a norma que indique como resolver a
tructivismo lógico-semântico" ou, como prefere Gregorio
antinomia: anulando ambas ou mantendo uma delas."
Robles Morchón, a proposta hermenêutico-analítica, que
privilegia os atos de fala como o a priori de todo e qualquer A solução das antinomias porventura existentes no siste-
fato comunicacional. ma resolve-se pelos critérios estabelecidos pelo ordenamento
Convém reiterar mais uma vez que o direito é fenômeno e não por outros meios. Neste sentido, a Teoria Geral do Direi-
complexo. Um caminho para estudá-lo é isolar as manifesta- to construiu três critérios de solução de conflitos de normas,
ções normativas. Ali onde houver direito, haverá normas ju- os quais, posteriormente, foram inseridos no sistema do direi-
to positivo brasileiro pela Lei de Introdução ao Código Civil,
rídicas. E onde houver normas jurídicas haverá, certamente,
por seu artigo 2 2 , nos seguintes termos:
uma linguagem em que tais normas se manifestam. Não se
trata, contudo, de algo estático, imutável. Ao contrário, o di-
reito está em constante movimento, em que o legislador (em 164. Causalidade e relação no direito, 4a ed., São Paulo, Revista dos Tribunais,
sentido lato), partindo de normas jurídicas de hierarquia 2000, p. 212.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

"Art. 2 2 Não se destinando à vigência temporária, a lei terá


2.3.8. Revogação e anulação dos atos jurídicos administr ivos
vigor até que outra a modifique ou revogue.
§ 1 2 A lei posterior revoga a anterior quando expressa-
Os atos jurídicos administrativos podem desapa -cer do
mente o declare, quando seja com ela incompatível ou
mundo jurídico pela revogação ou pela anulação.
quando regule inteiramente a matéria de que tratava a
lei anterior. Hely Lopes Meirelles 165 chama a atenção para a diferença,
§ 2 2 A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou espe- mencionando a Súmula 473, do STF, que pôs fim à inadequada
ciais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei equiparação.
anterior.
§ 3 2 Salvo disposição em contrário, a lei revogada não se "A administração revoga ou anula o seu próprio ato; o Ju-
restaura por ter a lei revogadora perdido a vigência". diciário somente anula o ato administrativo. Isso porque a
revogação é o desfazimento do ato por motivo de conveni-
Observa-se, com esse dispositivo, que revogação pode ência ou oportunidade da Administração, ao passo que a
dar-se com ou sem conflito de normas. No segundo caso, tem- anulação é a invalidação por motivo de ilegalidade do ato
se a revogação expressa, que atinge diretamente um ou alguns administrativo. Um ato inoportuno ou inconveniente só
enunciados (v.g., "fica revogado o artigo X da lei Y" ou "revo- pode ser revogado pela própria Administração, mas um ato
ilegal pode ser anulado, tanto pela Administração como pelo
ga-se a lei Y"), enquanto na primeira hipótese opera-se revo-
Judiciário."
gação tácita, em que, diante da ausência de indicação do
dispositivo ou lei revogada, persiste conflito entre as duas
legislações. Diz-se haver revogação expressa quando a lei O ato jurídico administrativo de lançamento pode ser nulo,
revogadora manifestamente o declare, e haverá revogação de pleno direito, se o motivo nele declarado - a ocorrência de
tácita quando existir incompatibilidade entre lei anterior e determinado fato jurídico tributário, por exemplo - inexistiu.
lei posterior, ou, ainda, quando esta regular inteiramente a Também será nulo quando, a título de modelo, for identificado
matéria de que tratava a lei anterior. Observando o direito sujeito passivo diverso daquele que deve integrar a obrigação
positivo como texto, poderíamos dizer que a revogação ex- tributária. Igualmente nulo o lançamento de imposto de renda,
pressa atua no plano da literalidade textual (S1), enquanto a pessoa física, celebrado antes do termo final do prazo legal-
revogação tácita ocorre no altiplano das significações, quer mente estipulado para que o sujeito passivo apresente sua
consideradas isoladamente (S2), quer articuladas na forma declaração de rendimentos e de bens, hipótese de forma em
de juízo hipotético-condicional (S3). desacordo com a prescrição da lei.
Vimos que a solução das antinomias porventura existen-
Como exemplos de anulação de lançamentos, temos os
tes no sistema resolve-se pelos critérios estabelecidos pelo
conhecidos erros de fato, tão frequentes em nossos dias: troca
direito posto e não por outros meios. Neste sentido, as referidas
de números, substituição de valores, etc.
disposições da Lei de Introdução ao Código Civil funcionam
como meta-regras, determinando corno a norma perde sua Conviria lembrar, principalmente no que tange à catego-
vigência e é excluída do ordenamento. É com fundamento em ria do lançamento tributário, a classe dos atos irregulares a
suas determinações que se enunciam os princípios da lex pos-
terior derogat priori, lex superior derogat inferiori e lex specia-
lis derogat generalis. 165. Direito administrativo brasileiro, 33 2 ed., Malheiros, 2007, p.171-172.
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

que alude Seabra Fagundes 166 . Tais entidades estariam eivadas Por isso é indesejável a terminologia de alguns autores,
de pequenos vícios que, por irrelevantes, não justificariam a inclusive nacionais, que usam a voz "invalidação" para referir
anulação do ato. O nome do contribuinte, ainda que permitin- a retirada tanto por motivo de ilegitimidade quanto por motivo
do sua identificação, não está corretamente consignado. Nesses de inconveniência ou inoportunidade (revogação).
casos, suficiente será leve retificação que não determina, por Pode-se conceituar invalidação do seguinte modo: in-
si só, qualquer mudança jurídica no relacionamento entre validação é a supressão, com efeito retroativo, de um ato
Administração e administrado. administrativo ou da relação jurídica dele nascida, por ha-
De final, pequena advertência acerca da procedente verem sido produzidos em desconformidade com a ordem
distinção assinalada por Hely Lopes Meirelles. Para evitar jurídica.
perigosos equívocos, não convém falarmos em revogação de O escólio do notável administrativista traz luzes ao tema
lançamento, visto como foi que a revogação seria o desfazi- que versamos, justamente porque o procedimento administra-
mento do ato por motivo de conveniência ou oportunidade tivo está, todo ele, virado à produção de um ato final e conclu-
da Administração. Ora, se no plano das imposições tributá- sivo, que diga da validade de ato originário, que tanto pode ser
rias, ao menos quanto ao ato de lançamento, estamos diante o de simples exigência de tributo, como também de penalidade
de atividade vinculada, e não discricionária, descabe qual- ou mesmo da notificação de ambos.
quer alusão a critérios de conveniência ou oportunidade.
Empreguemos, em obséquio à precisão da fraseologia jurí-
2.4. SISTEMA E NORMA: VALIDADE, VIGÊNCIA,
dica, o termo anulação, o único compatível com o reconhe-
EFICÁCIA E INTERPRETAÇÃO DA LEGISLAÇÃO
cimento, pela Administração ou pelo Judiciário, da ilegali-
TRIBUTÁRIA
dade do ato.

Mas, a doutrina correta entendemos estar expressa nas Surpreendido no seu significado de base, o sistema apa-
lições de Celso Antonio Bandeira de Me11o 167 , quando prefere rece como o objeto formado de porções que se vinculam debai-
o termo invalidade - "antítese de validade e invalidação" - para xo de um princípio unitário ou como a composição de partes
se referir a defeito jurídico e não problema de inconveniência, orientadas por um vetor comum. Onde houver um conjunto de
de mérito, do ato. elementos relacionados entre si e aglutinados perante referên-
cia determinada, teremos a noção fundamental de sistema.
"Um ato ajustado aos termos legais é válido perante o Trata-se de ente de complexidade máxima jurídica, ou, no modo
Direito, ainda que seja considerado inconveniente por quem de Husserl, é a "forma das formas" do direito.
pretenda suprimi-lo. Não se deve, pois, chamar de invalidação
As unidades que compõem o sistema do direito positivo são
à retirada por motivo de mérito."
as normas jurídicas, que, em planos conotativos, são compostas
por juízos hipotético-condicionais, em que se enlaça ao ante-
166.O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário, Rio de Janeiro,
cedente, ou descritor, um consequente, ou prescritor, tudo por
Forense, 1967, p. 54-67. intermédio da cópula deôntica - o dever-ser, na sua configura-
167. Curso de direito administrativo, 21a ed., São Paulo, Malheiros, 2006, ção neutra, isto é, sem modalização. Em termos denotativos,
p. 439. substituindo a hipótese, encontrar-se-á a descrição normativa
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de um evento que, concretizado no nível das realidades mate- entre a proposição normativa e o sistema do direito posto, de
riais, será relatado no antecedente da norma individual e con- tal sorte que ao dizermos que u'a norma "N" é válida, estaremos
creta, e fará irromper o vínculo abstrato que o legislador esti- expressando que ela pertence ao sistema "S".
pulou na consequência. Imerso na linguagem prescritiva do
A ponência de normas num dado sistema serve para in-
direito posto, o fato jurídico é o signo enunciativo peculiar do
troduzir novas regras de conduta para os cidadãos, como tam-
direito, próprio para dar concreção jurídica à realização efeti-
bém modificar as que existem ou até para expulsar outras
va de um sucesso relatado em linguagem própria. Há que se
normas, cassando-lhes a juridicidade. Uma regra, enquanto
consignar, outrossim, que fato e norma são, em verdade, uma
não ab-rogada por outra, continua pertencente ao sistema e,
só estrutura jurídica, considerado o efeito automático e infalí-
como tal, reveste-se de validade.
vel do functor deôntico modalizado no consequente ao ser
relatado o fato jurídico em linguagem das provas. Ponderadas É intuitivo crer que a validade se confunde com a exis-
essas injunções, cumpre advertir que manter-se-á tal intersec- tência, de sorte que afirmar que u'a norma existe implica re-
ção, apenas para fins epistemológicos. conhecer sua validade, em face de determinado sistema jurí-
dico. Do que se pode inferir: ou a norma existe, está no sistema
Sistema, norma e fato são, outrossim, estruturas dotadas
e é, portanto, válida, ou não existe como norma jurídica. Ainda
de conteúdo semântico e de efeitos pragmáticos próprios do
que o juiz deixe de aplicar u'a norma, por entendê-la inconsti-
universo jurídico. Abrindo-se espaço para as Ciências Jurídicas
tucional, opinando por outra para ele mais adequada às dire-
na produção de classificações, encontraremos esquemas segu-
trizes do ordenamento, nem por isso, a regra preterida passa
ros para determinar as qualidades de cada um desses enun-
a inexistir, permanecendo válida e pronta para ser aplicada em
ciados, atribuindo ora propriedades às normas (validade, in-
outra oportunidade.
validade, vigência e vigor) ora aos fatos (eficácia jurídica, efi-
cácia técnica e eficácia social). Prossigamos a análise sob os
efeitos de tais meditações. 2.4.2. Sistema e norma: a vigência da norma jurídica tributária

Viger é ter força para disciplinar, para reger, cumprindo


2.4.1. Sistema e norma: a validade da norma jurídica tributária a norma seus objetivos finais. A vigência é propriedade das
regras jurídicas que estão prontas para propagar efeitos, tão
Como já consignado anteriormente, as normas jurídicas,
logo aconteçam, no mundo fáctico, os eventos que elas descre-
proposições prescritivas que são, têm sua valência própria.
Delas não se pode dizer que sejam verdadeiras ou falsas, valo- vem. A propósito, Tércio Sampaio Ferraz Jr. 168 distingue "vi-
res imanentes às proposições descritivas da Ciência do Direito, gência" como o intervalo de tempo em que a norma atua,
mas as normas jurídicas serão sempre válidas ou inválidas, podendo ser invocada para produzir efeitos, e "vigor", como a
com referência a um determinado sistema "S". E ser norma força vinculante que a norma tem ou mantém, mesmo não
válida quer significar que mantém relação de pertinencialidade sendo mais vigente. O exemplo de uma regra não mais vigente,
com o sistema "S", ou que nele foi posta por órgão legitimado a revogada, que continue vinculante para os casos anteriores à
produzi-la, mediante procedimento estabelecido para esse fim.
A validade não é, portanto, atributo que qualifica a norma 168. Introdução ao estudo do direito, 3a ed., São Paulo, Atlas, 2001, pp. 193-
jurídica, tendo status de relação: é o vínculo que se estabelece 199.

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sua revogação, justificaria a diferenciação semântica. Creio que condições a priori da sensibilidade. Estão por isso destinadas
o assunto mereça, efetivamente, variação terminológica capaz a cobrir um determinado setor do mundo externo, fazendo-o
de identificar dois momentos diferentes. Parece-me, contudo, por certo trato de tempo que ela mesma demarca, como uni-
que os termos empregados não seriam os mais recomendáveis. dade de um sistema jurídico igualmente submetido a idênticas
Fico com a distinção, que a entendo útil e relevante, mas sem limitações.
dar conteúdos semânticos diversos às palavras "vigência" e De quanto se expôs deflui que a norma jurídica se diz
"vigor". A regra revogada não terá vigência para fatos futuros, vigente quando está apta para qualificar fatos e determinar o
conservando, porém, a vigência para os casos acontecidos ante- surgimento de efeitos de direito, dentro dos limites que a ordem
riormente à revogação. Haverá uma vigência plena (passado e positiva estabelece, no que concerne ao espaço e no que con-
futuro) e outra parcial (passada, havendo revogação, ou futura, sulta ao tempo.
quando a vigência for nova).
Ajeita-se aqui uma consideração relevante, tendo em
Há normas que existem e que, por conseguinte, são vista o aprofundamento teórico na temática da vigência. Dis-
válidas no sistema, mas não dispõem dessa aptidão. A des- tinguimos, no capítulo anterior, os veículos introdutores das
peito de ocorrerem os fatos previstos em suas hipóteses, não fontes, na medida em que estas são fatos, no sentido de enun-
se desencadeiam as consequências estipuladas no manda- ciação, que fazem irromper essas regras introdutoras; da
mento. Dizemos que tais regras de direito não têm vigor, seja mesma forma que os diferenciamos das normas introduzidas
porque já o perderam, seja porque ainda não o adquiriram. no sistema de direito positivo. Mas ficou consignado, também,
A vigência não se confunde com a eficácia. U'a norma pode que os veículos introdutores são igualmente normas jurídicas,
estar em vigor e não apresentar eficácia técnica (sintática ou com a mesma organização lógica de todas as demais (princí-
semântica) e, igualmente, não ostentar eficácia social. Pode, pio da homogeneidade sintática das proposições prescritivas
por outro lado, não estar em vigor, apresentando, porém, conjugado com o cânone da uniformidade que o objeto da
eficácia técnica e eficácia social. Todavia, é bom repetir que ciência deve ostentar), apenas assinalando que tais regras
não cabe falar de norma válida e vigente como dotada, ou serão sempre do tipo das gerais e concretas, porquanto seu
não, de eficácia jurídica, já que tal caráter é qualidade de antecedente dá conta da ocorrência de um fato devidamente
fatos jurídicos, não de normas. A questão da eficácia social delimitado no espaço e no tempo e seu consequente estabe-
(norma vigente sem eficácia social ou norma não vigente com lece uma relação jurídica em que, de um lado, comparece o
eficácia social) assume grande interesse para a Política do titular da autorização para praticar certa conduta (legislar,
Direito, configurando o ponto de partida para o exercício de expedir atos administrativos, sentenciar etc.) e, do outro, fi-
pressões sociais no sentido de suprimir a norma tida por guram os demais indivíduos da comunidade social, isto é,
ineficaz e introduzir, regularmente, aquela outra que a prá- aqueles que devem respeito ao teor de juridicidade de tais
tica social vem reclamando. manifestações. Esses atos normativos inserem no sistema
Como ensinou Kant, o espaço e o tempo não existem fora normas gerais e abstratas, individuais e concretas e individu-
do ser cognoscente, mas se apresentam como instrumentos ais e abstratas. Ora, se assim é, tanto as primeiras, normas
da faculdade de conhecer e de recolher sensações. As leis, introdutoras, como as últimas, normas introduzidas, hão de
enquanto produto cultural do homem, vêm irremediavelmen- ter sua vigência, já que frisamos ser esse predicado universal
te impregnadas pela necessidade de tudo relacionar a essas da generalidade das regras jurídicas.
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Os veículos introdutores terão sua vigência marcada pelo 2.4.2.1. A relação lógico jurídica entre a vigência e os princípios
átimo da própria validade. Nesse caso específico, vigência e constitucionais da irretroatividade e da anterioridade
validade são concomitantes e não teria sentido imaginar-se que no direito tributário
a regra geral e concreta, operando como instrumento introdu-
tor, tivesse de esperar intervalo de tempo para, somente depois, As diretrizes constitucionais da irretroatividade e da an-
irradiar sua vigência, dado que a finalidade exclusiva de tais terioridade, embora cada uma delas revista-se de caracteres
próprios, são "limites objetivos" ao poder de tributar e seu
normas é inserir na ordem jurídica posta outras normas. Des-
sentido experimenta inevitável acomodação ao que se entende
se modo, ao ingressarem no sistema, recebem a predicação de
por vigência. O art. 150, III, da CR/88 estabelece expressamen-
normas vigentes. Outro tanto, porém, não ocorre com as regras
te as três exigências temporais a que se submete a lei tributá-
introduzidas. A vigência dessas últimas é fixada pela norma ria: (i) na alínea a, a irretroatividade da lei tributária; (ii) na
introdutora e muitas vezes não coincide com a entrada em alínea b, a anterioridade da lei que institui ou majora tributo;
vigor do instrumento que as introduziu. Em outras palavras, e (iii) na alínea c, a anterioridade nonagesimal, sistemática
as regras introduzidas ficam na dependência do que for esti- presente em determinados tributos 169 . Vale destacar:
pulado nos veículos introdutores, segundo o conteúdo volitivo
que neles se expressa. Art. 150. CR/88: "Sem prejuízo de outras garantias asse-
guradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados,
O vigor das leis, no tempo, está sob a diretriz genérica
ao Distrito Federal e aos Municípios:
fixada pelo art. 1 2 da Lei de Introdução ao Código Civil (De-
creto-lei n. 4.657/42). E é precisamente esse o conteúdo do art. (..•)
101 do Código Tributário Nacional, ao firmar que a vigência III - Cobrar tributos:
da legislação tributária rege-se pelas disposições legais apli-
a) em relação a fatos geradores ocorridos antes do início da
cáveis às normas jurídicas em geral, ressalvado o previsto vigência da lei que os houver instituído ou aumentado;
neste Capítulo.
b) no mesmo exercício financeiro em que haja sido publi-
Sendo assim, as normas tributárias entram em vigor, cada a lei que os instituiu ou aumentou;
salvo disposição em contrário, quarenta e cinco dias após ha-
c) antes de decorridos noventa dias da data em que haja
verem sido publicadas. O lapso que se interpõe entre a publi-
sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou, ob-
cação e o termo inicial de vigência é a conhecida vacatio legis,
servado o disposto na alínea b."
tempo em que a regra é válida como entidade jurídica do sis-
tema, mas não adquiriu a força que lhe é própria para alterar, A irretroatividade das leis tributárias busca proteger o
diretamente, a conduta dos seres humanos, no contexto social. direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada,
Nada impede ao legislador tributário que faça coincidir a vi-
gência da norma com a data da publicação do texto, aprovei-
tando-se da cláusula excepcionadora - salvo disposição em 169. Cumpre ressaltar os tributos que não estão sujeitos à anterioridade
contrário - do referido art. 1 2 da Lei de Introdução ao Código nonagesimal, dentre os federais: (i) imposto de importação, (ii) imposto de
Civil, entretanto, algum tempo de vacatio parece recomendável, exportação, (iii) imposto de renda, (iv) imposto sobre operações financeiras,
(v) imposto extraordinário de guerra e (vi) os empréstimos compulsórios para
dada a especificidade da matéria tributária e o plexo de valores calamidade pública ou para guerra externa. E para os tributos municipais,
jurídicos que o impacto tributário acaba determinando. as hipóteses de alteração na base de cálculo do IPTU ou do IPVA.

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reiterando, portanto, os termos do art. XXXVI, do Diploma São reflexões dessa natureza que nos permitem entender
Magno. Nestes termos, não poderá a lei tributária nova retro- o conteúdo do art. 104 do Código Tributário Nacional, exarado
agir, incidindo em eventos ocorridos antes de sua vigência. Por em consonância com o art. 150, III, b e c, da Constituição da
outro lado, a anterioridade da lei tributária da mesma forma República.
beira este dogma do sistema brasileiro impedindo que leis sobre Recolhido o fato de ser o Brasil, juridicamente, uma Fe-
tributos tomem o contribuinte de surpresa, fazendo incidir di- deração, e o de haver Municípios dotados de autonomia, a
ploma legislativo criador ou majorador publicado no mesmo vigência das normas tributárias ganha especial e relevante
exercício financeiro em que se pretenda efetuar a cobrança da importância. Vê-se, na disciplina do Texto Constitucional, a
exação criada ou aumentada. Por último, fruto de inovação preocupação sempre presente de evitar que a atividade legis-
originária da Emenda Constitucional n. 42/2003, criou-se a lativa de cada uma das pessoas políticas interfira nas demais,
anterioridade nonagesimal submetendo determinados tributos realizando a harmonia que o constituinte concebeu. É a razão
a um período mínimo de vacatio legis de 90 (noventa) dias, tais de ter-se firmado a diretriz segundo a qual a legislação produ-
como o IPI, a CIDE-combustível e o ICMS-combustível. zida pelo ente político vigora no seu território e, fora dele, tão-
somente nos estritos limites em que lhe reconheçam extrater-
Não advogamos a tese de que tais normas (as que criam ritorialidade os convênios de que participem. Nessa linha de
ou aumentam tributos) entrem, efetivamente, em vigor, nas raciocínio, as normas jurídicas editadas por um Estado são
datas que estipulem, permanecendo a eficácia jurídica dos vigentes para colher os fatos que aconteçam dentro de seus li-
fatos previstos em suas hipóteses protelada até o início do mites geográficos, o mesmo ocorrendo com os Municípios e com
próximo exercício financeiro. Não se trata de problema de a própria União. Todavia, desde que se celebrem convênios
eficácia, mas única e exclusivamente de vigência. Na hipótese, entre os Estados e entre os Municípios, alguns princípios de
o que ocorre é a convergência de dois fatores condicionantes, extraterritorialidade podem ser eleitos e, nessa estrita dimensão,
que interagem provocando o deslocamento do termo inicial da as normas de um serão vigentes no território do outro. Passa-se
vigência, de modo que a regra jurídica que entraria em vigor o mesmo com a União, quer na sua qualidade de pessoa política
de direito constitucional interno, quer como pessoa no direito
quarenta e cinco dias depois de publicada ou na data que es-
das gentes. Participando no concerto das nações, assina tratados
tabelecer continua sem força vinculante, até que advenha o
e convenções internacionais que têm o condão de imprimir vi-
primeiro dia do novo exercício financeiro. Isso nos autoriza a
gência às suas normas, mesmo em território estrangeiro.
falar numa vigência predicada pela norma e noutra imperio-
samente estabelecida pelo sistema. É o princípio da anteriori- A título exemplificativo, no bojo da tese que acabamos de
dade, que comporta apenas as exceções enunciadas no § 1 2 do veicular, importa examinar, agora, a sua consistência diante do
caso prático. Tomemos a discussão acerca da constitucionali-
mesmo preceptivo constitucional. Ora, se bem sopesarmos a
dade da prescrição do artigo 13, da Lei n. 9.998/2000, que de-
conjugação desses dois condicionantes — a anterioridade do
termina: "as contribuições ao FUST serão devidas trinta dias
art. 1 2 da LICC e a anterioridade anual tributária do art. 150,
após a regulamentação desta Lei". O Diploma foi publicado no
III, b, da CR/88 —, podemos inferir que as normas jurídicas que Diário Oficial de 18 de agosto de 2000 e o Decreto n. 3.624/2000,
decretam tributo novo, ou nova faixa de incidência para tribu- que o regulamenta, foi introduzido no ordenamento jurídico
to já existente, ou ainda que venham a aumentá-lo, como ex- mediante publicação no Diário Oficial de 9 de outubro de 2000,
pressão econômica, devem sujeitar-se à resultante da combi- estabelecendo que o gravame seria exigido a partir de 8 de
nação dos dois limites. novembro daquele mesmo ano.
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A "contribuição" ao FUST tornou-se "devida", portanto, desse mesmo ano, começou a ser exigido com relação a fatos
já em 2000, ou seja, no próprio ano em que foi instituída, ofen- ocorridos a partir de 8 de novembro de 2000. O termo inicial
dendo manifestamente o inteiro teor do artigo 150, inciso III, da incidência foi estipulado para o mesmo exercício financeiro
alínea b, da Constituição da República, que veda a exigência de sua criação, desrespeitando não somente o Texto Constitu-
de tributos no mesmo exercício financeiro em que houver sido cional, mas também todo o conteúdo axiológico objetivado por
publicada a lei que os tenha instituído ou aumentado. Trata-se aquela regra de direito, uma vez que não conferiu aos contri-
do princípio da anterioridade tributária, que não se confunde buintes qualquer margem de planejamento para que pudessem
com o princípio da anualidade, inexistente no atual ordena- eles organizar suas atividades econômicas e adequar seus cus-
mento jurídico brasileiro, ao menos no que se refere à antiga tos à nova realidade fiscal.
configuração de implacável diretiva a ser observada pelo legis- A instituição do encargo tributário de que falo, além de
lador infraconstitucional. Segundo ele, na Carta de 1946, era apresentar as diversas incompatibilidades com o Texto Maior,
i mprescindível para a cobrança do tributo o registro de prévia ofendeu o primado da anterioridade tributária, agora posto em
autorização orçamentária. Assim, apesar de disposto no artigo relevo. De qualquer ângulo que se procure ver, por qualquer
165, § 2 2 , da Constituição: lado que nos dispusermos a examinar, a transgressão a ordens
constitucionais ressalta ao paralelo mais simples, com o que
"A lei de diretrizes orçamentárias compreenderá as metas não se pode condescender, sob pena de praticar flagrante
e prioridades da administração pública federal, incluindo agressão a imperativos superiores que representam memorá-
as despesas de capital para o exercício financeiro subse- vel conquista de todas as nações civilizadas do nosso tempo.
quente; orientará a elaboração da lei orçamentária anual;
disporá sobre as alterações na legislação tributária e esta- Em resumo, gravemos a afirmativa peremptória segundo
belecerá a política de aplicação das agências financeiras a qual "vigência" é atributo de norma válida (norma jurídica),
oficiais de fomento." consistente na prontidão de produzir os efeitos para os quais
está preordenada, tão logo aconteçam os fatos nela descritos,
Ele não inibe a possibilidade da exigência do gravame, no podendo ser plena ou parcial (só para fatos passados ou só para
caso de não constar referência da lei no orçamento, se bem que fatos futuros, no caso de regra nova), presente na sistemática
se mantenha imperiosa a necessidade de publicação do esta- tributária mediante a regra geral do art. 1 0 da Lei de Introdução
tuto normativo em tempo anterior ao do ano em que se pre- ao Código Civil (Decreto-lei n. 4.657/42) e as três regras especí-
tenda cobrar a exação (princípio da anterioridade). ficas explicitadas nos princípios da irretroatividade e anteriori-
dade da lei tributária, com respaldo no art. 150, III, da CR/88.
Fique bem claro que o tributo cuja norma foi publicada
em determinado exercício somente poderá incidir sobre fatos
que vierem a ocorrer no ano seguinte, dando margem para que 2.4.3. Eficácia jurídica, técnica e social
os destinatários planejem suas atividades econômicas, já cien-
tes do custo representado pelo novo encargo. É limite objetivo Penso que a eficácia possa ser estudada sob três ângulos,
que opera, decisivamente, para a realização do sobreprincípio que denominamos eficácia jurídica, eficácia técnica e eficácia
da segurança jurídica. social.

O tributo destinado ao FUST, porém, conquanto instituído Tomamos por eficácia jurídica o próprio mecanismo lógi-
em 18 de agosto de 2000 e regulamentado em 9 de outubro co da incidência, o processo pelo qual, efetivando-se o fato

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previsto no antecedente, projetam-se os efeitos prescritos no de igual ou inferior hierarquia, ou, pelo contrário, na hipótese
consequente. É a chamada causalidade jurídica, ou seja, vín- de existir no ordenamento outra norma inibidora de sua inci-
culo de implicação mediante o qual, ocorrendo o fato jurídico dência, não possa juridicizar o fato, inibindo-se a propagação
(relato do evento no antecedente da norma), instala-se a relação de seus efeitos. Ou ainda, pensemos em normas que façam a
jurídica. Firmemos "causalidade jurídica" pela ligação do previsão de ocorrências factuais possíveis, mas, tendo em vis-
acontecimento factual com o vínculo aliorrelativo que se ins- ta dificuldades de ordem material, inexistam condições para
taura entre sujeitos de direito. É algo inexorável, na medida que se configure em linguagem a incidência jurídica. Em ambas
em que, revestido o evento com a linguagem competente, isto as hipóteses teremos norma válida dotada de vigência plena,
é, aquela que o direito estipula como necessária e suficiente,
porém impossibilitada de atuar. Chamemos a isso de "ineficá-
os efeitos não podem deixar de ocorrer, inaugurando-se "au-
cia técnica". Tércio Sampaio Ferraz Jr."' utiliza "ineficácia
tomática e infalivelmente", como anotara Alfredo Augusto Be-
sintática" no primeiro exemplo e "ineficácia semântica" no
ckerm (feita a correção para "fato" na acepção de enunciado
segundo. As normas jurídicas são vigentes, os eventos do mun-
linguístico). Sendo assim, dá-se o fenômeno sempre e quando
do social nelas descritos se realizam, contudo as regras não
os fatos jurídicos acontecem, traduzindo-se numa autêntica
podem juridicizá-los e os efeitos prescritos também não se ir-
i mpossibilidade lógico-semântica imaginar-se a realização do
fato jurídico, na conformidade de norma vigente, sem que se radiam. Falta a essas normas "eficácia técnica".
propaguem os efeitos correspectivos. Gravemos que a ineficácia técnica será de caráter semân-
Em outros termos, podemos dizer que a eficácia jurídica tico quando dificuldades de ordem material impeçam, iterati-
é a propriedade de que está investido o fato jurídico de provo- vamente, a configuração em linguagem competente tanto do
car a irradiação dos efeitos que lhe são próprios, ou seja, a evento previsto quanto dos efeitos para ela estipulados. Em
relação de causalidade jurídica, no estilo de Lourival Vilanova. ambos os casos, ineficácia técnico-sintática ou técnico-semân-
Não seria, portanto, atributo da norma, mas sim do fato nela tica, as normas jurídicas são vigentes, os sucessos do mundo
previsto. Entretanto, como a regra de direito é a causa media- social nelas descritos se realizam, porém inocorrerá o fenôme-
ta dessa capacidade de gerar resultados, temos de reconhecer- no da juridicização do acontecimento, bem como a propagação
lhe a "eficácia técnica", pois é em função de norma integrante dos efeitos que lhe são peculiares.
do sistema positivo que o fato por ela juridicizado produz suas
A eficácia social ou efetividade, por sua vez, diz respeito
decorrências peculiares.
aos padrões de acatamento com que a comunidade responde
Sob a rubrica de eficácia técnica vemos a condição que a aos mandamentos de uma ordem jurídica historicamente dada
regra de direito ostenta, no sentido de descrever acontecimen- ou, em outras palavras, diz com a produção das consequências
tos que, uma vez ocorridos no plano do real-social, tenham o desejadas pelo elaborador das normas, verificando-se toda vez
condão de irradiar efeitos jurídicos, já removidos os obstáculos que a conduta prefixada for cumprida pelo destinatário. Indi-
que impediam tal propagação. caremos, portanto, como eficaz aquela norma cuja disciplina
Pode acontecer que u'a norma válida assuma o inteiro teor foi concretamente seguida pelos destinatários, satisfazendo os
de sua vigência, mas por falta de outras regras regulamentadoras, anseios e as expectativas do legislador, da mesma forma que

170. Teoria geral do direito tributário, zla ed., São Paulo, Noeses, 2007, p. 328-9. 171. Introdução ao estudo do direito, 3a ed., São Paulo, Atlas, 2001, p. 196.

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inculcaremos de ineficaz aquel'outra cujos preceitos não foram sígnicos com as realidades materiais ou imateriais que eles
cumpridos pelos sujeitos envolvidos na situação tipificada. Toda pretendem significar, bem como os vínculos estabelecidos en-
vez que a conduta estipulada pela norma for reiteradamente tre os signos e seus usuários (pragmática).
descumprida, frustrar-se-ão as expectativas, inexistindo eficá-
Em outras palavras, e pondo entre parênteses as especu-
cia social.
lações lógico-sintáticas, sem as quais não se pode pensar em
Introduzidos esses esclarecimentos acerca da eficácia sentido semântico, o jurista aparece como o intérprete, por
jurídica, técnica e social das regras do direito, convém salientar excelência, dos textos prescritivos do direito posto, atravessan-
que os dois primeiros casos de eficácia expressam conceitos do, com sua análise construtiva, o sistema das normas positi-
jurídicos, que muito interessam à Dogmática, ao passo que o vadas, em que os comportamentos interpessoais se encontram
último pertence aos domínios das indagações sociológicas, mais modalizados em obrigatórios, proibidos e permitidos.
precisamente, da Sociologia Jurídica.
Há dois princípios que guiam a interpretação: (i) a inter-
textualidade ou dialogia; e, (ii) a inesgotabilidade. A intertex-
2.4.4. Interpretação da legislação tributária e seus princípios tualidade se dá com a junção do ato de fala a outros textos. É
regentes este contato de um com outro que propicia a troca de informa-
ções inerente à intertextualidade. A inesgotabilidade é a idéia
Retomemos a assertiva de que o ser humano vive em um
principiológica de que toda a interpretação é infinita, nunca
universo de signos, decodificando-os a cada instante para si-
circunscrita a determinado campo semântico. Um texto pode-
tuar-se no mundo da sua existência. A multiplicidade de siste-
rá ser sempre reinterpretado. Eis as duas regras que governam
mas sígnicos faz com que sua trajetória de vida seja uma ativi-
o ato de interpretação do sujeito cognoscente, numa análise
dade contínua de interpretação, lidando com códigos das mais
preliminar.
variadas espécies. Assim ocorre com o direito, que se oferece
ao nosso conhecimento como estrato de linguagem prescritiva Segundo os padrões da moderna Ciência da Interpretação,
de condutas intersubjetivas, as quais o legislador regula pro- o sujeito do conhecimento não "extrai" ou "descobre" o senti-
curando canalizá-las em direção aos valores que a sociedade do que se achava oculto no texto. Ele o "constrói" em função
quer ver implantados. de sua ideologia e, principalmente, dentro dos limites de seu
"mundo", vale dizer, do seu universo de linguagem. Exsurge,
A interpretação do direito, em tempos atuais, com os re-
com muita força, o axioma da inesgotabilidade do sentido, ao
cursos da Semiótica e das teorias analíticas do discurso, pres-
lado da intertextualidade, que opera não só no território do
supõe o contato primeiro e necessário com o plano da expres-
sistema do direito posto, mas o transcende, na direção de outros
são ou da literalidade textual. A partir de então tem início o
segmentos do saber.
muitas vezes penoso processo de geração de sentido, já que as
significações situam-se na instância do conteúdo do texto, Os predicados da inesgotabilidade e da intertextualidade
devendo ser construídas pelo sujeito do conhecimento. É nes- não significam ausência de limites para a tarefa interpretativa.
se caminho gerativo, superados os obstáculos de natureza A interpretação toma por base o texto: nele tem início, por ele
sintática, que o agente ingressa nos domínios da semântica e se conduz e, até o intercâmbio com outros discursos se instau-
da pragmática, como intervalos semióticos imprescindíveis ao ra a partir dele. Ora, o texto de que falamos é o jurídico-posi-
trabalho de elaboração, pesquisando as relações dos veículos tivo e o ingresso no plano de seu conteúdo tem de levar em
454 455
PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

conta as diretrizes do sistema. Em princípio, como bem salien- segundo a qual u'a norma só tem sua validade retirada por
tou Kelsen, teríamos molduras dentro das quais múltiplas meio de outra norma que o determine. Confirmação eloquen-
significações podem ser inseridas. Mas esse é apenas um pon- te desse asserto está na disposição do art. 52, X, do Texto
to de vista sobre a linguagem das normas, mais precisamente Constitucional vigente.
aquele que privilegia o ângulo sintático ou lógico. Claro está No caso de declaração de inconstitucionalidade de norma
que no processo de produção normativa os aplicadores estarão pelo Supremo Tribunal Federal, pelo controle difuso, suspen-
lidando com os materiais semânticos ocorrentes na cadeia de de-se sua eficácia mediante resolução do Senado, até que seja
positivação, pois não teria cabimento prescindir dos conteúdos ela revogada pelo órgão competente. Em outras palavras, sig-
concretos. nificará: certa norma vigente na ordem jurídica nacional teve
sua inconstitucionalidade declarada pelo Supremo, que comu-
2.4.5. Noções conclusivas nica sua decisão ao Senado da República. Este, pela figura
legislativa da resolução, manda suspender a eficácia técnica
Firmemos estes conceitos: "validade" é relação de perti- daquela regra, que permanece vigente sem poder atuar, con-
nencialidade de uma norma "N" com o sistema jurídico "S". tinuando também válida, até que o órgão que a promulgou
"Vigência" é atributo de norma válida (norma jurídica), con- venha a expulsá-la do sistema. O expediente da resolução do
sistente na prontidão de produzir os efeitos para os quais está Senado traz um obstáculo de ordem sintática que caracteriza
preordenada, tão logo aconteçam os fatos nela descritos, po- ineficácia técnica. Não é a ausência de normas reguladoras que
dendo ser plena ou parcial (só para fatos passados ou só para impede a atuação concreta da regra. Trata-se agora da presen-
fatos futuros, no caso de regra nova). "Eficácia técnica" é a ça de outra norma inibidora de sua incidência.
qualidade que a norma ostenta, no sentido de descrever fatos
que, uma vez ocorridos, tenham aptidão de irradiar efeitos 2.5. CONCEITOS GERAIS DO ANTECEDENTE DA REGRA-
jurídicos, já removidos os obstáculos materiais ou as impossi- MATRIZ DE INCIDÊNCIA TRIBUTÁRIA
bilidades sintáticas (na terminologia de Tércio). "Eficácia ju-
rídica" é o predicado dos fatos jurídicos de desencadearem as 2.5.1. Os critérios da "hipótese tributária"
consequências que o ordenamento prevê. E, por fim, a "eficácia
Em súmula estreita, vale acentuar que quando menciono
social", como a produção concreta de resultados na ordem dos
o direito posto, na condição de sistema, é para encará-lo não
fatos sociais. Os quatro primeiros são conceitos jurídicos que
como sistema lógico, dotado de consistência, isento de contra-
muito interessam à Dogmática, ao passo que o último é do cam- dições, tal qual o modelo do sistema das Ciências, mas como
po da Sociologia, mais precisamente, da Sociologia Jurídica.
conjunto de proposições linguísticas que se dirigem a certa e
As normas válidas podem ser vigentes (plena ou parcial- determinada região material — a região material das condutas
mente) ou não vigentes. Podem também apresentar ou não inter-pessoais. O discurso de que falo, conquanto abrigue pro-
eficácia técnica e, igualmente, ostentar ou não eficácia social. posições contraditórias e lacunas, mesmo assim vem carrega-
Todavia, fundado nessas premissas não cabe falar-se de norma do de uma porção de racionalidade que julgo suficiente para
válida'como dotada, ou não, de eficácia jurídica, visto que esta outorgar-lhe foros de sistema, não lógico, mas empírico, preci-
eficácia é qualidade de fatos jurídicos, não de normas. A des- samente pelo comprometimento que mantém com o tecido
peito de tais esclarecimentos, continua pertinente a afirmação social, por ele ordenado de maneira prescritiva.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

Ora, guardando a forma de sistema, as unidades que com- individuais e concretas. É aqui que se encontra a grande di-
põem o direito positivo são as normas jurídicas, juízos hipotéti- vergência interpretativa atual.
co-condicionais, em que se enlaça ao antecedente, ou descritor, Parto da premissa de que o status dos fatos é diferente do
um consequente, ou prescritor, tudo por intermédio da cópula status dos objetos a que se referem. O evento, na visão ontoló-
deôntica - o "dever-ser", na sua configuração neutra, isto é, sem gica, no sentido de realidade social concreta, para vestir o ca-
modalização. Essas entidades lógicas (os juízos hipotéticos) ga- ráter jurídico precisa ser transcrito em linguagem competente,
nham expressão verbal no jeito de proposições - proposição hi- ou seja, aquela linguagem juridicamente admitida como capaz
pótese e proposição tese - entreligadas pelo conectivo peculiar para constituir o antecedente normativo e estabelecer o vín-
ao domínio do normativo-social, a que já me referi. culo relacional entre agentes do direito no plano concreto e
É bom lembrar que, nos fenômenos de incidência norma- individual. Outrossim, não é qualquer função pragmática da
tiva, componentes de uma nova realidade jurídica, há duas linguagem que propicia a composição de um enunciado factu-
normas que devem ajustar-se, respectivamente, a norma geral al. Além da linguagem descritiva, indicativa ou declarativa,
muito usada na comunicação diária e no discurso científico,
e abstrata e a norma individual e concreta. Cada enunciado
torna-se possível emitir enunciados fácticos também em lin-
que venha a ser formado, contendo os caracteres selecionados
guagem prescritiva e em linguagem operativa ou performativa.
na composição típica da hipótese, subsumir- se-á naquele con-
Obviamente que os valores lógicos de tais enunciados serão os
junto que, dessa maneira, poderá receber número infinito de
inerentes ao uso empregado: verdadeiro e falso, para o descri-
ocorrências fácticas. É bom ter presente que a formação desses
tivo; válido e não-válido para o prescritivo; e eficaz e ineficaz
segmentos linguísticos com sentido completo pressupõe um
para o performativo. A despeito da função, contudo, em todos
processo seletivo, com a eleição dos traços julgados mais rele-
eles haverá, necessariamente, um quantum de referencialidade,
vantes para a identificação do objeto da experiência, refletindo, uma vez que são formações linguísticas vertidas para o mundo
não o real, mas um ponto de vista sobre o real, como salienta fenomênico das coisas, projetando-se no domínio dos objetos
Samira Chalhubm -A. Afinal de contas, um conceito demarcado da experiência. Na composição de tais enunciados sobre as
é sempre seletor de propriedades, já que os infinitos aspectos regras que orientam a boa formação sintática, hão de observar-
do real passam pelo juízo de valor expedido pelo autor do ato se os usos do idioma, sem o que o sentido daquelas estruturas
de fala, no caso, o legislador. não será apto para fins denotativos. E esses fins reclamam a
A esta altura, já podemos dizer que o enunciado factual é identificação da ocorrência num intervalo de tempo e num
protocolar, surpreendendo uma alteração devidamente indivi- ponto do espaço, dentro da conotatividade de uma hipótese
dualizada do mundo fenomênico, com a clara determinação autorizadora da construção do fato jurídico. Serão, portanto,
das condições de espaço e de tempo em que se deu a ocorrên- necessariamente, determinativos. Por isso, o verbo há de estar
cia. Articulação de linguagem organizada assim, com esse teor no presente ou no passado, excluindo-se o futuro.
de denotatividade, chamaremos de fato, fato político, econô- O momento da análise se propõe a estudar a hipótese e
mico, contábil, biológico, psicológico, histórico, jurídico etc. No seus elementos constitutivos. Sabe-se bem que todos os crité-
direito positivo, correspondem ao antecedente das normas rios deste enunciado protocolar são imprescindíveis para
identificar o fato jurídico, este conjunto de elementos que nos
dará a conhecer a circunstância limitadora da ação no tempo
171-A. Função da linguagem. 5a ed.: São Paulo, Ática, 1991, p. 14. e no espaço que antecede a consequência da norma tributária.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

No entanto, sendo a regra-matriz o mínimo de sentido deônti- rendas", "prestar serviços", "construir estradas", "pavimentar
co completo é preciso ponderar um a um os critérios compo- ruas" etc.
sitivos da hipótese e destacar tudo aquilo que dele não faz Esse núcleo, ao qual nos referimos, será formado, inva-
parte. Eis o nosso próximo empreendimento. riavelmente, por um verbo, seguido de seu complemento. Daí
porque aludirmos a comportamento humano, tomada a expres-
2.5.1.1. Critério material são na plenitude de sua força significativa, equivale a dizer,
abrangendo não só as atividades refletidas (verbos que expri-
O critério material da hipótese tributária pode bem ser mem ação), como aquelas espontâneas (verbos de estado: ser,
chamado de núcleo, pois é o dado central que o legislador pas- estar, permanecer etc.). Esse sentido lato que se atribui à pa-
sa a condicionar, quando faz menção aos demais critérios. lavra "comportamento". está autorizado pela lição segura de
Eduardo Carlos Pereira. Ouçamo-lo:
Parece-nos incorreta a tentativa de designá-lo como a descrição
objetiva do fato, posto que tal descrição pressupõe as circuns- "Segundo Ayer e outros distintos gramáticos, exprimir ação
tâncias de espaço e de tempo que o condicionam. Estar-se-ia é caráter fundamental do verbo. Outros, porém, acham que
conceituando a própria hipótese tributária. Essa é uma entre este caráter pertence a certos verbos chamados por isso
as muitas dificuldades que se nos antolham quando pretende- ativos, como andar, amar, etc., ao passo que os outros verbos
mos cindir, mesmo que em termos lógicos, entidade una e in- exprimem estados, como estar, ficar, ser, viver. Daí definem
o verbo como a palavra que exprime a ação ou o estado, ou,
decomponível. E nesse engano incidem quase todos os autores
ainda, a qualidade, atribuída ao respectivo sujeito. Porém nos
que versam a matéria. Tem-se esse critério, como envolvente
próprios verbos de estado concebe-se algum grau de atividade
dos outros dois, isto é, daqueles que expressam as condicio- do sujeito. A diferença entre as duas atividades está em ser
nantes de espaço e de tempo. esta espontânea do sujeito, e aquela refletida". (grifo nosso)."
1-B

Ao individualizar o critério material não se pode abarcar


Assim não fora e as obrigações de "não fazer" deixariam
elementos estranhos que teriam o condão de emprestar-lhe
de ter como objeto da prestação um comportamento humano,
feição definitiva, como previsão de um evento. E é tarefa su-
uma vez que sua satisfação envolve justamente a inatividade
mamente difícil a ele referir sem tocarmos, mesmo que leve- do sujeito passivo. E acolhida esta tese ter-se-ia ensejado ex-
mente, nas circunstâncias de tempo e lugar que lhe sejam ceção discutível e perigosa ao princípio de que as relações ju-
atinentes. rídicas têm sempre por objeto o comportamento humano, seja
Para obviarmos tal empecilho é preciso fazer abstração um "dar", um "fazer" ou mesmo um "não fazer" (permanecer
absoluta dos demais critérios (o que só é possível no plano ló- verbo de estado).
gico-abstrato) e procurar extrair não o próprio fato, mas um Como corolário de tais observações, que mantiveram
outro evento que, uma vez condicionado no tempo e no espaço, frequência absoluta, entendemos o critério material ou objetivo
venha a transformar-se no fato hipoteticamente descrito. Des- da hipótese tributária como o comportamento de uma pessoa
sa abstração emerge sempre o encontro de expressões genéri- (de dar, fazer ou ser), que deflui de um processo de abstração
cas designativas de comportamentos de pessoas, sejam aqueles
que encerrem um fazer, um dar ou, simplesmente, um ser (es-
tado). Teremos, por exemplo, "vender mercadorias", "indus- 171-B. PEREIRA. Eduardo Carlos. Gramática Expositiva. Curso Superior:
trializar produtos", "ser proprietário de bem imóvel", "auferir Companhia Editorial Nacional, 1958, p. 117.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

da própria fórmula hipotética. Não é, como muitos pretendem, fase que caracteriza a exclusividade do jurista, não havendo
a descrição objetiva do fato ou do acontecimento que dará tolerar-se cogitações de outra índole. Por mais primorosas que
ensejo ao nascimento de obrigações tributárias, pois tal é o sejam as construções políticas, econômicas, financeiras ou
arcabouço de própria hipótese. sociológicas, haverão de ser admitidas tão-só na fase de elabo-
ração legislativa, como subsídios informadores que nortearão
Autores há que procuram estudar, no exame desse crité- o espírito do legislador, no sentido de produzir um instrumen-
rio, um modo para diferençar hipóteses. Partem da premissa to adequado para a disciplina de determinada relação social.
de que, algumas vezes, a previsão diz respeito a um só fato,
enquanto em outras há um conjunto de eventos. Aos primeiros, No caso vertente, tão-só se pode cogitar de um complexo
designam de simples, em contraposição aos últimos, que seriam de fatos, à medida que não foram colhidos pelo legislador, pois
complexos. a partir desse momento integram uma unidade lógica, redu-
zem-se novamente a um só evento, o fato jurígeno.
Nesse sentido, o magistério de Perez de Ayala:
A este respeito, vale a pena discorrer de forma sucinta
"Es importante setialar aqui que el elemento objetivo del sobre a classificação dos "fatos geradores" em simples e com-
hecho imponible puede estar integrado legalmente con un plexos. Em meu Curso de Direito Tributáriom - D, ao enunciar
solo hecho o con varios hechos reunidos. En el primer caso, sobre a aplicação das normas tributárias, analisei de forma
se dice que el hecho imponible és simple. En el segundo
171-C
pormenorizada a questão, concluindo não haver o menor fun-
caso, que és complejo". damento jurídico para tal distinção, tendo em vista que os
`fatos geradores' são todos simples ou todos complexos. Senão
Cremos que além de o exame do critério material não vejamos, o "fato gerador" do IPI é considerado como fato sim-
comportar análise desse teor, pois não enfoca o fato na sua ples, por isso que se consubstancia na simples saída de produ-
integridade, antes busca, em processo de abstração, outro fato to industrializado, do estabelecimento industrial ou que lhe
despido dos condicionantes espaciais e temporais, a ilação não seja equiparado (tomemos esta entre outras hipóteses). Por
corresponde a raciocínio inteiramente jurídico. outro lado, o "fato gerador" do imposto de renda seria da na-
tureza dos complexos porque dependeria de vários fatores, que
Com efeito, na sua intimidade sociológica, ou econômica,
se entreligam, no sentido de determinar o resultado, que é a
talvez nos seja possível extremar dois fatos que foram conju-
renda tributável. Na verdade, a incidência tributária atinge
gados para fins de perfazer uma unidade jurídico-normativa.
somente o resultado, seja o fato representado pela saída do
É bem possível que a Economia, a Sociologia ou a Ciência das
produto industrializado de certo estabelecimento, ou o saldo
Finanças possam analisar eventos colhidos pelo legislador, sem
final que determina renda líquida tributável, no caso do im-
observar a feição unitária que esse conjunto adquiriu ao
posto de renda, pois se não for possível concebermos renda
ingressar no universo jurídico. Todavia, se tal procedimento é
líquida tributável independentemente das receitas e despesas
cabível no plano pré-jurídico, não o será, certamente, a partir
relativas a determinado exercício, igualmente inviável será
do momento em que nasce o Direito, por virtude do ingresso
aceitarmos um produto industrializado independentemente
da norma no todo sistemático. Esse é o termo inicial de uma
do processo de industrialização.

171-C. AYALA, José Luis Perez de. Derecho Tributario. Editorial de Derecho
Financeiro: Madrid, 1968, p. 151. 171-D. Curso de Direito Tributário. 21a Ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 91-93.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

Em suma, o que interessa para a lei tributária é deter- suficientes para identificarmos a circunstância de lugar que
minado resultado sobre o qual incidirá o preceito, desenca- condiciona o acontecimento do fato jurídico.
deando efeitos jurídicos. Óbvio será que, na condição de Visto como foi, há dois condicionantes daquele compor-
resultado, estará sempre a depender dos elementos que o tamento que se obtém mercê de um processo de abstração.
determinaram. Pois bem, o critério espacial encerra os elementos que nos
Realmente, pode haver o concurso de um milhão de fatos permitirão reconhecer a circunstância de lugar que limita, no
para que surja determinado efeito. Entretanto, a lei prevê ape- espaço, a ocorrência daquele evento.
nas o resultado, como se fora a expressão de um simples acon- Importa lembrar, ainda aqui, que não devemos referir-nos
tecimento. No plano pré-jurídico, têm importância os fatos que ao critério espacial como a própria condição ou a própria cir-
engendraram resultado a que a lei dá relevância. Para o Direi- cunstância de lugar, pois nos encontramos naquele plano lógi-
to, apenas a consequência de todos aqueles fatos é que será co das descrições hipotéticas que, em última análise, corres-
cogitada, e, ainda assim, na exata medida em que puder sub- pondem a meros conjuntos de critérios. Desse modo, um dos
sumir-se nalguma hipótese normativa. três conjuntos que formam o conteúdo da hipótese é, justamen-
De outra parte, convém dizer que o critério material não te, aquele que nos instrumentaliza para identificar um dado
é, na conformidade do que muitos pensam, o mais importan- da realidade tangível que exerce a função limitadora de con-
te da hipótese tributária, já porque não se pode escalonar dicionar um sucesso também reconhecido por meio de indica-
níveis de relevância onde todos os critérios são imprescindí- ções abstratas (critério material).
veis, já porque nele costumam inserir a chamada "base de Há quem lhe atribua apenas a qualidade de delinear os
cálculo" ou "base imponível" que, quando existe, deve ser lindes dentro dos quais se faz cogente a norma jurídica. Seria,
estudada na consequência da regra-matriz de incidência tri- por assim dizer, o âmbito territorial de aplicação das leis.
butária, mais precisamente, ao analisar-se o conteúdo do
Esta visão, sobremodo simplista, parece reduzir injusta-
dever jurídico a ser cumprido pelo sujeito passivo e exigido
mente a dimensão desse critério, tornando-o singelo indicador,
pelo sujeito ativo.
quase sempre implícito, do campo de validade da proposição
O critério material ou objetivo da hipótese tributária re- jurídico-normativa, o que implica indisfarçável empobrecimen-
sume-se, como dissemos, no comportamento de alguém (pessoa to daquela realidade.
física ou jurídica), consistente num ser, num dar ou num fazer
Temos por verdadeiro, não obstante, que outros esclare-
e obtido mediante processo de abstração da hipótese tributária,
cimentos poderão advir de exame acurado do critério espacial,
vale dizer, sem considerarmos os condicionantes de tempo e
não havendo de cingir-se tão-somente a explicitar o perfil da
de lugar (critérios temporal e espacial). Isto, porém, já é o su-
aplicabilidade territorial da norma jurídica.
ficiente para classificarmos os tributos, consoante veremos em
capítulo ulterior. Se nos detivermos na investigação desse critério, desde logo
haveremos de notar que pequena mutação que se proceda em
seus elementos pode determinar sensível modificação, não só da
2.5.1.2. Critério espacial hipótese, como também da consequência que lhe é imputada.
Releva o estudo do critério espacial das hipóteses tribu- Exemplos há que poderão roborar o que se afirma. Tome-
tárias porque nele se precisam os elementos necessários e mos regra-matriz de incidência tributária que estipule dever

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

de pagar imposto sobre produtos industrializados, a ser cum- lhe reconheçam extraterritorialidade os convênios de que
prido por pessoas jurídicas titulares de estabelecimentos in- participem. Somente nessa excepcional dimensão as normas
dustriais ou que lhe sejam equiparados. Tratando-se de gra- de um serão vigentes no território do outro. Tal entendimen-
vame da competência da União, por imperativo constitucional, to também foi por mim esposado em meu Curso de Direito
o âmbito de aplicação territorial dessa regra-matriz de incidên- Tributário. 1" -E
cia é aquele estabelecido pelas fronteiras geográficas do país.
Dentro desses quadrantes, em qualquer lugar que aconteça o Modelo desse tipo de elemento mais específico, dentro do
fato hipoteticamente descrito, estará satisfeito o requisito geral âmbito espacial da territorialidade daquela Administração
da territorialidade. Mas, se o fato suceder nos limites da "zona Pública, seria aquele, lembrado por Geraldo Ataliba,m -F segun-
franca de Manaus", não desencadeará os mesmos efeitos jurí- do o qual a norma condiciona efeitos tributários à qualificação
dicos de semelhante evento, porém ocorrido no Município de jurídica do estabelecimento de uma sociedade, "verbi gratia",
São Paulo. Este último determinará o surgimento de relação filial, sucursal, depósito, matriz, agência, etc.
jurídica, mediante a qual a Fazenda Federal poderá exigir de Consoante se vê, o critério espacial das hipóteses tributá-
pessoa a ele ligada o pagamento de certa soma em dinheiro, rias é fértil repositório de dados importantes, estando, pois,
consoante a combinação de dada alíquota com a base de cál- por merecer exame mais aprofundado de parte dos estudiosos.
culo adequada. Enquanto isso, semelhante fato acontecido na No Direito brasileiro, a despeito da acentuada rigidez do sis-
"zona franca de Manaus" realiza o pressuposto da "isenção", tema constitucional tributário, e muito embora haja o legislador
não havendo para a Fazenda Federal o direito de exigir o pa- constituinte tratado nimiamente desse assunto, não deixando
gamento de imposto. qualquer prurido de manifestação criativa a cargo do legislador
Permaneceu inalterável o âmbito de validade territorial ordinário, que já recebe um sistema devidamente plasmado,
da regra-matriz de incidência, todavia, péla mudança do lugar mesmo assim, podem ocorrer conflitos de competência entre
de ocorrência do fato descrito, notamos substancial transfor- as três pessoas políticas de Direito Constitucional e a experi-
mação da consequência normativa. Quer isso significar que o ência tem demonstrado que a origem de boa parte desses
critério espacial das normas jurídicas de um modo geral e, conflitos está na circunstância de existirem critérios espaciais
particularmente, das regras-matrizes de incidência tributária, pouco elaborados, pobres em especificações, carentes de me-
pode conter outros elementos mais específicos que venham em lhores esclarecimentos.
complemento daquele dado genérico, no sentido de possibilitar Por outro lado, é força convir que o aludido critério pode
o reconhecimento do condicionante temporal do comporta- representar matéria-prima inestimável para o trabalho legis-
mento abstraído da hipótese. Pondere-se, outrossim, que esta lativo de disciplina do relacionamento inter-regional, eliminan-
especificidade pode dar-se tanto de forma restritiva do âmbito do, na medida do possível, aquele desnível econômico que
espacial da legislação produzida pelo ente político em face da invariavelmente existe em países de grande extensão territorial
sua territorialidade; quanto de modo extensivo, e, nesta me- como o nosso. Em suma, o manejo adequado dos elementos
dida, em caráter extraterritorial, quando for objeto de acordos que compõem esse critério é modo de alcançar-se aquela
e consecutivas estipulações por meio de convênios. A vigência
das normas tributárias no espaço tem como diretriz geral,
portanio, a condição de vigorara regra-matriz produzida pela 171-E. Curso de Direito Tributário. 21a Ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 88-89.
entidade tributante, em geral, no domínio espacial do seu 171-E ATALIBA, Geraldo. Hipótese de Incidência Tributária. Revista dos
território e, fora dele, tão-somente nos estritos limites em que Tribunais, 1973, p. 110.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

unidade político-econômica a que alude o ministro Aliomar análise científica que só o jurista pode promover. Em algumas
Baleeiro, no seu sempre clássico "Limitações Constitucionais oportunidades, todavia, a fórmula legislativa, aponta com cla-
171-G
ao Poder de Tributar". reza a condição temporal, obviando a tarefa interpretativa e
impedindo que prosperem entendimentos errôneos a respeito
do momento em que se reputa consumado o fato hipotetica-
2.5.1.3. Critério temporal
mente descrito.
Não seria ocioso repetir que o critério material da "hipó- Entretanto, por não constar da expressão verbal da hi-
tese tributária" pretende representar um fato de natureza di- pótese, não está o intérprete autorizado a concluir pela ine-
versa daquele que constitui a representação da própria hipó- xistência de condicionamento temporal, o que implicaria o
tese, desenvolto que está, por processo de abstração lógica, dos absurdo de conceber fato que se não realize no tempo, apenas
condicionamentos de tempo e de lugar. no espaço. Havemos de ter a consciência plena de que não
Mesmo que em apertada síntese, é imperioso estabelecer- cabe verdadeiramente ao legislador entregar proposições
se distinção, lamentavelmente descurada pela doutrina, para jurídicas, normativas ou não, dentro de esquemas lógicos que
que se possa vislumbrar sentido no exame esmiuçado do an- abreviem o trabalho do jurista, tomando-o despiciendo. Labor
tecedente tributário. dessa ordem traria subjacente a necessidade de ser empre-
Tendo presente esta premissa, havemos de conceituar o endido por próprios cientistas do Direito, quando sabemos
critério temporal das hipóteses tributárias como aquele con- todos que as leis são feitas por quem reúna instrumental po-
junto de elementos que nos permite identificar a condição que lítico e não jurídico. Ora, sendo assim, compete exclusivamen-
atua sobre determinado fato (também representado abstrata- te ao jurista receber o trabalho legislativo, no estado de cla-
mente - critério material), limitando-o no tempo. reza e de compostura jurídica em que se encontre, para
quadrá-lo nas categorias adequadas, emprestando-lhe a sig-
Afastada a medida da relevância, posto que todos os critérios
nificação que o todo sistemático impuser. Essa é, primordial-
são imprescindíveis para identificar o fato jurídico, este conjun-
mente, a função do cientista do Direito. De evidência que não
to de elementos que nos dará a conhecer a circunstância limita-
será obra prescritiva, pois essa é qualidade do Direito Positi-
dora temporal apresenta interessante matéria para a especulação
vo e não da matéria que o descreve. Dessas considerações é
científica. Basta dizer que define o momento em que nasce
que deflui a necessidade de esquemas lógicos, seguros e pre-
aquele vínculo jurídico disciplinador de comportamentos hu-
cisos, que permitam acolher os dizeres, muitas vezes desco-
manos. Seu exato conhecimento importa determinar, com pre-
nexos, contidos na fórmula legislativa e submetê-los a uma
cisão, em que átimo surge o direito subjetivo público de o Esta-
série de testes que terão o condão de demonstrar sua compa-
do exigir de alguém prestações pecuniárias, por força do acon-
tibilidade ou não com o sistema jurídico global, agrupando-os,
tecimento de um fato lícito, que não um concerto de vontades.
em seguida, para que assumam a feição de um ente dotado
Não há de esquecer-se que, por via de regra, o legislador de expressividade jurídica.
deixa implícita a indicação desse critério, abrindo ensanchas à
Por tudo isso, não repugna encontrar disposição norma-
tiva em que se não faça menção expressa ao critério temporal.
171 G. BALEEIRO, Aliomar. Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar.
-
Não está o legislador obrigado a fazê-lo e, de qualquer modo,
Forense: Rio de Janeiro, 1960, p. 203. terá o jurista os instrumentos para trazê-lo a lume.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

2.5.2. Classificação dos fatos jurídicos na conformidade do globalmente considerados. Exemplo: o fato gerador renda (isto
critério temporal da hipótese tributária é, o fluxo de riqueza que vem ter às mãos do seu destinatário
e que importa num aumento do seu patrimônio, durante um
O critério temporal das hipóteses tributárias tem enseja- período de tempo determinado), em relação ao imposto de
do classificação sobremodo simpática à doutrina dominante, renda (sistema de arrecadação mediante lançamento)".
segundo a qual as diversas espécies de tributos poderiam cor-
responder a apenas dois tipos de "fatos geradores": instantâ- A distinção, consoante advertência do mesmo autor, não
neos e complexivos. apresentaria valor meramente acadêmico, mas se destinaria a
solucionar problemas práticos ou concretos de alta relevância
Amílcar de Araújo Falcão,m -H abordoando-se nas lições jurídica.
de A. D. Giannini, Vanoni e Wilhelm Merk, adota com entusias-
E foi o suficiente para que nossos mais qualificados tribu-
mo a divisão bipartida, com fulcro na consideração do condi-
cionante de tempo dos "fatos geradores". taristas abrigassem em seus estudos uma classificação carente
de densidade jurídica, muito embora possa justificar-se em
Com a clareza de seu estilo e o brilho do seu talento, de- análise econômica do fenômeno impositivo.
monstra o sentido prático da aludida ordenação, carregando
ênfase no pressuposto de que nenhum "fato gerador" haveria Sobre o assunto, cuidamos de deduzir os pontos funda-
de subtrair-se de tais categorias que, portanto, seriam hábeis mentais que justificavam nossa radical discordância no item
Crítica à classificação dos fatos geradores em função do momen-
para determinar o desenvolvimento especializado dos respec-
to de sua ocorrência de meu Curso.' 71- J É infundada a referida
tivos efeitos jurídicos.
classificação, precisamente porque ignora dado fundamental,
Instantâneos seriam os "fatos geradores" que "ocorrem qual seja, o da incidência automática da lei tributária. Para que
num momento dado de tempo e que, cada vez que surgem, dão fosse possível, mister seria que pudéssemos conceber fato que
lugar a uma relação obrigacional tributária autônoma. Exem- vai acontecendo aos poucos, sendo que a ordem jurídica, con-
plo: fato gerador venda, em relação ao imposto de vendas e comitantemente, vai reconhecendo, de modo parcial, os even-
consignações; o fato gerador importação (isto é, transposição tos que forem ocorrendo, o que, evidentemente, seria um
de lindes, limites ou barreiras aduaneiras), em relação ao im- grande absurdo. Por mais complexo que seja o fato objeto de
171-I
posto de importação, etc". consideração pela lei tributária, só se poderá falar em "fato
Já complexivos, completivos, continuativos, periódicos ou gerador" no momento exato em que estiver completa a figura
de formação sucessiva, seriam aqueles "cujo ciclo de formação típica. Se for constituído, digamos, por 100 elementos e apenas
se completa dentro de um determinado período de tempo 99 ocorrerem, nada existirá de relevante para o Direito. É como
(Zeitabschnitt, Steuerabschnitt, periodo d'imposta) e que con- se nada houvera acontecido. Seria o mesmo que nenhum dos
sistem num conjunto de fatos, circunstâncias ou acontecimentos 99 jamais haver ocorrido. Assim é que há de se concluir ser
todos os fatos instantâneos, não tendo cabimento a classificação
bipartida adotada unanimemente pela doutrina.
171-H. FALCÃO, Amílcar de Araújo. O Fato Gerador da Obrigação Tributária.
Revista dos Tribunais, 1973, p. 125/131.
171-1. FALCÃO, Amílcar de Araújo. obra e local citados. 171-J. Curso de Direito Tributário. 2P Ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 299-304.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

Não haverá negar-se, por inquestionável, que a colocação tuinte. Podem existir, e certamente existem, diferenças de
é sedutora e sugestiva. Assumindo-a, logo nos primeiros se- amplitude entre as faixas de competência das pessoas tribu-
gundos de raciocínio estaremos selecionando hipóteses e tantes. Todavia, estão no mesmo nível jurídico.
aplicando-lhes regimes jurídicos distintos, o que nos condicio-
Não somos contrários a que se estudem os grandes auto-
na a aceitá-la como verdadeira. res estrangeiros. Entendemos mesmo dever inarredável para
Em que influa o peso da autoridade de Giannini, Merk e o progresso da ciência do Direito Tributário. Contudo, é útil
Vanoni, bem como do nosso grande Amílcar Falcão, o trata- estarmos cintados de cautelas ao transferir conceitos ou solu-
mento rigorosamente científico do Direito Tributário não pode ções jurídicas para nossa realidade. Podemos fazê-lo, mas
condescender com doutrinas que molestem, mesmo que leve- antes impende verificar se os pressupostos estão harmonizados
mente, premissas da ciência jurídica. E a colocação exposta com os princípios retores de nossa sistemática jurídica.
tem a virtude de fazê-lo. Tangemos o assunto das importações de conhecimentos
Não vemos com bons olhos as lições importadas de mes- jurídicos não para apontar discordância da classificação discu-
tres estrangeiros e que aqui se impõem por força de suas au- tida em cotejo com nossa realidade jurídico-tributária, pois já
toridades, sem que se lhes anteceda um esforço efetivo de ve- dissemos padecer de um outro mal- não ter conteúdo jurídico.
rificação de premissas. Quase sempre as doutrinas importadas Mas, justamente para acentuar que o vocábulo empregado na
trazem resquícios de outra realidade, em que, talvez, possam designação de uma das categorias "complexivos" - nem existe
ser aplicadas sem maiores transtornos. Padece o Direito bra- no vernáculo. É adaptação apressada do adjetivo italiano "com-
sileiro de uma série de impropriedades cuja origem deve ser plessivo", que vem de "complesso" e quer dizer complexo.
buscada no vezo antipático de importar conhecimentos ao Assim, tanto os "fatos geradores" continuados como os
invés de colhê-os no campo extraordinariamente fértil da re- complexos ou de formação sucessiva, são, igualmente, instan-
flexão sobre nossa própria realidade jurídica. tâneos, visto que surgem sempre numa específica unidade de
tempo e, cada vez que acontecem, dão origem a obrigações
Em exemplário tomado ao acaso, temos expressões do
tributárias autônomas. E por isso que todos os "fatos geradores"
quilate de "entes menores", designativas de nossos Municípios,
ocorrem sempre em determinada unidade de tempo é que se
ou "níveis de governo", para atinar-se às três pessoas políticas
não pode falar também de "fatos geradores pendentes", como
de Direito Constitucional União, Estados e Municípios. Ressal-
o faz o Código Tributário Nacional (art. 105).
ta à obviedade que são construções perfeitamente adequadas
a sistemas jurídicos que não o nosso. No Brasil, como sabemos,
os Municípios têm dignidade constitucional, conquanto não 2.5.2.1. Classificação jurídica com base no critério temporal
integrem o pacto federativo. Gozam de autonomia jurídica das "hipóteses tributárias"
governando seus próprios interesses e em nada diferindo da-
quela que o Texto Supremo confere aos Estados e à União. São O único dado efetivamente jurídico que se pode extrair
"entes menores" na França, ou na Itália. Nosso sistema jurídico, do critério temporal das hipóteses tributárias, com o escopo de
inobstante, repele essa construção, por inteiramente inadequa- separar as espécies de gravames fiscais, é aquele que consiste
da. Diga-se o mesmo de "níveis de governo", uma vez que os em saber se a hipótese prevê ou não momento certo para a
três entes tributantes - União, Estados e Municípios - estão no realização do fato descrito.
mesmo nível jurídico, precisamente porque são senhores de Com efeito, supostos tributários existem que fazem pre-
fatias do poder tributário, outorgadas pelo legislador consti- visão de determinado momento em que deva ocorrer o fato
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

jurídico. Se fato idêntico suceder, porém em instante diferente ensejo para repisar a fenomenologia da incidência tributária e
daquele aludido na hipótese, não será fato jurídico, ao menos o necessário quadramento do fato à norma jurídica para que
para efeitos tributários, à míngua de satisfação do condicio- se dê sua ocorrência. Tecnicamente, interessa sublinhar que a
nante temporal especificado em sua descrição típica. Enqua- incidência requer, por um lado, a norma jurídica válida e vi-
dram-se nessa categoria o imposto sobre a renda e proventos gente; por outro, a realização do evento vertido em linguagem
de qualquer natureza, o imposto predial e territorial urbano, que o sistema indique como própria e adequada. Percebe-se,
bem como o imposto territorial rural. O legislador estabelece, portanto, que a chamada "incidência jurídica" se reduz, pelo
às vezes expressamente (imposto predial e territorial urbano do prisma lógico, a duas operações formais: a primeira, de sub-
Município de São Paulo), outras implicitamente (imposto sobre sunção ou inclusão de classes, em que se reconhece que uma
a renda e proventos de qualquer natureza), o momento exato ocorrência concreta, localizada num determinado ponto do
em que se deva considerar realizado o fato jurídico tributário. espaço social e numa específica unidade de tempo, inclui-se
na classe dos fatos previstos no suposto da norma geral e abs-
Em outras ocasiões, não se preocupa com o momento em trata; outra, a segunda, de implicação, porquanto a fórmula
que deva acontecer o fato hipoteticamente descrito, o que normativa prescreve que o antecedente implica a tese, vale
equivale a dizer que, em qualquer circunstância de tempo em dizer, o fato concreto, ocorrido hic et nunc, faz surgir uma re-
que se realize, terá desencadeado os efeitos tributários norma- lação jurídica também determinada, entre dois ou mais sujeitos
tivamente concebidos. (Exemplos: IPI, ICM, etc.) De um lado, de direito. É importante ter em mente, outrossim, que tais
há marcos temporais que deverão ser observados, de outro, operações lógicas somente se realizam mediante a atividade
não existem. Quer parecer-nos que seria esse o único elemen- de um ser humano, que efetue a subsunção e promova a im-
to hábil no sentido de fornecer base jurídica para distinguirmos plicação que o preceito normativo determina.
as hipóteses tributárias e, por via de consequência, os fatos
jurídicos que a elas correspondam. Voltando nossa atenção à primeira dessas operações for-
mais, diremos que houve subsunção quando o fato jurídico
Teríamos então: tributário guardar absoluta identidade com o desenho norma-
tivo da hipótese. Esse quadramento, porém, tem de ser com-
a) que definem (expressa ou implicitamen- pleto. É aquilo que se tem por tipicidade, que no Direito Tri-
te) o momento de ocorrência do fato jurídico
butário, assim como no Direito Penal, adquire transcendental
tributário;
HIPÓTESES i mportância. Segundo tal preceito, para que determinada
TRIBUTÁRIAS ocorrência seja tida como fato jurídico tributário, imprescin-
b) que não definem momento específico, po- dível a satisfação de todos os critérios identificadores tipifica-
dendo acontecer em qualquer circunstancia de dos na hipótese da norma geral e abstrata. Que apenas um não
tempo.
seja reconhecido, e a dinâmica da incidência ficará inteiramen-
te comprometida.
2.5.3. Fenomenologia da incidência tributária e o necessário
quadramento do fato à norma jurídica 2.5.3.1. A incidência tributária e o "tipo estrutural"

Uma vez demarcados os elementos que compõem o ante- O direito positivo apresenta-se como objeto cultural, cria-
cedente da regra-matriz de incidência tributária, colho o do pelo homem, construído num universo de linguagem.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

Trata-se de sistema autopoiético que regula, ele próprio, sua proventos de qualquer natureza, onde são irrelevantes os meios
produção e transformação. Não obstante sua operatividade, pelos quais a renda é auferida. Em suma, quando a estrutura
consistente na incidência normativa, dependa de atos-de-fala, do negócio jurídico integra o antecedente da regra-matriz de
ou seja, da enunciação pela autoridade competente, tais atos incidência, trata-se de "tipo estrutural". Quando, porém, a
devem ser praticados segundo critérios estabelecidos pelo pró- hipótese normativa tributária é composta apenas pela obtenção
prio sistema jurídico. As autoridades mesmas, somente recebem de resultado econômico, independentemente do ato jurídico
esse qualificativo porque assim previsto pelo direito, devendo praticado, tem-se "tipo funcional".
agir nos exatos limites da competência que lhe foi atribuída.
Pelos fundamentos expostos, podemos afirmar que nos
Essa tomada de posição leva-nos a evidenciar o caráter casos em que a regra-matriz tributária elege em sua hipótese
constitutivo da linguagem jurídico-positiva. Sendo a lingua- um "tipo estrutural", a fenomenologia da incidência somente
gem constitutiva da realidade, dentre elas a realidade jurídi- se verificará quando o procedimento adotado pelo particular
ca, determinado fato só é concretizado se observados os re- corresponder inteiramente à forma normativamente prevista.
quisitos linguísticos exigidos para tanto, pois somente haverá Se o procedimento empregado pelo particular é diverso da
subsunção se estiverem presentes todas as notas caracterís- quele utilizado para concretizar-se o negócio conotativamente
ticas do conceito eleito pelo legislador para integrar a hipó-
descrito pela norma jurídica, distintos são os fatos jurídicos,
tese normativa. Consequentemente, dependendo da forma
ainda que seus efeitos econômicos sejam semelhantes. E a
como o negócio jurídico é efetuado, quer dizer, da linguagem
incidência normativa deve respeitar tal peculiaridade, surgin-
jurídica empregada, estaremos diante de um fato jurídico
do o liame obrigacional nos exatos termos prescritos pela regra-
tributário ou não.
matriz relativa ao tipo estrutural verificado.
Registre-se, nesta oportunidade, que ao distribuir as
competências, o constituinte efetuou cortes, estabelecendo
rígidos limites ao exercício da tributação. Desse modo, autori-
2.5.4. Interpretação dos fatos: delimitação do conteúdo de "fato
zou as pessoas políticas a tributarem apenas determinadas puro", "fato contábil" e "fato jurídico"
situações especificadas no Texto Constitucional, ficando-lhes
No degrau da hermenêutica jurídica, o grande desafio de
vedado atingir fatos não cobertos pela competência tributária
quem pretende desvelar o conteúdo, sentido e alcance das
que lhes foi atribuída. Ofereceu, também, critérios para deter-
regras de direito radica na inafastável dicotomia entre a letra
minar os possíveis sujeitos passivo e ativo de cada exação.
da lei e a natureza do fenômeno jurídico subjacente.
Acontece que ao selecionar os fatos passíveis de tributa-
ção, o constituinte empregou "tipos estruturais" e "tipos fun- O desprestígio da chamada interpretação literal é algo
cionais". Estar-se-á diante de um tipo estrutural quando a que dispensa meditações mais profundas, bastando recordar
hipótese normativa apresentar notas características de formas que, prevalecendo como método de interpretação do direito,
e atos de Direito Privado, como ocorre, por exemplo, no impos- seríamos forçados a admitir que os meramente alfabetizados,
to sobre transmissão causa mortis e doação e no imposto sobre quem sabe com o auxílio de um dicionário de tecnologia jurí-
transmissão inter vivos por ato oneroso. O tipo funcional, por dica, estariam credenciados a identificar a substância das
sua vez, consiste na atribuição de competência para tributar mensagens legisladas, explicitando as proporções de significa-
um fato sem qualquer relação com categoria de Direito Priva- do da lei. O reconhecimento de tal possibilidade roubaria à
do pré-concebida, como é o caso do imposto sobre a renda e Hermenêutica Jurídica e à Ciência do Direito todo o teor de

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suas conquistas, relegando o ensino universitário a um esforço Quer isto exprimir, por outros torneios, que a única forma
sem expressão e sentido prático de existência. Talvez por isso, de se entender o fenômeno jurídico, conclusivamente, é anali-
e sem o perceber, Carlos Maximiliano haja sufragado, com sando-o como um sistema, visualizado no entrelaçamento
suficiente ênfase, que todos os métodos interpretativos são vertical e horizontal dos inumeráveis preceitos que se congre-
válidos, desde que seus resultados coincidam com aqueles gam e se aglutinam para disciplinar o comportamento do ser
colhidos na interpretação sistemática. humano, no convívio com seus semelhantes. O texto escrito,
Não sobeja repetir: para nós, as normas jurídicas são as na singela expressão de seus símbolos, não pode ser mais do
significações que a leitura do texto desperta em nosso espírito que a porta de entrada para o processo de apreensão da von-
e, nem sempre, coincidem com os artigos em que o legislador tade da lei, jamais confundida com a intenção do legislador.
distribui a matéria no campo escrito da lei. Dito de outro modo, Sem nos darmos conta, adentramos a análise do sistema nor-
na realidade social em que vivemos, experimentamos sensações mativo sob o enfoque semioticista, recortando, como sugere
visuais, auditivas, tácteis, que suscitam noções. Estas, agrupa- uma análise mais séria, a realidade jurídica em seus diferentes
das em nosso intelecto, fazem surgir os juízos ou pensamentos campos cognoscitivos: sintático, semântico e pragmático.
que, por sua vez, se exprimem verbalmente como proposições. Bem sabido que não se pode priorizar qualquer das di-
A proposição aparece como o enunciado de um juízo, da mes- mensões semióticas, em detrimento das demais. Todavia, o
ma maneira que o termo expressa uma idéia ou noção. E a momento semântico num exame mais apurado sobre o tema
norma jurídica é, exatamente, o juízo hipotético que a percep- que ora tratamos, chama a atenção pela maneira intensa como
ção do texto provoca no plano de nosso consciente, da mesma qualifica e determina as questões submetidas ao processo dia-
forma em que tantas outras noções não-jurídicas poderiam ter lógico que prepara a decisão ou conclusão. Daí exclamar Al-
sido originadas daquele mesmo conjunto de percepções físicas. fredo Augusto Becker, cheio de força retórica, que o jurista
Diz-se, portanto, que a noção é jurídica pois se enquadrou a nada mais seria que o semântico da linguagem do direito. A ele
uma determinada hipótese jurídica. cabe a árdua tarefa de examinar os textos, quantas vezes obs-
Por analogia aos símbolos linguísticos quaisquer é válida curos, contraditórios, penetrados de erros e imperfeições termi-
a construção segundo a qual o texto escrito está para a norma nológicas, para captar a essência dos institutos, surpreendendo,
jurídica tal qual o vocábulo está para sua significação. E ado- com nitidez, a função da regra, no implexo quadro normativo.
tando-se a estrutura trilateral, de inspiração husserliana, fala- No processo de cognição da linguagem prescritiva de
remos em suporte físico, significado e significação. Transpor- condutas, o hermeneuta esbarra em numerosos entraves que
tadas as idéias para o domínio do jurídico: o suporte físico é o a realidade jurídica mesma lhe impõe. O primeiro obstáculo
conjunto dos textos do direito posto; significado, a conduta está cravado na própria matriz do direito. A produção das
humana compartida, na vida social; e significação, o vasto re- normas de mais elevada hierarquia no sistema, que são gerais
pertório que o jurista extrai, compondo juízos lógicos, a partir e abstratas, está confiada aos parlamentos, casas legislativas
do contato sensorial com o suporte físico, e com referência ao de natural heterogeneidade, na medida em que se pretendam
quadro dos fatos e das condutas juridicamente relevantes. É democráticas e representativas. Com isso, a despeito dos es-
exatamente na significação e no significado que se dá a cons- forços na elaboração de uma linguagem técnica, dotada da
trução hermenêutica do fato jurídico e onde centralizaremos racionalidade suficiente para atingir padrões satisfatórios de
todas as nossas atenções a fim de compor estudo semântico eficácia social, a verdade é que a mensagem legislada quase
sobre a expressão "fato jurídico". sempre vem penetrada de imperfeições, com problemas de
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

ordem sintática e semântica, tornando muitas vezes difícil sua de consultar outros preceitos do mesmo diploma e, até, a sair
compreensão pelos sujeitos destinatários. É neste ponto que a dele, fazendo incursões pelo sistema.
Dogmática (Ciência do Direito em sentido estrito) cumpre Por fim, não nos esqueçamos de que a camada linguística
papel de extrema relevância, compondo os enunciados fre- do direito está imersa na complexidade do tecido social, cortada
quentemente dispersos em vários corpos legislativos, ajeitando- apenas para efeito de aproximação cognoscitiva. O real, com a
os na estrutura lógica compatível e apontando as correções multiplicidade de suas determinações, só é susceptível de uma
semânticas que a leitura contextual venha a sugerir. Com tais representação intuitiva, porém aberta para receber inúmeros
ponderações, a comunicação normativa flui mais facilmente recortes cognoscitivos. Com tais ponderações, torna-se hialina
do emissor ao receptor, realizando os propósitos da regulação a afirmativa de que de um mesmo evento, poderá o jurista cons-
jurídica com mais clareza e determinação. truir o fato jurídico; como também o contabilista, o fato contábil;
Num segundo momento, depara-se o estudioso com uma e o economista o fato econômico. Tudo, portanto, sob a depen-
realidade juridicamente complexa. Analisando no contexto de dência do corte que se quer promover daquele evento.
uma visão sistemática, onde as unidades normativas se entreli- E quanto ao âmbito de compreensão deste fenômeno, re-
gam formando uma estrutura sintática; onde há, inequivoca- tornando à linha de raciocínio inicial, citemos que todos os fatos
mente, um referente semântico consubstanciado pela região são construções de linguagem, e, como tanto, são representações
material das condutas, ponto de confluência das iniciativas re- metafóricas do próprio evento. Seguem a gramaticalidade pró-
guladoras do comportamento intersubjetivo; e onde se verificam pria do universo linguístico a que pertencem - o jurídico - quan-
as inesgotáveis manifestações dos fatores pragmáticos. Tudo do constituinte do fato jurídico ou o contábil, por exemplo,
isso, repito, traz ao estudo do fenômeno jurídico complexidades quando construtores do fato contábil. As regras da gramática
imensas. Na qualidade de exegeta, deve partir da literalidade cumprem função linguística reguladora de um idioma histori-
do texto, e buscar as significações sistêmicas, aquelas que retra- camente dado. Prescrevem a forma de combinação dos vocábu-
tam os específicos parâmetros instituídos pelo sistema. Do los e das expressões para produzirmos oração, isto é, construção
mesmo modo, a consistência material das regras há de encontrar com sentido daquele universo linguisticamente dado. O direito,
fundamento no sistema, sob pena de não prevalecerem, vindo portanto, é linguagem própria compositiva de uma realidade
a ser desconstituídas. Daí a tendência para cortar cerce o pro- jurídica. Provém daí o nominar-se Gramática Jurídica ao sub-
blema, ofertando soluções simplistas e descomprometidas, como conjunto das regras que estabelecem como outras regras devem
ocorre, por exemplo, com a canhestra "interpretação literal" das ser postas, modificadas ou extintas, dentro de certo sistema.
formulações normativas, que leva consigo a doce ilusão de que
as regras do direito podem ser isoladas do sistema e, analisadas Posto isso, perceberemos que a construção do fato jurídico,
na sua compostura frásica, desde logo "compreendidas". nada mais é que a constituição de um fraseado normativo capaz
de justapor-se como antecedente normativo de uma norma in-
Adotando tal postura, parece-nos perfeitamente justifica- dividual e concreta, dentro das regras sintáticas ditadas pela
da e coerente a adoção da afirmativa suso adotada de que as gramática do direito, assim como de acordo com os limites se-
regras jurídicas são as significações que a leitura do texto des- mânticos arquitetados pela hipótese da norma geral e abstrata.
perta em nosso espírito e, nem sempre, coincidem com os
dispositivos mediante os quais o legislador distribui a matéria Há que ter em mente, nesse caminho, uma importante
no corpo escrito da lei. Advém daí que, muitas vezes, um único informação: as palavras componentes desta frase constitutiva
artigo não seja bastante para a compreensão da norma, em sua de realidade jurídica têm uma denotação, que é o conjunto dos
integridade existencial. Vê-se o leitor, então, na contingência significados que, posteriormente, representam o signo. Ao mesmo

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tempo, as mesmas palavras classificam-se dicotomicamente, na os mesmos conteúdos denotativos. A partir desses dados, é que
medida em que estabelecem duas categorias: a dos objetos que poderemos demarcar o conjunto dos fatos jurídicos, separando-
representam e a dos objetos que não representam. o do conjunto dos fatos não-jurídicos, onde se demoram os fatos
Tal ocorre com a expressão fato jurídico. Têm-se como econômicos, os fatos contábeis, os fatos históricos e tantos outros
certo, nos dias de hoje, que o conhecimento científico do fenô- quantas sejam as ciências que os constroem. O critério utilizado
meno social, seja ele qual for, advém da experiência, aparecendo para a separação desses dois domínios é justamente a homoge-
sempre como uma síntese necessariamente a posteriori. Na neidade sintática do universo jurídico.
constituição do fato jurídico, a análise relacional entre a lingua- Com tais considerações, cabe relembrar que todo conhe-
gem social e a linguagem jurídica, redutora da primeira, sobre- cimento do objeto requer cortes e mais recortes científicos, que
põe-se a esse conhecimento sinzetético, obtendo como resulta- cumprem a função de simplificar a complexa realidade exis-
do um novo signo, individualizado no tempo e no espaço do
tencial delimitando o campo da análise. Não nos esqueçamos
direito e recebendo qualificação jurídica: eis o fato jurídico. É,
de que a camada linguística do direito está imersa na comple-
portanto, uma construção de sobrelinguagem. Há duas sínteses:
xidade do tecido social, cortada apenas para efeito de aproxi-
(i) do fenômeno social ao fenômeno abstrato jurídico e (ii) do
mação cognoscitiva. O direito positivo é objeto do mundo da
fenômeno abstrato jurídico ao fenômeno concreto jurídico.
cultura e, como tal, torna árdua a tarefa do exegeta em construir
Adotados estes pressupostos, verificaremos que o termo a plenitude de seus conteúdos de significação, obrigando-o a
ou expressão que adquirir o qualificativo "jurídico" não somen- reduzir a complexidade empírica, ora isolando ora selecionan-
te será representativo de uma unidade do universo do direito, do caracteres do dinâmico mundo do existencial. O objeto
como também denotará seu contraponto, que são todos os outros passa a ser uma construção em linguagem do intérprete que
fatos linguisticamente possíveis de serem construídos a partir reduz as características próprias e imanentes daquilo que se
daquele mesmo evento, mas que não se enquadram às regras toma do universo físico-social.
sintáticas e semanticamente dadas pelo sistema de linguagem
do direito. A demarcação do objeto implica a delimitação do Eis uma barreira intransponível à concepção do "fato
corte de sua classe e, ao traçar esses limites o exegeta obtém puro", seja ele econômico, histórico, político, jurídico ou de
como resultado indireto a formação do conjunto dos fatos que qualquer outra qualidade que se lhe pretenda atribuir. Tais
não se qualificam como tal. Trata-se de singela construção re- fatos, como acrescenta Lourival Vilanova, são elaborações
sultante da lógica, pois, no universo das proposições normativas, conceptuais, subprodutos de técnicas de depuração de idéias
"p" (proposição) é diferente e oposto de "n-p" (não-proposição), seletivamente ordenadasm - K.
i mpedindo a quem se dispõe a conhecer o sistema incluir a
Cumpre fazer observação importante e que atina ao mo-
classe "n-p" dentro do conjunto "p". São categorias que tomam mento da própria consolidação da afirmativa acima exposta.
o mesmo universo mas que não se intercruzam. Ou seja, de um
Isto porque a doutrina tradicional vem conotando certos fatos
mesmo evento pode-se construir um fato jurídico ou um fato
jurídicos, tal qual o fato elisivo, como construção de conteúdo
contábil; mas um e outro são sobremaneira diferentes, o que
i mpede de inscrever o último como antecedente da norma indi-
vidual e concreta, dado que representa unidade carente de
171-K. Confira: "O fato puro não leva, com ele, a suficiente relevância signi-
significação jurídica. O fato capaz de implicar o consequente
ficativa para ser incluído dentro do tipo. Para ingressar, sofre uma valoração
normativo haverá de ser sempre fato jurídico, mesmo que mui- comandada por um dever-ser." (VILANOVA, Lourival. Estruturas Lógicas e
tas vezes haja situações em que num e noutro estejam presentes o Sistema de Direito Positivo, p. 104.)

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econômico, com efeitos jurídicos. Não concordamos em con- lada ao seu exclusivo objeto que é o Direito positivo. A ciência
ceituar os fatos jurídicos tributários como "fatos jurídicos de do Direito não pode construir outra realidade que não aquela
conteúdo econômico", posto que essa é a natureza dos fatos de descrever seu objeto específico. O mesmo acontece com a
econômicos e não dos fatos relevantes para o Direito. Obvia- Física ou com a Economia, que haverão de cingir-se à tarefa de
mente, toda a realidade jurídica deve ter consistência jurídica, descrever, respectivamente, as leis físicas e as leis econômicas.
sob pena de não qualificar-se como tal. A essência de uma
Isso não impede, todavia, que um mesmo fato da nature-
realidade é que dirá da qualificação que lhe devemos atribuir.
za exterior venha a servir de elemento da cogitação econômica,
Os fatos econômicos terão natureza econômica, os fatos socio-
ao mesmo tempo que se presta a estudo pelo Direito. Enquan-
lógicos, essência sociológica e os fatos políticos, consistência
to considerado pela Economia, seu conteúdo é eminentemen-
política. Se, porventura, cogitássemos cientificamente de uma
te econômico. À medida que revestir interesse jurídico, terá
realidade sociológica, mas que tivesse conteúdo político, pare-
consistência exclusivamente jurídica, com abstração de quais-
ceria claro não tratar-se verdadeiramente de realidade socio-
quer outros aspectos.
lógica, mas sim política, devendo ser analisada à luz dos co-
nhecimentos da ciência política, que é, justamente, a matéria As expressões que ora impugnamos bem atestam o grau
que estuda aquela classe dos fenômenos sociais. de comprometimento, que ainda podemos notar, do Direito
com ciências que estudam fenômenos parecidos. E a mesma
Cabe impugnar, também, aquel' outra expressão muito
falha pode ser verificada no que pertine ao Direito Constitu-
difundida, segundo a qual o fato jurídico elisivo viria a ser um
cional, pleno de considerações políticas.
fato econômico de relevância jurídica.
No desejo de construir um recorte da realidade que cerque
O Direito não toma por empréstimo entidades de outro
o fato jurídico elisivo, pensamentos deslizam ao longo do eixo
campo, para os fins de que necessita. Sua grande virtude é cons-
descritivo, impulsionados por uma eloquência ordenada e
truir as próprias realidades. Por isso mesmo, as construções
vigorosa, bem na medida que a Ciência recomenda. Afinal de
jurídicas não deformam as leis econômicas ou políticas, como
contas, que fato é esse? Como qualificá-lo? Sob qual critério?
amiúde se afirma. Não é correto dizer que o Direito modifica a
Nunca é demais insistir que as subdivisões em sistemas res-
lei da oferta e da procura, ou mesmo que teria a força suficiente
pondem a cortes metódicos que os objetivos da investigação
para contrariar as leis da natureza, fazendo do homem, mulher.
analítica impõem ao espírito do pesquisador. O critério adota-
O que acontece é que o Direito não está condicionado senão às
do no corte é o que qualificará o fato construído por ele,
suas finalidades, sendo-lhe facultado escolher os caminhos que
quantificando-o, inclusive, em seu consequente normativo. Se
lhe aprouverem. Isso, de certo que só se aplica ao Direito posto,
adotarmos um critério jurídico, o fato será atribuído ora como
de vez que a ciência do Direito, sendo como é matéria descritiva,
jurídico ora como não-jurídico, de acordo com as característi-
encontra-se plenamente vinculada ao objeto de seu estudo que
cas instituídas em lei que determinam os contornos daquele
é o Direito positivo. Reside aqui, aliás, o vício de raciocínio da-
factum tributário. Adotando tal pressuposto, a referência esta-
queles que comparam o Direito positivo à Física, à Biologia ou
rá sempre contida nos critérios legalmente estipulados.
à Química. A correlação é de todo inadequada, por isso que essas
três matérias são eminentemente descritivas, ao passo que o Ao indagarmos sobre a expressão economia fiscal, em
"jus positum" tem caráter prescritivo. A Física, a Biologia e a olhar ligeiro, entenderemos estar nos limites entre o que é do
Química, assim como a Economia, a Ciência das Finanças e a domínio econômico e o que é do direito. Em qual desses domí-
Ciência Política devem ser comparadas, isto sim, à ciência jurí- nios o critério se insere? Cumpre observar que, ao estabele-
dica e, nesse ponto, esta última está irremediavelmente vincu- cermos o paralelo entre o resultado de duas situações fiscais,
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

estamos ingressando em uma análise aritmética entre duas social". Como se demonstrará, ambas as teorias têm como re-
quantias ou dois resultados numéricos. Seria esta uma análise sultado a demolição da juridicidade do Direito Tributário e a
jurídica ou econômica? Vejamos. Transportando-se isto para gestação de um ser híbrido e teratológico: o Direito Tributário
o quadro das prescrições legais tributárias, iremos verificar no invertebrado." 1-L (os grifos são do autor).
próprio art. 3Q. do CTN que tributo é um prestação pecuniária
compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir. 2.5.5. Considerações finais sobre a hipótese tributária
Em outras palavras, tributo é um valor pecuniário. O próprio
artigo 4 2 do CTN, ao dizer que a natureza específica do tributo O exame dos três critérios suso mencionados material,
é definida pelo fato gerador; está confirmando que a natureza do espacial e temporal - dá-nos a feição do conteúdo das hipóteses
tributo é dada pela conjugação da hipótese da incidência e da normativas, de um modo geral e, em particular; das hipóteses
base de cálculo, assumindo, nesta operação, perfil numérico. das regras-matrizes de incidência tributária. Essas categorias
lógicas devem ser suficientes para definir qualquer fato jurídi-
Pelo exposto, fica a ressalva de que não há fatos jurídicos
co, assim entendidos aqueles acontecimentos do mundo tan-
puros ou fatos econômicos puros. O que existe são cortes de lin-
gível que o Direito toma como marcos, a partir dos quais faz
guagem. Nós, juristas, montamos a realidade jurídica que repre-
incidir a disciplina do relacionamento social.
senta o corte. Desta maneira, construímos a interpretação jurídi-
ca. Nada disso impede que economistas tomem a mesma base Regressando à hipótese tributária, não é demais renovar
objetiva e produzam enunciados econômicos sobre ela. Produzem- que a doutrina lhe outorgou dimensão descabida, transforman-
se, por sua vez, outros cortes sobre o mesmo acontecimento, do-a na vereda florida que nos permite descobrir o tesouro de
compondo novo signo. E a mesma coisa ocorre para o historiador, todas as soluções fiscais.
que constitui o fato histórico; para o sociólogo, que constrói o fato Pudemos ver que o Direito enlaça ao acontecimento de um
sociológico, entre tantos outros recortes que se possam produzir fato determinada consequência que consiste, em última análise,
naquela realidade. À confusão metodológica que se estabelece no no regramento do proceder humano. Nesse esquema lógico, de
instante do corte Becker chamou de "mancebia irregular" do estrutura hipotética, temos que os diferentes fatos escolhidos
direito tributário com outras Ciências. Aliás, foi precisamente pela pelo Direito representam tão-somente balizas, signos a partir
pretensão de fixar como objeto a atividade financeira do Estado, dos quais a ordenação jurídica considera inaugurado um víncu-
passando a examiná-la sob todos os ângulos possíveis e imaginá- lo que irá preordenar comportamentos. Surge, então, a pergun-
rios, sem qualquer prioridade metodológica, que a Ciência das ta: em que elemento da formulação hipotética - no antecedente
Finanças rotundamente faliu, não mais existindo como disciplina ou no consequente - reside a essência do Direito? Haveria de
nas grades curriculares das Faculdades de Direito do Brasil. ser nos sinais externos que o legislador toma como pressupostos
Discorrendo acerca do modo de pensar algumas vezes ir- ou na relação abstrata que vincula pessoas, no sentido de ado-
refletido da doutrina tradicional, também conhecida como tarem, coativamente, proceder determinado? Dada a natural
doutrina bem comportada do Direito Tributário, Alfredo Augus- coalescência, não é fácil responder em termos absolutos. Um não
to esclarece: Exemplo de carência de atitude mental jurídica é existirá sem o outro, pelo que não pode falar-se em graus de
a divulgadíssima tese (aceita como coisa óbvia) que afirma ser i mportância. Porém, é intuitivo reconhecer que no consequente
a hipótese de incidência ("fato gerador", "fato imponível", "su-
porte táctico") sempre um fato econômico. Outro exemplo atual
é a muito propagada doutrina da interpretação e aplicação do 171 L. BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. 4a
-

Direito Tributário segundo a "realidade econômica do fenômeno edição. Marcial Pons/Noeses

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PAULO DE BARROS CARVALHO
DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

é que o Direito se realiza, dado que lá repousam os critérios para


Para reforço desses argumentos, vamos servir-nos de
identificarmos o único e exclusivo instrumento de disciplina do
exemplo sobremaneira sugestivo e tomado de autor que defen-
relacionamento social - a relação jurídica. Desse modo, ainda
de posição contrária, vendo na hipótese o lugar-comum de todo
que se não possa estabelecer escalonamento segundo o grau de
o Direito Tributário. E a alusão que fazemos é, precisamente,
importância dessas duas peças do juízo hipotético, que é a es-
de um dos estudos mais sérios e aprofundados a respeito da
trutura lógica das normas jurídicas, é imperioso reconhecer que
matéria, em termos nacionais ou de doutrina estrangeira -
o Direito age, procurando suas finalidades, mercê dos efeitos
"Hipótese de incidência tributária" - de autoria do jurista
decorrentes daquele vínculo abstrato.
paulista Geraldo Ataliba." 1- m
É sintomático, também, observarmos que nem todos os
Explicitando a formulação das normas tributárias e após
fatos da natureza física são tomados em consideração pelo
estabelecer as diferenças que podem ser verificadas entre a
Direito. Muitos fatos existem que nada representam juridica-
"hipótese de incidência" e o "fato imponível", saca exemplo de
mente. Por outro lado, todos os comportamentos humanos são
notável alcance didático, na grandeza em que pode ilustrar o
governados pela ordenação jurídica, consoante aqueles dois
ponto de vista que expusemos.
gráficos que tivemos o ensejo de referir (Garcia Maynes e Ro-
berto José Vernengo). Diz esse professor:

Inexplicavelmente, porém, prosperou tendência contrária "Assim, a lei formula a seguinte hipótese: "comerciante
no espírito da doutrina nacional e estrangeira do Direito vender mercadoria no território X"
Tributário, com ênfase total na hipótese, em detrimento da
consideração adequada do elemento consequência. Sobre a que associa o mandamento:
não estabelecer a distinção necessária que uma análise cien-
"esse alguém ficará devedor de 1/10 do valor da operação,
tífica impõe, esta visão desnaturadora da norma jurídica e
ao Estado".
atentatória da metodologia do Direito cometeu sérios e ir-
reparáveis desacertos, a ponto de comprometê-la por intei- Dificilmente um exemplo poderia calhar com tanta pre-
ro. Merece indicação, por extremamente curioso, o desco- cisão para enriquecer o ponto de vista que defendemos.
brimento do sujeito ativo da relação tributária, no exame da
Está solarmente claro que o mandamento dessa norma
hipótese. Apenas para argumentar, aceitemos que o sujeito
tributária é que fixa: quem é o sujeito ativo (Estado); quem é o
passivo esteja envolvido no acontecimento do fato. Mas o
sujeito passivo (comerciante); qual é o dever jurídico a ser
sujeito ativo, especialmente nos impostos, como haverá de
cumprido (base de cálculo - valor da operação e alíquota - 1/10,
surgir mediante a verificação do suposto tributário? E mes-
que são os elementos quantitativos). Na hipótese, permanece-
mo acontecendo o fato jurídico tributário, de que forma ria apenas um comportamento humano (vender mercadorias
enuclearemos o titular do direito subjetivo, meramente pela - critério material), devidamente limitado no espaço (território
análise desse fato? X - critério espacial) e no tempo (qualquer momento em que
Sendo assim, haveremos de convir que o critério pessoal ocorra critério temporal - formulação implícita).
não pode estar repartido entre os dois elementos da regra-
matriz de incidência tributária. Não seria concebível extraí-los,
um da hipótese, outro da consequência. 171-M. ATALIBA, Geraldo. Hipótese de Incidência Tributária. Revista dos
Tribunais, 1973, p. 76.
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É bem verdade que a hipótese faz alusão a "comerciante" e objeto - que se entrelaçam num vínculo abstrato. Renovemos
e, disso, poder-se-ia extrair que o sujeito passivo da relação a representação.
houvesse de ser procurado na hipótese. Entretanto, se retirar- Crédito Débito
mos a palavra "comerciante", em nada se alterará a disposição
da regra-matriz de incidência, visto que o autor se viu compe- sA SP
lido a repeti-la ao construir o arquétipo da relação jurídica.
É interessante notar, ademais, que o mandamento, que Direito subjetivo Dever jurídico
nós designamos por consequência, encerra os dados suficien-
tes para a determinação do conteúdo do dever jurídico a ser S é o sujeito ativo;
cumprido pelo sujeito passivo, vale dizer, a base de cálculo
S, é o sujeito passivo;
(valor da operação) e a alíquota (1/10).
$ é o objeto da prestação, uma quantia em dinheiro;
Fundados nessa concepção é que invadiremos o campo
da consequência tributária, para analisar em sua intimidade " " representa o direito subjetivo de que está investido
estrutural os critérios que nos possibilitarão reconhecer aque- o sujeito ativo de exigir a prestação: "crédito";
le liame que se inaugura mediante o acontecimento de deter- " f- " representa o dever subjetivo (ou dever jurídico) de
minado evento, escolhido pelo legislador como baliza para o cumprir a prestação: "débito";
prosseguimento de algum resultado considerado relevante. "--->" e " " são dois vetores, com a mesma direção, mesma
intensidade, porém, de sentidos contrários.
2.6. CONCEITOS GERAIS DA OBRIGAÇÃO TRIBUTÁRIA
O gráfico expõe a obrigação tributária na sua completude
A obrigação tributária, enquanto relação jurídica de cunho sintática. Todos os componentes que nele consignamos são
patrimonial (envolvendo um sujeito ativo, titular do direito elementos ínsitos, necessários e, portanto, imprescindíveis à
subjetivo de exigir a prestação, e um sujeito passivo, cometido existência da relação jurídica obrigacional. O objeto é o centro
do dever de cumpri-la), é nexo lógico que se instala a contar de convergência, para onde afluem as atenções e preocupações
de um enunciado factual, situado no consequente de u'a norma dos sujeitos. Diz-se que o sujeito ativo tem o direito subjetivo
individual e concreta, juntamente com a constituição do fato de exigir a prestação pecuniária. Em contranota, o sujeito pas-
jurídico tributário descrito no suposto da mesma norma. A sivo tem o dever jurídico de cumpri-la. Reproduzimos essa
edição dessa regra, como norma válida no sistema positivo, tem contraposição de interesses mediante dois vetores, de mesma
intensidade, com a mesma direção, porém de sentidos contrá-
o condão de introduzir no ordenamento dois fatos: o fato jurí-
rios, justamente para mostrar que, satisfeito o dever jurídico,
dico tributário (fato gerador) e ofato relacional que conhecemos
desaparece o direito subjetivo e vice-versa. Ao se anularem
por "relação jurídica tributária".
mutuamente, extingue-se a relação jurídica, que não pode
subsistir, repetimos, à míngua de qualquer dessas entidades
2.6.4 Composição interna do liame obrigacional integrantes de sua estrutura.

A composição interna do liame obrigacional é integrada Devo salientar que o sujeito passivo da relação jurídico-
pela presença de três elementos - sujeito ativo, sujeito passivo tributária poderá ser pessoa física ou jurídica, privada ou

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

pública, de quem se exige o cumprimento da prestação pecu- objeto. Todos, conjugados e coalescentes, mantendo, entre si,
niária. Na maioria das vezes, a Constituição não aponta exata- os nexos que salientamos, outorgam ao liame o porte e a dig-
mente quem deva ser o sujeito passivo das exações cuja com- nidade categorial de obrigação.
petência legislativa faculta às pessoas políticas. O constituinte
Definimos, portanto, crédito tributário como o direito
costuma aludir a um evento, deixando a cargo do legislador
subjetivo de que é portador o sujeito ativo de uma obrigação
ordinário não só estabelecer o desenho estrutural da hipótese
tributária e que lhe permite exigir o objeto prestacional, repre-
normativa, que deverá girar em torno daquela referência cons-
sentado por uma importância em dinheiro.
titucional, mas, além disso, escolher o sujeito que arcará com
o peso da incidência fiscal, fazendo as vezes de devedor da É oportuno expressar, com o propósito de amarrar melhor
prestação tributária. A cada um dos eventos eleitos para com- os conceitos, que uma coisa é o objeto da obrigação: no caso, a
por a hipótese da regra-matriz de incidência, a autoridade le- conduta prestacional de entregar uma porção de moeda; outra,
gislativa apanha um sujeito, segundo o critério de sua partici- o objeto da prestação, representado aqui pelo valor pecuniário
pação direta e pessoal com a ocorrência objetiva, e passa a pago ao credor ou por ele exigido.
chamá-lo de contribuinte, fazendo-o constar da relação obri-
gacional, na qualidade de sujeito passivo.
2.6.2. Obrigação tributária no CTN
.

A obrigação tributária, entretanto, só se instaura com


sujeito passivo que integre a ocorrência típica. A ênfase afir- Como já observado anteriormente, as regras do direito
mativa está fundada num argumento singelo, mas poderoso: o juridicizam os fatos sociais (entre eles, os naturais que interes-
legislador tributário não pode refugir dos limites constitucio- sem de algum modo à sociedade) fazendo irromper relações
nais da sua competência, que é oferecida de maneira discreta, jurídicas, no seio das quais aparecem os direitos subjetivos e
mediante a indicação de meros eventos. os deveres correlatos. Daí dizer-se que a incidência da regra
Aproveitando-se dessas referências, a autoridade legisla- faz nascer o vínculo entre sujeitos de direito, por força da im-
tiva exerce suas funções, autolimitando-se no compor da des- putação normativa. E a norma tributária não refoge desse
crição normativa. Feito isso, não pode transpor as fronteiras quadro de atuação, que é universal, valendo para todo espaço
do fato que ele mesmo (legislador ordinário) demarcou, nos e para todo o tempo histórico.
termos constitucionalmente permitidos. Em consequência, Como decorrência do acontecimento do evento previsto
somente pode ocupar a posição de sujeito passivo tributário hipoteticamente na norma tributária, instala-se o fato, consti-
quem estiver em relação com o fato jurídico praticado. tuído pela linguagem competente, irradiando-se o efeito jurí-
Pois bem, voltemos à idéia nuclear da esquematização dico próprio, qual seja, o liame abstrato, mediante o qual uma
relacional. O direito subjetivo de que está investido o sujeito pessoa, na qualidade de sujeito ativo, ficará investida do direi-
ativo de exigir o objeto, denominamos "crédito". E o dever to subjetivo de exigir de outra, chamada de sujeito passivo, o
jurídico (ou também dever subjetivo) que a ele se contrapõe, cumprimento de determinada prestação pecuniária. Empre-
de prestar o objeto, designamos "débito". Revela, por isso, gando a terminologia do Código Tributário Nacional, diríamos
inominável absurdo imaginar-se obrigação sem crédito. No que ocorreu o "fato gerador" (em concreto), surgindo daí a
domínio dos desatinos, equipara-se à concepção do vínculo obrigação tributária: é a fenomenologia da chamada "incidên-
obrigacional sem sujeito ativo, ou sem sujeito passivo, ou sem cia dos tributos".

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Em rigor, não é o texto normativo que incide sobre o fato Não é, entretanto, a linha terminológica que seguimos. O
social, tornando-o jurídico. É o ser humano que, buscando crédito tributário é, simplesmente, uma forma de ver o laço
fundamento de validade em norma geral e abstrata, constrói a obrigacional, o ângulo de quem o observa pelo ponto de vista
norma jurídica individual e concreta, na sua bimembridade do direito subjetivo de que está investido o credor da dívida
constitutiva, empregando, para tanto, a linguagem que o sis- tributária. A ele se contrapõe o débito tributário, consistente
tema estabelece como adequada, vale dizer, a linguagem com- no dever jurídico atribuído ao sujeito passivo da relação. O
petente. Instaura, desse modo, o fato e relata seus efeitos vínculo, como um todo, pressupõe a integração de ambos, cré-
prescritivos, consubstanciados no laço obrigacional que vai dito e débito, sem o que perde sentido falar em relação jurídi-
atrelar os sujeitos da relação. E tal atividade, que consiste na ca de caráter obrigacional, como é o caso do tributo.
expedição de uma norma individual e concreta, somente será
Toda disciplina da Lei n. 5.172/66 estrutura-se com base
possível se houver outra norma, geral e abstrata, que lhe sirva
na expressão "crédito tributário", de amplitude discreta e
de fundamento de validade. insuficiente para transmitir de forma adequada as mensa-
Com efeito, a hipótese tributária de qualquer exação deve gens que o legislador se propôs. Melhor seria se tivesse
descrever fato realizado por pessoa que manifeste, objetiva- empregado "obrigação tributária" de proporções semânticas
mente, riqueza. Ao recortar, no plano da realidade social, mais abrangentes.
aqueles fatos que julga de porte adequado para fazerem nascer
a obrigação tributária, o legislador deve sair à procura de acon- 2.6.3. Obrigação tributária e os deveres instrumentais
tecimentos passíveis de serem medidos segundo parâmetros
econômicos, uma vez que o vínculo jurídico a eles atrelado deve O objetivo primordial do direito é ordenar a vida social,
ter como objeto uma prestação pecuniária. É evidente que de disciplinando o comportamento dos seres humanos nas suas
uma ocorrência insusceptível de avaliação patrimonial jamais relações de intersubjetividade. Tomando por base esse caráter
se conseguirá cifras monetárias que traduzam, de alguma for- eminentemente instrumental do ordenamento jurídico, nota-se
ma, um valor em dinheiro. São esses eventos que fazem irrom- que o único meio de que dispõe, para alcançar sua finalidade
per a obrigação tributária, conduta prestacional de entregar precípua, é a relação jurídica, no contexto da qual emergem
uma porção de moeda (objeto da obrigação) e respectivo cré- direitos e deveres correlatos, pois é desse modo que se opera
dito (valor pecuniário objeto da prestação). a regulação das condutas.
Vem a ponto uma advertência que não pode ser preterida. É incontestável a importância que os fatos jurídicos assu-
O legislador brasileiro costuma empregar "crédito tributário" mem, no quadro sistemático do direito positivo, porquanto,
numa acepção bem ampla, designando não só o direito subjeti- sem eles, jamais apareceriam direitos e deveres, inexistindo
vo que o sujeito ativo tem para exigir a prestação, como também possibilidade de regular a convivência dos homens, no seio da
o próprio liame obrigacional, na sua integridade constitutiva. comunidade. Mas, sem desprezar esse papel fundamental, é
No que concerne à primeira dessas significações, mais estrita, pela virtude de seus efeitos que as ocorrências factuais adqui-
vemos que é usada, em reiteradas oportunidades, na suposição rem tanta relevância. E tais efeitos estão prescritos no conse-
de que pudesse subsistir independentemente da obrigação. Daí quente da norma, irradiando-se por via de relações jurídicas.
falar-se em nascimento da obrigação e posterior constituição do "Relação jurídica", como tantas outras expressões usadas
crédito, como se isso fosse logicamente possível. no discurso do direito, experimenta mais de uma acepção. É
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

relação jurídica o liame de parentesco, entre pai e filho, o laço a prestação atinente aos deveres formais é a base sobre a qual
processual que envolve autor, juiz e réu, e o vínculo que une a formação do fato vai sustentar-se. Exemplificando, ao realizar
credor e devedor, com vistas à determinada prestação. Iremos a venda de produtos industrializados, o contribuinte deve
nos ocupar dessa derradeira espécie, tomando a relação jurí- emitir nota fiscal, em que figuram as informações imprescin-
dica como o nexo abstrato mediante o qual uma pessoa, cha- díveis à identificação do evento. Além disso, cabe-lhe escriturar
mada de sujeito ativo, tem o direito subjetivo de exigir uma esses elementos informativos no livro próprio, oferecer decla-
prestação, enquanto outra, designada de sujeito passivo, está rações e preencher documentos relativos ao acontecimento a
encarregada de cumpri-la. que deu ensejo. Esse feixe de notícias indicativas, postas na
No âmbito tributário, encontramos dois tipos de relações: linguagem jurídica competente, consubstanciará o alicerce
(i) as de substância patrimonial e (ii) os vínculos que fazem comunicativo sobre o qual será produzida a norma tributária
irromper deveres instrumentais. A primeira dessas espécies é individual e concreta.
conhecida por "obrigação tributária", tendo como objeto da Nada obstante, cumpre advertir que a formação desse
2
prestação uma quantia em dinheiro, nos termos do artigo 3 , tecido linguístico, por mais relevante que possa ser, circuns-
do Código Tributário Nacional. Soltas ou gravitando em seu crevendo, com minúcias, as ocorrências tipificadas na lei tri-
derredor está a segunda modalidade, representada por múlti- butária, ainda não é suficiente para estabelecer juridicamente
plas relações que prescrevem comportamentos outros, positi- o fato. Trata-se de relato em linguagem competente, não há
vos ou negativos, consistentes num fazer ou não-fazer, os quais dúvida, mas ainda não credenciada àquele fim específico. É
estão pré-ordenados a tornar possível a apuração, o conheci- indispensável a edição da norma individual e concreta, no
mento, o controle e a arrecadação dos valores devidos a título antecedente da qual aparecerá a configuração do fato jurídico
de tributo. tributário e, no consequente, a respectiva relação. Por esses
É preciso assinalar que os deveres instrumentais cum- mesmos fundamentos, o instante em que nasce a obrigação
prem papel relevante na implantação do tributo porque de sua tributária é exatamente aquele em que a norma individual e
observância depende a documentação em linguagem de tudo concreta, produzida pelo particular ou pela Administração,
que diz respeito à pretensão impositiva. Por outros torneios, o ingressa no sistema do direito positivo.
plexo de providências que as leis tributárias impõem aos su-
jeitos passivos, e que nominamos de "deveres instrumentais" 2.6.4. O fato jurídico tributário e seu efeito peculiar: instaurar
ou "deveres formais", tem como objetivo precípuo relatar em o vínculo obrigacional
linguagem os eventos do mundo social sobre os quais o direito
atua, no sentido de alterar as condutas inter-humanas para No ordenamento, a constituição do fato dá-se no antece-
atingir seus propósitos ordinatórios. Tais deveres assumem, dente de norma individual e concreta. "Fatos jurídicos" não se
por isso mesmo, uma importância decisiva para o aparecimen- confundem com os fatos do mundo social, constituídos pela
to dos fatos tributários, que, sem eles, muitas vezes não pode- linguagem de que nos servimos no dia-a- dia. Antes, são os
rão ser constituídos na forma jurídica própria. enunciados proferidos na linguagem competente do direito
positivo.
É extremamente significativa a participação dos deveres
instrumentais na composição da plataforma de dados que ofe- Com efeito, se as mutações que ocorrerem entre os obje-
recem condições à constituição do fato jurídico tributário, pois tos da experiência vierem a ser contadas em linguagem social,

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teremos os fatos, no seu sentido mais largo e abrangente. Aque- linguística, inapropriado falar-se em juridicidade do fato, não
las mutações, além de meros "eventos", assumem a condição vindo ele a integrar a realidade do direito.
de "fatos": fatos sociais. Da mesma forma, para o ponto de
vista do direito, os fatos da chamada realidade social serão
2.6.5. Crédito, débito e obrigação tributária: limites conceptuais
simples eventos, enquanto não forem constituídos em lingua-
gem jurídica própria. Para melhor esclarecer o assunto, costu- A Lei n. 5.172/66 contempla o crédito tributário no Título
mo empregar singelo exemplo envolvendo o nascimento de um III, consagrando-lhe seis capítulos. Cuidaremos aqui das Dis-
ser humano: posições gerais (Capítulo I), onde vêm firmados os conceitos
que o legislador emprega no desenvolvimento disciplinar da
a) Nasce uma criança. Isso é um evento.
matéria.
b) Os pais contam aos vizinhos, relatam os pormenores
aos amigos e escrevem aos parentes distantes para dar- "O crédito tributário decorre da obrigação principal e tem
lhes a notícia. Aquele evento, por força dessas manifesta- a mesma natureza desta."
ções de linguagem, adquiriu as proporções de um fato, de
natureza social. Eis a redação do artigo 139. O dispositivo demonstra re-
conhecer a inerência de que falamos e imprime à dualidade
c) Os pais ou responsáveis comparecem ao cartório de
crédito/obrigação um tom explicativo que pode até despertar
registro civil e prestam declarações. O oficial do cartório
alguma dúvida, pois, se o crédito decorre da obrigação, é pos-
expede uma norma jurídica cujo antecedente é o fato do
sível supor que haja obrigação sem crédito, o que a Teoria
nascimento e o consequente é a prescrição de relações Geral do Direito não concebe. Seja como for, a segunda afir-
jurídicas em que o recém-nascido aparece como titular
mação do enunciado prescritivo "e tem a mesma natureza des-
dos direitos subjetivos fundamentais. Tem-se, nesse mo-
ta" ratifica a identidade essencial, conduzindo à ilação de que
mento, a constituição do fato jurídico.
devem ser considerados numa relação de todo (obrigação) para
Sucede dessa maneira porque o direito posto não se sa- parte (crédito).
tisfaz com a linguagem ordinária, que utilizamos em nossas O preceito não merece, em si, uma crítica mais acesa, se
comunicações corriqueiras. Exige forma especial, fazendo bem que nele já se note a inclinação reprovável de separar-se
adicionar declarações perante autoridades determinadas, re- a obrigação do crédito, cristalizada em vários preceptivos que,
querendo a presença de testemunhas e outros requisitos mais, a seu tempo, iremos examinando.
conforme o caso. A linguagem do direito positivo incide sobre O artigo 140 introduz a idéia, correta a nosso ver, de que
a linguagem da realidade social para, só então, produzir a lin- as mutações porventura experimentadas pelo crédito tribu-
guagem da facticidade jurídica.
tário, do seu nascimento à extinção, não afetam o vínculo que
Por todo o exposto, concluímos consistir o "fato jurídico" lhe deu origem. E, de fato, as circunstâncias modificadoras
no enunciado linguístico denotativo, protocolar, topicamente do crédito, no que toca à sua extensão, a seus efeitos, ou às
colocado no antecedente de norma individual e concreta, emi- garantias e privilégios a ele atribuídos, não chegam a abalar o
tida num determinado momento do processo de positivação laço obrigacional. Há um limite, contudo, que não poderia ser
do direito. Relatado o evento por qualquer outra modalidade ultrapassado: a exclusão de sua exigibilidade, que equivale,
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ontologicamente, à extinção. Pecou nisso a proposição norma- Disso infere-se que débito é o dever jurídico que o sujeito
tiva que comentamos, porque a exclusão do crédito implica passivo tem de cumprir uma prestação, relativamente a um
mutilar a obrigação tributária num ponto fundamental à sua objeto. Surge, portanto, a questão: na esfera tributária, que
existência como figura jurídica. De que modo imaginaríamos objeto seria esse? Na acepção estrita, tributo; na ampla, tribu-
um liame em que o sujeito passivo é cometido do dever jurídi- to e penalidades pecuniárias.
co de cumprir a prestação, mas o sujeito ativo não detém a ti- O legislador do Código Tributário Nacional optou pela
tularidade do direito subjetivo de postular aquele mesmo acepção mais ampla. É o que se depreende da intelecção do
comportamento? E a bilateralidade ingênita à relação jurídica artigo 113 e parágrafos. Esclarecendo os termos empregados
obrigacional, que é, antes de tudo, um vínculo entre sujeitos nesse dispositivo, afirma José Souto Maior Borges 172 que:
- o pretensor e o devedor?
Excedeu-se a autoridade legislativa ao consignar que a "na regência do Código Tributário Nacional a obrigação
tributária é principal ou acessória (artigo 113, caput) e a
exclusão da exigibilidade do crédito não mexe com a estrutura
obrigação principal tem por objeto o pagamento do tributo
da obrigação. Mexe a ponto de desarmá-la, de destruí-la. Ex- 2
ou de penalidade pecuniária (artigo 113, § 1 ). Assim sendo,
cluir o crédito quer dizer excluir o débito, com existências si- a obrigação tributária não é um conceito co-extensivo ao
multâneas, numa correlação antagônica. E modificação de tal de tributo, precisamente porque, transbordando-o, envolve
vulto extingue a obrigação tributária. também sanção específica de ato ilícito - a penalidade pe-
cuniária".
Percebe-se, pois, que no texto do Código Tributário Na-
cional, encontramos diversos problemas inerentes aos vocábu-
Esse é o entendimento que se constrói também a partir
los e expressões empregadas. Postulados os comentários refe-
do artigo 121 do CTN, segundo o qual "sujeito passivo da obri-
rentes ao crédito, interessa-nos, no momento, o conteúdo se-
gação principal é a pessoa obrigada ao pagamento de tributo
mântico empregado por esse Diploma legislativo ao referir-se
ou de penalidade pecuniária", bem como de vários outros dis-
ao "débito tributário".
positivos espalhados por aquele Diploma.
Duas são as acepções em que pode ser utilizado: uma Registre-se que manifestamos nossa total discordância
estrita, referindo-se ao dever jurídico de pagar tributo; outra
com relação ao conteúdo semântico empregado no Código
ampla, referindo-se à unidade composta pela obrigação de
Tributário Nacional. Optamos pela acepção estrita de obri-
pagar o tributo e às penalidades pecuniárias.
gação tributária e, consequentemente, de crédito e débito
A definição do conceito de "débito" decorre da "relação tributários m . Entretanto, se nesta oportunidade estamos
jurídica". Esta consiste no nexo abstrato mediante o qual uma analisando o sentido atribuído pelo direito positivo em vigor
pessoa, chamada de "sujeito ativo", tem o direito subjetivo de ao vocábulo "débito", não podemos simplesmente ignorar
exigir uma prestação, enquanto outra, designada de "sujeito suas prescrições definitórias relativas aos termos "obriga-
passivo", está encarregada de cumpri-la. Identificam-se, aí, os ção" e "crédito".
elementos componentes da relação jurídica, quais sejam: su-
jeito ativo, sujeito passivo, objeto, direito subjetivo de que é
titular o sujeito pretensor (crédito) e dever jurídico cometido 172.Lançamento tributário, 2a ed, São Paulo, Malheiros, 1999, p. 73.
ao sujeito passivo (débito). 173.Curso de direito tributário, 19a ed., São Paulo, Saraiva, 2007, pp. 314-316.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

Assim, crédito tributário corresponde, na terminologia do algo que está fora dele. Essa apreensão intelectual, que Goffre-
CTN, ao direito subjetivo decorrente da obrigação principal, do Telles Jr. trata como o renascimento do objeto conhecido, em
sendo o débito tributário, o dever jurídico decorrente daquela novas condições de existência, dentro do sujeito conhecedor,
obrigação. Consequentemente, como a obrigação principal, vai apresentar-se como se fora a transferência de algumas
segundo essa legislação, tem por objeto o pagamento de tribu- propriedades do objeto para o sujeito pensante.
to ou penalidade pecuniária, este é também o conteúdo do
débito tributário.
2.7.1. Surgimento do crédito tributário
2.7. CRÉDITO TRIBUTÁRIO E LANÇAMENTO Tomamos o crédito tributário em sua acepção estrita,
vale dizer, como o direito subjetivo do sujeito ativo, ao qual
Ninguém ingressa na intimidade do lançamento sem do- se contrapõe o débito tributário, entendido como o dever
minar uma porção significativa da Teoria Geral do Direito, jurídico do sujeito passivo. Como elemento indissociável da
como também não se concebe o estudo da matéria sem fortes obrigação tributária, o crédito de que falamos surge no mun-
e consistentes tomadas de posição nos domínios do Direito do jurídico no exato instante em que se opera o fenômeno da
Administrativo. incidência, com a aplicação da regra-matriz do tributo. Isso
Pensar no lançamento e no feixe de poderes de que dispõe porque, como já assinalei linhas acima, antes do relato em
o Estado-administração para realizá-lo, é pensar no problema linguagem competente, com emissão de norma individual e
da aplicação do direito ao caso concreto, equivale a dizer, co- concreta, não há falar-se em fato jurídico tributário e na res-
gitar da incidência jurídica e de todas as vicissitudes que lhe pectiva obrigação.
são inerentes. É considerar o instante mesmo em que a norma Agora, é importante dizer que não se dará a incidência se
jurídica, por virtude de uma ocorrência factual, fere decisiva- não houver um ser humano fazendo a subsunção e promoven-
mente a conduta intersubjetiva, para regrá-la como obrigatória, do a implicação que o preceito normativo determina. As normas
proibida ou permitida, orientando-a, desse modo, em direção não incidem por força própria. Numa visão antropocêntrica,
aos valores que a sociedade pretende ver objetivados. Trata-se elas requerem o homem, como elemento intercalar, movimen-
de um fato plurilateral, que reclama incisivo corte metodoló- tando as estruturas do direito, extraindo de normas gerais e
gico, para que se torne possível o aprofundamento cognosciti- abstratas outras regras, gerais e abstratas, gerais e concretas,
vo. E conhecer é reduzir complexidades, estruturando-as. É individuais e abstratas, ou individuais e concretas.
promover drástica e radical seleção no quadro da multiplici-
Desse modo, entendo que o crédito tributário só nasce
dade interminável de aspectos que envolvem o factum no
com sua formalização, que é o ato de aplicação da regra-ma-
plano do real-social, para recolher apenas alguns deles, que se
triz de incidência. Formalizar o crédito significa verter em
sotoponham ao critério eleito. Conhecer é aproximar-se o su-
linguagem jurídica competente o fato e a respectiva relação
jeito do objeto, preparado com instrumental eficiente, não só
tributária, objetivando o sujeito ativo, o sujeito passivo e o
para enfrentar as dificuldades correspondentes ao processo de objeto da prestação, no bojo de norma individual e concreta.
aproximação, mas para imprimir-lhe o rendimento final que se Essa é a configuração linguística hábil para constituir fatos e
expressa na captação dos conteúdos significativos da matéria relações jurídicas, sendo o veículo apropriado à sua introdu-
observada, trazendo para a consciência do sujeito cognoscente ção no ordenamento.
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

Cumpre assinalar que a formalização e consequente cons- c) Forma: é a organização de linguagem que a lei entendeu
tituição do crédito tributário podem ser feitas tanto pela auto- adequada para o tributo, variante, também, caso a caso.
ridade administrativa, por meio do lançamento (artigo 142 do d) Conteúdo ou objeto: é a norma individual e concreta
CTN), quanto pelo próprio contribuinte, em cumprimento a nor- inserida no sistema pelo ato de lançamento.
mas que prescrevem deveres instrumentais (art. 150 do CTN).
e) Finalidade: é o objetivo colimado pelo expediente, qual
Cabe à autoridade administrativa ou ao contribuinte,
seja, o de tornar juridicamente possível o exercício do
conforme o caso, aplicar a norma geral e abstrata, produzindo
direito subjetivo à prestação tributária.
norma individual e concreta, nela especificando os elementos
do fato e da obrigação tributária, com o que fará surgir o cor-
Postulando configuração distinta, Celso Antônio Ban-
respondente crédito fiscal.
deira de Mellol" registra, além do conteúdo e forma do ato
administrativo, seis pressupostos que permitem examinar sua
2.7.2. Noções preliminares do lançamento tributário regularidade:

Lançamento tributário é o ato jurídico administrativo, da a) pressuposto objetivo: a razão de ser, o motivo que justi-
categoria dos simples, constitutivos e vinculados, mediante o fica a celebração do ato;
qual se insere na ordem jurídica brasileira uma norma indivi-
b)pressuposto subjetivo: o agente competente para expedi-lo;
dual e concreta, que tem como antecedente o fato jurídico
tributário e, como consequente, a formalização do vínculo c) pressuposto teleológico: a finalidade que o ato procura
obrigacional, pela individualização dos sujeitos ativo e passivo, alcançar ou o bem jurídico pretendido pelo Estado;
a determinação do objeto da prestação, formado pela base de
d) pressuposto procedimental: conjunto de atos organica-
cálculo e correspondente alíquota, bem como pelo estabeleci-
mente previstos para que possa surgir o ato final;
mento dos termos espaço-temporais em que o crédito há de
ser exigido. e) pressuposto causal: a causa, como correlação lógica
entre o motivo e o conteúdo, em função da finalidade do
A definição do conceito de lançamento, tal qual expus,
preenche inteiramente os elementos estruturais do ato jurídi- ato; e
co administrativo, segundo a teoria tradicional. São eles: f) pressuposto ormalistico: o modo específico estabelecido
para sua exteriorização ou as singularidades formais de
a) Motivo ou pressuposto: é a realização do "evento", do que o ato deve estar revestido.
qual tem notícia o agente da Administração. Não é ainda
o "fato jurídico tributário" que vai surgir na forma de um Trazendo para o campo das relações tributárias os
enunciado linguístico, integrado no conteúdo do ato. É ensinamentos do Direito Administrativo, podemos identi-
aquele acontecimento do mundo que feriu a sensibilidade ficar os seguintes pressupostos do ato administrativo de
de um sujeito de direito e está à espera da linguagem lançamento:
própria que lhe dê foros de objetividade.
b)Agente competente: é o funcionário que a lei indicar para
o exercício de tal função, dependendo de cada espécie 174. Elementos de direito administrativo, São Paulo, Revista dos Tribunais,
legislada. 1980, p. 42.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

a) pressuposto objetivo: a ocorrência do evento, a ser des- que compõem o chamado procedimento administrativo. Como
crito no suposto da regra matriz; formalização do suporte fáctico e do vínculo jurídico-tributário
surgido por força de sua incidência, automática e infalível no
b) pressuposto subjetivo: a autoridade lançadora cuja com-
petência está claramente definida em lei; dizer de Becker, o lançamento tributário é documento funda-
mental pois, sem ele, o Estado-administração não tem como
c) pressuposto teleológico: tornar possível ao Estado exer- exercitar o direito subjetivo de que se acha investido. Daí os
citar seu direito subjetivo à percepção do tributo, median- cuidados que o ordenamento prevê para sua edição, estabele-
te a formalização da obrigação tributária; cendo limites, criando proibições e canalizando a atividade dos
d) pressuposto procedimental: são os chamados "atos pre- órgãos fiscalizadores, de tal modo que os contribuintes se sin-
paratórios", cometidos ao Poder Público e tidos como tam protegidos contra abusos e possíveis excessos que este tipo
necessários à lavratura do lançamento; de atividade normalmente suscita.

e) pressuposto causal: nexo lógico entre o suceder do even-


to tributário (motivo), a atribuição desse evento a certa 2.7.3. Significado da palavra "lançamento" e a constituição
pessoa, bem como a mensuração do acontecimento típico do crédito pelo sujeito passivo
(conteúdo), tudo em função da finalidade, qual seja, o
exercício possível do direito de o Estado exigir a prestação A consciência de que a constituição do crédito tributário
pecuniária que lhe é devida; é uma construção de linguagem, produzida pelo agente com-
petente consoante os padrões e o estilo que a lei rigorosamen-
f) pressuposto formalistico: está devidamente esclarecido te estipula, por estranho que possa parecer, é uma conquista
nas legislações dos diversos tributos, cada uma com suas
relativamente recente, na história da Dogmática do direito
particularidades, variáveis de acordo com a espécie da
tributário. Oscilando entre as concepções de procedimento e
exação.
de ato, envolvida no problema semântico da ambiguidade
Não preenchido qualquer desses pressupostos, o lança- "processo/produto", a doutrina deixou passar, por período
mento tributário será irregular, maculado por vícios que impe- maior que o necessário, a percepção de que os fatos jurídicos
dem sua subsistência. e, entre eles, o do lançamento tributário, eram formações lin-
guísticas, como tais devendo ser pesquisadas.
De fato, o estudo do lançamento, enquanto ato jurídico
administrativo, trouxe novos rumos à análise do instituto, con- No fundo, empreendido o procedimento e celebrado o ato,
substanciando-se em poderoso instrumento para penetrar-lhe uma norma individual e concreta é posta na ordem jurídica,
a intimidade e desvendar-lhe segredos, ao mesmo tempo em como resultado do processo de positivação do direito, em que
que abriu caminho a uma análise mais aprofundada, rendendo da regra-matriz de incidência, conjunto aberto a infinitas pos-
ensejo à formação de um feixe de proposições descritivas, com sibilidades factuais, o editor do ato chega a uma classe de um
pretensão veritativa, a que chamamos de "teoria". elemento só, em rigoroso esquema de determinação. Eis o ato
de lançamento, como veículo introdutor (regra geral e concreta),
Contudo, a consideração do lançamento, como ato jurídi-
inserindo a norma introduzida (regra individual e concreta).
co, reclama meditação apurada sobre os expedientes que o
antecedem, além de exigir controle rígido do teor de sua lega- Acontece que nas ordens positivas das sociedades atuais,
lidade, o que se obtém mediante a sucessão de atos e termos o lançamento, enquanto ato jurídico-administrativo que aplica

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

a regra-matriz de incidência a uma situação concreta do mun- Eis que o importante é observar a ambiguidade presente
do circunstante, passou a existir em quantidade cada vez mais na palavra "lançamento" que padece do problema semântico
reduzida. O tamanho tendencialmente estável dos aparatos do tipo "processo/produto", como tantas outras nos discursos
administrativos, em proporção ao crescimento acentuado do prescritivo e descritivo do direito. É lançamento o processo de
universo dos sujeitos passivos, vem determinando que as le- determinação, pelo sujeito passivo, com apuração da dívida
gislações atribuam aos contribuintes a "competência" para tributária, como é lançamento, também, a norma individual e
expedir o ato de linguagem responsável pela introdução da concreta, posta no sistema com a expedição do "ato de lança-
norma individual e concreta no sistema do direito positivo. mento". Como norma individual e concreta, é construída se-
Desse modo, crescem os deveres instrumentais ou formais gundo o modelo da norma geral e abstrata, na dinâmica do
cometidos ao devedor do tributo, aumentando, correlativamen- processo de positivação do direito, que atinge o plano das con-
te, o dever de vigilância do Poder Público. dutas intersubjetivas, regulando-as pelo emprego dos três
modais deônticos: permitido (P), obrigatório (0) e proibido (V).
Mas, o lançamento mesmo, no seu particularíssimo modo
Por si só, a norma geral e abstrata não consegue ferir, decisi-
de ser e de existir, como expediente de constituição originária
vamente, os comportamentos interpessoais, reivindicando sua
do crédito do tributo, comparece, cada vez menos, nas situações
projeção mediante a individualidade e a concreção de outra
efetivas da experiência jurídico-tributária. No modelo atual,
regra. Torna-se preciso, portanto, ato administrativo (lança-
seu papel tende a concentrar-se nas circunstâncias em que o
mento) ou expediente de iniciativa do particular (autolança-
Fisco exerce competências controladoras da atividade do poder
mento) para imitir no sistema do direito posto a norma indivi-
privado, deparando-se com eventos que denotem a possibili-
dual e concreta que tipificará o evento tributário, convertendo-
dade de direitos subjetivos da Fazenda Pública. Nesses casos,
o em fato jurídico, ao mesmo tempo em que firmará em lingua-
o ato de constituição do crédito é produzido com o objetivo de
gem competente a relação jurídica por ele irradiada.
desconstituir aquel'outro de iniciativa do sujeito passivo, no
contexto, é claro, do processo administrativo tributário. O Os eventos da vida social vão se encaixando, cada um a
quadro está amplamente generalizado nos países de cultura seu modo nos modelos da regra-matriz de incidência, toda vez
ocidental, constituindo tema de constantes reivindicações. que o agente público ou o particular lograrem produzir a lin-
Penso, contudo, que a marcha é inexorável. Não há como in- guagem específica, prevista pelo ordenamento.
verter a situação: os sujeitos passivos verão aumentar, grada-
tiva, mas substancialmente, sua participação na determinação 2.7.4. Lançamento: norma, procedimento e ato
dos créditos tributários. Seja como for, e ainda que o ato admi-
nistrativo venha a desempenhar função insignificante, em A interpretação é inesgotável, o que importa reconhecer
termos quantitativos, na multiplicidade dos procedimentos de que os processos de geração de sentido continuam, incessan-
gestão dos órgãos públicos, o certo é que as teorias sobre o temente, acompanhando a obra ao longo de sua existência. Os
lançamento mantêm-se intactas, prontas para serem aplicadas fatores pragmáticos que interferem na sequência discursiva,
no estudo de atos dos particulares que cumpram idêntico ob- todavia, estarão sempre reclamando alterações do texto, de tal
jetivo, qual seja, apurar em termos determinativos os conteúdos sorte que convém ao autor, de tempos em tempos, rever os
dos fatos e das obrigações tributárias previstas na regra-matriz conteúdos de seu pensamento, objetivados em linguagem, para
de incidência tributária. atualizar o trabalho.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

Foi nessa incessante busca epistemológica de lapidação desenvolvida na conformidade daquele preceito, como o.docu-
dos conceitos que percebi ficar a compreensão da figura do mento que a atesta, por eles assinado, com a ciência do desti-
lançamento mais nítida quando refletimos sobre a convergên- natário. A prevalência de qualquer das três acepções depen-
cia das palavras "norma", "procedimento" e "ato", tomadas derá do interesse protocolar de quem se ocupe do assunto. Uma
como aspectos semânticos do mesmo objeto. Importa dizer, coisa, porém, deve ficar bem clara: não pode haver ato de lan-
se nos detivermos na concepção de que o ato é, sempre, o çamento sem que o procedimento tenha sido implementado.
resultado de um procedimento e que tanto ato quanto proce- Da mesma forma, não haverá ato nem procedimento sem que
dimento hão de estar, invariavelmente, previstos em normas uma regra do direito positivo estabeleça os termos das respec-
do direito posto, tornar-se-á intuitivo concluir que norma, tivas configurações.
procedimento e ato são momentos significativos de uma e
Sobre "ato", utilizado neste texto como sinônimo de
somente uma realidade. Aliás, como soe acontecer, a constru-
"ação", algumas ponderações se tornam oportunas. Vemo-lo
ção jurídica não destoa das situações comuns da existência
como a significação de um movimento ou de um plexo deles,
de que participamos.
mas enquanto unidade de sentido que os tem por referente. O
Pensemos num bolo cuidadosamente preparado para ser movimento é, digamos assim, o suporte físico da significação.
servido como sobremesa. Há uma receita, formulada por es- Gregorio Robles Morchón serve-se do exemplo, já conhecido,
crito ou passada de pessoas para pessoas pelos múltiplos canais de alguém que levanta o braço. Como interpretar esse gesto
por onde flui a cultura. Eis aí a norma, no caso, não positivada que pressupõe comandos cerebrais, mobilização de ossos,
pelo direito, mas fixando um conjunto de providências, como músculos e nervos, sendo, portanto, algo complexo? Será que
a previsão de quantidades de substâncias, misturadas segundo significa chamar um táxi ou saudar alguém que passa? Mas,
certas proporções e maneiras específicas, e obedecendo a uma pode ser, também, um aceno de despedida. De que modo de-
ordem sequencial, tudo realizado em determinadas condições cidir? A despeito de tratar-se do mesmo fenômeno psicofísico,
de temperatura e pressão, procedimento que há de ser percor- cada opção representa um ato diferente, pois os sentidos são
rido para que, encerrado o processo, apareça, como resultado, diversos.
o produto final, no nosso exemplo, o bolo.
E o filósofo espanhol acrescenta que sem movimentos
Se transpusermos o raciocínio para a região das entidades inexiste ação. Entretanto, "movimentos" na sua dimensão
jurídicas, direcionando-o ao campo que nos interessa, podemos ampla: exteriores ou interiores. O puro ato de pensamento
aludir ao "lançamento", concebido como norma, como proce- constitui movimento, contudo de caráter interno, porque não
dimento ou como ato. Norma, no singular, para reduzir as se manifesta exteriormente. Lembremo-nos de que os atos
complexidades de referência aos vários dispositivos que regu- meramente internos não têm relevância para o direito, todavia
lam o desdobramento procedimental para a produção do ato sim para a moral ou para a religião. Do ato puro de pensamen-
(i); procedimento, como a sucessão de atos praticados pela to só tem consciência o sujeito pensante, o que também sucede
autoridade competente, na forma da lei (ii); e ato, como o re- com outros tipos de atos internos, como desejar, fantasiar, re-
sultado da atividade desenvolvida no curso do procedimento cordar, sentir, perceber, imaginar, ter a intenção, etc. Ao dizer
(iii). Isto significa afirmar que são semanticamente válidos os que os atos internos não ingressam na esfera de preocupação
três ângulos de análise. Tanto será "lançamento" a norma do do direito, saliento que os eventos são objetos de percepção,
artigo 142 do CTN como a atividade dos agentes administrativos, permanecendo no âmbito da subjetividade de cada qual, até
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

que, mediante a linguagem, venham a ser transmitidos para da noção de procedimento, a tal ponto que, se não detectarmos
terceiros, no contexto social. a presença do fator temporal, intrometido entre os atos, esta-
remos diante de ações simultâneas destituídas de sentido en-
Por outro lado, continua aquele autor, há também atos
quanto categoria definida de atuosidade.
que são meramente externos, sem abrigar elementos internos,
como acontece com os atos reflexos, ou aqueles outros que uma Intercalo, aqui, uma observação relevante. É sabido que
pessoa realiza dormindo ou em estado de hipnose, ou ainda o ato somente pode realizar-se em precisas condições de espa-
em todas aquelas situações em que o sujeito "não é dono de ço e de tempo. O que pretendo significar, entretanto, é que no
175
seus atos" . caso do procedimento, além do desdobrar-se no tempo, que é
algo próprio desse tipo de atividade, o fluxo temporal se inter-
Agora, "procedimento" é termo com outras projeções
põe na sucessão organizada das ações praticadas, o que não
semânticas, para além daquela de. "lançamento tributário".
ocorre com os atos. Há o tempo interno, digamos assim, e o
Aproxima-se de "atividade", que supõe pluralidade de atos,
tempo externo, que marca a duração do procedimento, vale
com habitualidade ou sem habitualidade, organizados no modo dizer, seu início e seu término, que se dá com o aparecimento
de conjuntos ou mediante ações desconexas, que se repetem de qualquer um dos resultados previstos. O ato, por seu turno,
irrefletidamente, escapando de nossas possibilidades de cap- não manifesta o tempo interno, somente o externo.
tação mental. Essa movimentação, que chamaremos de "mera
atividade", não interessa para a demarcação semiológica da Quanto às normas, são enunciados de teor prescritivo que
figura procedimental, pois o procedimento é sempre desenvol- se projetam sobre a região material das condutas intersubjeti-
vido e caminha na direção de um objetivo adredemente esti- vas, para discipliná-las, implementando os valores que a socie-
pulado. Não tem, em si mesmo, sentido unitário, como o ato, dade pretende ver realizados e, com isso, possibilitando o
contudo se pré-ordena para obtê-lo. Isso não quer dizer que convívio social. As normas qualificam pessoas, situações e
coisas, mas, fique bem estabelecido, com o objetivo precípuo
não se lhe possa atribuir nome (procedimento de adoção, de
de regular os comportamentos interpessoais. Daí não pode
licitação, de "lançamento"). Também não se apresenta como
dizer-se, em linguagem científica, que as normas incidam sobre
mero punhado de ações em desnexo, sem vínculos associati-
objetos do mundo que circunda o ser humano. É improprieda-
vos que possam denunciar seus fins. Pelo contrário, ali onde
de, e grave, o asseverar que há normas que incidem sobre bens
houver procedimento haverá sucessão organizada de ações,
móveis ou imóveis, fungíveis ou infungíveis. Mesmo sobre
praticadas sequencialmente, com o escopo de atingir deter-
pessoas isoladamente consideradas. A regra que dá o direito
minado resultado, de tal modo que é possível promover a
ao nome, por exemplo, não percute sobre o indivíduo da co-
decomposição analítica do todo, tendo em vista o exame por-
munidade social, mas qualifica-o dessa maneira para que
menorizado de ato específico que, por qualquer razão, venha
possa ela ingressar em relações jurídicas com os demais par-
a nos interessar. ticipantes da coletividade. Adicione-se a essas notas a circuns-
Outro elemento importante para a compreensão da ativi- tância de que todo o espaço social está coberto por normas
dade procedimental é o tempo. A cronologia faz parte integrante jurídicas, de tal sorte que, se algo refugir a esse domínio cer-
tamente não poderá ser levado em conta como dado jurídico.
Dito de maneira mais lacônica e objetiva, no direito, toda a vida
175. Gregorio Robles Morchón, Teoría del derecho: fundamentos de teoria social, excluídas as manifestações meramente subjetivas, está
comunicacional del derecho, Madrid, Civitas, 1998. contida na projeção semântica do sistema de normas.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

É com esse tom que devemos recolher os significados das da conduta dos administrados. Nesses tributos, o lançamento,
ações inter-humanas para lidar com o "lançamento tributário". quando existe, aparece como acidente, na hipótese da Admi-
Há unidades normativas que o mencionam, instituem o regime nistração, no exercício da sua vigilância, surpreender alguma
procedimental para sua produção e o contemplam como ato anomalia na constituição do crédito tributário; não é por outro
jurídico-administrativo com funções relevantíssimas para que motivo que, ao formalizarem as exigências tributárias alusivas
o Estado-administração realize a missão constitucional que lhe a essas exações, vêm elas acompanhadas de um ato de aplica-
foi atribuída. ção de penalidade, ambos encerrados num documento fiscal
denominado "auto de infração".
Tratar o "lançamento" como norma, como procedimento
ou como ato passa a ser, então, singela decisão daquele que o Sob a epígrafe "auto de infração", deparamo-nos muitas
examinará, valendo a asserção para o jurista prático e para o vezes com dois atos administrativos, ambos introdutores de
jurista teórico, tanto faz. Aquilo que não se justifica, sob o norma individual e concreta no ordenamento positivo: um, de
ponto de vista da Epistemologia do Direito, é o caráter emula- lançamento, produzindo regra cujo antecedente é fato lícito e
tivo que se difundiu pela doutrina, com a disputa entre a pri- o consequente, uma relação jurídica de tributo; outro, o ato de
mazia das três possibilidades cognoscitivas. aplicação da penalidade, veiculando norma que tem, no supos-
to, a descrição de um delito e, no consequente, a instituição de
2.7.5. Auto de infração e lançamento tributário liame jurídico sancionatório, pela circunstância de o sujeito
passivo não ter recolhido, em tempo hábil, a quantia pretendi-
Na esfera do direito tributário, quando se fala em expe- da pela Fazenda ou pela não-observância de dever instrumen-
dição de norma jurídica individual e concreta, vem logo à tal. Dá-se a conjunção, num único instrumento material, suge-
mente a atividade de um órgão da Administração. Mas não é rindo até possibilidades híbridas. Mera aparência. Não deixam
assim no direito positivo brasileiro. Basta soabrirmos os tex- de ser duas normas jurídicas distintas postas por documentos
tos do ordenamento, no que concerne aos tributos, para ve- que, por motivos de comodidade administrativa, estão reunidos
rificar esta realidade empírica indiscutível: o subsistema no mesmo suporte físico.
prescritivo das regras tributárias prevê a aplicação das normas Operando-se, no suporte físico do auto de infração, ver-
gerais e abstratas, em algumas hipóteses, pelo Poder Público, dadeiro lançamento tributário, deve este obedecer aos pressu-
e, em outras, outorga esse exercício ao próprio sujeito passi- postos de validade, que, retomando subitem anterior, serão: (i)
vo, de quem se espera, também, o cumprimento da prestação pressuposto objetivo: a ocorrência do evento, a ser descrito no
pecuniária. suposto da regra matriz; (ii) pressuposto subjetivo: a autorida-
A maior parte dos tributos hoje existentes prescindem do de lançadora cuja competência está claramente definida em
lançamento tributário, dando-se a incidência mediante ato do lei; (iii) pressuposto teleológico: tornar possível ao Estado
particular. Nesses tributos, ocorridos os eventos previstos em exercitar seu direito subjetivo à percepção do tributo, median-
lei, devem os respectivos sujeitos passivos emitir a norma indi- te a formalização da obrigação tributária; (iv) pressuposto
vidual e concreta, constituindo o crédito tributário e, em segui- procedimental: são os chamados "atos preparatórios", come-
da, proceder ao pagamento, extinguindo o liame obrigacional, tidos ao Poder Público e tidos como necessários à lavratura do
em nada interferindo o Poder Público que, ao menos em tese, lançamento; (v) pressuposto causal: nexo lógico que há de
permanece vigilante, numa posição meramente controladora existir entre o suceder do evento tributário (motivo), a atribuição

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

desse evento a certa pessoa, bem como a mensuração do acon- em que o lançamento regularmente notificado ao sujeito pas-
tecimento típico (conteúdo), tudo em função da finalidade, qual sivo pode ser alterado. São elas, segundo o artigo 145 do Códi-
seja, o exercício possível do direito de o Estado exigir a pres- go Tributário Nacional: (i) impugnação do sujeito passivo; (ii)
tação pecuniária que lhe é devida; e (vi) pressuposto formalís- recurso de ofício; e (iii) iniciativa de ofício da autoridade admi-
tico: está devidamente esclarecido nas legislações dos diversos nistrativa, nos casos previstos no artigo 149. Segundo este
tributos, cada uma com suas particularidades, variáveis de dispositivo, por sua vez, o lançamento pode ser efetuado e
acordo com a espécie da exação. revisto de ofício, em suma, quando verificada fraude, erro de
fato, omissão por parte do sujeito passivo ou quando surgir
Coalescendo os dados imprescindíveis que integram a es-
prova ou fato novo que não era conhecido pela autoridade
trutura do lançamento e ocorrendo seu ingresso no processo
fiscal. Não se verificando quaisquer dessas situações, é inad-
comunicacional do direito, mediante notificação às partes, exis-
missível o exercício de novo lançamento tributário, mais gra-
te o ato jurídico administrativo de lançamento tributário. Há, aí,
voso ao contribuinte.
relação de pertinencialidade com o sistema normativo e, por-
tanto, tem-se a validade. Outra coisa, no entanto, é testar essa Cumpre registrar, outrossim, que o artigo 146 desse Di-
validade consoante os padrões estabelecidos pela ordem em ploma legal veda a alteração do lançamento, relativo ao fato
vigor, confrontando-se o ato existente com o plexo de normas jurídico tributário passado, em virtude da modificação nos
jurídicas que o disciplinam, levando, percorridos os trâmites critérios jurídicos adotados pela autoridade administrativa.
legais, à declaração prescritiva exarada por órgão do sistema, Sobre o assunto, esclarece Mary Elbe Queiroz Maia 176 :
que certificará a validade ou invalidade do ato questionado.
"No tocante ao impedimento legal para que seja executado
Para que se declare a validade do ato de lançamento, não
novo lançamento, no caso de mudança de critério jurídico,
basta que este tenha sido celebrado mediante a conjugação é relevante se considerar que neste conceito se incluem não
de elementos tidos como substanciais. É imprescindível que só a ignorância da norma jurídica, como também o seu
seus requisitos estejam em perfeita correspondência às pres- falso conhecimento e a sua interpretação errônea, haja
crições legais. A mera conjugação existencial dos elementos, vista que a ninguém é dado desconhecer a lei, muito menos
em expediente recebido pela comunidade jurídica com a pre- o Fisco que é quem detém a obrigação legal de aplicá-la e
interpretá-la como uma das funções que lhe são inerentes
sunção de validade, já não basta para sustentar o ato que
e a mais especial."
ingressa nesse intervalo de teste. Para ser confirmado, ratifi-
cando-se aquilo que somente fora tido por presumido, há de
O erro da autoridade fiscal que justifica a alteração do ato
suportar o confronto decisivo. Caso contrário, será juridica-
de lançamento é apenas o "erro de fato"; nunca o "erro de
mente desconstituído ou modificado para atender às deter-
direito". Não obstante, ainda que nem sempre seja fácil distin-
minações que o subordinam.
guir esses dois tipos de erro, isso não nos impede de aplicar a
Além das hipóteses em que o lançamento tributário sofre discriminação nos pontos que enxergamos com clareza. En-
alterações em virtude de vícios que maculam sua validade, há quanto o "erro de fato" é um problema intranormativo, um
circunstâncias nas quais o ato administrativo pode vir a sofrer
modificações que agravam a exigência anteriormente forma-
lizada. O direito positivo, porém, visando à segurança jurídica 176. Do lançamento tributário — execução e controle, São Paulo, Dialética,
das relações que tutela, relacionou taxativamente as hipóteses 1999, p. 75.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

desajuste interno na estrutura do enunciado, o "erro de direi- pagos a título de tributo extingue-se com o decurso do prazo
to" é vício de feição internormativa, um descompasso entre a de cinco anos. Os incisos I e II informam o início da contagem
norma geral e abstrata e a individual e concreta. do referido prazo. São palavras do legislador:
Assim, constitui "erro de fato", por exemplo, a contingên-
cia de o evento ter ocorrido no território do Município "X", mas "Art. 168. O direito de pleitear a restituição extingue-se com
estar consignado como tendo acontecido no Município "Y" (erro o decurso do prazo de 5 (cinco) anos, contados:
de fato localizado no critério espacial), ou, ainda, quando a base I - nas hipóteses dos incisos I e II do art. 165, da data da
de cálculo registrada para efeito do IPTU foi o valor do imóvel extinção do crédito tributário;

vizinho (erro de fato verificado no elemento quantitativo). II - na hipótese do inciso III do art. 165, da data em que se
tornar definitiva a decisão administrativa ou passar em
"Erro de direito", por sua vez, estará configurado, exem- julgado a decisão judicial que tenha reformado, anulado,
plificativamente, quando a autoridade administrativa, em vez revogado ou rescindido a decisão condenatória."
de exigir o ITR do proprietário do imóvel rural, entende que o
sujeito passivo pode ser o arrendatário, ou quando, ao lavrar O fluxo temporal é de decadência, pois o lapso da pres-
o lançamento relativo à contribuição social incidente sobre o crição vem estabelecido no artigo 169 e seu parágrafo único,
lucro, mal interpreta a lei, elaborando seus cálculos com base sendo de dois anos a partir da decisão administrativa que de-
no faturamento da empresa, ou, ainda, quando a base de cál- negar a restituição, momento em que perece o direito à inter-
culo de certo imposto é o valor da operação, acrescido do frete, posição da correspondente ação anulatória.
mas o agente, ao lavrar o ato de lançamento, registra apenas o
Quer significar que o contribuinte terá cinco anos para
valor da operação, por assim entender a previsão legal. A dis-
exercitar o direito de pedir restituição, a partir do instante em
tinção entre ambos é sutil, mas incisiva.
que se der a extinção do crédito tributário (inciso I) ou no áti-
Pelo exposto, não pode a autoridade fiscal, fundada no mo em que se tornar definitiva a decisão administrativa ou
argumento de equívoco na sua interpretação normativa ("erro transitar em julgado a decisão judicial que tenha reformado,
de direito"), lavrar novo lançamento, com a finalidade de exigir anulado, revogado ou rescindido a decisão condenatória (inci-
o Imposto de Importação e o Imposto sobre Produtos Indus- so II). Por outro lado, denegada a restituição em boa hora re-
trializados relativamente a eventos e respectivos valores que, clamada, o contribuinte terá dois anos para deduzir sua pre-
por ocasião da emissão de norma individual e concreta e pa- tensão em juízo, com o ingresso da competente ação anulatória
gamento desses impostos, considerou não sujeitos à incidência da decisão administrativa que inaceitou o pedido. Prazo de
tributária. Ao contrário, naquele instante entendeu corretas decadência o primeiro, em que vemos desaparecer o direito à
as declarações e pagamentos efetuados, manifestando sua reivindicação na esfera administrativa; tempo de prescrição o
concordância. segundo, com o perecimento do direito à ação judicial.
Tratando-se de tributo sujeito ao denominado "lançamen-
2.7.6. Lançamento, "lançamento por homologação" e prazo to de ofício", em que, nos termos do artigo 142 do referido
decadencial para restituição do indébito Diploma, a autoridade administrativa emite a norma individu-
al e concreta constitutiva do crédito tributário, o liame obriga-
Prescreve o Código Tributário Nacional, em seu artigo 168, cional extingue-se com o pagamento (artigo 156, I, do CTN),
que o direito de pleitear a restituição dos valores indevidamente contando-se o prazo decadencial a partir desse instante.
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

Relativamente aos tributos sujeitos ao chamado "lança- Não obstante as duas direções mencionadas acima, cabe
mento por homologação", há duas orientações em torno do frisar que o entendimento mais forte e substancioso em termos
momento da extinção do crédito e que afetam diretamente o de sustentação no direito brasileiro, já pacificado pela Primei-
prazo para a restituição do indébito. Uma, no sentido de que ra Seção do Egrégio Superior Tribunal de Justiça, aponta para
a extinção dá-se na data do pagamento antecipado, sendo este a interpretação que privilegia a fórmula redacional do artigo
o marco inicial para contagem do prazo de decadência e, 156, inciso VII, da Lei n. 5.172/66 (CTN):
outra, que não bastaria o mencionado pagamento, sendo ne-
cessário, para tanto, a homologação, nos termos do art. 156, "Art. 156. Extinguem o crédito tributário:
VII, do CTN. (...)
VII — o pagamento antecipado e a homologação do lançamen-
Salta à evidência que o cerne da questão interpretativa
to nos termos do disposto no art. 150 e seus parágrafos IQ e
repousa na frase da data da extinção do crédito tributário, em- 4 4 " (grifei).
pregada no inciso I do artigo 168. Dependendo da orientação
de sentido que outorgarmos a essa frase haverá contagens
Isso quer significar que, havendo pagamento antecipado,
diversas, deslocando-se o termo final que define o momento a extinção do crédito fica diferida para o instante em que a
do fato extintivo da caducidade. E as proporções semânticas
homologação, expressa ou tácita, ocorrer. Desse marco de
dessa frase adquirem especial interesse quando se trata de
tempo, haverá de ser contado o prazo de cinco anos para que
impostos submetidos ao chamado "lançamento por homologa- se dê o fato jurídico decadencial. Dito por outros torneios, tal
ção", que pressupõe o "pagamento antecipado", sem prévio
intervalo foi tido como apropriado para que o contribuinte,
exame pela Fazenda Pública de sua adequada aderência aos tendo pago importâncias indevidas, ajuste suas contas com o
textos do direito positivo.
Fisco, obtendo de retorno os valores excedentes. E sabemos
Prescreve o artigo 150, §§ 1° e 4°, do CTN, in verbis: que esse ajuste implica remexer os elementos e registros es-
criturais, tanto do Estado-administração, que devolve, quan-
"Art. 150. O lançamento por homologação, que ocorre quan- to do sujeito passivo, que assiste ao reingresso, na sua conta-
to aos tributos cuja legislação atribua ao sujeito passivo o bilidade, aquelas quantias que saíram indevidamente de seus
dever de antecipar o pagamento sem prévio exame da au-
cofres.
toridade administrativa, opera-se pelo ato em que a referi-
da autoridade, tomando conhecimento da atividade assim Ainda que o sistema jurídico acompanhe de perto o exer-
exercida pelo obrigado, expressamente a homologa. cício dos múltiplos direitos que adjudica às pessoas, públicas
§ 1s O pagamento antecipado pelo obrigado nos termos e privadas, não pareceu qualquer demasia ao legislador esti-
deste artigo extingue o crédito, sob condição resolutória da pular uma porção de tempo que pode chegar a dez anos, le-
ulterior homologação ao lançamento.
vando-se em conta que, do factum do pagamento antecipado,
(...) tenha decorrido o nexo de cinco anos para a homologação tá-
§ 4° Se a lei não fixar prazo à homologação, será ele de cita, ponto de partida para o cômputo subsequente, de caráter
cinco anos, a contar da ocorrência do fato gerador; expira- decadencial, e que se perfaz em outros cinco anos. E creio que
do esse prazo sem que a Fazenda Pública se tenha pronun-
o legislador do Código ponderou conscientemente, sopesando
ciado, considera-se homologado o lançamento e definitiva-
mente extinto o crédito, salvo se comprovada a ocorrência a circunstância de tratar-se de valor indevido, que não poderia
de dolo, fraude ou simulação." manter-se em mãos do Poder Público, sob pena de caracterizar

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enriquecimento sem causa. Daí a justificativa para adotar-se, inicia a Fazenda Pública as diligências de gestão tributária,
com elasticidade, um período tão largo: a necessidade de tute- para receber o que de direito lhe pertence. É o lançamento que
la de direitos legítimos do sujeito passivo, devidamente reco- constitui o crédito tributário e que lhe confere foros de exigi-
nhecidos como tais pelas autoridades administrativas. bilidade, tornando-o susceptível de ser postulado, cobrado,
exigido.
2.8. SUSPENSÃO DA EXIGIBILIDADE DO CRÉDITO O direito positivo prevê situações em que o atributo da
TRIBUTÁRIO exigibilidade do crédito fica temporariamente sustado, aguar-
dando, nessas condições, sua extinção, ou retomando sua
Nasce o direito de perceber o valor da prestação tributá- marcha regular para ulteriormente extinguir-se. Elucidemos
ria no exato momento em que surge o vínculo jurídico obriga- essas hipóteses.
cional, equivale a dizer, quando se realiza aquele fato hipote-
ticamente descrito no suposto da regra-matriz de incidência.
Aparece, então, para o sujeito ativo, o direito subjetivo de pos- 2.8.1. As hipóteses do artigo 151 do CTN
tular o objeto, e, para o sujeito passivo, o dever jurídico de pres-
tá-lo. Contando de outra forma, afirmaremos que advém um O título do Capítulo III do Código Tributário Nacional é
crédito ao sujeito pretensor e um débito ao sujeito devedor. "Suspensão do Crédito Tributário", mas o art. 151, dispondo
acertadamente, refere-se à suspensão da exigibilidade do
Por exigibilidade havemos de compreender o direito que crédito. A seguir, indica seis hipóteses que teriam a virtude
o credor tem de postular, efetivamente, o objeto da obrigação, de sustá-la: a moratória (I); o depósito de seu montante inte-
e isso tão-só ocorre, como é óbvio, depois de tomadas todas as gral (II); as reclamações e os recursos nos termos das leis re-
providências necessárias à constituição da dívida, com a lavra- guladoras do processo tributário administrativo (III); a con-
tura do ato de lançamento tributário. No período que antecede cessão de medida liminar em mandado de segurança (IV); a
tal expediente, ainda não se tem o surgimento da obrigação,
concessão de medida liminar ou de tutela antecipada, em
inexistindo, consequentemente, crédito tributário, o qual nas- outras espécies de ação judicial (V); e o parcelamento (VI). A
ce com o ato do lançamento. Ocorrendo alguma das hipóteses
par disso, preceitua, no parágrafo único, que o disposto neste
previstas no art. 151 da Lei n. 5.172/66, aquilo que se opera, na
artigo não dispensa o cumprimento das obrigações acessórias
verdade, é a suspensão do teor de exigibilidade do crédito, não
dependentes da obrigação principal cujo crédito seja suspenso,
do próprio crédito que continua existindo tal qual nascera.
ou dela consequente. Trata-se de uma constante no corpo desse
Com a celebração do ato jurídico administrativo, consti- Diploma. Sempre que o legislador cuida de possíveis altera-
tuidor da pretensão, afloram os elementos básicos que tornam ções da figura obrigacional (que ele chama de obrigação tri-
possível a exigência: a) identificação do sujeito passivo; b) apu- butária principal), faz questão de salvaguardar o cumprimen-
ração da base de cálculo e da alíquota aplicável, chegando-se to dos deveres instrumentais (que ele versa como obrigações
ao quantum do tributo; e c) fixação dos termos e condições em acessórias). E a reiteração se explica, na medida em que o im-
que os valores devem ser recolhidos. Feito isso, começa o pe- plemento dos deveres instrumentais é o meio pelo qual a
ríodo de exigibilidade. A descrição concerta bem com os atri- Fazenda se certifica da real situação dos seus administrados,
butos que dissemos ter o ato jurídico administrativo do lança- ingressando na intimidade das relações jurídicas que lhe in-
mento: presunção de legitimidade e exigibilidade. Com ele, teressam fiscalizar.
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

2.8.2. Moratória e a sua disciplina jurídico-tributária Prescrições que suscitam comentários são as do art. 154
e seu parágrafo único. Dizem elas:
Moratória é a dilação do intervalo de tempo estipulado
para o implemento de uma prestação, por convenção das par- "Art. 154. Salvo disposição de lei em contrário, a moratória
tes, que podem fazê-lo tendo em vista uma execução unitária somente abrange os créditos definitivamente constituídos
ou parcelada. à data da lei ou do despacho que a conceder, ou cujo lança-
mento já tenha sido iniciado àquela data por ato regular-
Entrando em jogo o interesse público, como no campo das mente notificado ao sujeito passivo.
imposições tributárias, vem à tona o fundamental princípio da Parágrafo único. A moratória não aproveita aos casos de
indisponibilidade dos bens públicos, razão por que o assunto dolo, fraude ou simulação do sujeito passivo ou do terceiro
da moratória há de ser posto em regime de exclusiva legalida- em benefício daquele."
de. Sua concessão deve ser estabelecida em lei e pode assumir
caráter geral ou individual. O diploma pode ser expedido por A regra mantém sincronia com o princípio segundo o qual
qualquer das pessoas políticas investidas de competência tri- a exigibilidade que se suspende é atributo do lançamento e,
butária, naturalmente reportando-se aos seus gravames. Con- desse modo, o ato jurídico administrativo é pressuposto para
tudo, assegura-se à União a prerrogativa de conceder morató- sua aplicação. Pelos vocábulos créditos definitivamente consti-
ria aos tributos estaduais e municipais, desde que, simultane- tuídos devemos entender aqueles que foram objeto de lança-
amente, também a conceda com relação aos seus, isto é, aos mento eficaz, assim compreendido o ato regularmente notifi-
federais. Realizada na feição individual, especificará a autori- cado ao sujeito passivo. Como receber, então, a cláusula excep-
dade administrativa habilitada a proferir o despacho conces- cionadora inicial - salvo disposição de lei em contrário - e, de-
sivo. A norma jruídica que cria a moratória pode circunscrever mais disso, a parte conclusiva da cabeça do art. 154 - ou cujo
sua aplicabilidade a determinada região do território da pessoa lançamento já tenha sido iniciado àquela data por ato regular-
política que a expedir, ou a certa classe ou categoria de sujeitos mente notificado ao sujeito passivo? A exceção parece desmen-
passivos. Tudo isso em consonânica com o art. 152, I, a e b, e tir a premissa que tomamos. Procuremos explicá-la melhor.
II, e seu parágrafo único, do CTN. A concessão de moratória é fator ampliativo do prazo para
Dois requisitos obrigatórios haverá de conter a lei que que certa e determinada dívida venha a ser paga, de uma só
conceda moratória em caráter geral: os tributos a que se apli- vez ou em parcelas, por sujeito passivo individualizado. Requer-
ca e o prazo de duração da medida, com indicação do número se, portanto, que o sujeito pretensor tenha perfeito conheci-
de prestações e seus vencimentos. Sendo em caráter individu- mento do valor de seu crédito, do tempo estabelecido para sua
al, apontará, adicionamente, as condições necessárias para sua exigência e da individualidade da pessoa cometida do dever.
fruição pelo particular e as garantias que o administrado deve Para o direito tributário brasileiro, o ato que realiza tais espe-
oferecer. A quantidade de pagamentos e respectivas datas cificações é o lançamento. Todavia, querendo o legislador im-
poderão, se a lei assim o dispuser, ficar a cargo da autoridade primir tom de maior operatividade ao instituto da moratória,
administrativa, que os fixará de acordo com as particularidades que foi ditada, certamente, por elevadas razões de ordem pú-
circunstanciais de cada caso concreto, dentro dos limites legais. blica, permite que outros devedores, ainda que não tenham
Tais disposições formam o conteúdo do art. 153, I, II e III, a, b seus débitos constituídos no modo da lei (pelo lançamento),
e c, do CTN. possam enquadrar-se, postulando seus benefícios. Mas de que

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maneira? Apresentando à autoridade administrativa compe- "Art. 155. A concessão da moratória em caráter individual
não gera direito adquirido e será revogada de ofício, sempre
tente uma declaração em que tudo aquilo que o lançamento
que se apure que o beneficiado não satisfazia ou deixou de
contém esteja claramente discriminado. É assim que sucede satisfazer as condições ou não cumpria ou deixou de cum-
nos casos em que o procedimento, que prepara a edição do ato, prir os requisitos para a concessão do favor, cobrando-se o
se haja iniciado por expediente notificado de forma regular ao crédito acrescido de juros de mora:
sujeito passivo. Nessas condições, antecipa-se o devedor, ofe- I - com imposição da penalidade cabível, nos casos de dolo
recendo os dados integrais que seriam expressos no ato de ou simulação do beneficiado, ou de terceiro em benefício
lançamento, e predica sua inclusão para desfrutar dos prazos daquele;
mais dilargados que a lei da moratória prevê. É precisamente II - sem imposição de penalidade, nos demais casos.
a hipótese a que alude a parte final do art. 154. Esse é o único Parágrafo único. No caso do inciso I deste artigo, o tempo
caminho possível para o funcionamento do instituto. Sem ele, decorrido entre a concessão da moratória e sua revogação
seria ilógico pensar na sua aplicabilidade, a não ser em âmbito não se computa para efeito da prescrição do direito à co-
brança do crédito; no caso do inciso II deste artigo, a revo-
restrito, e cogitar de seus efeitos. E tal recurso à iniciativa do
gação só pode ocorrer antes de prescrito o referido direito."
administrado acaba adquirindo a natureza de providência
substitutiva do lançamento, para os fins da moratória. Não é
O modificar o prazo de implemento das prestações tribu-
preciso dizer que, de posse dos esclarecimentos básicos que o tárias, ampliando-o, não é ato discricionário que a autoridade
sujeito devedor oferece à apreciação do Fisco, terá este condi- administrativa celebre de acordo com critérios de conveniência
ções prontas para iniciar as verificações necessárias e, inde- ou oportunidade. Trata-se de um ato vinculado que há de ser
pendentemente de haver concedido a moratória, celebrar presidido pelos ditames da lei, quer na moratória de caráter
aquele ato administrativo. geral, quer na de caráter individual. Desse modo, certificando-
A lei instituidora da moratória pode dispor de tal forma se a Fazenda de que os antessupostos para o gozo da medida
que não seja necessário o lançamento, à data em que entrar não foram observados, que o sujeito passivo não se encontrava,
em vigor ou à do despacho que conceder a medida, e, ainda, verdadeiramente, na situação que declarou estar, é evidente
no sentido de prescindir até do início de qualquer procedimen- que deve anular o ato concessivo, passando a exigir seu crédi-
to iniciador da constituição do crédito. É o permissivo que to sem as influências que a moratória exerceria. Convém re-
gistrar que o legislador se utiliza do termo revogar, quando o
emana da ressalva inicial.
correto seria anular. O não-cumprimento dos requisitos legais,
O parágrafo único desse preceito veda o aproveitamento ou seu descumprimento, é tema de legalidade e motivo de
da moratória, nos casos de dolo, fraude ou simulação do sujei- anulação. Lembremo-nos de que revogação é o desfazimento
to passivo ou de terceira pessoa em benefício daquele. A proi- do ato por razões de conveniência ou oportunidade, e esse não
bição é categórica e corresponde a um valor moral que o siste- é o caso da cassação do ato concessivo da moratória.
ma prestigia. Não impedir a concessão, em comportamentos Por outro lado, deparando a autoridade legislativa com o
dolosos que visassem a obtê-la, significaria um tratamento ilícito, representado pela conduta dolosa do sujeito passivo,
paritário aos postulantes de boa fé, estimulando a prática de deve apená-lo na estrita observância das prescrições legais (inc.
condutas ilícitas. I). Inocorrendo infração, a exigência haverá de circunscrever-se
Vamos ao art. 155: ao valor do crédito, tão-só acrescido dos juros de mora (inc. II).

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O trato de tempo que medeia entre a concessão da mora- curso do procedimento administrativo, quer ao impugnar o
tória e a anulação do ato não se leva em conta para efeito de lançamento, quer ao interpor recurso aos órgãos superiores,
prescrição, quando acontecer a hipótese do inc. I, isto é, com- tais expedientes do sujeito passivo, por si só, já asseguram a
portamento doloso por parte do sujeito passivo ou de terceiro suspensão da exigência, não se constituindo o depósito forma
em seu benefício. Assim não fora, e o intervalo temporal viria direta de inibir o sujeito pretensor, no sentido de ingressar em
em benefício do infrator, orientação que nosso ordenamento juízo com a ação competente.
não acolhe. Regime diverso, sob esse aspecto, é o que governa Por "montante integral" o Código Tributário alude ao
a situação do inc. II, em que houve inadaptação aos dispositivos valor do tributo devido, atualizado monetariamente até a data
da lei, sem que para isso concorresse o comportamento doloso da efetivação do depósito, acrescido das penalidades pecuniá-
do sujeito passivo. O ato anulatório da concessão, nessas con- rias e dos juros de mora, quando incidentes. Em outras pala-
dições, somente será lavrado se o prazo prescricional não se vras, o montante integral corresponde à importância com a
tiver exaurido. qual o Erário se daria por satisfeito, caso o devedor se dispu-
Como escólio final, simplesmente a nota de que se es- sesse, naquele exato momento, a pagar seu débito. É por isso
queceu o legislador de incluir a figura da fraude na redação que, operando dessa maneira, nada mais haverá para ser exi-
do inc. I. É intuitivo, porém, que a omissão é suprida pela gido do sujeito passivo e, pela conversão em renda, dissolver-
análise sistemática, não sendo compreensível que as provi- se-á o vínculo obrigacional pelo cumprimento do dever e
dências sancionadoras deixassem de ser aplicadas àquele que correlativo desaparecimento do direito subjetivo de exigi-lo
a cometeu. (artigo 156, VI, do CTN). Se o depositante obtiver decisão
favorável, receberá de volta a quantia depositada com o pro-
duto dos juros e da correção monetária. Pelo contrário, julga-
2.8.3. Depósito do montante integral do crédito
da improcedente a ação, o credor terá direito ao valor do
Entre os meios jurídicos de suspensão da exigibilidade do depósito e de tudo aquilo que lhe foi acrescentado durante o
crédito está o depósito do montante integral da dívida tributá- tempo de sua vigência.
ria, consoante a disposição do artigo 151, II, do Código Tribu- Vê-se, desde logo, que o implemento do depósito cumpre
tário Nacional. E é preciso lembrar que tal depósito pode ser o papel de garantir o administrado com relação à variação do
promovido em dois momentos distintos: (i) no curso do proce- poder aquisitivo da moeda e aos riscos da mora, revelando seu
dimento administrativo; e (ii) no processo judicial. Não se perfil assecuratório e não-satisfativo do débito. Enquanto isso,
trata de iniciativa obrigatória para o sujeito passivo, assumin- o sujeito pretensor aguardará a prestação jurisdicional do Es-
do, no primeiro caso, apenas o efeito de evitar a atualização do tado, certo de que a arrecadação do tributo será realizada uma
valor monetário da dívida (correção monetária) e a incidência vez reconhecida a legitimidade de seu direito. Com o trânsito
da mora (multa e juros). No que tange ao depósito judicial, além em julgado da decisão, tornando-se consolidada a manifestação
de impedir o ajuizamento da ação de execução, por parte da da Justiça, a Fazenda Pública poderá tomar as providências
Fazenda Pública, com o que manifesta seu efeito suspensivo legais cabíveis para a satisfação de seu crédito tributário, re-
da exigibilidade, igualmente previne seja a dívida corrigida, querendo a conversão do depósito em renda.
evitando-se todos os efeitos da mora. Aliás, é somente quando
efetuado na esfera do Judiciário que o depósito vai assumir a Realizado o depósito do montante integral do débito, o
feição de causa suspensiva da exigibilidade, porquanto no contribuinte encontrará meio idôneo para acautelar-se da

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aplicação de sanções punitivas e moratórias, tais como multa coisa depositada o cuidado e diligência que costuma com o que
e juros, além da correção monetária, no pressuposto de enten- lhe pertence, bem como restituí-la, com todos os frutos e acresci-
der indevido o tributo que lhe está sendo cobrado; o Fisco, dos, quando o exija o depositante" 17 . O depositário tem obriga-
vendo contestado seu direito, ao mesmo tempo assiste à pro- ção, portanto, de devolver não apenas a coisa, mas também os
vidência do devedor, interessado em mostrar sua boa vontade rendimentos dela decorrentes.
e sua firmeza, depositando como se houvesse pagado, efetiva-
Tal determinação justifica-se pelo fato de que, conquanto
mente, aquele valor. Tudo porque fica suspensa a exigibilidade
o depósito não constitua mútuo de dinheiro, presume-se que,
do crédito, permanecendo os dois sujeitos na expectativa do
durante o tempo em que o valor estava ali depositado, foi uti-
que for judicialmente estabelecido. Nessa pequena síntese,
lizado por instituição própria, tendo em vista sua natureza
caracteriza-se a neutralidade da iniciativa prevista no artigo
fungível. Por esse motivo, ainda que o depósito não constitua
151, II, do CTN, que dista de ser algo promovido em benefício
aplicação financeira, tem praticamente os mesmos efeitos do
do credor ou do devedor da obrigação tributária. Ademais, a
empréstimo de dinheiro, cabendo ao titular o recebimento dos
importância ficará depositada em instituição de crédito, sendo frutos correspondentes, representados pela remuneração do
remunerada, nos termos da legislação própria, nas mesmas capital que permaneceu em mãos alheias.
bases da caderneta de poupança.
A conclusão supra decorre não apenas de construções
No processo judicial, o depósito, além de suspender a doutrinárias. Tem suporte em legislação específica, perante a
exigibilidade do crédito tributário, impedindo a propositura qual as remunerações dos depósitos judiciais não se constituem
da ação de execução fiscal, faz cessar a fluência dos juros e da apenas de correção monetária, havendo expressa determinação
correção monetária. Isso não significa, contudo, que o valor do emprego de índices representativos de verdadeiras taxas
depositado permanecerá o mesmo, inerte. Tal entendimento de juros.
inviabilizaria a figura do depósito, uma vez que depois de cer-
A TR (Taxa Referencial), índice utilizado pela Caixa Eco-
to tempo, dada a depreciação da moeda em virtude de situação
nômica Federal para remunerar os depósitos até a edição da Lei
econômica inflacionária, o objeto de discussão judicial (valores
n. 9.703/98, tem incontestável natureza remuneratória, sendo
depositados) pereceria. O que se verifica é o fato de, havendo
aplicada como taxa de juros, conforme reiteradamente decidido
depósito, os juros e correção monetária deixem de ser respon-
pelo Egrégio Supremo Tribunal Federal, inclusive no âmbito do
sabilidade do depositante (in casu, contribuinte), passando a controle concentrado, cujo trecho permito-me transcrever:
ser encargo do depositário (instituição bancária). Ao efetuar o
depósito, o contribuinte transfere a disponibilidade do seu "A TR não é índice de correção monetária, pois refletindo
montante para o juízo: nem o sujeito passivo nem o Fisco têm as variações do custo primário da captação dos depósitos a
acesso àqueles valores, razão pela qual o vencedor da deman- prazo fixo, não constitui índice que reflita a variação do
da fará jus, além do valor principal, aos juros remuneratórios, poder aquisitivo da moeda."
cuja produção é encargo do depositário. (ADIN 493-O/DF, Rel. Min. Moreira Alves, DJU 04.09.92,
p. 14.089)
A figura do depósito, conquanto muito empregada na
esferã tributária, tem sua origem no direito privado, sendo seu
conceito cuidadosamente traçado no Código Civil, no artigo
177. Grifos meus. Redação semelhante à do artigo 1.266 do Código Civil de
629: "O depositário é obrigado a ter na guarda e conservação da 1916.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

Com efeito, a TR, índice aplicado para remuneração dos remuneração da caderneta de poupança, nos quais, é cediço
depósitos, é taxa de juros, a qual não traduz a variação do reconhecer, estão contidos os juros remuneratórios.
poder aquisitivo da moeda, sendo inconfundível com correção A respeito da questão, já se pronunciou o Tribunal de
monetária. A primeira é um "acréscimo legal", a segunda, mera Justiça do Estado de São Paulo, em acórdão publicado na
recomposição do patrimônio. RJTJESP 124/79, Relator o preclaro Desembargador Rebouças
Além disso, a Lei n. 9.703/98 veio a estabelecer, em seu de Carvalho:
artigo 1Q, § 3 4 , I, que os depósitos judiciais de tributos e contri-
buições federais seriam "acrescidos de juros, na forma estabe- "Em primeiro lugar, há de se mencionar que desde o Pro-
vimento n. 257 do Conselho Superior da Magistratura ficou
lecida pelo § 4Q do art. 39 da Lei n. 9.250, de 26 de dezembro de
4 deliberado que os depósitos judiciais seriam feitos median-
1995, e alterações posteriores". Assim, a partir de 1 de janeiro te a abertura de contas judiciais numeradas, com juros legais
de 1996, os depósitos judiciais passaram a ser acrescidos de capitalizados, mais a correção monetária `pro rata die' (`vide'
juros equivalentes à taxa referencial do Sistema Especial de cláusula I desse Provimento)."
Liquidação e Custódia - SELIC. Mais uma vez, tem-se a fluên-
cia de juros, e não a atualização da moeda. Do exposto, não restam dúvidas: a remuneração dos de-
pósitos judiciais não se confunde com mera correção monetá-
Não bastassem as determinações legais acima referidas,
ria. Esta última representa a atualização do valor da dívida,
convém recordar que desde o Provimento 257 do Conselho
tendo em vista a desvalorização da moeda, em contextos eco-
Superior da Magistratura, ficou deliberado que os depósitos
nômicos onde atua o problema inflacionário. De acordo com
judiciais seriam feitos mediante abertura de contas judiciais
índices estimativos, o valor aquisitivo do dinheiro é corrigido,
numeradas, com juros legais capitalizados, mais a correção periodicamente, de tal sorte que, a qualquer momento, é pos-
monetária pro rata die 178 . O Provimento n. 347/88 do Egrégio sível determinar sua real expressão econômica. Em termos
Conselho Superior da Magistratura, por sua vez, impõe ao aritméticos, trata-se de majoração. Para o direito e a economia,
estabelecimento bancário a imediata liquidação da conta, entretanto, o resultado corrigido traduz apenas o valor atual
de acordo com a opção do interessado e estabelece que, da dívida, sendo o montante da correção uma parte do próprio
nesta hipótese, somente no dia em que protocolado o man- objeto prestacional.
dado de levantamento cessará a incidência de juros e corre-
Essa correção não se confunde com frutos, rendas ou
ção monetária: "Protocolado o mandado no estabelecimen-
juros. É o próprio capital, sem tirar nem pôr. Um débito atua-
to pagador, cessará a partir de então a incidência de juros e
lizado monetariamente e outro depositado em poupança, ao
correção monetária" (art. 20, item III - 4, letra a, do Provi-
final de determinado lapso de tempo, terão valores diferentes.
mento n. 347/88). Isso porque na poupança há "rendimentos", tendo aplicação,
No mesmo sentido, os comunicados da Corregedoria- além de índices de correção monetária, outros concernentes a
Geral da Justiça estabelecem que os índices de correção mo- juros remuneratórios.
netária e juros aplicáveis aos depósitos judiciais devem ser os de
2.8.4. Concessão de medida liminar em mandado de segurança
178. Neste sentido, decidiu a Terceira Câmara Civil do Egrégio Tribunal de Quando falamos em incidência jurídica estamos pressu-
Justiça de São Paulo (RT 651/62-64). pondo a linguagem do direito positivo projetando-se sobre o

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

campo material das condutas interpessoais, para organizá-las Concedida a liminar, em processo de mandado de segu-
deonticamente. Como vimos, a norma geral e abstrata, para rança impetrado contra ato jurídico administrativo de lança-
alcançar o inteiro teor de sua juridicidade, reivindica, incisiva- mento tributário, a exigibilidade do ato fica suspensa, de sorte
mente, a edição de norma individual e concreta, a ser emitida que a Fazenda passa a aguardar a sentença denegatória, ou,
por órgão credenciado pelo sistema. então, que a medida venha a ser sustada. Recuperado, dessa
forma, seu predicado de ato exigível, há plena condição jurídi-
Um desses órgãos é o Judiciário. Este se encontra habili- ca de ser ajuizada a ação de execução ou de se prosseguir no
tado a aplicar o direito, expedindo normas individuais e con- seu curso, interrompido pela providência cautelar.
cretas, para determinar aos destinatários o comportamento a
ser adotado. Referidas normas ingressam no ordenamento É descabida qualquer alegação no sentido de haver diferen-
jurídico por meio de decisões judiciais, tendo, nestas, seu veí- ças entre os efeitos da liminar e das demais normas individuais e
culo introdutor. Integrando o ordenamento pela satisfação dos concretas expedidas pelo Judiciário, por tratar-se aquela de de-
requisitos que se fizerem necessários, a norma jurídica emitida cisão provisória. Breve observação denunciará logo a improce-
dência desse argumento. Se a liminar é o resultado de um ato
pelo Judiciário é válida e assim se mantém até o momento em
judicial, introdutor de norma individual e concreta no ordena-
que deixa de pertencer ao sistema, sendo dali retirada por
mento positivo, desde que atinja os requisitos jurídicos para seu
outra norma que assim a desconstitua.
acabamento 179 , ingressa no sistema, passando a integrá-lo. Outra
Tudo o que até agora se expôs encontra integral aplicação coisa, porém, é a possibilidade de vir a ser modificada, consoante
à medida liminar, pois espécie do gênero decisão judicial. É meios previstos para esse fim. A susceptibilidade a impugnações
2
bastante conhecido no meio tributário o preceito do art. 5 , é predicado de todos os atos administrativos, judiciais e legislati-
LXIX, da Constituição, que prevê o mandado de segurança vos, com exceção somente daqueles que se tornaram imutáveis
como providência judicial para proteger direito líquido e certo por força de prescrições do próprio sistema do direito posto, como
não amparado por habeas corpus, ou habeas data quando o é o caso da decisão judicial transitada em julgado, não mais pas-
responsável pela ilegalidade ou abuso do poder for autoridade sível de ser atacada por ação rescisória. Não há, portanto, o menor
pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições cabimento em estabelecer a dualidade "provisória/definitiva"
do Poder Público. Trata-se de u'a medida eficaz de proteção aos como critério de referência a normas expedidas pelo Judiciário.
direitos individuais, tolhidos ou ameaçados por atos abusivos. Caso contrário, seria forçosa a conclusão de que quase tudo no
direito seria provisório. Todas as sentenças seriam provisórias,
O magistrado, diante da iminência dos efeitos lesivos do uma vez que delas a parte vencida pode recorrer. Os acórdãos dos
ato, pode, com supedâneo no art. 7 2 , II, da Lei n. 1.533/51, cau- tribunais também seriam provisórios, na medida em que podem
telarmente, expedir medida liminar, que tem por escopo impedir suscitar novos apelos. E assim por diante. O direito seria um cor-
a irreparabilidade do dano, pelo retardamento da sentença. Com po de manifestações interinas, meramente transitórias, com nú-
caráter autônomo, não exprime ainda a convicção do órgão mero reduzido de exceções.
jurisdicional sobre o mérito do pedido, tanto assim que pode
ser cassada a qualquer momento. Comunicada a liminar aos Disso conclui-se que a liminar, como decisão judicial que é,
destinatários, introduz no sistema norma que relata, no antece- introduz norma jurídica válida. E esta, enquanto não for retirada
dente, fato delimitado no tempo e no espaço, prescrevendo, no do sistema por outra norma jurídica que assim o determine,
consquente, relação jurídica entre sujeitos individualizados,
determinando as condutas a serem por estes adotadas em face
do evento previsto no suposto normativo. 179. Dada a conhecer a seus destinatários.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

produzirá efeitos, disciplinando as condutas intersubjetivas justamente porque o Código lhe atribui efeito suspensivo do
por meio de um dever-ser modalizado (proibido, permitido ou crédito tributário. Cassada a medida liminar, a norma substi-
obrigatório). tuta não pode atingir de forma retroativa as condutas pratica-
das sob o amparo da norma anterior, ficando seus efeitos res-
As medidas liminares, como veículos introdutores de
tritos à disciplina dos atos futuros.
normas individuais e concretas, objetivam aproximar os co-
mandos normativos gerais e abstratos, visando a direcionar as
vontades dos destinatários ao cumprimento das condutas pres- 2.8.5. Parcelamento
critas. Para tanto, introduzem normas jurídicas que permitem,
proíbem ou obrigam a prática de certo ato. A inserção do inciso VI no art. 151 do Código Tributário
Nacional, realizada pela referida Lei Complementar n. 104/2001,
A cassação da liminar, por sua vez, nada mais é que uma
decisão judicial modificadora de outra decisão judicial, ou, em acendeu as dúvidas sobre a especificação semântica da voz
outras palavras, uma norma individual e concreta que, por ser "parcelamento". Voltou-se a pensar na sua amplitude, tendo
posterior à primeira, a substitui no ordenamento jurídico. em vista o gênero "moratória", de tal maneira que se pode
Consequentemente, a norma revogadora não tem o condão de distinguir, com Christine Mendonça"°: (i) o parcelamento pre-
fazer desaparecerem os efeitos decorrentes da norma revoga- visto antes do nascimento da obrigação tributária; (ii) o parce-
da. Seus efeitos são ex nunc, não atingindo atos praticados sob lamento como espécie do gênero moratória; e (iii) aquele que
a égide da norma anterior. É o que assegura o artigo 5e, inciso se pode chamar de parcelamento stricto sensu. A despeito das
XXXVI, da Constituição da República. possibilidades elucidativas que o termo possa propiciar e a
utilidade de construções dessa natureza, pois, afinal de contas,
Nos termos do dispositivo constitucional supra, a norma
"o jurista é o semântico da linguagem do direito", como bem
jurídica não poderá prejudicar o direito adquirido, o ato jurí-
assinalou Becker, o legislador fez questão de sublinhar que o
dico perfeito e a coisa julgada. Tal previsão objetiva dar relevo
parcelamento também suspende a exigibilidade do crédito
ao princípio da segurança jurídica, preservando os atos prati-
tributário, a ele se aplicando as disposições atinentes ao insti-
cados e os direitos titulados na vigência de determinada norma
tuto da moratória. Mais uma confirmação de que se trata ape-
jurídica. Desse modo, a edição de norma jurídica nova apenas
poderá disciplinar relações futuras, sem atentar contra situa- nas de espécie (parcelamento) do gênero (moratória), como
ções já consolidadas no tempo. vêm proclamando, entre outros, Sacha Calmon Navarro Coêlho,
Mizabel Derzi e Leonor Leite Vieira.
As decisões judiciais, ao prescreverem dada conduta aos
seus destinatários, pretendem que estes ajam de acordo com
a imposição instituída. Tratando-se, pois, de norma jurídica 2.9. EXTINÇÃO DAS OBRIGAÇÕES TRIBUTÁRIAS
individual e concreta, os atos e omissões praticados no cum-
primento de sua vontade estão plenamente respaldados pelo A relação jurídica, como nexo abstrato mediante o qual
ordenamento, protegidos, conforme o caso, na qualidade de uma pessoa, chamada de sujeito ativo, tem o direito subjetivo
ato jurídico perfeito ou de direito adquirido.
Desta maneira, a alteração do mandamento judicial, seja 180. Christine Mendonça, O regime jurídico do programa de recuperação
qual for, não pode sujeitar o destinatário da norma revogada fiscal — Refis: parcelamento stricto sensu, in Refis: aspectos jurídicos rele-
às consequências típicas do descumprimento de norma jurídica, vantes, São Paulo, Edipro, 2001, pp. 90-94.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

de exigir uma prestação, enquanto outra, designada de sujeito c) pelo desaparecimento do objeto;
passivo, está encarregada de cumpri-la, nasce, como vimos, da d) pelo desaparecimento do direito subjetivo de que é
ocorrência do fato típico descrito no antecedente da proposição titular o sujeito pretensor, que equivale à desaparição do
normativa. No percurso da sua existência pode experimentar crédito;
mutações, que interferem nos elementos que a compõem ou
e) pelo desaparecimento do dever jurídico cometido ao
nas gradações de sua eficácia. E depois se extingue, por haver
sujeito passivo, que equivale à desaparição do débito.
realizado seus objetivos reguladores da conduta ou pelas razões
que o ordenamento estipula. É sobre o desaparecimento que
Qualquer hipótese extintiva da relação obrigacional que
voltaremos nossas atenções.
possamos aventar estará contida, inexoravelmente, num dos
cinco itens que enumeramos. Carece de possibilidade lógica
2.9.1. O fenômeno da desintegração da obrigação tributária imaginar uma sexta solução, precisamente porque esta é a fi-
sionomia básica da existência de um vínculo de tal natureza.
Quadra examinar, no presente capítulo, o fenômeno
Advertimos: no direito positivo brasileiro, no que se refe-
jurídico que se opera na extinção de tais vínculos, para po-
re às obrigações tributárias, não há prescrições que contem-
dermos bem compreender a desconstituição das obrigações
plem a extinção do objeto prestacional, estritamente conside-
tributárias.
rado. Entretanto, todos os demais casos de desaparecimento
Se a unidade irredutível das relações jurídicas é formada de elementos integrativos ou dos nexos que os enlaçam se
por dois sujeitos (ativo e passivo) e um objeto, presos entre si encontram previstos, indicados pelo legislador pelos nomes
por nexos que conhecemos, parece-nos que o melhor caminho técnicos correspondentes. Ao analisarmos as fórmulas extin-
para sabermos da desintegração dessa entidade é procurarmos tivas gravadas no Código Tributário Nacional teremos a opor-
indagar o modo pelo qual desaparecem seus elementos inte- tunidade de convocar a atenção do leitor, relembrando essa
grativos, bem como as relações que os unem, uma vez que tais proposta teorética de enorme utilidade prática.
elementos e tais vínculos dão a compostura atômica dos liames
jurídicos que fazem surdir direitos e deveres correlatos. 2.9.2. Aspectos da extinção do crédito na forma do vínculo
Retomemos a representação gráfica: obrigacional disposto no CTN
Crédito Débito Depois de tudo o que dissemos, claro está que desapare-
cido o crédito decompõe-se a obrigação tributária, que não
SA SP pode subsistir na ausência desse nexo relacional que atrela o
sujeito pretensor ao objeto e que consubstancia seu direito
subjetivo de exigir a prestação. O crédito tributário é apenas
Direito subjetivo Dever jurídico
um dos aspectos da relação jurídica obrigacional, mas sem ele
inexiste o vínculo. Nasce no exato instante em que irrompe a
Decompõe-se a figura obrigacional que reproduzimos: obrigação e desaparece juntamente com ela.
a) pelo desaparecimento do sujeito ativo; Lamentavelmente, disso não se apercebeu o legislador
b) pelo desaparecimento do sujeito passivo; do Código, que resolveu sistematizar a disciplina jurídica da

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

matéria em torno do conceito de extinção do crédito, quando obrigações tributárias hão de ocorrer nos precisos termos da
cumpriria fazê-lo levando em conta a obrigação, que é o todo. lei. Nesse terreno, o princípio da estrita legalidade impera em
Não importa, porém, o trajeto escolhido pela autoridade legis- toda a extensão e a ele se ajunta, em vários momentos, o pos-
lativa para descrever o fenômeno da extinção. Temos acesso a tulado da indisponibilidade dos bens públicos.
ele pelo recurso da reflexão, inspirada pelas categorias da Te- Alguns autores pretendem reagrupar as onze causas ex-
oria Geral do Direito, embora isso não tenha a força de apagar tintivas que o art. 156 estabelece, dividindo-as em causas de
os efeitos prejudiciais de uma elaboração normativa confusa. fato e de direito. A prescrição e a decadência seriam modalida-
Subproduto da orientação assistemática que presidiu a des de direito, enquanto todas as demais seriam de fato. Dis-
concepção do legislador, nesse campo, está logo no parágrafo cordamos desse critério classificatório. As onze causas que o
único do art. 156, onde se diz que a lei disporá quanto aos efei- legislador arrolou são modalidades jurídicas no âmbito mais
restrito que se possa dar à expressão. São acontecimentos que
tos da extinção total ou parcial do crédito sobre a ulterior veri-
o direito regula, traçando cuidadosamente seus efeitos. Algu-
ficação de irregularidade da sua constituição, observado o dis-
mas delas adquirem até a configuração de verdadeiros institu-
posto nos arts. 144 e 149.
tos jurídicos, como o pagamento, a compensação, a transação,
O enunciado versa o problema de anulação do lançamen- a remissão, a prescrição e a decadência, enquanto outras se
to e dos efeitos que isso provoca no que tange à extinção do apresentam como fatos carregados de juridicidade, como a
crédito. Permite concluir, no entanto, que seja possível dar-se decisão administrativa irreformável e a decisão judicial passa-
a extinção do crédito, permanecendo íntegro o vínculo obriga- da em julgado. As hipóteses de conversão de depósito em
cional, dedução errônea, estruturada em frontal desapreço aos renda, de pagamento antecipado e homologação do lançamen-
conceitos elementares sobre a figura da obrigação. Isso é o que to, e a consignação em pagamento, entendemos que sejam
pretendemos demonstrar nos capítulos seguintes. formas diferentes de u'a mesma realidade: o pagamento. Como
afirmar que tais ocorrências da vida real, regradas por insis-
tentes disposições jurídico-normativas, tenham a proporção
2.9.3. Causas extintivas no Código Tributário Nacional de causas de fato?

O art. 156 do CTN enuncia onze causas extintivas: I) o O que é possível divisar no catálogo do art. 156 é a ausência
pagamento; II) a compensação; III) a transação; IV) a remissão; de outros motivos que teriam a virtude de extinguir o liame obri-
V) a prescrição e a decadência; VI) a conversão de depósito em gacional, como a desaparição do sujeito passivo, sem que haja
renda; VII) o pagamento antecipado e a homologação do lan- bens, herdeiros e sucessores, bem como a confusão, onde se mis-
turam, na mesma pessoa, as condições de credor e devedor.
çamento nos termos do disposto no art. 150 e seus §§ 1 2 e P;
VIII) a consignação em pagamento, nos termos do disposto no Para facilitar o discurso expositivo, vamos seguir a ordem
§ 2 2 do art. 164; IX) a decisão administrativa irreformável, assim que o legislador concebeu, deduzindo as críticas que estimar-
entendida a definitiva na órbita administrativa, que não mais mos cabíveis.
possa ser objeto de ação anulatória; X) a decisão judicial passa-
da em julgado; e XI) a dação em pagamento em bens imóveis,
2.9.4. Pagamento e pagamento indevido
na forma e condições estabelecidas em lei.
Tanto o surgimento quanto as modificações por que pas- Pagamento é a prestação que o devedor, ou alguém por
sam durante sua existência, e assim também a extinção das ele, faz ao sujeito pretensor, da importância pecuniária

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

correspondente ao débito do tributo. Sua regulamentação é Omitindo-se o legislador ordinário quanto ao prazo de
farta no Código Tributário Nacional, que dedica ao assunto vencimento das obrigações tributárias, o termo final dar-se-á
nada menos do que treze artigos, muitos deles subdivididos trinta dias depois de o sujeito passivo haver recebido a notifi-
em incisos e parágrafos (incluindo-se o tema do pagamento cação do lançamento (art. 160), podendo a legislação específica,
indevido), quem sabe por tratar-se da modalidade normal e nas condições que estabeleça, conceder desconto pelo paga-
desejada para a extinção das obrigações tributárias. mento antecipado (parágrafo único). Torna-se evidente que tal
proposição não se aplica àqueles tributos que não têm no lan-
Começa o art. 157 por prescrever que a imposição de çamento um requisito indispensável e aos quais o Código
penalidade não elide o pagamento integral do crédito tribu- chama de tributos sujeitos a lançamento por homologação.
tário. A multa infligida para punir o descumprimento da Nestes, a lei oferece todas as indicações necessárias e suficien-
prestação não substitui o crédito tributário. Deverá o infrator tes para a regular satisfação das prestações devidas.
recolher a quantia equivalente à penalidade pecuniária e,
Inocorrendo a solução do débito, no vencimento próprio,
além disso, cumprir a prestação do tributo. A cobrança do
será ele acrescido de juros de mora, seja qual for o motivo de-
crédito tributário é feita por força da realização do fato jurí- terminante da falta, sem prejuízo da imposição das penalidades
dico descrito no antecedente da proposição normativa. A cabíveis e da aplicação de quaisquer medidas de garantia pre-
exigência da multa traz como pressuposto outro motivo, qual vistas na Lei n. 5.172/66 ou nas demais leis tributárias (art. 161).
seja o acontecimento de um fato definido como ilícito pelas Os juros serão calculados na base de 1% ao mês, se a lei não
leis fiscais. Tratando-se da incidência de duas regras diversas, dispuser de modo diverso (§ 1 2) e, ao contrário do que se dá
por força da ocorrência de fatos distintos (fato jurídico tribu- com as obrigações de direito privado, não é preciso interpela-
tário e fato ilícito - infração), não há por que uma possa vir a ção do devedor para que este seja constituído em mora. Ha-
substituir a outra. vendo consulta, formulada pelo interessado dentro do prazo
estabelecido para o pagamento e com observância das regras
O implemento de uma prestação tributária não gera a
que a legislação estatui, os juros de mora não incidem, enquan-
presunção do cumprimento de outras, valendo a regra para to estiver pendente a resposta (§ 2 2 ).
um mesmo tributo ou de um com relação a outros. A mensagem
desse dispositivo (art. 158, I e II) seria inteiramente dispensável. O pagamento é feito em moeda corrente, cheque ou vale
É óbvio que o pagamento da prestação de outubro não pode postal (art. 162, I), mas, nos casos previstos em lei, pode ser
efetuado em estampilha, papel selado ou mediante processo
servir como fato presuntivo de que a prestação de novembro
mecânico (art. 162, II). O sistema não admite a prestação in
também foi paga, no quadro do mesmo tributo. Da mesma 2
natura, contraditando aquilo que faz supor o art. 3 do Código
forma, a circunstância de alguém estar quite com o ISS não
Tributário Nacional, quando enuncia que pode ser em moeda
quer significar que não deva IPTU. ou cujo valor nela se possa exprimir. Todavia, com a Lei Com-
À falta de disposição em contrário, o pagamento da dívida plementar n. 104, de 10 de janeiro de 2001, tornou-se possível
tributária deve ser promovido na repartição competente do realizar a extinção do crédito mediante dação em pagamento
domicílio do sujeito passivo. Quase todas as leis dispõem em em bens imóveis, na forma e condições previstas em lei ordi-
contrário, aproveitando a exceção aberta pelo preceito do art. nária de cada ente político.
159, e os recolhimentos são feitos nas unidades da rede bancá- O legislador ordinário está autorizado a determinar as
ria do País. garantias exigidas para o pagamento em cheque ou vale postal,

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

desde que não o torne impossível ou mais oneroso que o paga- c) terão preferência as dívidas mais antigas, na ordem crescen-
mento em moeda corrente (art. 162, § 19. No que concerne ao te dos prazos de prescrição; e d) antes as de maior valor, em
cheque, não há necessidade de garantias, uma vez que o § 2 2 escala decrescente.
desse mesmo artigo declara que o crédito pago por cheque só
Registre-se, porém, que a imputação não se dá automati-
se considera extinto com o resgate deste pelo sacado.
camente. É imprescindível que a autoridade competente para
Na circunstância do pagamento ser efetuado por estam- receber o pagamento determine que ela seja efetivada 181 . Eis o
pilhas, extinguir-se-á o crédito com a regular inutilização da- motivo por que afirmamos ser muito difícil, nos dias de hoje,
quelas, resguardando-se ao Fisco a prerrogativa de controle, observar o exercício do direito de imputação 182 . Como hodierna-
na forma do que preceitua o art. 150, isto é, promovendo o mente os tributos são, na maioria, sujeitos a "lançamento por
chamado lançamento por homologação (art. 162, § 3Q). A perda homologação", seu recolhimento dá-se por meio de guias nas
ou destruição das estampilhas, ou o erro no pagamento por tal quais o sujeito passivo indica expressamente o débito que está
modalidade, não dão direito à restituição, salvo nos casos ex- sendo quitado. Além disso, sendo os pagamentos efetuados,
pressamente previstos na lei tributária, ou naqueles em que o normalmente, em instituições bancárias, não se verifica a pos-
erro for imputável à autoridade administrativa (art. 162, §
sibilidade da administração recusar seu recebimento em virtu-
e o pagamento em papel selado ou por processo mecânico
de de eventualmente existir outro débito, colocado em condição
equipara-se ao feito em estampilhas (art. 162, § 59.
privilegiada pelo art. 163 do Código Tributário Nacional.
A imputação de pagamento consiste na escolha do débi-
Os comandos jurídicos introduzidos pelo Código Tribu-
to a ser extinto, se o devedor tiver mais de um deles. Enquan-
tário Nacional não se circunscrevem à esfera de uma ou outra
to no direito privado é um direito subjetivo do devedor esco-
pessoa jurídica de direito público interno, isoladamente. Ao
lher qual dos débitos quer pagar, caso todos sejam líquidos e
contrário, sendo Lei Nacional, suas determinações dirigem-se
vencidos (artigo 352 do Código Civil), na esfera tributária a
a todos os entes da Federação. Eis um dos principais fatores
imputação é efetuada pela autoridade competente para rece-
que, na lição de José Souto Maior Borges, a diferencia da lei
ber o pagamento. A opção pelo débito a ser extinto, entretan-
federa1 183 .
to, não é sua, devendo obedecer à escala pré-estabelecida na
legislação. Isso não significa, porém, que o âmbito material passível
de ser por ele regulado assuma caráter ilimitado. Apresentan-
Atualmente, o assunto é disciplinado pelo Código Tribu-
do força de lei complementar, sua disciplina não pode repre-
tário Nacional, no artigo 163. Segundo este, tendo o sujeito
sentar invasão da competência legislativa de qualquer dos
passivo dois ou mais débitos para com a mesma entidade tri-
entes federados, ficando restrita às áreas que constitucional-
butante, relativamente ao mesmo gravame ou a diferentes
mente lhe foram reservadas.
exações, ou ainda provenientes de penalidades pecuniárias ou
juros de mora, fica a cargo da autoridade administrativa com-
petente a imputação do pagamento, observadas as seguintes
181.Aliomar Baleeiro. Direito tributário brasileiro, 10a ed., Rio de Janeiro,
regras, na ordem em que enumeradas: a) em primeiro lugar os Forense, 1993, p. 553.
débitos por obrigação própria, e em segundo os decorrentes 182. Curso de direito tributário, 19a ed., São Paulo, Saraiva, 2007, p. 472.
de responsabilidade tributária; b) primeiramente as contri- 183. Lei complementar tributária, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1975,
buições de melhoria, depois as taxas e, de final, os impostos; p. 68.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

No que concerne especificamente à matéria tributária, legislativa de qualquer dos entes políticos, tendo como fim
foi-lhe atribuída a função de introduzir no ordenamento jurí- primordial conferir harmonia e uniformidade ao sistema
dico normas gerais de direito tributário. Sendo controversa a jurídico.
amplitude da expressão "normas gerais", cumpre esclarecer
De outro lado, por sua vez, iremos encontrar a figura do
que ela não pode ultrapassar o ponto limite das competências
pagamento indevido. Muitas vezes, a importância recolhida a
das pessoas políticas. Por esse motivo, já vimos entendendo
título de tributo é indevida, quer por exceder o montante da
que o âmbito das normas gerais consiste em disciplina de ma-
dívida real, quer por ter sido o crédito tributário desconstituí-
téria necessária para evitar conflitos de competência entre as
do, em virtude de estar em desacordo com o sistema pátrio.
entidades tributantes, bem como para regrar as limitações
Nesse caso, assegura o ordenamento jurídico a devolução da-
constitucionais ao poder de tributar. Apenas nesse sentido é
quilo que o contribuinte pagou indebitamente. Fá-lo mediante
que pode ser entendido o artigo 146, III, da Constituição da
norma geral e abstrata cuja hipótese descreve, em caráter co-
República. Ao dispor sobre a definição de tributos e suas es-
pécies, fato gerador, base de cálculo, contribuinte, obrigação, notativo, o pagamento indevido, prescrevendo, no consequen-
lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários, a lei te, uma relação jurídica obrigacional em que o Fisco ocupará
complementar pode fazê-lo apenas com as duas finalidades o pólo passivo, assumindo o dever de restituir o indébito, en-
acima relacionadas. Está habilitado o Código Tributário Na- quanto o contribuinte figurará como sujeito ativo, com o direi-
cional, portanto, a dispor sobre esses institutos em termos to de exigir o cumprimento dessa restituição. Diferentemente
definitórios, objetivando evitar o caos e a desarmonia que a do que ocorre na obrigação tributária, o contribuinte é credor
imprecisão de suas significações poderia causar' 84 . na relação ora examinada. O Fisco se encontra no pólo passivo
do vínculo obrigacional, possuindo o dever de cumprir uma
Seguindo essa linha de raciocínio, a disciplina jurídica da prestação pecuniária para com o contribuinte. Eis porque nos
imputação do pagamento pode ser veiculada em lei comple- referiremos a esse dever como "débito do Fisco".
mentar, na medida em que sua regulamentação de forma in-
discriminada por cada ente federativo poderia suscitar confli- Convém registrar, nesta oportunidade, que para o paga-
tos de competência que às normas gerais cabe prevenir. Com mento indevido assumir a feição de fato jurídico, deve ser re-
isso impede-se, por exemplo, que determinado ente federativo latado no antecedente de norma individual e concreta, vindo
institua imputação de pagamento relativamente a débitos de objetivado, no seu consequente, o liame que comporta o débi-
sujeitos ativos diferentes, privilegiando, por meio da escala de to do Fisco. Três são as formas pelas quais a constituição do
prioridades, os seus créditos em detrimento das outras pesso- débito do Fisco pode ocorrer: (i) invalidação do lançamento;
as constitucionais. (ii) decisão administrativa; e (iii) decisão judicial. Ainda, quan-
do houver autorização em lei, o próprio contribuinte pode
Quanto à disciplina da imputação do pagamento, portan-
fazê-lo, ficando a constituição do débito do Erário, nesse caso,
to, não há que falar em invasão de competência. Ao dispor
sujeita à fiscalização e ulterior homologação pela autoridade
sobre esse instituto, o Código Tributário Nacional operou
administrativa.
na qualidade de lei nacional, sem interferir na competência
Assim como no crédito tributário, não basta a simples
ocorrência do evento do pagamento indevido para que a alu-
184. Sacha Calmon Navarro Coelho, Curso de direito tributário brasileiro, 3a dida relação se instale. Será preciso a aplicação da norma geral
ed., Rio de Janeiro, Forense, 1999, pp. 114-115. e abstrata para que se verifique a constituição do fato jurídico
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e dos respectivos direitos e deveres. É somente com o ato de de extinção das obrigações tributárias, claro, deverá ser pre-
expedição da norma individual e concreta que teremos, juridi- vista em lei que a autorize e nos precisos termos em que ela o
camente, pagamento indevido, dever do Fisco e direito do fizer, em atenção ao princípio implícito da indisponibilidade
contribuinte receber a restituição. dos interesses públicos. Subjacente, como algo a ser pensado
pela Teoria Geral do Direito, temos a norma autorizativa da
2.9.5. Compensação compensação como metanorma, pressupondo duas outras, de
instância lógica inferior, sobre as quais vai incidir.
O estudo da compensação como forma extintiva prevista
Cumpre observar que aquilo que se extingue, no quadro
no artigo 156, do Código Tributário Nacional, não se limita ao
das compensações estudadas, são obrigações e não simples-
disposto em lei. A análise do processo de positivação desta fi-
mente créditos, como um exame mais precipitado do assunto
gura, nos tribunais, reabre as expectativas para um tratamen-
poderia até insinuar. Não sobeja lembrar que a chamada "obri-
to jurídico consistente sobre o desenvolvimento da matéria.
Sempre atento para a circunstância de que a fração de justiça gação tributária" consiste no laço que se instala entre o sujeito
que o decisum do caso concreto requer, postula a presença de pretensor e o devedor, tendo por objeto prestação pecuniária,
itinerário definido, de tal modo que seja dado ao leitor perceber nos exatos termos do artigo 3 2 do Código Tributário Nacional 185 .
a progressão do raciocínio dirigindo-se, célere, para o encami- Integram-na o dever jurídico que tem o sujeito passivo de con-
nhamento das conclusões, momento em que se torna mais duzir determinada quantia em dinheiro ao Erário (débito), e o
remoto o perigo da emissão de juízos de valor extravagantes, correspondente direito do Estado de receber aquele montante
proferidos fora dos horizontes de previsibilidade que ao senso (crédito). Eis o motivo pelo qual defino "crédito tributário"
do direito convém admitir. como o direito subjetivo de que é portador o sujeito ativo de
Aquela "circularidade" que os estudiosos acentuam exis- uma obrigação tributária e que lhe permite exigir o objeto
tir no sistema do direito será representada no intercurso do prestacional, representado por uma importância em dinheiro,
mundo dos eventos com o domínio da linguagem jurídico-pres- tendo ele nascimento com a construção de um enunciado fác-
critiva. Os editores de normas vão buscar, incessantemente, a tico, posto pelo consequente de norma individual e concreta.
matéria dos fatos sociais (na região dos eventos), para neles Por outro lado, situações há em que o Fisco figura no pólo
retroagir, projetando preceitos que regulem as condutas inter- passivo da relação jurídica. Fala-se, nesse caso, em "débito do
subjetivas e implantem valores: acontecimentos geradores de
Fisco", consequência do fato do pagamento indevido, e cons-
regras que, por sua vez, retrovertem sobre aquelas ocorrências,
tituído, também, no consequente de outra norma individual e
produzindo a disciplina jurídica.
concreta.
Discute-se, hoje, a possibilidade de adoção de critério
Na compensação tributária são dissolvidas, simultanea-
adequado para classificar as "ações tributárias", movimentan-
do-se com sutileza nessa região tão delicada das técnicas que mente, essas duas relações: (i) de crédito tributário e (ii) de
presidem a positivação do direito, sugerindo caminhos pelos
quais se passa das normas gerais e abstratas para as indivi-
duais e concretas. 185. "Art. 3Q Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda
ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito,
A compensação de débitos do contribuinte com créditos instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente
que ele mantenha perante o Estado-administração, como modo vinculada."

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débito do Fisco. Direitos e deveres funcionam como vetores Além das duas relações contrapostas (crédito tributário e
de mesma intensidade e direção, mas de sentidos opostos, débito do Fisco), decorrentes da aplicação de normas jurídicas
que se anulam. tributárias, para que a compensação se aperfeiçoe, exige o
artigo 170 do Código Tributário Nacional que as relações te-
A compensação é forma extintiva das obrigações em geral, nham objetos líquidos e certos. São requisitos a "certeza da
encontrando fundamento de validade no artigo 368 do Código existência" e a "determinação da quantia" dos créditos e débi-
Civil: "Se duas pessoas forem ao mesmo tempo credor e deve- tos que se pretende compensar.
dor uma da outra, as duas obrigações se extinguem, até onde
Não restam dúvidas, portanto, de que para o implemento
se compensarem" 186 . No que concerne à obrigação do tributo, da compensação é imprescindível a emissão de norma indivi-
o Código Tributário Nacional acolhe o instituto, desde que, em dual e concreta pelo sujeito competente, pois é esse o veículo
homenagem ao princípio da indisponibilidade dos bens públi- apto a constituir fatos e relações jurídicas, objetivando, dentre
cos, seja autorizado em lei. É a redação do artigo 170: outros, o objeto da prestação (quantum devido). Do mesmo
modo que crédito tributário líquido e certo é aquele formali-
"A lei pode, nas condições e sob as garantias que estipular, zado pelo ato do lançamento ou do contribuinte, débito do
ou cuja estipulação em cada caso atribuir à autoridade Fisco líquido e certo é o que foi objeto de decisão administra-
administrativa, autorizar a compensação de créditos tribu-
tiva ou decisão judicial, ou, ainda, reconhecido pelo contribuin-
tários com créditos líquidos e certos, vencidos ou vincendos,
te com fundamento em expressa autorização legal. Tais atos,
do sujeito passivo contra a Fazenda Pública".
formalizando o fato do pagamento indevido, introduzem-no no
sistema. Tanto o crédito tributário como o débito do Fisco são
No quadro da fenomenologia das extinções, a compen- líquidos e certos quando estão identificados (i) o credor e o
sação ocupa o tópico de modalidade extintiva tanto do direi- devedor, (ii) o montante do objeto da prestação e (iii) o motivo
to subjetivo como do dever jurídico, uma vez que o crédito do surgimento do vínculo relacional.
do sujeito pretensor, num dos vínculos, é anulado pelo seu
Liquidez e certeza referem-se à existência e determinação
débito, no outro, o mesmo se passando com o sujeito devedor.
da dívida, tanto do Fisco como do contribuinte. E, conforme já
Um aspecto, porém, há de ser consignado: a compensação
comentei, a constituição do crédito tributário dá-se por meio
só extingue relações jurídicas em que os valores coincidam. de lançamento ou mediante norma individual e concreta ex-
Caso inexista essa parificação dos montantes prestacionais, pedida pelo contribuinte. Quanto ao débito do Fisco, será
algo remanescerá para qualquer dos sujeitos, permanecen- constituído por norma individual e concreta decorrente de ato
do vivo, juridicamente, o laço obrigacional. A compensação administrativo de invalidação do lançamento, de decisão ad-
aparecerá, nesses casos, como elemento redutor do objeto ministrativa, de decisão judicial ou, quando autorizado em lei,
da prestação devida, não podendo, portanto, ser considera- por ato do próprio administrado. Em todas essas hipóteses,
da extintiva. Tal comentário é oportuno no momento em que está presente, sempre, a linguagem reconhecida pelo ordena-
examinamos mais de perto a configuração jurídica do insti- mento como apropriada.
tuto, que nem sempre cumpre o papel de dissolver os vín-
culos até então existentes. 2.9.5.1. A norma geral e abstrata da compensação tributária

A norma da compensação pressupõe a obrigação tributá-


186. Idêntica era a disciplina do Código Civil revogado (art. 1.009). ria e a relação de débito do Fisco, devidamente introduzidas

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no ordenamento jurídico por meio de normas individuais e prevista pelo ordenamento, para que a compensação se verifi-
concretas. Exige a presença dessas duas normas para que, que. Esses elementos linguísticos, todavia, ainda não são, por
combinadas, ensejem a produção de uma terceira. si só, suficientes para que se tenha por concretizada a compen-
Sendo a norma jurídica, no sentido estrito da expressão, sação. Necessário se faz o efetivo "encontro de contas", forma-
dotada de estrutura hipotético-condicional, a esse esquema lizado por linguagem juridicamente reconhecida.
lógico não refogem a norma de compensação nem aquel'outras Para que a compensação seja efetuada é imprescindível
duas regras com supedâneo nas quais ela vai ser composta: a existência de duas normas jurídicas individuais e concretas:
uma, constituindo o débito do contribuinte; outra, formalizan-
(i) Na regra-matriz de incidência tributária, o denominado do o débito do Fisco. Combinando essas duas normas, surgirá
"fato jurídico tributário" é indicado conotativamente na uma terceira, que é a norma individual e concreta da compen-
hipótese normativa, enquanto, na posição do consequente, sação tributária. Somente com a expedição dessa última norma
figura a "obrigação tributária", podendo ser assim enuncia- é que a compensação atuará.
da, simplificadamente: dado o fato jurídico tributário, deve
ser a relação obrigacional. O fato extintivo da compensação será positivado por nor-
(ii) Noutro específico campo, o da regra-matriz do paga- ma individual e concreta que promova o encontro das relações,
mento indevido, é a conotação do denominado fato jurídico extinguindo-as no quantum em que se equivalerem. Os sujeitos
do pagamento indevido que assume a condição de suposto, habilitados a expedir a norma individual e concreta da com-
ao passo que a consequência é integrada pela relação de pensação, formalizando o mencionado "encontro de contas",
débito do Fisco, nos seguintes moldes: dado o fato jurídico são a autoridade administrativa e a autoridade judiciária. Há
do pagamento indevido, deve ser a relação de débito do hipóteses em que a lei autoriza ao próprio particular a efetiva-
Fisco. ção da compensação tributária. Esta, todavia, somente é ulti-
mada quando o ato do particular for homologado pela Admi-
Postas tais realidades, cabe-nos ajuntá-las, combinando nistração, de maneira tácita ou expressa.
norma relativa à obrigação tributária e aquela atinente à rela-
Dito de outro modo, o aplicar-se da norma de compensa-
ção de débito do Fisco, sacando uma terceira estrutura norma-
ção gera a extinção do crédito tributário e do débito do Fisco.
tiva: (iii) a da compensação tributária, que será assim enuncia-
Mas, para que esta se concretize, necessário o relato em lin-
da: dado o fato jurídico do pagamento indevido de determina-
guagem competente não apenas das relações que se pretende
do tributo, conjugado ao fato relacional da obrigação, deve ser compensar, mas também do fato da compensação. Apenas se
a relação jurídica de compensação tributária envolvendo os descrito no antecedente de norma individual e concreta irra-
respectivos débitos do Fisco e crédito do sujeito passivo. Tudo, diará os efeitos previstos no consequente normativo, operando-
operando-se estritamente dentro do campo do cálculo das se extinção dos vínculos obrigacionais.
relações.
Por sem dúvida, a compensação só existe juridicamente
quando relatada na linguagem admitida pelo direito. Com a
2.9.5.2. A norma individual e concreta da compensação tributária emissão da norma individual e concreta que certifica a com-
pensação, esta passa a integrar o sistema do direito posto,
Assinalei, linhas acima, a necessidade de constituição do desencadeando os efeitos extintivos do crédito tributário e
crédito tributário e do débito do Fisco, mediante a linguagem débito do Fisco envolvidos. Sem o reconhecimento do fato
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jurídico da compensação, nos exatos termos prescritos pelo Os preceitos mencionados impedem a extinção dos vín-
ordenamento, não se irradiarão os efeitos que lhe são peculia- culos que sejam objeto de compensação tributária realizada
res, permanecendo intocados a obrigação tributária e o dever com fundamento em norma individual e concreta susceptível
de restituir do Fisco. de alteração.
Por tais razões, não obstante a propositura de medida
2.9.5.3. A compensação tributária pleiteada na esfera judicial judicial seja vantajosa no sentido de demarcar a atuação do
contribuinte, impedindo que se opere a prescrição relativa-
Tenho ressaltado a necessidade de constituição do crédi- mente aos últimos 5 (cinco) anos, tal opção inviabiliza que a
to tributário e do débito do Fisco, mediante a linguagem pre- compensação se opere de forma imediata. Trata-se, sem dúvi-
vista pelo ordenamento, para que a compensação se verifique. da, de alternativa conservadora, pois os riscos são pequenos e
Ademais disso, para que se tenha por concretizada a compen- a pretensão será alcançada em longo prazo. Isso porque, nos
sação, necessário se faz o efetivo "encontro de contas", forma- termos do art. 170-A do Código Tributário Nacional: "É vedada
lizado por linguagem juridicamente reconhecida. a compensação mediante o aproveitamento de tributo, objeto
Não correndo no . mau vezo de reiterar as afirmativas, vale de contestação judicial pelo sujeito passivo, antes do trânsito
repisar: para que a compensação seja efetuada é imprescindí- em julgado da respectiva decisão judicial".
vel além da existência de duas normas jurídicas individuais e
Diante desse quadro legislativo, recomenda-se que o
concretas - uma, constituindo o débito do contribuinte e outra,
contribuinte, ao propor medida judicial, pleiteie a concessão
formalizando o débito do Fisco - que se realize a combinação
de liminar ou de tutela antecipada, de modo que se suspen-
entre elas, fazendo surgir uma terceira, consistente na norma
da a exigibilidade do crédito tributário com o qual se deseja
individual e concreta de compensação tributária. E os sujeitos
compensar o débito da Fazenda. Suspende-se a exigibilida-
habilitados a expedir a norma individual e concreta da com-
de dos débitos vincendos do contribuinte até o montante do
pensação, formalizando o "encontro de contas", são a autorida-
indébito que se pretende compensar. Nesse caso, a decisão
de administrativa, a autoridade judiciária e, em algumas hipó-
judicial sem trânsito em julgado não desencadeia efeito ex-
teses, a lei autoriza que tal expediente caiba ao particular.
tintivo, mas tão-somente suspensivo da exigibilidade do
Sobre o assunto, têm entendido os Tribunais brasileiros crédito.
que a compensação, como modalidade extintiva da obrigação
tributária, está condicionada à existência de norma individu- Dizer que a exigibilidade do crédito está suspensa
al e concreta de caráter definitivo, não se compadecendo com significa a impossibilidade de se efetuar a cobrança força-
a provisoriedade. Nesse sentido, o Superior Tribunal de Jus- da do valor correspondente. Em tal situação, o sujeito pas-
tiça editou a Súmula n. 212, segundo a qual medida liminar sivo tem resguardado seu direito de não ser molestado
não se presta para certificar a extinção dos créditos tributários enquanto vigente aquela providência suspensiva, estando
decorrente de compensação. A Lei Complementar n. 104/2001, a Fazenda Pública impedida de promover atos que objeti-
por sua vez, acrescentou o art. 170-A ao Código Tributário vem o recebimento do tributo. Apenas se suprimida a cau-
Nacional, vedando que se efetue, antes do trânsito em julga- sa suspensiva, poderá ser dada continuidade ao procedi-
do da decisão, o aproveitamento de créditos tributários sujei- mento de exigências tributárias, com inscrição em dívida
tos à contestação judicial. ativa e ação de execução fiscal.

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2.9.6. Transação legal permissivo da transação trará, certamente, o esclareci-


mento desejado, indicando a autoridade ou as autoridades
Nos termos e nas condições estabelecidas em lei, os sujei- credenciadas a celebrá-la.
tos da obrigação tributária podem celebrar transação, assim
entendido o instituto mediante o qual, por concessões mútuas,
credor e devedor põem fim ao litígio, extinguindo a relação
2.9.7. Remissão
jurídica. Tal é o alcance do art. 171 da Lei n. 5.172/66. A lei
Remissão, do verbo remitir, é perdão, indulgência, indulto,
autorizadora da transação indicará a autoridade competente
diferente de remição, do verbo remir, e que significa resgate. No
para efetivá-la, em cada caso (parágrafo único).
direito tributário brasileiro é forma extintiva da obrigação, se e
O princípio da indisponibilidade dos bens públicos impõe somente se houver lei autorizadora. Está aqui, novamente, o
seja necessária previsão normativa para que a autoridade primado da indisponibilidade dos bens públicos, que permeia
competente possa entrar no regime de concessões mútuas, que intensamente todo o plexo das disposições tributárias. Nesse
é da essência da transação. Os sujeitos do vínculo concertam campo, o instituto ganhou expressão prescritiva no art. 172 e
abrir mão de parcelas de seus direitos, chegando a um deno- seu parágrafo único que estão redigidos da maneira seguinte:
minador comum, teoricamente interessante para as duas par-
tes, e que propicia o desaparecimento simultâneo do direito "Art. 172. A lei pode autorizar a autoridade administrativa
subjetivo e do dever jurídico correlato. Mas, é curioso verificar a conceder, por despacho fundamentado, remissão total ou
que a extinção da obrigação, quando ocorre a figura transacio- parcial do crédito tributário, atendendo:
nal, não se dá, propriamente, por força das concessões recípro- I — à situação econômica do sujeito passivo;
cas, e sim do pagamento. O processo de transação tão-somen- II — ao erro ou ignorância escusáveis do sujeito passivo,
te prepara o caminho para que o sujeito passivo quite sua dí- quanto a matéria de fato;
vida, promovendo o desaparecimento do vínculo. Tão singela III — à diminuta importância do crédito tributário;
meditação já compromete o instituto como forma extintiva de IV — a considerações de equidade, em relação com as carac-
obrigações. terísticas pessoais ou materiais do caso;
Ao contrário do que sucede no direito civil, em que a V — a condições peculiares a determinada região do territó-
transação tanto previne como termina o litígio, nos domínios rio da entidade tributante.
do direito tributário só se admite a transação terminativa. Há Parágrafo único. O despacho referido neste artigo não gera
de existir litígio para que as partes, compondo seus mútuos direito adquirido, aplicando-se, quando cabível, o disposto
no art. 155."
interesses, transijam. Agora, divergem os autores a propósito
das proporções semânticas do vocábulo litígio. Querem alguns
que se trate de conflito de interesses deduzido judicialmente, Na remissão, desaparece o direito subjetivo de exigir a
ao passo que outros estendem a acepção a ponto de abranger prestação e, por decorrência lógica e imediata, some também
as controvérsias meramente administrativas. Em tese, concor- o dever jurídico cometido ao sujeito passivo. Isso, natural-
damos com a segunda alternativa. O legislador do Código não mente, se a remissão for total. Não pode haver remissão de
primou pela rigorosa observância das expressões técnicas, e crédito tributário sem que o laço obrigacional tenha sido
não vemos por que o entendimento mais largo viria em detri- constituído por meio da linguagem prevista no ordenamento
mento do instituto ou da racionalidade do sistema. O diploma jurídico. É necessária, portanto, a prévia existência do ato

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jurídico-administrativo do lançamento tributário ou, sendo o Dessa maneira, sempre que o fluxo do tempo ameaçar, de
caso, da norma individual e concreta produzida pelo próprio algum jeito, a obtenção daquele almejado equilíbrio, que se
sujeito passivo. reflete no princípio da firmeza ou da certeza jurídica, prevê o
sistema a ocorrência de fatos extintivos, que têm a virtude de
Remitindo, o Estado dispensa o pagamento do crédito
definir, drasticamente, a situação pendente, determinando
relativo ao tributo e, pela anistia, dá-se o perdão correspon-
direitos e deveres subjetivos correlatos. Entre tais aconteci-
dente ao ato ilícito ou à penalidade pecuniária. As duas reali-
mentos, está a "decadência". Eis aqui outro termo jurídico que
dades são parecidas, mas estão subordinadas a regimes jurídi-
experimenta sensível instabilidade de ordem semântica. Na
cos bem distintos. A remissão se processa no contexto de um
mesma sequência discursiva, emprega-se "decadência" ou
vínculo de índole obrigacional tributária, enquanto a anistia
"caducidade", seu equivalente nominal, às vezes por ocorrên-
diz respeito a liame de natureza sancionatória, podendo des-
cias efetivas da vida social, outras por normas, o que não é para
constituir a antijuridicidade da própria infração.
admirar, pois é nessa dualidade que o fenômeno da positivação
jurídica se estabelece e se sustenta. Teremos sempre normas,
2.9.8. Decadência construídas a partir dos textos positivos, que juridicizam su-
cessos da realidade em que vivemos, provocando a expedição
Tomemos o direito positivo como instrumento de ação de outras normas de inferior hierarquia, até chegar ao evento-
social, concebido para ordenar as condutas intersubjetivas, conduta que o direito pretende concretamente regular. A sin-
orientando-as para os valores que a sociedade quer ver reali-
gela lembrança desse movimento dialético, do estilo "norma/
zados. Claro está que organização dessa índole não pode com-
fato", é suficiente para fixar os parâmetros dentro dos quais
padecer-se com a indeterminação, com a incerteza, com a há de mover-se o raciocínio jurídico-científico. Examinemos,
permanência de conflitos irresolvíveis, com o perdurar no
então, quais são as possibilidades significativas do vocábulo
tempo, sem definição jurídica adequada, de questões que en-
"decadência", no ordenamento jurídico brasileiro.
volvam controvérsias entre sujeitos de direito. Os comporta-
mentos interpessoais são tolhidos pelas modalidades deônticas A decadência, como, de resto, todas as entidades do he-
(obrigatório, proibido e permitido), concretizando-se no plano misfério jurídico, pode ser analisada numa instância norma-
factual em termos de cumprimento da orientação normativa tiva, enquanto regra que compõe o sistema do direito positivo
(condutas lícitas) ou no modo de descumprimento (condutas e no plano factual, como acontecimento do mundo, descrito
ilícitas). Enquanto sistema, a ordem jurídica aparece como em linguagem. Fala-se, portanto, em "norma decadencial",
forma de superar conflitos de interesse, estabelecendo, coer- "procedimento" e em "fato decadencial". Na condição de
citivamente, a direção que a conduta há de seguir, em nome do norma, desfrutando da comum estrutura de todas as unidades
bem-estar social. Essa tendência à determinação e à estabili- do ordenamento, consiste de um antecedente ou hipótese e
zação dos comportamentos intersubjetivos nem sempre se de um consequente ou tese. A hipótese descreve as notas
volta, de modo imediato, para o valor "justiça". Antes, persegue predicativas de um evento de possível ocorrência: "dado o
o equilíbrio das relações, mediante a convicção de que uma decurso de certo trato de tempo, sem que o titular do direito
solução jurídica será encontrada: eis o primado da "certeza do o exercite"; e a tese prescreve a desconstituição do direito
direito", que opera para realizar, num segundo momento, o subjetivo de que o sujeito ativo esteve investido: "deve ser a
bem maior da "justiça". extinção do direito".

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Quando recolhida no domínio da facticidade jurídica, a Observando-se as hipóteses de tributo sujeito a lançamen-
decadência vai aparecer como acontecimento que se dá no to realizado pela Administração (lançamento de ofício e "por
tempo histórico e no espaço social. Exemplificando: "a Fazen- declaração"), a regra decadencial, repetimos, vem estabelecida
da Nacional deixou escoar o intervalo de 5 (cinco) anos sem no art. 173 do Código Tributário Nacional, prescrevendo:
celebrar o ato jurídico-administrativo de lançamento, que lhe
competia privativamente". Uma vez relatado esse evento, em "Art. 173. O direito de a Fazenda Pública constituir o crédi-
linguagem competente, isto é, segundo as provas em direito to tributário extingue-se após 5 (cinco) anos, contados:
admitidas, dar-se-á o efeito extintivo que lhe é próprio. Men- I - do primeiro dia do exercício seguinte àquele em que o
ciona-se, aqui, a ocorrência do "fato decadencial", não se uti- lançamento poderia ter sido efetuado;
lizando, nesse ângulo de observação, da palavra "instituto", II - da data em que se tornar definitiva a decisão que houver
que fica reservada ao conhecimento da entidade enquanto anulado, por vício formal, o lançamento anteriormente
efetuado."
estrutura normativa.
Breve investigação semântica revelará nada menos do O efeito extintivo previsto é o do desaparecimento do
que seis acepções para o vocábulo "decadência", no campo do direito da Fazenda, consistente em exercer sua competência
direito tributário: (i) "decadência" como norma geral e abstra- administrativa para constituir o crédito tributário. Reconheci-
ta; (ii) como a hipótese dessa norma, descrevendo o termo final
do o fato da decadência, sua eficácia jurídica será a de fulminar
de um lapso de tempo; (iii) como o consequente da norma geral
a possibilidade de a autoridade administrativa competente
e abstrata, tipificando o efeito extintivo; (iv) como norma indi-
realizar o ato jurídico-administrativo do lançamento. Sabemos
vidual e concreta que constitui o fato de haver decorrido o
que, sem efetuá-lo, não se configura o fato jurídico e, por via
tempo referido na regra geral e abstrata, no mesmo instante
de consequência, também não se instaura a obrigação tributá-
em que determina, no consequente, o efeito fulminante de
ria. É fácil concluir que, nesse caso, a decadência não extingue
desconstituir uma relação existente; (v) como o antecedente
a relação jurídica tributária, mas tão somente a competência
desta última norma individual e concreta; e (vi) tão só como o
para que os agentes do Poder Tributante celebrem o ato de
consequente, também desta última regra. Seu uso, na lingua-
lançamento. A caducidade será extintiva do vínculo apenas nas
gem técnica do direito posto, ou na linguagem científica da
circunstâncias em que tiver sido alegada pelo interessado e
Dogmática, sugere, portanto, o processo de elucidação pois
nem sempre o contexto virá em socorro do intérprete, ficando reconhecida pelo órgão credenciado pelo sistema, depois de
ter nascido a obrigação tributária. Aqui, sim, o efeito será ter-
evidente o equívoco.
minativo da relação. Em ambos os casos, porém, trata-se mes-
O Código Tributário Nacional disciplina a figura da de- mo do direito de a Fazenda Pública editar a norma individual
cadência nos arts. 173 e 150, § V. O primeiro aplica-se aos e concreta do lançamento.
187
tributos sujeitos a lançamento de ofício , enquanto o segun-
do refere-se aos tributos submetidos ao chamado lançamen- Quanto à contagem do prazo, por sua vez, a previsão legal
to por homologação. é de hialina clareza: nos tributos sujeitos ao lançamento de
ofício e por declaração, dá-se o decurso do prazo decadencial
em desfavor da Fazenda Pública, em cinco anos, contados (i)
187. No qual também se inclui o lançamento por declaração, tradicionalmente do primeiro dia do exercício seguinte àquele em que o lança-
classificado como modalidade autônoma do lançamento de ofício. mento poderia ter sido efetuado - art. 173, I, do CTN; ou (ii) da

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

data em que se tornar definitiva a decisão que houver anulado celebrando os respectivos atos de lançamento tributário. Então,
por vício formal o lançamento anteriormente efetuado — art. o que de efetivo acontece, no caso dos chamados lançamentos
173, II, do CTN. No primeiro caso, temos situação que, no âm- por homologação, é que os agentes públicos visitam ou contro-
bito pragmático, atinge a possibilidade da Administração rea- lam eletronicamente os possíveis contribuintes, fiscalizando-os.
lizar o ato do lançamento' 88 ; no segundo, houve decisão admi- Na eventualidade de encontrarem prestações não recolhidas
nistrativa que desconstitui a relação jurídico-tributária origi- ou irregularidades que impliquem falta de pagamento de tri-
nária do lançamento anteriormente efetuado pela Administra- butos, havendo tempo (isto é, não tendo fluído o prazo de ca-
ção. Em ambas, a Fazenda deixou decorrer prazo de 5 (cinco) ducidade), constituem o crédito tributário e expedem o ato de
anos: são situações sobremaneira distintas, contudo, com a aplicação da penalidade cabível em face do ilícito cometido. O
produção de efeitos jurídicos semelhantes: a decadência. preceito decadencial, nesse caso, é aquele veiculado no art. 150,
§ 42 , do Código Tributário Nacional.
Além disso, cumpre esclarecer que o art. 173, § 1 2 , do CTN
traz outro termo inicial nas hipóteses em que há ciência, pelo A redação é a seguinte:
particular, de algum fato ou medida preparatória indispensável
ao lançamento. Neste caso, ocorrerá antecipação do termo "Se a lei não fixar prazo à homologação, será ele de cinco
inicial para o decurso do prazo decadencial, contando-se cinco anos, a contar da ocorrência do fato gerador; expirado esse
prazo sem que a Fazenda Pública se tenha pronunciado,
anos a partir da data em que se tenha por formalizada a noti-
considera-se homologado o lançamento e definitivamente
ficação do contribuinte a respeito desta medida. extinto o crédito, salvo se comprovada a ocorrência de dolo,
Na hipótese de tributo sujeito a lançamento por homolo- fraude ou simulação."
gação, citemos, concisamente, algumas reflexões sobre os dois
fatos decadenciais: (i) aquele da Fazenda Pública de constituir Quanto à parte inicial, fixa o prazo de 5 (cinco) anos para
ou modificar, por lançamento de ofício, créditos de tributos que se faça a homologação, a contar da ocorrência do "fato
sujeitos ao lançamento por homologação; e (ii) aquel'outro do gerador". Transcorrido esse prazo a contar do acontecimento
particular de pedir a devolução do tributo pago indevidamente. tributário cuja formalização incumbia à iniciativa do contri-
buinte (lançamento por homologação), sem que a Administra-
A Fazenda Pública, no exercício de sua função fiscaliza-
ção Pública se tenha pronunciado, considera-se homologado
dora, deve acompanhar de perto o comportamento dos seus o lançamento e definitivamente extinto o crédito tributário.
administrados, zelando pela observância das obrigações a que
estão submetidos. O direito positivo estabelece prazo definiti- Em outras palavras, fica extinta a possibilidade de a Fa-
vo para que a entidade tributante proceda à constituição ou zenda Pública expedir norma individual e concreta, tanto
modificação dos créditos a que tem direito. Dentro desse perí- constituindo por meio dela novo crédito não alcançado pela
odo e, ao controlar a conduta dos seus supostos contribuintes, norma produzida pelo particular ou não constituído pelo con-
está habilitada a formalizar as exigências que entender cabíveis, tribuinte por norma alguma, quanto modificando o crédito já
constituído pelo contribuinte em decorrência da sobreposição
de normas individuais e concretas. Uma vez exaurido, não
188. Salvo se, a despeito de transcorridos 5 (cinco) anos, o lançamento vier poderá a Fazenda Pública reclamar seu direito subjetivo ao
a ser efetivado. Neste caso, o reconhecimento do fato decadencial opera a gravame, extinguindo-se o crédito do jeito em que se encontra
extinção do liame indevidamente formado. ou exaurindo-se a possibilidade de constituição do crédito
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

tributário. Temos para nós que esse lapso de tempo termina Por seu turno, existe outra hipótese decadencial que traz
com o mero decurso do prazo decadencial ou, quando posto como consequência o desaparecimento do direito do particular
em linguagem competente, com o fato jurídico da decadência. de pedir a devolução do tributo pago indevidamente. Essa
O problema, porém, não se demora aí e sim na ressalva final: prerrogativa há de ser exercida num lapso que tem, como ter-
salvo se comprovada a ocorrência de dolo, fraude ou simulação. mo inicial, a data da extinção do débito e, como termo final, o
A realidade cotidiana nos mostra que numerosas situações marco de cinco anos. É bem verdade que a contagem desse
de falta de recolhimento de tributos, em termos parciais ou período de tempo se depara com a dificuldade interpretativa
globais, no quadro de impostos que se sotopõem a esse regime, da locução "extinção do crédito pelo pagamento", uma vez que
abrigam dolo, fraude ou simulação, muito embora diversas o Código Tributário Nacional veicula duas modalidades de
outras causas possam motivar o mesmo efeito. Pois bem, que pagamento: (i) uma, que podemos chamar de "puro e simples";
prazo teria o Poder Público para deduzir suas pretensões tri- e (ii) outra, que aquele próprio Diploma denomina "pagamen-
butárias, tomando-se como pressuposto que a legislação em to antecipado".
vigor se mantém silente, omitindo-se sobre a hipótese? A ques- Havendo ato jurídico-administrativo de lançamento, com
tão é tormentosa e as soluções encontradas pelos autores são a apuração, pelo Fisco, da importância devida a título de tri-
divergentes. Teria cabimento lançar mão dos prazos estipula- buto, o recolhimento do valor correspondente configura a hi-
dos pelo art. 173 do Código? A exigência se perpetuaria, à pótese de "pagamento puro e simples", dando-se por extinto
míngua da instituição de qualquer limite? Seria admissível o crédito (ou o débito, que é a mesma coisa), no momento mes-
aplicar-se, subsidiariamente, o art. 205 do Código Civil, che- mo de sua realização, vale dizer, no átimo em que o recolhi-
gando-se ao período de dez anos? mento for efetuado. Se, todavia, a produção da norma indivi-
Diante da lacuna causada pela omissão do legislador or- dual e concreta, que apura em linguagem o quantum devido
dinário em disciplinar esse prazo, entendemos que a regra que como tributo, couber ao contribuinte — competindo-lhe também
mais condiz com o espírito do sistema é a do art. 173, I, do Có- o "pagamento antecipado" da dívida, o que sucede com os im-
digo Tributário Nacional, isto é, havendo dolo, fraude ou simu- postos sujeitos ao chamado "lançamento por homologação" —,
lação, adequadamente comprovados pelo Fisco, o tempo de o Código Tributário Nacional, por disposição expressa (artigo
que dispõe para efetuar o lançamento de ofício é de cinco anos, 156, VII), determina que a extinção somente acontecerá com a
a contar do primeiro dia do exercício seguinte àquele em que homologação do pagamento antecipado.
poderia ter praticado o ato.
No subsolo da disciplina normativa está a preocupação
São, portanto, duas situações diferentes: a) falta de reco- do legislador em assegurar, por parte do Estado-administração,
lhimento do tributo, em termos totais ou parciais, todavia sem o controle do procedimento de liquidação do gravame. Em
dolo, fraude ou simulação: o intervalo temporal, para fins de comentários ligeiros, partindo a iniciativa de seus agentes, o
lançamento, é de cinco anos, a partir do instante da ocorrência pagamento "puro e simples" terá, sem outros desdobramentos,
do evento tributário; e b) falta de recolhimento, integral ou a virtude de extinguir o crédito tributário. Quando, porém, a
parcial, de tributo, cometida com dolo, fraude ou simulação: o atividade de levantamento do montante devido ficar a cargo
trato de tempo para a formalização da exigência e para a apli- do sujeito passivo, sem passar pelos olhos do Poder Público, a
cação de penalidades é de cinco anos, contados do primeiro situação é mais complexa e pede uma ressalva, apanhando nos
dia do exercício seguinte àquele em que o lançamento poderia fatos da história política e jurisprudencial uma explicação para
ter sido realizado. o entendimento que hoje adotamos.
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Tendo em vista a ambiguidade e vagueza inerente a todo Ao julgar o EREsp n. 435.835, a Primeira Seção do Superior
texto, instalou-se fervorosa discussão da doutrina e jurispru- Tribunal de Justiça pacificou o entendimento em termos de
dência acerca do conteúdo semântico do termo "extinção do que o prazo para interposição de ações que versem sobre a
crédito tributário" nas hipóteses de lançamento por homolo- repetição de tributos sujeitos a "lançamento por homologação"
gação, presente no § 1 2 do artigo 150 do Código Tributário
é de cinco anos, contados da efetiva homologação, seja ela
Nacional, cuja determinação é imprescindível à fixação do
expressa ou tácita.
termo inicial do prazo de decadência para a restituição dos
valores indevidamente recolhidos. Não obstante estar o entendimento jurisprudencial uni-
formizado a respeito do tema, foi editada, recentemente, a Lei
Tudo começou com o reconhecimento da inconstitucio-
nalidade de parte do art. 10 do Decreto-lei n. 2.288/86, que Complementar n. 118/2005, que em seu art. 3 2 , autodenomi-
instituiu o controvertido empréstimo compulsório sobre con- nando-se interpretativo, dispôs ocorrer a extinção do crédito
sumo de combustíveis, acarretando, em meados dos anos no- tributário, no caso de tributo sujeito a "lançamento por homo-
venta, grande fluxo de ações pleiteando a restituição do grava- logação", no instante do pagamento antecipado, e não poste-
me. Já naquela oportunidade, o Egrégio Superior Tribunal de riormente, com a homologação daquele. Em razão do pretenso
Justiça entendeu que a extinção do crédito tributário realiza-se caráter interpretativo, que quer o legislador fazer entender, o
somente com a ulterior homologação do pagamento, conforme art. 42 da referida Lei Complementar prescreve a sujeição do
se depreende do julgado abaixo: art. 3Q ao comando do art. 106, I, do Código Tributário Nacional,
nos termos do qual as leis interpretativas retroagem, aplican-
"TRIBUTÁRIO -EMPRÉSTIMO COMPULSÓRIO - AQUI- do-se a fatos pretéritos.
SIÇÃO DE VEÍCULO E CONSUMO DE COMBUSTÍVEL
- REPETIÇÃO DE INDÉBITO - DECADÊNCIA - PRES- Há que se tomar nota, todavia, que o art. 3Q da Lei Com-
CRIÇÃO - INOCORRÊNCIA. plementar n. 118/2005, veicula comando diverso daquele que
- O tributo arrecadado a título de empréstimo compulsório já vinha sendo adotado, colocando o pagamento antecipado
sobre o consumo de combustíveis é daqueles sujeitos a lan- como único requisito necessário ao desaparecimento do vín-
çamento por homologação. Em não havendo tal homologação, culo obrigacional tributário. A despeito de o referido enuncia-
faz-se impossível cogitar em extinção do crédito tributário. do asseverar que a disposição ali contida é veiculada para
- À falta de homologação, a decadência do direito de repe- efeito de interpretação, evidencia-se, com nitidez, seu caráter
tir o indébito tributário somente ocorre, decorridos cinco inovador. Trata-se de ato do Poder Legislativo, rebelando-se
anos, desde a ocorrência do fato gerador, acrescidos de
contra entendimento já consolidado no Judiciário, promoven-
outros cinco anos, contados do termo final do prazo deferi-
do ao Fisco, para apuração do tributo devido"'". do alterações legislativas que objetivam, efetivamente, modi-
ficar a ordem jurídica sob a qual a jurisprudência se formou.
Em seguida, dada a reiterada manifestação daquela Corte Apresenta, por conseguinte, incompatibilidade com os prima-
sobre o tema, sua posição foi se consolidando naquele sentido. dos da separação dos poderes e da segurança jurídica, além de
lhe serem inaplicáveis os termos do art. 106, I, do Código Tri-
butário Nacional. Nessa direção, é inconstitucional admitir-se
189. Superior Tribunal de Justiça, Agravo Regimental no Recurso Especial que, como quer o art. 4Q da Lei n. 118/2005, o art. 3s retroaja a
354.268/MG (2001/0128020-4), Relator: Ministro Humberto Gomes de Barros eventos já ocorridos, alegando tratar-se de preceito interpre-
DJ 24.11.2003, p. 215.
tativo. Deve, portanto, seguir a regra geral que da mesma
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

forma se encontra prevista no art. 4Q, entrando em vigor 120 realidade. Hoje, sabemos que essa relação entre a palavra e a
(cento e vinte) dias após a publicação, que ocorreu em 9.2.2005, coisa é artificial, convencionalmente estabelecida.
ou seja, em 9.6.2005. Quando aprendemos o nome de um objeto, não aprende-
Em outras palavras, a partir da entrada em vigor da Lei mos algo acerca da coisa, senão sobre os costumes linguísticos
Complementar n. 118/2005, em 9.6.2005, passou-se a admitir de certo grupo ou povo que fala o idioma em que este nome
duas situações distintas para os tributos sujeitos ao "lançamen- corresponde a esse objeto. É corriqueiro afirmar-se que uma
to por homologação". Os fatos juridicizados a partir desta data, coisa tem nome, contudo é mais rigoroso dizer que nós é que
ou seja, os recolhimentos feitos indevidamente e posteriores a temos um nome para essa coisa. Conclusão necessária: não há
este marco passaram a ter prazo decadencial para sua restitui- falar de nomes verdadeiros ou falsos. Já nos advertira Guibourg,
ção contados em cinco anos do instante em que acontece o pa- há, tão somente, nomes aceitos ou não aceitos. E esta poten-
gamento antecipado; antes disso, a contagem se dará da efetiva cialidade para inventar nomes, por sua vez, também leva um
homologação, seja ela expressa ou tácita. Apesar de ter opinião nome: liberdade de estipulação 190 . "Eis que a mesma palavra
pessoal diversa, exponho aqui, em termos didáticos, esse enten- pode significar coisas diferentes e palavras diferentes podem
191
dimento jurisprudencial apenas para fins informativos. representar coisas iguais" .
Por fim, cabe destacar a hipótese decadencial que abran- Nesse ponto, surpreendemos a ambiguidade da palavra
ge ambas as formas de lançamento, de ofício e por homologa- "decadência" no direito tributário para dela construir as dife-
ção, destacada expressamente nos artigos 165, III, e 168, II, rentes situações semânticas que nos são dadas pelo contexto
ambos do CTN. Sem muitos torneios, a lei é clara em estabe- jurídico.
lecer que, na hipótese de reforma, anulação, revogação ou
rescisão de decisão condenatória, tanto para tributos sujeitos Na oportunidade de discorrer sobre o "lançamento", foi
à homologação quanto para tributos sujeitos a lançamento de visto haver nele três momentos significativos de uma e somen-
ofício, são contados cinco anos da data em que se tornar defi- te uma realidade: o ato, o procedimento e a norma. Não sobre-
nitiva a decisão administrativa ou passar em julgado a decisão ja lembrar que ato é, sempre, o resultado de um procedimento e
judicial que tenha reformado, anulado, revogado ou rescindido que tanto ato quanto procedimento hão de estar, invariavelmen-
a decisão condenatória. A regra é de expressão clara, dispen- te, previstos em normas do direito posto.
sando-se outros comentários. Trasladando esse pensamento para o quadro das formu-
lações normativas da decadência, por intuição semântica,
2.9.8.1. Decadência como norma, procedimento e ato perceberemos que todas as características se encontram nas
diferentes situações em que se dá a constituição de norma pelo
Tenho insistido, reiteradamente que, ao lidar com a lin- decurso do prazo. Senão, vejamos.
guagem, o exegeta se vê impelido a construir, a partir do texto,
as diferentes possibilidades interpretativas de cada palavra no
contexto em que ela se insere. Desvincilham-nos daquele laço 190.Introducción al conocimiento cientifico, Buenos Aires, Eudeba, 1985,
que se pretendeu instituir, durante longo tempo, entre termo p. 37.
e seu significado, como algo que nos teria sido dado, mediante 191.José Roberto Whitaker Penteado, A técnica da comunicação humana,
vínculo natural que conhecemos na forma de elementos da São Paulo, Pioneira, 2001, p. 209.

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A ambiguidade dos signos jurídicos, por mais rigoroso forma especial, fazendo adicionar declarações perante autori-
que se apresente o plano semântico dessa linguagem, jamais dades determinadas, requerendo a presença de testemunhas
desaparecerá, mesmo ao lidar com palavras que, aparentemente, e outros requisitos mais. A linguagem do direito não aceita as
mostram-se de simples compreensão. Já vimos que se atribui comunicações sociais em sua forma natural. Impõe, para que
ao vocábulo "procedimento" duas acepções bem distintas: (1) o fato se dê por ocorrido juridicamente, um procedimento es-
"procedimento" como conjunto ordenado de atos administra- pecífico, previsto por norma que lhe outorgue fundamento
tivos e termos que evoluem, unitariamente, para a consecução jurídico e transmitida segundo a linguagem das provas. Eis a
de um ato específico, que é sua finalidade (exemplos: procedi- linguagem do direito positivo (Ldp) incidindo sobre a linguagem
mento administrativo tributário, procedimento de consulta, da realidade social (Lrs) para produzir uma unidade na lingua-
procedimento de licitação, etc.); e (2) "procedimento" como gem da facticidade jurídica (Lfj).
qualquer atividade físico-material e intelectual para a produção Com supedâneo em tais ponderações, entendo que, para
de um ato jurídico-administrativo (exemplo: o funcionário, a decadência ingressar nesse subsistema jurídico, deverá pre-
verificando o quadramento do fato à norma, redige breve au- encher os requisitos: (i) de apresentar-se como expressões
torização, num ato jurídico-administrativo isolado). linguísticas portadoras de sentido jurídico; (ii) produzidas por
No direito tributário, nem sempre encontraremos o "pro- órgãos credenciados pelo ordenamento para sua expedição; e
cedimento" na sua acepção de "série de atos e termos" em sua (iii) consoante o procedimento específico estipulado pela ordem
concretude existencial, pois não está nessa atividade o funda- jurídica por meio de uma norma geral e abstrata.
mento do ato ou da norma, mas, justamente, naquel'outra ação Como providência epistemológica de bom alcance, pode-
físico-material e intelectual, de acepção mais livre e descompro- mos tomar "procedimento da decadência" como atividade,
metida que a primeira, que se volta para a produção de um ato como processo de preparação, que tem início no termo dispos-
jurídico-administrativo e de uma norma individual e concreta. to em lei para a contagem do prazo e término no ato de produ-
ção do fato jurídico, com a expedição do documento compe-
Um passo que nos parece importante nesse caminho é
tente; "ato da decadência" como o produto final do procedi-
asseverar que a palavra "decadência" é usada para denotar
mento, o fato jurídico decadencial, composto por enunciados
esse procedimento completo, em que se observa o decurso de
de teor prescritivo, consubstanciados num documento que
certo trato de tempo, sem que o titular do direito o exercite, e,
passa a integrar o sistema do direito positivo; e, a "norma da
quando traduzido em linguagem competente, tem o condão de
decadência" como a previsão legal abstrata tanto do ato quan-
instaurar a norma decadencial. Em outras palavras, o procedi-
to do procedimento, postulada com a seguinte formulação:
mento prevê, desde o ponto de início da contagem do prazo de- "dado o decurso de certo trato de tempo, sem que o titular do
cadencial - primeiro dia do exercício seguinte à homologação -, direito o exercite, com início no marco especificado em lei e
até as últimas providências normativas para a satisfação do término com a expedição do documento competente; deve ser
direito subjetivo, mediante ato que constitua o fato jurídico da a extinção do direito".
decadência.
A partir da leitura desses enunciados, reconstruindo a
Nos limites desse quadro, aliás, comum no sistema tribu- norma individual e concreta que os tem como suporte físico,
tário, há necessidade premente de ater-se o intérprete à noção receberemos a mensagem deôntica que representa a adequação
de que o direito posto não se satisfaz com a linguagem ordiná- do procedimento, do ato e da norma às exigências do ordena-
ria que utilizamos em nossas comunicações diárias: exige mento jurídico vigente.
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2.9.8.2. Prazo decadencial aplicável às contribuições previ- prescrição e decadência. Em seguida, o art. 149 preceitua que
denciárias a União tem competência exclusiva para instituir contribuições,
observado o disposto nos arts. 146, III, e 150, I e III. Verifica-se
Após a promulgação da Constituição de 1988, pacificou-se que, por expressa disposição da norma inserida no art. 149
o entendimento de que as contribuições sociais, dentre elas as supracitado, as contribuições sociais, das quais é subespécie a
previdenciárias, são tributos. Para que não restassem dúvidas, contribuição previdenciária, sujeitam-se à observância do
o legislador constituinte prescreveu, expressamente, que as disposto no art. 146, III, b, para todos os fins de direito. Daí
contribuições são típicas exigências tributárias, subordinando- decorre a inconstitucionalidade formal do art. 45 da Lei n.
se em tudo e por tudo às linhas definitórias do regime consti- 8.212/91, que acaba por dispor sobre matéria para a qual não
tucional peculiar aos tributos. tem competência, uma vez que o assunto decadência só pode
Sendo tributos, as contribuições previdenciárias estão ser regulamentado por lei complementar.
sujeitas às normas veiculadas pelo Código Tributário Nacional, Nesse sentido é o entendimento do Supremo Tribunal
que foi recepcionado pela Constituição de 1988, com status de Federal, como se depreende da ementa abaixo:
lei complementar, inclusive para harmonizar-se com o dispos-
to no inciso III do art. 146 da Lei Maior. "CONTRIBUIÇÃO SOCIAL — PRAZOS DECADENCIAL
E PRESCRICIONAL — REGÊNCIA - ARTIGOS 45 E 46 DA
Desse modo, se o Código Tributário Nacional, considera-
LEI N. 8.212/91 — DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIO-
do como norma geral de direito tributário e, portanto, com
NALIDADE PELA CORTE DE ORIGEM — HARMONIA
força de lei complementar, dispõe sobre o prazo de decadência COM A CONSTITUIÇÃO FEDERAL — PRECEDENTES -
para fins de constituição dos mais diversos créditos tributários, RECURSO EXTRAORDINÁRIO — NEGATIVA DE SEGUI-
evidente que qualquer lei ordinária modificadora desse prazo MENTO.
será ilegal e inconstitucional, pois é vedado à lei ordinária 1. Na espécie, discute-se a constitucionalidade dos artigos
tratar de matéria reservada à lei complementar. E foi exata- 45 e 46 da Lei n. 8.212/91, no que introduziram prazo deca-
mente isso o que pretendeu a Lei n. 8.212/91, em seu art. 45. dencial e prescricional de dez anos para a apuração e cons-
Tal dispositivo representa frustrada tentativa de ampliar o tituição de créditos da Seguridade Social, e para a respec-
tiva cobrança. A Corte de origem, com base em precedentes
prazo para constituição dos créditos da seguridade social, es-
do órgão especial do Tribunal, concluiu pela desarmonia
tendendo-os de 5 (cinco) para 10 (dez) anos.
dos referidos dispositivos legais com a Carta, ante a circuns-
Determinação desse jaez não encontra respaldo na siste- tância de não terem sido veiculados por lei complemen-
mática constitucional vigente, pois o veículo introdutor "lei or- tar.
dinária" não é apto para desencadear alterações em matéria de 2. No julgamento do Recurso Extraordinário n. 138.284-8/
2
decadência tributária. Esse é assunto ao qual, dada sua relevân- CE, decidido à unanimidade de votos pelo Plenário em 1
de julho de 1992, o ministro Carlos Velloso, relator, quanto
cia para a manutenção da segurança jurídica e estabilidade das
à natureza da norma para a disciplina do instituto da pres-
relações sociais, o constituinte conferiu especial vigilância, exi-
crição consideradas as contribuições sociais, expressamen-
gindo que seja disciplinado por lei complementar. te consignou:
Proclama o inciso III, b, do art. 146 da Constituição da [...]
República que cabe à lei complementar estabelecer normas Todas as contribuições, sem exceção, sujeitam-se à lei
gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre complementar de normas gerais, assim ao C.T.N. (art.

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146, III, ex vi do disposto no art. 149). Isto não quer dizer b) obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadên-
que a instituição dessas contribuições exige lei comple- cia tributários;
mentar: porque não são impostos, não há a exigência no [...]
sentido de que os seus fatos geradores, bases de cálculo 192
3. Ante o quadro, nego seguimento ao extraordinário ."
e contribuintes estejam definidos na lei complementar (destacamos).
(art. 146, III, `a'). A questão da prescrição e da decadên-
cia, entretanto, parece-me pacificada. É que tais insti- Do mesmo modo, são as manifestações do Superior Tri-
tutos são próprios da lei complementar de normas gerais bunal de Justiça:
(art. 146, III, `13'). Quer dizer, os prazos de decadência e "PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. AÇÃO DECLA-
de prescrição inscritos na lei complementar de normas RATÓRIA. IMPRESCRITIBILIDADE. INOCORRÊNCIA.
gerais (CTN) são aplicáveis, agora, por expressa previsão CONTRIBUIÇÕES PARA A SEGURIDADE SOCIAL. PRA-
constitucional, às contribuições parafiscais (C.E, art. 146, ZO DECADENCIAL PARA O LANÇAMENTO. INCONS-
III, `b'; art. 149). TITUCIONALIDADE DO ARTIGO 45 DA LEI 8.212, DE
[...] 1991. OFENSA AO ART. 146, III, 'B', DA CONSTITUIÇÃO.
1. (...)
Esse entendimento veio a ser novamente ressaltado pelo
2. As contribuições sociais, inclusive as destinadas a finan-
Plenário, quando do julgamento do Recurso Extraordinário
ciar a seguridade social (CR, art. 195), têm, no regime da
n. 396.266-3/SC, também relator o ministro Carlos Velloso,
Constituição de 1988, natureza tributária. Por isso mesmo,
cujo acórdão foi publicado no Diário da Justiça de 27 de
aplica-se também a elas o disposto no art. 146, III, 13', da
fevereiro de 2004. Assim restou assentado:
Constituição, segundo o qual cabe à lei complementar dis-
[• •] por sobre normas gerais em matéria de prescrição e deca-
As contribuições do art. 149 da C.E, de regra, podem ser dência tributárias, compreendida nessa cláusula inclusive
instituídas por lei ordinária. Por não serem impostos, a fixação dos respectivos prazos. Consequentemente, pade-
não há necessidade de que a lei complementar defina o ce de inconstitucionalidade formal o artigo 45 da Lei 8.212,
seu fato gerador, base de cálculo e contribuintes (C.E, de 1991, que fixou em dez anos o prazo de decadência para
art. 146, III, `a'). No mais, estão sujeitas às regras das o lançamento das contribuições sociais devidas à Previdên-
alíneas `19' e 'c' do inciso III do art. 146, C.F. Assim, deci- cia Social.
dimos, por mais de uma vez, como, v.g., RE 138.284/CE 3.Instauração do incidente de inconstitucionalidade peran-
por mim relatado (RTJ 143/313), e RE 146.733/S} Rela- te a Corte Especial (CR, art. 97; CPC, arts. 480-482; RISTJ,
193
tor o Ministro Moreira Alves (RTJ 143/684). art. 200)" .
[...] Esse tem sido, também, o posicionamento do Primeiro
Realmente, descabe concluir de forma diversa. Confiram, Conselho de Contribuintes:
numa visão equidistante, o que está preceituado no artigo
146, inciso III, alínea `la', do Diploma Maior: "DECADÊNCIA — O prazo de decadência das contribuições
sociais é o constante no art. 150 do CTN (cinco anos contados
Art. 146. Cabe à lei complementar:
E...]
III — estabelecer normas gerais em matéria de legislação 192.RE 552.710 7/SC, Rel. Min. Marco Aurélio, 13.08.2007.
-

tributária, especialmente sobre:


193.AgRg no REsp. n. 616.348/MG, ia T., un., Rel. MM. Teori Albino Zavascki,
[...] j. em 14.12.2004, DJ de 14.02.2005, p. 144.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

do fato gerador), que tem caráter de Lei Complementar, não prescrição, corno fato jurídico que é, não se interrompe nem se
podendo a Lei Ordinária n. 8.212/91 estabelecer prazo di- suspende. Aquilo que se interrompe é o intervalo de tempo que,
94
verso. Recurso parcialmente provido"' . associado à inércia do titular da ação, determina o surgimento
do fato prescricional.
Em síntese, se a alínea b do inciso III do art. 146 da Carta
Este assunto também merece uma série de reflexões.
Fundamental impõe a necessidade de lei complementar para
dispor sobre decadência e, por outro lado, se já existe texto O instituto da prescrição já espertou vários estudos im-
com status de lei complementar sobre o assunto, assume feição portantes para a95dogmática jurídica brasileira. Antonio Luiz
ostensiva a subordinação das contribuições previdenciárias à da Camara Leal' , numa investigação clássica, arrola quatro
norma veiculada pelo art. 150, § 4Q, todos do Código Tributário elementos integrantes do conceito, ou quatro condições elemen-
Nacional, visto tratar-se de tributos sujeitos ao lançamento por tares da prescrição:
homologação.
1Q) existência de uma ação exercitável (actio nata);
2.9.9. Prescrição 2Q) inércia do titular da ação pelo seu não-exercício;
Com o lançamento eficaz, quer dizer, adequadamente 3Q) continuidade dessa inércia durante certo lapso de
notificado ao sujeito passivo, abre-se à Fazenda Pública o pra- tempo;
zo de cinco anos para que ingresse em juízo com a ação de 4Q) ausência de fato ou ato, a que a lei atribua eficácia impe-
cobrança (ação de execução). Fluindo esse período de tempo
ditiva, suspensiva ou interruptiva do curso prescricional.
sem que o titular do direito subjetivo deduza sua pretensão
pelo instrumento processual próprio, dar-se-á o fato jurídico Não é suficiente identificar no instituto da prescrição u'a
da prescrição. A contagem do prazo tem como ponto de parti- medida enérgica da ordem jurídica, no sentido de desestimular
da a data da constituição definitiva do crédito, expressão que a omissão de certas pessoas, na defesa dos seus direitos, fazen-
o legislador utiliza para referir-se ao ato de lançamento regu-
do com que não prosperem situações indefinidas e não fiquem
larmente comunicado (pela notificação) ao devedor.
por muito tempo pendentes direitos e deveres que os fatos
No fundo, é isso que quer dizer o caput do art. 174 do (descritos em normas) vão sistematicamente produzindo.
Código Tributário Nacional. Seu parágrafo único enumera
quatro causas interruptivas do prazo prescricional: citação Para a devida compreensão de sua natureza é fundamen-
pessoal feita ao devedor (I); pelo despacho do juiz que ordenar tal meditar sobre seus requisitos, a fim de conhecermos as
citação em execução fiscal (NR pela LC n. 118/05) (II); qualquer possíveis mutações introduzidas pelo legislador tributário.
ato judicial que constitua em mora o devedor (III); e qualquer É fácil divisar, desde logo, que não se pode falar em curso
ato inequívoco, ainda que extrajudicial, que importe reconhe- da prescrição enquanto não se verificar a inércia do titular da
cimento do débito pelo devedor (IV). ação. Todavia, o termo inicial do prazo, no Código Tributário,
Iniciemos por nos precatar da locução - A prescrição se foi estipulado tendo em conta o momento em que o sujeito
interrompe - que encerra uma flagrante impropriedade. A

195. Da prescrição e da decadência, 2ã ed., Rio de Janeiro, Forense, 1969,


p. 25.
194. 5a Câm., Ac. 105-15.295, Rel. Cons. Daniel Sahagoff, j. em 13/09/2005.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

passivo é notificado do lançamento. Como aceitar que possa prazo prescricional. Admitamos que a entidade tributante se
ter começado a fluir o lapso temporal se, naquele exato mo- mantenha inerte e o devedor, passados três anos, venha a pos-
mento, e ao menos durante o período firmado no ato de lança- tular o parcelamento de seu débito, que confessa existente. A
mento, a Fazenda ainda não dispunha do meio próprio para iniciativa do contribuinte, porque contemplada no item IV do
ter acesso ao Judiciário, visando à defesa de seus direitos vio- art. 174, terá o condão de interromper a fluência do prazo, que
lados? O desalinho entre os pressupostos do instituto e o pre- já seguia pelo terceiro ano, fazendo recomeçar a contagem de
ceito do Código é indisfarçável. Não se preocupou o legislador mais cinco anos para que prescreva o direito de ação da Fazen-
em saber se havia possibilidade de exercício da ação judicial da Estadual. Toda vez que o período é interrompido, despreza-
ou se o titular do direito se manteve inerte. Foi logo estabele- se a parcela de tempo que já foi vencida, retornando-se ao
cendo prazo que tem como baliza inicial um instante que não marco inicial.
coincide com aquele em que nasce, para o credor, o direito de
invocar a prestação jurisdicional do Estado, para fazer valer 2.9.9.2. Suspensão do prazo prescricional
suas prerrogativas. Surpreende-se, neste ponto, profunda di-
vergência entre a lógica do fenômeno jurídico e a lógica do Suspensão no curso do prazo prescricional não é a mesma
fraseado legal. Com que ficamos? coisa que suspensão da exigibilidade do crédito tributário.
Temos inabalável convicção de que as imposições do sis- Frequentemente deparamos com a confusão das duas realida-
tema hão de sobrepor-se às vicissitudes do texto. Este nem des jurídicas, nas obras de bons autores. Para que se suspenda
sempre assume, no conjunto orgânico da ordem jurídica, a o lapso de tempo que leva à prescrição é imperativo lógico que
significação que suas palavras aparentam expressar. ele se tenha iniciado, e, nem sempre que ocorre a sustação da
exigibilidade, o tempo prescricional já terá começado a correr.
A solução harmonizadora está em deslocar o termo inicial
Modelo significativo dessa disparidade encontramos no caso
do prazo de prescrição para o derradeiro momento do período
de impugnações e recursos interpostos nos termos das leis
de exigibilidade administrativa, quando o Poder Público ad-
reguladoras do procedimento administrativo tributário. Lavra-
quire condições de diligenciar acerca do seu direito de ação.
do o ato de lançamento, o sujeito passivo é notificado, por
Ajusta-se assim a regra jurídica à lógica do sistema.
exemplo, a recolher o débito dentro de trinta dias ou a impug-
ná-lo no mesmo espaço de tempo. É evidente que nesse inter-
2.9.9.1. Interrupção do prazo prescricional valo a Fazenda ainda não está investida da titularidade da ação
de cobrança, não podendo, por via de consequência, ser con-
As causas previstas no parágrafo único do art. 174, uma siderada inerte. Se o suposto devedor impugnar a exigência,
vez ocorridas, têm a força de interromper o fluxo temporal que de acordo com as fórmulas do procedimento administrativo
termina com a prescrição. Interrompido o curso do tempo, específico, a exigibilidade ficará suspensa, mas o prazo de
cessa a contagem, começando tudo novamente, isto é, compu- prescrição não terá sequer iniciado.
tando-se mais cinco anos. Exemplifiquemos. A Secretaria da
Fazenda do Estado de São Paulo, mediante decisão adminis- Surge a dúvida em outras hipóteses, como a da moratória,
trativa final, confirma a existência de seu crédito para com do depósito do montante integral do crédito e da concessão de
determinado contribuinte, sendo este notificado do inteiro teor medida liminar em mandado de segurança. Muitas vezes pode
do ato decisório. A partir desse instante começa a escoar o coincidir que, à suspensão da exigibilidade do crédito, fique

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

igualmente suspenso o seguimento do prazo prescricional. A 2.9.10. Conversão de depósito em renda


coincidência, entretanto, exige que a suspensão da exigibilida-
de se dê em átimo subsequente àquele em que o sujeito ativo Entendo que o depósito do montante integral da exigên-
teve condições de acesso à ação judicial de cobrança. cia pode ser promovido no curso do procedimento administra-
tivo ou no âmbito do processo judicial. Feito junto aos órgãos
da Administração Pública, seu papel é de evitar a atualização
2.9.9.3. Prescrição como forma extintiva da obrigação tribu-
do valor monetário da dívida, pois o procedimento prossegue
tária
até decisão definitiva. O depósito, nessa conjuntura, não é
Foi oportuno o legislador do Código ao incluir a prescrição causa de suspensão da exigibilidade, que já está sustada pela
entre as modalidades extintivas da obrigação tributária. De impugnação ou pelo recurso do administrado. Realizado, po-
fato, a todo o direito corresponde uma ação, que o assegura. rém, na esfera do Poder Judiciário, sobre impedir a propositu-
ra da ação de cobrança, exibindo assim seu caráter de fato
Com o perecimento do direito à ação de cobrança, perde o
credor os meios jurídicos para compelir o sujeito passivo à suspensivo da exigibilidade do crédito, previne a incidência da
satisfação do débito. Acontecimento dessa índole esvazia de correção monetária.
juridicidade o vínculo obrigacional, que extrapola para o uni- Nas duas situações, dando-se o depositante por vencido
verso das relações morais, éticas, etc. E o efeito jurídico da e sendo notificado, quer na discussão administrativa, quer na
i mpossibilidade de repetição, nos casos de pagamento de dé- demanda judicial, os valores depositados são convertidos em
bito prescrito, em nada aproveita à tese oposta, uma vez que renda em favor do sujeito ativo. Oportuno recordar que a
as dívidas de jogo têm o mesmo efeito, e não por isso assumiram conversão se dará trinta dias após a notificação do devedor,
dimensões de deveres jurídicos. Estes pressupõem, invariavel- tanto nos casos de decisão jurisdicional quanto naquel'outras
mente, um titular de direito subjetivo a quem o sistema nor- de cunho administrativo, desde que ele não recorra ao Poder
mativo faculta, potencialmente, desencadear o aparelho coati- Judiciário.
vo do Estado, para ver respeitado seu direito. Ali onde estiver A conversão de depósito em renda não deixa de ser u'a
ausente esta capacidade potencial, inexistirá um direito, na modalidade de pagamento. Efetivada, extingue-se o dever ju-
lídima significação jurídica do termo, mesmo que proposições rídico cometido ao sujeito passivo, fazendo desaparecer, por
prescritivas em vigor atribuam certos efeitos ao seu cumpri- correlação lógica, o direito subjetivo de que estivera investido
mento espontâneo. o sujeito credor, decompondo-se a relação jurídica tributária.
Outro deplorável equívoco repousa na teoria perante a
qual, sendo paga uma dívida caduca, terá cabimento a repeti- 2.9.11. Pagamento antecipado e homologação do lançamento
ção, porque desaparecera o direito do sujeito ativo (isto é, o
crédito). Contudo, tratando-se de débitos prescritos, não cabe- Ao inscrever o pagamento antecipado e a homologação
ria a restituição, porquanto, embora houvesse perecido a ação, do lançamento no catálogo das causas extintivas, quis o legis-
o sujeito pretensor continuava titular do direito. De qualquer lador referir-se à situação daqueles tributos que não precisam
ângulo pelo qual se examinem as duas situações, o nexo obri- do ato jurídico administrativo de lançamento, para que possa
gacional estará extinto. Até o Código Tributário o reconhece, o devedor satisfazer a prestação. Há espécies tributárias que
catalogando o instituto entre as formas extintivas. requerem a expedição de ato administrativo, veiculando norma
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individual e concreta do lançamento. N'outras, contudo, a o credor, desfazendo-se o crédito e, correlativamente, o débito,
aplicação da regra-matriz de incidência fica a cargo do sujeito extinguindo a obrigação. Mas, precisamente aqui, ingressa
passivo, de tal modo que, ocorrido o evento no mundo físico- dado que é peculiar ao instituto, tal qual o prescreve o direito
social, encontrará ele nos textos do direito posto todas as in- tributário brasileiro: ainda que o factum do pagamento tenha
formações necessárias à apuração do débito, bem como os efeitos extintivos, requer a legislação aplicável que ele se con-
prazos e demais condições em que a quantia apurada deva ser jugue ao ato homologatório a ser realizado (comissiva ou omis-
recolhida aos cofres públicos. Nessas circunstâncias, caberá à sivamente) pela Administração Pública. Só assim dar-se-á por
entidade tributante fiscalizar os atos praticados por seu admi- dissolvido o vínculo, diferentemente do que sucede nos casos
nistrado, controlando, dessa maneira, o fiel cumprimento das de pagamento de dívida tributária apurada por "lançamento
obrigações tributárias. Trata-se, aqui, de desempenho de con- de ofício", em que a conduta prestacional do devedor tem o
trole, em que o Fisco, zelando na defesa de seus interesses, condão de pôr fim, desde logo, à obrigação tributária.
realiza atividades de verificação. Podendo atestar a regulari-
Importante salientar recente discussão doutrinária a esse
dade da conduta prestacional do devedor, que observou ade-
respeito. Em face do disposto nos artigos 150, §§ 1 2 e 4 2 , e 156,
quadamente os ditames da lei, a Fazenda dá-se por satisfeita,
exarando ato no qual declara nada ter de exigir: é o que se VII, do CTN, o Superior Tribunal de Justiça pacificou o enten-
dimento de que a extinção do crédito tributário, nas hipóteses
chama de homologação expressa de lançamento. Nada obstante,
ao certificar qualquer desacordo na atividade identificadora de tributos sujeitos ao chamado "lançamento por homologação",
ou apuradora exercida pelo sujeito passivo, passa a substituí-lo, opera-se com a homologação, expressa ou tácita, do pagamen-
lavrando ato de lançamento, e, caso venha a surpreender um to antecipado. Como já observado, com o advento do art. 3 2 da
ilícito, aplica, conjuntamente, as medidas sancionatórias cabí- LC n. 118/05, deslocou-se o critério, entendendo-se ser o mo-
veis, compondo a peça denominada "auto de infração". mento do pagamento antecipado, puro e simplesmente, o termo
de contagem do prazo de decadência.
Sempre atento à segurança das relações jurídicas, e to-
mando como pressuposta a diretriz segundo a qual a expecta- Vem ao caso registrar que, além do fato de o artigo 3 2 da
tiva dos direitos e dos correlatos deveres não pode perdurar Lei Complementar n. 118/2005 dispor que o comando é ali
no tempo, indefinidamente, o sistema normativo brasileiro veiculado "para efeito de interpretação", o artigo faz expres-
criou a figura da homologação tácita. Se o sujeito ativo não sa referência ao artigo 106, I, do Código Tributário Nacional,
exercer suas competências administrativas, fiscalizando, con- nos seguintes termos:
cretamente, as atuosidades do devedor, durante o lapso de
"Art. 4Q Esta lei entra em vigor 120 (cento e vinte) dias após
cinco anos, a contar da data dos eventos tributados, operar-se-
sua publicação, observado, quanto ao art. 3Q, o disposto no
á a homologação, vale dizer, toma-se por efetivada a fiscalização
art. 106, I, da Lei n. 5.172, de 25 de outubro de 1966 — Códi-
daqueles atos, extinguindo-se o liame obrigacional. go Tributário Nacional".
Quanto à figura do pagamento antecipado, é forma de
pagamento, significando o cumprimento, pelo sujeito passivo, Com tal determinação, objetiva que o disposto no artigo 3 2
da conduta que dele se esperava. Isso poderia levar à conclusão retroaja, sendo aplicado a fatos passados. Todavia, como expos-
de que com a realização do pagamento antecipado ter-se-ia o to, reiteradamente, o Judiciário, por meio do Superior Tribunal
desaparecimento do direito subjetivo de que esteve investido de Justiça, possui posicionamento consolidado a respeito do

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assunto. Em razão disso, não se pode tomar o preceito do artigo 2.9.12. O paradoxo da homologação tácita
3 2 como se fosse mera regra interpretativa.
Esse o motivo pelo qual, por ocasião do julgamento do Esperta nossa curiosidade refletir um pouco sobre a cha-
EREsp n. 327.043-DF, iniciado em 23/03/05, o Relator Ministro mada "homologação tácita". O lançamento por homologação
João Otávio de Noronha proferiu voto mantendo o atual en- já encerra uma contradição vitanda, pois a atividade de lançar
tendimento da jurisprudência do STJ. Segundo ele, a tese dos briga com o ato de homologar: quando o agente público pode
"cinco mais cinco", que considera a homologação como ele- e, portanto, deve lançar, estará certamente impedido de homo-
mento imprescindível à extinção dos créditos tributários a ela logar. Observado pelo ângulo oposto, quando o funcionário
sujeitos, está pacificada há 15 (quinze) anos. Não há falar, por pode e deve homologar, seria absurdo lavrar o ato de lança-
conseguinte, em lei interpretativa ou em exegese autêntica. A mento. De que modo, então, combinar os dois expedientes,
despeito de ver hoje entendimento que estipula a data da en- juntando-os numa entidade só? São proezas que o legislador
trada em vigor da LC n. 118/05 como divisor de águas das di- concebe e para as quais nós, descritores do direito posto, temos
ferentes hipóteses de início de contagem do prazo decadencial, que encontrar aquele difícil minimum de racionalidade que a
creio que se deseja com esse novo comando alterar situação mensagem legislada há de conter.
estabilizada, favorável ao contribuinte, desconstituindo-se tudo
Como se não bastasse, foi criada a "homologação tácita",
o que foi concretizado no passado. Aceitar essa espécie de
figura canhestra que tem a virtude, porém, de nos levar a cer-
determinação significaria dar um cheque em branco ao Legis-
tas meditações sobre o direito como texto, lembrando aqui a
lativo, para que este, discordando da interpretação realizada
obra sempre presente de Gregório Robles. Com efeito, se os
pelo Judiciário, possa modificá-la, como se fora uma instância
de sobreposição. fatos jurídicos, na completude da sua multiplicidade, revestem-
se, necessariamente, de uma forma de linguagem (a linguagem
De forma semelhante, manifestou-se o Ministro Peçanha competente), como conceber manifestações tácitas destituídas
Martins, que, após referir-se a todo o trabalho de construção de suporte no plano dos significantes ou, dito de outra manei-
jurisprudencial relativa ao tema, concluiu não vislumbrar, no ra, no plano da literalidade textual?
artigo 3Q da Lei Complementar n. 118/2005, caráter interpreta-
tivo. Trata-se, a seu ver, de uma lei nova, que diz ser interpre- Ora, quando os processualistas tratam da oralidade, fa-
tativa, mas não é. Por conseguinte, não pode retroagir. Acom- zem-no com relação àquela susceptível de redução a escrito.
panharam o voto do relator, também, os Ministros José Delga- Para que a peça ou o depoimento pessoal da testemunha, por
do e Franciulli Neto, identificando, no dispositivo em exame, exemplo, possa ingressar nos autos, autêntico depósito de todos
tentativa de pressionar o Judiciário, ao determinar que este os atos e fatos que compõem a situação controvertida, é abso-
altere seu modo de compreender aquele preceito legal. lutamente necessário que assuma feição escrita. A premissa
de que não há fato jurídico sem linguagem está de pé, pronta
Renovo a posição segundo a qual, abaixo da justiça, o ide-
para enfrentar todas as vicissitudes da experiência jurídica.
al maior do direito é a segurança jurídica, sobreprincípio que se
irradia por todo o ordenamento e tem sua concretização viabi- Se a homologação tácita tem a pretensão de irradiar efei-
lizada por meio de outros princípios, tal como o da irretroativi- tos jurídicos, predicado dos fatos que são antecedentes de
dade das leis. Com ela não se compatibiliza dispositivo que, além normas individuais e concretas, por esse mesmo motivo, deve
de determinar ao Judiciário que este modifique orientação pa- ser vertida em linguagem. Pensemos na impugnação oferecida
cificada, pretende ser aplicado retroativamente. por sujeito passivo autuado com base na desconformidade de
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valores que teriam sido pagos há sete anos. Uma, de duas: ou competente, verifica-se que uma linguagem de sobrenível des-
seu argumento cairá em solo estéril, desconhecida a alegação constituiu, juridicamente, linguagem de posição hierárquica
e mantido o auto, ou a autoridade julgadora o acolhe, cance- inferior. Para aqueles que, ao contrário, imaginarem ser o fato
lando a exigência e a manifestação escrita desse reconheci- tributário mero evento, fazendo nascer aquilo que se chama de
mento constituirá o fato jurídico da homologação tácita, que "relação jurídica efectual", surgirá um contra-senso, uma vez
terá o condão de retroceder, no tempo, até o termo final do que, se a decisão declara inexistente o crédito, não haveria que
prazo previsto pelo CTN. Esse, contudo, é apenas um exemplo. falar em extinção, haja vista a impossibilidade de se extinguir o
Outras circunstâncias podem ser imaginadas. O que releva que não existe. Diante do exposto, ficam reforçadas as vantagens
assinalar, por enquanto, é que a homologação tácita tem de da concepção que considera surgido o fato e a obrigação por
apresentar-se por escrito, para que possa surtir os efeitos que força de uma linguagem juridicamente prevista.
lhe são próprios: um deles, o de extinguir o débito tributário. No que diz respeito à situação da decisão administrativa
Eis aí o paradoxo da homologação tácita, matéria deste sub- irreformável que ataca vícios de constituição do crédito, anu-
capítulo. lando-o, mas reconhecendo o direito da Fazenda, o entendi-
mento administrativo volta-se para a ilegalidade do ato de
2.9.13. Decisão administrativa irreformável lançamento. Nesse caso, opera-se a extinção da obrigação tri-
butária outrora surgida com o lançamento que fora anulado,
A decisão administrativa irreformável, equivale a dizer, abrindo-se à entidade tributante o prazo de mais cinco anos,
aquela da qual não cabe mais recurso aos órgãos da Adminis- que é lapso decadencial, para constituir novamente a relação
tração, é posta como causa extintiva, consoante o item IX do jurídica tributária.
art. 156 do Código Tributário Nacional. Ao mencioná-la, agre-
gou-se a cláusula - que não mais possa ser objeto de ação anu-
latória. Vem, então, a pergunta: teria a Fazenda Pública a
2.9.14. Decisão judicial passada em julgado
possibilidade de predicar em juízo a anulação de ato por ela
A decisão judicial passada em julgado é aquela que con-
lavrado, depois de ingente procedimento administrativo, que
substancia, em toda plenitude, a prestação jurisdicional do
é, de fato, uma sucessão de atos controladores da legalidade
Estado, tendo em vista caso concretamente considerado. As-
do lançamento? Estimamos que não. Percorrido o iter proce-
sume tal força quando dela não couber recurso algum ao Ju-
dimental e chegando a entidade tributante ao ponto de decidir,
diciário e está prevista no item X do art. 156 da Lei n. 5.172/66,
definitivamente, sobre a inexistência de relação jurídica tribu-
como modalidade de extinção do crédito tributário.
tária ou acerca da ilegalidade do lançamento, cremos que não
teria sentido pensar na propositura, pelo Fisco, de ação anu- O comentário que fizemos no subcapítulo anterior calha,
latória daquela decisão. à perfeição, para o exame desse fato extintivo. Isso porque, seja
atacando vício formal, seja apreciando o mérito do feito, a lin-
O ato administrativo irreformável, que favorece o sujeito
guagem da decisão judicial passada em julgado sobrepõe-se à
passivo, pode consistir na negação da existência do vínculo que
linguagem que prevaleceu até aquele momento, extinguindo
se supunha instalado, como também decretar a anulação do
a relação jurídica tributária.
lançamento. Quanto à primeira hipótese, considerando-se que
o fato jurídico tributário e a correlativa obrigação são consti- Ressalte-se, porém, diferentemente do que ocorre na esfe-
tuídos pela linguagem que o sistema do direito positivo dá por ra administrativa, a decisão judicial passada em julgado que
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anula a exigência tributária por vício formal não interrompe o da relação jurídico-tributária. Outra norma fixará a possibili-
prazo decadencial. Assim, uma vez passada em julgado a de- dade de o contribuinte satisfazer a obrigação mediante a en-
cisão judicial, a entidade tributante poderá empreender outro trega de bem imóvel. Logo, a definição de tributo prevista no
lançamento, em boa forma, apenas se ainda dispuser de tempo, art. 3 4 do Código Tributário Nacional não sofreu modificações,
computado dentro do intervalo de cinco anos atinentes à de- valendo todos os comentários feitos anteriormente.
cadência, o que é muito difícil de verificar na experiência jurí-
dica brasileira.
2.10. "EXCLUSÃO" DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO

2.9.15. Dação em pagamento em bens imóveis na forma e O tema da exclusão do crédito tributário nos põe diante
condições estabelecidas em lei de situações sobremaneira importantes no direito tributário,
possibilitando que, de sua análise, possamos olhar de forma
A Lei Complementar n. 104, de 10 de janeiro de 2001, crítica o sistema jurídico em vigor e, pela hermenêutica, re-
veiculou nova modalidade de extinção do crédito tributário, construir dogmaticamente a compreensão dos dispositivos que
qual seja a dação em pagamento em bens imóveis, na forma e a ela se referem. Isso porque falar em excluir é ingressar nos
condições estabelecidas em lei. Enquanto não publicada a lei domínio da "vida" do crédito tributário, verificando os laços
que introduz os requisitos de aplicação dessa hipótese extinti- existentes na estrutura lógica da norma jurídica, associando-se
va, a norma prevista no art. 156, XI, do Código Tributário crédito e vínculo obrigacional numa só formulação 196 .
Nacional será ineficaz sintaticamente, porquanto ausentes
regras no sistema que possibilitem construir a cadeia de posi-
tivação, cujo ponto terminal são as normas jurídicas de máxima 2.10.1. Teoria da norma e as isenções tributárias
concretude. Importa consignar, também, que a inserção desse
O estudo do perfil constitucional das isenções é tema deli-
novo enunciado extintivo do crédito não altera as cláusulas do
cado porque alça o exame da matéria, ordinariamente tratado
art. 3s da Lei n. 5.172/66, especialmente quanto à prestação
no plano infraconstitucional, para apreciá-lo à luz dos preceitos
qualificar-se como estritamente pecuniária. Não há por que
confundir a regra-matriz de incidência tributária, que, no es- da Lei Suprema. E afirmo que o enfoque é pouco usual, por-
paço sintático de consequente, traz elementos de uma relação quanto a doutrina sobre o assunto, desdobrando-se na análise
jurídica cuja prestação consubstancia a entrega de certa soma da farta produção legislativa que marca o exercício das compe-
em dinheiro, e a norma jurídica extintiva, que prevê, no seu tências tributárias dos entes políticos, raras vezes tem discutido
antecedente, a hipótese de realização da dação de imóveis - os limites e os pressupostos que a Constituição estabelece, ten-
cumpridas as condições previstas em lei ordinária de cada ente do em vista a possibilidade de outorga de isenções.
político, na esfera de sua competência impositiva - e, no con- Com efeito, para o campo da especulação jurídica, o vo-
sequente, enunciados que serão utilizados para, no cálculo cábulo "isenção" experimentou sensível oscilação semântica
lógico das relações normativas, fazer desaparecer o crédito nos últimos 40 (quarenta) anos. De "dispensa do pagamento
tributário. Vê-se que a regra-matriz de incidência continua
veiculando o dever de pagar em pecúnia, jamais mediante a
entrega de bens. A norma individual e concreta decorrente da 196. Já fizemos algumas notas a respeito do termo "exclusão" no item 2.5.5.
regra-matriz também estipulará um valor pecuniário no interior Crédito, débito e obrigação tributária: limites conceptuais.

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do tributo devido", para "hipótese de não incidência legalmen- chegar ao plano factual, já encontrava a situação adequada-
te qualificada", passando por "fato impeditivo", até chegar ao mente protegida. Na terminologia de Pontes de Miranda, a
fenômeno de "encontro de normas com a mutilação da regra- corrente mais antiga, presente no subsolo do Código Tributá-
matriz de incidência", o instituto se estende em termos signi- rio Nacional, tomava a isenção como norma desjuridicizante,
ficativos, propiciando interessante fonte de pesquisa. Tudo vai ao passo que a concebia como regra não-juridicizante, uma vez
depender do paradigma que for adotado e dos padrões de que evitava a juridicização do factum previsto na lei como en-
consistência do estudioso ao promover suas investigações. sejador do nascimento de prestações tributárias.

"Isenções" sempre foi tema complexo, ainda que inten- De ver está que as duas propostas da Dogmática tinham
samente presente na economia das relações tributárias brasi- um ponto comum: disputavam a velocidade da incidência das
leiras. Seus efeitos liberatórios, suas consequências no campo normas jurídicas. Para a teoria tradicional, a regra de tributação
negocial, seu perfil de instrumento eficaz para a obtenção de chegava antes, cumprindo seu papel juridicizante, enquanto a
resultados extrafiscais, entre outros, seriam aspectos relevan- de isenção, quando atingia o fato, já se deparava com a situação
tes para identificar o instituto como algo de fácil manejo, sem- consumada, restando-lhe apenas promover a dispensa do paga-
pre à disposição das autoridades que legislam, tendo em vista mento do tributo devido (devido por força da incidência da
calibrar o impacto da percussão dos tributos, atenuando dis- primeira). Ao transpor os elementos da análise, a tese renova-
torções e aperfeiçoando os microssistemas de incidência. É dora atribuiu maior presteza à norma de isenção que, de manei-
larga a utilização do mecanismo das isenções na tradição jurí- ra fulminante, desabava sobre o acontecimento previsto, prote-
dica de nosso país, oferecendo conteúdos amplamente discu- gendo-o das irradiações implacáveis da regra de tributação. Esta,
tidos, quer na esfera dos órgãos administrativos, quer nos de trajetória mais morosa, não tinha como expandir efeitos,
domínios do Poder Judiciário. Tudo se conciliaria, portanto, impedida de propagar sua carga de juridicidade.
para fazer do assunto matéria rica em construções doutrinárias, Poucas matérias têm suscitado tantas dúvidas e fomenta-
com propostas teóricas aptas para descrever esse fenômeno do tão grande insegurança como a temática das isenções.
jurídico em termos de elucidação fecunda. Igualmente no seio da jurisprudência, como na obra dos mais
Sabemos, entretanto, que não é assim. As poucas teorias aforados tributaristas, o instituto se encontra plasmado sem o
existentes esbarram em obstáculos de difícil transposição, travo esclarecedor de u'a metodologia precisa e rigorosa, capaz
de sugerir soluções apropriadas a hipóteses que o direito po-
permanecendo em nível epidérmico, tão ao gosto daqueles que
sitivo consagra e que os aplicadores da lei não conseguem
se satisfazem com soluções rápidas e pretensamente "eficien-
destrinçar, soabrindo caminhos efetivos ao conhecimento do
tes". Basta mencionar que a tese clássica, vigorando por mui-
regime jurídico adequado à espécie.
to tempo, concluiu tratar-se de singela iniciativa mediante a
qual o legislador dispensava o pagamento do tributo devido, A palpitante realidade do direito, contudo, vivificada, a
isto é, pressupunha a incidência da regra de tributação e, de cada passo, no esplendor de sua eficácia, vem postulando novas
seguida, o efeito da norma exoneratória que cumpria, por essa elucubrações, alinhavadas para o fito de explicar certos pro-
forma, o papel de desqualificar, juridicamente, o dever obriga- blemas que, até agora, não lograram convincente descrição
cional nascido com o impacto da primeira. A antítese inverteu jurídico-científica. Isto porque, por mais admirável que fosse
a sequência: tomava como certo que a regra de isenção incidia a arquitetura composta e desenvolvida pelos júris-cientistas,
para que a de tributação não pudesse fazê-lo, porquanto, ao remanesceria o campo inexaurível do próprio progresso da

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

Ciência, onde há sempre espaço à reflexão e tempo para sope- contudo, dependerá de fatores de ordem pragmática, tornando-
sar conjecturas e alternativas depositadas nos misteriosos ar- se mais ou menos convincentes.
quivos da memória. As normas de isenção pertencem à classe das regras de
Dentro desse quadro, impunha-se a revisão das premissas, estrutura, que intrometem modificações no âmbito da regra-
tornando-se evidente a necessidade de repensar o assunto. matriz de incidência tributária. Guardando sua autonomia
Mas, refletir sobre ele significava ingressar no terreno da Fi- normativa, a norma de isenção atua sobre a regra-matriz de
losofia e da Teoria Geral do Direito, de onde se depreenderia incidência tributária, investindo contra um ou mais critérios
uma sólida teoria da norma para, de lá, empregando categorias de sua estrutura, mutilando-os, parcialmente. Com efeito, tra-
fundamentais do conhecimento jurídico, projetar luzes sobre ta-se de encontro de duas normas jurídicas que tem por resul-
o fenômeno das isenções. Isso explica, de certa forma, a relu- tado a inibição da incidência da hipótese tributária sobre os
tância da doutrina convencional em procurar outros caminhos, eventos abstratamente qualificados pelo preceito isentivo, ou
conformando-se em conviver com soluções pouco satisfatórias que tolhe sua consequência, comprometendo-lhe os efeitos
e mantendo o véu de dificuldades que obscurecia o contato prescritivos da conduta. Se o fato é isento, sobre ele não se
com a matéria. opera a incidência e, portanto, não há que falar em fato jurídico
tributário, tampouco em obrigação tributária. E se a isenção se
2.10.2. Evolução semântica da descrição jurídico-científica da der pelo consequente, a ocorrência fáctica encontrar-se-á inibi-
isenção da juridicamente, já que sua eficácia não poderá irradiar-se.
O que o preceito de isenção faz é subtrair parcela do cam-
Acredito que foram sobremodo relevantes os estudos
po de abrangência do critério do antecedente ou do consequen-
desenvolvidos no Brasil sobre a Teoria da Norma Tributária,
te, podendo a regra de isenção suprimir a funcionalidade da
atrelando hipótese e consequência como proposições indisso-
ciavelmente ligadas para outorgar caráter de unidade às men- regra-matriz tributária de oito maneiras distintas: (i) pela hi-
pótese: i.1) atingindo-lhe o critério material, pela desqualifica-
sagens deônticas. Com o isolamento da regra-matriz de inci-
dência ficou mais fácil observar o dinamismo do fenômeno ção do verbo; i.2) mutilando o critério material, pela subtração
jurídico em geral e sua aplicabilidade ao setor das imposições do complemento; i.3) indo contra o critério espacial; i.4) vol-
tributárias. Daí para a produção de modelos específicos que tando-se para o critério temporal; (ii) pelo consequente, atin-
atendessem às reivindicações de nossa realidade empírica, foi gindo: ii.1) o critério pessoal, pelo sujeito ativo; ii.2) o critério
mera questão de tempo, pois se estabilizou a plataforma sobre pessoal, pelo sujeito passivo; ii.3) o critério quantitativo, pela
a qual uma teoria das isenções, bem composta em sua estru- base de cálculo; e ii.4) o critério quantitativo, pela alíquota.
tura lógico-semântica, poderia erguer-se. E quando me refiro De qualquer maneira, a regra de isenção ataca a própria
a uma teoria não pretendo assumir posição ontológica a res- esquematização formal da norma-padrão de incidência, para
peito do assunto, como se somente uma fosse possível. Desde destruí-la em casos particulares, sem aniquilar a regra-matriz,
que bem articulada, tecida a partir de meditações da lógica do que continua atuando regularmente para outras situações.
dever-ser e desenvolvida sobre categorias da Teoria Geral do
Direito, vertendo-se em linguagem apropriada, as construções Salienta-se, para fins deste estudo, que a norma isentiva
do espírito adquirem foros de sustentação científica, merecen- tem objetivo determinado: mutilar, parcialmente, a regra-ma-
do o respeito da comunidade especializada. Sua expansão, triz de incidência tributária.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

Importa referir que o legislador, muitas vezes, dá ensejo de sua ideologia e, principalmente, dentro dos limites de seu
ao mesmo fenômeno jurídico de recorte normativo, mas não "mundo", vale dizer, do seu universo de linguagem. Exsurge,
chama a norma mutiladora de isenção. Não há relevância na com muita força, o axioma da inesgotabilidade do sentido, ao
terminologia usada, pois aprendemos a tolerar as falhas do lado da intertextualidade, que operam não só no território do
produto legislado e sabemos que somente a análise sistemáti- sistema do direito positivo, mas o transcende, na direção de
ca, iluminada pela compreensão dos princípios gerais do direi- outros segmentos do saber. A interpretação dos nossos dias
to, é que poderá apontar os verdadeiros rumos da inteligência outorga grande importância à história e à tradição, reconhe-
de qualquer dispositivo de lei. cendo que o direito, como objeto cultural que é, há de ser visto
Por esses motivos, a título exemplificativo e levando em nos lindes do seu tempo, sem o que não será adequadamente
conta que a contribuição ao PIS e à COFINS apresentam como compreendido.
critério material da hipótese normativa o fato de "auferir re- Os predicados da inesgotabilidade e da intertextualidade,
ceitas", tendo como base de cálculo exatamente o montante porém, não significam ausência de limites para a tarefa inter-
destas, qualquer supressão acaba por mutilar a regra-matriz pretativa. A interpretação é do texto: nele tem início, por ele
2
de incidência tributária. É o que fazem, por exemplo, o art. 1 , se conduz e até o intercâmbio com outros discursos se instau-
2 2
§ 3 2 , I V, da Lei n. 10.637/02, e o art. 1 , § 3 , II, da Lei n. 10.833/03: ra a partir dele. Ora, o texto de que falamos é o jurídico positi-
atacam o critério quantitativo da norma que determina a tri- vo, e o ingresso no plano de seu conteúdo tem de levar em
butação, atingindo, mais especificamente, a base de cálculo. conta as diretrizes do sistema. Em princípio, como bem salien-
Essas mesmas leis, entretanto, prescrevem que as receitas tou Kelsen, teríamos molduras dentro das quais múltiplas
não-operacionais, decorrentes da venda do ativo imobilizado significações podem ser inseridas. Mas esse é apenas um pon-
e permanente, não integram a base de cálculo dos gravames to de vista sobre a linguagem das normas, mais precisamente
2 2
examinados (art. 1 2 , § 3 2 , IV, da Lei n. 10.637/02, e art. 1 , § 3 , aquele que privilegia o ângulo sintático ou lógico. Claro está
II, da Lei n. 10.833/03, respectivamente). que no processo de produção normativa os aplicadores estarão
Ao relacionar as espécies de receitas que são excluídas da lidando com os materiais semânticos ocorrentes na cadeia de
base de cálculo tributária, referidas leis acabaram por instituir positivação, pois não teria cabimento prescindir dos conteúdos
verdadeira isenção, mediante mutilação parcial do critério concretos.
quantitativo da regra-matriz de incidência. Se a base de cálcu- O percurso gerador de sentido que leva à interpretação
lo é a medida do fato jurídico tributário (função mensuradora), do texto não pode deixar de considerar os primados superiores
qualquer exclusão que se pretenda fazer implicará reduzir a que disciplinam normativamente o próprio processo. A ordem
regra-matriz de incidência, colocando o fato excluído fora do jurídica brasileira, de modo especial, não só regula os proces-
âmbito da percussão tributária. sos formais de elaboração de normas, mas, sobretudo, fixa os
li mites dentro dos quais deve transitar o raciocínio dos agentes
de aplicação, para que uma série de valores sejam implantados.
2.10.3. Isenções tributárias e extrafiscalidade
Esses valores que orientam a atividade interpretativa
Segundo os padrões da moderna Ciência da Interpretação, estão presentes em todos os âmbitos do direito positivo. Na
o sujeito do conhecimento não "extrai" ou "descobre" o senti- esfera tributária, são implementados mediante regras de cará-
do que se achava oculto no texto. Ele o "constrói" em função ter extrafiscal, que perseguem objetivos alheios aos meramente
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

arrecadatórios. O mecanismo das isenções é um forte instru- o débito do tributo, abrindo mão do seu direito subjetivo de
mento de extrafiscalidade. Dosando equilibradamente a carga percebê-lo; ao anistiar, todavia, a desculpa recai sobre o ato da
tributária, a autoridade legislativa enfrenta as situações mais infração ou sobre a penalidade que lhe foi aplicada. Ambas
agudas, onde vicissitudes da natureza ou problemas econômi- retroagem, operando em relações jurídicas já constituídas,
cos e sociais fizeram quase que desaparecer a capacidade porém de índoles diversas: a remissão, em vínculos obrigacio-
contributiva de certo segmento geográfico ou social. A par nais de natureza estritamente tributária; a anistia, igualmente
disso, fomenta as grandes iniciativas de interesse público e em liames de obrigação, mas de cunho sancionatório. E, além
incrementa a produção, o comércio e o consumo, manejando disso, a anistia pode revelar o esquecimento da infração que
de modo adequado o recurso jurídico das isenções. fez irromper a medida punitiva, enquanto a remissão nunca
incide no fato jurídico tributário, desconstituindo-o ou apagan-
Os problemas mencionados, é verdade, extrapolam os
do-o pelo esquecimento expresso. Têm um ponto em comum:
li mites da especulação jurídica. Formam, no entanto, um subs-
trato axiológico que, por tão próximo, não se pode ignorar. A as duas figuras encerram o perdão. E dois traços distintivos
bem salientes: processam-se em relações jurídicas de diferen-
contingência de carecerem de positivação explícita não deve
tes teores, e uma delas, a anistia, endereça-se também ao
conduzir-nos ao absurdo de negá-los, mesmo porque penetram
evento que caracterizou a infração, tirando-lhe a mancha da
a disciplina normativa e ficam depositados, implicitamente,
antijuridicidade.
nos textos do direito posto. O intérprete do produto legislado,
ao arrostar as tormentosas questões semânticas que o conhe- Feitas essas anotações, cabe registrar que a não ser para
cimento da lei propicia, fatalmente irá deparar-se com resquí- a compreensão do mecanismo jurídico da anistia, no plano
cios dessa intencionalidade que presidiu a elaboração legal. teórico, não vislumbro nenhuma consequência prática na dis-
tinção entre o perdão que retroage ao ilícito e aquele que dis-
2.10.4. Anistia fiscal pensa a penalidade imposta ao infrator. De um ou de outro
modo, a sanção será extinta.
Anistia fiscal é o perdão da falta cometida pelo infrator de A anistia a que se refere o artigo 175, II, do Código Tribu-
deveres tributários e também quer dizer o perdão da penalida- tário Nacional, alcança as penalidades e reflexos do não-paga-
de a ele imposta por ter infringido mandamento legal. Tem, como mento de tributos, do seu pagamento em atraso ou do descum-
se vê, duas acepções: a de perdão pelo ilícito e a de perdão da primento de deveres instrumentais, todos qualificados como
penalidade. As duas proporções semânticas do vocábulo "anis- ilícitos tributários. Ao colher o fato tipificado como infração, a
tia" oferecem matéria de relevo para o direito penal, razão por lei de anistia pode fazê-lo de forma expressa ou tácita. Dá-se a
que os penalistas designam "anistia" o perdão do delito e indul- forma expressa quando o legislador explicitamente indica os
to o perdão da pena cominada para o crime. Voltando-se para ilícitos tributários que ele remite. Ocorre de maneira tácita, na
apagar o ilícito tributário ou a penalidade infligida ao autor da eventualidade de modificação na ordem jurídica, em que as
ilicitude, o instituto da anistia traz em si indiscutível caráter normas adventícias deixem de definir certo ato como infração,
retroativo, pois alcança fatos que se compuseram antes do termo seguindo a regra do artigo 106, II, a, do Código Tributário Na-
inicial da lei que a introduz no ordenamento.
cional. Nesse caso, com o desaparecimento do ilícito, a partir
Apresenta grande similitude com a remissão, mas com da lei, beneficiam-se os atos ou fatos pretéritos, por força de
ela não se confunde. Ao remitir, o legislador tributário perdoa sua aplicação retroativa. É a anistia tácita.
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PAULO DE BARROS CARVALHO

A anistia pode ser concedida, também, em caráter total


ou parcial. No primeiro caso, excluem-se todas e quaisquer
exigências que tenham por origem a prática do ilícito; no se-
gundo, apenas algumas dessas exigências são dispensadas,
podendo, por exemplo, haver extinção dos débitos relativos a
multas, mas mantendo-se os juros.

Capítulo 3
TEORIA DA REGRA-MATRIZ
DA INCIDÊNCIA
Sumário: 3.1. Regra-matriz de incidência - 3.1.1.
A fórmula abstrata da regra-matriz de incidência
- 3.1.2. A hipótese tributária e seus critérios - 3.1.3.
Relação jurídica tributária: a obrigação tributária
como fato jurídico relacional - 3.1.4. Relação jurí-
dica tributária e a relação de débito da Fazenda
Pública - noções - 3.1.5. Formalização em lingua-
gem competente da relação jurídica tributária -
3.1.6. Consequente tributário: o binômio "hipótese
de incidência/base de cálculo" - 3.1.7. Alíquota:
elemento imprescindível à determinação do débito
tributário - 3.1.8. O consequente tributário: sujeitos
ativo e passivo - 3.1.8.1. O significado da palavra
"contribuinte" - 3.1.8.2. A palavra "contribuinte"
nas relações jurídicas obrigacionais do IPI - 3.1.8.3.
Capacidade para realizar o fato jurídico e capaci-
dade para ser sujeito passivo de obrigação tributá-
ria - 3.1.9. Sujeição passiva indireta e responsabi-
lidade tributária - 3.1.9.1. Responsabilidade tribu-
tária dos sucessores - 3.1.9.2. A responsabilidade
tributária dos terceiros - 3.1.9.3. Responsabilidade
tributária por infrações - 3.1.10. Sujeição passiva
indireta e substituição tributária - 3.1.10.1. Substi-
tuição tributária "para trás" e "para frente" - 3.1.11.
Sujeição passiva indireta e solidariedade - 3.1.12.
A importância da determinação do sujeito passivo
da relação tributária nas ações de repetição de in-

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DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO
PAULO DE BARROS CARVALHO

rias" — 3.3.6.3. Direito ao crédito e operacionalidade


débito. 3.2. Para uma síntese da regra-matriz de
da regra-matriz do crédito envolvendo mercadorias
incidência —3.2.1. Esquema lógico de representação
formal — 3.2.2. 0 fenômeno da incidência tributária: —3.3.6.3.1. Direito ao crédito e documentação idônea
— 3.3.6.3.2. Não-incidência e isenção: únicas exce-
a positivação da regra-matriz. 3.3. Regra-matriz
ções constitucionais ao direito ao crédito de ICMS
dos principais impostos — 3.3.1. Anotações sobre o
—3.3.6.4. ICMS e tributação sobre prestação de
presente contexto histórico — 3.3.2. Imposto sobre
serviços de comunicação — 3.3.6.4.1. A atividade dos
a renda — 3.3.2.1. Variações sobre o modo de apro-
provedores de acesso à internet e a não-incidência
ximação cognoscitiva com o IR — 3.3.2.2. Os pressu-
do ICMS — 3.3.6.5. ICMS e tributação sobre presta-
postos constitucionais do imposto sobre a renda —
ção de serviços de transporte — 3.3.6.5.1. Limites do
3.3.2.3. Capacidade contributiva e IR — 3.3.2.4.
conceito "operação de transporte" nos contratos
Análise da regra-matriz do imposto sobre a renda
complexos — 3.3.6.6. ICMS incidente sobre a "reali-
— 3.3.2.5. Competência tributária e a delimitação do
zação de operações de importação de mercadorias":
conceito de "disponibilidade" — 3.3.2.6. Sistema e
seus critérios material e temporal — 3.3.6.7. O cará-
territorialidade do imposto sobre a renda — 3.3.3.
ter nacional do ICMS — 3.3.7. Impostos sobre a
Imposto sobre produtos industrializados — 3.3.3.1.
prestação de serviços de qualquer natureza — 3.3.7.1.
A composição interna das regras-matrizes do IPI
Competência legislativa e ISS — 3.3.7.2. Aspectos
— 3.3.3.2. O critério subjetivo no IPI — 3.3.3.3. A fun-
constitucionais da regra-matriz de incidência do
ção extrafiscal do IPI — 3.3.3.4. Princípio da não-
ISS — 3.3.7.2.1. Critério material da regra-matriz do
cumulatividade no IPI e princípio da não- cumula-
ISS — 3.3.7.2.2. Relevância da lei complementar na
tividade no ICMS: dois dispositivos constitucionais,
delimitação do serviço tributável — 3.3.7.2.3. A "lista
dois regimes jurídicos distintos — 3.3.3.5. Tabela de
de serviços" anexa ao Decreto-lei n. 406/68 e à Lei
incidência do IPI e sua importância para a integra-
Complementar n. 116/03 — 3.3.7.3. O problema da
ção da regra-matriz do imposto — 3.3.3.6. O direito
habitualidade — 3.3.7.4. Sociedades sem fins lucra-
ao crédito nas relações de IPI — 3.3.3.7. Considera-
tivos e o ISS. 3.4. Regra-matriz das taxas — 3.4.1.
ções finais sobre o crédito-prêmio do IPI — 3.3.4.
Taxas e suas espécies — 3.4.2. Taxa exigida em fun-
Impostos aduaneiros — 3.3.4.1. A incidência tribu-
ção da prestação efetiva ou potencial de serviço
tária nas operações realizadas com produtos indus-
público — 3.4.4. Taxa exigida em razão do exercício
trializados — 3.3.4.2. A sujeição passiva nos tributos
do poder de polícia — 3.4.3. A lei complementar e a
aduaneiros — 3.3.4.3. Responsabilidade nos tributos
instituição de taxas. 3.5. Regra-matriz das contri-
aduaneiros — 3.3.4.4. Regimes aduaneiros especiais
buições — 3.5.1. Noções gerais sobre as contribuições
—3.3.4.5. O adicional ao frete para renovação da
tributárias — 3.5.2. Diferentes categorias de contri-
Marinha Mercante — AFRMM — 3.3.4.5.1. Regras
buições sociais e respectivas fontes de custeio —
atinentes à suspensão do pagamento do AFRMM
3.5.3. Requisitos necessários à instituição de "con-
—3.3.5. Imposto sobre Operações Financeiras —
tribuições" — 3.5.4. Contribuições residuais — 3.5.5.
3.3.5.1. IOF: sua hipótese de incidência — 3.3.5.2. IOF
Contribuições destinadas à seguridade social — 3.5.6.
sobre operações relativas a títulos e valores mobi-
Evolução legislativa da contribuição ao PIS e CO-
liários — 3.3.5.3. As operações de "factoring" e
FINS — 3.5.6.1. Conceito de faturamento — 3.5.6.2.
o critério material do imposto sobre opera-
Conceito de receita — 3.5.6.3. Análise dos preceden-
ções financeiras - 3.3.6. Imposto sobre circulação
tes do Supremo Tribunal Federal quanto à diferen-
de mercadorias e prestação de serviços — 3.3.6.1
ciação entre receita e faturamento — 3.5.6.3.1. Pro-
Movimentação física e simbólica de mercadorias
jeção das normas para o tempo futuro — 3.5.6.3.2. A
—3.3.6.2. Alcance da locução "venda de mercado-
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incompatibilidade vitanda da Lei n. 9.718/98, à luz Estabelecidas tais proposições, julgo oportuno retrilhar
do sistema constitucional em vigor na data de sua que o resultado dessa tarefa compositiva haverá de ser a ob-
publicação — 3.5.7. Instituição do regime da não- tenção de um juízo hipotético, e que seus componentes se as-
cumulatividade na contribuição ao PIS e na CO- sociam pelo vínculo da imputação deôntica.
FINS — 3.5.7.1. Direito ao crédito de PIS e COFINS
—3.5.7.2. O fenômeno da isenção no caso dos tribu- Chega-se, enfim, à norma-padrão de incidência, locução
tos não-cumulativos — 3.5.7.3. Vedações ao crédito dotada do mesmo alcance e com a mesma força semântica de
—3.5.8. As cooperativas e o não cabimento sua tri- norma tributária em sentido estrito. Todas as demais regras
butação pelo PIS e COFINS. que componham a disciplina do mesmo tributo, por não cui-
darem, propriamente, do fenômeno da incidência, e também
por motivo de acentuada superioridade numérica, ficarão sob
3.1. REGRA-MATRIZ DE INCIDÊNCIA a rubrica de normas tributárias em acepção ampla.

Já evocamos em páginas anteriores a lição de Lourival


Vilanova' 97 , segundo a qual a proposição que dá forma à nor- 3.1.1. A fórmula abstrata da regra-matriz de incidência
ma jurídica
"Norma jurídica" é a expressão mínima e irredutível (com
"é uma estrutura lógica. Estrutura sintático-gramatical é a o perdão do pleonasmo) de manifestação do deôntico, com o
sentença ou oração, modo expressional frástico (de frase) da sentido completo. Dá-se porque os comandos jurídicos, para
síntese conceptual que é a norma. A norma não é a oralida- serem compreendidos no contexto de uma comunicação bem-
de ou a escritura da linguagem, nem é o ato-de-querer ou sucedida, devem revestir um quantum de estrutura formal.
pensar ocorrente no sujeito emitente da norma, ou no su-
Certamente ninguém entenderia uma ordem, em todo seu al-
jeito receptor da norma, nem é, tampouco, a situação obje-
tiva que ela denota. A norma jurídica é uma estrutura lógi-
cance, apenas com a indicação, por exemplo, da conduta de-
co-sintática de significação (...)" (os grifos são do original). sejada: "pague a quantia de x reais". Adviriam desde logo al-
gumas perguntas e, no segmento das respectivas respostas,
A partir deste asserto pode dizer-se com tranquilidade chegaríamos à fórmula que tem o condão de oferecer o sentido
que as leis não trazem normas jurídicas organicamente agre- completo da mensagem, isto é, a identificação da pessoa titular
gadas, de tal modo que nos seja lícito desenhar, com facilidade, do direito, do sujeito obrigado e, ainda, como, quando, onde e
a indigitada regra-matriz de incidência, que todo o tributo por que deve fazê-lo. Somente então estaríamos diante daque-
hospeda, como centro catalisador de seu plexo normativo. Pelo la unidade de sentido que as prescrições jurídicas necessitam
contrário, sem arranjo algum, os preceitos se dispersam pelo para serem adequadamente cumpridas. Em simbolismo lógico
corpo do estatuto, compelindo o jurista a um penoso trabalho represento assim: D[F-(S'RS")], que interpreto: deve ser que,
de composição. Visto por esse prisma, o labor científico apare- dado o fato E então se instale a relação jurídica R, entre os su-
ce como árduo esforço de procura, isolamento de dados, mon- jeitos S' e S".
tagem e construção final do arquétipo da norma jurídica.
Diante do princípio da homogeneidade sintática das re-
gras do direito positivo, não pode ser outra a conclusão senão
197. Lourival Vilanova, "Níveis de linguagem em Kelsen (Norma jurídica/pro- aquela segundo a qual as normas jurídicas tributárias ostentam
posição jurídica)", in Escritos jurídicos e filosóficos, vol. 2, cit., p. 208. a mesma estrutura formal de todas as entidades do conjunto,
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

diferenciando-se apenas nas instâncias semântica e pragmá- a declarar que, para obter-se a fórmula abstrata da regra-ma-
tica. Caracterizam-se por incidir em determinada região do triz de incidência, é mister isolar as proposições em si, como
social, marcada por acontecimentos economicamente apreci- formas de estruturas sintáticas; suspender o vector semântico
áveis que são atrelados a condutas obrigatórias da parte dos da norma para as situações objetivas, constituídas por eventos
administrados, e que consistem em prestações pecuniárias em do mundo e por condutas; e desconsiderar os atos psicológicos
favor do Estado-administração. Todavia, se o esquema lógico de querer e de pensar a norma.
ou sintático permanece estável, em toda a extensão do sistema, Efetuadas as devidas abstrações lógicas, identificaremos, no
outro tanto não ocorre no plano semântico. descritor da norma, um critério material (comportamento de uma
Convém assinalar que, no domínio das chamadas "normas pessoa, representado por verbo pessoal e de predicação incom-
pleta, seguido pelo complemento), condicionado no tempo (crité-
tributárias", nem todas as unidades dizem, propriamente, com
rio temporal) e no espaço (critério espacial). Já na consequência,
o fenômeno da percussão impositiva. Algumas estipulam dire-
observaremos um critério pessoal (sujeito ativo e sujeito passivo)
trizes gerais ou fixam providências administrativas para im-
e um critério quantitativo (base de cálculo e alíquota).
primir operatividade a tal pretensão. Pelo contrário, são poucas,
individualizadas e especialíssimas as que definem a incidência A conjunção desses dados referenciais oferece-nos a pos-
tributária, conotando eventos de possível ocorrência e pres- sibilidade de exibir, na sua plenitude, o núcleo lógico-estrutu-
crevendo os elementos da obrigação de pagar. Para uma apro- ral da proposição normativa:
ximação mais breve, como expediente didático, pode até afir-
mar-se que existe somente uma para cada figura tributária,
DI[Cm(v.c).Ce.Ct].-->[Cp(Sa.Sp).Cq(bc.a1)»
acompanhada por numerosas regras de caráter funcional. Ora, Explicando os símbolos dessa linguagem formal, teremos:
é firmado nessa base empírica que se justifica a designação
"D" é o dever-ser neutro, interproposicional, que outorga va-
"norma tributária em sentido estrito" àquela que assinala o lidade à norma jurídica, incidindo sobre o conectivo implica-
núcleo do impacto jurídico da exação. E este comando, exata- cional para juridicizar o vínculo entre a hipótese e a consequên-
mente por instituir o âmbito de incidência do tributo, é também cia. "[Cm(v.c).Ce.Ct]" é a hipótese normativa, em que "Cm" é o
denominado "norma-padrão" ou "regra-matriz de incidência critério material da hipótese, núcleo da descrição fáctica; "v" é
tributária". o verbo, sempre pessoal e de predicação incompleta; "c" é o
A construção da regra-matriz de incidência, assim como complemento do verbo; "Ce" é o critério espacial; "Ct" o critério
de qualquer norma jurídica, é obra do intérprete, a partir dos temporal; "." é o conectivo conjuntor "-->" é o símbolo do conec-
tivo condicional, interproposicional; e "[Cp(Sa.Sp).Cq(bc.al)]" é
estímulos sensoriais do texto legislado. Sua hipótese prevê fato
o consequente normativo, em que "Cp" é o critério pessoal;
de conteúdo econômico, enquanto o consequente estatui vín-
"Sa" é o sujeito ativo da obrigação; "Sp" é o sujeito passivo;
culo obrigacional entre o Estado, ou quem lhe faça as vezes,
"bc" é a base de cálculo; e "al" é a alíquota.
na condição de sujeito ativo, e uma pessoa física ou jurídica,
particular ou pública, como sujeito passivo, de tal sorte que o
primeiro ficará investido do direito subjetivo público de exigir, 3.1.2. A hipótese tributária e seus critérios
do segundo, o pagamento de determinada quantia em dinhei-
ro. Em contrapartida, o sujeito passivo será cometido do dever Análises de modernos estudos jurídicos tributários reve-
jurídico de prestar aquele objeto. Essa meditação nos autoriza lam forte tendência doutrinária, para a qual não entrevemos

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

justificação plausível. Doutores de tomo, legítimos represen- declarado estudar a essência do direito tributário, segundo a
tantes de escolas doutrinárias, seguem a mesma trilha, apro- minuciosa análise do suposto das normas primárias (ou endo-
fundando cada vez mais as investigações e criando padrões normas) fiscais. Por outro lado, a generalidade dos autores que
que, com o passar do tempo, vão se solidificando, a ponto de tangem a matéria costuma dedicar, quando menos, um capítu-
tornar sumamente problemática qualquer espécie de revisão lo inteiro de seus livros para o estudo dos elementos ou aspec-
de premissas. É precisamente o que sucede com os estudos tos da hipótese tributária. Temos aí as obras de A. D. Giannini 2 ° 1 ,
acerca das normas jurídicas tributárias. Inexplicavelmente, 203 204
Perez De Ayala 2 ° 2 , Hector B. Villegas , A. A. Becker e Ruy
foram se concentrando as atenções no antecedente, que cha- 205
Barbosa Nogueira entre muitas outras, todas elas buscando
mamos de suposto ou hipótese tributária, para dele construir
no "fato gerador", entendido como suposto de norma primária
dados e elementos que tivessem a virtude de descrever e fun-
tributária, a explicação dos elementos que definem o vínculo
damentar todas as construções tributárias possíveis e imagi-
jurídico-fiscal. É assim que, no aspecto material do anteceden-
nárias. Entenderam de eleger a prótase do juízo hipotético, que
te tributário, encontram a descrição objetiva do fato; no aspec-
é a estrutura lógica da norma tributária, como o repositório
inexaurível em que devessem estar alojados todos os conheci- to espacial, as condições territoriais; no aspecto temporal, as
mentos e todas as soluções. A inclinação é tão vigorosa, tão circunstâncias que definem o momento em que se deve consi-
visível, que pensamos inexistir autor que deixe de considerar derar ocorrido o evento; no aspecto pessoal, os sujeitos da re-
na hipótese os critérios para identificação global dos elementos lação jurídica tributária. Vislumbram, ainda, no exame do su-
que definem a entidade "tributo". Com isso, o suposto das posto das normas de natureza fiscal, a base imponível ou base
normas tributárias transformou-se na pedra angular, no pe- de cálculo que, conjugada à alíquota, perfaz o "quantum" de-
queno núcleo dos grandes conhecimentos, na fonte inesgotável vido. Consoante se vê, as hipóteses tributárias são mananciais
em que haveríamos de haurir os dados fundamentais para a intermináveis de onde a unanimidade da doutrina sói construir
compreensão do fenômeno jurídico-fiscal, surgindo assim a a substância informativa de toda sua investigação científica.
chamada "Escola de glorificação do fato gerador", que tem em Por questão de imperativo lógico, entretanto, não podemos
Dino Jarach, mestre italiano, talvez seu mais conhecido arau-
acolher tais ensinamentos, não obstante o extraordinário valor
to. São palavras do conceituado cientista:
dos estudos até aqui empreendidos pela referida doutrina.
"Es esta la razón por qué este ensayo de una teoria general Realmente, se ousamos concordar com aquelas noções preli-
del derecho tributario material está construido alrededor minares que bosquejam os contornos dos conceitos jurídicos
de la teoria del hecho imponible." 198

Outras obras
199
surgiram, no Brasil, como as de Amílcar 201.A. D. Giannini, Concetti fondamentali del diritto tributario, UTET, 1956,
200
de Araújo Falcão e Geraldo Ataliba , tendo como escopo P. 64.
202.Perez de Ayala, Derecho tributario, Madrid, Editorial de Derecho Finan-
ciero, 1968.
198.Dino Jarach, El hecho imponible, 2a ed., Buenos Aires, Abeledo Perrot, 203. Hector B. Villegas, Curso de finanzas: derecho financiero y tributario,
p. 68. Depalma, Buenos Aires, 1972.
199.Amílcar de Araújo Falcão, Fato gerador da obrigação tributária, Rio de 204.A. A. Becker, Teoria geral do direito tributário, 4 ed. São Paulo, Noeses,
2

janeiro, Forense, 1994. 2007.


200.Geraldo Ataliba, Hipótese de incidência tributária, Revista dos Tribunais,
205.Ruy Barbosa Nogueira, Curso de direito financeiro, São Paulo, J. Bushatsky
1973.
Ed., 1971.
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

tidos como fundamentais, evidentemente que haveremos desse evento. Debalde procuraremos informações estranhas,
de repelir, de modo peremptório, qualquer espécie de ra- porque o suposto não as conterá. Quais os critérios que po-
ciocínio que venha esvaziar de substância a consequência derão servir para identificar um fato lícito, que não acordo
da norma jurídica tributária, para efeito de deslocar os ele- de vontades considerado em si mesmo? O critério material
mentos que a definem como relação jurídica, para a hipóte- - descrição objetiva do fato - que é o próprio núcleo da hi-
se da mesma regra. pótese; o critério espacial - condições de lugar onde poderá
Nos termos em que a doutrina o coloca, temos a negação acontecer o evento; e o critério temporal - marcos de tempo
tácita da norma jurídica como juízo hipotético, em que se en- que nos permitirão saber em que momento se considera
laça uma consequência a um antecedente. Seria, ademais, ocorrido o fato. Esses são os dados que a análise dos supos-
desmentir a afirmação mediante a qual a consequência das tos das normas primárias de deveres fiscais - tanto aquela
normas jurídicas é sempre a instauração de liame entre pes- que se refere à obrigação quanto as dos deveres instrumen-
soas. Representaria, finalmente, mesclar aspectos de realidades tais - possibilitará construir. Não havendo mais que a des-
distintas, enformando curiosa figura híbrida. Verdadeiramen- crição hipotética de um fato, tais critérios prestar-se-ão para
te melancólico o papel que se atribui à consequência das nor- identificá-lo, perfeitamente.
mas primárias tributárias, enquanto se reserva à hipótese a
virtude de conter os dados essenciais, os elementos definidores
3.1.3. Relação jurídica tributária: a obrigação tributária como
dessa classe de fenômenos jurídicos. De que serviria a "apódo-
fato jurídico relacional
se" do juízo hipotético que exprime uma norma primária tri-
butária se não tem critérios para oferecer ao jurista, se os
Não é sem propósito o asserto de que a Ciência do Direito
próprios sinais de identificação do vínculo jurídico são trans-
Tributário já abandonou o estádio de glorificação do "fato ge-
mudados para a "prótase"? Seria totalmente despicienda, o
rador", polarizando suas atenções no laço abstrato que, assu-
que de certo viria a causar intensa e demolidora revolução na
mindo formas diferentes, amarra o sujeito passivo aos desígnios
própria estrutura do Direito, que tem na norma, segundo as
impositivos da entidade tributante.
modernas concepções, um juízo hipotético. Isso demonstra, de
sobejo, que as posições doutrinárias a que aludimos não são Na doutrina brasileira, porém, a evolução se opera de
coerentes com os princípios fundamentais da Ciência Jurídica. modo gradativo e, cursivamente, os autores vão dando conta
Pelo contrário, deles discrepam, ensejando perigoso abismo da existência de um feixe, sobremedida complexo, de direitos,
onde poderão precipitar-se muitas construções erigidas à cus- poderes e poderes-deveres que estariam por envolver a figura
ta de sério e alentado trabalho científico. do sujeito ativo, talhando a situação que as modernas obras
A única postura que nos parece válida diante do problema italianas e espanholas chamam de "procedimento de gestão
é precisamente aquela que respeita a integridade do ente que tributária".
se analisa, examinando com cuidado a realidade jurídica nor- Sob o signo de certa insegurança e palmilhando caminho
mativa para, de seus elementos estruturais - hipótese e conse- pleno de obstáculos, nossos autores tomaram consciência da
quência -, elaborar os critérios que cada qual possa, efetiva- i mpossibilidade de estudar-se a relação jurídica tributária,
mente, hospedar.
tão-somente perlustrando as implicações do objeto do vínculo,
Se no suposto há a descrição de um fato, obviamente que ou mesmo da pessoa jungida ao implemento da prestação.
lá apenas encontraremos critérios para o reconhecimento Tornava-se imperioso inquirir, para o exame completo dos
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

laços abstratos que o direito positivo prevê, sobre a posição do normativo é o dado por excelência da realização do direito,
sujeito ativo, ou seja, sobre aquela entidade que se acha inves- porquanto é precisamente ali que está depositado o instrumen-
tida do direito subjetivo, ou do poder, ou poder-dever, no qua- to da sua razão existencial.
dro da realização dos anseios impositivos do Estado.
Ao reconhecermos o fato jurídico tributário, necessaria-
Quando pensamos no fenômeno da percussão jurídico- mente expresso em linguagem (e em linguagem competente),
tributária acode-nos logo à mente a presença do Estado e, em damos por instalado o vínculo obrigacional, que surgirá, tam-
contraponto, o dever subjetivo do administrado, tendo ambos bém, por força de um fragmento de linguagem. Interessante
por objeto a conduta que se consubstancia numa pretensão notar que, sem o discurso linguístico cuja forma a lei determi-
pecuniária. É criando laços dessa ordem que os comportamen- na, não há falar em fato e, muito menos, em relação. Contudo,
tos intersubjetivos são regrados, procurando o legislador im- o singelo nascimento do laço que atrela dois ou mais sujeitos
plantar valores que a Constituição determina para o desempe- de direito, em torno de uma conduta obrigatória, que se espe-
nho da atividade financeira do Poder Público, no que tange a ra seja cumprida pelo devedor e pode ser exigida pelo credor,
essa matéria. ainda não é tudo. Não é preciso que haja relação social subja-
Com efeito, em outros tempos já se concebeu a obriga- cente para que o direito exercite sua atividade normativa,
ção tributária como centro de irradiação de todas as espe- instituindo o vínculo abstrato que ensejará direitos e deveres.
culações científicas a respeito do fenômeno jurídico da inci- De modo semelhante, pode o legislador imaginar a instauração
dência do tributo, tendência que cedeu espaço à valorização de liame jurídico, onde já exista outro tipo de relação, momen-
do "fato imponível", produzindo, num excesso de radicali- to em que consignaremos mera coincidência, que pouco suge-
zação, o surgimento da já famosa "escola de glorificação do re e nada acrescenta, em termos de possibilidade legislativa.
fato gerador". Há um longo caminho a ser percorrido, desde o apareci-
Nos dias de hoje, recuperou-se a harmonia da composição mento do liame até sua extinção, caracterizada, em regra, pelo
interna da norma jurídica tributária que passou a ser, na sua instante em que o Estado-administração torna efetivo o rece-
integridade constitutiva, o ponto de referência fundamental bimento da quantia em dinheiro que caracteriza o objeto da
para o discurso descritivo da Dogmática. Tanto o relato do prestação tributária. Nesse entretempo, muitas coisas podem
antecedente normativo quanto a prescrição contida no seu ocorrer, modificando a feição inicial do vínculo.
consequente interessam, igualmente, à compreensão do im- Aspecto que merece ser considerado, no âmbito do concei-
pacto tributário. to de relação jurídica, é a circunstância de ser um vínculo entre
É incontestável a importância que os fatos jurídicos assu- pessoas, reflexão que abriu margem a intermináveis disputas
mem, no quadro sistemático do direito positivo, pois, sem eles, acadêmicas. Prevalece hoje, contudo, sobre o fundamento da
jamais apareceriam direitos e deveres, inexistindo possibilida- essencial bilateralidade do direito, a tese da necessidade im-
de de regular a convivência dos homens, no seio da comunida- postergável de, pelo menos, dois sujeitos para que se possa
de. Mas, sem desprezar esse papel fundamental, é pela virtu- configurar o liame jurídico. É incisiva, nesse sentido, a lição
de de seus efeitos que as ocorrências factuais adquirem tanta de Francesco Carnelutti 2 ": "A noção mais ampla e singela de
relevância. E tais efeitos estão prescritos no consequente da
norma, irradiando-se por via de relações jurídicas. Isso nos
permite dizer, com inabalável convicção, que o prescritor 206. Teoria general del derecho, trad. F.X. Osset, Madrid, Civitas, 1955, p. 184.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

relação jurídica é a de uma relação constituída pelo direito, relação conversa, entre sujeito passivo e sujeito ativo. As regras
entre dois sujeitos, com referência a um objeto". E com ela são postas de modo atributivo (o sujeito S' tem o direito de) ou
concorda o magistério da grande maioria dos teóricos gerais em termos imperativos (o sujeito S" tem o dever de).
do direito.
A hipótese normativa está ligada à consequência pelo elo
No quadro conceptual da relação jurídica, sobreleva ob- da imputação deôntica, fixado ao talante do político, no tempo
servar, ainda, a presença de um objeto, centro de convergência da elaboração da lei. O vínculo implicacional que se estabelece
do direito subjetivo e do correlato dever. Fator estrutural da no consequente — a relação jurídica — diferentemente, é re-
entidade, qualquer modificação no objeto pode ocasionar mu- gido pelas leis lógicas. Enquanto a primeira implicação é posta
tações de fundo na própria composição do vínculo, suscitando, pelo sistema normativo, que livremente a constitui e desconstitui,
como veremos a breve trecho, as espécies em que se divide a a segunda decorre de imposições lógicas ante as quais o sistema
categoria. A faculdade de exigir o objeto dá a substância do não escapa.
direito subjetivo, de que é titular o sujeito ativo da relação, ao
passo que a conduta de prestá-lo define o dever jurídico a car- Identificados os elementos definidores da organização
básica das relações jurídicas, qualquer desdobramento que se
go do sujeito passivo.
empreenda no exame do sujeito ativo, do sujeito passivo ou do
Vale acentuar, retomando pelo prisma lógico, a relação objeto será meio legítimo de classificá-las. Várias diretrizes,
que une os sujeitos (S' e S") é uma relação irreflexiva, pois portanto, são admissíveis, desde que repousem nas alterações
representaria um sem-sentido deôntico conceber que S' está que se processam em um dos integrantes da composição in-
facultado, obrigado ou proibido perante si mesmo. Além disso, trínseca do liame.
é assimétrica, quer dizer, S'R S" implica sempre S"Rc S'. Rc; é
De fato, tomando como pressuposto que o sujeito ativo
a relação conversa de R: se R interpreta-se como ter o direito
está presente na estrutura de todas as relações jurídicas, será
a, seu converso é ter a obrigação de. O ensinamento, extraído
útil e valiosa a classificação que cogite desses vínculos, conso-
das preciosas lições de Lourival Vilanova 207 , é fundamental para
ante seja o sujeito pretensor uma pessoa pública ou privada e,
a compreensão das relações jurídicas, que mantêm equivalên-
dentre as últimas, pessoa física ou jurídica. De modo análogo,
cia implicacional, da mesma forma que o enunciado X > Y (X
têm cabimento teórico e prático aquelas discriminações que,
é maior do que Y) equivale a Y < X (Y é menor do que X). E con-
percebendo as flutuações que se operam no pólo passivo, en-
clui o eminente professor: "No mundo do Direito, estruturado
relacionalmente, quando a norma estatui que o vendedor deve gendrem qualificar as espécies de relações jurídicas, na con-
formidade da natureza específica de quem haja de cumprir a
dar a coisa alienada ao comprador, implica dizer que o com-
prador tem o direito de receber a coisa adquirida a título prestação. Também o objeto, dado central e nuclear, tem le-
vantado investigações de grande teor científico, para o fim de
oneroso"(grifos no original).
isolar os tipos possíveis de relações jurídicas.
Tenhamos presente que a linguagem do direito positivo
não fornece a compostura verbal completa das relações jurídi- A escolha do caminho, é evidente, ficará ao juízo do cien-
cas, salientando a relação entre o sujeito ativo e o passivo, e a tista, que procurará certamente aquele dotado de maior capa-
cidade explicativa.
Pois bem, quanto ao objeto, descrito na sua individuali-
207. As estruturas lógicas do direito positivo, São Paulo, Noeses, 2005, p. 148. dade estática, ganhou projeção interessante estudo, pelo qual
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

o critério seletivo das espécies é o caráter patrimonial da pres- jurídicas tributárias, vamos encontrar os dois tipos de relações:
tação. Há de mister separar as relações jurídicas na consonân- as de substância patrimonial e os vínculos que fazem irromper
cia de ser ou não, seu objeto, susceptível de avaliação econô- meros deveres administrativos. As primeiras, previstas no
mica. Em caso afirmativo, teremos as relações jurídicas de cunho núcleo da norma que define o fenômeno da incidência - regra-
obrigacional; na hipótese contrária, relações jurídicas não-obri- matriz -, e as outras, circumpostas a ela, para tornar possível
gacionais, ou veiculadoras de meros deveres. Surge, assim, a a operatividade da instituição tributária, são os deveres instru-
figura da obrigação, cujo traço característico é hospedar presta- mentais ou formais.
ção de natureza patrimonial, na medida em que, sob diversas
formas, seja passível de exprimir-se em valores economicamen- 3.1.4. Relação jurídica tributária e a relação de débito da
te apreciáveis. No extremo oposto, são conhecidos como relações Fazenda Pública - noções
de índole não-obrigacional, ou de simples deveres, aqueles vín-
culos jurídicos cujo conteúdo não se possa representar, de algu- A definição do conceito de "relação jurídica tributária"
ma maneira, por símbolos ou equações econômicas. encontra-se vinculada à idéia de direito positivo tributário, o
Importa esclarecer que, embora a maioria dos civilistas e qual, por sua vez, consiste no complexo de normas jurídicas
dos teóricos gerais do direito saliente o timbre da patrimonia- válidas que se referem, direta ou indiretamente, ao exercício
lidade como aspecto que estabelece distinção entre as relações da tributação: instituição, fiscalização e arrecadação de tribu-
jurídicas, separando as obrigacionais das não-obrigacionais, a tos. Considerada em seu sentido estrito, "obrigação tributária"
é o vínculo abstrato em que uma pessoa, chamada de sujeito
orientação não goza de unanimidade, havendo aqueles que a
ativo, tem o direito subjetivo de exigir de outra, denominada
contestam. Inobstante isso, vamos adotá-la, em função de seu
sujeito passivo, o cumprimento de prestação de cunho patri-
forte potencial explicativo.
monial, decorrente da aplicação de norma jurídica tributária
Assim, recolhendo o vocábulo "obrigação" como sinônimo (art. 3 2 do Código Tributário Nacional).
de relação jurídica de índole economicamente apreciável, po-
demos defini-lo como o vínculo abstrato, que surge pela impu- Surgida a obrigação tributária mediante a aplicação da
tação normativa, e consoante o qual uma pessoa, chamada de respectiva regra-matriz de incidência, nasce, simultaneamen-
sujeito ativo, credor ou pretensor, tem o direito subjetivo de te, o crédito tributário. Trata-se de elemento indissociável da
exigir de outra, denominada sujeito passivo ou devedor, o cum- obrigação de pagar tributo, consistente no direito subjetivo de
primento de prestação de cunho patrimonial. Advertimos que que é possuidor o sujeito ativo.
o termo "obrigação" costuma ser empregado com outras sig- Paralelamente a essa espécie de relação obrigacional,
nificações, representando o dever jurídico cometido ao sujeito identificamos, no ordenamento pátrio, o surgimento de liames
passivo, no seio das relações de cunho econômico (obrigacio- em que a Fazenda Pública figura no pólo oposto, assumindo a
nais) e, até, o próprio dever jurídico, nos liames não-obrigacio- posição de sujeito passivo. É a chamada "relação de débito da
nais. Vê-se que a palavra é multissignificativa, problema se- Fazenda Pública", cujo nascimento pode decorrer de: (i) reco-
mântico que persegue e atormenta constantemente o cientista lhimento indevido ou a maior de importância pecuniária a tí-
do direito. tulo de tributo; (ii) prática de fato jurídico que faz nascer re-
Em resumo, no conjunto de prescrições normativas que lação de crédito para o contribuinte; ou (iii) contrato admi-
interessam ao direito tributário, com as chamadas relações nistrativo firmado pela pessoa política. Em quaisquer dessas

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

hipóteses, a Fazenda Pública possui o dever de cumprir uma Tais operações de elaboração da linguagem se aperfeiço-
obrigação pecuniária para com o particular, caracterizando um am com a atividade consistente em expedir norma individual
"débito" seu. e concreta, entregue ao órgão administrativo também indicado
Na fenomenologia do nascimento do débito tributário na legislação pertinente, enriquecendo o sistema normativo
temos: (i) regra-matriz de incidência tributária; (ii) aconteci- com mais uma unidade deôntica.
mento do evento previsto na hipótese da norma geral e abstra-
Em caso de omissão do administrado ou sempre que as
ta; (iii) produção da linguagem competente, por parte do ad-
ministrado (em princípio) ou por parte do Fisco, em atividade autoridades fiscais entenderem que o procedimento originário
corretiva ou substitutiva, e construção da norma individual e não se deu em consonância com os preceitos da lei, caberá ao
concreta, em que figura o fato jurídico e a correspondente Poder Público, por intermédio de seus funcionários, expedir a
obrigação tributária; (iv) comunicação da norma individual e norma individual e concreta, corretiva daquela produzida pelo
concreta ao Fisco, quando constituída pelo contribuinte ou a contribuinte, na hipótese de desacordo, ou mesmo substitutiva,
este, na circunstância de ser editada pelo Poder Público; e (v) quando houver omissão.
aparecimento formal do débito do imposto. Ainda que todos os atos praticados pelo administrado
fiquem sujeitos a ulteriores verificações, em procedimentos
3.1.5. Formalização em linguagem competente da relação fiscalizatórios, o que também acontece com os atos celebra-
jurídica tributária dos pela Administração, submetidos a sucessivos controles
de legalidade, pode dizer-se que o direito ao tributo, por
A relação jurídica tributária, que decorre imediatamente parte do Fisco, e o direito ao crédito do imposto, como no
do fato jurídico tributário ("fato gerador"), requer, para sua IPI, por parte do contribuinte, ganham liquidez e certeza
existência e consequente exigibilidade, a formalização em quando se produzem, adequadamente, nos corpos das res-
linguagem própria, que podemos chamar de "linguagem com- pectivas linguagens competentes. Repito que a liquidez e a
petente", identificada como aquela prevista em lei como a
certeza a que me refiro não terão a virtude de outorgar de-
forma necessária para o relato jurídico dos acontecimentos que
finitividade a tais direitos, que se mantêm susceptíveis a
o legislador entendeu relevantes.
outros controles de legalidade, promovidos de ofício ou a
Essa atividade de compor em linguagem os eventos pre- juízo do interessado. A liquidez e certeza têm aqui a propor-
vistos na formulação da regra-matriz de incidência nos "lan- ção semântica de qualidade jurídica do ato, em termos de
çamentos" dos tributos sujeitos à homologação, tal como o IPI, poder ser invocado no intercurso das relações que ligam
por exemplo, confiou ao contribuinte uma sequência que vai Administração e administrados.
desde a expedição da nota fiscal correspondente às operações
realizadas, sua escrituração nos livros próprios, até o preen- É preciso salientar, também, que a atividade corretiva ou
chimento das declarações finais, em que o chamado contri- substitutiva, exercida pela Fazenda Pública nos casos de im-
buinte se confessará sujeito passivo da obrigação tributária, perfeição ou de omissão do contribuinte, não se limita ao cam-
sujeito ativo do direito de crédito, ou, concomitantemente, um po de irradiação da obrigação tributária, mas se estende,
e outro, naquela subclasse de intersecção, apurando-se, em igualmente, às relações que dizem respeito ao direito de cré-
seguida, a conta que predomina, vale dizer, ou a de débito ou dito, porquanto a diretriz da não-cumulatividade obriga a todos,
a de crédito. sem qualquer discriminação.
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

3.1.6. Consequente tributário: o binômio "hipótese de incidência/ previsão fáctica; e afirmando, na eventualidade, ser obscura a
base de cálculo" formulação legal.
A citada relação pode ser observada com veemência
Entre nós, e como já expusemos em capítulo anterior, o
nas taxas, tributo com fundamento existencial em função da
tipo tributário é definido pela integração lógico-semântica de atividade estatal, imediatamente vinculada ao contribuinte.
dois fatores: hipótese de incidência e base de cálculo. Ao binô- Sobre o assunto, ensina Hector Villegas 2 ° 9 :
mio, o legislador constitucional outorgou a propriedade de
diferençar as espécies tributárias entre si, sendo também ope- "Resulta portanto indiscutível que a base imponível das
rativo dentro das próprias subespécies. Adequadamente iso- taxas deve estar relacionada com sua hipótese de incidência
lados os dois fatores, estaremos credenciados a dizer, sem (a atividade vinculante). (...) Em consequência, tais critérios
hesitações, se um tributo é imposto, taxa ou contribuição, bem de graduação levarão em conta uma série de aspectos rela-
como anunciar a modalidade de que se trata. tivos à atividade que o Estado desenvolve e ao serviço que
resulta prestado pelo exercício dessa atividade".
O critério material é o núcleo da hipótese de incidência,
composto por verbo e complemento, que descrevem abstrata- Nessa mesma linha flui o pensamento de Geraldo Ataliba,
mente uma atuação estatal ou um fato do particular. Por sua ao concluir que "a base imponível das taxas de polícia é a ex-
vez, o critério quantitativo, no âmbito da base de cálculo, men- tensão, medida ou grandeza real ou presumida pelo legislador,
sura a intensidade daquela conduta praticada pela Adminis- das diligências que informam o procedimento administrativo
tração ou pelo contribuinte, conforme o caso. Nesses critérios que culmina com o ato de polícia"°".
é que se encontra o feixe de preceitos demarcadores dos cha-
mados "traços da enunciação", ou seja, o conjunto dos elemen- Fora de qualquer dúvida é a operatividade do citado fator
tos que o editor da norma julgou relevantes para produzir o do critério quantitativo, tendo em vista que no direito brasilei-
acontecimento tributado. ro o tipo tributário encontra-se integrado pelo relacionamento
lógico e harmônico da hipótese de incidência e da base de
Em outras palavras, a base de cálculo há de ter uma cor-
cálculo. O binômio, adequadamente reconhecido, revela a natu-
relação lógica e direta com a hipótese de incidência do tributo.
reza do tributo submetido à investigação, permitindo a análise de
Não foi por outro motivo que Amílcar Falcão 208 qualificava a
sua compatibilidade relativamente ao sistema constitucional, sem
base imponível como: "verdadeira e autêntica expressão eco-
interferência das imprecisões do legislador. E cremos, também,
nômica" da hipótese de incidência. Eis a base de cálculo, na
que a substituição do disjuntor "ou" pelo conjuntor "e" se impõe
sua função comparativa, confirmando, infirmando ou afirman-
por determinação de uma análise sistemática mais apurada.
do o verdadeiro critério material da hipótese tributária. Con-
firmando sempre que houver total sintonia entre o padrão da A título exemplificativo cumpre tecer algumas considera-
medida e o núcleo do fato dimensionado; infirmando quando ções na aplicabilidade interpretativa deste instrumental. Com
houver manifesta incompatibilidade entre a grandeza eleita e
o acontecimento que o legislador declara como a medula da
209."Verdade e ficções em torno do tributo denominado taxa", in Revista de
Direito Público, n. 17, São Paulo, Revista dos Tribunais, p. 337.

208. Fato gerador da obrigação tributária, Rio de Janeiro, Forense, 1994, p. 210. "Taxa de polícia e funcionamento", in Estudos e pareceres de direito
138. tributário, São Paulo, Revista dos Tribunais, p. 257.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

relação ao IPI, dentre suas hipóteses de incidência registradas efetivos os propósitos de bem-estar social e protegendo valores
na regra-matriz encontra-se aquela representada pela circuns- muito caros à comunidade. São as alíquotas, outrossim, ele-
tância de alguém vir a industrializar produtos, em qualquer mentos preciosos na realização dos objetivos extrafiscais do
lugar do território nacional, considerando-se acontecido o fato Estado, ao manipular as várias figuras impositivas.
no instante em que os produtos industrializados deixarem o
estabelecimento. E a base de cálculo escolhida pelo legislador Para o IPI, o tema das alíquotas ganha dimensão expres-
é o valor da operação de que decorrer a saída, confirmando o siva, tendo em vista o mandamento constitucional da seletivi-
critério material do antecedente normativo. Vê-se, por esse dade em função da essencialidade dos produtos, prescrita pelo
confronto, que a percussão do tributo se dá com a atividade de artigo 153, § 3 2 , do Texto Magno. O constituinte outorgou ao
industrialização, pois a base imponível, antes de armar-se para legislador ordinário a possibilidade de dosar a carga tributária,
dimensionar o acontecimento, tem primeiro que identificá-lo em função de predicados de utilidade atribuídos aos produtos,
nos traços jurídicos de sua tipificação legal. Além dessa função, segundo o talante do próprio legislador infraconstitucional,
que chamamos de "comparativa", a base de cálculo cumpre não estipulando critério determinado a que este último ficasse
aquelas duas outras já mencionadas: a função mensuradora, jungido. Aquilo que se estipula no artigo 153, § 3 2 , é apenas que
em que comparece para medir as proporções reais do evento o imposto venha a ser "seletivo, em função da essencialidade
e a função objetiva, em que se agrega à alíquota para compor do produto". Agora, de que modo chegar a esse resultado, po-
a específica determinação da dívida. sitivando a orientação, foi providência sobre a qual se absteve
o constituinte. Remanesce o valor que há de ser implantado
por um dos meios cabíveis.
3.1.7. Alíquota: elemento imprescindível à determinação do
débito tributário O conteúdo semântico desse princípio aponta para um
processo e para um valor. Enquanto processo, é forma de elei-
Já vimos que a base de cálculo, para cumprir sua função ção, consciente e deliberada, promovida em determinado
objetiva, compondo a específica determinação do débito, requer campo de objetos, e conduzida por alguma diretriz racionali-
a presença de outro fator: a alíquota. Para qualquer exação, zadora. Mesmo quando, n'outro sentido, se fale em "seleção
não pode haver base imponível ali onde não houver alíquota, natural", imagina-se uma força superior, absoluta, dotada de
entidade que se congrega à base para oferecer a compostura racionalidade, e capaz de imprimir direção ao processo de
numérica do debitum, estatuindo o valor que pode ser exigido escolha. Mas a seletividade de que tratamos não é meramente
pelo sujeito ativo, em cumprimento da obrigação que nascera um esquema formal, que se esgota com a própria realização,
pelo acontecimento do fato normativamente descrito. Não selecionando por selecionar. Este procedimento eletivo há de
entra na configuração tipológica dos tributos, cingida que está ser presidido pela estimativa da essencialidade, vale dizer, quer
ao binômio "hipótese de incidência/base de cálculo", mas se a Constituição que os produtos sejam classificados, tomando-
apresenta como instrumento importante na realização de ele- se por base o teor da respectiva essencialidade. Aqui está o
vados desígnios constitucionais, como a diretriz do respeito à valor (essencialidade) que a Constituição indica, oferecendo o
capacidade contributiva e, por decorrência, a implementação processo (seletividade) para obtê-lo. E a mensagem, ainda que
da igualdade. É por manejá-la dentro de certos limites que o lacônica, diz mais, porquanto os produtos, depois de organiza-
legislador evita os detrimentos do confisco e conduz a ativida- dos pelo critério axiológico da essencialidade, ficarão em cor-
de tributária por canais politicamente recomendáveis, tornando respondência com uma alíquota, que será tanto maior quanto
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

menor o grau de utilidade que tais produtos venham a apre- Em termos de texto legal, essa diretriz é concretizada
sentar. Há grandezas em razão inversa, de tal sorte que, em se mediante a instituição da tabela de incidência do IPI -
diminuindo o grau de essencialidade, elevar-se-ão as alíquotas segmento de linguagem prescritiva que integra o ordenamen-
correspondentes. to jurídico brasileiro, e se destina a oferecer elementos para
a identificação dos produtos alcançados pela percussão do
Certo que há problemas também semânticos a serem
gravame, além de conferir-lhes um percentual, a título de
resolvidos, no que concerne aos vocábulos "essencialidade" e
alíquota.
"utilidade". Entretanto, bem podemos recordar a observação
de Alf Ross, segundo a qual todas as palavras são vagas e po- Nada mais é necessário dizer para enaltecer a importân-
tencialmente ambíguas. De fato, o caráter de utilidade que se cia da tabela, razão pela qual se afigura imprescindível tomar
atribui aos produtos industrializados é construção da experi- uma série de cuidados, sempre que o problema se situe na
ência cultural de cada povo, tomando-se como referência um compreensão do que lá foi estabelecido. Ao interpretá-la, por-
intervalo de tempo considerado. O que é indispensável para tanto, não se pode esquecer que é parte da regra-matriz de
uma sociedade pode não ser para outra, ou para ela mesma, incidência do IPI, concorrendo com dado necessário à compo-
em período subsequente. Ainda mais, entre as várias camadas sição do quantum devido, ao estipular a grandeza percentual
de uma só comunidade social, o conceito de utilidade, que que há de ser conjugada à base de cálculo.
chega aos limites do seu campo de irradiação significativa as-
A circunstância de que a tabela influi na regra-matriz do
sumindo o timbre de imprescindibilidade (equivalente nominal
IPI, mais especificamente em seu critério quantitativo, e que
da máxima essencialidade), atravessa modificações sensíveis,
sua estruturação visa exatamente a implantar o princípio da
retratando a mutante e instável condição do relacionamento
seletividade, por expressa determinação constitucional, leva-
inter-humano.
nos a concluir pela absoluta impossibilidade de ignorar os
Tudo isso nos leva a admitir esses signos com toda a las- percentuais ali taxativamente especificados para cada espécie
sidão de seu quadro de possibilidades significativas, sabendo e subespécie de produto, empregando-se "média ponderada"
que o emprego normativo vai ser uma função da ideologia do de todas as alíquotas vigentes no ano calendário. Tal atitude,
legislador e, sobretudo, de seus intérpretes. Distribuir os pro- além de configurar presunção subjetiva, inexistindo previsão
dutos industrializados pelas escalas da tabela, sob inspiração legal que a autorize, encontra óbice intransponível no princípio
do primado da essencialidade é, decididamente, uma tomada constitucional da seletividade em função da essencialidade,
de posição político-ideológica, sobre a qual não há o que dis- além de violar a legislação ordinária, que especifica a alíquota
cutir, porquanto nela se consubstancia o ato de vontade que o aplicável aos diversos produtos industrializados.
legislador emite, ao produzir a matéria legislada.
Contudo, para compreendê-la deverá o exegeta sopesar dois 3.1.8. O consequente tributário: sujeitos ativo e passivo
pontos de efetiva importância: a) o processo seletivo formal, isto
é, o mecanismo de distribuição dos nomes dos produtos em clas- Recordemos. Ocorrido o fato jurídico tributário, instala-
ses e subclasses (operação classificatória), e b) o substrato axio- se a relação dele decorrente, denominada "obrigação tribu-
lógico que preside a organização, quer dizer; o critério da essen- tária". Esta é composta por dois sujeitos, sendo um - o sujei-
cialidade como valor, ou como fim, assim entendida a estimativa to ativo - o titular do direito subjetivo público de exigir o
enquanto racionalmente reconhecida no motivo da conduta. cumprimento da prestação pecuniária equivalente ao tributo,
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

e outro - o sujeito passivo, portador do dever jurídico de de incidência, a autoridade legislativa apanha um sujeito, se-
adimplir referida prestação. gundo o critério de sua participação direta e pessoal com a
O sujeito ativo, no direito tributário brasileiro, pode ser ocorrência objetiva, e passa a chamá-lo de "contribuinte", fa-
uma pessoa jurídica pública ou privada, mas não visualizamos zendo-o constar da relação obrigacional, na qualidade de su-
jeito passivo.
óbice para que seja uma pessoa física. Dentre as pessoas jurí-
dicas de direito público, temos aquelas investidas de capaci- Em algumas oportunidades, outras pessoas, que manti-
dade política - são as pessoas políticas de direito constitucional veram uma proximidade apenas indireta com aquele ponto de
interno - dotadas de poder legislativo e habilitadas, por isso referência em redor do qual foi formada a situação jurídica,
mesmo, a inovar a organização jurídica, editando normas. Há poderão ser escolhidas para, na condição de responsáveis,
outras, sem competência tributária, mas credenciadas à titu- substitutos ou solidários pelo crédito tributário, responderem,
laridade de direitos subjetivos, como integrantes de relações em caráter supletivo, ao adimplemento da prestação. A obri-
jurídicas obrigacionais. Entre as pessoas de direito privado, gação tributária, entretanto, só se instaurará com sujeito pas-
sobressaem as entidades paraestatais que, guardando a perso- sivo que integre a ocorrência típica, limite constitucional da
nalidade jurídico-privada, exercitam funções de grande inte- competência do legislador tributário. Em consequência, so-
resse para o desenvolvimento de finalidades públicas. Por mente pode ocupar a posição de sujeito passivo tributário quem
derradeiro, e como já adiantamos, há possibilidade jurídica de estiver em relação com o fato jurídico praticado.
uma pessoa física vir a ser sujeito ativo de obrigação tributária.
A hipótese traz como pressuposto que tal pessoa desempenhe,
3.1.8.1. O significado da palavra "contribuinte"
em determinado momento, atividade exclusiva e de real inte-
resse público. Concorrendo os requisitos, nada conspiraria con- Economicamente, contribuinte é a pessoa que arca com
tra a indicação de sujeitos de direito, pessoa física, para arre- o ônus do pagamento do tributo. Nos domínios jurídicos, é o
cadar taxas, por exemplo. sujeito de direitos que ocupa o lugar sintático de devedor, no
Sujeito passivo da obrigação tributária é, por sua vez, a chamado "pólo passivo da obrigação tributária".
pessoa física ou jurídica, privada ou pública, de quem se exige A observação é oportuna quando se trava contato com o
o cumprimento da prestação pecuniária. Esse é, em termos que vinha sendo postulado pela doutrina tradicional. Ocorre
jurídicos, o contribuinte, ou seja, aquele que deve realizar o que a "Ciência da Finanças", campo disciplinar em extinção,
pagamento dos tributos eventualmente devidos. entre outras coisas, pelo sincretismo metodológico que se pro-
A Constituição não aponta quem deva ser o sujeito passi- pôs implantar, sem maiores cuidados fundiu esses conceitos,
vo das exações cuja competência legislativa faculta às pessoas como se ambos coubessem no gênero próximo "contribuinte".
políticas. Invariavelmente, o constituinte alude a um evento, Instaurou-se, assim, o dilema: (i) sob o enfoque econômico, o
deixando a cargo do legislador ordinário não só estabelecer o "contribuinte de direito" não é contribuinte, ao passo que, (ii)
desenho estrutural da hipótese normativa, que deverá girar pelo prisma jurídico, o "contribuinte de fato" também não é
em torno daquela referência constitucional, mas, além disso, contribuinte. Como resolver essa disjunção excludente? Que
significa, afinal, "ser contribuinte"?
escolher o sujeito que arcará com o peso da incidência fiscal,
fazendo as vezes de devedor da prestação tributária. Em cada Antes de qualquer proposta explicativa, vejamos onde
um dos eventos eleitos para compor a hipótese da regra-matriz reside a falha vitanda da indigitada classificação. Dou por
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

assente que as classificações, como as definições, não se sub- O uso indiscriminado dessas expressões ocasionou ver-
metem aos valores verdadeiro/falso. Reivindicam, entretanto, dadeiro caos na ordem jurídica, levando à criação de regras
boa formação sintática, isto é, respeito à regra lógica da sepa- voltadas mais aos aspectos econômicos da tributação que aos
ração em classes e subclasses que, por sua vez, reclama apenas jurídicos, como se observa, por exemplo, no artigo 166 do Có-
a escolha de um critério definido e que permaneça estável nas digo Tributário Nacional, que condiciona a restituição de tri-
divisões do mesmo nível. Daí a possibilidade de infinitas clas- butos que, por sua natureza, comportem transferência do
sificações, tomando-se como ponto de referência tão-somente respectivo encargo financeiro, à prova de haver o "contribuin-
um único conjunto de elementos. Agora, a escolha do modelo te de direito" assumido o referido encargo ou, na hipótese de
classificatório vai implicar, diretamente, a eleição do critério tê-lo transferido, estar autorizado, pelo "contribuinte de fato",
de isolamento das entidades que participam do todo ou, em a recebê-la. Por outro lado, o "contribuinte de fato", por não
outras palavras, a propriedade comum ou o traço que será integrar a relação jurídica tributária, é impedido de, ele próprio,
privilegiado, na multiplicidade do campo objetal, para fins de ver-se restituído do tributo indevidamente recolhido.
classificação. Isso determina a possibilidade de infinitas clas- Não ingressarei no mérito da compatibilidade ou não do
sificações sobre o mesmo domínio, todas elas corretamente artigo 166 do CTN com o texto constitucional. Trouxe-o à co-
construídas. Cumprirá ao interessado, então, submetê-las a lação apenas para ilustrar os desvios legislativos gerados pela
juízo seletivo para apurar-se o teor de contribuição que cada mencionada classificação dos contribuintes em "contribuinte
uma delas venha a oferecer, tendo em vista o esclarecimento de direito" e "contribuinte de fato".
do objeto a ser descrito.
O termo "contribuinte", no direito e na economia, apre-
Ora, na tradicional classificação dos contribuintes em "de senta critérios de uso diferentes, propiciando conotações
fato" e "de direito", inexistindo domínio comum a que perten- distintas. Seria como classificar as "mangas" em duas cate-
ceriam simultaneamente as duas locuções - porque uma é gorias, aquelas que (i) consistem na parte do vestuário que
construída sobre fundamentos econômicos, enquanto a outra cobre o braço e aquelas que (ii) são frutos da árvore que cha-
é montada com supedâneo em dados jurídicos - remanesce o mamos de mangueira. Haveria, certamente, uma complexa
aspecto comum do vocábulo "c-o-n-t-r-i-b -u-i-n-t- e", ligando disputa doutrinária entre a Botânica descritiva e dado ramo
as duas entidades. E havemos de convir que o critério é muito da antropologia cultural. Os estudiosos daquela Ciência afir-
pobre para suscitar efeitos elucidantes na compreensão do mariam, categoricamente, que o fruto da mangueira não é
tema, seja ele jurídico ou econômico. Decididamente, o supor- manga de camisa ou de casaco, ao mesmo tempo em que os
te físico a que se reduz o signo não tem como oferecer luzes à especialistas em indumentária sustentariam a primazia de
Ciência, podendo atender apenas às necessidades do discurso suas concepções. Este exemplo, singelo e pouco elaborado,
ordinário ou natural, em que o rigor sintático e a precisão se- permite ver até que ponto classificações mal feitas podem
mântica ficam relegadas a plano secundário, prevalecendo a conduzir nosso raciocínio!
instância pragmática como a grande condutora do processo de Por certo, não podemos menos do que abandonar, ener-
comunicação. No âmbito da linguagem científica, contudo, não gicamente, essa classificação de "contribuinte" em (i) "contri-
teria o menor cabimento introduzir-se classificação como esta, buinte de fato" e (ii) "contribuinte de direito". Cuida registrar,
que além de nada esclarecer, dificulta intensamente o acesso porém, que o abandono da citada classificação não é tão simples
ao objeto do conhecimento. como parece. Nos tributos em que se verifica a repercussão
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

jurídica da exação, como é o caso do IPI, o "contribuinte de domínio (S') estarão atrelados à Fazenda Federal, na condição
fato" assume relevância no âmbito do direito tributário, já que, de devedores do tributo (R'), enquanto outros (S"), ainda que
conquanto não seja o sujeito passivo da obrigação de pagar sujeitos a integrarem relações daquela ordem, encontrar-se-ão
tributos, integra outro vínculo jurídico, nascido por determi- vinculados à mesma pessoa de direito público, todavia em
nação do princípio constitucional da não-cumulatividade, re- liame jurídico de outra índole (R"), por haverem adquirido
presentado pelo liame dentro do qual surge o direito ao crédi- insumos com direito a crédito. Obviamente, não excluo a hipó-
to do contribuinte em face da Fazenda Pública. Em seguida, tese de uma terceira subclasse (S"') que - por diversos motivos,
investigaremos esta percussão tributária em seus pormenores. no exato momento da análise não estivessem pertencendo a S'
Mas algo pode, desde já, ficar assentado: o "contribuinte de e a S", isto é, integrando o universo de contribuintes do IPI in-
-

fato" não é tão "de fato" como sempre se pensou. clui sujeitos passivos da relação jurídica tributária que já sa-
tisfizeram seu débito para com o Erário e ainda não praticaram
outras operações tributáveis, bem como não adquiriram ma-
3.1.8.2.A palavra "contribuinte" nas relações jurídicas
térias-primas, produtos intermediários e materiais de embala-
obrigacionais do IPI
gem, não tendo, por conseguinte, créditos oponíveis ao Fisco
Acredito que entre outras classificações há uma que se da União. E outros mais que estariam simultaneamente nas
apresenta forte no sentido de impulsionar os desígnios expo- relações R' e R", compondo uma zona de intersecção (S'nS"),
sitivos desta pesquisa. Refiro-me à classificação que toma como nas relações (R'nR"). Podemos nomear estes últimos, da clas-
domínio comum o universo dos sujeitos passivos de determi- se de intersecção, de S".
nado tributo, digamos, do IPI, que passarei a nomear de "con- Examinando o assunto pelo ângulo das incidências nor-
tribuintes", qualificando como tais todos aqueles sujeitos de mativas, teríamos a norma jurídica N' juridicizando os eventos
direito susceptíveis de integrar relações jurídicas do imposto, que a legislação trata como "operações de industrialização",
por praticarem ou estarem prontos para realizar operações dos quais se irradiariam as relações R', trazendo no pólo pas-
previstas em lei como oneradas pelo impacto do gravame. O sivo os contribuintes S'. Paralelamente, encontraríamos a
conjunto será delimitado com facilidade, uma vez que seus norma jurídica N", juridicizando as operações de aquisição de
elementos estão individualmente cadastrados nos registros matérias-primas, produtos intermediários e materiais de em-
próprios da Fazenda Pública, perfazendo uma totalidade fini- balagem e promovendo, no lado eficacial, as relações R", em
ta e determinável. que o contribuinte S" comparece como titular do direito sub-
Muito bem. Admitindo que tal universo de contribuintes jetivo ao crédito do IPI, sendo sujeito passivo desse liame a
mantém-se em constante movimentação, pela dinâmica dos Fazenda Federal.
fatos sociais e das próprias estruturas do fenômeno jurídico, Pela intersecção de classes (S'nS"), chegaríamos ao sub-
sempre nos será possível paralisá-lo em dado instante, para conjunto dos sujeitos passivos que, simultaneamente, partici-
efeito de verificação das posições que os vários indivíduos estão pariam das duas relações, vale dizer, de R' e de R", portanto
desempenhando na integridade do conjunto. E não será difícil (R'nR").
perceber que, numa precisa unidade de tempo, nem todos os
contribuintes do imposto estarão participando, como sujeitos Para completar o domínio, reservemos o símbolo S'" para
passivos, de uma relação jurídica obrigacional de IPI. A visão significar todos aqueles integrantes do universo de contribuin-
estática desse universo mostrará que muitos elementos do tes do IPI que, por uma razão ou por outra, não se encontram

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

participando dos subdomínios S' e S", bem como S' para re- III — de estar a pessoa jurídica regularmente constituída,
presentar os sujeitos pertencentes à classe de intersecção. Eis bastando que configure uma unidade econômica ou pro-
configurado o panorama da sujeição passiva e ativa das relações fissional".
de incidência do IPI, demarcando, com suas determinações
específicas, os sujeitos direta ou indiretamente vinculados aos Quanto desajuste e que tamanho desacerto pela ausên-
fatos jurídicos, o que permite atribuir a cada qual seus direitos cia de uma distinção singela e despretensiosa! E convém
e deveres tributários. salientar que o art. 126, da Lei 5.172/66, ao disciplinar a ca-
pacidade tributária, acha-se contido no capítulo atinente ao
3.1.8.3. Capacidade para realizar o fato jurídico e capacidade "Sujeito Passivo", mais precisamente, na seção III, do capí-
tulo IV, do título II.
para ser sujeito passivo de obrigação tributária
Se refletirmos na contingência de que o sujeito da ação
Dúvida ainda presente entre os estudiosos do direito tri- nem sempre é dotado de personalidade jurídica, segundo os
butário é aquela referente ao sujeito passivo, quando analisado padrões do direito privado, enquanto o sujeito passivo da obri-
como devedor da prestação pecuniária, se bem que não hou- gação tributária tem que ser "pessoa de direito", vale dizer, ter
vesse participado da realização do fato, objeto da incidência. nome, domicílio, patrimônio, consubstanciar, enfim, um centro
Vezes sem conta, o legislador atribui o cumprimento da obri- de imputação de direitos e obrigações, como diria Kelsen, che-
gação a alguém diferente daquele que deu ensejo ao aconteci- garemos à ilação óbvia de que o agente da ação que se subsu-
mento fáctico, cercando de grande nebulosidade o discerni- me aos critérios da hipótese de incidência deve ser analisado
mento de quem procura as correlações lógicas entre as pesso- de maneira diversa do sujeito passivo do laço obrigacional.
as possivelmente responsáveis. É imperioso reconhecer, deci-
didamente, que graça enorme confusão nessa matéria, envol- Realmente, o direito tributário reconhece legitimidade e
vendo legisladores, escoliastas e jurisprudentes, de tal sorte aptidão para realizar o fato jurídico ou, ainda, dele participar,
que vemos mesclados, na ambitude do mesmo termo, seres que a entes, agregados econômicos, unidades profissionais e outras
ocupam lugares inteiramente distintos, na estrutura lógica da organizações, de pessoas ou de bens, não contempladas pelo
regra-padrão de incidência tributária. direito privado com "personalidade jurídica". A eles confere
possibilidade jurídica de promover aqueles acontecimentos
O legislador brasileiro, por exemplo, dá nome de contri-
hipoteticamente descritos na lei, reputando-os sucessos válidos
buinte não àquele que, de fato e de direito, contribui, mas a
e eficazes para desencadear os efeitos jurídicos característicos,
quem provoca o evento típico, na condição de agente. Prova
significa dizer, a inauguração do vinculum juris que dá ao Es-
disso está na redação do Código Tributário, no art. 126, que dá
tado o direito subjetivo público de exigir parcelas do patrimô-
curso a estranha e exótica mancebia, enunciando que a capa-
nio privado. Este é, sem torneios retóricos, o campo de eleição
cidade tributária passiva independe:
do "sujeito capaz" de realizar o fato jurídico tributário, ou dele
participar, e os eventos que nessa conformidade ocorrerem
"I — da capacidade civil das pessoas naturais;
assumem a magnitude própria que o direito associa aos cha-
II — de achar-se a pessoa natural sujeita a medidas que
i mportem privação ou limitação do exercício de atividades
mados "fatos jurídicos tributários".
civis, comerciais ou profissionais, ou da administração di- Por sem dúvida que "ser capaz" de realizar o fato jurídico
reta de seus bens ou negócios; tributário não quer demonstrar capacidade jurídica para ser
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sujeito passivo da obrigação tributária. Nesse sentido asseverou Nada haveria que opor, como o direito positivo certa-
211
Maria Rita Ferragut : mente não opõe, a que a lei tributária atribuísse validade a
atos ou negócios jurídicos, celebrados por pessoas relativa ou
"Contribuinte é a pessoa que realizou o fato jurídico tribu- absolutamente incapazes, de acordo com os critérios firmados
tário, e que cumulativamente encontra-se no pólo passivo no direito civil. E, simplesmente, porque a lei tributária não
da relação obrigacional. Se uma das duas condições estiver associa àqueles atos ou negócios jurídicos os efeitos que lhe
ausente, ou o sujeito será o responsável, ou será o realizador são próprios e característicos, nos quadros disciplinados pela
do fato jurídico, mas não o contribuinte. Praticar o evento,
lei civil.
portanto, é condição necessária para essa qualificação, mas
insuficiente." A capacidade para participar dos fatos tributários, ou de
concretizá-los, na consonância das previsões normativas, não
Uma coisa é a aptidão para concretizar o êxito abstra- é privilégio das pessoas físicas ou jurídicas, espécies de enti-
tamente previsto no texto normativo, outra é integrar o dades personalizadas pelo direito privado. Para esse escopo, o
liame que se instaura no preciso instante em que adquire legislador tributário desfruta de ampla liberdade, cerceada
proporções concretas o fato descrito no suposto da regra apenas pela consideração de dois fatores exógenos, quais sejam,
tributária. É intuitivo que se não poderia negar legitimidade os limites da outorga constitucional de competência e o grau
ao legislador fiscal para erigir fatos lícitos, que não acordos de relacionamento da entidade com a ocorrência do fato. Den-
de vontade, considerados em si mesmos, e cogitá-los perfei- tro desse lato espectro, é infinita a legitimidade criativa do
tos e acabados, na estrita correspondência dos interesses e legislador fiscal, que pode atribuir "personalidade tributária"
anseios da pretensão impositiva do Estado. É nesse caminho e "capacidade para realizar o fato jurídico-tributário" a quem
que entrevemos a desvinculação do direito tributário com não as tenha por reconhecidas no enredo das normas de direi-
relação às demais construções do direito positivo, circuns- to civil.
tância que lhe empresta, inequivocamente, traço particular
e foros de autonomia, não científica, como de cotio se afirma, Aceita a premissa, será apropriada, para a caracterização
mas autonomia meramente didática, uma vez que o direito de um contrato de venda e compra de mercadoria, como ense-
constitui sistema unitário e indecomponível, debaixo de jador de efeitos tributários, a circunstância de ambas as partes
qualquer pretexto que não aquele que busca meios e formas serem absolutamente incapazes; a contingência de uma socie-
de expor a compostura de seus institutos, por métodos apro- dade de fato (sem constituição jurídica válida) ou de sociedade
priados de compreensão. irregular (cuja constituição foi reconhecida pelo direito, mas
que, por razões diversas, deixou de manter a regularidade
E tal virtualidade criadora ou modificadora tão-só existe
jurídica de sua existência), praticar operações tributáveis; a
porque nesse plano de elaboração normativa não há preocupar-
eventualidade de um agregado familiar ser alvo de pretensões
se com impedimentos ou obstáculos de ordem lógico-jurídica,
fiscais, por encontrar-se envolvido em situação tributada; a
o que oferece vasta latitude aos eflúvios criativos do político,
hipótese de um grupo de sociedades, não reconhecido em sua
investido da função legislativa.
unidade pela ordem jurídica vigente, participar de sucesso
estatuído em lei tributária; ou a conjuntura de um núcleo eco-
nômico ou profissional efetuar operações colhidas pela legis-
211. Responsabilidade tributária e o Código Civil de 2002, São Paulo, Noeses,
2005, pp. 29-30. lação de certo gravame.

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Ora, com exceção dos menores, absoluta ou relativamen- talhar sua natureza, havendo de respeitá-la na plenitude de
te incapazes, e da sociedade irregular, pessoas dotadas de sua integridade.
personalidade jurídica, os demais "sujeitos" acima referidos
A relação jurídica, como única e sobranceira fórmula que
pertencem à numerosa família dos seres que o direito privado
faz surgir direitos e correlatos deveres, tem suas raízes no seio
não reconhece como centros de imputação de direitos e obri-
da própria teoria geral do direito, matéria que versa os concei-
gações. São utilizadas, a despeito disso, para compor a situação
tos fundamentais descritores do direito positivo, observado
de fato que serve de pressuposto à inauguração do vínculo como um todo. O emprego de tal equação instrumental, qual-
tributário, o que exibe a eloquência da afirmação, consoante a quer que seja o campo jurídico a que se destine, haverá de
qual a capacidade de realizar o fato jurídico tributário, ou dele acatar o arcabouço comum e invariável, que antes supõe um
participar, prescinde de qualquer atinência às construções do sujeito ativo, titular do direito subjetivo; um sujeito passivo, de
direito civil. quem se pode exigir determinada prestação; e, por final, um
De fora parte a consideração da hipótese normativa, para objeto, centro de convergência do direito e do dever. À margem
o fim de centralizar nossas atenções na consequência do juízo desse conjunto, inexiste relação, do que defluiu a necessidade
condicional, havemos de convir que o rol de opções do legisla- de preservá-lo, para que se mantenha o conteúdo de juridici-
dor se restringe, sensivelmente, não lhe sendo possível indicar dade irradiada pela ocorrência dos fatos previstos nas hipóte-
para sujeito passivo alguém que não tenha personalidade ses normativas.
jurídica, nos precisos termos em que definidos pelo direito Asseverei, linhas atrás, que o legislador brasileiro não
civil. Minguando o requisito da personalidade jurídica, tal distinguiu, com clareza, as figuras do sujeito capaz de realizar
qual concebida na plataforma das elaborações privadas, a o fato jurídico tributário e o sujeito capaz de integrar a relação
pretensão tributária estará por todos os meios inibida, em jurídica obrigacional. A confusão tem raízes constitucionais,
função da inaplicabilidade de cadeias de dispositivos de di- foi consagrada no CTN e acabou penetrando toda a plataforma
reito processual, que dão significado e conteúdo de coativi- da legislação ordinária, para não citar atos normativos de es-
dade às aspirações fazendárias. Nesse átimo, está o direito tatura infralegal.
tributário irremediavelmente jungido aos preceitos, quer do Nesse passo, quando vigorava o Decreto-lei n. 406/68,
direito civil, quer da processualística, com todas as implica- tecemos críticas que precisam ser registradas. Todavia, sabe-
ções que lhe são ínsitas. mos que algumas dessas questões foram "resolvidas" com a
É útil recordar, neste ponto, que se o direito tributário é edição da Lei Complementar n. 116/2003.
livre e suficiente em si mesmo para desenhar os contornos dos
"Nunca sobeja insistir no registro dos adnumeráveis
fatos que elege, não o será, certamente, para estipular os termos
erros jurídicos, de cunho lógico ou terminológico, que o
da chamada "obrigação tributária". E o motivo é simples e
Decreto -Iei n. 406, de 31.12.68 perpetrou, aparecendo
intuitivo: a obrigação tributária é espécie de relação jurídica, como o Diploma responsável por grande sorte das distor-
da categoria das patrimoniais, instituição que informa e ilumi- ções existentes sobre o ICMS e o ISS. E, entre tantas, uma
na a disciplina do comportamento humano em sociedade. Sua delas também reside na indicação do "sujeito capaz" de
estrutura íntima é a mesma, seja qual for a índole do direito realizar o fato imponível, em contraponto ao "sujeito pas-
subjetivo ou do dever jurídico que veicule. Sob pena de frustrar sivo" ou aquele apontado para integrar o liame obrigacio-
o meneio desse instrumento, o legislador tributário não poderá nal do tributo.
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

A Constituição não disse quem estaria credenciado profissional que der azo à concretização do fato. Nascerá
a provocar a ocorrência do evento, mesmo porque se li- o vínculo patrimonial, e o aplicador da lei, em trabalho
mitou a declarar a possibilidade dos Municípios de legis- exegético, procurará especificar quem responderá pelo
lar sobre imposto que gravasse "serviços de qualquer debitum. Incontáveis exemplos poderiam ser trazidos à
natureza", desde que não compreendidos na competência baila, para demonstrar a insuficiência do tratamento le-
da União ou dos Estados. No Texto Fundamental, debalde gislativo. Ventilemos um profissional atrelado a seu em-
procuraremos encontrar a mais tênue referência ao verbo pregador por vínculo trabalhista. Não é profissional au-
que terá como objeto direto "serviços de qualquer natu- tônomo, como prescreve a lei. No entanto, se prestar
reza". E, muito menos, quem deva operar tais serviços. serviços, iterativamente, à margem do vínculo emprega-
Foi obra do indigitado Decreto-lei erigir o verbo "prestar", tício, sua atividade paralela haverá de ser tributada, des-
de que, naturalmente, o serviço tenha cunho econômico
além de indicar os sujeitos da ação: empresa ou profissio-
e possa ser alcançado pelo imposto municipal.
nal autônomo. Vamos meditar neste ponto, já que a legis-
lação do Município de São Paulo incorporou a iniciativa Igualmente, o açodo do legislador transparece níveo
do legislador federal, que fazia as vezes (também assunto ao referir-se à palavra "empresa". Com efeito, se teve a
discutível) de legislador complementar, imprimindo ca- preocupação de mencionar uma atividade metódica e
ráter nacional às regras contidas naquele estatuto. profissionalmente organizada, com vistas à obtenção de
lucros, consoante os padrões atuais, pressupôs a existên-
Tenho para mim que a prescrição correta sobre o
cia de pessoa jurídica, que revestisse quaisquer das formas
sujeito capaz de realizar o fato jurídico tributário do ISS
societárias admissíveis em direito. Entretanto, se pensou
haveria de ser quem prestasse utilidades, materiais ou
unicamente no núcleo econômico, preparado para a prá-
imateriais, a terceiro, com conteúdo econômico, habitu-
tica efetiva e reiterada de serviços, ainda que funcionan-
almente, e sob regime de direito privado. Dentro desses
do ao arrepio das normas civis e comerciais que regem a
parâmetros, qualquer um, tivesse ou não personalidade
matéria, disse pouco.
de Direito Privado, estaria desde logo na condição de
agente. O enunciado do Decreto-lei e da legislação muni- Na verdade, o vocábulo "empresa" não encontrou
cipal de São Paulo alude à empresa ou profissional autô- ainda sua precisa conotação semântica. Como termo da
nomo, mas sabemos, perfeitamente, que muitos presta- simbologia jurídica está longe de atingir a determinação
dores de serviços não revestem a feição jurídica de pro- necessária e suficiente a um vocábulo que empresta rigor
fissionais autônomos e, inobstante isso, praticam ativida- ao discurso. Duas idéias convergem na base deste concei-
des catalogadas como tributárias, em curso reiterado. to: a de "organização", mais ou menos sofisticada; e a de
Estariam, porventura, fora do campo de incidência? Evi- produção econômica de bens ou serviços. Se por "orga-
dentemente, não. Mas, quem responderá pelo pagamento nização" pudéssemos depreender todos os sinais inerentes
do imposto? Aqui penetram as digressões que desenvol- às estruturas jurídicas consagradas pelo direito, o termo
vemos acerca da determinação do sujeito passivo, pois, ganharia firmeza, abrindo campo a elaborações mais só-
forçosamente, terá ele personalidade, segundo as institui- lidas e consistentes. Todavia, essa não é a única proporção
ções de direito privado, habilitando-se no sentido de semântica do vocábulo, pois ninguém ousaria negar que
ocupar posição no pólo negativo da obrigação tributária. uma sociedade de fato, concebida para funcionar, em ní-
Caso idêntico acontece com o agregado econômico ou veis profissionais, auferindo lucros, por não ser pessoa de

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

direito, deixasse de ser considerada "organização empre- não personalidade consagrada pela ordem vigente. Res-
sarial". Vê-se, com clareza meridiana, que a noção de salta à obviedade, portanto, que de nada valem as palavras
empresa continua lassa e cercada de aspectos imprecisos. utilizadas pelo legislador, ao especular com a limitação
Advém, então, a nota suso referida, a partir da qual seria dos agentes capazes de praticar o fato. O importante é
melhor que o legislador municipal não determinasse saber se os serviços foram prestados, dentro daquelas
aquelas duas categorias, como exclusivas responsáveis condições."
pela ocorrência do fato típico, remanescendo livre, por
via de consequência, o campo de eleição do sujeito capaz 3.1.9. Sujeição passiva indireta e responsabilidade tributária
de concretizá-lo.
Não repousa nesta crítica uma divergência de natu- Já observamos que muitas vezes o legislador refoge aos
reza político-legislativa, mas a descrição de um erro de limites do suporte factual tributário, indo à procura de pessoa
lógica jurídica, suscitado pela letra do Diploma, que está estranha àquele acontecimento do mundo, para fazer dele o
em descompasso com a totalidade do direito vigorante. responsável pela prestação. O eixo temático da responsabilida-
Cabe ao intérprete, na tarefa de compor a regra-padrão de tributária tem-se mostrado, na experiência brasileira, ter-
da incidência tributária, sopesar a correlação lógica que reno sobremodo fecundo para o surgimento de dúvidas e im-
deve governar a unidade atômica do tributo, apontando precisões, principalmente considerando-se a polissemia do
os caminhos que culminam com soluções objetivas, pres- vocábulo. A propósito, este assunto foi tratado por Maria Rita
213
tigiadas pelo sistema. Mesmo porque, no caso concreto, Ferragut , onde, em seu Responsabilidade Tributária e o Có-
não prevalece a redação da lei, quando vem em detrimen- digo Civil de 2002, destacou que:
to dos princípios e diretrizes que dão a arquitetura própria
"o enunciado 'responsabilidade tributária' detém mais de
do Direito. O fenômeno jurídico subjacente tem que su-
uma definição, posto tratar-se de proposição prescritiva,
plantar os desavisos do político, cristalizados no texto frio relação e fato. As acepções caminham juntas, já que, em
dos estatutos legislados. E descobrir o fenômeno jurídico toda aparição do termo, faz-se possível identificar essas três
subjacente é o grande e perene desafio do jurista. É partir perspectivas, indissociáveis. Optamos por nesse momento
do "direito posto" e chegar ao "direito pressuposto", na separá-las sem afastar o entendimento de que o fato jurídi-
feliz expressão de Eros Roberto Grau 212 . co é também uma proposição e uma relação; que a relação
é um fato e uma proposição; e assim por diante."
A título de epílogo, não é demais salientar que quem
quer que preste serviços, assim entendida a prestação Assim, com o objetivo de racionalizar a matéria, o legis-
de utilidades a terceiro, materiais ou imateriais, com lador fez constar no Código Tributário Nacional regras disci-
substância econômica, em caráter habitual e debaixo de plinadoras do assunto, subdividindo-o em três espécies: a)
regime de direito privado, estará realizando o fato jurí- responsabilidade dos sucessores; b) responsabilidade de ter-
dico do imposto sobre serviços de qualquer natureza, ceiros; e c) responsabilidade por infração.
seja empresa ou não, pessoa física ou jurídica, tenha ou

213. Responsabilidade tributária e o Código Civil de 2002, São Paulo, Noeses,


212. O direito posto e direito pressuposto, 6 2 ed., São Paulo, Malheiros, 2005. 2005, p. 33.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

Rigorosamente analisada, a relação envolve o responsável Não obstante se trate de lei ordinária, o legislador do
tributário, porém, é forçoso concluir que não se trata de ver- Código Tributário Nacional regulou, em muitos de seus dispo-
dadeira "obrigação tributária", mas de vínculo jurídico com sitivos, matéria privativa de lei complementar e, em face dessa
natureza de sanção administrativa. Não é demasia repetir que orientação semântica, foram tais preceitos acolhidos pelo or-
a obrigação tributária só se instaura com sujeito passivo que denamento jurídico com a força vinculativa daquele estatuto,
integre a ocorrência típica, motivo pelo qual o liame da respon- em função do conteúdo por eles regulado. É o que se verifica
sabilidade, nos termos traçados pelo Código Tributário Nacio- nos artigos 128 a 138, que disciplinam a responsabilidade tri-
nal, apresenta caráter sancionatório. butária, prescrevendo as hipóteses e condições nas quais o
Anote-se que a responsabilidade tributária é das matérias crédito pode ser exigido de pessoa diversa daquela que praticou
o fato jurídico tributário.
que o constituinte considerou especiais e merecedoras de maior
vigilância, demandando disciplina mais rigorosa, a ser intro-
duzida no ordenamento mediante veículo normativo de posição 3.1.9.1. Responsabilidade tributária dos sucessores
intercalar, em decorrência de seu procedimento legislativo mais
complexo, nos termos do artigo 146, III, do Texto Magno. Tra- Efetuados os devidos esclarecimentos quanto à teoria
ta-se de típico exemplo do papel de ajuste reservado à legisla- geral da responsabilidade tributária, empreendamos breve
ção complementar, para garantir a harmonia que o sistema revista nos artigos da Lei n. 5.172/66 que aludem à responsa-
requer. Haveria verdadeiro caos se cada ente político pudesse, bilidade dos sucessores.
a seu bel-prazer, fixar normas que disciplinassem a responsa- O artigo 130 do Código Tributário Nacional comete o de-
bilidade atribuída aos sucessores, terceiros e infratores, em ver tributário aos adquirentes de bens imóveis, no caso de
direito tributário. i mposto que grave a propriedade, o domínio útil ou a posse, e
No atual sistema jurídico brasileiro, o Código Tributário bem assim quanto a taxas e contribuições de melhoria. Ora, de
Nacional exerce essa peculiar função calibradora, tendo sido ver está que, muito comum na prática, é o adquirente que não
incluído como parte integrante da nova ordem jurídica esta- participou nem, muitas vezes, soube da ocorrência do fato
belecida pela Constituição de 1988, pelo preceito contido no § jurídico tributário. É elemento estranho. O único motivo que
5Q do artigo 34 do Ato das Disposições Constitucionais Transi- justifica sua desconfortável situação de responsável é não ter
tórias, que garante a validade sistêmica da "legislação anterior", curado de saber, ao tempo da aquisição, do regular pagamento
naquilo em que não for incompatível com o novo ordenamen- de tributos devidos pelo alienante até a data do negócio. Por
to. É o conhecido "princípio da recepção", meio pelo qual se descumprir esse dever, embutido na proclamação de sua res-
evita intensa e árdua movimentação dos órgãos legislativos ponsabilidade, é que se vê posto na contingência de pagar
para o implemento de normas jurídicas que já se encontram certa quantia.
prontas e acabadas, irradiando sua eficácia em termos de com- No artigo 131 do Código Tributário Nacional, temos a
patibilidade plena com o teor dos novos preceitos constitucio- responsabilidade pessoal (i) do adquirente ou remitente, pelos
nais. Porventura inexistisse a aplicabilidade de tal princípio e, tributos relativos aos bens adquiridos ou remidos; (ii) do su-
certamente, o Poder Legislativo não faria outra coisa durante cessor a qualquer título e do cônjuge meeiro, pelos tributos
muito tempo, senão reescrever no seu modo prescritivo regras devidos pelo de cujus até a data da partilha ou adjudicação,
já conhecidas, nos vários setores do convívio social. li mitada esta responsabilidade ao montante do quinhão do
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

legado ou da meação; e (iii) do espólio, pelos tributos devidos do Código Tributário Nacional). Não se configura, como já
pelo de cujus até a data da abertura da sucessão. Nos três in- consignei, verdadeira alteração da pessoa integrante do pólo
cisos, repete-se a idêntica problemática, pressupondo a lei um passivo da obrigação tributária original, mas da criação de novo
dever de cooperação para que as prestações tributárias venham vínculo, de natureza sancionatória, sendo sua disciplina exaus-
a ser satisfeitas. Em caso contrário, atua a sanção que, por tivamente traçada no Código Tributário Nacional.
decisão política do legislador, é estipulada no valor da dívida Voltemos nossa atenção à responsabilidade tributária
tributária, e seu pagamento tem a virtude de extinguir aquela decorrente de alterações societárias, disciplinada no artigo 132,
primeira relação. caput, da Lei n. 5.172/66, verbis:
O mecanismo renova-se para as hipóteses de fusão, trans-
formação e incorporação, fatos jurídicos ou operações de "Art. 132. A pessoa jurídica de direito privado que resultar
da fusão, transformação ou incorporação de outra ou em
transformação societária dispostos no artigo 132 do Código
outra é responsável pelos tributos devidos até a data do ato
Tributário Nacional. A pessoa jurídica de direito privado que pelas pessoas jurídicas de direito privado fusionadas, trans-
resultar desses processos é responsável pelo pagamento dos formadas ou incorporadas."
tributos devidos até a data do ato. Não é difícil verificar o dever
i mplícito de forçar a regularização do débito, antes da operação, O dispositivo supra estabelece, à sociedade que se originar
ou de assumir o ônus na qualidade de responsável. da incorporação, a obrigação de recolher valores correspon-
O artigo 133, por fim, leva-nos também ao mesmo fenô- dentes ao quantum dos "tributos" devidos até a data do ato pela
fusionada, transformada ou incorporada. Em relação ao assun-
meno: uma pessoa natural ou jurídica de direito privado que
to, prescreve o artigo 129 do Código Tributário Nacional que
adquire outra, fundo de comércio ou estabelecimento comer-
o disposto na Seção II do Capítulo V, relativo à responsabilida-
cial, industrial ou profissional, e continua a respectiva explo-
de dos sucessores, "aplica-se por igual aos créditos tributários
ração, sob a mesma ou outra razão social, ou sob firma ou nome
definitivamente constituídos ou em curso de constituição à data
individual. A pessoa adquirente será responsável pelos tributos
dos atos nela referidos, e aos constituídos posteriormente aos
devidos até a data do ato. mesmos atos, desde que relativos a obrigações tributárias sur-
Do exposto, é intuitivo observar que a responsabilidade gidas até a referida data" (grifei).
tributária instaura-se quando, tendo a obrigação de pagar tri- Dessa determinação depreende-se ser irrelevante a data
butos nascido contra determinado sujeito, é ela transferida a da lavratura do lançamento ou do auto de infração, pois esta-
outrem, em virtude da ocorrência de fato posterior, pessoa de belece que, mesmo que a constituição do crédito tributário seja
quem há de exigir-se o pagamento do valor correspondente. posterior à sucessão, continuarão tendo aplicabilidade as regras
No caso da chamada "responsabilidade por sucessão", a de responsabilidade, tendo em vista que os eventos que deram
morte - tratando-se de pessoa física -, fusão, incorporação, nascimento àquelas obrigações foram praticados pela pessoa
sucedida.
transformação ou alienação de estabelecimentos tributados -
tratando-se de pessoa jurídica - são ocorrências ocasionadoras Podemos dizer que os dispositivos do Código Tributário
da "mudança" de sujeição passiva, aparecendo sujeito diverso Nacional, relativos à responsabilidade dos sucessores, têm
do contribuinte para o fim de cumprir a obrigação de recolher aplicação sempre que o "evento tributário", comumente deno-
o montante equivalente ao débito tributário (artigos 129 a 133 minado "fato gerador", tiver ocorrido antes da sucessão, com

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

a participação, em um dos pólos, da pessoa jurídica sucedida. acontecimento do mundo, para fazer dele o responsável pela
A sucessão desta sociedade engloba, portanto, todos os créditos prestação tributária, quer de forma supletiva, quer na condição
ou débitos em seu nome, produzidos por negócios ocorridos de sujeito passivo exclusivo. Não é demasia repetir que a obri-
até a data da sucessão independentemente da data de sua gação tributária só se instaura com sujeito passivo que integre
conclusão. Outrossim, o que se torna relevante para esses efei- a ocorrência típica, seja direta ou indiretamente unido ao nú-
tos é a data da constituição do vínculo negocial com efeitos cleo objetivo da situação tributada. No processo de positivação
tributários e não a de sua extinção. das leis, a autoridade legislativa exerce suas funções, autolimi-
tando-se ao compor a descrição normativa. Não pode transpor
3.1.9.2. A responsabilidade tributária dos terceiros as fronteiras do fato que ele mesmo (legislador ordinário) de-
marcou, a não ser que venha a refazer a regra-matriz, mexen-
Convém recordar que, à fixação da responsabilidade pelo do no arcabouço do tributo, o que também só é possível se
crédito tributário, há dois rumos bem definidos: um interno à mantiver o núcleo de referência que a Constituição lhe atribuiu.
situação tributada; outro externo. Diremos logo que o externo
. Sendo assim, coloca-se a indagação, cheia de mistério e curio-
tem supedâneo na frase excepcionadora, que inicia o período sidade: não se tratando de obrigação tributária, que índole
— Sem prejuízo do disposto neste Capítulo — e se desenrola no teria esse vínculo, de que tantas vezes se socorre nosso legis-
conteúdo prescritivo daqueles artigos que mencionamos e lador? Reuniria ele, porventura, poderes constitucionais para
seguintes (129 até 138). O caminho da eleição da responsabili- prescrever relações de outro jaez?
dade pelo crédito tributário, depositada numa terceira pessoa, Tudo fica mais evidente, porém, quando atinamos ao dis-
vinculada ao fato gerador, nos conduz à pergunta imediata: posto na Seção II — "Responsabilidade de Terceiros". Sob o
mas quem será essa terceira pessoa? E a resposta vem pronta: manto jurídico da solidariedade, esconde-se a providência san-
qualquer uma, desde que não tenha relação pessoal e direta cionatória, de maneira nítida e insofismável. Vamos conferir.
com o fato jurídico tributário, pois essa é chamada pelo nome
de contribuinte, mesmo que, muitas vezes, para nada contribua. "Art. 134. Nos casos de impossibilidade de exigência do
Sem embargo, haverá de ser colhida, obrigatoriamente, dentro cumprimento da obrigação principal pelo contribuinte,
da moldura do sucesso descrito pela norma. É o que determina respondem solidariamente com este nos atos em que inter-
o legislador. vierem ou pelas omissões de que forem responsáveis (a subli-
nha é nossa):
As duas orientações para a indicação da responsabilidade
I — os pais, pelos tributos devidos por seus filhos menores;
pelo crédito tributário abrem, para o intérprete, uma série de
II — os tutores e curadores, pelos tributos devidos por seus
especulações. Comecemos pela terceira pessoa, vinculada ao
tutelados ou curatelados;
fato jurídico tributário. Acreditamos, outrossim, que esta se
III — os administradores de bens de terceiros, pelos tributos
encontra sempre que o sujeito escolhido saia da compostura
devidos por estes;
interna do fato tributário. Em ambas as hipóteses teremos uma
IV — o inventariante, pelos tributos devidos pelo espólio;
relação obrigacional, de natureza tributária, visto que os sujei-
tos passivos foram retirados do interior da realidade objetiva V — o síndico e o comissário, pelos tributos devidos pela
massa falida ou pelo concordatário;
descrita no suposto da norma.
VI — os tabeliães, escrivães e demais serventuários de ofício,
Não sucede o mesmo quando o legislador deixa os limi- pelos tributos devidos sobre os atos praticados por eles, ou
tes factuais, indo à procura de uma pessoa estranha àquele perante eles, em razão do seu ofício;

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

VII — os sócios, no caso de liquidação de sociedade de pes- 3.1.9.3. Responsabilidade tributária por infrações
soas.
Parágrafo único. O disposto neste artigo só se aplica, em Salvo disposição de lei em contrário, a responsabilidade
matéria de penalidades, às de caráter moratório." por infrações da legislação tributária independe da intenção
do agente ou do responsável e da efetividade, natureza e ex-
A transcrição foi longa, mas valeu a pena. Denuncia, com tensão dos efeitos do ato (CTN, art. 136). Nota-se aqui uma
força e expressividade, o timbre sancionatório que vimos sa- declaração de princípio em favor da responsabilidade objetiva.
lientando. A cabeça do artigo já diz muita coisa, e fizemos Mas, como sua formulação não está em termos absolutos, a
questão de grifar nos atos em que intervierem ou pelas omissões possibilidade de dispor em sentido contrário oferta espaço para
de que forem responsáveis porque revela a existência de indis- que a autoridade legislativa construa as chamadas infrações
farçável ilícito e do animus puniendi que inspirou o legislador, subjetivas.
ao construir a prescrição normativa. Não fora isso, e todos os
incisos confirmariam a presença de um dever descumprido, O art. 137 aponta os casos em que a responsabilidade é
na base da responsabilidade solidária. Para evitar o compro- pessoal do agente: quanto às infrações conceituadas por lei
metimento, as pessoas arroladas hão de intervir com zelo e não como crimes ou contravenções, salvo quando praticadas no
praticar omissões: tal é o dever que lhes compete. A inobser- exercício regular de administração, mandato, função, cargo ou
vância acarreta a punição. emprego, ou no cumprimento de ordem expressa emitida por
Para rematar, o parágrafo único fortalece ainda mais a quem de direito (item I); quanto às infrações em cuja definição
o dolo específico do agente seja elementar (item II); e quanto
convicção, restringindo a responsabilidade unicamente às pe-
nalidades moratórias, que têm caráter de sanção civil. E por às infrações que decorram direta e exclusivamente de dolo
que não estendeu às multas administrativas? Logicamente, específico: a) das pessoas referidas no art. 134, contra aquelas
porque haveria sobreposição de penalidades. por quem respondem; b) dos mandatários, prepostos ou em-
pregados, contra seus mandantes, preponentes ou emprega-
Cremos haver demonstrado a natureza do vínculo que se
dores; c) dos diretores, gerentes ou representantes de pessoas
instala, sempre que pessoa externa ao acontecimento do fato
jurídicas de direito privado, contra estas (art. 137, III).
jurídico tributário é transportada para o tópico de sujeito pas-
sivo. Teremos uma relação jurídica, de cunho obrigacional, mas Modo de exclusão da responsabilidade por infrações à
de índole sancionatória — sanção administrativa. legislação tributária é a denúncia espontânea do ilícito, acom-
Alguns autores invocam a extinção da obrigação tributá- panhada, se for o caso, do pagamento do tributo devido e dos
ria, quando o responsável paga a dívida, como um argumento juros de mora, ou do depósito da importância arbitrada pela
contrário à tese que advogamos. O argumento, todavia, é in- autoridade administrativa, quando o montante do tributo de-
consistente. Nada obsta a que o legislador declare extinta a penda de apuração (CTN, art. 138). A confissão do infrator,
obrigação tributária, no mesmo instante em que também se entretanto, haverá de ser feita antes que tenha início qualquer
extingue a relação sancionatória. Dá-se por satisfeito, havendo procedimento administrativo ou medida de fiscalização rela-
conseguido seu objetivo final. Nem por isso, contudo, poderá cionada com o fato ilícito, sob pena de perder seu teor de es-
impedir que o responsável procure ressarcir-se junto ao sujei- pontaneidade (art. 138, parágrafo único). A iniciativa do sujei-
to passivo tributário, aparecendo, perante ele, como credor no to passivo, promovida com a observância desses requisitos, tem
âmago de uma relação de direito privado. a virtude de evitar a aplicação de multas de natureza punitiva,

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porém não afasta os juros de mora e a chamada multa de mora, campo de sua possibilidade jurídica. Temos conhecimento,
de índole indenizatória e destituída do caráter de punição. até agora, de que foi posto na condição de sujeito passivo por
Entendemos que as duas medidas — juros de mora e multa de especificação da lei, ostentando a integral responsabilidade
mora — por não se excluírem mutuamente, podem ser exigidas pelo quantum devido a título de tributo. Enquanto nas outras
de modo simultâneo: uma e outra. hipóteses permanece a responsabilidade supletiva do contri-
buinte, aqui o substituto absorve totalmente o debitum, assu-
3.1.10. Sujeição passiva indireta e substituição tributária mindo, na plenitude, os deveres de sujeito passivo, quer os
pertinentes à prestação patrimonial, quer os que dizem res-
Já vimos que sujeito passivo da relação jurídica tributária peito aos expedientes de caráter instrumental, que a lei cos-
é a pessoa de quem se exige o cumprimento do objeto da pres- tuma chamar de "obrigações acessórias". Paralelamente, os
tação, nos nexos obrigacionais, bem como daquelas insuscep- direitos porventura advindos do nascimento da obrigação
tíveis de avaliação patrimonial, nas relações que veiculam ingressam no patrimônio jurídico do substituto, que poderá
meros deveres instrumentais ou formais. No subsolo do direi- defender suas prerrogativas, administrativa ou judicialmente,
to posto, seguindo a linha de pensamento de Rubens Gomes formulando impugnações ou recursos, bem como deduzindo
de Sousa, vamos encontrar a doutrina que aponta o contribuin- suas pretensões em juízo, para, sobre elas, obter a prestação
te como sujeito passivo direto, e, como figuras de sujeição in- jurisdicional do Estado.
direta, a substituição e a transferência, subdividindo-se esta
É preciso dizer que não se perde de vista o substituído.
última em solidariedade, sucessão e responsabilidade. O ma- Ainda que não seja compelido ao pagamento do tributo, nem
gistério, porém, tecido com critérios econômicos ou com dados
a proceder ao implemento dos deveres instrumentais que a
ocorridos em momento pré-legislativo, não mais se sustenta
ocorrência suscita, tudo isso a cargo do substituto, mesmo
em face de uma dogmática que se pretende rigorosa, voltada
assim permanece à distância, como importante fonte de refe-
apenas para os aspectos jurídicos que os eventos do mundo
rência para o esclarecimento de aspectos que dizem com o
possam oferecer. nascimento, a vida e a extinção da obrigação tributária. Está
Não sobeja repisar que a substituição de que falam os aí a origem do princípio segundo o qual o regime jurídico da
mestres, ou que registram os textos prescritivos, dista de ser substituição é o do substituído, não o do substituto. Se aquele
fenômeno jurídico em que um sujeito de direitos cede lugar a primeiro for imune ou estiver protegido por isenção, este últi-
outro sujeito de direitos, sob o pálio de determinado regime, mo exercitará os efeitos correspondentes. Ao ensejo do lança-
como sugere o termo. A modificação se produz antes que o mento, a lei aplicável há de ser a vigente no instante em que
texto seja editado, em tempo que antecede o aparecimento da ocorreu a operação praticada pelo substituído, desprezando-se
disciplina jurídica sobre a matéria. Estamos diante de algo que a do substituto. Mas, uma peça indispensável ao arranjo jurí-
se opera em intervalo meramente político, quando o legislador dico da substituição é a pronta disponibilidade de mecanismo
prepara sua decisão e a norma ainda não logrou entrar no eficaz para eventuais ressarcimentos do substituto.
sistema.
Entendo que essa providência assecuratória, estreitamen-
Deixando entre parênteses essas imprecisões, tão comuns, te ligada a princípios constitucionais da mais alta expressivi-
aliás, na história de nossas instituições, coloquemos debaixo dade, não pode ficar ao sabor de juízos de conveniência ou de
dos olhos o vulto do substituto, com o objetivo de demarcar o oportunidade exarados pela Administração Pública, nem,
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

muito menos, prejudicada por bloqueios burocráticos tão fre- para o sujeito que realiza etapa subsequente da cadeia, este
quentes nos domínios da gestão dos tributos. O substituto pode obrigado a recolher o valor de duas operações: uma, de sua
servir-se de ação regressiva contra o substituído, "para recu- própria etapa; outra, daquela que a antecedeu. Aí, a regra-matriz
perar a importância correspondente ao imposto e para manter permanece intacta em todos os seus aspectos, incidindo e dando
o equilíbrio da equação financeira da substituição, sem que es- nascimento à obrigação tributária. Apenas a exigibilidade do
teja em jogo qualquer prestação meramente tributária", como cumprimento dessa relação jurídica é que será adiada, verifi-
bem anota Ricardo Lobo Torres 214 . cando-se em momento posterior da cadeia, por sujeito passivo
diverso daquele que praticou o fato jurídico tributário.
O instituto da substituição desfruta de grande atualidade
no Brasil, difundindo-se intensamente como vigoroso instru- Em outras palavras, nessa situação, o pagamento é poster-
mento de controle racional e de fiscalização eficiente no pro- gado a um dado momento que ocorre após a própria constituição
do fato jurídico. Observe-se que, em tal sentido, recolhendo o
cesso de arrecadação dos tributos. Entretanto, ao mesmo
sujeito passivo no âmbito da geografia do acontecimento, have-
tempo em que responde aos anseios de conforto e segurança
rá perfeita consonância com as diretrizes constitucionais, pois
das entidades tributantes, provoca sérias dúvidas no que con-
o legislador está se movendo dentro do espaço que lhe foi supe-
cerne aos limites jurídicos de sua abrangência e à extensão de
riormente atribuído. É modificando os elementos jurídicos na
sua aplicabilidade. Afinal de contas, o impacto da percussão
conformação da imposição tributária, perseguindo, assim, obje-
fiscal mexe com valores fundamentais da pessoa humana - pro- tivos alheios aos meramente arrecadatórios, que se dá a "extra-
priedade e liberdade -, de tal sorte que não se pode admitir fiscalidade" na substituição tributária. Priorizam-se as finalida-
transponha o legislador certos limites, representados por prin- des de ordem social e econômica e não o incremento de receita,
cípios lógico-jurídicos e também jurídico-positivos. desonerando, pelo diferimento, os produtores de artigos primá-
rios, em regra, ao mesmo tempo em que impõe ao revendedor
3.1.10.1. Substituição tributária "para trás" e "para frente" subsequente o ônus de recolher o tributo.
De modo diverso, na chamada substituição para frente,
Convencionou-se distinguir a substituição para trás da nutrida pela suposição de que determinado sucesso tributário
substituição para frente. Na primeira, segundo alguns, deu-se haverá de realizar-se no futuro, o que justificaria uma exigên-
o evento tributado em todos os seus contornos jurídicos. Nada cia presente, as dificuldades jurídicas se multiplicam em várias
obstante, o legislador, por medidas de garantia e comodidade direções, atropelando importantes valores constitucionais. Para
no procedimento arrecadatório, entende por bem passar à atenuar os efeitos aleatórios dessa concepção de incidência,
frente, estabelecendo a responsabilidade na operação subse- acena-se com um expediente compensatório ágil, que possa, a
quente, como que prolongando o perfil da dívida tributária. qualquer momento, ser acionado para recompor a integridade
econômico-financeira da pessoa atingida, falando-se até em
A substituição tributária para trás, portanto, será verda-
lançamentos escriturais imediatamente lavrados nos livros
deira hipótese de diferimento onde há postergação do instan-
próprios. Por esse modo se pretende legitimar, perante o orde-
te para o pagamento do tributo, transferindo a obrigação fiscal
namento jurídico, a extravagante iniciativa de tributar eventos
futuros, sobre os quais nada se pode adiantar.
214. Curso de direito financeiro e tributário, Rio de Janeiro, Renovar, 1998, Ora, se pensarmos que o direito tributário se formou como
p. 213. um corpo de princípios altamente preocupados com minúcias
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do fenômeno da incidência, precisamente para controlar a Pública. Ao mesmo tempo, ninguém desconhece a constante
atividade impositiva e proteger os direitos e garantias dos ci- preocupação dos funcionários especializados, na busca de pro-
dadãos, como admitir um tipo de percussão tributária que se vidências racionalizadoras, que diminuam o risco e aumentem
dê à margem de tudo isso, posta a natural imprevisibilidade o rendimento dos procedimentos de cobrança. Todavia, aquilo
dos eventos futuros? Se é sabidamente difícil e problemático que choca o sentimento jurídico do cidadão é que isso se faça à
exercitar o controle sobre os fatos ocorridos, de que maneira
custa de valores tão caros e obtidos com tanto sacrifício.
lidar com a incerteza do porvir e, ao mesmo tempo, manter a
segurança das relações jurídicas? Tais considerações servem para registrar minha convicção
no sentido de ser essa espécie de tributação maculada por vícios
Procurando atalhar essas questões, o legislador brasileiro
de inconstitucionalidade, tendo em vista a pretensão de se
fez aprovar a Emenda Constitucional n. 03/93, que acrescentou
tributar "fato futuro", atropelando uma série de princípios
o § 7 2 ao art. 150 da Carta Magna, prescrevendo:
constitucionais. Contudo, para que seja possível o exame da
legislação infraconstitucional, compreendendo suas determi-
"A lei poderá atribuir a sujeito passivo de obrigação tri-
butária a condição de responsável pelo pagamento de
nações para, no caso concreto, identificar a presença ou não
i mposto ou contribuição, cujo fato gerador deva ocorrer desse regime jurídico, bem como suas consequências quanto
posteriormente, assegurada a imediata e preferencial ao laço obrigacional, é necessário abstrair por alguns momen-
restituição da quantia paga, caso não se realize o fato tos essa opinião.
gerador presumido."

3.1.11. Sujeição passiva indireta e solidariedade


Modificação desse porte, introduzida no altiplano consti-
tucional, teria o condão de encerrar o debate dogmático, im- No direito tributário, o instituto da solidariedade é um
primindo rumos seguros à disciplina das condutas intersubje-
expediente jurídico eficaz para atender à boa organização ad-
tivas no setor tributário? Estimo que não. A partir da Emenda
ministrativa do Estado, na procura da satisfação dos seus di-
n. 03/93, ficaram bem caracterizadas duas orientações norma-
reitos. Sempre que houver mais de um devedor, na mesma
tivas contrapostas, ambas girando em torno do secular princí-
relação jurídica, onde cada um fique obrigado ao pagamento
pio da irretroatividade das leis. Havendo oposição formal entre
da dívida integral, dizemos existir solidariedade passiva, nos
dois enunciados do mesmo nível, e não podendo aplicá-los
termos do preceituado pelo artigo 264 do Código Civil brasilei-
concomitantemente, o intérprete deverá optar por um em de-
ro. Disciplinando o assunto na esfera tributária, o artigo 124
trimento do outro. Trata-se, por certo, de decisão de fundo
do Código Tributário Nacional firma que "são solidariamente
ideológico, mas toda interpretação pressupõe um ato de co-
obrigadas: I - as pessoas que tenham interesse comum na situ-
nhecimento e outro de decisão política, como bem advertira
ação que constitua o fato gerador da obrigação principal; II - as
Kelsen. Na verdade, parece-me extremamente difícil abrir mão de
pessoas expressamente designadas por lei", consignando, ain-
valores que as civilizações modernas conquistaram com muita
luta e de modo paulatino, no sentido de acolher diretriz fundada da, no parágrafo único, que "a solidariedade referida neste
unicamente em critérios de comodidade administrativa, para artigo não comporta benefício de ordem".
realizar melhores padrões de conforto na arrecadação dos O interesse comum dos participantes na realização do fato
tributos. Interessa a todos, não há dúvida, o bom êxito da jurídico tributário é o que define, segundo o inciso I, o apare-
gestão tributária, concretizada pelos órgãos da Administração cimento da solidariedade entre os devedores. A expressão
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empregada, além de vaga, não é roteiro seguro para a identi- "somente o contribuinte chamado 'de jure' é parte da rela-
ficação do nexo que se estabelece entre os devedores da pres- ção jurídica tributária; consequentemente, somente a ele é
atribuível o título jurídico; somente a ele cabe o direito de
tação tributária. Basta refletirmos na hipótese do imposto que
repetição do tributo indevido e nenhuma condição adicional
onera as transmissões imobiliárias. No Estado de São Paulo, a se lhe pode ser imposta para o exercício desse direito".
lei indica o comprador como o sujeito passivo do gravame.
Entretanto, tanto ele quanto o vendedor estão diretamente li-
E mais adiante: "o vínculo entre os contribuintes 'de jure'
gados à efetivação do negócio, havendo indiscutível interesse e 'de fato', pelo qual o fenômeno da translação legalmente re-
comum. Numa operação relativa à circulação de mercadorias, conhecida se opera, é de natureza privada".
ninguém afirmaria inexistir convergência de interesses, unin-
do comerciante e adquirente, para a concretização do fato, se Assim é que a norma veiculada pelo artigo 166, do Código
bem que o sujeito passivo seja aquele primeiro. Nas prestações Tributário Nacional, não pode ser aplicada de maneira isolada;
de serviços, gravadas pelo ISS, tanto o prestador quanto o há de integrar-se com todas as regras do sistema, sobretudo com
tomador do serviço têm interesse comum no evento, e não por as veiculadas pelos artigos 121, 123 e 165 do Código Tributário
isso o sujeito passivo deixa de ser o prestador. Nacional. Em nenhuma delas está consignado que o terceiro
que arque com o encargo financeiro do tributo possa ser contri-
Aquilo que vemos repetir-se com frequência, em casos buinte. Portanto, só o contribuinte tributário tem direito à repe-
dessa natureza, é que o interesse comum dos participantes no tição de indébito e, via de consequência, só a ele é atribuído
acontecimento factual não representa dado satisfatório para a legitimidade processual para tal empreendimento.
definição do vínculo da solidariedade. Em nenhuma dessas
Advirta-se que o terceiro que suporta com o ônus econômi-
circunstâncias cogitou o legislador desse elo que aproxima os
co do tributo não participa da relação jurídica tributária, razão
participantes do fato, o que ratifica a precariedade do método
suficiente para que se verifique a impossibilidade desse terceiro
preconizado pelo inciso I, do artigo 124, do Código Tributário
vir a integrar a relação consubstanciada na prerrogativa da repe-
Nacional. Vale, sim, para situações em que não haja bilaterali-
tição do indébito, não tendo, portanto, legitimidade processual.
dade no seio do fato tributado, como, por exemplo, na incidência
do IPTU, em que duas ou mais pessoas são proprietárias do Resulta dessas considerações que é ao sujeito passivo da
mesmo imóvel. Tratando-se, porém, de ocorrências em que o obrigação tributária, ou responsável, que realizou o evento jurí-
fato se consubstancie pela presença de pessoas, em posições dico do pagamento indevido, que pertence o direito subjetivo de
diversas, não se instala a solidariedade. É o que se dá no impos- figurar no pólo ativo do liame da devolução do indébito tributário.
to de transmissão de imóveis, no ICMS, no ISS, dentre outros. O direito à repetição de indébito está assegurado constitucional-
mente e decorre dos princípios informadores do sistema tributá-
rio nacional, motivo pelo qual não se admite que regra de inferior
3.1.12. A importância da determinação do sujeito passivo da hierarquia pretenda restringir ou suprimir esse direito.
relação tributária nas ações de repetição de indébito

Conforme observa Eduardo Domingos Bottallo 2 ": 3.2. PARA UMA SÍNTESE DA REGRA-MATRIZ DE
INCIDÊNCIA

215. "Restituição de impostos indiretos", in Revista de Direito Público, vol. A norma jurídica, com seu esquema sintático de juízo
22, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1973, p. 320. condicional (proposição condicional para a Lógica moderna),
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recoberto semanticamente com sentidos concretos que se di- prescreverá a relação jurídica que se vai instaurar; onde e
rigem ao campo material das condutas intersubjetivas, volta-se quando acontecer o evento cogitado no suposto normativo. A
para o fim de orientar o comportamento social em direção a hipótese alude a um fato e a consequência prescreve os efeitos
certos valores que assegurem o equilíbrio e a harmonia entre jurídicos que o acontecimento irá propagar, razão pela qual se
as pessoas da sociedade humana (sua dimensão pragmática). fala em descritor e prescritor (Lourival Vilanova), o primeiro
É estrutura linguística que tem como finalidade precípua con- para designar o antecedente normativo, e o segundo para in-
dicionar o proceder coletivo, produzindo a almejada eficácia dicar seu consequente.
social do mandamento.
As normas jurídicas têm a organização interna das pro- 3.2.1. Esquema lógico de representação formal
posições hipotéticas, em que se enlaça determinada consequên-
cia à realização condicional de um evento, da forma "p -> q", Analiticamente, os muitos cientistas do direito têm insis-
ou, em linguagem jurídica semiformalizada, verificando-se a tido na tese de que, tanto no descritor (hipótese) quanto no
ocorrência do fato "F", deve ser a conduta obrigatória, por prescritor (consequência), existem referências a aspectos ou
parte de S", de cumprir a prestação "P" em favor de S'. dados identificativos. Na hipótese (descritor), haveremos de
encontrar um critério material (comportamento de uma pes-
Na verdade, numerosos são os postulados que regem a
soa), condicionado no tempo (critério temporal) e no espaço
atividade impositiva do Estado, praticamente todos inscritos,
(critério espacial). Já na consequência (prescritor), deparare-
expressa ou de modo implícito, na Constituição. Igualmente
mos com um critério pessoal (sujeito ativo e sujeito passivo) e
abundantes, as regras tributárias que envolvem a instituição
um critério quantitativo (base de cálculo e alíquota), em se
do gravame, tornando possível sua existência como instrumen-
tratando de regra tributária. A conjunção desses dados indi-
to efetivo de desempenho do poder político, social e econômi-
cativos nos oferece a possibilidade de exibir, na sua plenitude,
co-financeiro do Estado. A produção dos textos legislativos é
o núcleo lógico-estrutural da proposição normativa. Chega-se,
obra dos legisladores (entendido este termo no sentido amplo),
enfim, à regra-matriz de incidência ou proposição-normativa-
plexo de órgãos credenciados para produzir enunciados jurí-
padrão, que em linguagem simbólica pode ser representada
dicos com teor prescritivo. Já a proposição normativa não é
da seguinte forma:
exclusividade de quem promove o ingresso do texto legislado,
mas de todo aquele que se coloque na posição de sujeito-cog- D { [ m(v.c) . ct . ce] -> [ cp(Sa.Sp) . cq(bc.al) }
noscente dos enunciados jurídicos. Está no plano das signifi-
cações, apresentando-se, de final, após a atividade construtiva Interpretação dos símbolos:
do intérprete, com a compostura própria dos juízos condicio-
- "D" dever-ser neutro que outorga validade à norma jurídica.
nais. Nessa plataforma conceptual é que se pode dizer de uma
Incide sobre o conectivo interproposicional juridicizando
hipótese, suposto ou antecedente, a que se conjuga uma tese,
o vínculo entre hipótese e consequência;
consequência ou mandamento. A forma associativa é a cópula
deôntica, o dever-ser que caracteriza a imputação jurídico- - "[cm(v.c) . ct . ce]" = hipótese normativa, antecedente, supos-
normativa. to normativo, proposição hipótese ou descritor, em que:
Dentro desse arcabouço, a hipótese trará a previsão de cm critério material da hipótese - núcleo da descrição
um fato de possível ocorrência, enquanto a consequência fáctica;

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

v r=- verbo, sempre pessoal e de predicação incompleta; Convém relembrar que, no domínio das chamadas "nor-
c -= complemento do verbo; mas tributárias", poderemos classificá-las em dois subconjun-
tos: (i) as unidades que dizem, propriamente, com o fenômeno
ce = critério espacial da hipótese, condicionante de espaço;
da percussão impositiva; e (ii) aquel'outras que estipulam di-
ct -= critério temporal da hipótese, condicionante de retrizes gerais ou fixam providências administrativas para
tempo; i mprimir operatividade a tal pretensão. São poucas as perten-
símbolo de equivalência centes ao primeiro subdomínio, ou seja, as que definem a in-
cidência tributária, conotando os eventos de possível ocorrên-
"." := conectivo lógico conjuntor;
cia e prescrevendo os elementos da obrigação de pagar. Pode-
- " " conectivo condicional interproposicional; se até afirmar que existe somente uma para cada figura tribu-
- "E cp(Sa.Sp) . cq(bc.al) ]" consequente normativo, tária, acompanhada por numerosas regras de caráter funcional.
proposição relacional, tese ou prescritor, em que: Ora, é firmado nessa base empírica que passo a designar "nor-
ma tributária em sentido estrito" àquela que assinala o núcleo
Sar-:- sujeito ativo da obrigação, credor, sujeito pretensor;
do impacto jurídico da exação. E esta, exatamente por instituir
Sp = sujeito passivo da obrigação, devedor; o âmbito de incidência do tributo, é também denominada
bc = base de cálculo; "norma-padrão" ou "regra-matriz de incidência tributária".

al alíquota.
3.2.2. Ofenômeno da incidência tributária: a positivação da
Estabelecidos tais pressupostos, é oportuno relembrar regra-matriz
que o resultado dessa tarefa compositiva haverá de ser a ob-
tenção de um juízo hipotético, e que seus componentes se as- As regras do direito juridicizam os fatos sociais (entre eles,
sociam pelo liame da imputação deôntica [D()], qualificado os naturais que interessem de algum modo à sociedade), fa-
pelo dever-ser neutro. zendo irromper relações jurídicas, no seio das quais aparecem
os direitos subjetivos e os deveres correlatos. Daí dizer-se que
O princípio da homogeneidade sintática das regras do
a incidência da regra faz nascer o vínculo entre sujeitos de
direito positivo identifica a mesma estrutura formal de todas
direito, por força da imputação normativa. E a norma tributá-
as entidades do conjunto normativo. As normas jurídicas tri-
ria não refoge desse quadro de atuação, que é universal, valen-
butárias ostentam a mesma estrutura frástica, diferenciando-
do para todo espaço territorial e para todo o tempo histórico.
se apenas nas instâncias semântica e pragmática. No âmbito
do direito tributário, caracterizam-se por incidir em determi- Como decorrência do acontecimento do evento previsto
nada região do social, marcada por acontecimentos economi- hipoteticamente na norma tributária, instala-se o fato consti-
camente apreciáveis que são atrelados a condutas obrigatórias tuído pela linguagem competente, irradiando-se o efeito jurí-
da parte dos administrados, e que consistem em prestações dico próprio, qual seja o liame abstrato mediante o qual uma
pecuniárias em favor do Estado-administração. Todavia, em pessoa, na qualidade de "sujeito ativo", ficará investida do
toda 'a extensão do sistema, o esquema lógico ou sintático per- direito subjetivo de exigir de outra, chamada de "sujeito pas-
manece estável, o que não ocorre, no entanto, em termos de sivo", o cumprimento de determinada prestação pecuniária.
conteúdo, no nível semântico. Empregando a terminologia do Código Tributário Nacional,
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

diríamos que ocorreu o "fato gerador" (em concreto), surgindo tributário guardar absoluta identidade com o desenho norma-
daí a obrigação tributária: é a fenomenologia da chamada "in- tivo da hipótese. Esse quadramento, porém, tem de ser com-
cidência dos tributos". pleto. É aquilo que se tem por tipicidade, que no direito tribu-
tário, assim como no direito penal, adquire enorme importân-
Em rigor, não é o texto normativo que incide sobre o fato
cia. Segundo tal preceito, para que determinada ocorrência
social, tornando-o jurídico. É o ser humano que, buscando
seja tida como fato jurídico tributário, imprescindível a satis-
fundamento de validade em norma geral e abstrata, constrói a
fação de todos os critérios identificadores tipificados na hipó-
norma jurídica individual e concreta, na sua bimembridade
tese da norma geral e abstrata. Que apenas um não seja reco-
constitutiva, empregando, para tanto, a linguagem que o sis- nhecido, e a dinâmica da incidência ficará inteiramente com-
tema estabelece como adequada, vale dizer, a linguagem com- prometida.
petente. Instaura, desse modo, o fato e relata seus efeitos
prescritivos, consubstanciados no laço obrigacional que vai
atrelar os sujeitos da relação. E tal atividade, que consiste na 3.3. REGRA-MATRIZ DOS PRINCIPAIS IMPOSTOS
expedição de norma individual e concreta, somente será pos-
3.3.1. Anotações sobre o presente contexto histórico
sível se houver outra norma, geral e abstrata, servindo-lhe de
fundamento de validade. Vivemos momento crítico, caracterizado pela instabili-
Tecnicamente, interessa sublinhar que a incidência re- dade das instituições, principalmente no que concerne ao
quer, por um lado, norma jurídica válida e vigente; por outro, quadro jurídico-tributário que vigora no Brasil. O país passa
a realização do evento juridicamente vertido em linguagem por intervalo difícil de sua história e toda a desordem a que
que o sistema indique como própria e adequada. Percebe-se, assistimos no plano econômico irradia-se para o setor políti-
portanto, que a chamada "incidência jurídica" reduz-se, pelo co, social (em sentido estrito), moral e, como não poderia
prisma lógico, a duas operações formais: a primeira, de sub- deixar de ser, para os domínios do direito. Certamente que
sunção ou inclusão de classes, em que se reconhece que uma nunca atravessamos período de tanta turbulência na edição
ocorrência concreta, localizada em determinado ponto do es- de regras atinentes às condutas inter-humanas, de modo es-
paço social e em específica unidade de tempo, inclui-se na pecial, no exercício das pretensões impositivas do Estado
classe dos fatos previstos no suposto da norma geral e abstra- enquanto Poder Tributante. A ausência de expectativas está-
ta; outra, a segunda, de implicação, porquanto a fórmula nor- veis impede qualquer iniciativa de planejamento racional por
mativa prescreve que o antecedente implica a tese, vale dizer, parte dos sujeitos passivos, gerando indeterminações que hoje
o fato concreto, ocorrido hic et nunc, faz surgir uma relação são sentidas intensamente também pelas autoridades admi-
jurídica também determinada, entre dois ou mais sujeitos de nistrativas, perdidas na trama de uma legislação desencon-
direito. É importante ter em mente, outrossim, que tais opera- trada, em que a multiplicidade de comandos, editados sem
ções lógicas somente se realizam mediante a atividade de ser respeito aos superiores princípios da Lei Fundamental, pre-
humano, que efetue a subsunção e promova a implicação que cipitam-se sobre a região material das condutas intersubjeti-
o preceito normativo determina, o que pressupõe construção vas, em cadeias de normas que se desdobram, muitas vezes,
de linguagem. sem o nexo que a harmonia do sistema requer.

Voltando nossa atenção à primeira dessas operações for- A criação de um esquema seguro para dar parâmetros
mais, diremos que houve subsunção quando o fato jurídico racionais à tributação, com fundamento em estrutura lógica,

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permitiu à Ciência do Direito Tributário colaborar na limita- cujos conteúdos hão de manter-se presentes no longo e com-
ção da vontade arrecadatória do legislador. A regra-matriz plexo processo de positivação, estava por reclamar outras re-
veio à lume, justamente, para instaurar critérios seguros, flexões mais aturadas, mais rigorosas, mais criativas, que a
permitindo identificar a natureza do tributo e relacioná-la mera preocupação com aspectos econômicos e contábeis jamais
com o regime jurídico que querem lhe impor. O texto de lei poderia oferecer.
passa a ser observado de forma crítica e sob reflexões auto- Com efeito, os desvios inerentes a interpretações pouco
rizadas pela Epistemologia Geral, de tal sorte que fiquem elaboradas dos comandos constitucionais têm dificultado so-
preservados os sobranceiros princípios constitucionais infor- bremaneira a boa aplicação dos amplos recursos dessa forma
madores da adequada construção da regra-matriz de incidên- de tributação, impedindo que Fisco e contribuinte possam
cia, assim como de todas as unidades integrantes do processo usufruir das indiscutíveis vantagens que ela oferece.
de positivação do direito.

3.3.2.1. Variações sobre o modo de aproximação cognoscitiva


3.3.2. Imposto sobre a renda com o IR
Dentre os impostos que compõem o sistema tributário Todo aquele que pretender aproximar-se desse tributo
nacional, o imposto sobre a renda e proventos de qualquer terá que observar de perto a vida das empresas. Essas socie-
natureza sempre ocupou lugar importante, independentemen- dades, células indispensáveis para a movimentação econômica
te do volume de receita que é capaz de produzir para os cofres do país, demonstram que o trato com o direito tributário requer
públicos. Sua dimensão histórica; seus amplos recursos eco- a consideração direta da linguagem contábil-fiscal, com sua
nômicos, políticos e jurídicos; sua potencialidade de atingir em particularíssima simbologia, cuidadosamente juridicizada pela
cheio a capacidade contributiva do sujeito passivo; sua com- legislação específica. A Lei das Sociedades Anônimas, por
postura tão propícia à realização de valores supremos como a exemplo, consagra porção expressiva de formulações oriundas
"justiça tributária"; tudo isso foi criando, ao longo da tradição, das Ciências Contábeis, o que equivale a absorver tais conte-
um ambiente favorável ao desenvolvimento desse tributo. Em údos, outorgando-lhes relevância para o direito.
princípio, mais no plano contábil; depois, no campo da política Os assim chamados "fatos contábeis" são construções de
e da economia, passando a interessar fortemente os juristas. linguagem, governadas pelas diretrizes de um sistema organi-
Nada obstante esse papel de crescente relevância para a Dog- zado para registrar ocorrências escriturais, articulando-as num
mática, a verdade é que somente agora surgem estudos jurídicos todo carregado de sentido objetivo.
de maior envergadura submetendo o gravame a uma análise Quando o direito se ocupa dessa trama sígnica, fazendo
mais fina, a ponto de aproveitar, com profundidade, a messe de sobre ela incidir sua linguagem deôntica, temos o jurídico-pres-
informações que a experiência brasileira tem ensejado. critivo empregado na condição de meta-linguagem, isto é, de
Por esse ângulo de observação, penso que o grande pro- linguagem de sobrenível, e a Ciência do Direito Tributário ope-
blema sempre foi a conexão entre os preceitos estatuídos no rando como meta-metalinguagem, porém de caráter descritivo.
modelo da Lei Suprema e os desdobramentos infraconstitucio- Poder-se-ia advertir que sempre tudo se passa assim,
nais que a farta legislação prevê. O domínio de certos primados, porquanto as normas jurídicas estariam, invariavelmente,
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percutindo sobre a linguagem do social, com o que estou de E a preferência tem recaído em impostos como os de im-
acordo. Todavia, no caso dos registros contábeis, essa lingua- portação e exportação, o ICMS, o IPI e, recentemente, sobre o
gem se interpõe acima da linguagem social e abaixo da cama- IPTU e o ITR. Quanto ao imposto sobre a renda e proventos
da linguística do direito posto. É um estrato a mais, que o de qualquer natureza, talvez pela complexidade do seu regime
cientista do direito não pode esquecer, tratando, como se trata, de incidência, ou pelo número às vezes até extravagante dos
de discurso voltado para uma finalidade precípua, qual seja, a enunciados prescritivos que integram sua estrutura, a verdade
de estabelecer o procedimento técnico indispensável ao esta- é que a exação tem espantado os especialistas, afastando-os de
belecimento intersubjetivo dos fatos relevantes para o convívio um contato mais direto e radical com tão nobre forma de im-
socioeconômico. Os sistemas contábeis, com suas regras de posição tributária.
formação e de transformação rigorosamente explicitadas, dão Esperava-se, com grande expectativa, um escrito diferen-
espaço a um cálculo operacional próprio, além de toda a gama te, que dirigisse o foco da análise para as raízes constitucionais
de dificuldades de cunho semântico e pragmático que sabemos do imposto sobre a renda, discutindo-lhe os pressupostos para
existir. o conhecimento de sua base institucional, uma vez que, pelo
processo de derivação, todas as normas do direito positivo hão
3.3.2.2. Os pressupostos constitucionais do imposto sobre a de buscar o fundamento último de sua validade jurídica no
renda Texto Supremo. É a Lei das leis que instaura a ordem jurídica
e precipita, uma a uma, todas as cadeias normativas que servem
Já é expressiva a literatura jurídica brasileira sobre os de ponte entre os grandes valores e as diretrizes constitucionais,
tributos. Com a velocidade da produção normativa dos órgãos de um lado, e as condutas pessoais em interferência intersub-
governamentais, gerando intensivamente a disciplina de situ- jetiva, do outro. Os comandos do Diploma Básico, para chega-
ações novas na ânsia de diminuir o descompasso inevitável rem à região material dos comportamentos inter-humanos,
entre a realidade social e os padrões adequados da juridicida- necessitam, de modo imprescindível, de uma série de outras
de positiva, a doutrina nacional vem aumentando, considera- normas gerais e abstratas e individuais e concretas, sem o que
velmente, sua contribuição nesse território tão delicado do não logram aproximar-se do agir humano, nas suas relações
relacionamento intersubjetivo. de interpessoalidade. E disso decorre que a discussão dos
No amplo quadro das obras publicadas sobre a matéria, grandes problemas, por mais que se estabeleça no plano prag-
contudo, preponderam manifestações genéricas, no feitio de mático das condutas concretas, há de regredir, necessariamen-
cursos, compêndios, manuais, ou a respeito de institutos jurí- te, à busca da sustentação constitucional apropriada, sem o
dicos cuja presença inevitável na compostura das várias enti- que resvalará para o lugar-comum das questões infundadas,
dades tributárias é de meneio obrigatório entre os estudiosos. das pretensões tributárias juridicamente insustentáveis.
No mais, há grande incidência de doutrina a propósito de as-
Podemos dar por consente que, em todas as imposições
suntos tópicos que, por algum motivo, tenham suscitado o in-
tributárias, os alicerces da figura impositiva estarão plantados
teresse imediato da comunidade jurídica. Monografias acerca
na Constituição da República, de onde se irradiam preceitos
de tributos, especificamente considerados, são raras. De cinco
anos para cá, entretanto, foram surgindo alguns trabalhos de pelo corpo da legislação complementar e da legislação ordiná-
alto nível científico, com a proposta de analisar a regra-matriz ria, crescendo em intensidade a expedição de regras em esca-
de algumas figuras do nosso sistema tributário. lões de menor hierarquia. Não fosse isso, o labor constante dos

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contribuintes, do Judiciário, da própria Administração e do Agora, em clima de reforma constitucional, acesos os


Congresso Nacional, interpretando o produto legislado e ou- debates sobre aspectos estruturais de nosso sistema tributário,
torgando-lhe dimensões semânticas muitas vezes inconciliá- nada mais oportuno do que analisar o processo de positivação
veis, seguiria multiplicando os embaraços e fazendo do assun- do imposto sobre a renda na óptica da lógico-semântica do
to objeto de inesgotáveis polêmicas. sistema jurídico-normativo.
Tais elementos respondem, certamente, pela grande com-
plexidade do projeto expositivo do cientista, obscurecendo-lhe 3.3.2.3. Capacidade contributiva e IR
a visão para uma tomada mais abrangente e sistematizada. E
o resultado pode ser facilmente apurado: há pouquíssimas No contexto do imposto sobre a renda, o assunto da ca-
obras que dele (IR) se ocupem com o objetivo de apresentá-lo pacidade contributiva assume caráter de obviedade, pois se
em seu esquema básico, em sua feição unitária, em seu caráter torna até impossível tributar sem atinência ao substrato eco-
estrutural. Quase sempre os estudos se afastam daquilo que nômico do evento que sofre a percussão. Mas o tema ganha
outras proporções quando, admitido esse pressuposto inafas-
poderíamos chamar de "núcleo rígido" da exação, para tratar
tável, o estudioso passa a indagar sobre os limites em que devem
de desdobramentos periféricos, de segmentos especializados,
ser considerados os aspectos econômicos. E aproveito o espa-
de questões agudas, cheias de interesse para as partes envol-
ço para dizer que não me refiro, aqui, ao dado econômico ex-
vidas, mas sem lidar com suas categorias fundamentais.
trajurídico, mas àquele que, juridicizado por normas do siste-
Dentre as várias cadeias de positivação do imposto sobre ma positivo, se inseriu no universo dos signos do direito, pas-
a renda, encontram-se os cânones constitucionais, no topo, e sando a pertencer-lhe, ao lado de todos os demais que compõem
de lá descem aos patamares mais baixos do sistema, que con- a massa sígnica desse setor da vida social.
ferem, controlando, a congruência dos numerosos preceitos Convenhamos que os problemas mais agudos relativos à
com os mandamentos da Lei Maior. É curioso observar, trilhan- capacidade contributiva não se inscrevem no quadro que
do esse caminho epistemológico, como as conexões vão se orienta a singela escolha, por parte do autor da regra, de ocor-
desgastando e os desvios vão surgindo, à medida que o direito rências reveladoras de alguma forma de riqueza. Mais além,
posto avança em direção às condutas intersubjetivas. Princípios as dificuldades surgem quando, implantados esses pressupos-
seculares, como o da igualdade, da generalidade, da legalidade, tos, põe-se o legislador a pesquisar, dentro da amplitude eco-
da universalidade, da progressividade e da pessoalidade, tão nômica já reconhecida, qual a medida que cabe ao sujeito
característicos desse tributo, tidos e havidos como instrumen- passivo suportar. Não é, portanto, a capacidade contributiva
tos poderosos para surpreender a capacidade contributiva do absoluta, mas a capacidade contributiva relativa que causa
sujeito passivo, acabam se esvaziando no percurso de concre- maiores dificuldades.
tização, de tal modo que o imposto chega desfigurado ao tocar De tais registros, podemos deduzir duas proposições afir-
o comportamento das pessoas, impotente para exibir as virtu- mativas bem sintéticas: (i) que o princípio da capacidade con-
des tão proclamadas pelos estudiosos. Por não preservar o tributiva absoluta retrata a efetiva realização do conceito jurí-
mínimo vital à subsistência digna do ser humano, sua implan- dico de "renda"; e, (ii) que tornar efetivo o princípio da capa-
tação ofende à segurança da tributação, maculando o sobreva- cidade contributiva relativa implica realizar a igualdade tribu-
lor "justiça", com o que se desencadeiam efeitos sociais suma- tária, de tal modo que os participantes do acontecimento
mente indesejáveis. contribuam de acordo com o tamanho econômico do evento.
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Pois bem. Falando em capacidade contributiva relativa, do acontecimento tributário, fere também o primado da capa-
o art. 146 da Constituição da República estabelece que "os cidade contributiva, em sua dúplice perspectiva, e ingressa,
i mpostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a irrecusavelmente, no perigosíssimo segmento do confisco, que
capacidade econômica do contribuinte". Demais disso, focali- se caracteriza pelo exercício da imposição tributária para além
zando especificamente o imposto sobre a renda e proventos de das possibilidades relativas do sujeito passivo em arcar com o
qualquer natureza, prescreve a determinação segundo a qual ônus do tributo.
deva ele ser "informado pelos critérios da generalidade, da
universalidade e da progressividade, na forma da lei". 3.3.2.4. Análise da regra-matriz do imposto sobre a renda
Aliás, diga-se de passagem, poucos são os tributos que se
Falar em tom descritivo acerca do ordenamento jurídico
prestam à aferição da autêntica capacidade contributiva rela-
é o grande tema da Ciência do Direito em sentido estrito, se
tiva como o imposto sobre a renda, dado sua forte índole de
bem que o trabalho do intérprete para montar o sistema seja
pessoalidade, sendo inteiramente possível ao legislador, por
tarefa construtiva, estimulada pela sua subjetividade, por suas
controlar a multiplicidade e a legitimidade dos ingressos e
inclinações ideológicas, por suas vivências psicológicas, por
selecionando as quantias admitidas como dedutíveis, apurar o
sua vontade, pois o chamado "direito positivo" não aparece
verdadeiro saldo identificador da renda tributável ou da renda
como algo já constituído, pronto para ser contado, reportado,
líquida, segundo o regime jurídico de incidência. Aquilo que
descrito. A tessitura em linguagem, todavia, não será ainda o
só de longe pode ser imaginado em impostos como o IPI e o
bastante para atribuir-lhe qualificações comunicativas plenas,
ICMS, no IR se transforma em algo tangível e perfeitamente requerendo que o destinatário o leia e o compreenda. É preci-
concretizável. Todavia, para tanto, é mister que o editor na samente nessa função hermenêutica de atribuição de sentido,
norma jurídica geral e abstrata respeite a diretriz suprema, nesse adjudicar significação, que reside o trabalho do cientista,
porque constitucional, da capacidade contributiva relativa, que disfarçado numa descritividade acentuadamente subjetiva, como
pode ser expressa na exigência do tributo nos estritos termos acontece, de resto, com as ciências sobre objetos da cultura.
em que a hipótese estipular e a base de cálculo dimensionar. 6
Transcendendo esses limites, ou o Poder Público estará abrin- Recordando lições de Bobbio, Ricardo Guastini" enfati-
do mão do imposto ou extrapolando suas prerrogativas, exi- za a contribuição incisiva do exegeta ao modelar o sistema,
gindo riqueza que não lhe é devida pelo administrado. desconsiderando enunciados prescritivos ou inserindo, no
conjunto, formulações que estariam na implicitude do texto,
Se a exação alcança a disponibilidade econômica ou jurí- tudo, é claro, no pressuposto da ocorrência de antinomias e no
dica de renda, entendida esta como o resultado do trabalho, reconhecimento de lacunas. É de ver que sem tais expedientes
do capital ou da combinação de ambos, claro está que ali onde operatórios a interpretação não teria sido possível e a sobre-
não houver a disponibilidade econômica ou jurídica não have- linguagem descritiva sequer existiria, importando desde logo
rá a plataforma sobre que incida a regra-matriz do imposto. admitir que a participação do agente é algo fundamental no
Diremos, por outro giro, que inocorreu o factum tributário, por aparecimento da mensagem científica. E mais, os conteúdos
insuficiência dos elementos de sua composição material. Tudo
na conformidade dos termos da Lei Maior.
É intuitivo admitir que o avanço do legislador, extrava- 216. Norberto Bobbio, "Sul ragionamento dei giuristi", in Comanducci, P;
GUSTINI, R. L'analisi dei ragionamento giuridico, vol. II, p. 181 e seguintes.
sando seus limites impositivos por afastar-se do núcleo factual
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dos atos decisórios valerão apenas para o momento dado, pois Acerca do conceito de "renda", três são as correntes dou-
os enunciados antinômicos e as lacunas permanecerão na base trinárias predominantes:
empírica do discurso, prontos para estimular outros intérpre-
tes e até o próprio sujeito que anteriormente manifestou sua a) "teoria da fonte", para a qual "renda" é o produto de
compreensão. uma fonte estável, susceptível de preservar sua reprodu-
ção periódica, exigindo que haja riqueza nova (produto)
Ora, quando pensamos num texto crítico acerca do im-
posto sobre a renda e proventos de qualquer natureza - no que derivada de fonte produtiva durável, devendo esta sub-
ele tem de organização jurídico-positiva, estrutura de propor- sistir ao ato de produção;
ções amplas, envolvendo os três campos clássicos de incidência b) "teoria legalista", que considera "renda" um conceito
(pessoa física, pessoa jurídica e fonte), elaborada com toda a normativo, a ser estipulado pela lei: renda é aquilo que a
força de uma tradição consistente e segundo padrões interna- lei estabelecer que é; e
cionais incessantemente criativos - percebemos o quantum de
dificuldade que a empresa encerra. c) "teoria do acréscimo patrimonial", onde "renda" é todo
ingresso líquido, em bens materiais, imateriais ou serviços
Ao escolher as ocorrências sociais que lhe interessam para avaliáveis em dinheiro, periódico, transitório ou acidental,
desencadear efeitos jurídicos, o legislador expede conceitos de caráter oneroso ou gratuito, que importe um incremen-
que selecionam propriedades do evento, considerados relevan- to líquido do patrimônio de determinado indivíduo, em
tes para sua caracterização. Tais conceitos trazem, necessaria- certo período de tempo.
mente, aspectos de ordem material, espacial e temporal, por
completa impossibilidade de algum acontecimento verificar-se Prevalece, no direito brasileiro, a terceira das teorias re-
fora das demarcações de tempo e de espaço. feridas, segundo a qual o que interessa é o aumento do patri-
Mais uma vez nos valemos do expediente da regra-matriz mônio líquido, sendo considerado como lucro tributável exa-
de incidência tributária para formular, em termos racionais, os tamente o acréscimo líquido verificado no patrimônio da em-
critérios que permitem a implantação do imposto sobre a ren- presa, durante período determinado, independentemente da
da. O núcleo do fato jurídico irradia-se do verbo e seu comple- origem das diferentes parcelas. É o que se depreende do art.
mento, que se encontram dispostos no critério material da 43 do Código Tributário Nacional.
regra-matriz. No imposto sobre a renda, há referência ao com- Expressando-se de outra maneira, José Artur Lima Gon-
portamento de pessoas, físicas ou jurídicas, linguisticamente
çalves 217 , e m aprofundado estudo sobre o tema, diz que o con-
representado por um verbo e seu complemento. Para esse
teúdo semântico do vocábulo "renda", nos termos prescritos
i mposto, já anotei ter o legislador optado pela locução "auferir
pelo Sistema Constitucional Tributário Brasileiro, compreen-
renda", impondo-se, para sua exata compreensão, esclareci-
de o saldo positivo resultante do confronto entre certas entra-
mentos sobre o que vem a ser "renda".
das e certas saídas, ocorridas ao longo de um dado período. É,
A definição do conceito de "renda", no Brasil, é construída em outras palavras, acréscimo patrimonial.
no plano da legislação complementar (arts. 43 e 44 do Código
Tributário Nacional), porém com supedâneo em referência
constitucional expressa, patamar normativo onde se encontram 217. Imposto sobre a renda: pressupostos constitucionais, 2a ed., São Paulo,
estabelecidos seus pressupostos (art. 153, III, da CR). Malheiros Editores, 1997, p. 179.

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Nessa linha de raciocínio, a hipótese de incidência da caracterizá-lo juridicamente, pois, como entender o produto
norma de tributação da "renda" consiste na aquisição de au- final da apuração da base de cálculo sem a consideração das
mento patrimonial, verificável pela variação de entradas e receitas e das despesas ocorrentes durante o período?
saídas num determinado lapso de tempo. É imprescindível,
Tenho para mim, porém, que a reiteração desse ponto de
para a verificação de incrementos patrimoniais, a fixação de
vista é inteiramente absurda perante informações rudimenta-
intervalo temporal para sua identificação, dado o caráter dinâ-
res de Teoria Geral do Conhecimento e pode ser localizado na
mico ínsito à idéia de renda. Nesse sentido, Rubens Gomes de
insuficiência da linguagem dos juristas, ao isolarem essa ma-
Sousa escreveu ser insuficiente o processo de medição de ri-
nifestação da experiência social. Parto, desde logo, da premis-
queza pela extensão do patrimônio, sendo necessário distinguir
sa segundo a qual é inconcebível ao ser humano, por força de
o capital do rendimento pela atribuição, ao primeiro, de um
suas limitações intrínsecas, identificar uma ocorrência qual-
caráter estático, e ao segundo, de um caráter dinâmico, ligan-
quer sem manter relação direta com um setor do espaço e com
do-se à noção de renda um elemento temporal. "Capital seria,
um ponto do tempo histórico. E não será o fato jurídico do
portanto, o montante do patrimônio encarado num momento
imposto sobre a renda e proventos de qualquer natureza que
qualquer de tempo, ao passo que renda seria 218
o acréscimo do
capital entre dois momentos determinados ". vai abrir a primeira exceção. Concordo que não há sentido em
imaginar a matéria tributável do imposto sobre a renda sem
A fixação desse intervalo para fins de comparação do cogitar das receitas e das despesas que se dão, sucessivamen-
patrimônio nos instantes inicial e final é indissociável do con- te, durante o período considerado. Contudo, pensando assim,
ceito de renda. Daí a relevância da identificação do critério os mais singelos objetos que possamos supor também não caem
temporal da hipótese normativa tributária, átimo terminal para do céu: uma gota d'água não aparece por acaso, mas como
as mutações patrimoniais em dado período e momento em que resultado de um período de formação. A coerência nos levaria
se considera ocorrido o fato jurídico "renda". a concluir que todas as ocorrências factuais, do mundo físico
É oportuno tecer breves considerações acerca da classi- e do mundo social, seriam necessariamente "complexivas"
ficação dos "fatos geradores" em função do momento de sua (neologismo desnecessário e sem significação determinada), o
ocorrência. Pareceria inteiramente superada a questão de ser que implicaria o esvaziamento da classificação proposta.
o fato jurídico tributário do imposto sobre a renda da categoria Uma coisa é certa, a diretriz para distinguir as figuras
dos instantâneos ou dos "complexivos", porquanto na confor- tributárias não pode partir do critério temporal da regra-matriz
midade das estruturas mentais do ser humano, todo aconteci- de incidência, porquanto em todos eles encontraremos uma
mento, seja ele do mundo real-natural ou real-social, teria que unidade, especificamente determinada na escala do tempo,
acontecer em certas condições de espaço e em determinada fazendo com que, por esse prisma, todas as exações se misturem
unidade de tempo. Porém, a ausência de linguagem pertinen- na vala comum dos fatos instantâneos, expressão pleonástica
te tem levado alguns juristas a insistir na afirmação de que, em virtude de todos os acontecimentos da experiência, no
tratando-se do imposto sobre a renda, a única saída seria re-
campo do real, serem apoditicamente instantâneos.
conhecer nele, fato, aquela complexidade indispensável para
Esse instante, no caso do imposto sobre a renda, consiste
no derradeiro momento do último dia relativo ao período de
218. "Evolução do conceito de rendimento tributável", in Revista de Direito competência, ou seja, ao átimo final do exercício financeiro. Em
Público, n. 14, p. 340. consequência, apenas a aquisição de disponibilidade econômica

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ou jurídica de renda, considerada como acréscimo patrimonial I - de renda, assim entendido o produto do capital, do tra-
decorrente do capital, do trabalho ou da conjugação de ambos balho ou da combinação de ambos;
(critério material), verificada no último instante do ano civil II - de proventos de qualquer natureza, assim entendidos
(critério temporal), configura fato jurídico tributário do impos- os acréscimos patrimoniais não compreendidos no inciso
to sobre a renda, fazendo nascer o correspondente vínculo anterior."
obrigacional, conjugados esses critérios, logicamente, ao espa-
cial, quantitativo e pessoal. Isso, naturalmente, como hipótese E o artigo 44 estabelece:
de trabalho, pois a configuração jurídica do gravame é bem
mais complicada. "A base de cálculo do imposto é o montante real, arbitrado
ou presumido, da renda ou dos proventos tributáveis."

3.3.2.5. Competência tributária e a delimitação do conceito Advirta-se que o conceito de "renda" foi tomado pelo le-
de "disponibilidade" gislador complementar com a precedência de uma conduta de
pessoa, física ou jurídica, expressa no sintagma verbal "aqui-
O art. 146, inciso III, alínea a, da Constituição de 1988,
sição de disponibilidade econômica ou jurídica", mesmo porque
prevê a emissão de normas gerais de direito tributário para, não seria crível que o imposto recaísse sobre a "renda-em-si",
entre outras coisas, definição de tributos e de suas espécies,
entidade objetiva e da qual não se pode esperar comportamen-
bem como, em relação aos impostos, a dos respectivos fatos tos específicos. Daí o CTN agregar aquela cláusula, muito
geradores, bases de cálculo e contribuintes. elucidativa, aliás, e que antecede o ingresso no universo se-
Não tenho poupado críticas a esse dispositivo, naquilo em mântico da palavra "renda". Isso significa também reconhecer,
que fere, de maneira contundente, os princípios federativos e numa visão mais ampla, que renda é, sempre e necessariamen-
da autonomia municipal, podendo prestar-se a servir de ins- te, renda disponível, pelo que tributar renda indisponível im-
trumento à União para imiscuir-se nas faixas de competência portaria ultrapassar os limites postos pelo legislador do Código
outorgadas aos Estados-membros e aos Municípios. No que Tributário, para efeito de criar a regra-matriz da exação.
tange, porém, aos interesses competenciais da pessoa política As importâncias das provisões para créditos de liquidação
União, nada há que objetar, porquanto o Congresso, como seu duvidosa, enquanto estiverem provisionadas, permanecerão
órgão legislativo, pode operar com a legislação complementar, jurídica e economicamente insusceptíveis de disposição e,
regulando assuntos de interesse federal ou com a legislação nessas condições, tais valores não podem integrar o conceito
ordinária. Tudo, aliás, como bem lhe aprouver. É nesse estrito de "renda". Pretender, por exemplo, como o art. 43 da Lei n.
sentido que entendo perfeitamente cabível a disciplina dos arts. 8.981/95, que o montante provisionado componha a base de
43 e 44, do CTN, em que a União autolimita sua possibilidade cálculo do IRPJ e da CSL, significa fazer incidir o imposto
legiferante, estipulando a determinação do conceito de "renda", sobre o que não é "renda", transformando-lhe a feição, tribu-
ao mesmo tempo em que alude à base de cálculo do imposto. tando não o acréscimo patrimonial, produto do trabalho, do
Dispõe o artigo 43, do Código Tributário Nacional: capital ou da conjugação de ambos, que deve resultar da so-
matória das grandezas positivas e negativas, mas mera apa-
"O imposto, de competência da União sobre a renda e pro- rência de acréscimo patrimonial, gerando descompasso entre
ventos de qualquer natureza tem como fato gerador a a regra-matriz e o resultado do cumprimento dos deveres ins-
aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica: trumentais ou formais. Tributar-se-ia, sim, o patrimônio do
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contribuinte, procedimento que afronta a competência esbo- de natureza pessoal, como a residência, o domicílio ou a nacio-
çada no plano constitucional e desenvolvida na mensagem do nalidade, independentemente do vínculo de presença física da
artigo 43 do Código Tributário Nacional. fonte efetiva do território. E, além disso, estabeleça quais serão
os requisitos necessários e suficientes para caracterizar a "re-
3.3.2.6. Sistema e territorialidade do imposto sobre a renda sidência" ou o "domicílio" da pessoa, próprios para distinguir
e qualificar: i) os sujeitos residentes; ii) os sujeitos que, mesmo
Personalidade é eficácia de fato pela incidência de norma. sendo não residentes, poderão ser equiparados aos residentes;
É a capacidade de ser sujeito-de-direito, como vira Jellinek. O e iii) os sujeitos não-residentes, dispondo a cada um, tratamen-
ser sujeito de direito é projeção eficacial decorrente da inci- to jurídico próprio.
dência das normas constitutivas da personalidade sobre os Reflexões desse tipo são muito esclarecedoras no que
suportes físicos indicados pelo ordenamento positivo. tange à análise dos regimes de tributação da pessoa física e da
Curioso assinalar a distinção entre os conceitos de pesso- pessoa jurídica no imposto sobre a renda e proventos de qual-
as físicas e pessoas jurídicas. A pessoa física pressupõe uma quer natureza.
referência objetiva, u'a materialidade, e a pessoa jurídica tam- No direito tributário brasileiro, até dezembro de 1995, as
bém. Na primeira, o corpo; na segunda, a situação, o território. pessoas físicas submetiam-se ao princípio da universalidade,
Diz-se que as pessoas físicas são pessoas naturais, ao passo que
ao passo que, em matéria de imposto sobre a renda de pessoas
as pessoas jurídicas são artificiais, só existindo em função do
jurídicas, vigorava o princípio da territorialidade. Ocorre que,
sistema jurídico que as congrega. Num primeiro momento, sim, com a Lei n. 9.249/95, o Brasil passou a adotar o princípio da
mas não se pode esquecer que tanto como as jurídicas, são
universalidade também para as pessoas jurídicas, de modo que,
criações do direito, são feixes de normas incidindo num ponto
atualmente, são estas tributadas pelas rendas produzidas no
de confluência e, portanto, nesse sentido, ambas artificiais.
exterior, regime que tende a consolidar-se, em face dos últimos
Suprimidas as normas, desaparece a figura. A personalidade
aperfeiçoamentos implementados pelas Leis ns. 9.430/96 e
jurídica é abstrata e relativa, sendo criação peculiar do direito
9.532/97.
que se assenta existencialmente numa parcela da superfície
territorial do Estado: sua "sede". O jurídico da pessoa natural Quer dizer, ao princípio da territorialidade, que informa
também é abstrato, tendo como referência o objeto dessa juri- a legislação do imposto sobre a renda das pessoas jurídicas
dicidade; não um domínio territorial, mas outro suporte fácti- desde sua implantação, em 1924, acrescentou-se um critério
co, base da incidência, que é o próprio corpo com vida. Corpo de conexão pessoal (tomando em conta o domicílio) para al-
sem vida despersonaliza-se, pela incidência de outra norma cançar os rendimentos produzidos pela pessoa jurídica ultra-
que prevê o fato da morte. O jurídico do ser pessoa tem como territorialmente, com a adoção da chamada "tributação da
pressuposto a existência física do corpo com vida. Mas, claro, renda mundial" - worldwide income taxation.
tudo isso vertido em linguagem própria. Corpo com vida sem Não obstante seja este o atual regime de tributação das
linguagem que o ateste não é corpo com vida. pessoas jurídicas, de modo algum tal circunstância poderá ter
Desse modo, nada impede que o sistema de direito posi- o condão de levar-nos a concluir, apressadamente, que a opção
tivo eleja, como critério de conexão legítimo para fazer as suas pelo princípio da universalidade tenha afastado aquel'outro,
normas impositivas da produção de rendimentos, um vínculo da territorialidade. Ao contrário, o princípio da universalidade

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i mplica o da territorialidade, e esta servirá como nexo para Sendo assim, remanesce com a mesma importância de
determinar o regime jurídico das rendas auferidas no interior antes o estudo e a aplicação das regras de direito positivo re-
do Estado brasileiro, seja por residentes ou não residentes. guladoras da conformação do princípio da territorialidade no
direito brasileiro, na medida em que as normas impositivas
Sob o pálio dessa nova estrutura de imposição das rendas
individuais e concretas serão produzidas para valer, viger e ter
de pessoas jurídicas em bases mundiais (universalidade), abre-
eficácia limitada ao âmbito territorial do Estado brasileiro. E
se para o jurista dogmático a necessidade de indagar acerca isto independentemente de o Estado da fonte de produção do
de que mudanças irão ocorrer por força dessa inovação provo- rendimento constituir, por ato de lançamento próprio de suas
cada no processo de criação e aplicação das normas jurídicas, autoridades, outra norma individual e concreta, tomando como
para efeito da exigibilidade do critério tributário. A essa preo- fato jurídico o mesmo evento de formação de renda e ampara-
cupação respondo que não há qualquer mudança de cunho do também pela territorialidade.
substancial, além da necessidade de considerar-se como fato
jurídico tributário eventos (relatados em linguagem jurídica
3.3.3. Imposto sobre produtos industrializados
competente) da produção de rendimentos ocorridos fora do
território nacional, a fim de compor o fato da base de cálculo O imposto sobre produtos industrializados é a expressão
que, por sua vez, concorrerá para formar o objeto da relação mais singela da iniciativa diretora da política econômica pelo
jurídica tributária e, por seu turno, dará ensejo à formação de Estado brasileiro. Em razão de seu caráter extrafiscal, criado
crédito tributário a ser exigido do sujeito passivo, qualificado para impulsionar a produção interna do País, a própria Cons-
pela legislação como "residente". A obrigação tributária será tituição lhe atribui regime jurídico tributário próprio, em que
composta, exclusivamente, no interior do sistema jurídico, o excepciona de uma série de princípios, tais como o da ante-
respeitando o princípio da territorialidade, por permanecer rioridade anual (art. 150, § IQ, b), da anterioridade nonagesimal
intacto este valor. (art. 150, § 1 2 , c), do confisco (prescrito no art. 150, IV, uma vez
que se permite cogitar de taxações altíssimas, sem que se alvi-
O princípio da universalidade apenas predispõe um cri-
tre sombras de efeitos confiscatórios) e da estrita legalidade
tério de conexão (pessoal: residência, domicílio, nacionalidade), (art. 150, I, podendo ter sua alíquota como objeto de alteração
legítimo e suficiente para justificar a tributação dos rendimen- por Decreto Presidencial). Quanto a este último, a própria
tos de um sujeito de direito, independentemente do local de Constituição prescreve que suas alíquotas serão seletivas em
produção, ou seja, de a fonte efetiva da renda encontrar-se função da essencialidade dos produtos (art. 153, § 3 2 , I), fixan-
situada nos limites territoriais do Estado, ou não. É algo que do um critério que leva o legislador ordinário a estabelecer
diz respeito, desse modo, ao critério espacial da norma jurídi- percentuais mais elevados para os produtos supérfluos, apre-
ca, porque, como adverte Alberto Xavier 219 , "uma coisa é de- sentando relevantíssima utilidade na política econômica inter-
terminação do local onde um fato juridicamente ocorreu, outra na. E, por fim, lavrou o legislador o preceito imunizante gra-
coisa - bem distinta - é a determinação da ordem jurídica vado no art. 153, § 3 2 , III, da Constituição da República, segun-
competente para a sua disciplina". do o qual o IPI "não incidirá sobre produtos industrializados
destinados ao exterior". Mais uma decisão política articulada
por intermédio do regime extrafiscal do IPI. Levemos em con-
219. Direito tributário internacional do Brasil: tributação das operações in- ta essas injunções para conduzir o estudo que se segue sobre
ternacionais, 3a ed., Rio de Janeiro, Forense, 1994, p. 63. essa peculiar exação no direito tributário.
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3.3.3.1. A composição interna das regras-matrizes do IPI ativo é a União e sujeito passivo o importador; b) critério quan-
titativo - a base de cálculo é o valor que servir de base para o
A atribuição constitucional da competência do IPI foi cálculo dos tributos aduaneiros, acrescido do montante desses
elaborada pelo constituinte nestes termos: e dos encargos cambiais devidos pelo importador. A alíquota é
a percentagem constante da tabela e correspondente ao pro-
"Art. 153. Compete à União instituir impostos sobre:
duto importado.
(...)
IV - produtos industrializados."
Por último, a hipótese de incidência de IPI, nos casos de
arrematação de produtos industrializados levados a leilão por
O legislador da União, ao fazer uso da competência que terem sido apreendidos ou abandonados. A despeito de não
lhe foi adjudicada, toma o ponto de referência - produto in- ser tributável em momento atual, é perfeitamente possível
dustrializado - construindo, em seu derredor, três faixas de estruturarmos sua regra-matriz: a) critério material - arrema-
incidência: a) uma, que onera a industrialização de produtos; tar, em leilão, produto industrializado apreendido ou abando-
b) outra, que grava a importação de produtos industrializados, nado (o verbo é arrematar e o complemento é produto indus-
do exterior; e c) uma terceira, que colhe a arrematação de trializado apreendido ou abandonado); b) critério espacial - em
produtos industrializados levados a leilão por terem sido quaisquer repartições alfandegárias ou outro lugar em que se
apreendidos ou abandonados (a atual legislação do IPI revo- realizam leilões de produtos industrializados apreendidos ou
gou esse canal de incidência, podendo restabelecê-lo a qual- abandonados; c) critério temporal - momento da arrematação,
quer momento). documentado em nota de venda do leiloeiro oficial. A conse-
quência: a) critério pessoal - sujeito ativo é a União e sujeito
Focalizemos a primeira. Isolando os critérios da hipótese,
passivo, o arrematante; b) critério quantitativo - a base de
teremos: a) critério material - industrializar produtos (o verbo
cálculo é o valor arrematado. A alíquota é a percentagem fixa-
é industrializar e o complemento é produtos); b) critério espa-
da em lei.
cial - em princípio, qualquer lugar do território nacional;
c) critério temporal - o momento da saída do produto do esta- Afirmamos que as três regras são juridicamente distintas,
belecimento industrial. Quanto aos critérios da consequência: com fundamento na diretriz constitucional que estabelece a
a) critério pessoal - sujeito ativo é a União e sujeito passivo o diferença, sempre que os impostos tenham hipóteses de inci-
titular do estabelecimento industrial ou que lhe seja equiparado; dência e bases de cálculo dessemelhantes (CR, art. 154, I). Ora,
b) critério quantitativo - a base de cálculo é o preço da operação, é evidente que as hipóteses são diversas, quer no critério ma-
na saída do produto, e a alíquota, a percentagem constante da terial (verbos e complementos que não coincidem), quer no
tabela. critério espacial (no primeiro caso, qualquer lugar do território
No que tange ao IPI na importação de produtos industria- nacional; no segundo, apenas os locais específicos das reparti-
lizados do exterior, a regra-matriz ficaria assim composta: hi- ções aduaneiras), seja, por fim, no critério temporal (o IPI da
pótese: a) critério material - importar produto industrializado industrialização incide no instante em que o produto deixa o
do exterior (o verbo é importar e o complemento é produto in- estabelecimento industrial, ao passo que na importação se dá
dustrializado do exterior); b) critério espacial - repartições al- no momento do ato do desembaraço aduaneiro). Além disso,
fandegárias do país; c) critério temporal - momento do desem- as bases de cálculo são bem diferentes: enquanto na industria-
baraço aduaneiro. A consequência: a) critério pessoal - sujeito lização é o preço da operação na saída do produto, no fato da
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

i mportação é o valor que servir de base para o cálculo dos tri- entender que se referiu a si próprio, na qualidade de pessoa
butos aduaneiros, acrescido do montante desses e dos encargos jurídica de direito público.
cambiais devidos pelo importador. Quanto à sujeição passiva, buscou a autoridade legislati-
De ver está, como o constituinte não determinou a con- va apanhar, para cada um dos eventos compostos na forma de
duta ligada a produtos industrializados, o legislador infracons- situação jurídica, um sujeito que mantinha participação direta
titucional, exercendo a competência que lhe fora deferida, e pessoal com a ocorrência objetiva, passando a chamá-lo de
escolheu três tipos de ação: industrializar produtos, importar contribuinte do IPI, fazendo-o constar da relação obrigacional,
produtos industrializados e arrematar em leilões produtos in- na qualidade de sujeito passivo. Foi também opção do legisla-
dustrializados (encontrando-se este último atualmente desati- dor estabelecer, nos casos desse imposto, a autonomia entre
vado). O núcleo comum, obrigatório, portanto, é o complemen- empresa matriz e sua filial.
to "produtos industrializados". Vale a ressalva de que, em algumas oportunidades, por
O binômio hipótese de incidência/base de cálculo indica conveniência e praticidade, optou incluir no vínculo obrigacio-
tratar-se de impostos diferentes, sob a mesma denominação - nal outras pessoas que, embora mantendo proximidade apenas
IPI. As grandezas escolhidas para dimensionar a materialida- indireta com aquele ponto de referência em redor do qual foi
de de ambos os fatos são compatíveis, pelo que confirmam o formada a situação jurídica, eram responsáveis pelo crédito
critério material enunciado na lei. Restaria, então, perguntar tributário, em caráter supletivo do adimplemento total ou par-
se o legislador da União dispunha de competência constitucio- cial da prestação. Eis o autêntico responsável, trazido ao con-
nal para fazer o que fez. E a resposta, acreditamos, deve ser texto da relação jurídica para responder subsidiariamente pelo
afirmativa, porque o constituinte se refere, no art. 153, IV, a debitum. Agora, também há a figura do substituto, que, com a
instituir imposto sobre produtos industrializados, não adscre- exclusão do participante direto (contribuinte), passa a assumir
vendo o verbo a ser agregado a esse complemento, o que pos- a postura de sujeito passivo da obrigação.
sibilitou ao legislador ordinário fazê-lo. Aliás, convém memorar Retornemos da digressão para estabelecer a idéia segun-
que havia outra regra, distinta das duas primeiras, em que se do a qual o universo de sujeitos passivos do IPI, chamados de
utilizava o verbo arrematar, revestindo-se, no nosso entender, "contribuintes" (S), se apresentavam em três subclasses dis-
de cabal legitimidade perante a Constituição. tintas: (i) a daqueles vinculados à Fazenda Federal, na condição
de devedores do imposto (S'); (ii) a dos credores do Fisco, pelo
3.3.3.2. O critério subjetivo no IPI valor do tributo, quando pago na aquisição de insumos (S"); e,
finalmente, (iii) a de todos aqueles que, devidamente cadastra-
Sendo a União competente para legislar sobre IPI, como dos para a realização de operações tributáveis pelo IPI, não se
se depreende da leitura do art. 153, IV da CR/88, será ela, em encontravam nos subdomínios de S' ou de S".
princípio, a pessoa capaz de integrar a relação jurídica na con-
A nova proposta classificatória, como tive a oportunidade
dição de titular do direito subjetivo de exigir o aludido impos-
de salientar, evita os equívocos que as expressões contribuinte
to. Assim ocorre com grande número de tributos, tanto vincu-
de direito e contribuinte de fato frequentemente suscitam. Apa-
lados como não-vinculados. Omitindo-se o legislador a propósi-
to do sujeito ativo do vínculo que irá desabrochar com o acon- rece, também, como imposição do princípio lógico da identida-
tecimento do fato jurídico tributário, podemos perfeitamente de, cuja observância é imprescindível para a própria existência

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

e manutenção da linguagem no processo comunicacional: sem destacado na nota fiscal de venda. Nesse exato momento, ins-
respeito à lei fundamental da identidade a linguagem não tala-se a relação jurídica de direito ao crédito (rjdc), ligando
cumprirá sua função, tornando-se impossível fixar o conheci- "A' a "F" (ArdcF).
mento e, por via de consequência, transmiti-lo a terceiros.
Em instante subsequente, porém, agora terminado o pro-
Nas linguagens naturais, utilizadas para a comunicação cesso de industrialização em que "A" esteve empenhado, ven-
ordinária, no dia-a-dia dos intercursos sociais, os atentados ao de este os produtos industrializados a "C", que convencionamos
princípio da identidade não chegam a ser frontais e absolutos. ser consumidor final, para facilitar o corte do desenho sugeri-
Isso já basta, entretanto, para tornar imprecisas as mensagens. do. No átimo da saída dos produtos do estabelecimento indus-
Quando, porém, falamos em discurso científico, a citada lei trial, dar-se-á a incidência da regra-matriz do IPI, que tem, por
adquire foros de total imprescindibilidade, posto o rigor da antecedente, o industrializar produtos, fato que assim se qua-
linguagem das Ciências, tendo em vista a necessidade premen- lifica no tempo daquela saída. A consequência será expressa
te de descrever seu objeto. A atinência ao primado da identi- pelo nascimento da relação jurídica tributária (ArjtF), cujos
dade passa à condição de pressuposto necessário para a coe- termos serão "A", no lugar sintático de sujeito passivo, a quem
rência interna de qualquer discurso que se pretenda científico. se comete o dever jurídico de prestar a "F", como sujeito ativo,
E uso "necessário" aqui, no sentido técnico da expressão; isto o valor do IPI correspondente àquela operação.
é, sem a observância desse cânone, não há falar-se em Ciência.
Prescreve a referida lei, em síntese, que, em um dado discurso,
um termo ou uma expressão devem ter um só e bem determi- 3.3.3.3. A função extrafiscal do IPI
nado referente em todas as ocorrências 22 °.
Não somente pelo caráter funcional desta sistemática da
Passemos ao campo dos exemplos, que sempre represen- não-cumulatividade do IPI, mas principalmente pela sua par-
taram ponto de apoio indispensável ao conhecimento. Cogite- ticipação nas contas de arrecadação da União, de ver está que
mos do IPI e, para tanto, imaginemos que "A" venha a adquirir este imposto adquiriu papel peculiar na implementação de um
de "B", ambos contribuintes cadastrados como tais na Secre- Sistema Tributário Nacional eficaz junto a uma política comer-
taria da Receita Federal, matérias-primas, produtos interme- cial favorável. A construção do sentido deste instrumental no
diários e material de embalagem, para dar início a operações direito positivo submete o intérprete a trabalhar, de um lado,
que a lei qualifica como de "industrialização". Encerrado o dentro dos conceitos jurídico-tributários, como imposto de
processo, "A" vende produtos industrializados a "C" que, ad- competência exclusiva da União, e, de outro, no âmbito políti-
mitamos, é consumidor final. co, como ferramenta de controle do mercado, do fluxo inter-
A situação hipotética indica, de maneira clara, a presença nacional - importação e exportação - de mercadorias. Dada
de duas regras jurídicas, com seus dois antecedentes e seus sua regra-matriz, quaisquer alterações das alíquotas nos pro-
dois consequentes. Quando "A" adquire os insumos de "B", dutos, dentro do critério quantitativo desta exação, denunciam
pagando-lhe o preço avençado, junto com ele virá o valor do as vontades políticas por detrás destas escolhas, que são trazi-
i mposto sobre produtos industrializados que "B" houvera das na TIPI (Tabela de Incidência do IPI).
Diferentemente, a classificação do Sistema Harmonizado
de Designação e de Codificação de Mercadorias, trazida com
220. Leônidas Hegenberg, Dicionário de lógica, São Paulo, EPU, 1995, p. 99. a aprovação, no Brasil, em 31/10/86, da Convenção Internacional
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

de Bruxelas de 14/06/83, se volta ao objetivo de oferecer um precedentes, entendendo-se que apenas são comparáveis
panorama genérico dos produtos, considerados na conformi- subposições do mesmo nível. Para os fins da presente Regra,
dade de critérios técnicos internacionais para atender às exi- as Notas de Secção e de Capítulo são também aplicáveis,
salvo disposições em contrário."
gências de uniformização do comércio entre as nações. Os
vários países signatários da Convenção adotam-na, promoven-
do os acréscimos que a política tributária de cada um sugerir, Do dígito 7 ao dígito 10, vale dizer, para o código item/su-
em termos de melhor adaptação à realidade nacional e aos bitem "ZZzz", a regência é a da Regra Geral Complementar
juízos de valor que as circunstâncias internas venham a reco- (RGC) número 1, da NBM/SH (TIPI/TAB):
mendar sobre a multiplicidade dos produtos classificados.
"As regras gerais para interpretação do Sistema Harmoni-
Dito de outro modo, se a distribuição das mercadorias no zado são igualmente válidas, `mutatis mutandis', para de-
Sistema Harmonizado da Convenção tende à neutralidade terminar dentro de cada posição ou subposição o item
axiológica, preponderando, nitidamente, os caracteres técnicos aplicável e, dentro deste último, o subitem correspondente,
das várias unidades, outro tanto não se dá com o sistema da entendendo-se que apenas são comparáveis desdobramen-
tos de mesmo nível (um item com outro item, ou um subitem
NBM/TIPI, aparelhado para classificar os produtos de acordo
com outro subitem)."
com avaliações nacionais, em que a estimativa específica dos
bens é sopesada em função do papel que seu aproveitamento
representa para a sociedade brasileira, num dado momento 3.3.3.4. Princípio da não-cumulatividade no IPI e princípio
histórico. Com a NBM/TIPI, operou-se um ajuste da tecnici- da não-cumulatividade no ICMS: dois dispositivos
dade classificatória da tabela internacional ao ambiente do constitucionais, dois regimes jurídicos distintos
sistema normativo brasileiro, adquirindo novo matiz significa-
"O imposto sobre produtos industrializados (...) será não-
tivo. A adição dos códigos item/subitem demonstra bem esse
cumulativo, compensando-se o que for devido em cada opera-
esforço do legislador em promover processo de adaptação que,
ção com o montante cobrado nas anteriores": dicção do artigo
introduzindo subclasses adicionais, aprofundou a conotação
153, § 3Q, inciso II, da Magna Carta.
das subposições originais, depositando naquelas subclasses os
valores inerentes às particularidades do nosso ordenamento De forma semelhante, mas não idêntica, o artigo 155, § 2 4,
positivo. inciso I, prescreve que "o Imposto sobre Circulação de Mercado-
rias (...) I - será não-cumulativo, compensando-se o que for de-
Daí por que se aplicam as "Regras Gerais de Interpreta-
vido em cada operação relativa à circulação de mercadorias ou
ção" da NBM/SH (TIPI/TAB) às posições e subposições, isto é, prestação de serviços com o montante cobrado nas anteriores
aos seis primeiros dígitos "XXXXYY", sendo as regras de nú- pelo mesmo ou outro Estado ou pelo Distrito Federal"; II - a
meros 1, 2, 3, 4 e 5 para o reconhecimento da posição "XXXX" isenção ou não incidência, salvo determinação em contrário da
e a regra de número 6 para identificar a subposição "YY". Eis legislação: a) não implicará crédito para a compensação com o
o teor da regra de número 6: montante devido nas operações ou prestações seguintes; b)
acarretará a anulação do crédito relativo às operações anterio-
"A classificação de mercadorias nas subposições de uma res (destaquei e grifei).
mesma posição é determinada para efeitos legais, pelos
textos dessas subposições e das Notas de subposição res- A vã tentativa de buscar semelhanças entre esses dois
pectivas, assim como `mutatis mutandis' pelas Regras dispositivos parece toldar a visão do exegeta para as inúmeras
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

diferenças que os individualizam. Ainda que possa figurar-se O mecanismo das isenções, no campo da extrafiscalidade,
óbvio, haverá espaço, aqui, para alguns esclarecimentos: (i) há de atuar, coerentemente, em função da natureza específica
estão dispostos em artigos diversos; (ii) um se refere a imposto do imposto. Assim, ao lado das providências de teor eminen-
federal, enquanto o outro a imposto estadual e distrital; (iii) a temente técnico, visa também à justiça e ao bom equilíbrio das
hipótese tributária do primeiro imposto contempla condutas relações sociais, atuando para realizar, em alguns momentos,
que tenham por objeto "produtos industrializados", ao passo concretamente, os anseios da seletividade das alíquotas em
que a do segundo recai sobre "operações de circulação de função da essencialidade dos produtos tributados. Isso nos
mercadorias ou prestação de serviços"; (iv) no ICMS, perante federais, porque nos estaduais as isenções prestam serviço
norma isentiva, há a restrição do direito ao crédito, o que não relevantíssimo no que diz respeito às integrações regionais de
que depende a implantação e a boa gestão do ICMS em todo o
acontece no caso do IPI.
território nacional.
Se focalizarmos antes as similitudes que as diferenças,
Num ponto, entretanto, vê-se com clareza a diversidade
verificar-se-á que o único aspecto comum a esses enunciados
de atuação das isenções entre o IPI e o ICMS. No IPI, a isenção,
normativos é o atendimento à diretriz da não-cumulatividade.
apesar de poder atingir todos os critérios da regra-matriz,
E só, nada mais. opera, preponderantemente, sobre o critério espacial da regra-
Aliás, repousa justamente na observação de se tratarem matriz, enquanto no ICMS, imposto estadual que se integra
de impostos diferentes a justificativa do expediente restritivo para assumir feição nacional 221 , atua também, de modo domi-
do direito à compensação no ICMS. nante, sobre o critério material.

O assunto nos impele a rápida digressão à temática das De fato, no ICMS, a mercadoria que é objeto da operação
isenções, para recordar que se trata de instrumento jurídico, jurídica de circulação não muda sua materialidade, mantendo-
à disposição do legislador ordinário, enriquecendo seu campo se a mesma durante todo o percurso da comercialização. O
de manobra no sentido de estabelecer uma série de providên- leite esterilizado, por exemplo, será leite esterilizado do início
cias ordinatórias, fiscais, parafiscais e extrafiscais, indispensá- ao fim da cadeia de operações. Essa característica não está
presente na vida jurídica do IPI, pois o insumo leite, ingres-
veis para moderar a generalização indiscriminada da regra-
sando no processo de industrialização, pode vir a transformar-
matriz de incidência do gravame, corrigindo, juridicamente,
se em leite em pó, em queijo, bolachas, pães e inúmeros outros
desequilíbrios econômicos, políticos e sociais. É certo que, no
produtos que utilizam o leite como insumo. Essa referência
quadro dos expedientes isentivos, predomina o caráter extra-
singela serve para mostrar que as duas formas de exação têm
fiscal, o que não diminui a funcionalidade do instituto nos se-
suas peculiaridades, de tal sorte que o emprego dos preceitos
tores da fiscalidade e da parafiscalidade. A isenção exerce
isentivos deve ser conduzido com muito cuidado, a fim de pre-
papel instrumental e intermediário na estruturação do sistema
servar a integridade das figuras impositivas.
tributário, não tendo como fim imediato providências arreca-
datórias. Sua interpretação, por isso mesmo, há de cingir-se à Por outro lado, tomando a Constituição como carta de com-
perspectiva dos interesses primários, segundo a doutrina de petências, aquilo que se verifica é a inexistência de qualquer
Renato Alessi, não aos secundários: afinal de contas, o ingres-
so de dinheiro nos cofres públicos não é tudo na configuração
de um Estado-de-direito. 221. Sobre o caráter nacional do ICMS, consultar item 3.3.5.6, Parte 2.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

previsão restritiva ao direito subjetivo do contribuinte, com é a restrição que o constituinte formulou ao tratar desse
vistas à não-cumulatividade do IPI. Diverso, no entanto, é o último imposto, se bem que removível por disposição explí-
caso do ICMS, em que o Texto Supremo, ao impor vedação que cita. Vislumbrar idêntico tratamento ao IPI é montar pres-
inviabiliza as isenções, outorgou, explicitamente, competência crições, em manifestação cerebrina, atribuindo-as a um
para o Poder Público recuperar a integridade do magno prin- pseudolegislador constitucional, que muito distante esteve
cípio da não-cumulatividade, na medida em que inseriu a de tais elucubrações.
cláusula salvo determinação em contrário da legislação (artigo
Mas, se quisermos insistir nessa via de interpretação, para
155, § 2 2 , II). Exposto de outra maneira, para o IPI não há qual-
quer obstáculo na trilha de sua utilização como imposto não- saber até que ponto poderia nos levar, basta admitir, ad argu-
mentandum, que a limitação ao direito de crédito prevista ape-
cumulativo, enquanto o mesmo não se passa com o ICMS, em
que há limitações impostas pela Constituição, as quais, todavia, nas no artigo que trata do ICMS decorreu de injunções casu-
podem ser supridas por legislação estadual que disponha em ísticas do processo legislativo, às quais estão sujeitos todos os
sentido contrário. parlamentos, sem que nenhum deles fique imune. A conside-
ração dessa contingência faria, então, com que o dispositivo do
Resta comentar a esdrúxula tese pela qual a restrição i mposto estadual pudesse aplicar-se também ao IPI.
expressa que o constituinte impôs à sistemática do ICMS deve
ser aplicada à interpretação do âmbito competencial do IPI, Mantendo a coerência que se espera do discurso científi-
como se fora uma disposição implícita, ditada pelo mesmo le- co, teríamos que reconhecer, da mesma forma, serem as exce-
gislador da Carta Superior. ções ao princípio da anterioridade para o IPI, IOF, IE e II
Venho proclamando, invariavelmente, a possibilidade de previstos na CR/88, resultados de injunções políticas que de-
o ser cognoscente construir interpretações diferentes quando terminariam sua imediata extensão a todos os impostos. E,
se põe diante de um objeto cultural. Sendo a compreensão, em nesse compasso, empregaríamos idêntica análise à apreciação
parte, produto da ideologia de cada qual, e sendo as ideologias das faixas competenciais que o constituinte erigiu. Não é pre-
necessariamente diversas, de indivíduo para indivíduo, nada ciso dizer que tudo isso nos leva ao absurdo, como absurdo
mais natural que duas pessoas cheguem a interpretações dife- creio ser o raciocínio tomado como base de argumentação.
rentes, ao pé do mesmo objeto da cultura. Tenho para mim que a exegese que estende a restrição
Acontece, porém, que as proposições afirmativas que do ICMS para o IPI não encontra suporte na concepção siste-
enunciamos sobre o mundo circundante pretendem ser verda- mática de nosso direito positivo. Contudo, não bastasse esse
deiras, e tal propósito reivindica o exercício da capacidade de pensamento, uma lembrança de cunho histórico pode clarear
sustentação para que sejam aceitas pelo interlocutor, no pro- nossa mente: antes da Emenda Constitucional n. 23, de 01/12/83,
cesso comunicacional. Quanto maior for o suporte argumen- o artigo 23, II, não previa o impedimento atual do direito ao
tativo de uma teoria, mais potência certamente terá para crédito, relativo à isenção para o ICMS. A introdução do limite
prevalecer em face das demais. Eis do que carece a tese suso constitucional à não-cumulatividade e à isenção do ICMS teve
mencionada: não tem base de sustentação, na sistemática do por finalidade evitar a denominada "guerra fiscal", isto é, a
direito positivo brasileiro. disputa entre os Estados, considerada pelo Constituinte de 1988
É inquestionável a presença efetiva do princípio da não- como prejudicial às Fazendas Estaduais. Ora, por certo que o
cumulatividade do IPI e do ICMS, como também indisputável mesmo não ocorre com o IPI, que é tributo federal.

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Na plataforma desse imposto, adjudicado à competência Nada mais é necessário dizer para enaltecer-lhe a impor-
da União, os preceitos isentivos servem para eliminar diferen- tância, razão pela qual teremos que tomar uma série de cuida-
ças econômicas no território do Brasil. Oferece posição juridi- dos, sempre que o problema se situe na compreensão da tabe-
camente privilegiada a dados contribuintes, bem distribuindo la. Ao interpretá-la, não podemos nos esquecer de que é parte
a carga tributária entre seus destinatários e visando, com isso, da regra-matriz de incidência do IPI, não só por afetar-lhe o
à realização do cânone constitucional da isonomia. critério material da hipótese, como também por concorrer com
A título de esclarecimento derradeiro sobre o descabi- dado imprescindível para a composição do quantum devido, ao
mento daquela extravagante teoria que faz comunicar restri- estipular a grandeza percentual que há de ser conjugada à base
ções do ICMS ao IPI, sem autorização constitucional expressa, de cálculo. Por certo, então, que os valores jurídicos concebidos
vale trazer novamente à balha a presença dos chamados "prin- para presidir a instituição desse imposto têm que ser invocados
cípios ontológicos". Um deles, aplicável ao direito privado: tudo com veemência, quando o assunto é discutir o espaço que de-
que não estiver expressamente proibido, estará permitido; e terminado produto ocupa na configuração da tabela.
outro que se projeta sobre o direito público: tudo aquilo que não Antes de mais nada, porém, uma advertência que me
estiver expressamente autorizado, estará proibido. parece oportuna: tratando-se de classificação produzida na
Estando nosso campo de indagação em pleno direito pú- linguagem prescritiva do direito, está informada por critérios
blico, ficaria a pergunta: onde está a autorização expressa para exclusivamente jurídicos. As diretrizes que orientam a distri-
vedar-se a isenção, no caso do IPI? Sabemos que existe para buição das posições, subposições, itens e subitens devem ser
o ICMS, mas investigamos, agora, exatamente o IPI. A conclu- pesquisadas nos limites do ordenamento positivo brasileiro,
são há de ser peremptória: explicitamente posto o cânone da descabendo falar-se em recursos de outras Ciências, como
não-cumulatividade, que não só permite como exige o exercí- expedientes técnicos que justifiquem o alojamento das merca-
cio do direito ao crédito do tributo, e na ausência de obstáculo dorias nos vários compartimentos da tabela. Isso não quer
constitucional para sua implantação, o entendimento válido expressar, por óbvio, que o interessado abandone outros con-
para o ICMS não pode ser aplicado ao IPI. teúdos de significação que sejam úteis para a determinação da
identidade do produto. Pretende simplesmente afirmar que o
catálogo foi concebido, estruturado, organizado segundo esti-
3.3.3.5. Tabela de incidência do IPI e sua importância para a mativas de ordem jurídica. A observação é útil porque um
integração da regra-matriz do imposto sistema de classificação, como o de que falamos, é algo sobre-
maneira complexo, em que as múltiplas classes e subclasses
A tabela de incidência do IPI é segmento de linguagem
se cruzam e entretecem, reivindicando a atenção do intérpre-
prescritiva inserta, como vimos, no ordenamento jurídico bra-
te para o correto isolamento do objeto procurado.
sileiro, e que se destina a oferecer elementos para a identifica-
ção dos produtos alcançados pela percussão do gravame, além De outra parte, é preciso repisar a sensível diferença que
de conferir-lhes um valor percentual, a título de alíquota. Atua, se estabelece entre o Sistema Harmonizado, enquanto conte-
por conseguinte, no critério material da hipótese normativa, údo da Convenção internacional de Bruxelas, e a tabela de
precisando o complemento do verbo, além de completar o incidência do IPI, extraída da Nomenclatura Brasileira de
critério quantitativo da consequência, ao atribuir a percenta- Mercadorias. Traz o primeiro o fim deliberado de instituir
gem correspondente ao bem tributado. nomenclatura uniforme, no sentido de facilitar o comércio

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entre as nações, servindo-se, por isso mesmo, de características jurídica que instaure, de forma efetiva, o direito ao crédito
técnicas aceitas internacionalmente. A última, entretanto, daquele que adquire mercadoria ou insumo, com o fim de dar
persegue outros objetivos: toma o primeiro como proposta de sequência às várias etapas dos procedimentos de industriali-
trabalho, passando a injetar-lhe fatores de distinção fundados zação ou de comercialização. Mas o direito ao crédito não bas-
no valor essencialidade. Daí a inclusão de itens e subitens, ta. Para tornar efetivo o princípio da não-cumulatividade exi-
aumentando a complexidade dos produtos, mas propiciando ge-se, em cada ciclo, a compensação entre a relação do direito
ensejo ao reconhecimento da destinação do bem, para aferir ao crédito (nascida com a entrada do bem) e a relação jurídica
seu índice de utilidade social ou pessoal. E o legislador que cria tributária (que nasce com a saída do bem). É por esse motivo
o IPI não procede assim porque deseja. É imperativo constitu- que o direito ao crédito, daquele que participa das fases do
cional: não pode deixar de fazê-lo. ciclo da não-cumulatividade, é tão necessário na consecução
Essas duas reflexões, isto é, a circunstância de que a ta- dessa técnica impositiva.
bela influi na regra-matriz de incidência do IPI, tanto pela O contribuinte exercita seu direito ao crédito mediante a
hipótese quanto pela tese; e a consideração de que a referida forma juridicamente qualificada da compensação, tão somen-
lista foi estruturada exatamente para implantar o valor essen- te se for, em outro momento, integrante da relação jurídica do
cialidade, por expressa determinação constitucional, leva-nos gravame. O direito à compensação é direito de cunho patrimo-
a interpretar a classificação empreendida na Tabela/TIPI se- nial em face do Estado. Entretanto, o "crédito" "com que ele
gundo o regime axiológico a que está submetido esse tributo. se exerce é mera moeda-escritural que tem a única vocação
Ora, se meditarmos que o dado jurídico se apresenta legal de servir como moeda de pagamento parcial de impostos
como o ICMS e o IP1 222 ".
sempre como um fenômeno cultural e que não há objeto do
mundo da cultura sem a presença de valores, a conclusão po- O direito ao crédito é moeda-escritural. E se, de um lado,
deria parecer demasiadamente intuitiva e cristalina. Justifica- é inexigível enquanto crédito pecuniário na via judicial, por
se, todavia, por identificar com nitidez os valores que estão outro, é imprescindível perante o lídimo exercício do direito à
necessariamente envolvidos na compreensão do tema. E essas não-cumulatividade, que se consuma como exercício da com-
estimativas são, em ordem de redução crescente: os princípios pensação desse crédito com o "crédito tributário" (obrigação
constitucionais gerais, os princípios constitucionais tributários tributária) do Fisco. Pode ou não nascer, cronologicamente, ao
gerais, os princípios constitucionais tributários específicos do mesmo tempo em que o fato jurídico tributário, mas não decor-
IPI e, dentre eles, o princípio da essencialidade, apurado pelo re da regra-matriz de incidência tributária, que tem sua eficácia
mecanismo da seletividade. Raciocinar com esses elementos direcionada para a instauração do crédito tributário. Interna-
implica reconhecer improcedente qualquer tentativa herme- mente, analisando a fenomenologia da não-cumulatividade,
nêutica que considere os textos do direito posto, com relação verifica-se que o direito ao crédito do sujeito adquirente provém
ao IPI, sem atinar aos mencionados valores. da norma denominada regra-matriz de direito ao crédito e

3.3.3.6. O direito ao crédito nas relações de IPI


222. Geraldo Ataliba e Cléber Giardino, Segurança do direito, tributação e
anterioridade - Imposto sobre a renda (Exame do Dec. Lei 1967/82 Exercício
Para realizar esse desígnio, imperativamente proposto social encerrado em março de 1983), in Revista de Direito Tributário, São
pela Constituição da República, impende a edição de norma Paulo, Revista dos Tribunais, 1984, 27/28, p. 125.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

formaliza-se com os atos praticados pelo administrado e, ulte- independe da validade jurídica e dos efeitos dos atos efetiva-
riormente, homologados, de maneira tácita ou explícita, pelas mente praticados pelo contribuinte.
autoridades fiscais.
É despiciendo saber se houve ou não cálculo do IPI em-
A dinâmica que expusemos reproduz-se, ponto por ponto, butido no valor do produto para justificar o direito ao crédito.
em cada intervalo, espraiando-se pela cadeia produtiva e de Este não decorre da cobrança, nem da incidência, nem do
comercialização dos produtos e das mercadorias, de tal modo pagamento do imposto; nasce da percussão da regra de direito
que torne efetiva, concretamente, o preceito constitucional da ao crédito. Mesmo que os insumos oriundos da Zona Franca de
não- cumulatividade. Manaus, em face da isenção, entrassem na empresa sem a
carga impositiva de IPI, haveria o direito ao crédito. Simetri-
Interessante discussão que se vê às voltas do tema, e que
camente, enquanto este direito deflui do princípio da não-
adquire racionalidade científica com a regra-matriz do direito
cumulatividade, aquele é o resultado da norma isentiva.
ao crédito, é a interpretação do termo "cobrado" na literalida-
de do texto do art. 153, § 3 2 , da CR/88. O dispositivo em epígra- Cabe salientar, enfim, que a regra que estipula o nasci-
fe induz o exegeta apressado a pensar que o direito ao crédito mento do direito ao crédito goza de autonomia, relativamente
decorre da extinção da obrigação tributária. A asserção é falsa. à norma que cuida da imposição tributária. Portanto, se para
a formação do direito ao crédito é irrelevante o próprio nasci-
É o mesmo que dizer que a operação de compra e venda
mento da obrigação, muito mais ainda será a circunstância de
decorre do pagamento do valor da coisa que é objeto do negó-
ter sido ou não extinta essa mesma relação: a cobrança do
cio, o que também encerra equívoco: o negócio da compra e
tributo na operação anterior torna-se sem importância para a
venda é fato jurídico caracterizado pelo acordo de vontades
formação do direito ao crédito.
entre comprador e vendedor. O comprador se torna proprietá-
rio do bem antes do pagamento, advindo o direito de proprie-
dade do acordo de vontades qualificado pela norma que regu- 3.3.3.7. Considerações finais sobre o crédito-prêmio do IPI
la a celebração do negócio jurídico. O ato do pagamento repre-
senta a satisfação de cláusula que decorre desse contrato, não Não é difícil perceber a razão pela qual foi atiçado o en-
se consubstanciando no próprio contrato. tusiasmo pelo assunto do crédito-prêmio de IPI: nele estão em
jogo sobreprincípios como o da segurança jurídica, o da certe-
O mesmo se dá no direito tributário. A regra-matriz de za do direito e o da eficácia das decisões emanadas do Poder
incidência tributária e a regra-matriz de direito ao crédito Judiciário, com seus naturais e complexos desdobramentos.
incidem sobre o acordo de vontades que perfaz o negócio Além disso, temas de enorme relevância para a Teoria Geral,
jurídico de compra e venda. Desse suporte fáctico, propiciador como a revogação das normas jurídicas e suas modalidades,
de dois cortes diferentes, suscitando fatos jurídicos distintos, encontram-se diretamente envolvidos na composição dos lití-
é que surgem, respectivamente, a obrigação tributária e a gios. Tido, é bom que se diga, num momento crítico da socie-
regra-matriz de direito ao crédito. Fique certo, todavia, que dade brasileira em que a dieta cultural do nosso tempo de
o pagamento dos valores correspondentes, cobrados ou não, certa forma ameaça a estabilidade das relações entre o Estado-
é irrelevante para a fenomenologia da incidência normativa. administração e o crescente universo de contribuintes, ávidos
Aliás, tanto é assim que o próprio Código Tributário Nacional, por diretrizes racionais que lhes garantam a tranquilidade
no artigo 118, determina que a validade do "fato gerador" necessária para o trabalho e para o desenvolvimento.
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

É muito importante o aumento acelerado dos níveis de são mais férteis em disposições dessa natureza, como sucede
arrecadação da Fazenda Pública, como, aliás, tem sido a tôni- com o âmbito da chamada "legislação aduaneira", onde é copio-
ca dos últimos anos, desde que, porém, esse auspicioso resul- so o número de prescrições de caráter técnico. A prática de ações
tado se dê num clima de relacionamento saudável entre os dois jurídicas, nesse domínio, requer procedimentos específicos,
históricos protagonistas, em que o respeito às instituições não muitas vezes complexos e conhecidos apenas por "iniciados".
seja apenas instrumento retórico de convencimento episódico,
A contingencialidade dos tributos aduaneiros, que se
mas opção decisiva para o encontro de soluções justas e defi- querem sempre instrumentos rápidos, objetivos, porém male-
nitivas. O espírito emulativo, quando exacerbado, traz à sirga áveis, prontos para assumir configurações diversas diante dos
distorções inconvenientes, que atendem a decisões rápidas e mutantes interesses econômicos e políticos que entram em jogo
evanescentes, mas comprometem a firmeza de uma parceria no concerto das nações, sugere corpus de legislação com traços
projetada para existir em termos duradouros e indeterminados. bem característicos, diferentes das modalidades convencionais
A pujança e os bons resultados obtidos pelo Poder Administra- de tributação. É sabido que os vários tributos, e não só os adu-
tivo são grandezas diretamente proporcionais ao fortalecimen- aneiros, operam debaixo de diretrizes comuns, podendo ser
to do setor privado, inspirado pela firme convicção de que as reconhecidos a despeito das condicionantes de espaço e de
ações governamentais corresponderão às suas expectativas. tempo em que utilizados. Todavia, o assim falado grupo das
Coube ao Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), exações sobre o comércio exterior forma segmento distinto,
com valores até certo ponto diversos das estimativas gerais do
sem a expressividade e a força de outrora, sucedâneo que foi
sistema tributário e que se foram depositando, gradativamen-
do antigo Imposto de Consumo, coluna mestra da arrecadação
te, na história da convivência entre os povos civilizados.
em seu tempo; coube ao IPI, repito, exalçar o problema da
incerteza jurídica encontrada hoje nos tribunais superiores sob A integração econômica entre os países passou a ser pres-
o manto de manifestações pomposas de matéria tributária suposto da competitividade internacional, trazendo como co-
simples. Além do mais, coube a ele também exagitar no meio rolário a mobilização dos capitais de investimento, canalizados
jurídico brasileiro uma solução incisiva, categórica, sobre os aos diferentes setores produtivos, ao passo que os tributos,
elevados princípios da segurança jurídica, do respeito à coisa cumprindo antes de mais nada função extrafiscal, transforma-
julgada, bem como da garantia de cumprimento fiel do inteiro ram-se no mais poderoso instrumento regulador desse inten-
teor das decisões jurisdicionais. sivo relacionamento.
Pois bem. Para falar de assunto assim carregado de tec-
nicismo, faz-se necessária uma linguagem apurada, com re-
3.3.4. Impostos aduaneiros
cursos terminológicos e expressionais que possam reproduzir
Quando se promove o isolamento de um sistema de nor- a multiplicidade de aspectos de matéria tão delicada.
mas e, dentro dele, de um subsistema qualquer, quer para sim-
plesmente nominá-lo, quer para desse objeto nos aproximarmos 3.3.4.1. A incidência tributária nas operações realizadas com
com ânimo cognoscente, a estratégia é circunscrever o conjun- produtos industrializados
to de suas "regras necessárias", vale dizer, aquelas que, na
terminologia de Gregorio Robles Morchón, são chamadas "ôn- Ao conferir possibilidade legiferante às pessoas políticas,
ticas" e também as "procedimentais". Alguns setores do direito no campo tributário, o constituinte reporta-se a determinados
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

eventos, atribuindo ao legislador ordinário o pormenorizado i) comissões e corretagens, excetuadas as comissões


esboço estrutural da hipótese e da consequência normativa. de compra;
Delineados os contornos genéricos do acontecimento, incumbe ii) o custo de embalagens e recipientes considerados,
ao ente político fixar a fórmula numérica de estipulação do para fins aduaneiros, como formando um todo com
conteúdo econômico do dever jurídico a ser cumprido pelo as mercadorias em questão;
sujeito passivo, escolhendo, dentre os atributos valorativos que iii) o custo de embalar, compreendendo os gastos com
o fato exibe, aquele que servirá de suporte mensurador do mão-de-obra e com materiais;
êxito descrito, e sobre o qual atuará outro elemento, denomi- b) o valor, devidamente apropriado, dos seguintes bens e
nado "alíquota", desde que, naturalmente, o predicado factual serviços, desde que fornecidos direta ou indiretamente pelo
eleito seja idôneo para anunciar a grandeza efetiva do evento. comprador, gratuitamente ou a preços reduzidos, para se-
rem utilizados na produção e na venda para exportação das
Quando se fala em anunciar a proporção efetiva do acon-
mercadorias importadas, e na medida em que tal valor não
tecimento, pretende-se captar aspectos inerentes à conduta ou tiver sido incluído no preço efetivamente pago ou a pagar:
objeto da conduta, devendo o legislador cingir-se às manifesta-
i) materiais, componentes, partes e elementos semelhan-
ções exteriores que sirvam de índice avaliativo daquele compor-
tes, incorporados às mercadorias importadas;
tamento tipificado. No caso do imposto de importação e do im-
ii) ferramentas, matrizes, moldes e elementos semelhan-
posto sobre produtos industrializados, cujos critérios materiais
tes, empregados na produção das mercadorias importa-
consistem em "importar produtos estrangeiros" e "importar das;
produtos industrializados do exterior", a base de cálculo não
iii) materiais consumidos na produção de mercadorias
pode ser outra que não "o valor dessas operações de importação",
importadas;
pois é esse elemento que exterioriza a grandeza do fato descrito
iv) projetos de engenharia, pesquisa e desenvolvimento,
no antecedente normativo. Inadmissível, portanto, que quais-
trabalhos de arte e de `design', e planos e esboços, ne-
quer outros valores sejam integrados à base de cálculo, para fins cessários à produção das mercadorias importadas e
de exigência dos impostos referidos. realizados fora do país de importação;
Ademais, o artigo 8Q do Acordo de Valoração Aduaneira c) `royalties' e direitos de licença relacionados com as mer-
autoriza acréscimos ao valor da transação apenas se este não cadorias objeto de valoração, que o comprador deva pagar,
refletir o real ônus econômico suportado pelo importador direta ou indiretamente, como condição de venda dessas
(comprador), com consequente beneficiamento do exportador mercadorias, ou na medida em que tais `royalties' e direitos
de licença não estejam incluídos no preço efetivamente pago
(vendedor), fazendo-o nos seguintes termos:
ou a pagar;
d) o valor de qualquer parcela do resultado de qualquer
"Artigo 8 2 :
revenda, cessão ou utilização subsequente das mercado-
1. Na determinação do valor aduaneiro, segundo as rias importadas, que reverta direta ou indiretamente ao
disposições do artigo 1 4 deverão ser acrescentados ao
vendedor."
,

preço efetivamente pago ou a pagar pelas mercadorias


i mportadas:
Torna-se ainda mais evidente a impossibilidade de incluir
a) os seguintes elementos, na medida em que sejam su-
portados pelo comprador mas não estejam incluídos no
os valores relativos a prestações de serviços na base de cálcu-
preço efetivamente pago ou a pagar pelas mercadorias lo dos impostos incidentes sobre importação e operações rea-
importadas: lizadas com produtos industrializados quando recordamos que

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estes pertencem à competência da União, ao passo que a "Art. 80. É contribuinte do imposto:
prestação de serviços de qualquer natureza - excluídos os de I — de Importação (Decreto-lei n. 37/66, artigo 31):
transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação a) o importador, assim considerada qualquer pessoa que
- inserem-se no campo tributável pelos Municípios. Por via promova a entrada de mercadoria estrangeira no território
aduaneiro;"
de consequência, diante da rígida partição das competências
tributárias, minuciosa e exaustivamente efetuada pelo cons-
Procede afirmar, em outras palavras, que contribuinte do
tituinte, o quantum relativo às contraprestações de tais servi-
imposto é a pessoa cujo nome está consignado na declaração
ços não podem figurar na base de cálculo dos citados impos-
de importação, por ser este, unicamente, quem promove a
tos exigidos pelo ente federal, sob pena de, assim o fazendo,
introdução de bens estrangeiros no país.
estar essa pessoa política tributando fato diverso do que lhe
foi permitido, invadindo, por essa maneira, a competência Com idêntica orientação, entendendo que o sujeito pas-
tributária municipal. sivo dos impostos incidentes sobre a importação de bens é a
pessoa em nome da qual se opera a importação, manifesta-se
Hector Villegas 223 :
3.3.4.2. A sujeição passiva nos tributos aduaneiros
"El sujeto pasivo de la obligación tributaria en el impuesto
Persistindo na tarefa que nos propusemos no sentido de aduanero es la persona a cuyo nombre figura la mercadería
determinar as características do consequente normativo nas que se presenta a la aduana (...). Pueden revestir esta con-
operações de importação de produtos industrializados, verifi- dición el propietario de la mercancia, su presentador o te-
ca-se que os enunciados jurídicos qualificam, além de coisas e nedor material, o la persona por cuenta de la cual se pro-
duce la importación o la exportación, aunque no sea la
estados de coisas, pessoas. Eis que, para caracterizar a relação
propietaria."
jurídica tributária, é fundamental especificar tais sujeitos de
direitos e deveres de tal modo que, individualizados, a norma
Diante do exposto, não resta outra inferência senão a de
do tributo aduaneiro possa incidir e, por meio desta operação,
que o contribuinte dos impostos incidentes sobre a entrada de
o sistema, como um todo, atingirá seu fim de disciplinar o re-
bens no território nacional é aquele que realizar a conduta de
lacionamento intersubjetivo.
i mportar, ou seja, a pessoa que faça vir produtos do exterior,
No direito tributário, o sujeito passivo da obrigação tri- em cujo nome dá-se a importação, figurando como tal na de-
butária é a pessoa física ou jurídica, de direito privado ou de claração que documenta o fato.
direito público, de quem se exige o cumprimento da prestação
pecuniária. Assume esse papel, tanto no imposto de importação 3.3.4.3. Responsabilidade nos tributos aduaneiros
como no imposto sobre produtos industrializados, no que con-
cerne à materialidade consistente em "importar produtos in- A determinação do sujeito passivo, em termos práticos, é
dustrializados do exterior", aquele que realizou a conduta de de suma relevância no sentido de que individualiza o agente
"importar". E, segundo preceitua o artigo 80, inciso I, alínea a,
do Regulamento Aduaneiro, quem realiza a conduta de "im-
portar" é o sujeito de direitos em nome de quem a importação 223. Curso de finanzas, derecho financiero y tributario, Buenos Aires, Depalma,
foi realizada: 1994, pp. 714-715.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

que está obrigado e, consequentemente, tem a responsabilidade entreposto aduaneiro internacional na Zona Franca de Manaus
sobre o pagamento do débito tributário. Reitero que nem sempre (Eizof), entreposto industrial, regime especial de entreposto
é isoladamente responsável o contribuinte do imposto, ou seja, industrial sob controle informatizado (Recof), exportação tem-
aquele que efetivamente realiza a conduta de importar. porária, áreas de livre comércio, zonas de processamento de
exportação (ZPE), Repetro, Repex, Recom e vários outros ter-
Como se vê, o artigo 82 do Regulamento Aduaneiro elegeu
como responsáveis tributários solidários "o adquirente ou mos que dão bem a dimensão do quantum de especificidade
cessionário da mercadoria beneficiada com isenção ou redução existente nessa área tão importante para as relações interna-
do Imposto de Importação vinculada à qualidade do importador cionais. É oportuno, por isso, tecer alguns comentários sobre
os regimes aduaneiros especiais.
(Decreto-lei n. 37/66, artigo 32)". Solidário, portanto, é apenas
o adquirente ou cessionário de mercadoria com isenção ou Toma-se por regime aduaneiro o tratamento jurídico-tri-
redução fiscal, porquanto responde pela desoneração perante butário aplicado à mercadoria importada, que pode dar-se em
o Fisco. Nessa hipótese, transmitente e adquirente, cedente e três modalidades: geral, especial e atípico. Interessa-nos, nes-
cessionário, respondem solidariamente pelo tributo devido. ta oportunidade, a diferenciação entre os regimes aduaneiros
Em nenhum outro caso há previsão de solidariedade. geral e especial. Este último se diferencia do geral em virtude
E continua o Regulamento Aduaneiro em seu artigo 81, de inexistir importação com caráter de definitividade. A prin-
determinando, desta vez, a responsabilidade subsidiária pelo cipal característica do regime geral é que nele a operação é
realizada com animus definitivo, não desfrutando, ela ou a
i mposto e multa cabíveis:
mercadoria, de nenhum tratamento diferenciado. A mercado-
"I - o transportador, quando transportar mercadoria pro- ria é importada e os tributos, se devidos, são pagos normal-
cedente do exterior ou sob controle aduaneiro, inclusive em mente. Nos regimes aduaneiros especiais, diversamente, o
percurso interno; destino natural dos bens importados é a reexportação, motivo
II - o depositário, como tal designado todo aquele incum- pelo qual o tratamento tributário apresenta peculiaridades.
bido da custódia de mercadoria sob controle aduaneiro;
No regime aduaneiro denominado drawback, por exemplo,
III - outras pessoas expressamente indicadas na legislação tem-se a inexigência ou retorno, no todo ou em parte, dos di-
vigente."
reitos cobrados sobre a entrada de produtos estrangeiros no
país, os quais serão objeto de reexportação no seu estado ori-
A lei é clara: esses e tão-somente esses respondem pelos ginal, ou sobre a importação de matéria-prima ou produtos
i mpostos aduaneiros eventualmente devidos. semimanufaturados, que serão utilizados na produção de ar-
tigos manufaturados nacionais a serem exportados. Seu obje-
3.3.4.4. Regimes aduaneiros especiais tivo precípuo é promover o incremento das exportações, pela
possibilidade de melhor colocação da produção nacional no
Há institutos e conceitos que são como que privativos mercado externo, o que evidentemente irá traduzir-se no de-
dessa ordem do conhecimento jurídico-tributário: trânsito senvolvimento de determinados setores produtivos do país 224 .
aduaneiro, admissão temporária, drawback, entreposto adua-
neiro, lojas francas, depósito especial alfandegado (DEA), de-
pósito afiançado (DAF), depósito franco, depósito aduaneiro 224. Bruno Ratti, Comércio internacional e câmbio, fiã ed., São Paulo, Adua-
de distribuição (DAD), depósito aduaneiro certificado (DAC), neiras, 1994.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

A legislação prevê três modalidades de aplicação do devendo ser recolhidos os tributos devidos na importação da-
drawback: isenção, restituição ou suspensão: queles utilizados na produção destinada ao mercado interno.
À medida que a produção do entreposto for destinada ao mer-
(i) Na modalidade "isenção", o contribuinte poderá impor- cado interno, deverão ser pagos os tributos suspensos relativos
tar, sem a cobrança de exações relativas à importação, a à mercadoria importada, segundo a quantidade e o valor dos
mesma quantidade e qualidade de insumos anteriormente materiais empregados no processo produtivo.
i mportados e utilizados em produtos já exportados.
(ii) Na espécie "restituição", o contribuinte faz jus ao bene-
Osíris Lopes Filho 225 adverte que há muita similitude
fício fiscal com a recuperação total ou parcial dos investi- entre os regimes de drawback e de entreposto industrial. O
mentos despendidos com a importação de insumos, após fator distintivo, segundo ele, reside no fato de que a industria-
cumpridas todas as etapas exigidas pela legislação, ou seja, lização, realizada pelo entreposto, deve ocorrer dentro do seu
depois de importada a mercadoria, e após exportação com próprio estabelecimento, enquanto nos outros regimes o grau
beneficiamento, ou utilizada aquela na fabricação, comple-
de liberdade é maior, em relação aos locais onde se deva pro-
mentação ou acondicionamento de mercadoria também já
ceder à fabricação dos produtos. A finalidade de ambos os
exportada.
regimes, porém,
(iii) No modo "suspensão", a exigibilidade do crédito tribu-
tário relativo aos tributos incidentes sobre o fato da entrada
de mercadorias importadas no território nacional fica sus- "é incentivar a realização de operações industriais no país,
pensa por determinado prazo, deferido pela Administração objetivando a exportação. Para isso, permite-se a impor-
Fazendária para o retorno do produto ao mercado externo tação de matérias-primas e produtos intermediários, ao
ou sua colocação no mercado interno para incentivar a preço do mercado internacional, uma vez que há suspen-
são dos tributos, a fim de que haja incorporação no pro-
i mportação de matérias-primas, insumos, produtos inter-
mediários etc., utilizáveis na complementação de fabricação cesso de industrialização, de fatores abundantes e baratos
local de máquinas e equipamentos, destinados à venda internamente".
externa realizada por fabricante nacional. Comprovada a
operação, nos termos que a legislação estatui, a modalidade O artigo 78 do Decreto-lei n. 37, de 18 de novembro de
"suspensão" converte-se em isenção do pagamento dos 1966, recepcionado pela nova ordem constitucional com o nível
tributos. de legislação ordinária, dispõe sobre a concessão de regime
aduaneiro especial às importações vinculadas à exportação:
Assim como o drawback, o entreposto industrial é conce-
bido para atender os interesses da indústria nacional. Nos "Art. 78. Poderá ser concedida, nos termos e condições es-
termos do Regulamento Aduaneiro aprovado pelo Decreto n. tabelecidas no Regulamento:
91.030/85, assim como daquele veiculado pelo Decreto n. I — restituição, total ou parcial, dos tributos que hajam in-
4.543/2002, entreposto industrial é o regime que permite a de- cidido sobre a importação de mercadoria exportada após
terminado estabelecimento de uma indústria importar, com beneficiamento, ou utilizada na fabricação, complementa-
suspensão de tributos, mercadorias que, depois de submetidas ção ou acondicionamento de outra exportada;
à operação de industrialização, deverão destinar-se ao merca-
do externo, podendo, entretanto, remeter parte da produção
ao mercado interno. A parte da produção exportada será exo- 225. "Regimes aduaneiros especiais", in Revista dos Tribunais, São Paulo,
nerada dos gravames incidentes na importação dos insumos, RT, 1984, p. 121.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

II - suspensão do pagamento dos tributos sobre a importa- Ao determinar a suspensão dos tributos aduaneiros da
ção de mercadoria a ser exportada após beneficiamento, ou hipótese de entreposto industrial, quis o legislador que os tri-
destinada à fabricação, complementação ou acondiciona-
butos incidentes sobre a importação de mercadoria a ser reex-
mento de outra a ser exportada;
portada após beneficiamento ou destinada à fabricação, com-
III - isenção dos tributos que incidirem sobre importação
de mercadoria, em quantidade e qualidade equivalentes à plementação ou condicionamento de outra a ser reexportada
utilizada no beneficiamento, fabricação, complementação não fossem exigidos por ocasião do ingresso da mercadoria em
ou acondicionamento de produto exportado". território nacional. Desse modo, o bem entra nos limites terri-
toriais brasileiros sem o pagamento dos tributos desde que,
O regime aduaneiro de entreposto industrial foi instituído conforme condições estabelecidas, seja industrializado e re-
pelos artigos 89 a 91 do Decreto-lei n. 37/66 e regulamentado destinado ao exterior. Em consequência, se as condições forem
pelos artigos 356 a 368 do Regulamento Aduaneiro. Nos termos descumpridas, os tributos sobre importação devem ser pagos.
do artigo 89, "o regime de entreposto industrial permite à em-
presa que importe mercadoria na conformidade dos regimes Esse breve relato permite concluir que, no caso da moda-
previstos no artigo 78, transformá-la, sob controle aduaneiro, lidade "suspensão", no momento em que a mercadoria é des-
em produtos destinados a exportação e, se for o caso, também pachada para consumo, admitida no regime geral de importa-
ao mercado interno". ção, tem-se configurada uma isenção condicionada à destinação
da mercadoria, nos termos do artigo 12 do Decreto-lei n. 37/66.
Ressalte-se que o artigo 89, caput, do Decreto-lei n. 37/66, De fato, dispõe esse dispositivo que "a isenção ou redução,
possibilita a concessão do regime nas mesmas modalidades quando vinculada à destinação dos bens, ficará condicionada
previstas para o drawback - "suspensão", "isenção" e "resti- ao cumprimento das exigências regulamentares, e, quando for
tuição". Contudo, a legislação regulamentadora restringiu o
o caso, à comprovação posterior do seu efetivo emprego nas
regime de entreposto industrial à modalidade de "suspensão",
finalidades que motivarem a concessão".
como se observa no artigo 356 do Regulamento Aduaneiro
aprovado pelo Decreto n. 91.030/85:
3.3.4.5. O adicional ao frete para renovação da Marinha Mer-
"Art. 356. O regime de entreposto industrial é o que permi- cante - AFRMM
te a determinado estabelecimento de uma indústria impor-
tar, com suspensão de tributos, mercadorias que, depois de
O AFRMM foi instituído para atender aos encargos da
submetidas à operação de industrialização, deverão desti-
nar-se ao mercado externo (Decreto-lei n. 37/66, art. 89)."
intervenção da União nas atividades de apoio ao desenvolvi-
mento da Marinha Mercante e da indústria de construção e
Na mesma orientação, prescreve o artigo 372 do Regula- reparação naval brasileira, tendo por hipótese de incidência a
mento Aduaneiro aprovado pelo Decreto n. 4.543/2002: entrada de bens no porto de descarga, sendo calculado sobre
o frete, entendido como a remuneração do transporte mercan-
"Art. 372. O regime de entreposto industrial sob controle te porto a porto, incluídas as despesas portuárias com mani-
aduaneiro informatizado (Recof) é o que permite a empre- pulação de carga constantes do conhecimento de embarque
sa importar, com ou sem cobertura cambial, e com suspen- anteriores e posteriores a esse transporte, e outras despesas
são do pagamento de tributos, sob controle aduaneiro in-
formatizado, mercadorias que, depois de submetidas à
de qualquer natureza pertinentes ao transporte. Trata-se, sem
operação de industrialização, sejam destinadas à exportação dúvida, de gravame que onera as importações. Logo, impõe-se
(Decreto-lei n. 37, de 1966, art. 89)." a concessão de isenção relativamente aos transportes de cargas
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envolvendo mercadorias destinadas à industrialização e posterior Hipótese 2: retorno da mercadoria importada ao exterior,
retorno ao mercado externo, objetivando cumprir a finalidade no mesmo estado ou após ter sido submetida a processo de
extrafiscal inerente aos regimes aduaneiros especiais, como é o industrialização. Nesse caso, dão-se por preenchidos os
caso do entreposto industrial, comentado no subitem acima. requisitos da isenção condicionada, inexistindo tributo a
ser pago.
A interpretação sistemática do artigo 5 2 , V, c, e § 2 4 , do
Decreto-lei n. 2.404/87, alterado pela Medida Provisória n. A conclusão não poderia ser outra. Inconcebível imaginar
1.897-50, revela tratar-se de isenção condicionada, isto é, en- que o § 2 2 teria revogado o preceito isentivo, pois o veículo que
quanto não concretizada a condição, o legislador denominou o introduziu no ordenamento foi incisivo em manter a isenção
"suspensão" do pagamento do tributo. É uma isenção condi- do pagamento do AFRMM para as cargas de mercadorias que
cionada resolutiva, em que o implemento das condições cons- sejam objeto das operações previstas nos regimes estabelecidos
titui o fato jurídico isento, impedindo a exigência do tributo. no artigo 78 do Decreto-lei n. 37/66. A Medida Provisória n.
Neste sentido, esclarece Alberto Xavier 226 : 1.897-50/99 não apenas acrescentou o § 2 2 como repetiu os
termos da alínea c do inciso V do art. 5 2 . Não há que falar, por-
"Tenha-se presente que as expressões 'suspensão de paga- tanto, em revogação decorrente do advento de norma posterior.
mento' e 'suspensão de tributo' são sistematicamente utili- Também não consiste em regra que prevaleça em função da
zadas pela lei, revelando, com isto, ser apenas o pagamento
especialidade ou da hierarquia.
da obrigação tributária que se encontra submetido a condição
suspensiva, que outra coisa não é que o reflexo simétrico de Se atentarmos para as funções exercidas pelos "pará-
um benefício fiscal concedido sob condição resolutiva." grafos" dos dispositivos legais, o raciocínio acima desenvol-
vido torna-se mais evidente, visto que não há como coexis-
De outro lado, se não forem satisfeitos os requisitos que tirem parágrafos que conflitem com as disposições principais
condicionaram a isenção, o tributo tornar-se-á exigível. do artigo. Na lição de Maria Helena Diniz 227 , o parágrafo é
Havendo importação de mercadorias sob regime de en- "disposição secundária de um artigo de lei que contém mo-
dificações, esclarecimentos, exemplificações, complemen-
treposto industrial, portanto, duas são as possíveis consequên-
cias jurídicas: tando e dividindo a disposição principal". Pode, portanto,
elucidar ou edificar exceções à regra geral contida no caput,
Hipótese 1: nacionalização da mercadoria, implementada
incisos e alíneas.
pelo registro da declaração de importação em caráter defi- À luz de tais considerações é que deve ser interpretado o
nitivo. Nesse caso, a regra-matriz permanece intacta em § 2 2 do artigo 5 2 do Decreto-lei n. 2.404/87. Não exerce ele a
todos os seus aspectos, incidindo e dando nascimento à
função de dispor de forma contrária ao artigo 5 2 , V, c. Sua fi-
obrigação tributária, a qual deve ser cumprida nos termos
do § 3Q do artigo 5 4 do Decreto-lei n. 2.404/87, com a redação nalidade é estabelecer o termo da condição isentiva, momento
dada pela Medida Provisória n. 1.897-50/99. em que (i) deverá ocorrer o pagamento do tributo, se houver
nacionalização da mercadoria, ou, alternativamente, (ii) ter-
se-á por implementada a condição prevista, preenchendo os
226. "Do prazo de decadência em matéria de "drawback" - Suspensão", in
Direito tributário, vol. 1, Luís Eduardo Schoueri (coord.), São Paulo, Quartier
Latin, 2003, p. 536. 227. Dicionário jurídico, vol. 3, São Paulo, Saraiva, 1998, p. 507.

710 711
PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

requisitos da regra de isenção, no caso de retorno ao exterior "Art. 5'2 Ficam isentas do pagamento do AFRMM as car-
da mercadoria importada. gas:
(...)
V — de mercadorias;
3.3.4.5.1. Regras atinentes à suspensão do pagamento do
AFRMM (...)
c) que sejam objeto das operações previstas nos regimes
Como já anotei, o critério de interpretação denominado estabelecidos no art. 78 do Decreto-lei n. 37, de 18 de no-
tradicionalmente pela doutrina de histórico ou histórico-evolu- vembro de 1966, ficando a isenção condicionada à exporta-
ção para o exterior das mercadorias submetidas aos referidos
tivo encontra-se tanto no nível semântico como no pragmático
regimes aduaneiros especiais, excetuando-se do atendimen-
da linguagem, auxiliando na fixação das denotações e conotações
to desta condição de efetiva exportação as operações reali-
dos termos jurídicos, bem como na sua aplicação pelo intérpre- zadas a partir de 5 de outubro de 1990, nos termos do § 2
2

te. Análise desse porte requer investigações das tendências 2


do art. 1 da Lei n. 8.402, de 8 de janeiro de 1992;
circunstanciais ou das condições subjetivas e objetivas que cer-
(...)
caram a produção da norma, esmiuçando a evolução do subs-
§ 2s Ficam suspensas do pagamento do AFRMM, passando
trato de vontade que o legislador depositou no texto da lei. É o o novo prazo de recolhimento, correspondente à totalidade
que farei a seguir, ainda que de modo breve. O estudo histórico ou à parte de carga, a partir da data de sua nacionalização,
das regras atinentes à "suspensão" do pagamento do AFRMM nos seguintes casos, desde que não estejam alcançados pelas
serve como importante subsídio para o intérprete, no exame dos isenções previstas nesta Lei:
preceitos legislativos que integram o objeto da pesquisa sobre a) as mercadorias submetidas aos seguintes regimes adua-
as regras correspondentes à suspensão do AFFRM. neiros especiais:

Em sua redação original, o Decreto-lei n. 2.404/87 dis- 1. trânsito aduaneiro;


punha: 2. entreposto aduaneiro;
3. entreposto industrial" (grifos meus).
2
"Art. 5 Ficam isentas do pagamento do AFRMM as car-
gas: Com a edição da Medida Provisória n. 1.897-50/99 e suas
(...) reedições, a literalidade textual foi novamente alterada:
V — de mercadorias;
(...) "Art. 5 2 Ficam isentas do pagamento do AFRMM as car-
gas:
d) que sejam objeto das operações previstas nos regimes
estabelecidos no art. 78 do Decreto-lei n. 37, de 18 de no- (...)
vembro de 1966, ficando a isenção condicionada à exporta- V — de mercadorias;
ção para o exterior das mercadorias submetidas aos referi- (...)
dos regimes aduaneiros especiais;"
c) que sejam objeto das operações previstas nos regimes
estabelecidos no art. 78 do Decreto-lei n. 37, de 18 de no-
A Medida Provisória n. 1.141/95 acrescentou o § 2 2 ao vembro de 1966, ficando a isenção condicionada à exporta-
artigo 5Q do Decreto-lei n. 2.404/87, passando a ser assim ção para o exterior das mercadorias submetidas aos referidos
redigido: regimes aduaneiros especiais, excetuando-se do atendimento

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

desta condição de efetiva exportação as operações realiza- sua existência foi mantido: preservou-se a suspensão, com
das a partir de 5 de outubro de 1990, nos termos do § 2 2 do posterior isenção, da cobrança do AFRMM relativo a merca-
art. 1 2 da Lei n. 8.402, de 8 de janeiro de 1992;
dorias submetidas a regime aduaneiro especial. É o que se
(...) depreende, também, da Exposição de Motivos Interministerial
§ 2 2 O pagamento do AFRMM incidente sobre o transporte n. 07/MT/MF/MDIC, de 29 de junho de 1999, que propiciou a
de mercadoria importada submetida a regime aduaneiro edição da Medida Provisória n. 1.897-50/99:
especial ou atípico fica suspenso até a data do registro da
correspondente declaração de importação em caráter defini-
"I - (do parágrafo 5 2 ) - Propõe-se, também, nesta oportu-
tivo ou do seu retorno ao exterior no mesmo estado ou após
nidade, algumas alterações nas regras para arrecadação do
ter sido submetida a processo de industrialização.
Adicional ao Frete para Renovação da Marinha Mercante
§ 3Q O não-pagamento do AFRMM, finda a suspensão pre- - AFRMM, visando aperfeiçoá-las.
vista no § 2 2 , implicará sua cobrança com os encargos fi-
II (do parágrafo 6 2 ) - A isenção do AFRMM, relativamen-
nanceiros mencionados no § ,P do art. 6 2 " (grifos meus).
-

te ao transporte de mercadorias importadas, em substitui-


ção a outras idênticas devolvidas ao exterior face à apre-
Atualmente, o assunto é disciplinado pela Lei n. 10.893/2004, sentação de efeitos, ou por terem se revelado imprestáveis
que preceitua: para os fins a que se destinavam, foi incluída, harmonizan-
do este procedimento com o adotado pela Secretaria da
"Art. 14. Ficam isentas do pagamento do AFRMM as car- Receita Federal no que se refere à cobrança de tributos
gas: federais.

(...) III - (do parágrafo 7 2 e seu item a) - Constam ainda, por


fim, as seguintes propostas de alteração ao instrumento
V - que consistam em mercadorias:
legal: a) exclui-se a citação individual de cada regime adu-
(...) aneiro, especial ou atípico, que tenha direito à suspensão
c) submetidas a regime aduaneiro especial que retornem do AFRMM, eliminando a necessidade de alteração da Lei
ao exterior no mesmo estado ou após processo de industria- a cada modificação nos regimes que venha a ser introduzi-
lização, excetuando-se do atendimento da condição de da pelo Ministério da Fazenda."
efetiva exportação as operações realizadas a partir de 5 de
outubro de 1990, nos termos do § 2 2 do art. 1 2 da Lei n. 8.402, Nota-se que em momento algum pretendeu o legislador
de 8 de janeiro de 1992;
suprimir a isenção do AFRMM relativamente às mercadorias
(...) importadas sob regime aduaneiro especial. Desejava-se, ape-
Art. 15. Fica suspenso o pagamento do AFRMM incidente nas: (i) aperfeiçoar as regras relativas a esse tributo; (ii) incluir
sobre o transporte de mercadoria importada submetida a novo rol de mercadorias entre aquelas beneficiadas pela isen-
regime aduaneiro especial, até o término do prazo conce-
ção (mercadorias importadas em substituição a outras idênticas
dido pelo Ministério dos Transportes ou até a data do re-
devolvidas ao exterior em virtude da apresentação de defeitos
gistro da correspondente declaração de importação em
caráter definitivo, realizado dentro do período da suspensão
ou por se terem revelado imprestáveis para os fins a que se
concedida." destinavam; e (iii) evitar a necessidade de alteração legislativa
a cada modificação introduzida nos regimes aduaneiros.
Conquanto os preceitos isentivos do AFRMM tenham A chamada "suspensão" configura verdadeira isenção
sofrido modificações em sua técnica redacional, o objetivo de condicionada ao emprego dos insumos na industrialização de
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

produtos a serem exportados. Trata-se de isenção concedida I- quanto às operações de crédito, a sua efetivação pela
mediante condição resolutória. Ou seja, a isenção é concedida entrega total ou parcial do montante ou do valor que cons-
desde o momento da importação, afastando-se, desde logo, a titua o objeto da obrigação, ou sua colocação à disposição
incidência da norma impositiva com a condição de que a mer- do interessado;
cadoria seja empregada nos fins previstos: a) cumprido o com- II - quanto às operações de câmbio, a sua efetivação pela
promisso de exportação firmado, que é a regra geral, não ha- entrega de moeda nacional ou estrangeira, ou de documen-
to que a represente, ou sua colocação à disposição do inte-
verá implemento da condição resolutiva; b) não havendo o
ressado, em montante equivalente à moeda estrangeira ou
emprego nos fins e prazos previstos, ocorre o implemento da
nacional entregue ou posta à disposição por este;
condição resolutiva, o que desfaz a incidência da norma isen-
III - quanto às operações de seguro, a sua efetivação pela
tiva, caso em que são devidos os tributos previstos.
emissão da apólice ou do documento equivalente, ou rece-
bimento do prêmio, na forma da lei aplicável;
3.3.5. Imposto sobre Operações Financeiras IV - quanto às operações relativas a títulos e valores mobi-
liários, a emissão, transmissão, pagamento ou resgate des-
A Constituição da República incluiu, na competência da tes, na forma da lei aplicável
União, o imposto sobre "operações de crédito, câmbio e segu- Parágrafo único. A incidência definida no inciso I exclui a
ro, ou relativas a títulos ou valores mobiliários" (artigo 153, V), definida no inciso IV, e reciprocamente, quanto à emissão,
ou, como é mais conhecido o imposto sobre operações finan- ao pagamento ou resgate do título representativo de uma
mesma operação de crédito."
ceiras - IOF, dispondo, ainda, a respeito do assunto, que "é
facultado ao Poder Executivo, atendidas as condições e os limi-
tes estabelecidos em lei, alterar as alíquotas dos impostos enu- Verifica-se que o referido Diploma, conceituando a hipó-
merados nos incisos I, II, IV e V" (§ 1 2 , do mesmo artigo), o que tese de incidência dentro dos limites máximos permitidos pela
lhe confere características predominantemente extrafiscais, já lei tributária, não modificou conceitos estatuídos em outros ramos
do direito, como o civil, ou o comercial, mas adotou os parâme-
que se presta como instrumento de política de crédito, câmbio,
tros previstos na Carta Magna para indicar suas características
seguro e transferência de valores. Justamente por isso, a com-
essenciais, nos exatos termos previstos no artigo 146 da Cons-
petência para sua criação foi outorgada à União.
tituição Federal.
A percussão jurídica, portanto, é definida em quatro dis-
Analisando, com minúcias, o fato jurídico tributário que
tintas situações: a de crédito, a relativa a câmbio, a relativa a
faz nascer a obrigação de pagar o tributo, fica evidente que ao
seguro e aquel'outra relativa a títulos e valores mobiliários.
referir-se às operações de crédito (gênero), o constituinte já
englobara as operações de títulos (espécie), sempre que tais
3.3.5.1. IOF: sua hipótese de incidência títulos exteriorizassem uma operação daquela modalidade, por
exemplo as debêntures emitidas por uma sociedade por
O Código Tributário Nacional definiu, estipulativamente, ações.
o tributo:
O imposto de que nos ocupamos agora atinge, fundamen-
"Art. 63 - O imposto, de competência da União, sobre ope- talmente, as operações relativas à circulação de valores a ele
rações de crédito, câmbio e seguro, e sobre operações rela- referidos, que se exteriorizam por intermédio de operações de
tivas a títulos mobiliários tem como fato gerador: crédito, câmbio e seguro e de quaisquer espécies de títulos
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

vinculados ao sistema financeiro ou à Comissão de Valores Mo- Por todos os ângulos em que se analise a matéria, a referên-
biliários, vale dizer, que transitem pelo sistema financeiro ou cia sempre presente é aquela ligada aos instrumentos financeiros,
sejam fiscalizados, por algum de seus órgãos. permutáveis por moeda nas trocas de mercados financeiros.
O campo de incidência do IOF está, como todos os demais
tributos, delimitado, de maneira rígida e inflexível, pela Lei 3.3.5.2. IOF sobre operações relativas a títulos e valores
Maior. Os fatos jurídicos tributários, ensejadores da exigência, mobiliários
devem ser identificados dentro do contexto delimitado no Or-
denamento Superior e na sua lei de criação. A expressão "valores mobiliários" significa a espécie de
títulos de crédito, utilizados como instrumentos de aplicação
As operações de crédito são, como bem assevera o Minis-
de capital, como fontes de renda, abrangendo os que conferem
tro Claudio Santos, do Superior Tribunal de Justiça,
direitos de sócio (ações e bônus de subscrição), de crédito a
longo prazo com vencimento periódico de juros, ou de partici-
"necessariamente as operações ativas praticadas pelas
instituições financeiras. São as denominadas operações
pação nos lucros da companhia. São emitidos em massa, e não
bancárias, aquelas em que os bancos põem dinheiro ou individualmente: cada emissão compreende uma quantidade
crédito à disposição de seus clientes, mediante atos jurídicos de títulos iguais, fungíveis porque cada um assegura os mesmos
conceituados como contratos. Abrangem todos os negócios direitos aos demais. Os valores mobiliários são emitidos em
de mútuo mercantil fechados pelos bancos ou instituições bloco ou série e, portanto, normalmente, destinados ao merca-
assemelhadas e, certamente, ainda os denominados de do de capitais, primário ou de balcão, ou secundário ou bursá-
`créditos de firma'.
til e é, exatamente nesses mercados, que as operações a ele
relativas são tributadas.
Dentre as operações ativas praticadas pelos bancos, des-
taca o inolvidável comercialista brasileiro Carvalho de Men- De todo modo, compete, ao legislador infra-constitucional
donça: os empréstimos, os descontos, as antecipações, as arrolar as espécies de bens que se enquadrem no contexto do
aberturas de crédito, os créditos de firma, as operações de del inciso VI, do artigo 153, da Constituição da República. E, pro-
credere bancário, além das operações de câmbio. Como crédi- curando fundamentos próprios, encontraremos o comando da
tos de firma, ele encaixa os227-A
créditos mediante aceite, median- Lei Federal n. 6.385, de 07.12.76:
te aval e mediante fiança".
"Art. 2'1 — São valores mobiliários sujeitos ao regime desta
E continua: Lei:
I — as ações, partes beneficiárias e debêntures, os cupões
"A operação de del credere bancário é também uma ope- desses títulos e os bônus de subscrição;
ração de garantia, de cuja prática não se tem notícia, na
227-B II — os certificados de depósito de valores mobiliários;
atualidade".
III — outros títulos criados ou emitidos pelas sociedades
anônimas, a critério do Conselho Monetário Nacional.
Parágrafo Único — Excluem-se do regime desta Lei:
227-A. Tratado de Direito Comercial Brasileiro, vol. VI, Rio de Janeiro, Ti-
pografia do Jornal do Comércio, 1.928, p. 158 e 246. I — os títulos da dívida pública federal, estadual ou municipal;
227-B. in "Caderno de Pesquisas Tributárias, vol. 16, Ed. Resenha Tributária, II os títulos cambiais de responsabilidade de instituição

São Paulo, 1991, p. 88. financeira, exceto as debêntures."

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

Como se verifica, a enumeração taxativa, seguindo os em razão da qual o sujeito estará obrigado a prestar o tributo
passos traçados pela doutrina e por balizas constitucionais perante o sujeito ativo do liame tributário.
suficientemente claras, cuida de papéis negociados em massa,
Afirmam nesse sentido Gilberto de Ulhôa Campos e Aloy-
em contraposição àqueles de emissão singular, individual, re-
sio Meirelles de Miranda Filho:
presentando direitos de sócios ou empréstimos a longo prazo,
contratados pelo emissor (companhia pública ou privada, Es-
"Se é certo que nos quadros de formulação dos princípios
tado, etc.), mediante emissão de ações ou de obrigações, tendo referentes ao ICMS, "operações" como abrangendo negó-
como objetivo emprestar dinheiro a outro para obter um re- cios jurídicos se ligam às atividades de que resulte a circu-
sultado, envolvendo capitais. lação de mercadorias, no caso do IOF há de prevalecer o
entendimento dos textos constitucionais, que empregam o
Assim, o valor mobiliário há de ser entendido como um
mesmo vocábulo como significando a prática dos atos jurí-
título de investimento que tem como característica básica o dicos referidos nos incisos I, II, III e IV do art. 63 do CTN;
direito de sócio ou de um empréstimo, isto é, um direito sus- e, mesmo quanto ao ouro, que vem referido no parágrafo
ceptível de provocar o aparecimento de renda. 5 2 , do art. 153 da própria Constituição, não estando incor-
porado às normas definidoras de legislação complementar,
Vale citar, outra vez, Waldirio Bulgarelli ao perceber que
a sua tributação está, no referido texto constitucional, cla-
ramente vinculada à existência de uma operação de circu-
"... para ser valor mobiliário, o papel necessita de alguns lação, que é a realização da operação de origem, assim
requisitos próprios que lhe confiram (mesmo independen- entendendo-se o negócio jurídico de aquisição do metal que
temente de disposição legal) a possibilidade de mobilização o extraiu". 227- D
em termos de negociabilidade e de títulos de massa e sua
vinculação a uma empresa emitente, e por outro lado, para
que atuem eficazmente como valores mobiliários necessi-
Como já se verificou, o vocábulo "crédito", utilizado nos
tam tais papéis de serem dotados de alguns requisitos dispositivos legais que cuidam de instituir o imposto, é ambí-
básicos dos títulos de crédito e sua vinculação a uma em- guo, no sentido de poder ser empregado em diversas acepções,
presa emitente, sobretudo, e principalmente, no tocante servindo de suporte a diversos significados. Na hipótese de
227-C
à circularidade". IOF sobre operações relativas a títulos e valores mobiliários,
o "crédito" somente pode estar vinculado à expressão "ope-
Também, é preciso notar que a realização de um negócio rações", no sentido que já lhe foi dado, isto é, de operações
jurídico, consubstanciado numa operação de crédito, câmbio, de créditos como sendo a troca de bens no momento atual por
seguro ou relativa a títulos ou valores mobiliários, poderá en- bens em momento futuro como, aliás, ensina Carvalho de
sejar a irradiação de efeitos tributários. Significa dizer, a rea- Mendonça:
lização do negócio jurídico poderá ser tomada como suporte
fáctico da descrição contida na hipótese normativa, provocan- "A operação mediante a qual alguém efetua uma prestação
do a instauração dos efeitos jurídicos de sua ocorrência em presente, contra a promessa de uma prestação futura, de-
concreto, consubstanciados no surgimento da relação jurídica, nomina-se "operação de crédito.

227-C. Enciclopédia Saraiva do Direito - verbete "valores mobiliários", 227-D. in Caderno de Pesquisas Tributárias, vol. 16, Resenha Tributária, São
p. 411-412. Paulo, 1991, p. 43.

720 721
PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

"A operação de crédito por excelência é a em que a presta- II — autorização e funcionamento dos estabelecimentos de
ção se faz e a contraprestação se promete em dinheiro. O seguro, resseguro, previdência e capitalização, bem como
mútuo de dinheiro é a manifestação verdadeiramente típi- do órgão oficial fiscalizador;
227-E
ca do crédito na sociedade moderna" . III — as condições para a participação do capital estrangei-
ro nas instituições a que se referem os incisos anteriores,
tendo em vista, especialmente:
3.3.5.3. As operações de "factoring" e o critério material do
a) os interesses nacionais;
imposto sobre operações financeiras
b) os acordos internacionais;
Sabe-se bem que a atividade de faturização consiste na IV — a organização, o funcionamento e as atribuições do
Banco Central e demais instituições financeiras públicas e
compra de direito creditório de outra empresa - "faturizada"
privadas;
- com origem na atividade desta. O "factoring" é, pois, insti-
V — os requisitos para a designação de membros da direto-
tuto regido pelo direito comercial, nos moldes do novo Códi- ria do Banco Central e demais instituições financeiras, bem
go Civil, e/ou pelo direito civil. A atividade das instituições como seus impedimentos após o exercício do cargo;
financeiras, por sua vez, comporta, conforme caput do art. 17 VI — a criação de fundo ou seguro, com o objetivo de prote-
da Lei n. 4.595/64, três hipóteses: (i) coleta, (ii) intermediação ger a economia popular garantindo créditos, aplicações e
e (iii) aplicação de recursos financeiros próprios ou de tercei- depósitos até determinado valor, vedada a participação de
recursos da União;
ros. Feita a distinção, verifica-se não reunir a cessão de cré-
dito na operação de "factoring" os pressupostos do art. 17 da VII — os critérios restritivos da transferência de poupança
de regiões com renda inferior à média nacional para outras
referida Lei e, portanto, não poderá ser entendida como cons- de maior desenvolvimento;
titutiva de operação de crédito, atividade típica de instituição
VIII — o funcionamento das cooperativas de crédito e os
financeira. Diante disso, uma única conclusão é admissível: requisitos para que possam ter condições de operacionali-
a atividade de "factoring" não está constitucionalmente su- dade e estruturação próprias das instituições financeiras.
jeita ao IOF que, nos termos do artigo 153, inciso V, do Texto § 1 0 A autorização a que se referem os incisos I e II será
Maior, só poderá incidir sobre operações vinculadas ao regime inegociável e intransferível, permitida a transmissão do
controle da pessoa jurídica titular, e concedida sem ônus,
jurídico previsto no artigo 192:
na forma da lei do sistema financeiro nacional, a pessoa
jurídica cujos diretores tenham capacidade técnica e repu-
"O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a pro- tação ilibada, e que comprove capacidade econômica com-
mover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos patível com o empreendimento.
interesses da coletividade, que disporá, inclusive, sobre:
§ 2 0 Os recursos financeiros relativos a programas e proje-
I — a autorização para o funcionamento das instituições fi- tos de caráter regional, de responsabilidade da União, serão
nanceiras, assegurado às instituições bancárias oficiais e depositados em suas instituições regionais de crédito e por
privadas acesso a todos os instrumentos do mercado finan- elas aplicados.
ceiro bancário, sendo vedada a essas instituições a partici-
§ 3s As taxas de juros reais, nelas incluídas comissões e
pação de que trata este inciso;
quaisquer outras remunerações direta ou indiretamente
referidas à concessão de crédito, não poderão ser superiores
a doze por cento ao ano; a cobrança em cima deste limite
227-E. J. X. Carvalho de Mendonça, Tratado de Direito Comercial Brasileiro, será conceituada como crime de usura, punido, em todas
p. 51. as suas modalidades, nos termos que a lei determinar".

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

Introduzindo regra própria, como se encontrasse fundamen- O Ministro Leitão de Abreu, ao exarar voto no acórdão
to no sistema jurídico, a Lei n. 9.532, de 10.12.1997, que passou a do RE 86297 - STF, asseverou, com precisão de raciocínio
surtir efeitos a partir de 1.998, estabeleceu, no artigo 58 que: hermenêutico:

"A pessoa física ou jurídica que alienar, à empresa que "Em primeiro lugar, não vale argumentar com nor-
exercer as atividades relacionadas na alínea d, do inciso mas de direito comum para estabelecer limites a
III, do § 1°, do art. 15 da Lei n. 9.249, de 1.995 (factoring), princípios fundamentais, as normas, por isso mes-
direitos creditórios resultantes de vendas a prazo, sujeita- mo, universais, normas necessárias, reconhecidas
se à incidência do imposto sobre operações de crédito, como tais pelo nosso país. Em lugar de argumentar
câmbio e seguro ou relativas a títulos e valores mobiliários da lei ordinária para a fundamental, a fim de limitar-
- IOF, às mesmas alíquotas aplicáveis às operações de fi- lhe o sentido e a eficácia, cumpre é argumentar dos
nanciamento e empréstimos praticadas pelas instituições princípios estabelecidos na declaração de direitos
financeiras". para os preceitos de lei ordinária, para subordinar
„227-H.
estes últimos aos primeiros
Como se vê, o legislador ordinário não respeitou os princípios
de direito civil e comercial e transformou, por força de lei tribu- Posto isto, eis conclusão peremptória. Conforme pre-
tária, o perfil, delineado por aquelas regras próprias, que o "fac- ceitos da CR/88 - art. 153, inciso V - e do CTN - art. 63 - , o
toring" ostenta, em direito bancário, contra o disposto nos artigos critério material do IOF comporta quatro situações, opera-
192 e 153, V, da Constituição Federal, que instituiu o IOF apenas ções sobre: (i) crédito; (ii) câmbio; (iii) seguro e (iv) título
para as instituições arroladas no artigo 192, antes transcrito. imobiliário. Com base em interpretação sistêmica do direito
Nessa mesma direção semântica, aliás, têm sido traçadas tributário, a subsunção do conceito do fato ao conceito da
as linhas da jurisprudência, como se verifica nas ementas norma só se opera quando presente identidade absoluta
adiante reproduzidas: entre um e outro, afastamento as hipóteses presuntivas, no
que diz respeito à ocorrência do fato jurídico tributário. Com
"IOF - OPERAÇÕES DE CRÉDITO - EXPORT NOTES base no princípio da estrita legalidade e tipicidade, à admi-
- não incide IOF sobre operações de crédito relativamente nistração cabe realizar a devida prova dos indícios para, a
às operações que tenham por objeto export notes - Ato partir deles, demonstrar a existência da relação de causali-
declaratório n. 04, de 15.01.1999 Recurso de ofício a que se
”227-F
dade com o fato que se pretende dar por ocorrido. Quer isso
nega provimento. significar, aqui, que, conquanto possam ser encontrados, na
"IOF - OPERAÇÕES FINANCEIRAS: Caracterizadas pela faturização, elementos símiles àquel'outros próprios de ins-
captação de recurso por Sociedade Cooperativa junto a tituições financeiras - adiantamento, desconto e financia-
cooperados através de "Fundo Rotativo" com fixação, no mento -, tais operações não se enquadram dentro do critério
momento da operação, de prazo de resgate e rendimento
material da hipótese de incidência típica do Imposto sobre
de aplicação. Recurso Negado" 227- G.
Operações Financeiras, não sendo possível, portanto, qual-
quer imposição tributária a título de IOF às operações das
empresas de "factoring”.
227 E Aç. n. 202-11.692 - Segunda Câmara do Segundo Conselho de Con-
-

tribuintes.
227-G. Recurso n. 105344 - Conselho de contribuintes - Segunda Câmara
Rel. Antônio Carlos Bueno Ribeiro. 227-H. RDP 39/200.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

3.3.6. Imposto sobre circulação de mercadorias e prestação de consequências. Vejamos os três antecedentes normativos que
serviços a legislação constitucional consagra para, de seguida, tratarmos
dos consequentes:
Poder-se-ia pensar que diante de cenário de tanta in-
certeza seria temerária a elaboração de pesquisas mais a) realizar operações relativas à circulação de merca-
sérias e atiladas que ferissem temas sujeitos a mutações dorias;
i mprevisíveis, como a do ICMS sobre prestação de serviços
b) prestar serviços de comunicação, mesmo que se ini-
de comunicação ou nas importações. Neste último, por
ciem no exterior, prestações essas que deverão concluir-
exemplo, vemos tendência ao iminente desaparecimento
desta figura ao ensejo de modificações drásticas no sistema se ou ter início dentro dos limites territoriais dos Estados
atual, abrindo espaço para o surgimento de um imposto ou do Distrito Federal, identificadas as prestações no
sobre valor acrescentado, entregue à competência legisla- instante da execução, da geração ou da utilização dos
tiva da União. serviços correspondentes;

Não é esse, contudo, meu modo de pensar. A situação c) prestar serviços de transporte interestadual ou inter-
alcançada pela incidência continuará sendo, ad aeternum, municipal.
objeto das preocupações das normas jurídicas sobre o gra-
vame, uma vez que toca ponto delicado das relações inter- 3.3.6.1. Movimentação física e simbólica das mercadorias
pessoais submetidas ao impacto do tributo, quer seja o im-
posto sobre a circulação de mercadorias e de serviços (ICMS), O minucioso exame da materialidade do ICMS, além de
de competência dos Estados e do Distrito Federal, quer se elucidar as situações em que tem nascimento a obrigação tribu-
trate de seu sucedâneo, digamos, de um imposto sobre o tária, permite vislumbrar a inexigibilidade, pela legislação des-
valor agregado, subordinado ao âmbito competencial da se imposto, da movimentação física das mercadorias. A circula-
União. ção corpórea dos bens, além de insuficiente para a configuração
Não é auspicioso o quadro da literatura existente sobre da materialidade do ICMS, não se apresenta como requisito
o ICMS, preponderantemente de caráter informativo e per- essencial à incidência do tributo. O direito, ao criar suas próprias
meada de dogmatismos infundados, que não surgem como realidades, atribui à expressão "operações de circulação de
produto de um processo dialético firmado em premissas só- mercadorias" o significado de "transferência de sua titularida-
lidas e consistentes. de". Do mesmo modo, ao tributar as "operações de importação
Nos termos do artigo 155, II, da Constituição de 1988, de mercadorias" refere-se à aquisição de tais bens por sujeito
compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos estabelecido ou domiciliado no país, não sendo seu ingresso fí-
sobre "operações relativas à circulação de mercadorias e sobre sico bastante, em si mesmo, para a caracterização do fato jurí-
prestações de serviços de transporte interestadual e intermu- dico tributário.
nicipal e de comunicação, ainda que as operações e as presta- A circulação e a entrada no estabelecimento pode ser real
ções se iniciem no exterior". ou apenas simbólica. Existindo documentação que a respalde,
No caso do ICMS, temos três regras-matrizes, o que im- a operação jurídica se considera perfeita e acabada, desenca-
plica admitir que existem três hipóteses de incidência e três deando os efeitos jurídico-fiscais correspondentes.
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Confirmando esse ponto de vista, a própria legislação do Por sem dúvida que o direito positivo vigente reconhece
ICMS prevê hipóteses de tradição simbólica da mercadoria, e autoriza a movimentação simbólica de mercadorias, consi-
tendo por objetivo possibilitar que os contribuintes exerçam derando praticada a circulação jurídica quando da emissão dos
suas atividades operacionais sem custos desnecessários de respectivos documentos fiscais.
transporte. Exige-se, na hipótese, apenas o adequado controle
Nesse caso, portanto, é juridicamente irrelevante a cir-
das operações realizadas.
culação física da mercadoria. Sua ausência não impede que se
Observe-se nesse sentido, por exemplo, os artigos 133 e realizem negócios jurídicos concernentes àquele bem, com a
141 do RICMS de Tocantins (Decreto n. 462/97), que determi- transferência da titularidade e a consequente incidência do
nam a emissão de notas fiscais sem a circulação física das ICMS. Por tais razões, já que é prescindível a circulação física
mercadorias: a nota fiscal é exigida na hipótese de bens ou para fins jurídicos, comprovado o trânsito simbólico, torna-se
mercadorias entrarem no estabelecimento real ou simbolica- sem importância saber dos locais por onde se realizam a pas-
mente. Também o artigo 118 do RICMS reconhece ser irrele- sagem física dos bens.
vante o trânsito corpóreo da mercadoria, autorizando sua en-
trada simbólica:
3.3.6.2. Alcance da locução "venda de mercadorias"
"Art. 118. Os estabelecimentos, excetuados os produtores
agropecuários, emitirão nota fiscal modelo 1 ou 1-A: A expressão "venda de mercadorias" tem conteúdo se-
I — sempre que promoverem a saída de mercadorias;
mântico coincidente com o de "operação de circulação de
mercadoria", empregada para fins de exigência do ICMS. Para
II — na transmissão de propriedade de mercadorias quando
estas não devam transitar pelo estabelecimento transmi- sua concretização, é necessária a presença de negócios jurídi-
tente; cos, configurando instrumentos imprescindíveis para que se
III — sempre que, no estabelecimento, entrarem bens ou tenha, como efeito de direito, circulação de mercadorias.
mercadorias, real ou simbolicamente, nas hipóteses do art. Trata-se de atos jurídicos que promovem a transmissão de
133 deste regulamento". direito, in casu, a propriedade de mercadorias.
Após reconhecer a existência de operação, entendida
Semelhante é a prescrição da Lei Complementar n. 87/96,
como "negócio jurídico", pode-se partir para a identificação
que no artigo 20, ao dispor sobre a compensação assegurada
da presença dos demais requisitos: circulação e mercadorias.
pelo princípio da não-cumulatividade, reforça ser prescindível
Tais vocábulos, como explicitação qualificativa, reduzem, ine-
a entrada física no estabelecimento adquirente:
vitavelmente, o campo semântico do termo "operações", para
"Art. 20. Para a compensação a que se refere o artigo ante-
dizer que a incidência não se realiza em qualquer de suas es-
rior, é assegurado ao sujeito passivo o direito de creditar-se pécies, mas apenas naquelas "relativas à circulação de merca-
do imposto anteriormente cobrado em operações de que dorias". Se decompusermos esse adjunto adnominal, vamos
tenha resultado a entrada de mercadoria, real ou simbólica, encontrar, como vocábulo de segundo relevo, "circulação",
no estabelecimento, inclusive a destinada ao seu uso ou qualificado restritivamente por "de mercadorias".
consumo ou ao ativo permanente, ou o recebimento de
serviços de transporte interestadual e intermunicipal ou de "Operações", "circulação" e "mercadorias" são três elemen-
comunicação". tos essenciais para a caracterização da venda de mercadorias.
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É-;
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Tenho para mim que o vocábulo "operações", no contexto, ex- e, para tornar efetivo esse princípio, conduzindo a tributação
prime o sentido de atos ou negócios jurídicos hábeis para provo- aos valores que pretende realizar, exige-se, em cada elo da
car a circulação de mercadorias. "Circulação", por sua vez, é a cadeia de produção ou circulação, a compensação entre a
passagem das mercadorias de uma pessoa para outra, sob o relação do direito ao crédito (nascida com a entrada jurídica
manto de um título jurídico, com a consequente mudança de do bem) e a relação jurídica tributária (que nasce com a saída
patrimônio. Já o adjunto adnominal "de mercadorias" indica que da mercadoria).
nem toda a circulação está abrangida no tipo proposto, mas uni-
Estão aí presentes, portanto, dois momentos distintos,
camente aquelas que envolvam mercadorias.
duas situações diversas que dão origem a duas consequências
O étimo do termo "mercadoria" está no latim mercatura, diferentes: dois antecedentes e dois consequentes, ou seja, duas
significando tudo aquilo susceptível de ser objeto de compra e normas jurídicas, incidindo sobre fatos jurídicos independen-
venda, isto é, o que se comprou para pôr à venda. Evoluiu de merx, tes (embora participantes de uma mesma cadeia de circulação
mercis (sobretudo no plural: merces, mercium), referindo-se ao de mercadoria) e impondo comportamentos específicos no seio
que é objeto de comércio, adquirindo, na atualidade, o sentido de de relações jurídicas igualmente distintas.
"qualquer objeto natural ou manufaturado que se possa trocar e
Analisando a fenomenologia da não - cumulatividade,
que, além dos requisitos comuns a qualquer bem econômico,
verifica-se que o direito ao crédito do sujeito adquirente pro-
reúna outro requisito extrínseco, a destinação ao comércio" 228 .
vém de uma norma jurídica instituidora do direito ao crédito,
Não se presta o vocábulo para designar, nas províncias do direito,
que denominamos "regra-matriz do direito ao crédito". Sua
senão coisa móvel, corpórea, que está no comércio.
incidência implica uma relação jurídica que tem como sujei-
A natureza mercantil do produto não está, absolutamen- to ativo o adquirente/destinatário de mercadorias, detentor
te, entre os requisitos que lhe são intrínsecos, mas na destina- do direito ao crédito do imposto, e como sujeito passivo o
ção que se lhe dê. É mercadoria a caneta exposta à venda entre Estado.
outras adquiridas para esse fim. Não se enquadra nesse con-
ceito, porém, aquela mantida em meu bolso e destinada a meu Se voltarmos nossas atenções mais uma vez à regra-
uso pessoal. Observe-se que não se operou a menor modifica- matriz de incidência do ICMS, facilmente perceberemos que
ção na índole do objeto referido. Apenas sua destinação veio a lá não se instala o direito subjetivo do contribuinte ao crédito
conferir-lhe atributo de mercadoria. do imposto. Tratamos ali apenas da relação jurídica formada
entre o sujeito passivo/contribuinte e o sujeito ativo/Estado,
na qual o primeiro está obrigado a pagar ao segundo certo
3.3.6.3. Direito ao crédito e operacionalidade da regra-matriz valor, a título de ICMS, calculado a partir da conjunção da
do crédito envolvendo mercadorias alíquota com a base de cálculo (critério quantitativo), corres-
pondendo esta última ao valor da operação de circulação de
O ICMS, consoante o disposto no art. 155, § r, I, da Car-
mercadoria.
ta Magna, deve atender ao princípio da não - cumulatividade
Ocorrido o fato previsto no antecedente da regra-matriz
de incidência do ICMS, praticada a ação, núcleo do critério
228. Antenor Nascentes, Dicionário da língua portuguesa, Coimbra, Atlân- material da hipótese, isto é, realizada a operação relativa à
tica, 1957. circulação de mercadoria ou importação, passa-se a vincular

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dois sujeitos no seio de uma outra relação, de direito privado, ilegal. Em qualquer caso, com ou sem formalização da obriga-
distinta da relação jurídica tributária. Portanto, se a realização ção tributária, há o direito ao crédito (e o consequente direito
da operação faz nascer vínculo jurídico tributário entre o con- à compensação, pelo primado da não-cumulatividade), visto
tribuinte e o Estado, relativo ao ICMS, importa concluir que que o nascimento deste decorre de norma jurídica distinta da
tal relação (do ICMS) dar-se-á tão somente com a configuração regra-matriz de incidência do ICMS; decorre da transmissão
de outra relação, também jurídica, mas de cunho mercantil. É da titularidade da mercadoria, e não da ocorrência de lança-
o fato-relação necessário e imprescindível para o estabeleci- mentos de ICMS que são alheios ao adquirente.
mento do vínculo obrigacional tributário. Pelas mesmas razões, a circunstância de o vendedor das
É bem de ver que, entre a operação mercantil e a obri- mercadorias abrir mão de seus créditos reais, optando por com-
gação tributária há combinação de relações, de tal sorte que pensar-se de valores calculados por estimativa, não interfere no
a primeira dá origem à segunda. Uma é relação fundante quantum do crédito a que tem direito o adquirente de tais bens.
Além de serem irrelevantes, a formalização e o pagamento do
(operação mercantil); outra, relação fundada (obrigação tri-
imposto pelo vendedor das mercadorias, bem como o montante
butária). Mudando as palavras, se não houver relação mer-
do abatimento por ele efetuado, termo de acordo de Regime
cantil, não poderá falar-se em obrigação tributária. Visuali-
Especial, não tem o condão de anular, restringir ou alterar di-
zando a estrutura lógica da norma jurídica, a operação mer-
reito a crédito constitucionalmente assegurado, especialmente
cantil estaria na posição sintática de antecedente, como
quando o contribuinte não é signatário do ajuste firmado.
conteúdo do enunciado hipotético, ao passo que a obrigação
tributária cumpriria a função de consequente, fazendo as
vezes do prescritor. 3.3.6.3.1. Direito ao crédito e documentação idônea
O ICMS tem, portanto, como requisito constitucional que Não obstante as considerações expostas, há ponto impor-
sua hipótese tributária traga a descrição do fato de um comer- tante na incidência do ICMS que diz respeito à emissão das
ciante, industrial ou produtor, traduzida por verbo e seu com- notas fiscais que relatam os negócios jurídicos de transferência
plemento vir a praticar operação jurídica que transfira, física de titularidade. Neste tópico, é enunciado expresso do Texto
ou simbolicamente, a propriedade de mercadoria ou implique Constitucional, artigo 155, § 2 2 , inciso XII, que compete à lei
sua importação. Esses eventos, uma vez ocorridos, no mundo complementar definir os contribuintes, os regimes de substi-
fenomênico, subsumem-se ao fato hipoteticamente previsto na tuição tributária, os regimes de compensação de impostos
regra-matriz do direito ao crédito, fazendo nascer, inexoravel- (não-cumulatividade), entre uma série de outros elementos do
mente, uma relação jurídica que tem como sujeito ativo o ad- regime jurídico do ICMS. Desempenhando esta competência,
quirente das mercadorias, detentor do direito ao crédito do a Lei Complementar n. 87/96, em seu artigo 23, encerra a se-
i mposto, e como sujeito passivo o Estado. guinte prescrição:
Para aquele que participou de relação jurídica de trans-
"O direito de crédito, para efeito de compensação com dé-
ferência de mercadoria, tributada pelo ICMS, na figura de bito do imposto, reconhecido ao estabelecimento que tenha
adquirente, não importa saber se o alienante procedeu ao lan- recebido as mercadorias ou para o qual tenham sido pres-
çamento ou ao pagamento do imposto. Ou, ainda, se o alienan- tados os serviços, está condicionado à idoneidade da docu-
te deixou de fazê-lo por motivos pessoais, por motivos de força mentação e, se for o caso, à escrituração nos prazos e con-
maior, por dispensa legalmente concedida, ou por mera prática dições estabelecidos na legislação".

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É, portanto, requisito para o aproveitamento do crédito que regularidade perante o fisco, de acordo com o item 4 do §
esteja ele vertido em documento hábil para certificar a ocor- 1 2 do artigo 36, e também a exigir o mesmo procedimento
rência do fato que dá ensejo à apuração do crédito. Pois bem. da outra parte, quer esta figure como remetente da merca-
doria ou prestador do serviço, quer como destinatário ou
Mas quais seriam esses requisitos? Como os contribuintes
tomador, respectivamente."
podem identificar o que vem a ser uma documentação idônea?
E mais, quem são os sujeitos competentes para emitir esta
Conhecer o número de inscrição do contribuinte, exigin-
documentação?
do-o em cada negócio jurídico que se pretenda realizar, surge,
A legislação do Estado de São Paulo, Lei n. 6.374/89, por por força de expressa previsão legal, como dever daquele que
exemplo, prescreve um rol de deveres que devem ser atendidos compra ou vende bens sujeitos à incidência do ICMS de outros
por todos aqueles que sejam contribuintes do tributo, tanto em contribuintes. Consultar a regularidade da inscrição é, destar-
relação ao tipo e à forma dos documentos que devem ter e te, o meio de aferir a regularidade do contribuinte com o qual
emitir quanto aos que devem exigir daqueles com os quais se pretende contratar. Trata-se, a toda vista, de meio de deter-
venha a manter relações comerciais. Por meio da implemen- minar a atuação conjunta dos contribuintes e da administração
tação assídua deste conjunto de deveres instrumentais, deno- fazendária no sentido de evitar fraudes na transmissão de
minados pela legislação de "obrigações acessórias", o contri- créditos tributários.
buinte do imposto terá subsídios para identificar que a docu-
mentação é idônea para o aproveitamento dos respectivos O artigo 36, § 1% item 3, do referido Diploma normativo,
créditos. prescreve, ainda, quais elementos devem ser atendidos na
produção dos documentos fiscais:
Analisando com mais vagar o texto de Lei citado, identi-
ficam-se, logo no artigo 7% todos os sujeitos que são conside- "3 — documento fiscal hábil, o que atenda a todas as exigên-
rados contribuintes para fins de arrecadação deste tributo. Já cias da legislação pertinente, seja emitido por contribuinte
no artigo 16 encontra-se o dever daqueles obrigados a pagar o em situação regular perante o fisco e esteja acompanhado,
i mposto, seja como contribuinte, como substituto ou ainda quando exigido, de comprovante do recolhimento do im-
posto; (...)"
responsável, bem como de efetuar a inscrição na repartição
fazendária competente, segundo a região em que se encontra
Cabe destacar, nesta exigência, a necessidade dos docu-
o estabelecimento. A partir da inscrição, a pessoa jurídica tor-
mentos atenderem ao que dispõe a legislação, no tocante à sua
na-se efetivamente contribuinte do ICMS, ou seja, pessoa apta
a emitir documentos fiscais idôneos. confecção, tipo, série e demais peculiaridades. Aquilo que se
i mpõe, no caso, é o dever de o contribuinte conferir os docu-
É, contudo, no artigo 22-A da citada legislação que se mentos que acompanham os bens adquiridos, buscando iden-
encontra a principal obrigação de um contribuinte, no sentido tificar se atendem ou não ao que estabelecem os dispositivos
de assegurar a legitimidade dos créditos que irá adquirir. Ve- legais que tratam da matéria. Nada mais.
jamos seu conteúdo:
O derradeiro requisito, também percebido na já mencio-
"Art. 22-A. Sempre que um contribuinte, por si ou seus nada legislação, diz respeito à efetiva ocorrência das operações
prepostos, ajustar a realização de operação ou prestação documentadas, o que já foi previamente lembrado letras acima.
com outro contribuinte, fica obrigado a comprovar a sua Ou, por outras palavras, o que estiver registrado - em documento
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fiscal — deve refletir a efetiva realização do negócio jurídico, Sendo a "não-incidência" uma das hipóteses eleitas pelo
com ingresso, real ou simbólico, da mercadoria no estabeleci- constituinte como obstáculo ao aproveitamento de créditos de
mento adquirente e o respectivo pagamento. ICMS, salvo se a legislação infraconstitucional dispuser em
sentido contrário, certificadas as situações acima, não nascerá,
Tais providências, quando tomadas em conjunto, eviden-
para o contribuinte, relação jurídica de direito ao crédito.
ciam a boa-fé do contribuinte, eximindo-o de eventuais res-
ponsabilidades caso seja posteriormente verificada a prática Cumpre registrar, ainda, que em todas as situações de
de ilícitos por terceiros. não-incidência, supra-relacionadas, inexiste direito ao crédito
e, igualmente, não há nascimento da obrigação tributária. Isso
ocorre exatamente porque falta algum elemento necessário à
3.3.6.3.2. Não-incidência e isenção• únicas exceções constitu- subsunção.
cionais do direito ao crédito de ICMS
A isenção tributária, por sua vez, também é hipótese de
Realizado o acontecimento do evento previsto na hipó- não-incidência tributária. Sua configuração, porém, é mais
tese de incidência e constituído o fato pela linguagem com- complexa: não decorre de mera ausência de elemento norma-
petente, propaga-se o efeito jurídico próprio, instalando-se o tivo, oriundo de inatividade do legislador. Ao contrário, o órgão
liame mediante o qual uma pessoa, sujeito ativo, terá o direi- legislativo competente age, editando norma isentiva que atua
to subjetivo de exigir de outra, sujeito passivo, o cumprimen- sobre a regra-matriz de incidência, investindo contra um ou
mais critérios de sua estrutura, para mutilá-los parcialmente.
to de determinada prestação pecuniária. Eis a fenomenologia
da incidência tributária. Esta requer, por um lado, norma Com efeito, trata-se de encontro de duas normas jurídicas que
têm por resultado a inibição da incidência da hipótese tribu-
jurídica válida e vigente; por outro, a realização do evento
tária sobre os eventos abstratamente qualificados pelo precei-
juridicamente vertido em linguagem que o sistema indique
to isentivo, ou que tolhe sua consequência, comprometendo-lhe
como própria e adequada. Estaremos diante de não-incidên-
os efeitos prescritivos da conduta.
cia, portanto, sempre que algum desses elementos não estiver
presente. Se o fato é isento, sobre ele não se opera a incidência e,
portanto, não há falar em fato jurídico tributário, tampouco em
Da observação do direito positivo brasileiro, verificamos obrigação tributária. E se a isenção se der pelo consequente,
as seguintes causas de não-incidências, por ordem crescente a ocorrência fáctica encontrar-se-á tolhida juridicamente, já
de abstração: que a sua eficácia não poderá irradiar-se.

(i) ausência do fato jurídico tributário; De qualquer maneira, guardando sua autonomia norma-
(ii) inexistência da regra-matriz de incidência tributária, a tiva, a regra de isenção ataca a própria esquematização formal
qual, conquanto autorizada constitucionalmente, não foi da norma-padrão de incidência, para destruí-la em casos
produzida pelo legislador ordinário; particulares, sem aniquilar a regra-matriz, que continua atu-
(iii) falta de previsão constitucional que atribua competên- ando regularmente para outras situações. Se determinada
cia para a tributação de determinado acontecimento; operação é isenta, a regra-matriz de incidência tributária fica
(iv) incompetência para a tributação de situações específi- neutralizada, não havendo falar-se em acontecimento do "fato
cas, por expressa determinação na Carta Magna (imunida- gerador" e, por via de consequência, em nascimento da obri-
de tributária). gação tributária.
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Essas são as duas únicas situações em que a operação Nessas duas últimas hipóteses, não restam dúvidas acer-
relativa à circulação de mercadoria não acarretará crédito de ca da verificação da fenomenologia da incidência tributária.
ICMS. Em todos os demais casos, como em algumas hipóteses
de "diferimento" (que não configure isenção) e de creditamen- b) Crédito por estimativa
to por estimativa, em substituição ao regime normal de apura- A forma de cálculo do crédito, como pode vir definido em
ção, haverá direito ao crédito.
Termos de Acordo de Regime Especial, em nada obstrui a in-
cidência tributária. Acontecido o fato da importação, surge
a) Diferimento
para a empresa contribuinte a obrigação de pagar o ICMS ao
A terminologia "diferimento" é empregada, no direito Estado onde se encontra estabelecida, nascendo, em contra-
positivo brasileiro, para designar vários fenômenos jurídicos partida, o direito ao crédito correspondente. Efetuada a venda
ocorridos nas legislações que disciplinam os impostos plurifá- de mercadorias no mercado interno, nova incidência se dá
sicos e não-cumulativos, como o ICMS. Seu caráter pode ser
sobre essa operação de circulação, incidindo, simultaneamen-
de isenção, substituição tributária, ou mera postergação da
te, a regra-matriz de incidência tributária e a regra-matriz do
data prevista para o pagamento do tributo. A correta identifi-
direito ao crédito, fazendo aparecer a obrigação tributária para
cação deve ser efetuada em cada caso concreto, mediante
o vendedor e, para o comprador, o direito de se compensar.
exame do diploma normativo pertinente.
Como dá para notar, a incidência opera em sua integrida-
O diferimento apresentar-se-á como isenção quando a
regra-matriz de incidência sofrer mutilação no critério tempo- de, desencadeando todos os possíveis efeitos. Dentre eles, o
ral da hipótese, de tal modo que a impeça de alcançar deter- direito da empresa-adquirente de aproveitar-se dos créditos
minadas situações. Nesse caso, inocorrerá, em momento algum correspondentes às alíquotas aplicadas nas operações de im-
da cadeia, exigência tributária concernente à operação intitu- portação e comercialização. A circunstância de a pessoa jurí-
lada "diferida". dica contribuinte abdicar dos "créditos reais" a que faz jus,
optando por compensar valores estimados, na forma estipula-
Por sua vez, será verdadeira substituição tributária a hi-
da em Termos de Acordo de Regime Especial, não implica
pótese de diferimento onde houver postergação do instante
supressão, diminuição ou qualquer condicionamento à fruição,
para pagamento do tributo, transferindo-se a obrigação fiscal
pelos adquirentes das mercadorias, dos valores corresponden-
para o sujeito que realiza a etapa subsequente da cadeia de
tes às alíquotas de ICMS estipuladas na legislação estadual,
positivação. Aí, a regra-matriz permanece intacta em todos os
pois se não verificada a figura da não-incidência ou da isenção,
seus aspectos, podendo incidir e dar nascimento a outras obri-
gações tributárias. Apenas a exigibilidade do cumprimento o abatimento dos créditos não pode ser tolhido. Eis as deter-
dessa relação jurídica é que será adiada, verificando-se em minações sistêmicas da não-cumulatividade no ICMS para
momento posterior, por sujeito passivo diverso daquele que estes casos.
praticou o fato jurídico tributário.
Pode, ainda, manifestar-se como mera postergação da data 3.3.6.4. ICMS e tributação sobre prestação de serviços de
do pagamento, sem interferência em quaisquer dos critérios da
, comunicação
regra-matriz tributária. A obrigação permanece a mesma; o
sujeito passivo da relação continua sendo aquele que praticou A hipercomplexidade das sociedades pós-modernas vem
o fato jurídico tributário. acompanhada dos progressos da tecnologia. E no campo da

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comunicação essas conquistas foram decisivas, a ponto de conta a estrutura rígida e severa dos princípios constitucionais
marcar nosso próprio tempo com balizas claras e objetivas, tributários vigentes no Brasil.
que nós mesmos, sem os critérios apurados da visão histó-
É pouco numerosa a literatura nacional existente sobre a
rica, pudemos identificar. De seu lado, o direito posto, man-
matéria e o produto legislado revela a insegurança das entida-
tendo a distância operacional necessária para lidar com os
des tributastes ao empregar meios e critérios muitas vezes
possíveis controles das condutas intersubjetivas, segue ob-
desconcertantes para atingir seus objetivos arrecadatórios. Na
servando a marcha dos acontecimentos, recebendo as múl-
outra ponta está o sujeito passivo, ávido para saber até onde
tiplas notícias dos subsistemas afins, para produzir, segundo
irão suas responsabilidades, programando-se para atuar, ou
esquemas que lhe são ínsitos, as normas jurídicas regulado-
continuar atuando, num campo tão rico de expectativas.
ras da interação social.
Dentro da materialidade do mencionado imposto, conhe-
Se a velocidade dessa sequência integrativa é lenta em cido por ICMS, inclui-se a "prestação de serviço de comunica-
alguns setores, n'outros chega a ser fulminante, num desafio à ção". É nessa parcela da competência impositiva dos Estados
eficiência técnica da capacidade que o ser humano tem de e do Distrito Federal que focalizarei o pensamento, tendo em
receber e manipular informações. E assim tem sido nos domí- vista demarcar o domínio de sua abrangência. Torna-se impe-
nios do direito tributário, no que concerne ao chamado "co- rioso, para tanto, uma análise mais atilada do significado de
mércio eletrônico". "prestação de serviço de comunicação", frase empregada pelo
Esse "comércio eletrônico", que ganhou corpo com o constituinte. Apenas por esse meio será possível identificar,
advento da Internet, rede mundial ou rede das redes, é um com firmeza, o quadro de eventos que integram o critério ma-
subproduto da aceleração vertiginosa das conquistas da tec- terial da regra-matriz de incidência desse imposto.
nologia, projetado sobre o campo das relações mercantis. In- O termo "comunicação", como não poderia ser diferente,
serindo-se num processo de retroalimentação, a velocidade é polissêmico, sendo usado em diferentes acepções. Do ponto
das mensagens atinge níveis sofisticados, que aprimoram a de vista científico, no entanto, deve ser entendido consoante
comunicação e se abrem em ramificações diversas por outros já nos manifestamos, ou seja, em conformidade com a teoria
canais da convivência entre os indivíduos, para tanto, colabo- que estuda os signos, a Semiótica, abandonando-se os sentidos
rando, decisivamente, os sistemas computacionais das diferen- resultantes dos usos comuns. O processo comunicativo que
tes mídias. Não é preciso dizer que o impacto dessas transfor- estabelece o conteúdo semântico do vocábulo "comunicação"
mações enriqueceu sobremaneira a participação subjetiva das é aquele consistente na transmissão, de uma pessoa para outra,
pessoas envolvidas nos contratos, munindo-as de novas pers- de informação codificada, por meio de um canal, entre emissor
pectivas sobre o negócio. e receptor, que possuem em comum, ao menos parcialmente,
A destreza e a agilidade dos órgãos legislativos, no terri- o repertório necessário para a decodificação da mensagem.
tório dos tributos, absorvendo informações das mais variadas Comunicação, entendida como o vínculo que se instaura
origens, para selecioná-las, organizá-las de modo coerente e com o ciclo formado pela emissão, transmissão e recepção de
vertê-las na forma e no tom de juridicidade, é algo que suscita mensagens, de modo intencionado ou não, apresenta enorme
o interesse e a admiração de quantos se preocupam com a amplitude, verificando-se sempre que houver dois ou mais
dinâmica do tecido social, principalmente se levarmos em sujeitos em contingência de interação. Toda vez que alguém
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTA

difundir informação, ainda que não destinada a receptor de- mesmo tempo, recordand
terminado (porém, determinável) e mesmo que de forma in- cacional, observamos a pi
consciente, esse alguém estará realizando processo de comu- ou transmissor, de u'a m ,
nicação. emissor e ao receptor, e dl
Prestar serviço de comunicação, por seu turno, consiste A prestação de servi
na atividade de colocar à disposição do usuário os meios e quando houver a junção s
modos necessários à transmissão e recepção de mensagens, vos da prestação de servi(
distinguindo-se, nessa medida, da singela realização do fato nicacional, do outro, de ta]
comunicacional. "Comunicação" e "prestação de serviços de prestador tenha por objei
comunicação" são realidades distintas. tomador do serviço e terc(
um valor. Pode falar-se en
Para que se possa perceber com maior nitidez a diferença ção quando o emissor da n
acima referida, convém examinar mais de perto o conceito de serviço, que, mediante pa
"prestação de serviço", fazendo o contraponto com os signifi- o prestador para que este
cados dos termos "comunicação" e "prestação de serviço de nando meios que tornem r
comunicação". ao destinatário.
"Prestação de serviço", define Aires Barreto 229 , é o "esfor- Do que foi dito infere
ço de pessoas desenvolvido em favor de outrem, com conteúdo de dois modos: (1) de forr
econômico, sob regime de direito privado, em caráter negocial, mensagem própria; e (2) c
tendente a produzir uma utilidade material ou imaterial". missão da mensagem de to
Configura-se, em outras palavras, no exercício, por alguém se incidirá o ICMS, pois
(prestador), de atividade que tem por escopo produzir benefí- mesmo, unicamente se o (
cio relativamente a outra pessoa (tomador), a qual remunera diversa do emissor é que to
o prestador (preço do serviço) 23 °. nicacional. Enquanto na c
Desde logo se vê, na definição de "prestação de serviço" diretamente do emissor, n
oferecida pelo mencionado autor, o caráter de necessidade ção a mensagem, de propr
absoluta da coexistência dos três elementos que a compõem, indivíduo diverso (prestE
processo comunicativo, qi
quais sejam: o prestador, o tomador e o preço do serviço. Ao
gem é o próprio emissor;
cação, o emissor contrata
que este transmita sua m(
229. "Imposto sobre serviço de qualquer natureza", in Revista de Direito
Tributário, vol. 29/30, p. 188. Firmados tais critér
230.A expressão "prestação de serviço", assim como o vocábulo "comunica- materialidade do ICMS n
ção", padece do problema da ambiguidade, comportando sentidos diversos.
cação", nos termos do ari
Todavia, em se tratando de interpretação de texto jurídico, produzido em
linguagem técnica, o sentido atribuído deve decorrer de uma construção quando houver serviço d(
harmônica do sistema normativo, cientificamente estabelecida. dência daquele imposto. F

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

que o laço comunicacional seja instalado mediante fornecimen- um sistema de telefonia ou outro meio eletrônico, e, este sim,
to, pelo contratado (prestador de serviço), dos meios e modos estaria em condições de prestar o serviço de comunicação,
necessários à transmissão e à recepção de mensagens entre o ficando sujeito à incidência do ICMS. O provedor, portanto,
emissor (contratante) e uma terceira pessoa (receptor), apre- precisa de uma terceira pessoa que efetue esse serviço, ser-
sentando-se o contratado como transmissor de informações vindo como canal físico, para que, desse modo, fique estabe-
entre o emitente e a terceira pessoa que, com ele, pretende lecido o vínculo comunicacional entre usuário e Internet 23 '.
comunicar-se. Logo, a hipótese de incidência do ICMS consis- É esse canal físico (empresa de telefonia ou outro meio comu-
tiria, para esse caso, no ato de intermediar a emissão e recep- nicacional) o verdadeiro prestador de serviço de comunicação,
ção de mensagens entre duas ou mais pessoas, podendo ocor- pois é ele quem efetua a transmissão, emissão e recepção de
rer a percussão do imposto apenas na contingência de verifi- mensagens.
car-se uma atividade em que, por força de remuneração, um
A atividade exercida pelo provedor de acesso à Internet
indivíduo (A) forneça condições materiais a outro indivíduo (B)
configura, na realidade, um "serviço de valor adicionado", pois
a fim de que este se comunique com terceira pessoa (C), fun-
aproveita um meio físico de comunicação pré-existente, a ele
cionando como transmissor da mensagem na relação comuni-
cacional. Será possível haver incidência do ICMS apenas se acrescentando elementos que agilitam o fenômeno comunica-
houver um prestador de serviço intermediando a comunicação cional. A própria Norma n. 004/95 define o serviço de conexão
à Internet, em seu item 3, alínea c, como "serviço de valor
entre emissor e receptor.
agregado, que possibilita o acesso à Internet a usuários e pro-
vedores de serviços de informações" e, ao definir "serviço de
3.3.6.4.1. A atividade dos provedores de acesso à internet e a valor agregado", esclarece, nesse mesmo item, alínea b, tratar-
não-incidência do ICMS se de "serviço que acrescenta a uma rede preexistente de
serviço de telecomunicações meios ou recursos que criam no-
Os provedores de acesso à Internet têm, dentre seus
vas utilidades específicas, ou novas atividades produtivas, re-
objetivos sociais, de tornar viável o acesso à rede de comuni-
lacionadas com o acesso, movimentação e recuperação de in-
cação mundial - a Internet. Nos termos da Portaria n. 148/95,
formações".
do Ministério das Comunicações, que aprovou a Norma n.
004/95, Internet é "o nome genérico que designa o conjunto A Lei n. 9.472/97 (Lei Geral de Telecomunicações) ao definir,
de redes, os meios de transmissão e comutação, roteadores, no artigo 61, o que é o serviço de valor adicionado, registra:
equipamentos e protocolos necessários à comunicação entre
computadores, bem como o software e os dados contidos nes- "Serviço de valor adicionado é a atividade que acrescenta
tes computadores". Trata-se de sistema que interliga compu- a um serviço de telecomunicação, que lhe dá suporte e com
tadores por meio dos chamados "protocolos TCP/IP", respon- o qual não se confunde, novas utilidades relacionadas ao
sáveis por uniformizar a transmissão de informações das di- acesso, armazenamento, apresentação, movimentação ou
recuperação de mensagens".
versas redes.
O serviço de conexão à Internet, por si só, não possibilita
a emissão, transmissão ou recepção de informações, deixando 231. No Brasil, os provedores de acesso à Internet contratam empresas de
de enquadrar-se, por isso, no conceito de serviço comunicacio- telefonia, que cobram pelo uso de seus backbones (tronco de comunicação
nal. Para ter acesso à Internet, o usuário deve conectar-se a essencial ao funcionamento da Internet).

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

Dessa menção ao direito positivo já se percebe que o ser- Logo, ao argumentar só existir incidência do ICMS quan-
viço de valor adicionado, embora dê suporte a um serviço de do se verificar uma atividade em que, por força de remunera-
comunicação (telecomunicação), com ele não se confunde, pois ção, um indivíduo (a) forneça condições materiais a outro in-
seu objetivo não é a transmissão, emissão ou recepção de men- divíduo (b) a fim de que este se comunique com terceira pessoa
sagens, o que, nos termos do § I?, do artigo 60, desse Diploma (c), funcionando como transmissor da mensagem na relação
legal, é atribuição do serviço de telecomunicação. A função do comunicacional, estou afirmando que o prestador do serviço é
provedor de acesso à Internet não é efetuar a comunicação, tão-somente aquele que transporta a mensagem. A idéia de
mas apenas facilitar o serviço comunicacional prestado por prestador de serviço de comunicação está ligada, irremediavel-
outrem, no caso, a companhia telefônica. Aproveita uma rede mente, à noção de canal.
de comunicação em funcionamento e a ela agrega mecanismos Comparemos com a prestação de serviço de transportes.
adequados ao trato do armazenamento, movimentação e recu- Suponhamos que um indivíduo "A", pretendendo mudar-se,
peração de informações. contrata duas empresas, sendo uma com a finalidade de orga-
Torna-se preciso advertir: quando assevero instalar-se nizar os bens a serem transportados e colocá-los no caminhão
o laço comunicacional mediante o fornecimento, pelo contra- de mudanças, e outra com a função de levar esses bens até
tado (prestador de serviço), dos meios e modos necessários à outro Município. Pergunta-se: ambas as empresas contratadas
transmissão e à recepção de mensagens entre o emissor (con- sujeitam-se à incidência do ICMS, em decorrência da prestação
tratante) e uma terceira pessoa (receptor), não quero afirmar de serviço de transporte intermunicipal? Resposta: obviamen-
que o mero fornecimento de um aparelho ou serviço que fa- te que não. Apenas quem foi contratado para transportar efe-
cilite a comunicação seja o suficiente para caracterizar pres- tivamente os bens é que se sujeitará a esse tributo. A outra
tação de serviço comunicacional. A entender-se desse modo, empresa, responsável pela organização dos objetos, tornando
estaria compelido a concluir: quando um indivíduo "A" aluga mais rápida a mudança, não presta qualquer espécie de servi-
aparelho e linha telefônica de "B", este estaria obrigado a ço de transporte.
recolher ICMS relativamente ao valor recebido em decorrên- Analogicamente, é o que ocorre com o serviço de acesso
cia da citada locação, já que somente por meio do aparelho e prestado pelo provedor: restringe-se a criar condições mais
da linha telefônica de propriedade de "B" é possível efetiva- objetivas, facilitando, com isso, a instalação do liame comuni-
rem-se laços comunicacionais entre "A" e outros indivíduos. cacional. Porém, não presta, em termos efetivos, serviço de
Isso seria absurdo! comunicação, sendo este praticado por terceiro, geralmente,
232
O exemplo acima aplica-se integralmente no caso dos empresa de telefonia. É o que registra Clélio Chiesa :
provedores de acesso à Internet. Não integram eles o processo
"Nota-se que os provedores de acesso não realizam o trans-
comunicacional, sendo sua função apenas permitir, mediante porte de sinais de comunicação, mas utilizam-se dos siste-
sua aparelhagem, conexão à rede. Assim como na locação de mas de transporte já existentes para o fim de estabelecer o
equipamentos telefônicos, o prestador de serviço de comuni- elo de do usuário com a Internet. Há, portanto, dois serviços
cação continua sendo, unicamente, a empresa de telefonia. É
ela quem transmite informações entre os usuários da Internet
e não os provedores de acesso, que apenas agilitam a função 232. "A tributação dos serviços de Internet prestados pelos provedores: ICMS
do prestador de serviço. ou ISS", in Revista de Direito Tributário, n. 74, p. 202.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

distintos: um de transporte de sinais, viabilizado pelas em- 3.3.6.5. ICMS e tributação sobre prestação de serviços de
presas de telecomunicações, e outro proporcionado pelos transporte
provedores de acesso, representado pela conexão do usuá-
rio à Internet".
Tomemos, a título elucidativo, a hipótese de incidência do
ICMS sobre a prestação de serviços de transporte interestadu-
Seguindo essa mesma linha de raciocínio, Júlio Maria de
al ou intermunicipal, para dissertar sobre os componentes
Oliveira 233 assevera que:
lógicos no fraseado normativo da referida exação. Convém,
desde logo, examinar o critério material da hipótese que se
"o referido provimento de acesso não pode ser enquadrado,
assim, como um serviço de comunicação, pois não atende apresenta com o verbo "prestar" e o complemento "serviços
aos requisitos mínimos que, técnica e legalmente, são exi- de transporte intermunicipal e interestadual", o que sugere,
gidos para tanto, ou seja, o serviço de conexão à Internet de pronto, que não envolve outras condutas senão o compor-
não pode executar as atividades necessárias e suficientes tamento do prestador, consubstanciado na iniciativa, de desen-
para resultarem na emissão, na transmissão, ou na recepção
volver ação em favor de outro sujeito de direito, com conteúdo
de sinais de telecomunicação. Nos moldes regulamentares,
é um serviço de valor adicionado, pois aproveita de uma
econômico, e da qual resulte o transporte intermunicipal ou
rede de comunicação em funcionamento e agrega mecanis- interestadual de bens ou de pessoas. Exclui-se,, por inadmissí-
mos adequados ao trato do armazenamento, movimentação vel, o auto-serviço ou serviço prestado a si mesmo, pela refle-
e recuperação de informações". xividade que lhe é própria e que acarreta a inexistência de
caráter econômico na atividade desenvolvida.
Claro está, portanto, que o serviço prestado pelo provedor
Assinale-se também que, ao adjudicar aos Estados e ao
não é de comunicação. Tendo em vista a necessidade de um
Distrito Federal a competência para instituir ICMS, a Consti-
emissor, um canal e um receptor, a fim de que essa espécie de
serviço se efetive, o canal, ou seja, o transportador dos sinais, tuição da República circunscreveu suas prerrogativas a dois
é que será o prestador. E, no caso, essa atividade não é prati- tipos de serviço de transporte: o interestadual e o intermuni-
cada pelo provedor de acesso, mas sim pela companhia telefô- cipal. Equivale a dizer que o serviço de transporte internacio-
nica (ou outro meio que lhe faça as vezes). nal ficou imune ao ICMS e as imunidades tributárias interpre-
tam-se amplamente.
Em conclusão, os provedores de acesso à Internet não
configuram o "canal" realizador da comunicação; não colocam Amílcar de Araújo Falcão 234 estabelece a diferença:
à disposição do usuário os meios e modos necessários à trans-
missão e recepção de mensagens. Sua tarefa, por conseguinte, "... além da importância que possui sob o ponto de vista
não é prestar serviço de comunicação, mas tornar mais eficien- doutrinário ou teórico, tem consequências práticas impor-
tantes, no que se refere à interpretação dos princípios
te o serviço comunicacional prestado por outra empresa. É,
constitucionais que estabelecem imunidades tributárias.
simplesmente, um serviço de valor adicionado, ou seja, serviço É que sendo a isenção urna exceção à regra de que, haven-
agregado a outro serviço, este sim de comunicação. Não pode, do incidência, deve ser exigido o pagamento do tributo, a
por tais motivos, ser objeto de tributação pelo ICMS.

234. "Imunidade e isenção tributária - instituição de assistência social", in


233. Internet e competência tributária, São Paulo, Dialética, 2001, p. 123. Revista de Direito Administrativo, n. 66, p. 372.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

interpretação dos preceitos que estabeleçam isenção deve externa (se a prestação de serviços exigir a ultrapassagem do
ser estreita, restritiva. Inversamente, a interpretação, quer território de mais de um Estado).
nos casos de incidência, quer nos de não-incidência, quer,
portanto, nos de imunidade, é ampla, no sentido de que Assinale-se que o ICMS não incide sobre o transporte,
todos os métodos, inclusive o sistemático, o teleológico, etc., mas, sim, sobre o serviço de transporte interestadual ou inter-
são admitidos". municipal, seja ele realizado por via terrestre, aérea ou hidro-
viária. Alcança, portanto, os transportes de passageiros, de
O legislador constituinte preservou o princípio da não one- cargas, de valores, de mercadorias, etc., bastando que o servi-
ração das exportações com tributos que possam afetar a inserção ço seja objeto de contratação autonomamente considerada.
comercial brasileira no mercado internacional, ao limitar a per- São quaisquer serviços de transporte prestados sob o regime
cussão do ICMS aos serviços de transporte intermunicipal e in- de direito privado, submetidos a tratamento jurídico próprio,
terestadual. Aliás, a competência para a tributação do comércio isto é, aqueles colocados no mundo dos negócios e subordina-
exterior tradicionalmente cabe à União, nos termos do artigo 153, dos a um ajuste autônomo de vontades, em clima de igualdade
I e II, da Constituição da República, o que permite dizer que os das partes contratantes.
Estados e o Distrito Federal não podem interferir, mediante tri-
butação, nas operações ligadas ao comércio internacional. 3.3.6.5.1. Limites do conceito "operação de transporte" nos
O critério espacial é qualquer lugar em que o serviço seja contratos complexos
prestado, desde que situado sob o manto da lei estadual. O cri-
Para bem demarcar o campo de atuação, no que concerne
tério temporal está fixado no átimo da entrega do serviço exe-
à prestação de serviço que pode ser alcançada pelo ICMS, vale
cutado. De nada adiantaria o desenvolvimento do trabalho, sem
dizer que transportar é conduzir mercadorias, bens, documen-
que fosse direcionado ao seu destinatário, sendo-lhe entregue.
tos, cargas ou passageiros, de um canto para outro, seja por via
Óbvio está que na hipótese de serviço encomendado por um
terrestre, aérea ou hidroviária.
sujeito, mas entregue a outro, que o aceita, este último será o
destinatário, constituindo-se a prestação. Restaria ao primeiro Enquanto negócio jurídico, na esfera do Direito Comercial,
reivindicar os danos porventura ocorridos ou formular nova transporte
encomenda. Para os fins da regra-matriz, aconteceu a incidência
e nasceu a obrigação tributária. "é o contrato em que uma pessoa ou empresa se obriga,
mediante retribuição, a transportar, de um local para outro,
No consequente, temos o critério pessoal, que permite pessoas ou coisas animadas ou inanimadas, por via terres-
identificar como sujeito ativo os Estados ou o Distrito Federal tre, aquaviária, ferroviária ou aérea. Celebra-se entre o
e, como sujeito passivo, o transportador, desde que a prestação transportador e a pessoa que vai ser transportada (viajante
de serviços seja efetuada de um para outro Estado ou para o ou passageiro) ou quem entrega o objeto (remetente ou
Distrito Federal ou do Distrito Federal para outro Estado ou expedidor). O destinatário, ou consignatário, a quem a
mercadoria deve ser expedida não é contratante, embora,
de um Município para outro estando situados dentro de uma
eventualmente, tenha alguns deveres e até mesmo direitos
mesma unidade federativa. contra o transportador" .
235

O critério quantitativo indica como base de cálculo o valor


atribuído à prestação de serviço pactuada, enquanto a alíquota
que irá incidir poderá ser a interna (nas prestações de serviços 235. Maria Helena Diniz, Dicionário jurídico, vol. 4, São Paulo, Saraiva, 1998,
de transporte entre Municípios de um mesmo Estado) ou a p. 614.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

Entre as formas de transporte indicadas pela legislação relações de comércio entre os países, permitindo o trânsito
federal (Lei n. 6.288/75) incluem-se: veloz de documentos e bens, conduzidos com eficiência, no
trajeto que vai do remetente ao destinatário. Nessa condição,
"I - Modal - quando a mercadoria é transportada utilizan- não podem ser tomados como serviços de simples transporte,
do-se apenas um meio de transporte; já que envolvem contrato complexo, com diferentes obrigações
II - Segmentado - quando se utilizam veículos diferentes e para serem observadas por ambas as partes - contratante e
serão contratados separadamente os vários serviços e os contratada.
diferentes transportadores que terão a seu cargo a condução
da mercadoria do ponto de expedição até o destino final; A legislação estadual paulista, no seu âmbito de compe-
III - Sucessivo - quando a mercadoria, para alcançar o tência, limitou-se a estabelecer "deveres instrumentais" a se-
destino final, necessita ser transportada para prossegui- rem cumpridos pelas empresas de courier. No artigo 1 2 do
mento em veículo da mesma modalidade de transporte; Anexo XV (Transporte de mercadoria decorrente de encomen-
IV - Intermodal - quando a mercadoria é transportada da aérea internacional por empresa de "courier" ou a ela equi-
utilizando-se duas ou mais modalidades de transporte" (art. parada), baixado pelo Decreto n. 45.490/00, estatui:
8 2 da Lei mencionada).
"A mercadoria ou bem contidos em encomenda aérea in-
Fixemos em uma dessas formas, buscando demonstrar o ternacional transportada por empresa de "courier" ou a ela
regime jurídico tributário aplicável à situação. Tomemos como equiparada, até sua entrega ao destinatário paulista, serão
exemplo uma empresa que exerce atividade de transporte acompanhados, no seu transporte, do Conhecimento de
internacional. Já vimos que não se poderá incluir nos domínios Transporte Aéreo Internacional (AWB), da fatura comer-
competenciais do legislador essa atividade, visto que o próprio cial e, quando devido o imposto, da Guia Nacional de
Texto Maior definiu o campo legiferante dos Estados e do Dis- Recolhimento de Tributos Estaduais - GNRE ou, em caso
de não-sujeição ao pagamento do imposto, pela guia de
trito Federal, circunscrevendo-o à instituição de impostos sobre
exoneração do ICMS, que poderá, quando exigida, ser
prestação de serviços de transporte interestadual e intermu- providenciada pela empresa de "courier" na repartição
nicipal, como se vê do artigo 155, II. Em decorrência, portanto, fiscal competente".
não se sujeita à obrigatoriedade de emissão de conhecimento
de Transporte - CTRC, estatuído pela Instrução Normativa A partir dessas notas, pode dizer-se que, consoante o tipo
Conjunta n. 58, da Secretaria da Receita Federal e da Secretaria de carga (pessoas ou coisas) e conforme a modalidade de loco-
Nacional dos Transportes. Os negócios que envolvam transpor-
moção (terrestre, aérea ou hidroviária), o objeto será sempre
te internacional não estarão, por esse modo, sujeitos ao ICMS,
o transporte, devendo o transportador utilizar o veículo e res-
precisamente porque não há como a regra jurídica desse impos-
ponsabilizar-se pelos riscos próprios desse tipo de avença.
to neles incidir.
Não importa se a contratada efetivará diretamente, ou
Por outro lado, uma empresa que desempenhe, no Brasil,
não, a prestação de serviços de transporte, mas, sim, que a ela
a atividade de courier, que se caracteriza pelo transporte ur-
caberá a responsabilidade direta pela coleta e entrega nos locais
gente de documentos e encomendas, por exemplo, distingue-se
previamente designados.
do convencional transporte de carga justamente pelo aspecto
de rapidez inerente a essa peculiar forma de prestação de ser- Ora, o que importa é o simples fato de o transportador
viços, que passou a ser indispensável ao desenvolvimento das conduzir a carga do ponto de partida ao destino demarcado.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

Utilizar-se de meios próprios ou de terceiros não modifica a "o transporte de natureza internacional — ainda que parte do
natureza das coisas: o contrato não tem modificada sua carac- percurso seja feita em território nacional (normalmente
terística de internacional, se assim era a obrigação assumida. entre o local de saída da mercadoria e a divisa com o país
vizinho) — não é fato alcançado pela incidência do imposto;
Aquilo que interessa ao contratante é ter sua encomenda ou
essa execução não admite a forma mista do contrato de
documento entregue no destino indicado, e que isto seja feito transporte, pois, sendo ele único, assim como o veículo trans-
pela empresa contratada, independentemente dos meios em- portador, cujo itinerário liga dois pontos extremados em
pregados para tanto. países diferentes, é serviço de natureza internacional que
extrapola o limite de incidência definido no texto legal; a
Conclui-se que a prestação do serviço de transporte in- circunstância de que uma parte da execução esteja compre-
ternacional é atividade-fim, enquanto a entrega do bem a endida na hipótese de incidência é acidental, pois todo o
destinatário localizado em território nacional é atividade-meio, percurso é o que caracteriza o transporte internacional" 236 .
imprescindível à concretização da citada atividade-fim. Trata-
se de prestação completamente vinculada ao fim perseguido, Tal entendimento deve ser integralmente aplicado aos
qual seja, o transporte internacional. casos em que a empresa de transporte internacional, para maior
celeridade ou em razão de peculiaridades do país, efetua sub-
Em consequência, sendo o alvo de tributação por via de contratação para fins de implementar o serviço no território
ICMS apenas a prestação de serviço de transporte estritamen- nacional. É o chamado "transbordo", cuja característica não é
te nacional (entre Estados ou Municípios), aquele serviço de a de uma nova prestação de serviço, mas de simples continui-
transporte realizado em território nacional, mas, com o escopo dade da prestação de serviço internacional. Não há, portanto,
de cumprir contrato de transporte internacional, fica fora do dois contratos de transporte, mas apenas um, da espécie "in-
âmbito de incidência do citado imposto, por tratar-se de mera termodal", em que a carga é transportada em todo o percurso
atividade-meio relativamente a um serviço não passível de utilizando duas ou mais modalidades de transporte, abrangidas
imposição pelo ICMS. Neste caso, o transporte efetuado dentro por um único contrato de transporte.
do território nacional inclui-se, indissociavelmente, no trans- Demonstráramos aqui um dos panoramas possíveis desses
porte internacional, não podendo ser considerado isoladamen- contratos complexos de transporte, sendo sempre recomendá-
te, para fins de tributação pelo ICMS. Não teria fundamento, vel a cada tipo contratual percorrer tais incisões para fins de
juridicamente, pretender desmembrar as várias atividades- descobrir o regime jurídico de cada uma dessas espécies de
meio necessárias à prestação em tela, como se fossem serviços avença no direito tributário.
de transporte "parciais", pois o transporte praticado pela em-
presa contratada é mera "fase" indispensável à consecução do 3.3.6.6. ICMS incidente sobre a "realização de operações de
contrato de transporte internacional. No território nacional importação de mercadorias" 237 : seus critérios material
são praticados simplesmente atos necessários à implementação e temporal
de serviços de caráter internacional, que só se concretizam
quando realizados entre um ponto do território brasileiro e
outro ponto no exterior. 236.Consulta n. 113/90, de 24.10.90, Boletim Tributário 448, série A.
237.Ao discorrer sobre o ICMS incidente sobre operações de importação,
A própria Fazenda de São Paulo já se manifestou no sen- utilizo, indistintamente, os vocábulos "mercadorias" e "bens". Conquanto
tido de que essas palavras costumem ter significações diferentes, quando relacionadas

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

Ainda com relação à hipótese de incidência do ICMS, Recorde-se, nesta oportunidade, que sendo a República
interessa agora elucidar acerca da "realização de operações de Federativa do Brasil um país onde se adota o regime democrá-
importação de mercadorias", ou, comumentemente chamado tico de governo, os membros das nossas Casas Legislativas
o "ICMS-importação". Prescreve o artigo 155, incisos II, § 2s, representam os vários segmentos da sociedade. Alguns são
e IX, a, da Constituição de 1988 que: médicos, outros bancários, industriais, agricultores, engenhei-
ros, advogados, dentistas, comerciantes, operários, etc., o que
"Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir confere um forte caráter de heterogeneidade, peculiar aos
impostos sobre: regimes que se queiram representativos. Essas ponderações
(...) nos permitem compreender o porquê dos erros, improprieda-
II — operações relativas à circulação de mercadorias e sobre des, atecnias, deficiências e ambiguidades, que os textos legais,
prestações de serviços de transporte interestadual e inter- inclusive a Constituição, cursivamente apresentam. Não é, de
municipal e de comunicação, ainda que as operações e as forma alguma, o resultado de um trabalho sistematizado cien-
prestações se iniciem no exterior; tificamente. E ainda que sejam nomeadas comissões encarre-
(...) gadas de cuidar dos aspectos formais e jurídico-constitucionais
§ 2 2 O imposto previsto no inciso II atenderá ao seguinte: dos diversos estatutos, prevalece a formação extremamente
(...) heterogênea que as caracteriza.
IX — incidirá também: Por essa razão, ao ingressarmos na interpretação do di-
a) sobre a entrada de bem ou mercadoria importados do reito posto, tal fator há de ser impreterivelmente considerado.
exterior por pessoa física ou jurídica, ainda que não seja O sentido das construções utilizadas pelo legislador não deve
contribuinte habitual do imposto, qualquer que seja a sua ser buscado na linguagem ordinária, repleta de imprecisões.
finalidade, assim como sobre o serviço prestado no exterior,
Mister se faz que a interpretação dos textos jurídicos se dê a
cabendo o imposto ao Estado onde estiver situado o domi-
partir das significações atribuídas pelo discurso científico, pois
cílio ou o estabelecimento do destinatário da mercadoria,
somente dessa maneira será possível alcançar-se o padrão
bem ou serviço; (...)" 238 .
preciso que aquele tipo de mensagem requer.
A literalidade do texto constitucional poderia levar o in- Exemplo das mencionadas equivocidades legislativas é a
térprete desavisado a concluir que a mera entrada de merca- desarrazoada confusão entre os critérios material e temporal
doria importada do exterior seria suficiente à caracterização das exações tributárias. Progrediu, em todos os diplomas nor-
do fato jurídico tributário, sendo esse o núcleo tributável do mativos de que temos conhecimento, esse vezo impróprio e
"ICMS-importação". Trata-se de erro crasso, que só mediante descabido de tomar como "fato gerador" do imposto o critério
compreensão sistêmica da Carta Magna é possível superar. temporal de sua hipótese de incidência. A isso havemos de
debitar boa parte do atraso no esclarecimento de importantes
aspectos da intimidade estrutural de alguns impostos.
a importações acabam por assumir feição idêntica: todo bem importado
A confirmação dessa tendência é denunciada pelo próprio
configura, de certa forma, uma mercadoria, pois decorrente de operação
jurídica que acarretou a transferência de sua titularidade (de sujeito situado Texto Supremo, no dispositivo que define a incidência do ICMS-
no exterior para pessoa estabelecida no território nacional). i mportação: o constituinte definiu a incidência considerando a
238. Redação conferida pela Emenda Constitucional n. 33/2001. entrada no território nacional de mercadorias importadas, sem

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ater-se ao fato de que essa entrada, realizada por ocasião do b) Sujeito passivo
desembaraço aduaneiro, nada mais é que o instante em que se
Nos impostos incidentes sobre operações de importação,
verifica a concretização da materialidade, consistente na ope-
ração de importação. assume o papel de sujeito passivo quem realiza a conduta de
"importar". Em outras palavras, contribuinte dessa espécie de
A conclusão alcançada não poderia ser diversa, pois que i mposto é a pessoa cujo nome está consignado na declaração de
o ICMS incide sempre sobre "operações", sejam elas relativas i mportação, por ser este, unicamente, quem promove a intro-
à circulação de mercadorias ou a prestações de serviços de dução de mercadorias estrangeiras no país, como resultado de
transporte interestadual, intermunicipal, ou de comunicação. negócio jurídico por ele praticado. Essa afirmativa abrange,
E isso se aplica integralmente ao imposto estadual que recai inclusive, o ICMS-importação: consistindo sua materialidade na
sobre as importações. "realização de operações de importação", o sujeito passivo será
"Importar", em termos jurídicos, significa trazer produtos a pessoa que praticar referida conduta - o importador.
originários de outro país para dentro do território brasileiro, Procurando elucidar o assunto e evitar conflitos de com-
com o objetivo de permanência. Tal situação somente se con- petência, explicitou o constituinte que o ICMS incidente sobre
cretiza quando presente uma operação jurídica subjacente, não operações de importação de mercadorias "caberá ao Estado
sendo fato jurídico tributário do ICMS a mera entrada no Bra- onde estiver situado o domicílio ou o estabelecimento do des-
sil ou circulação física de produtos estrangeiros em nosso tinatário da mercadoria". Por destinatário deve-se entender o
território. O critério material desse imposto é, portanto, impor- adquirente, importador, aquele a quem a mercadoria estran-
tar mercadorias do exterior, ou seja, realizar operações de im- geira foi juridicamente remetida, sob pena de a interpretação
portação de mercadorias do exterior, sendo a entrada no terri- ser conflitante com outros dispositivos constitucionais.
tório pátrio, pelo desembaraço aduaneiro, apenas a delimitação
Partindo de tais premissas, chegamos a duas conclusões
de tempo em que se considera ocorrido aquele fato básico.
de extrema relevância para a solução de dúvidas comumente
Aplicando os conceitos da regra-matriz de incidência surgidas na experiência com operações dessa natureza:
nesta exação, identificamos, como sujeito ativo, o Estado ou
Distrito Federal onde se realiza a operação jurídica de impor- (i) Não interessa, para fins jurídico-tributários, o local onde
tação de mercadorias, enquanto o sujeito passivo é o importa- se dá o desembaraço aduaneiro, pois o ICMS-importação
dor, aquele que praticou o fato descrito na hipótese tributária, não cabe ao Estado onde ocorreu o ato físico de entrada no
conforme a seguir exposto. território nacional, mas àquele onde se localiza o sujeito
passivo do tributo, destinatário da operação importadora.
a) Sujeito ativo
(ii) Caso a importação tenha sido feita para terceiros,
Aplicadas as diretrizes gerais do artigo 155, inciso II, e mediante contratação de revenda do bem importado, é
§ 2 2 , inciso IX, a, da Constituição da República, verificamos desnecessário o ingresso físico da mercadoria no estabe-
ser o ICMS-importação de competência dos Estados e do lecimento do importador, podendo esta ser diretamente
Distrito Federal, os quais, salvo hipóteses de transferência remetida ao adquirente interno. Neste caso, temos duas
da capacidade tributária ativa, figuram como titulares do operações: uma de importação; outra, interna. E, sendo o
direito subjetivo de perceber as prestações pecuniárias con- destino jurídico do produto importado o critério de deter-
cernentes a operações de importação que se realizem nos minação do sujeito ativo, este permanece inalterado em
li mites do seu território. face de negócios jurídicos posteriores.
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

A utilidade de tais conclusões é facilmente observada nas autoriza a exigência do ICMS-importação por este segundo
hipóteses em que o importador se encontra estabelecido em ente político, visto que a "operação jurídica" é concretizada
Estado "A", diverso daquele onde se deu o desembaraço adu- com sujeito passivo localizado em outro local.
aneiro (Estado "B"), sendo a mercadoria remetida a adquiren-
Efetuados esses esclarecimentos, convém apontar a in-
te situado em terceiro Estado ("C").
compatibilidade do disposto no artigo 11, inciso I, alínea d, da
Considerando que o critério material do imposto analisa- Lei Complementar n. 87/96, com o perfil constitucional do ICMS
do consiste em "realizar operações de importação de merca- incidente sobre operações de importação. O legislador comple-
dorias", e que possui capacidade tributária para sua exigência mentar, deixando-se levar pela aparente indicação da "entrada
o Estado para o qual o bem importado for juridicamente des- do bem ou mercadoria importados" como conteúdo material
tinado, o ICMS-importação é sempre devido à pessoa política desse imposto, determinou, equivocadamente, considerar-se
onde estiver localizado o estabelecimento do importador (no local da operação importadora o do estabelecimento onde
exemplo, Estado "A"), pouco importando se o desembaraço ocorrer a entrada física. Prescrição desse teor, entretanto, além
aduaneiro, com consequente entrada física do bem, ocorreu de afrontar o Texto Magno, abriga contradição interna: no
em Estado diverso ("B"). A Constituição ordena que, para fins caput do dispositivo reconhece que o fato jurídico tributário
de tributação pelo ICMS, interessa o local onde se deu a ope- consiste na prática de "operação", mas na alínea b do inciso I
ração jurídica de importação, consistente no Estado do esta- exige, para sua concretude, "entrada física". Logo, é inconsis-
belecimento ou domicílio que a promoveu. O desembaraço tente a estipulação ali contida, não encontrando fundamento
aduaneiro, no caso, é apenas o instrumento que fixa o tempo na ordem jurídica constitucional vigente.
em que a importação se materializa.
Quanto ao sujeito ativo, nada se altera quando a impor- 3.3.6.7. O caráter nacional do ICMS
tação tenha sido realizada para terceiros, atuando o importador
como Trading Company e remetendo-as aos adquirentes situ- Para encerrar este capítulo, parece-me importante res-
ados em outro Estado ("C"). Primeiramente, porque a tributa- saltar o caráter nacional do ICMS, máxima que sobressai do
ção recai sobre a "operação jurídica de importação", cabendo sistema com grande vigor de juridicidade. Não se aloja na for-
o imposto ao Estado onde está situado o destinatário do negó- mulação expressa de qualquer dos dispositivos constitucionais
cio, na figura do importador. Além disso, as "circulações físicas" tributários, mas está presente nas dobras de inúmeros precei-
não apresentam relevo para fins tributários, devendo, sim, a tos, irradiando sua força por toda a extensão da geografia
realização de "operações jurídicas" ser considerada como fato desse imposto. Seu relevo é tal que, sem o invocarmos, fica
tributável, com implicações na delimitação do sujeito ativo. Por praticamente impossível a compreensão da regra-matriz do
fi m, impõe consignar que o preceito constitucional não se re- ICMS em sua plenitude sintática e na sua projeção semântica.
fere a estabelecimento do destinatário "final", último adqui- Os conceitos de operação interna, interestadual e de importa-
rente da mercadoria na cadeia circulatória que teve início com ção; de compensação do imposto, de base de cálculo e de alí-
a importação. Em face de todas essas considerações, concluo quota, bem como de isenção e de outros "benefícios fiscais",
que a circunstância de os bens importados não transitarem estão diretamente relacionados com diplomas normativos de
fisicamente pelo estabelecimento do importador, sendo dire- âmbito nacional, válidos, por mecanismos de integração, para
tamente remetidas a adquirente situado em outro Estado, não todo o território brasileiro.
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A trama normativa das regras de caráter nacional sobre mostra, por um lado, que as competências se exprimem como
impostos federais, estaduais e municipais é, hoje, verdadeira- faculdades (F) outorgadas às pessoas políticas. No ISS essa
mente densa e numerosa. Alcança todos os impostos, além das situação é muito comum, onde encontramos diversos Municí-
taxas e das contribuições, mas com relação ao ICMS excede os pios que deixaram de criá-lo, buscando, com isso, estimular a
limites da tradição legislativa brasileira. Não há setor do qua- política extrafiscal interna do Município.
dro positivo desse tributo que não experimente forte e decidi-
Nesse capítulo, o caminho que empreenderemos não será
da influência de preceitos do sistema nacional. Sua própria
outro que o de começar pela investigação da regra-matriz de
instituição não é faculdade dos Estados e do Distrito Federal:
incidência do gravame municipal a partir das delimitações
é procedimento regulado com o modal "O" (obrigatório), ao
competenciais no altiplano das normas de competência da
contrário do que sucede com as demais figuras de tributos. O
Constituição da República. Nesse sentido, armamos o arcabou-
titular da competência impositiva do ICMS não pode deixar de
ço da norma-padrão do ISS. A partir desse estudo, encontra-
legislar, ficando tolhido a disciplinar o imposto consoante os
remos as peculiaridades do imposto, como alguns casos de
traços que o constituinte esboçou. Neste sentido, o comando
tributos fixos, como, por exemplo, o ISS na faixa de incidência
da uniformização vem de cima para baixo, de tal sorte que as
que atinge os profissionais liberais.
regras-matrizes de incidência, expedidas pelos Estados e pelo
Distrito Federal, terão que manter praticamente os mesmos
conteúdos semânticos. Não há como admitir legislações dis- 3.3.7.1. Competência legislativa e ISS
crepantes, no que concerne ao núcleo da incidência, de modo
Foi-me dado observar no curso de capítulos anteriores
que ao lado da homogeneidade sintática, qualidade de todas
que o constituinte elegeu a legislação complementar como
as normas jurídicas do sistema, constituídas da mesma forma
veículo apto para pormenorizar, de forma cuidadosa, as várias
lógica (juízo condicional), encontraremos pronunciada coinci-
outorgas de competência atribuídas às pessoas políticas, com-
dência de significações.
patibilizando interesses locais, regionais e federais, debaixo de
Falando pela via ordinária, os titulares da competência disciplina unitária, verdadeiro corpo de regras de âmbito na-
para instituir o ICMS não podem deixar de fazê-lo e, além cional, sempre que os elevados valores, plasmados no Texto
disso, terão que seguir os termos estritos que as leis comple- Supremo, estiverem em jogo. A regra é a franca utilização das
mentares e as resoluções do Senado prescrevem, por virtude competências constitucionais pelas entidades políticas porta-
de mandamentos constitucionais. doras de autonomia. Quando, porém, qualquer daquelas dire-
trizes da Lei Maior estiver na iminência de ser violada, pelo
exercício regular da atividade legiferante das pessoas políticas,
3.3.7. Impostos sobre prestação de serviços de qualquer
podendo configurar-se conflito jurídico no campo das produ-
natureza
ções normativas, ingressa a lei complementar colocando no
O sistema constitucional brasileiro estipulou elementos ordenamento "normas gerais de direito tributário", para atuar
relevantes para a compostura da fisionomia jurídica dos im- na elucidação dos âmbitos competenciais tributários, regendo
postos adjudicados aos entes tributantes. Todavia, a despeito matérias que, a juízo do constituinte, parecem suscitar maior
de terem competência para tanto, da maneira em que foi pro- vigilância, merecendo, portanto, cuidados especiais.
posta a organização da matéria, as entidades políticas, salvo No que diz respeito ao ISS, além das funções referidas
algumas exceções, não são obrigadas a impor tributos. Isso nos genericamente pelo art. 146 do Texto Maior, o constituinte
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

conferiu à lei complementar a específica atribuição de delimi- constitucionais de competência. É o que ocorre com o Decreto-
tar os serviços tributáveis (art. 156, III): lei n. 406/68 (com a redação dada pela Lei Complementar n.
56/87) e com a Lei Complementar n. 116/2003, do mesmo modo,
"Art. 156. Compete aos Municípios instituir imposto sobre: com as legislações municipais, cujos termos só podem ser com-
(...)
preendidos se considerada a totalidade sistêmica do ordena-
III - serviços de qualquer natureza, não compreendidos no mento, respeitando-se os limites impostos pela Constituição à
art. 155, II, definidos em lei complementar". disciplina do ISS.

Diante da complexidade desse imposto e visando a 3.3.7.2. Aspectos constitucionais da regra-matriz de incidência
evitar eventuais conflitos de competência, o constituinte do ISS
houve por bem eleger a lei complementar como veículo in-
trodutor de normas jurídicas tributárias definidoras de quais O ISS, de competência municipal, encontra seu funda-
sejam os serviços de qualquer natureza, susceptíveis de tri- mento normativo previamente referido no Estatuto Maior. É o
butação pelos Municípios. Essa é uma das matérias que que se percebe da leitura do art. 156, III, o qual dispõe compe-
aquele legislador considerou especial e merecedora de maior tir aos Municípios a instituição de impostos sobre "serviços de
vigilância, demandando disciplina cuidadosa, a ser introdu- qualquer natureza, não compreendidos no art. 155, II, definidos
zida no ordenamento mediante instrumento normativo de em lei complementar". Preenchendo o arranjo sintático da re-
posição intercalar, em decorrência de seu procedimento gra-matriz de incidência tributária com a linguagem do direi-
legislativo mais complexo. Eis caso típico do papel de ajuste to positivo, vale dizer, saturando as variáveis lógicas com o
reservado à legislação complementar para garantir a har- conteúdo semântico constitucionalmente previsto, construo a
monia que o sistema requer. seguinte norma-padrão do ISS:
Essa tarefa, no entanto, assim como quaisquer outras
reservadas à lei complementar, há de ser analisada no contex- Hipótese:
to constitucional. Não podemos esquecer que a lei complemen- • critério material: prestar serviços de qualquer natureza,
tar configura mecanismo de ajuste que assegura o funciona- excetuando-se os serviços de transporte interestadual e
mento do sistema, prevenindo conflitos de competência. Logo, intermunicipal e de comunicação;
ao dispor sobre quaisquer dos assuntos a que se refere o art.
• critério espacial: âmbito territorial do Município;
146 da Constituição, e, mais especificamente, o art. 156, III,
desse Diploma normativo, o legislador infraconstitucional deve • critério temporal: momento da prestação do serviço.
ater-se à tarefa de elucidar e reforçar os comandos veiculados
pelo constituinte. É-lhe terminantemente vedado extrapolar Consequência:
tal função, inovando e prescrevendo condutas diversas daque- • critério pessoal: sujeito ativo: Município 239 ; sujeito pas-
las referidas pelo Texto Magno. sivo: prestador do serviço;
Tal ordem de esclarecimentos assume relevância não
apenas perante a atividade do legislador, mas também do in-
térprete: limita a atuação do primeiro e orienta a do segundo. 239. Impende consignar que o Distrito Federal também é competente para
Por isso, o exame de qualquer texto de lei complementar em instituir os impostos municipais, conforme disposto nos arts. 32, § 1°, e 147,
matéria tributária há de ser efetuado de acordo com as regras do Texto Constitucional.

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• critério quantitativo: base de cálculo: preço do serviço; Distrito Federal, nos termos do art. 155, II, desse mesmo Do-
alíquota: aquela prevista na legislação do imposto. cumento normativo.

Quero advertir que o esquema da regra-matriz de inci- Examinando o conteúdo significativo da expressão "ser-
dência é uma fórmula simplificadora, reduzindo, drastica- viços de qualquer natureza", empregada pelo constituinte para
mente, as dificuldades do feixe de enunciados constituidores fins de incidência desse gravame, percebe-se, desde logo, que
da figura impositiva. Obviamente, não esgota as especulações o conceito de "prestação de serviço", nos termos da previsão
que a leitura do texto suscita, porquanto o legislador lida com constitucional, não coincide com o sentido que lhe é comumen-
múltiplos dados da experiência, promovendo mutações que te atribuído no domínio da linguagem ordinária. Na dimensão
atingem o sujeito passivo, o tempo da ocorrência factual, as de significado daquela frase não se incluem: a) o serviço públi-
condições de espaço, a alíquota e as formas de mensurar o co, tendo em vista ser ele abrangido pela imunidade (art. 150,
núcleo do acontecimento. Essa gama de liberdade legislativa, IV, a, da Carta Fundamental); b) o trabalho realizado para si
próprio, despido que é de natureza econômica; e c) o trabalho
contudo, não pode ultrapassar os limites lógicos que a regra-
efetuado em relação de subordinação, abrangido pelo vínculo
matriz comporta. Se as mutações chegarem ao ponto de mo-
empregatício.
dificar os dados essenciais da hipótese e, indo além, imprimir
alterações na base de cálculo, estaremos, certamente, diante Marçal Justen Filho 240 , ao versar o tema do critério mate-
de violação à competência constitucionalmente traçada. O rial do ISS, assim como estabelecido na atribuição constitucio-
emprego desse modelo normativo apresenta, portanto, extre- nal de competência, e pondo ênfase na exclusão das atuosida-
ma utilidade, possibilitando esclarecer questões jurídicas des praticadas segundo as regras do direito do trabalho, afirma
mediante a exibição das fronteiras dentro das quais o legis- que é a "prestação de utilidade (material ou não) de qualquer
lador e o aplicador das normas devem manter-se para não natureza, efetuada sob regime de Direito privado mas não sob
ofender o Texto Constitucional. regime trabalhista, qualificável juridicamente como execução
de obrigação de fazer, decorrente de um contrato bilateral".
3.3.7.2.1. Critério material da regra matriz do ISS
-
Para configurar-se a prestação de serviços é necessário
que ocorra o exercício, por parte de alguém (prestador), de
Critério material é o núcleo do conceito mencionado na atuação que tenha por objetivo produzir uma utilidade relati-
hipótese normativa. Nele há referência ao comportamento de vamente a outra pessoa (tomador), a qual remunera o prestador
pessoas físicas ou jurídicas, cuja verificação em determinadas (preço do serviço). Prestar serviços é atividade irreflexiva,
coordenadas de tempo e espaço, acompanhadas do relato pela reivindicando, em sua composição, o caráter da bilateralidade.
linguagem prevista no ordenamento, acarretará o fenômeno Em vista disso, torna-se invariavelmente necessária a existên-
da percussão tributária. No caso do ISS, esse núcleo é repre- cia de duas pessoas diversas, na condição de prestador e de
sentado pelo verbo "prestar", acompanhado do complemento tomador, não podendo cogitar-se de alguém que preste serviço
"serviços de qualquer natureza", fazendo-se necessário con- a si mesmo. E mais, é imprescindível que o contrato bilateral
signar que a referida locução não engloba os serviços de trans-
porte interestadual e intermunicipal e de comunicação, por
expressa previsão do art. 156, III, da Carta Magna, bem como 240. O ISS, a Constituição de 1988 e o Decreto-lei n. 406, in Revista Dialética
por integrarem o âmbito de competência dos Estados e do de Direito Tributário, São Paulo, Oliveira Rocha, 1995, p. 66.

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tenha conteúdo econômico, fixando-se um "preço" em contra- (i) o sistema nacional; (ii) o sistema federal; (iii) os sistemas
prestação à utilidade imaterial fornecida pelo prestador. A estaduais; e (iv) os sistemas municipais.
necessidade de que a prestação de serviço seja remunerada,
Se as diferenças entre a ordem federal, a estadual e a
apresentando, assim, substância econômica, é decorrência
municipal são claramente perceptíveis, fato idêntico não suce-
direta do princípio da capacidade contributiva. Com efeito, a
de entre a organização judiciária do Estado federal (sistema
hipótese tributária de qualquer exação deve descrever fato
nacional) e a da União (sistema federal). Para tanto, em traba-
realizado por pessoa que manifeste, objetivamente, riqueza.
lho insuperável, Oswaldo Aranha Bandeira de Mello 241 apre-
Ao recortar, no plano da realidade social, aqueles fatos que
senta os sinais correspondentes aos dois arranjos, de forma
julga de porte adequado para fazer nascer a obrigação tribu-
precisa e juridicamente escorreita, dizendo que são ordens
tária, o legislador deve sair à procura de acontecimentos pas-
jurídicas especiais, visto que as respectivas competências se
síveis de serem medidos segundo parâmetros econômicos, uma
circunscrevem aos campos materiais que lhe são indicados pela
vez que o vínculo jurídico a eles atrelado deve ter como objeto
ordem jurídica total.
prestação pecuniária. É evidente que de uma ocorrência in-
susceptível de avaliação patrimonial jamais se conseguirão A Carta Magna, ao estruturar a República brasileira como
cifras monetárias que traduzam, de alguma forma, valor em sistema federativo de governo, imprimindo autonomia às pes-
dinheiro. soas jurídicas de direito público interno, representadas pela
União, Estados, Distrito Federal e Municípios, atribuiu função
A mais desse fator, é forçoso que a atividade realizada pelo
dúplice ao Presidente da República e ao Congresso Nacional:
prestador apresente-se sob a forma de "obrigação de fazer".
representar a União e, simultaneamente, a República Federa-
Eis aí outro elemento caracterizador da prestação de serviços.
tiva do Brasil. Essa é a razão pela qual a distinção dos atos
Só será possível a incidência do ISS se houver negócio jurídi-
normativos federais e nacionais não se faz por meio do exame
co mediante o qual uma das partes se obrigue a praticar certa
da autoridade que os expediu, mas pelo seu conteúdo: se de
atividade, de natureza física ou intelectual, recebendo, em
troca, remuneração. Por outro ângulo, a incidência do ISS interesse da pessoa política de direito interno denominada
pressupõe atuação decorrente do dever de fazer algo até então União, trata-se de "norma federal"; se relevante para todo o
País, está-se diante de "norma nacional". Quanto aos efeitos,
inexistente, não sendo exigível quando se tratar de obrigação
que imponha a mera entrega, permanente ou temporária, de diferenciam-se pelo fato de que a norma federal vincula apenas
algo que já existe. o aparelho administrativo da União, ao passo que a nacional,
não obstante editada pela mesma autoridade, atinge também
os Estados, Distrito
242
Federal e Municípios. Como salienta Ge-
3.3.7.2.2. Relevância da lei complementar na delimitação do raldo Ataliba , "são, com efeito, nitidamente distintas a lei
serviço tributável nacional e a lei federal, estando seu único ponto de contato na
origem comum: o legislador comum".
Nosso direito positivo compreende quatro distintos plexos
normativos: a ordem total, a das regras federais, a das regras
estaduais e o feixe de preceitos jurídicos dos Municípios. As três 241.Natureza jurídica do estado federal, São Paulo, Revista dos Tribunais,
primeiras são próprias do esquema federativo, enquanto a últi- 1937, p. 40-51.
ma revela peculiaridade do regime constitucional brasileiro. 242."Normas gerais de direito financeiro e tributário e autonomia dos Estados
Tudo pode ser resumido na coalescência de quatro sistemas: e Municípios", in Revista de Direito Público, n. 10, p. 49.

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Exemplo corriqueiro de norma nacional é o daquela 2. Divergência jurisprudencial não demonstrada nos moldes
veiculada pela lei complementar prevista no art. 146 da Cons- em que exigidos pelo RISTJ e Código de Processo Civil.
tituição. Esta, por introduzir no ordenamento normas gerais 3. Agravo regimental improvido"'.
de direito tributário, estende sua eficácia a todas as pessoas
políticas. Além desse dispositivo, diversos outros dizem res- A lista de serviços veiculada por lei complementar (ou por
peito a conteúdos de relevância para toda a Nação brasileira, documento normativo com força equivalente) serve para espe-
conferindo à lei complementar aquele papel de mecanismo cificar ou delimitar a extensão do significado da locução "ser-
de ajuste ao qual me referi a tratar especificamente do tema viços de qualquer natureza". Assim, justifica-se dizer que, não
de Lei Complementar, calibrando a produção legislativa or- obstante os principais vocábulos constantes da lista de serviços
dinária em sintonia com os mandamentos constitucionais. É sejam substantivos, exercem função sintática adjetiva, qualifi-
o que se verifica, com nitidez, no comando veiculado pelo art. cando atividades que, por estarem abrangidas pelo conteúdo
156, III, do Texto Supremo, que exige lei complementar defi- semântico de "serviços", são susceptíveis de tributação pelos
nidora dos serviços de qualquer natureza, susceptíveis de Municípios.
tributação pelos Municípios. Compete à legislação de caráter Em síntese, para caracterizar "serviço de qualquer natu-
nacional, portanto, auxiliar na delimitação do critério material
reza", nos termos empregados pelo constituinte, a prestação
do ISS, indicando quais atividades se inserem nos limites
deve atender, simultaneamente, a dois requisitos: (i) ser servi-
competenciais dessa pessoa política. Tudo isso, por certo, com ço; e (ii) estar indicado em lei complementar.
observância da rígida demarcação constitucional das compe-
tências tributárias.
3.3.7.2.3. A "lista de serviços" anexa ao Decreto-lei n. 406/68
Considerações dessa ordem levaram o Superior Tribunal e à Lei Complementar n. 116/03
de Justiça a pacificar posição acerca do caráter taxativo da
lista de serviços introduzida por Diploma normativo com força Consignados os esclarecimentos acima e considerando
de lei complementar: que o Decreto-lei n. 406/68 disciplinou, durante longo período,
o regime jurídico do Imposto sobre Serviços, é o caso de lembrar
"TRIBUTÁRIO E PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGI- que o CTN foi incorporado à ordem jurídica instaurada com a
MENTAL. ISS. SERVIÇOS BANCÁRIOS. NÃO-INCIDÊN- Constituição de 1988, conforme regra contida no § 5 2 do art. 34
CIA. LISTA DE SERVIÇOS DO DL N. 406/68, ALTERADO do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que asse-
PELO DL N. 834/69. TAXATIVIDADE. INCABIMENTO DE gura a validade sistêmica da "legislação anterior", naquilo em
APLICAÇÃO ANALÓGICA. PRECEDENTES DESTA
que não for incompatível com o novo sistema tributário brasi-
CORTE E DO STF.
leiro. É o tradicional "princípio da recepção".
1. Pacífico o entendimento nesta Corte Superior e no colen-
do STF no sentido de que a "lista de serviços" prevista no Ocorre que o legislador, ao redigir o Decreto-lei n. 406/68,
DL n. 406/68, alterado pelo DL n. 834/69, é taxativa e exaus- regulou, em muitos de seus dispositivos, matéria privativa de
tiva, e não exemplificativa, não se admitindo, em relação a
ela, o recurso da analogia, visando a alcançar hipóteses de
incidência distantes das ali elencadas, devendo à lista su- 243. AgRg no Ag 639.029/MG, la T., Rel. Min. José Delgado, j. em 8-3-2005,
bordinar-se a lei municipal. Vastidão de precedentes. DJ de 18-4-2005, p. 222.

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lei complementar, como é o caso da identificação dos "serviços que determina a Constituição. A expressão "definidos em lei
de qualquer natureza". Logo, em face dessa orientação semân- complementar" não autoriza que seja conceituado como ser-
tica, foi esse preceptivo acolhido pelo ordenamento jurídico viço aquilo que efetivamente não o é. Indigitada prática sub
com a força vinculativa daquele Estatuto, em função do assun- verte a hierarquia do sistema positivo brasileiro, pois o cons-
to por ele disciplinado, cumprindo a lista de serviços anexa a tituinte traçou o quadro dentro do qual os Municípios podem
função referida na parte final do inciso III do art. 156 da Cons- mover-se, autorizando a exigência de imposto sobre "servi-
tituição. O mesmo se pode dizer do Decreto-lei n. 834/69 e da ços", enquanto o legislador complementar aumentou essa
Lei Complementar n. 56/87, que o sucederam. faixa de atuação, agregando atividades que, decididamente,
A Constituição da República confere aos Municípios não se inscrevem no catálogo das atividades atribuídas à tri-
competência para instituir imposto sobre serviços de qualquer butação municipal. O ISS, como fiz empenho de frisar, tem
natureza, não compreendidos no art. 155, II, definidos em lei em sua hipótese de incidência a prestação de serviços defini-
complementar. É intuitivo perceber que além de serem "defi- dos em lei complementar, excluídos os de transporte interes-
nidos" em lei complementar, o Texto Constitucional exige que tadual e intermunicipal e os de comunicação. O legislador
haja "serviços de qualquer natureza". Não pode o legislador municipal está impedido, por isso mesmo, de instituir o refe-
complementar, portanto, relacionar atividades que não se rido imposto relativamente a algo que não esteja compreen-
enquadrem no conceito de "serviço". Se aceitássemos o con- dido no conceito de "serviço", sob pena de afronta à supre-
trário, estaríamos resvalando para o campo delicado das in- macia constitucional.
vasões de competência, porquanto o legislador da União, O conceito de "serviço", por sua vez, é consagrado pelo
produzindo normas de legislação complementar, ficaria in- direito civil e foi utilizado pelo constituinte para definir com-
vestido do poder ilimitado de chamar para o domínio legisla- petência tributária, não podendo sofrer alterações pelo legis-
tivo do ISS atividades submetidas a impostos de outras pes- lador infraconstitucional, quer complementar, quer ordinário.
soas políticas de direito constitucional interno (União, Estados É o que prescreve o art. 110 do Código Tributário Nacional.
e Distrito Federal).
Em outro escrito discorri sobre o assunto 244 , mencionando
Tendo sido a competência tributária exaustivamente que seria até curioso imaginar lei ordinária estabelecendo: "de
delimitada pelo constituinte, ao legislador infraconstitucio- agora em diante, as máquinas de escritório serão equiparadas a
nal, incluindo o complementar, cabe a tarefa de regulamen- bens imóveis, para fins de IPTU". A incidência do imposto, que
tá-la, explicitando-a em seus pormenores, sempre em con- por determinação constitucional alcança apenas os bens imó-
formidade com as prescrições constitucionais. Se assim não veis, passaria a atingir também "máquinas de escritório"!
o fizer, o produto legislativo deve ser desprezado pelo intér-
prete, inaplicado e retirado do ordenamento jurídico pelo Perfeitamente aplicável ao presente caso em que preten-
órgão competente. deu o legislador infraconstitucional fazer incidir o ISS sobre
as receitas decorrentes dos contratos de prestação de garan-
Posto isto, e tendo em vista que o oferecimento de ga- tias, como é a situação da fiança e do aval, equiparando essas
rantias, como é o caso da fiança e do aval, dista de ser pres-
tação de serviço, inadmissível a tentativa do legislador, por
meio da Lei Complementar n. 116/2003, de ampliar as fron- 244. COFINS - a Lei n. 9.718/98 e a Emenda Constitucional n. 20/98, in Revista
teiras da competência municipal, em flagrante desrespeito ao de Direito Tributário, n. 75, p. 178.
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

atividades à remuneração pela prestação de serviços. Com tal com frequência, ainda que não tenhamos notícia do segundo
atitude, está o legislador complementar ultrapassando as bar- nem do terceiro ou do quarto. Tem vocação iterativa, tende a
reiras postas pelo constituinte, conferindo aos Municípios repetir-se, indefinidamente.
atribuição para tributar fatos não relacionados no seu âmbito
Assim também a habitualidade na prestação de serviços
de competência traçado constitucionalmente, sendo manifesta
tributáveis pelos Municípios. É no exame de cada caso, perlus-
a incompatibilidade desse preceito com os princípios maiores
trando evento por evento, que podemos concluir pela existên-
do sistema jurídico tributário brasileiro.
cia de comportamentos habituais. Em exemplário formado ao
propósito, se um mecânico abre sua oficina e presta o primei-
3.3.7.3. O problema da habitualidade ro serviço, imediatamente saberemos dizer que aquele ato,
embora isolado tem assomos de habitualidade. Por outro lado,
Há palavras da fraseologia jurídica que sempre ocuparam ressalva-se, entretanto, que se alguém, não registrado como
a atenção dos cientistas, sem que pudesse surgir, até hoje, uma profissional autônomo, presta serviços, com ou sem estabele-
solução definitiva e inteiramente satisfatória. "Habitualidade" cimento fixo, seus atos hão de ter-se da mesma forma por ha-
se inscreve nesse quadro. Ela, como tantas outras, é dotada de bituais, dada a reiteração, a continuidade e a frequência que a
vaguidade semântica ou, como preferem alguns, é palavra eles imprimiu.
plurissignificativa. É termo dúbio, ambíguo, esquivo, indefini-
do, inconsistente, que não dá segurança a quem o emprega,
3.3.7.4. Sociedades sem fins lucrativos e o ISS
deixando hesitante aquele que o lê. Não tendo sido demarcado,
transmite meramente noção, idéia, conceito; nunca definição, Tomemos como exemplo uma situação jurídica peculiar,
sentença, asserto. que envolve agremiações socioculturais e recreativas, promo-
Por "habitual" devemos considerar aquilo que não é toras de bailes e apresentações artísticas, mediante cobrança
esporádico, anormal, atípico, ou se quisermos utilizar lingua- de certas quantias, a título de ingresso, tanto para sócios, como
gem afirmativa, aquilo que se repete, que tem constância, que para seus convidados. Tais associações, como se sabe, têm a
se renova, assim no tempo, que no estilo. Costumamos chamar estrutura jurídica de sociedades civis, sem fins lucrativos, com
de habitualidade a reiteração de certo comportamento, a ce- o objeto societário voltado à realização de atividades sociais,
lebração iterativa de atos, de tal forma que mesmo conside- culturais e recreativas, podendo, além disso, incentivar o es-
rados isoladamente pressupõem outros, que o antecedam ou porte amador e a prática de educação física. Os recursos de
que lhe sejam posteriores. É óbvio que um único ato ou dois que dispõem para o implemento de suas finalidades são hau-
ou três, soltos num período tomado por referência, podem ridos no quadro de associados, seja pelo pagamento normal de
não expressar "habitualidade". Contudo, não há negar-se que mensalidades, seja por chamadas extraordinárias, entre outras,
um ato singelo, pode, perfeitamente, caracterizar uma cadeia, devidamente autorizadas por seus órgãos deliberativos.
da qual aparece como o primeiro. O ato habitual, muitas vezes, Não repugna à natureza dessas instituições o superavit,
traz consigo a marca da reiteração, o timbre repetitivo. É significa dizer, a importância que corresponde ao valor do ex-
exemplo vivo a primeira venda efetuada por comerciante que cesso de receitas, com relação às despesas. Fato dessa espécie,
acaba de inaugurar suas instalações comerciais e inicia suas todavia, há de estar previsto, na forma dos estatutos, pois não
atividades. Se o considerarmos, mesmo isoladamente, have- consta da pauta regular que caracteriza a existência jurídica
remos de sentir que se trata de ato habitual, que se repetirá de tais entidades.
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

De qualquer modo, parece indiscutível que o produto ar- caminho de perquirir da possível percussão do gravame. A
recadado deve compor itens de reinversão, quer no patrimônio lembrança de que a associação não tem fins lucrativos nada
associativo, quer em outras realizações da mesma índole. acresce, pois o conteúdo econômico está latente no volume de
numerário arrecadado entre os convidados, isto é, entre aque-
Tomemos como exemplo a atuação recreativa, verificando
les que forem estranhos à composição do quadro associativo.
a possibilidade de estarem presentes os critérios da regra-ma-
Por sem dúvida que se excluem os sócios, uma vez que o clube
triz do ISS, para desenvolver item por item, as relações exis-
tem existência em função deles e as promoções realizadas se
tentes nessa atividade. Os clubes, por exemplo, podem realizar
contêm, por inteiro, nos objetivos da sociedade, cobrando-se
bailes e apresentações artísticas, seguindo, quase que invaria-
ou não o valor relativo aos ingressos. Com relação a eles tería-
velmente, quatro modalidades diferentes: a) nada cobram de
mos, quando muito, a figura do auto-serviço, ou do serviço
seus sócios, únicos e exclusivos participantes: b) estipulam
prestado a si mesmo, que não autoriza qualquer tipo de pre-
determinado valor para o ingresso, conquanto circunscrevam
tensão fiscal.
a promoção ao quadro de associados; c) abrem seus salões a
sócios e convidados de sócios, cobrando importâncias de uns Agora, o argumento de que os estatutos vedam as finali-
e de outros, em proporções diversas; e d) franqueiam a entra- dades lucrativas não pode ser invocado, diante da demonstra-
da ao público, em geral, estabelecendo quantias desiguais, na ção cabal, viva e eloquente de que desenvolve a agremiação
medida em que se trate de associado, seu convidado ou pessoa atividade produtora de resultados econômicos, advindo de
estranha. terceiros. Se acolhêssemos o fundamento, colocaríamos aforma
da estrutura institucional acima da verdadeira natureza de
Há clubes que podem aproveitar, sistematicamente, as suas atividades, subvertendo valores jurídicos essenciais.
oportunidades de festa, para encetar suas promoções. Nesse
caso, há inegável reiteração, existe sucessividade, ocorre a Vale prevenir que, ao isolar o critério material da hipóte-
repetição característica da habitualidade. Aquela frequência se de incidência do ISS, anunciamos, de modo enfático, o
própria das atividades sistemáticas com que quase todas as conteúdo econômico da prestação, jamais a contingência de
agremiações recreativas reúnem seus sócios, familiares e con- auferir-se ou não lucros, algo aleatório, que se prende ao risco
de cada negócio e reflui do esboço essencial de qualquer das
vidados, está presente, delineando o timbre habitual de suas
espécies de atividades. Em outras palavras, podemos cogitar
realizações. Dessa escala refogem os clubes que realizam even-
de vários tipos de prestação de serviços, tanto com utilidades
tos desse teor, apenas a título episódico e ocasional.
materiais quanto imateriais, sem a presença do fator lucro,
Não se discute, neste momento, a posição jurídico-tributá- prova importante de que este último não é imprescindível ao
ria de entidades que assim procedam. Estão em evidência pre- "ser" da atividade. Nessa linha de pensamento, há incontáveis
cisamente aquelas que dão espaço a festas sucessivas no curso exemplos de empresas que sacrificam o lucro imediato, visan-
de cada ano. Surge aqui o requisito da habitualidade, com toda do a conseguir uma posição vantajosa no contexto da concor-
a força de seu significado, dando ensanchas à previsão por par- rência mercantil e, nem por isso, estariam fora do ângulo de
te de qualquer dos interessados ou frequentadores. percussão do tributo.
Mas o certificado desse quesito não esgota a figura típica, Visualizemos uma sociedade teatral que, exercitando suas
para que possa existir a incidência da exação municipal. Resta funções empresariais, renitisse em comprometer a expectativa
saber se o exercício da atividade tem substrato econômico, no de obtenção de lucros, oferecendo a venda de ingressos a preços
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

de custo do espetáculo, com o firme propósito de influenciar o de qualquer natureza? Sim. Vimos que a hipótese de incidên-
público e propiciar futuro auspicioso em ulteriores apresenta- cia do ISS está definida como a prestação, a terceiro, de utili-
ções. Não estaríamos em condições semelhantes? Será que dades materiais ou imateriais, com assomos de habitualidade
apenas a leitura dos estatutos dilucidaria a questão? Supomos e com substrato econômico, debaixo de regime de direito pri-
que não. Há o imperioso mister de investigar o evento, na es- vado, realizada dentro dos limites geográficos do serviço ao
trita conformidade do desenho hipotético que o legislador interessado.
traçou. Existindo subsunção, incidirá o gravame, nascerá a
Ora, todas as cláusulas do enunciado estão satisfeitas. Se
obrigação tributária, automática e infalivelmente, como pon-
dera Alfredo Augusto Becker. isolarmos, uma a uma, saltará aos olhos perfeita subsunção.
Certifiquemo-nos.
Para escoimar possíveis dúvidas, convém aduzir que a
qualificação jurídica do agente que realiza a ação-tipo é irre- a) A prestação da utilidade é o oferecimento de serviços
levante para considerar-se efetivado o evento. Tive ocasião de de diversão pública, em estabelecimento congênere aos
tecer algumas considerações sobre o profissional, vinculado teatros, cinemas, circos, auditórios, parques de diversões
numa relação de emprego, que presta utilidades a terceiros, e taxi-dancings .

com habitualidade, revestindo-se o serviço de conteúdo econô- b) A utilidade é imaterial.


mico, tudo ao lado, paralelamente, do liame laboral. Será que
a mera alegação do laço empregatício teria o condão de liberá- c) O terceiro é o convidado do sócio, elemento estranho
la da incidência do ISS? Logicamente, não. O fato está confi- ao quadro de associados.
gurado e independe da caracterização jurídico-profissional do d) A habitualidade está configurada na exata proporção
agente. E isso acontece até em casos de imunidade, em que se em que sabemos repetirem-se os eventos, dentro de linha
tutela o patrimônio, os serviços e a renda próprios e inerentes sistemática de programações que a própria entidade exi-
à natureza íntima da entidade imune. Fora desse âmbito, ha- be, com razoável antecedência.
verá incidência e subsequente dever tributário.
e) O conteúdo econômico se identifica pelo montante dos
Não cansa memorar o caso da sociedade de fato, sem numerários arrecadados dos terceiros.
personalidade jurídica, mas, ao mesmo tempo, apta para con-
cretizar o evento imponível. Outrossim, o menor, relativamen- f) Todas as normas aplicáveis ao contrato regem-se por
te incapaz, que pratica, de maneira reiterada, atividades de princípios de direito privado, mais precisamente, aqueles
cunho econômico, tributáveis pelo Município. Em última aná- que atinam ao "Direito das Obrigações".
lise, não é profissional autônomo nem empresa, mas realiza, à g) A agremiação sociocultural e esportiva tem sede no
justa, o fato descrito. município e é dentro dos limites geográficos dessa pessoa
Não colhe boa messe o recurso ao texto frio dos estatutos, política de direito constitucional interno que os serviços
quando vemos, com hialina clareza, que a associação recreati- são prestados.
va promove, habitualmente, atividade de conteúdo econômico, h) Dá-se por acontecido o fato no instante em que o baile
gravada pelo Município. ou a apresentação artística se realiza, efetivamente, não
Haveria o quadramento do fato - atividade recreativa a se compondo o tipo tributário se, embora vendidos os
terceiros - no antecedente normativo do imposto sobre serviços ingressos a terceiros, a diversão deixa de concretizar-se.
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O enquadramento é cabal, pleno e insofismável. Divise- 3.4.2. Taxa exigida em função da prestação efetiva ou potencial
mos, porém, a base de cálculo para que possamos armar aque- de serviço público
le binômio que desenha a estrutura tipológica do imposto sobre
serviços de qualquer natureza. A base de cálculo, base imponí- Celso Antônio Bandeira de Mello 245 é incisivo:
vel ou matéria tributável será conhecida, com relativa facilidade,
somando-se os valores dos ingressos vendidos às pessoas não "Serviço público é toda atividade de oferecimento de utili-
integrantes do meio associativo. Tratando-se de importâncias dade ou comodidade material destinada à satisfação da
diferentes, não é difícil ao responsável pela "bilheteria" do clu- coletividade em geral, mas fruível singularmente pelos
administrados, que o Estado assume como pertinente a seus
be separar o volume de dinheiro arrecadado entre os não sócios.
deveres e presta por si mesmo ou por quem lhe faça as
O montante representará a base de cálculo, sobre que incidirá vezes, sob um regime de Direito Público — portanto, consa-
a alíquota prevista na legislação específica. grador de prerrogativas de supremacia e de restrições es-
peciais — instituído em favor dos interesses definidos como
públicos no sistema normativo".
3.4. REGRA-MATRIZ DAS TAXAS
A espécie tributária denominada "taxa" apresenta, em Cabe lembrar que não é o desempenho de qualquer ser-
seu antecedente normativo, a previsão conotativa de atividade viço público que enseja a imposição de taxa. Nos termos do
do Estado diretamente relacionada ao contribuinte, que so- inciso II, do artigo 145, da Constituição da República, é mister
mente pagará o valor exigido pelo Poder Público quando des- que esse serviço apresente as características de "divisibilidade"
te receber ou tiver à disposição alguma prestação de serviços e "especificidade".
públicos específicos e divisíveis, utilizados, efetiva ou poten- Ainda que o referido mandamento constitucional não fi-
cialmente, ou, ainda, se for exercido o poder de polícia, ficando zesse expressa menção a tais caracteres, seriam eles necessários
certo que é imprescindível lei anterior prevendo determinada em virtude do próprio conceito de taxa, definido, até aqui, como
prática estatal como condição suficiente e necessária à exigên- tributo cuja hipótese de incidência consiste na descrição de
cia do tributo. É essa composição lógica que definirá o regime atividade estatal diretamente vinculada ao contribuinte, en-
tributário dessa espécie determinando os critérios e limites quanto o pagamento do valor prescrito no consequente repre-
para sua instituição legal e cobrança administrativa. sentará a contraparte devida ao Estado, pelo administrado, a
quem o Poder Público voltou sua atenção. É exatamente essa
3.4.1. Taxas e suas espécies referência direta ao particular que constitui a "especificidade":
um serviço público é específico quando há individualização no
O direito positivo vigente prevê duas espécies de taxas: oferecimento da utilidade e na forma como é prestada.
a) taxas cobradas pela prestação de serviços públicos; e b) "Divisibilidade", por sua vez, significa possibilidade de
taxas exigidas em razão do exercício do poder de polícia. Na mensurar o serviço efetivamente prestado ou posto à disposição
redação dada pelo artigo 145, inciso II, da Constituição, podem de cada contribuinte. É elemento correlato à especificidade,
ser instituídas "taxas, em razão do exercício do poder de po-
lícia ou pela utilização, efetiva ou potencial, de serviços pú-
blicos específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte ou 245. Curso de direito administrativo, 2Ia ed., São Paulo, Malheiros, 2006,
postos à sua disposição". p. 642.
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

pois se o serviço mostra-se individualizado, importará admitir usufruíram dessa prestação, o pagamento de taxa. Simetrica-
que permitirá o cálculo de seu custo relativamente a cada usu- mente, estando ausente qualquer desses caracteres (utilização
ário, tornando possível a exigência de taxa. Outros, contudo, efetiva ou potencial, especificidade e divisibilidade), compro-
preferem salientar o princípio da "retributividade", mediante metida ficará a cobrança da prestação pecuniária sobre que
o qual o pagamento da taxa pelo sujeito passivo haveria de discorremos.
corresponder à retribuição pecuniária pelo reconhecimento
Não é essa, porém, a modalidade de taxa introduzida, por
do serviço público utilizado.
exemplo, no ordenamento pela Lei n. 8.033/2003 do Estado do
Do enunciado normativo-constitucional (artigo 145, II) Mato Grosso. Tem-se, no caso, taxa exigida em contraprestação
depreende-se, ainda, expressa referência à possibilidade do à fiscalização dos atos praticados pelos prestadores de serviços
serviço público remunerável por taxa ser utilizado efetiva ou notariais e de registro, estes sim caracterizados como serviços
potencialmente, podendo ser prestado ao contribuinte ou pos- públicos. São duas relações jurídicas distintas e inconfundíveis:
to à sua disposição. Em outras palavras, a cobrança poderá a) uma, decorrente da prática de serviços públicos específicos
ocorrer não apenas nos casos em que houver efetiva utilização e divisíveis pelos notários e registradores, cuja contraprestação
do serviço público específico e divisível, mas também nas hi- é representada pelos emolumentos, verdadeiras taxas pela
póteses em que, sendo esse serviço de utilização compulsória, prestação de serviços públicos; b) outra, fundada nos atos de
seja ele colocado à disposição do particular, encontrando-se fiscalização do Judiciário, para assegurar o regular exercício
em efetivo funcionamento. dos atos notariais e registrais, remunerada por taxa de polícia.
Inconcebível, portanto, imaginar-se que a exação criada pela
Acerca dos requisitos necessários para que o serviço pú-
Lei estadual seria mero adicional aos emolumentos cartorários.
blico seja remunerável por taxa, acima relatados, dispõe o ar-
É tributo novo, com hipótese de incidência e base de cálculo
tigo 79 do Código Tributário Nacional:
diversos de quaisquer outros existentes no sistema jurídico
brasileiro.
"Art. 79. Os serviços públicos a que se refere o art. 77 con-
sideram-se:
I — utilizados pelo contribuinte: 3.4.3. Taxa exigida em razão do exercício do poder de polícia
a) efetivamente, quando por ele usufruídos a qualquer
título; "Poder de polícia" consiste na possibilidade de o Estado
b) potencialmente, quando, sendo de utilização compulsória, praticar atividades condicionantes da liberdade e da proprieda-
sejam postos à sua disposição mediante atividade adminis- de dos seus administrados, em nome de interesses coletivos.
trativa em efetivo funcionamento; Tendo o Poder Público a missão de garantir a segurança, o bem-
II — específicos, quando possam ser destacados em unidades estar, a paz e a ordem coletiva, é-lhe atribuído poder de vigilân-
autônomas de intervenção, de utilidade ou necessidade cia, que o autoriza a controlar a liberdade dos indivíduos para
pública; proteger os interesses da sociedade. Objetivando proteger tais
III — divisíveis, quando suscetíveis de utilização, separada- interesses, o funcionamento de algumas atividades requer au-
mente, por parte de cada um dos seus usuários." torização administrativa, o que implica controle e fiscalização.
E é exatamente o exercício desse poder de polícia, inspecionan-
Tão-só quando presentes esses requisitos o ente prestador do e fiscalizando os particulares em nome do bem comum, que
do serviço público estará credenciado para exigir, daqueles que abre espaço à remuneração por meio de "taxa de polícia".
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

A Constituição de 1988, ao dispor sobre o sistema tribu- tência para veiculá-la é da União, configurando uma lei não
tário brasileiro, permitiu que fossem instituídas taxas tendo apenas federal (destinada à União), mas nacional (destinada a
como hipótese de incidência o exercício do poder de polícia todos os entes políticos).
(artigo 145, II). Este se consubstancia na efetiva atuação dos As Constituições estaduais podem, igualmente, fazer re-
órgãos da Administração Pública incumbidos de fiscalizar e
ferência à lei complementar estadual e atribuir-lhe competên-
controlar atividades dos particulares que possam, de alguma
cia para regular determinadas matérias, desde que não con-
forma, prejudicar interesses da coletividade. Em síntese, a trariem a Carta da República Federativa. Fundado nessa pre-
exigibilidade da "taxa de polícia" tem como pressuposto a
missa e, a título elucidativo, tomemos um caso interessante da
existência de um serviço atrelado ao poder de polícia. legislação estadual do Mato Grosso.
Assim como o serviço público, o ato expressivo do poder
O constituinte do Estado de Mato Grosso, ao disciplinar
de polícia deve ser específico e divisível para fins de exigência a organização judiciária, exigiu que sua disciplina fosse efetu-
de taxa, já que esta, como explicado, é tributo que apresenta ada por lei complementar, prescrevendo:
referibilidade direta ao contribuinte. Rege-se, também, pelo
princípio da "retributividade", devendo haver retribuição dos "Art. 45. As leis complementares serão aprovadas por maio-
custos das diligências necessárias ao seu exercício, motivo pelo ria absoluta dos membros da Assembléia Legislativa e re-
qual deve ser individualizado, permitindo precisar o custo ceberão numeração distinta das leis ordinárias.
relativamente a cada usuário. Parágrafo único. Serão regulados por lei complementar,
entre outros casos previstos nesta Constituição:
De quanto foi dito, meu entendimento se inclina, decisi-
vamente, para a declarada orientação de considerar o tributo
criado pela Lei n. 8.033/2003 uma verdadeira taxa de polícia. II — Organização Judiciária do Estado;"
Sua hipótese de incidência é a fiscalização dos atos notariais e
de registro público. Esses atos, conquanto de natureza pública, Dispôs, também, no artigo do Ato das Disposições
são exercidos em caráter privado. Por isso mesmo, demandam Constitucionais Transitórias, que a Lei de Organização Judi-
fiscalização, que, nos termos do artigo 236, § 1 2, da Carta Magna, ciária definiria a fiscalização dos atos dos serviços notariais e
é competência do Poder Judiciário. de registro:

"Art. 5 2 Os serviços notariais e de registro são exercidos em


3.4.4. A lei complementar e a instituição de taxas caráter privado, por delegação do Poder Público, conforme
dispuser a Lei de Organização Judiciária, que disciplinará
O veículo introdutor de normas denominado "lei com- a responsabilidade civil e criminal dos notários, dos oficiais
plementar" possui matéria estabelecida expressamente na de registro e de seus pressupostos, e definirá a fiscalização
redação constitucional e está submetido, para sua aprovação, de seus atos pelo Poder Judiciário".
a quorum qualificado, previsto no artigo 69, da Constituição,
isto é, maioria absoluta nas duas Casas do Congresso Nacio- A Lei Estadual n. 4.964/85, por disciplinar o assunto, foi
nal. São esses seus dois traços díferenciadores e é por isso recepcionada e vigora na qualidade de Código de Organização
que se diz que a lei complementar reveste-se de natureza e Divisão Judiciárias do Estado de Mato Grosso (COJE). Den-
"ontológico-formal" (matéria e forma específicas). A compe- tre outras matérias, traz prescrições concernentes aos serviços
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

auxiliares da Justiça, inclusive Tabelionatos e Ofícios de Re- estatal relativa ao exercício de poder de polícia. As primeiras
gistros Públicos, como anuncia seu art. 1 2 , IV: são disciplinadas pela Constituição Estadual do Mato Grosso
e lá encontram seu fundamento de validade, devendo ser vei-
"Art. 1 2 Este Código estabelece a Organização e a Divisão culadas por lei complementar. Já os requisitos para a institui-
Judiciárias do Estado de Mato Grosso e, respeitando a le- ção de taxas estão enunciados na Constituição da República,
gislação, compreende:
sendo vedado ao Estado impor outras condições além das
(...) prescritas pelo Diploma Maior.
IV — organização, classificação, disciplina e atribuição dos
serviços auxiliares da Justiça, inclusive Tabelionatos e Ofí- Em resumo: o artigo 150, I, da Carta Magna estipula ser
cios de Registros Públicos;" vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Muni-
cípios a exigência de tributo sem lei que o estabeleça. Referin-
A primeira advertência que deve ser feita é quanto à dis- do-se simplesmente à "lei", o constituinte se satisfaz com a
tinção entre normas de organização judiciária e as de fiscali- edição de lei ordinária, a ela competindo a criação de tributos.
zação dos atos notariais e registrais. Os dispositivos da Cons- Quando o Texto Constitucional quer que a instituição do tri-
tituição Estadual transcritos exigem que enunciados regula- buto seja feita por lei complementar, expressamente o deter-
dores da organização judiciária sejam introduzidos no ordena- mina, como nas hipóteses de impostos e contribuições residu-
ais e de empréstimos compulsórios.
mento por lei complementar, sendo que a Lei de Organização
Judiciária assim criada deverá dispor sobre o exercício dos No que diz respeito às taxas, não traça exceção alguma.
serviços notariais e de registro, definindo a fiscalização de seus Ainda que se trate de taxa que tenha por hipótese de incidên-
atos. Eis por que na Lei Estadual n. 4.964/85 encontraremos cia a fiscalização dos atos notariais e registrais, seu fundamen-
disposições sobre a organização, classificação, disciplina e to de validade é o art. 145, II, da Constituição do Brasil, bas-
atribuição dos serviços auxiliares da Justiça, inclusive Tabe- tando para sua regular introdução no sistema que seja intro-
lionatos e Ofícios de Registros Públicos. duzida por lei ordinária.

A definição da fiscalização dos atos notariais e de registro,


referidas pelo artigo 5 2 , do Ato das Disposições Constitucionais 3.5. REGRA-MATRIZ DAS CONTRIBUIÇÕES
Transitórias, não se confunde com a especificação dos proce-
dimentos adotados para fins de controle de tais atos. "Definir" A expansão do Estado no domínio das múltiplas ativi-
significa determinar, fixar, demarcar. Implica traçar as autori- dades socioeconômicas assinala um período bem caracterís-
zações e vedações à atividade fiscalizatória, sem ingressar em tico para a experiência jurídico-tributária brasileira: o re-
curso às contribuições como instrumento eficaz no exercício
pormenores, particularizando o modo pelo qual a fiscalização
do poder impositivo. O crescimento e o aprimoramento des-
será operacionalizada. Base que dá justificativa à Lei n.
sa figura no campo do direito posto foram acompanhados
8.033/2003, para exigir a aposição de selo de controle nos atos
de perto pela Dogmática, que passou a investigar-lhe as
fiscalizados, o que não viola os dispositivos mencionados.
formas, discutindo suas possibilidades e analisando os efei-
Outro ponto que merece destaque é a distinção entre tos jurídicos e sociais que dela se irradiam, podendo dizer-se
regras que definem a organização e fiscalização e normas ju- significativa, até aqui, a teorização a propósito das chamadas
rídicas que instituem tributo destinado ao custeio da atividade "contribuições tributárias".

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3.5.1. Noções gerais sobre as contribuições tributárias Muitos são os métodos de aproximação científica pelos
quais o objeto "direito" pode ser examinado, manifestação da
A experiência jurídica, como toda a experiência, implica complexidade ontológica do sistema jurídico. No processo
pressupostos, e a premissa básica, que está na raiz do pensa- conhecido como "interpretação do direito", pelo qual se atribui
mento ora proposto, é o constructivismo radical representado conteúdos de significação às entidades jurídicas, aparece, des-
pelo "giro linguístico", mediante o qual os discursos, sejam eles de logo, a necessidade da composição sintática condicionada
científicos ou metafísicos, não revelam uma realidade subja- a um princípio unificador. As unidades jurídicas de sentido
cente, mas a constituem e o fazem pela linguagem. Para tanto, passam a ficar dispostas numa estrutura hierarquizada em que
aproveito-me das "tecnologias da linguagem" que floresceram cada uma delas encontra-se apoiada, material e formalmente,
no início da década de 1970, com as obras dos alemães Karl- em normas superiores. No exame das "contribuições" em di-
Otto Apel e Jurgen Habermas, adotando a pragmática anglo- reito tributário, a Carta Magna exerce esse papel unificador na
saxônica. dinâmica interpretativa, condição sem a qual não se alcança o
sentido completo desse instituto no sistema jurídico.
Com efeito, a partir do advento da Constituição de 1988,
as contribuições adquiriram inusitado interesse, do que é tes- Não é de agora que advogo a tese de que as chamadas
temunho o número expressivo de manifestações doutrinárias "contribuições" têm natureza tributária. Sempre as tive como
sobre a matéria. Mas as referências científicas a propósito das figuras de impostos ou de taxas, em estrita consonância com o
critério constitucional consubstanciado naquilo que nomina-
contribuições vêm se ressentindo da ausência da desejada
mos de tipologia tributária no Brasil. Todo o suporte argumen-
organicidade, porquanto os trabalhos publicados colhem ape-
tativo calcava-se na orientação do sistema, visto e examinado
nas certos tópicos que, isolados, não têm o condão de oferecer
na sua integridade estrutural. Penso que outra coisa não fez o
uma visão mais larga e abrangente do objeto. Daí a necessida-
legislador constituinte senão prescrever, manifestamente, que
de de percorrer o ordenamento, entrelaçando normas, invo-
as contribuições são entidades tributárias, subordinando-se,
cando princípios e buscando o adequado relacionamento formal em tudo e por tudo, às linhas definitórias do regime constitu-
entre suas unidades, tudo para propiciar uma interpretação cional peculiar aos tributos. Nesse sentido a nota de Paulo
verdadeiramente sistêmica a respeito de tão importante setor Ayres Barreto 246 , em seu excelente "Contribuições":
do direito tributário. Pois, se o direito se apresenta como um
sistema de linguagem prescritiva de condutas, se a existência "As contribuições têm natureza tributária por se amoldarem
específica das normas consiste em integrar a ordem positiva, ao conceito de tributo. Não é a sua submissão ao regime
inadmissível compreender outro tipo de aproximação cognos- tributário que lhe confere tal natureza. Ao revés, é a sua
citiva que não seja a que prestigie o sistema. natureza que define o regime jurídico ao qual deva estar
submetida."
Além dessa integração entre as unidades no ordenamento
total, há de buscar-se, incessantemente, como determinação do A redação do artigo 149, caput, está estruturada assim:
método que se elege, a regra-matriz de incidência das contribui- "Compete exclusivamente à União instituir contribuições
ções, guia seguro para nos imitirmos na intimidade estrutural
da norma que provoca a percussão tributária, para examiná-la
à luz dos conteúdos do direito positivo brasileiro e extrair as 246. Contribuições: regime jurídico, destinação e controle, São Paulo, Noeses,
consequências práticas tão discutidas nos dias atuais. 2006, p. 95.

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sociais, de intervenção no domínio econômico e de interesse Ao tratar das contribuições sociais, por sua vez, subdivide-as
das categorias profissionais ou econômicas, como instrumen- em duas categorias: as genéricas (artigo 149, caput) e as desti-
to de sua atuação nas respectivas áreas, observado o dispos- nadas ao financiamento da seguridade social (artigo 195).
to nos arts. 146, III, e 150, I e III, e sem prejuízo do previsto
Quanto às contribuições sociais a que se refere o artigo
no art. 195, § 6 2 , relativamente às contribuições a que alude
149, caput, da Constituição, têm acepção bem abrangente,
o dispositivo".
destinando-se ao custeio das metas fixadas na Ordem Social
Certifiquemo-nos. O artigo 146, III, prevê que as normas (Título VIII). Incluem-se no seu domínio aquelas voltadas ao
gerais sobre matéria tributária deverão ser introduzidas no financiamento da seguridade social, disciplinadas pelo artigo
ordenamento mediante lei complementar, dispondo, entre 195 da Carta Suprema. Em síntese, as contribuições sociais são
outros pontos, a respeito do "fato gerador", da base de cálculo, instrumentos tributários, previstos na Constituição de 1988,
dos contribuintes, da obrigação, do lançamento, da prescrição que têm por escopo o financiamento de atividades da União
e da decadência. O artigo 150, I, veda a possibilidade de exigir- nesse setor. E, no âmbito desse campo social, encontramos
se ou aumentar-se tributo sem que a lei o estabeleça (princípio contribuições com a específica finalidade de custear a seguri-
da estrita legalidade); enquanto o inc. III consagra os cânones dade social (saúde, previdência e assistência social), configu-
da irretroatividade e da anterioridade. Por fim, o artigo 195, rando subgrupo da classe denominada contribuições sociais.
§ 6Q, cuida das contribuições para a seguridade social, excep- As duas categorias de contribuição acima referidas, con-
cionando o princípio da anterioridade e fixando o termo inicial quanto consubstanciem espécies de um mesmo gênero - con-
para a vigência da lei que tenha instituído ou modificado tais tribuições sociais -, são disciplinadas de forma diferenciada pelo
contribuições para 90 (noventa) dias após a data da publicação Texto Maior. Não obstante ambas sejam completamente subme-
do diploma normativo. tidas ao regime jurídico tributário, as contribuições para a se-
A conclusão parece-nos irrefutável: as contribuições são guridade social receberam tratamento constitucional peculiar.
tributos, devendo sua instituição ou alteração de quaisquer Merece relevo a circunstância de não ter o constituinte
de seus critérios normativos ser realizada com integral ob- indicado os conteúdos possíveis de serem onerados pela criação
servância do regime jurídico tributário constitucionalmente de contribuições sociais genéricas, deixando tal incumbência a
prescrito. cargo do legislador infraconstitucional, que terá a liberdade para
eleger as hipóteses de incidências e correspondentes bases de
3.5.2. Diferentes categorias de contribuições sociais e respectivas cálculo, encontrando limites apenas em relação aos fatos cuja
fontes de custeio tributação foi atribuída à esfera competencial dos demais entes
federados e nos direitos fundamentais dos contribuintes, erigidos
A Constituição da República de 1988 faz referência ex- como princípios constitucionais em geral e, mais especificamen-
pressa a três espécies de contribuições passíveis de serem te, como princípios constitucionais tributários.
instituídas pela União, diferenciadas conforme as finalidades
a que se destinem: (i) sociais, (ii) de intervenção no domínio 3.5.3. Requisitos necessários à instituição de "contribuições"
econômico e (iii) de interesse das categorias profissionais ou
econômicas (artigo 149, caput). Implicitamente, também esta- Convém repetir: o constituinte enunciou que "compete
riam no rol das contribuições aquelas conhecidas por residuais. exclusivamente à União instituir contribuições sociais, de
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intervenção no domínio econômico e de interesse das categorias previstas no artigo 149 da Carta Maior, deve limitar-se aos
profissionais ou econômicas, como instrumento de sua atuação acontecimentos do mundo social para os quais tenha poder
nas respectivas áreas, observado o disposto nos arts. 146, III, impositivo, respeitando o campo de atuação das outras pesso-
2
e 150, I e III, e, sem prejuízo do previsto no art. 195, § 6 , rela- as políticas.
tivamente às contribuições a que alude o dispositivo" (artigo Registre-se, ao mesmo tempo, que toda regra jurídica,
149, caput), deixando de relacionar os fatos susceptíveis de para ingressar no sistema do direito positivo, necessita ser
serem tributados mediante contribuições. introduzida por outra norma, de caráter geral e concreto, de-
Apesar de não haver discriminado as hipóteses de inci- nominada "veículo introdutor de normas". Apenas por meio
dência e bases de cálculo, ao atribuir à União a possibilidade de veículos introdutores é que novas regras passam a integrar
de instituir contribuições sociais, de intervenção no domínio o universo jurídico, regulando condutas intersubjetivas. Em
econômico e de interesse das categorias profissionais ou eco- matéria de contribuições, referidas no artigo 149 da Constitui-
nômicas, isso não quer dizer que o legislador infraconstitucio- ção, não entendo necessária a edição de lei complementar para
nal disponha de ilimitada permissão para criar tais tributos. instituí-las, quando incidentes sobre eventos relacionados na
Deve respeitar a competência tributária conferida aos Estados, competência tributária da União (artigo 153). A todo tributo, o
Distrito Federal e Municípios, bem como os direitos fundamen- veículo introdutório por excelência é a lei ordinária, por meio
tais dos contribuintes, consagrados nos magnos princípios da qual as exações devem ser criadas ou majoradas. É ela,
gerais e, mais especificamente, nos princípios constitucionais inegavelmente, o item do processo legislativo mais apto para
tributários. veicular preceitos relativos à regra-matriz dos tributos, tanto
no plano federal como no estadual e no municipal. E esta exe-
A circunstância de poder instituir contribuição não au-
gese é perfeitamente aplicável às contribuições sociais, de in-
toriza que sejam tributadas situações pertencentes à compe-
tervenção no domínio econômico e de interesse das categorias
tência legislativa alheia. Para criar uma das contribuições
profissionais ou econômicas. A remissão do artigo 149 ao arti-
previstas no artigo 149 do Texto Supremo, caberá à União
go 146, inciso III, ambos da Carta Magna, refere-se única e
eleger substâncias factuais para as quais possua aptidão de
exclusivamente ao fato de que as contribuições hão de subme-
tributar, relacionadas no artigo 153, ou, nos termos do artigo
ter-se às normas gerais de direito tributário, mais precisamen-
154, I, situações não previstas constitucionalmente. Não ha-
te representadas pelos preceitos constantes do Código Tribu-
veria sentido admitir que o constituinte tenha repartido,
tário Nacional.
pormenorizadamente, o poder de instituir tributos entre
União, Estados, Distrito Federal e Municípios (artigos 153, Prescindível, porém, é a remissão constante do artigo 149.
155 e 156) para, logo após, desfigurar a divisão antes efetuada, Apresentando as contribuições natureza jurídica tributária,
concedendo à primeira (União) a prerrogativa de tributar, de necessariamente estarão subordinadas ao disposto, não apenas
maneira indiscriminada, fatos contidos na faixa competencial no artigo 146, como a todos os princípios constitucionais tribu-
das demais pessoas políticas. Entendimento contrário esva- tários. Igualmente dispensável é a referência ao artigo 150, I e
ziaria o conteúdo da repartição constitucional das competên- III, do Diploma Básico, uma vez que os princípios da estrita
cias tributárias. legalidade, da irretroatividade das leis e da anterioridade apli-
Por conseguinte, o legislativo federal, ao descrever a hipó- cam-se a todas as espécies tributárias, salvo exceções expressa-
tese de incidência e base de cálculo de qualquer das contribuições mente consignadas no texto original da Constituição. Aplica-se,

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

neste caso, a lei lógica da idempotência do conjuntor, que assim da Constituição de 1988, exigindo-se, impreterivelmente, a
se exprime, em linguagem formal: Op.Op = Op ("O" é a notação presença de lei complementar, sem a qual não poderão ser
simbólica da "obrigação"; "p", uma conduta qualquer; ".", o instituídas outras fontes destinadas a garantir a manutenção
conectivo da conjunção lógica; e "=", a equivalência), signifi- ou expansão da seguridade social.
cando que a repetição de vários preceitos jurídicos equivale a Releva acrescentar que essa é a interpretação do Ministro
apenas um. São dispensáveis, portanto, as remissões acima Marco Aurélio de Mello, manifestada nos autos do Recurso Ex-
referidas. O constituinte, todavia, preferiu ser enfático e repe- traordinário n. 166.772/RS 247 , cujo trecho transcrevo a seguir:
titivo, imprimindo tom retórico a tais enunciados, certamente
no sentido de evitar possíveis tentativas de burlar esses pre- "A esta altura, cabe indagar: a Constituição de 1988 repetiu
ceitos, sob a infundada alegação de não terem sido eles espe- a liberdade atribuída ao legislador, no campo ordinário,
cificamente prescritos no âmbito das contribuições. pelas Cartas pretéritas?
A resposta já foi dada por esta Corte no julgamento de re-
cursos extraordinários que versaram sobre a matéria. O art.
3.5.4. Contribuições residuais 195 da Lei Básica de 1988 introduziu no cenário jurídico-
constitucional nova forma de disciplina do tema. Ao con-
Por outro lado, caso se pretenda instituir contribuição trário do que ocorreu com as constituições anteriores, a
incidente sobre fato não relacionado no artigo 153 (compe- partir de 1934, não se teve apenas a revelação do tríplice
tência da União), é impreterível o cumprimento dos requisitos custeio. Mediante os incisos I, II e III, previu-se em rol ine-
do artigo 154, I, que dispõe sobre a competência residual da gavelmente "numerus clausus", exaustivo, e não simplesmen-
União. Isso porque, além das fontes de custeio da seguridade te exemplificativo, que a seguridade social seria financiada
pelas contribuições dos empregadores, incidente sobre a
social previamente arroladas no texto da Constituição, o ar-
folha de salários, o faturamento e o lucro; dos trabalhadores
tigo 195, § 4a, estabelece a possibilidade de serem instituídas e sobre a receita de concursos de prognósticos. Pois bem,
outras fontes que tenham por finalidade garantir a manuten- esses parâmetros, em termos de possibilidade da regência
ção ou expansão da seguridade social. Essas novas fontes são por lei ordinária, mostram-se absolutos. Fora das hipóteses
as referidas "contribuições residuais" e sujeitam-se ao mesmo explicitamente contempladas, obstaculizou-se a possibilida-
regime jurídico dos impostos residuais, motivo pelo qual se de de — repito — via lei ordinária, serem estabelecidas novas
i mpõe a observância dos requisitos prescritos no artigo 154, contribuições" (grifo meu).
I, da Constituição.
Conclui-se, portanto, que, para sua regular instituição, as
Nesse mesmo sentido, assevera José Eduardo Soares de contribuições residuais exigem: (i) introdução no ordenamen-
Melo, "a remissão que o § 4 2 do art. 195 faz ao art. 154, I, cons- to jurídico mediante lei complementar, (ii) caráter não-cumu-
titui uma efetiva condicionante, um requisito irremovível, só lativo e (iii) tipologia tributária diversa daquelas já previstas
permitindo a imposição de novos encargos aos contribuintes na Constituição.
(pela via das contribuições inseridas na competência residual
Acontece que, ao repartir a competência para criar tributos,
da União), mediante camisa de força jurídica".
o constituinte foi minucioso, relacionando as materialidades
Já tendo sido instituídas as contribuições previstas no
artigo 195, qualquer outra contribuição para a seguridade social
que se pretenda instituir deve observância ao § 4 2 do artigo 195 247. Publicado no DJ de 16 12 94.
- -

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dos impostos cuja criação poderia ser efetuada pelas pessoas 3.5.5. Contribuições destinadas à seguridade social
políticas. E, para evitar que fosse em vão esse rigoroso trata-
mento tributário, colocou como requisito ao exercício da com- Ao discriminar a competência para instituição de contri-
petência residual pela União que o tributo por ela criado (seja buições destinadas à seguridade social, o constituinte traçou
i mposto ou contribuição para a seguridade social) não possu- minuciosamente os arquétipos das possíveis regras-matrizes
ísse "fato gerador" ou base de cálculo próprios dos discrimi- de incidência tributária, impondo, ao legislador infraconstitu-
nados na Constituição. Essa restrição visa a impedir, além da cional, observância a uma série de requisitos. Dentre as exi-
invasão de competências, a pluralidade de incidências tribu- gências estipuladas para o exercício dessa competência tribu-
tárias sobre a mesma hipótese, como bem esclarece Misabel tária cabe destacar as fontes de custeio autorizadas pelo Texto
Abreu Machado Derzi 248 : Maior, às quais deve limitar-se o legislador ordinário da União,
bem como as condições necessárias à criação de nova fonte.
"Mas o art. 195, § V, além de exigir a edição de lei comple- Ao relacionar as possíveis fontes de financiamento direto
mentar, veda: 2
da seguridade social, dispõe o artigo 195, 1 a IV, e § 8 , do Texto
—a invasão de competência, impondo o respeito ao campo 249
Supremo :
de incidência privativo de Estados e Municípios;
—a dupla ou tríplice imposição, pela coibição do bis in idem, "Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a
assim como da cumulatividade". sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei,
mediante recursos provenientes dos orçamentos da União,
Não restam dúvidas, portanto, de que o Texto Constitu- dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das
cional, nos termos estabelecidos em seu artigo 195, § 4 4 , só seguintes contribuições sociais:
permite a criação de contribuições residuais para a segurida- I — do empregador, da empresa e da entidade a ela equipa-
de social cujas hipóteses de incidência e bases de cálculo rada na forma da lei, incidentes sobre:
sejam diversas daquelas já expressamente previstas em seu a) a folha de salários e demais rendimentos do trabalho
texto. A União pode instituir, com base na competência que pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa física que
lhe preste serviço, mesmo sem vínculo empregatício;
lhe é outorgada pelo artigo 195 do Diploma Maior, contribui-
ções para a seguridade social incidentes sobre (i) folha de b) a receita ou o faturamento;
salários e demais rendimentos do trabalho, (ii) receita ou c) o lucro;
faturamento, (iii) lucro e (iv) importação de bens e serviços II — do trabalhador e dos demais segurados da previdência
do exterior. Desejando criar outras contribuições para essa social, não incidindo contribuição sobre aposentadoria e
pensão concedidas pelo regime geral de previdência social
finalidade, deve eleger novas manifestações de riqueza, one-
de que trata o art. 201;
rando fontes de custeio diversas para, desse modo, não gravar
de forma exorbitante, mediante múltiplas incidências, um IIT — sobre a receita de concursos de prognósticos;
mesmo fato jurídico tributário. IV — do importador de bens ou serviços do exterior, ou de
quem a lei a ele equiparar.

248. "Contribuições sociais", in Cadernos de Pesquisas Tributárias, São Paulo,


Resenha Tributária, v. 17, 1992, p. 145. 249. Redação dada pela Emenda Constitucional n. 20/98.

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(...) ii) contribuição com fundamento na alínea "b", do inciso I,


§ 8 O produtor, o parceiro, o meeiro e o arrendatário rurais do artigo 195:
e o pescador artesanal, bem como os respectivos cônjuges,
que exerçam suas atividades em regime de economia fami- Hipótese:
liar, sem empregados permanentes, contribuirão para a
critério material: auferir receita ou faturamento;
seguridade social mediante a aplicação de uma alíquota
sobre o resultado da comercialização da produção e farão critério espacial: território nacional;
jus aos benefícios nos termos da lei".
critério temporal: instante em que a receita ou o fatu-
ramento forem auferidos;
Com tal prescrição, traça o modelo da regra-matriz de inci-
dência das contribuições para a seguridade social, vinculando a Consequente:
atividade do legislador ordinário da União. Este, no exercício da
critério pessoal: ativo: União; passivo: empregador,
competência tributária, não pode distanciar-se dos termos cons-
empresa e entidade a ela equiparada na forma da
titucionalmente estabelecidos, quer no que diz respeito ao sujei-
to passivo, quer no tocante à hipótese de incidência ou à base de lei;
cálculo. Fica adstrito, portanto, às seguintes normas-padrões: critério quantitativo: base de cálculo: montante da
receita ou do faturamento auferidos; alíquota: percen-
i) contribuição com fundamento na alínea "a", do inciso I, tual fixado em lei.
do artigo 195:
iii) contribuição com fundamento na alínea "c", do inciso
Hipótese:
I, do artigo 195:
critério material: pagar ou creditar salários e demais
rendimentos do trabalho; Hipótese:

critério espacial: território nacional; critério material: auferir lucro;

critério temporal: momento do pagamento ou credita- critério espacial: território nacional;


mento do salário e demais rendimentos do trabalho; critério temporal: momento em que o lucro for auferido;
Consequente: Consequente:
critério pessoal: ativo: União 250 ; passivo: empregador, critério pessoal: ativo: União; passivo: empregador,
empresa e entidade a ela equiparada na forma da lei; empresa e entidade a ela equiparada na forma da lei;
critério quantitativo: base de cálculo: valor da folha de critério quantitativo: base de cálculo: quantum do lucro
salário e dos demais rendimentos pagos ou creditados; auferido; alíquota: fixada em lei.
alíquota: percentual fixado em lei.
iv) contribuição com fundamento no inciso II do artigo
195:
250. Indiquei a União como sujeito ativo por ser ela a entidade competente Hipótese:
para instituir o tributo. Nada impede que ao exercer a competência que lhe
foi atribuída, delegue a capacidade tributária ativa a outra pessoa. critério material: receber remuneração pelo trabalho;
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critério espacial: território nacional; critério espacial: território nacional;


critério temporal: instante do recebimento da remu- critério temporal: momento da comercialização da
neração; produção;
Consequente: Consequente:
critério pessoal: ativo: União; passivo: trabalhador e critério pessoal: ativo: União; passivo: o produtor, o
demais segurados da previdência social; parceiro, o meeiro e o arrendatário rurais e o pescador
critério quantitativo: base de cálculo: valor da remunera- artesanal, bem como os respectivos cônjuges, que
exerçam suas atividades em regime de economia fa-
ção recebida pelo trabalho, exceto o montante da apo-
sentadoria e pensão concedidos pelo regime geral de miliar, sem empregados permanentes;
previdência social; alíquota: percentual fixado em lei. critério quantitativo: base de cálculo: resultado da co-
mercialização da produção; alíquota: percentual fixa-
v) contribuição com fundamento no inciso IV do artigo 195:
do em lei.
Hipótese:
Além disso, o legislador federal, ao descrever a hipótese
critério material: importar bens ou serviços do exterior, de incidência e base de cálculo dessas contribuições, deve li-
ou de quem a lei a ele equiparar; mitar-se a instituir uma única contribuição para cada situação
critério espacial: território nacional; ali relacionada. A título de exemplo, registre-se que o consti-
tuinte, no art. 195, I, "a", relacionou como base de cálculo a
critério temporal: na data da entrada de bens estran- "folha de salários e demais rendimentos do trabalho, pagos ou
geiros no território nacional ou na data do pagamento, creditados, a qualquer título, à pessoa física que lhe preste ser-
crédito, entrega, emprego ou remessa de valores a viço, mesmo sem vínculo empregatício" (grifei). Sendo a base
residentes ou domiciliados no exterior como contra- de cálculo o elemento que exterioriza a grandeza do fato des-
prestação por serviço prestado. crito no antecedente normativo, o critério material não pode
Consequente: ser outro que não "o pagamento de folha de salários e demais
rendimentos do trabalho, em decorrência da prestação de ser-
critério pessoal: ativo: União; passivo: importador de
viços por pessoa física, mesmo sem vínculo empregatício". Eis
bens ou serviços do exterior, ou de quem a lei a ele
a base de cálculo exercendo a função comparativa, afirmando
equiparar;
a hipótese tributária que não foi expressamente referida no
critério quantitativo: base de cálculo: valor aduaneiro; texto do direito positivo.
alíquota: percentual fixado em lei.
São dois, portanto, os fatos susceptíveis de sofrerem a
vi) contribuição com fundamento no parágrafo 8 2 do arti- incidência da contribuição previdenciária prevista no art. 195,
go 195: I, "a", da Constituição: (i) pagamento de folha de salários em
razão de serviços prestados na vigência de relação de emprego;
Hipótese:
e (ii) pagamento de remuneração ao trabalhador que preste
atividade exercida em regime de economia familiar; serviços sem vínculo empregatício.
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O inciso II do art. 195, por sua vez, indica apenas os pos- Constituição relaciona "receita ou faturamento", deve-se in-
síveis sujeitos passivos, referindo-se a trabalhadores e demais terpretá-lo de acordo com o conectivo escolhido, disjuntor
segurados da previdência social. Tal enunciado abrange todas excludente "ou", que claramente impõe alternativas, inviabi-
as formas de prestação de serviço, independentemente da lizando a exigência simultânea de duas contribuições: uma
existência de vínculo empregatício. Assim, a despeito de Me- sobre a receita e outra sobre faturamento. Ao editar a Lei n.
xistir expressa referência à base de cálculo, esta há de ser,
10.256/01, entretanto, o legislador da União ignorou referidos
necessariamente, a remuneração percebida em decorrência do
li mites constitucionais ao exercício da competência tributária
trabalho prestado, visto que para a caracterização de "traba-
e instituiu nova contribuição, exigida das agroindústrias que
lhador" é imprescindível o exercício de atividade laboral. Não
industrializam matéria-prima própria, elegendo, como base de
pode a contribuição cobrada do trabalhador ter por base qual-
cálculo, o valor da receita bruta proveniente da comercialização
quer outro valor que não seja essa remuneração, pois é exata-
mente ela que o qualifica como trabalhador. de tais produtos. Desse modo, criou outra contribuição para a
seguridade social, cuja materialidade e correspondente base
Por seu turno, a instituição de contribuições não deve de cálculo já são tributadas por contribuição diversa, também
seguir critérios diferentes daqueles exigidos para criar impos- destinada ao financiamento da seguridade social: a COFINS.
tos. Ora, não é porque o Texto Maior autoriza que o ente fede- Configurou-se assim o bis in idem, vedado consoante interpre-
ral institua imposto incidente sobre a renda (artigo 153, III), tação sistemática do texto constitucional.
por exemplo, que este poderá percutir sobre o referido fato
várias vezes, por meio de impostos diversos. O mesmo ocorre
com as contribuições: é vedado à União criar duas contribuições 3.5.6. Evolução legislativa da contribuição ao PIS e COFINS
com idênticas hipóteses de incidência e bases de cálculo, pois
se assim o fizer, estará tributando duplamente um único fato e, A Lei Complementar n. 7, de 07/09/1970, instituiu o Pro-
em consequência, ofenderá o princípio constitucional implícito, grama de Integração Social - PIS, destinado a promover a
decorrente da repartição das competências tributárias e que integração do empregado na vida e no desenvolvimento das
proíbe o bis in idem. Nesse sentido, já se manifestou o E. Supre- empresas (artigo IQ, caput). Além de outras providências, refe-
mo Tribunal Federal, consignando a possibilidade de instituição rida legislação criou a contribuição ao PIS, estabelecendo, em
de uma única contribuição para cada base de cálculo 251 . seu artigo Y, que o Fundo de Participação seria constituído
por duas parcelas: (i) mediante dedução de porcentagem do
Como já observado, o legislador deve limitar-se a instituir
imposto sobre a renda devido pelas pessoas jurídicas; e (ii) com
uma contribuição para cada situação relacionada no texto
recursos próprios da empresa, recolhidos com base no fatura-
constitucional. Em vista disso, quando o artigo 195, I, "b", da
mento. Essa lei definiu, ainda, como seria a contribuição das
instituições financeiras e das sociedades seguradoras, visto
tratar-se de empresas que não realizam operações de venda
251. Tal orientação foi adotada no julgamento de feito no qual se discutia a
de mercadorias ou prestação de serviços (artigo 3 2 , §
constitucionalidade da instituição da Cofins sobre o faturamento, base de
cálculo já tributada pelo PIS. Nessa ocasião, o STF deixou claro que a Cofins A Lei Complementar n. 7/70 buscava seu fundamento de
só era constitucional porque o PIS, conquanto incidente sobre o mesmo 2
fato, possuía fundamento de validade diverso. ADC 1 / DF - Distrito Federal.
validade no artigo 21, I, § 2 , da Constituição de 1967, tendo
Ação Declaratória de Constitucionalidade. Relator Min. Moreira Alves, DJ sido expressamente recepcionada pela Carta de 1988 (artigo
de 16-06-1995. 239). Paralelamente, o Texto Constitucional vigente autorizou,
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em seu artigo 195, a instituição de nova contribuição destinada foi atribuída, pois instituiu contribuição sobre receita bruta,
ao financiamento da seguridade social, incidente sobre o fatu- expressão bem mais ampla do que o simples faturamento.
ramento. Com isso, foi instituída a COFINS, introduzida na
ordem jurídica pela Lei Complementar n. 70/91. Em 16 de dezembro de 1998, adveio a Emenda Constitucio-
nal n. 20, autorizando a instituição de contribuição para a segu-
Referidos Diplomas legais encontravam-se em perfeita ridade social incidente sobre a receita, nos seguintes termos:
harmonia com a redação originária do artigo 195, I, da Consti-
tuição, que prescrevia: "Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a
sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei,
"Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a mediante recursos provenientes dos orçamentos da União,
sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das
mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, seguintes contribuições sociais:
dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das I — do empregador, da empresa e da entidade a ela equipa-
seguintes contribuições sociais: rada na forma da lei, incidentes sobre:
I — dos empregadores, incidente sobre a folha de salários, o a) a folha de salários e demais rendimentos do trabalho
faturamento e o lucro". pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa física que
lhe preste serviço, mesmo sem vínculo empregatício;
Em momento posterior, porém, foi editada a Medida Pro- b) a receita ou o faturamento;
visória n. 1.724/98, convertida na Lei n. 9.718, de 27 de novem- c) o lucro".
bro de 1998, a qual, pretendendo alterar as bases de cálculo da
contribuição ao PIS e da COFINS, determinou a incidência de A despeito dessa alteração legislativa, o Supremo Tribunal
ambas sobre o "faturamento". Não bastasse isso, equiparou o Federal tem considerado inconstitucional a incidência das
conteúdo significativo do vocábulo "faturamento" ao de "re- referidas contribuições sobre a receita bruta, afastando a apli-
ceita bruta", impondo fossem os gravames calculados com cabilidade do § 1e do artigo 3 2 da Lei n. 9.718/98, o qual não
suporte nesta última: teria sido convalidado pela edição da Emenda Constitucional
n. 20/98. O citado dispositivo legal, além de afrontar a noção de
"Art. 2 2 As contribuições para o PIS/PASEP e a COFINS, faturamento posta no artigo 195, I, da Carta Magna, viola o §
devidas pelas pessoas jurídicas de direito privado, serão
4 2 desse artigo, no que diz respeito aos aspectos formais para
calculadas com base no seu faturamento, observadas a le-
a criação de nova fonte de custeio da seguridade social. É o que
gislação vigente e as alterações introduzidas por esta Lei.
se depreende do voto do Exmo. Ministro Cezar Peluso, profe-
Art. 3Q O faturamento a que se refere o artigo anterior cor-
responde à receita bruta da pessoa jurídica.
rido por ocasião do julgamento do RE 346.084-6/PR, cujo trecho
permito-me transcrever:
§ lil Entende-se por receita bruta a totalidade das receitas
auferidas pela pessoa jurídica, sendo irrelevantes o tipo de
atividade por ela exercida e a classificação contábil adotada "19. Por todo o exposto, julgo inconstitucional o § 1 2 do art.
para as receitas". 34 da Lei n. 9.718/98, por ampliar o conceito de receita bruta
para 'toda e qualquer receita', cujo sentido afronta a noção
de faturamento pressuposta no art. 195, I, da Constituição da
Com expediente dessa natureza, o legislador ordinário República, e, ainda, o art. 195, § 4 2 , se considerado para
extrapolou os limites da competência constitucional que lhe efeito de nova fonte de custeio da seguridade social".
804 805
PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

Em seguida, o Ministro manifesta-se sobre o caput do relativos à fatura e à obrigação de faturar, tal como o artigo 219
artigo Y, julgando-o constitucional, "(...) para lhe dar interpre- do Código Comercial, que estipula:
tação conforme à Constituição, nos termos do julgamento
proferido no RE n. 150.755/PE, que tomou a locução receita "Art. 219. Nas vendas em grosso ou por atacado, entre co-
bruta como sinônimo de faturamento (...)". merciantes, o vendedor é obrigado a apresentar ao compra-
dor, por duplicado, no ato da entrega das mercadorias, a
Com tal significado, a contribuição ao PIS, assim como a fatura, ou conta dos gêneros vendidos, os quais serão por
COFINS, passam a ser disciplinadas pela Lei n. 9.718/98, ex- ambos assinados, um para ficar na mão do vendedor e outro
cluído apenas o disposto no § 1 2 do artigo 3 2 . Incidem, portan- na do comprador. Não se declarando na fatura o prazo do
to, sobre o faturamento. Em face do exposto, surge a indagação pagamento, presume-se que a compra foi feita à vista. As
acerca da verdadeira abrangência do termo "faturamento" e faturas sobreditas, não sendo reclamadas pelo vendedor ou
comprador, dentro de 10 dias subsequentes à entrega e
sua aplicabilidade em termos concretos e racionais no direito
recebimento, presumem-se contas líquidas" (destaquei).
tributário. Eis a problemática que pretendo elucidar.

Esclarece Fran Martins 252 que esse dispositivo legal jamais


3.5.6.1. Conceito de faturamento foi cumprido, sendo que as relações entre vendedores e com-
pradores, nas vendas a prazo, limitavam-se a anotações nas
Diante de sua relevância, penso que ao tratar do tema respectivas contas correntes. Não obstante carente de eficácia
deva ser dito que faturamento é signo que representa o in- social, referido preceito permaneceu válido e vigente no orde-
gresso bruto de recursos externos, provenientes de operações namento jurídico, vindo a ser regulamentado pelo Decreto n.
de vendas a prazo ou à vista, de mercadorias, produtos ou 16.041/23, nos termos do qual, nas vendas mercantis a prazo,
serviços, tanto no mercado interno como no exterior. A fatura entre vendedor e comprador domiciliados em território nacio-
aparece como o registro documental que expressa a quanti- nal, se tornava obrigatória, por ocasião da entrega da merca-
ficação de negócios jurídicos realizados pelo contribuinte, ao doria, a apresentação, pelo vendedor, de fatura ou conta em
passo que o faturamento, enquanto valor final das atividades duplicata, ficando o comprador com a fatura e devolvendo a
praticadas registradas em fatura, equivale exatamente ao duplicata assinada ao vendedor.
resultado de tais negócios. Fatura é documento; faturamento
O Decreto n. 16.041/23 sofreu diversas modificações, até
é atividade que se exprime em valores pecuniários. Para haver
faturamento, portanto, é indispensável que se tenham reali- que o assunto foi finalmente consolidado na Lei n. 187/36, a
qual estipula, de forma patente, a obrigação do vendedor de
zado operações mercantis ou prestações de serviços, e é exa-
emitir, entregar ou remeter, nas vendas a prazo, entre vende-
tamente com base no valor decorrente de tais operações que
dores e compradores domiciliados em território nacional, a
a legislação vigente determina o recolhimento da contribuição
ao PIS e da COFINS. fatura da venda e sua duplicata, que deverá ser assinada e
devolvida pelo comprador. Essa obrigação de emitir a duplica-
A definição do conceito de faturamento não decorre de ta foi retirada do ordenamento pela Lei n. 5.474/69, modificada
mera construção doutrinária, mas de interpretação dos textos
do direito posto, especialmente do direito comercial positivo.
É certo que não encontramos, no direito comercial, dispositivo 252. Contratos e obrigações comerciais, zla ed., Rio de Janeiro, Forense, 1976,
que enuncie "faturamento é ...". Mas, são diversos os preceitos p. 221.
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

pelo Decreto-lei n. 436/69, remanescendo, entretanto, a obri- indicativa da realização de operações (negócios jurídicos) de
gação de extrair fatura nas vendas a prazo. Essa mesma lei venda de mercadorias ou de prestação de serviços.
autoriza emissão de faturas também por empresas individuais
ou coletivas, fundações ou sociedades civis, que se dediquem
3.5.6.2. Conceito de receita
à prestação de serviços (artigo 20).
Desses preceitos legais é que decorre o conceito de fatura, Com efeito, no processo de classificação, iremos nos de-
tomada como nota descritiva de mercadorias ou serviços, es- parar com produtos e subprodutos de classe, de acordo com
pecificando a qualidade, quantidade, preço e outras circuns- os critérios adotados, encontrando gêneros e espécies. Sabemos
tâncias de acordo com os usos da praça. Consequentemente, é que o "gênero" compreende a "espécie". Nessa linha, e trans-
a partir dessas mesmas legislações que se identifica o conceito portando esses pensamentos para o entendimento das locuções
de faturamento, o qual não pode ser outro senão o valor decor- "entradas financeiras", "faturamento" e "receita bruta", não
rente das vendas e prestações de serviços, ainda que, eventu- há dúvidas de que o termo "receita" é gênero, susceptível de
almente, não seja emitido o documento da fatura, quer por ser dividido em subclasses. O "faturamento" figura como exem-
descumprimento das normas de direito comercial, quer por plo nítido, pois abrange apenas as receitas decorrentes de
inexistir obrigatoriedade naquela operação específica. vendas de mercadorias e serviços (tem-se o gênero "receita",
acrescido da diferença específica "venda de mercadorias e
É lícito concluir, desde logo, que "receita bruta" é expres-
serviços").
são bem mais ampla do que "faturamento". A receita bruta,
além de abranger o faturamento (valores percebidos em de- Sobre o assunto, vale transcrever trecho do voto-vista do
corrência da comercialização de mercadorias ou da prestação Ministro Cezar Peluso, proferido por ocasião do julgamento do
de serviços), incorpora também todas as outras receitas da RE 346.084-6/PR:
pessoa jurídica, tais como aluguéis, juros, correções monetá-
"Não precisa recorrer às noções <elementares de Lógica
rias, royalties, dividendos etc. São fatos completamente distin-
Formal sobre as distinções entre gênero e espécie para
tos e inconfundíveis. reavivar que, nesta, sempre há um excesso de conotação e
Dada a diferenciação entre faturamento e receita, é in- um déficit de denotação em relação àquele. Nem para atinar
logo em que, como já visto, faturamento também significa
concebível qualquer tentativa de ampliar o conceito de fatura-
percepção de valores e, como tal, pertence ao gênero ou
mento a ponto de abarcar outras receitas que não as prove-
classe receita, mas com a diferença específica de que com-
nientes da soma dos valores das vendas de mercadorias e preende apenas os valores oriundos da 'atividade econômi-
serviços prestados. As idéias de fatura e de faturamento são ca organizada para a produção ou a circulação de bens ou
definidas, de há muito, no direito comercial e pertencem, tra- serviços' (venda de mercadorias e de serviços). De modo que
dicionalmente, ao patrimônio do vocabulário técnico jurídico o conceito legal de faturamento coincide com a: modalidade
brasileiro. de receita discriminada no inc. I do art. 187 da Lei das So-
ciedades por Ações, ou seja, é 'receita bruta de vendas e de
Esse é o conteúdo significativo acolhido pela Constituição serviços"' (grifos no original).
ao autorizar o legislador federal a instituir contribuições sobre
o faturamento. O faturamento empregado no contexto consti- Diversas são as possibilidades de classificação das receitas.
tucional e sujeito à tributação consiste na expressão financeira Realmente, não existem limites à liberdade de fazer classificações
808 809
PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

que, no fundo, se consubstancia em separar em classes, em entrada que passa a pertencer à entidade. Assim, só se
grupos, formando subclasses, subdomínios, subconjuntos. Ao considera receita o ingresso de dinheiro que venha a inte-
sujeito do conhecimento é reservado o direito de fundar a grar o patrimônio da entidade que a recebe."
classe que lhe aprouver e segundo a particularidade que se
mostrar mais conveniente aos seus propósitos, desde que o faça Para a efetiva existência de receita, o ingresso de dinhei-
de acordo com as regras que presidem a operação de dividir ro deve integrar o patrimônio de quem a auferiu, havendo al-
que é, afinal de contas, o processo empregado para classificar teração de riqueza. Receita é a entrada que, integrando-se ao
os termos. Assim, podem ser diversas as modalidades de recei- patrimônio sem quaisquer reservas ou condições, vem acrescer
tas, conforme o modo pelo qual foram produzidas. Além da seu vulto, como elemento novo positivo. Assim, quando o par-
receita de vendas de mercadorias e serviços, a que já me referi, ticular vende determinado bem que lhe pertence, o dinheiro
são também espécies as receitas financeiras e as receitas pa- recebido é receita, uma vez que altera a situação patrimonial
trimoniais, por exemplo, cujas diferenças específicas residem do vendedor. Por outro lado, ingressos financeiros que não
na atividade que lhes deu origem.
constituam fatos modificativos do patrimônio, como o recebi-
Essa diferença entre as espécies de receitas foi certificada mento de depósitos recolhidos ou valores recebidos pela alie-
pelo próprio legislador da União, que, ao veicular o Decreto-lei nação de coisa alheia, não se apresentam como receita, sendo
n. 2.397/87 (promovendo alterações no artigo 22, § 1Q, do De- mera entrada.
creto-lei n. 1.940/82, que disciplinava o FINSOCIAL), já distin-
guia o faturamento, enquanto receita das vendas de mercado- De acordo com as Normas e Procedimentos de Contabi-
rias e serviços de qualquer natureza, das receitas operacionais lidade editadas pelo Instituto dos Auditores Independentes do
das instituições financeiras, assim como das receitas operacio- Brasil (IBRACON), receita é a entrada bruta de benefícios
nais e patrimoniais das sociedades seguradoras e entidades a econômicos durante o período que ocorre no curso das ativi-
elas equiparadas. dades da empresa, quando tais entradas acarretam aumento
patrimonial líquido, excluídos aqueles decorrentes de contri-
Por todo o exposto e, tendo em vista que a contribuição
buições dos proprietários, acionistas ou quotistas. No conceito
ao PIS e à COFINS incide sobre o faturamento, ou seja, sobre
de receita estão incluídos somente os benefícios econômicos
a receita bruta. nos termos do Decreto-lei n. 2.397/87, apenas
os valores relativos à comercialização de mercadorias ou de recebidos e a receber pela empresa em transações por conta
serviços integram suas bases de cálculo. própria, não abrangendo, por conseguinte, importâncias co-
bradas por conta e em favor de terceiros (NPC n. 14).
A receita bruta não se identifica, também, com entrada
financeira, sendo esta ainda mais abrangente que aquela. Tal Em conclusão, receita é o acréscimo patrimonial que
é a lição de Geraldo Ataliba 253 : adere definitivamente ao patrimônio da pessoa jurídica, não a
integrando quaisquer entradas provisórias, representadas por
"O conceito de receita refere-se a uma espécie de entrada. importâncias que se encontrem em seu poder de forma tem-
Entrada é todo o dinheiro que ingressa nos cofres de uma porária, sem pertencer-lhe em caráter definitivo.
entidade. Nem toda entrada é uma receita. Receita é a
A capacidade contributiva absoluta consubstancia-se na
participação das pessoas em fatos que denotem sinais de ri-
253. "Estudos e pareceres de direito tributário", in Revista dos Tribunais, queza, fatos esses que, eleitos para compor a hipótese da regra-
São Paulo, vol. I, p. 81. matriz de incidência tributária, ensejarão o nascimento de
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

obrigação pecuniária, quantificada conforme a proporção mo- suporte jurídico utilizado para definir "faturamento" foram as
netária do acontecimento tributado. Logo, para a capacidade normas de direito comercial.
contributiva ser observada, é imprescindível que a tributação
A decisão proferida nos autos do mencionado Recurso
tome como base de cálculo elemento mensurador do fato pra-
Extraordinário não autoriza, também, que se equipare, de modo
ticado pelo contribuinte, refletindo, presumivelmente, aqueles
indiscriminado, "faturamento" e "receita bruta". Aliás, nas
signos de riqueza. Isso, por si só, inviabiliza qualquer pretensão
muitas ocasiões em que esse egrégio Tribunal examinou o
tributária de incidência sobre valores que extrapolem a medi-
assunto, sempre procurou preservar o conceito de "faturamen-
da do fato praticado pelo contribuinte, invadindo esfera patri- to" prescrito pelo direito comercial e adotado pela Constituição
monial alheia. de 1988. Quando o STF, em seus julgamentos, afirmou que
Aplicadas essas considerações à contribuição para o PIS "receita bruta" e "faturamento" seriam equiparáveis, não o fez
e à COFINS, tributos que, nos termos da legislação vigente, de forma abstrata, como se nenhuma diferença existisse entre
incidem sobre a receita, apenas os recursos que passem a in- esses dois conceitos. Ao contrário, tais manifestações se reali-
tegrar o patrimônio do contribuinte estão sujeitos a tais exações. zaram no contexto de casos concretos, em que a legislação
Primeiramente, porque a hipótese de incidência, confirmada determinava a incidência de tributo sobre receita bruta. Nessas
pela base de cálculo, consiste na "receita" e não em meras hipóteses, foi implicitamente reconhecida a impossibilidade
"entradas financeiras", conceitos que, como demonstrado, não da tributação do total das receitas, afirmando-se que a lei im-
se confundem. Além disso, a tributação de valores não perten- pugnada só seria constitucional se entendida receita bruta
centes ao contribuinte desvirtua completamente o sistema como o resultado da comercialização de mercadorias e prestação
de serviços.
constitucional tributário brasileiro, atingindo o sujeito passivo
em quantias que este não está apto a suportar, violando os O Pleno do Supremo Tribunal Federal só julgou consti-
princípios da capacidade contributiva e do não-confisco. tucional o artigo 28 da Lei n. 7.738/89 porque entendeu que a
receita bruta a ser tributada seria aquela referida no Decreto-
lei n. 2.397/87, qual seja, o resultado da venda de mercadorias
3.5.6.3. Análise dos precedentes do Supremo Tribunal Federal
e prestação de serviços. É que o Decreto-lei n. 2.397/87, ao
quanto à diferenciação entre receita e faturamento
aludir-se à receita bruta, restringiu seu conteúdo ao resultado
da comercialização de mercadorias e prestação de serviços:
Por ocasião do julgamento do Recurso Extraordinário n.
150.755-1/PE, o Supremo Tribunal Federal manifestou-se acer-
"Art. 22. (...)
ca do conceito de "faturamento", concluindo pela constitucio-
§ 1 2 A contribuição social de que trata este artigo será de
nalidade da Lei n. 7.738/89, instituidora do FINSOCIAL, apenas
0,5% (meio por cento) e incidirá mensalmente sobre:
se entendida a receita bruta como receita decorrente da venda
a) a receita bruta das vendas de mercadorias e serviços de
de mercadorias e prestações de serviços de qualquer natureza,
qualquer natureza, das empresas públicas ou privadas de-
nos termos definidos pelo Decreto-lei n. 2.397/87. Conquanto finidas como pessoa jurídica ou a elas equiparadas pela
exame superficial possa levar ao entendimento de que a Magna legislação do Imposto de Renda". (grifei)
Corte teria se fundado em conceito estabelecido pela própria
legislação infraconstitucional tributária, a análise do inteiro Nota-se, de forma patente, que ao interpretar a Lei n.
teor dos votos proferidos naquele julgado evidenciam que o 7.738/89 a Corte Máxima não autorizou que fosse alargado o
8 12
.
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

conceito de faturamento, nem ampliou a possibilidade de tri- a instituição de contribuição para a seguridade social inciden-
butação pela União. Ao contrário, tendo o legislador federal te sobre a receita, nos seguintes termos:
criado tributo incidente sobre a receita bruta, o STF delimitou
seu significado para que mencionada lei fosse compatível com "Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a
o Texto Constitucional. sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei,
mediante recursos provenientes dos orçamentos da União,
Diante dos argumentos expendidos, contrários a qualquer
dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das
equiparação entre receita bruta e faturamento, em face da seguintes contribuições sociais:
vedação constante do artigo 110 do Código Tributário Nacional,
I - do empregador, da empresa e da entidade a ela equipa-
o Ministro Sepúlveda Pertence certificou: "Há um consenso:
rada na forma da lei, incidentes sobre:
faturamento é menos que receita bruta". E concluiu ponderan-
a) a folha de salários e demais rendimentos do trabalho
do que, também a seu ver, a lei tributária não pode igualar
pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa física que
referidos conceitos, razão pela qual julgou constitucional o
lhe preste serviço, mesmo sem vínculo empregatício;
artigo 28 da Lei n. 7.738/89, partindo de uma interpretação
b) a receita ou o faturamento;
restritiva de receita bruta. São suas as palavras:
c) o lucro;"
"Incidiria essa regra [a do art. 110 do CTNI - que não pre-
cisaria estar no CTN, porque é elementar à própria aplica- Em resumo, até a edição da Emenda Constitucional n.
ção da Constituição - se a lei dissesse: faturamento é igual 20/98, apenas o faturamento poderia ser eleito pelo legislador
a receita bruta. O que tentei mostrar em meu voto, a partir da União como base de cálculo de contribuição para a seguri-
do Decreto-Lei n. 2.397, é que a lei tributária, ao contrário, dade social. Somente a partir da mencionada Emenda é que
para efeito do Finsocial, chamou receita bruta o que é fatu-
passou a ser permitida a tributação da receita. Ingenuamente
ramento. E, aí, ela se ajusta à Constituição."
se supôs que a ulterior aprovação da Emenda Constitucional
n. 20 pudesse convalidar o desnexo existencial da Lei n.
Acompanharam o voto do Ministro Sepúlveda Pertence
9.718/98, que passaria a vigorar, de 16 de dezembro de 1998
os Ministros Francisco Rezek, Ilmar Galvão, Moreira Alves,
Néri da Silveira, Sydney Sanches e Octavio Gallotti, entenden- para frente, com a devida carga de juridicidade de que até
do que não obstante a Lei n. 7.738/89 se refira a receita bruta, então era destituída. Ledo engano!
esta seria constitucional se restringido seu conteúdo à receita Norma jurídica não pode ser editada sem fundamento
de venda de mercadorias e prestação de serviços, pois consis- de validade, como ocorreu com a Lei n. 9.718/98. À época de
tentes em faturamento, objeto da tributação. sua introdução no ordenamento, nenhum preceptivo consti-
Firmou-se, portanto, precedente no sentido de que não tucional autorizava que se criasse contribuição para a segu-
i mporta o nome que se dê - "receita bruta" ou "faturamento" ridade social incidente sobre a receita. E a demonstração de
-, desde que o objeto de tributação, a base de cálculo tributária, que isso é verdade está na subsequente aprovação da Emen-
corresponda exatamente aos valores auferidos pela pessoa ju- da Constitucional n. 20, permitindo que, de lá avante, isto é,
rídica em decorrência da venda de mercadorias ou da prestação de 16 de dezembro para frente, houvesse contribuições sobre
de serviços, ou de ambos. a receita bruta.
Apenas em momento posterior, em 16 de dezembro de Há um argumento, contudo, que pode iludir nossa atenção,
1998, foi editada a Emenda Constitucional n. 20, autorizando desviando-a, temporariamente, para outro tipo de exegese.
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

Trata-se da proposição afirmativa segundo a qual a Lei n. 9.718, ao direito adquirido, à coisa julgada e ao ato jurídico perfeito
de 27 de novembro de 1998, teria sido legitimada pelos dispo é limite fundamental para todas as cadeias normativas da or-
sitivos da Emenda n. 20, de 16 de dezembro do mesmo ano, a denação brasileira.
quem atribui a virtude de cobrir aquele período de anomia
Nessa linha de raciocínio inscreve-se o da irretroativida-
constitucional para suportar a Lei carente de juridicidade, em de das leis. Este, como direito individual que é, aplica-se inte-
face da ausência de apropriada subordinação hierárquica. O
gralmente às emendas constitucionais, cujas prescrições atin-
raciocínio é atraente, aparecendo como recurso retórico para gem apenas fatos que venham a ocorrer em momento posterior
a entidade tributante. Creio, entretanto, que seu valor argu- ao início de sua vigência.
mentativo ficará enfraquecido, sensivelmente, com algumas
considerações jurídico-científicas que passarei a deduzir.
3.5.6.3.2. A incompatibilidade vitanda da Lei n. 9.718/98, à luz
do sistema constitucional em vigor na data de sua
3.5.6.3.1. Projeção das normas para o tempo futuro publicação
As normas jurídicas existem para regrar condutas em Houve uma série de impropriedades na parificação se-
interferência intersubjetiva, implantando valores e procuran- mântica pretendida pelo Poder Público federal, ao expedir a
do canalizar os comportamentos em direção aos fins que a Medida Provisória que, por outro tropeço, se converteu na Lei
sociedade histórica pretende ver realizados. Nesse ideal de n. 9.718/98. Como já frisei, linhas acima, não se poderia cogitar
vida comunitária, a estabilidade das instituições é pressuposto de lei ordinária para fins de redefinir conceitos e formas de
inarredável, pois sem ela não há como pensar em paz social. direito privado, utilizados pela Constituição na outorga de
Muito bem. Instaurada a ordem jurídica, com a aprovação competências tributárias. E muito menos iniciar esse esdrúxu-
da Lei Constitucional, seja qual for o meio adotado para fundá- lo procedimento pela via sempre temerária de medida provi-
la, o direito passa a regular as condutas interpessoais que se sória. O resultado apareceu de maneira insofismável: criou-se
verificarem a partir da data da publicação dos textos normativos, perplexidade tal que as autoridades constituídas passaram a
marco decisivo para o conhecimento que os destinatários pre- conceber a edição de emenda constitucional como paliativo
cisam ter, levando em conta os direitos e obrigações estipulados. que pudesse sanar tão vicioso procedimento. Em menos de um
Essa é a regra geral. O agir entre pessoas, todavia, postula mês, lá estava a Emenda à Constituição n. 20, proclamando a
outros cuidados que abrem espaço a exceções, como, por exem- mudança do inciso I do art. 195, que passou a prescrever, em
plo, a que se dá com as normas interpretativas, com as pres- sua alínea "b", autorização para instituir contribuição para a
crições que estabelecem penalidades mais brandas e outras seguridade social incidente sobre "a receita ou faturamento".
circunstâncias em que o legislador, atento aos anseios de jus- De ver está que ninguém contesta o expediente disjuntivo
tiça e equilíbrio na relação entre os vários atores do complexo posto pela Emenda, mas para o futuro, vale dizer, a contar do
social, se vê na contingência de adotar. Nos domínios do direi- dia de sua publicação: 16 de dezembro de 1998. Nunca para
to penal, do direito tributário e daqueles em que os direitos e retroceder, atingindo situações pretéritas, pois se o quisesse
garantias individuais possam ser ameaçados de modo mais teria feito o próprio legislador da Emenda, referindo-se, até es-
agudo, a consagração do princípio receptor há de ser exarada pecificamente, à Lei n. 9.718/98. Significa que a alteração cons-
em fortes e incisivas manifestações expressas, já que o respeito titucional não acolheu o teor do mencionado Estatuto, porque,
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

para fazê-lo, a recepção teria de ser expressa e inequívoca, o tempo, alcançando os processos de enunciação realizados sob
que macularia o conteúdo do art. 195, § 4 2 , da própria Consti- fundamento constitucional diverso.
tuição, sobre passar por cima do art. 110 do Código Tributário
Nacional. Nossas assertivas são corroboradas por manifestações
pretéritas do Supremo Tribunal Federal, que, ao julgar a ADIN
O advento da Emenda, aliás, não só deixou de dar abrigo n. 2, consignou na ementa: "O vício de inconstitucionalidade é
à Lei de que falamos, como declarou patente sua incompatibi- congênito à lei e há de ser apurado em face da Constituição vi-
lidade com o sistema anterior, pondo à calvo a erronia proce- gente ao tempo de sua elaboração". Referido julgado teve como
dimental da trajetória eleita, e permitindo que se alcançassem relator o Exmo. Min. Paulo Brossard, consignando em seu voto
as matérias tributárias a que alude, mas por obra de novo di- os seguintes argumentos:
ploma a ser produzido depois dela, Emenda, para encontrar
fundamento de validade nos termos da modificação estabele- "Ao ultrapassar os limites fixados pela Constituição o Poder
cida. Se dúvidas houvesse sobre a carga de juridicidade dos Legislativo passa a exercer poderes que não tem, invade
dispositivos da Lei convertida, a disposição da Emenda veio a uma competência que não lhe pertence e o que fizer terá a
dissipar. marca desse vício fatal, nullus est major defectus quam de-
fectus potestatis.
O direito, qualificado por dinamismos de autocomposição,
Mas que Constituição será esta que limita e legitima a com-
produz suas próprias realidades, que, vezes sem conta, se
petência do Poder Legislativo ao fazer a lei? Não pode ser
mostram em descompasso com as soluções que o senso comum outra senão a Constituição em vigor.
aponta. Não cabe distinguir, portanto, o absurdo de equiparar-
A teoria da inconstitucionalidade das leis supõe uma Cons-
se faturamento a receita bruta, modo grosseiro de aumentar o tituição como lei suprema, hierarquicamente superior às
campo de incidência (base de cálculo) e o universo de contri- demais leis, que lhe devem fidelidade e nela encontram a
buintes da contribuição ao PIS e da COFINS. Aquilo que deve origem de sua validade; supõe que os Poderes do Estado
ser sublinhado, e com tintas fortes, é que sempre houve o obs- estejam sujeitos a essa lei maior, com atribuições por ela
táculo procedimental da existência, entre nós, de uma Consti- definidas e competência por ela limitada." (grifei)
tuição rígida e que se quer respeitada no seu modo particula-
ríssimo de ser. Esse mesmo Texto Supremo não comportaria A conduta produtora da mensagem prescritiva (processo
tais anseios equiparativos, até vir a ser modificado, como o foi, de enunciação da norma) deve dar-se em harmonia com as
pela Emenda n. 20/98. normas que regulam a produção normativa, dentre elas, as que
delimitam a competência tributária. Essa compatibilidade é
Referida Emenda Constitucional, entretanto, não tem o
verificada pelo exame das marcas deixadas pela enunciação,
condão de retroagir, atingindo o processo legislativo passado
consistente na enunciação-enunciada, onde se encontram os
e as normas jurídicas dele decorrentes. O princípio da irretro-
indicativos de tempo, espaço e sujeito que produziu as propo-
atividade da lei veda que preceitos normativos retroajam e
sições prescritivas. A lei não pode ser vista abstraída dos fato-
juridicizem fatos concretizados antes de sua entrada em vigor.
res de produção que a engendraram, devendo ser considerada
No tocante à Emenda n. 20/98, a situação não é diferente. Con-
como um produto indissociado de seu processo de criação.
quanto o poder constituinte derivado tenha ampliado a com-
petência tributária da União relativamente às contribuições Tenho plena convicção de que é o Texto Constitucional
para a seguridade social, seus efeitos não podem retroceder no vigente no instante da instauração da norma infraconstitucional
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PAULO DE BARROS. CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

que deve representar o parâmetro de aferição da constitucio- 9. A alíquota foi fixada em 1,65% e incidirá sobre as receitas
nalidade desta. Consta da citada Lei, em sua enunciação- auferidas pelas pessoas jurídicas, admitido o aproveitamen-
to de créditos vinculados à aquisição de insumos, bens para
enunciada, que foi ela produzida em 27 de novembro de 1998,
revenda e bens destinados ao ativo imobilizado, ademais
tendo sido introduzida no ordenamento pela publicação no dia
de, entre outras, despesas financeiras".
28 do mesmo mês. Logo, sua constitucionalidade há de ser
examinada à luz da redação vigente naquele momento. As
Logo depois, foi editada a Medida Provisória n. 135, de
modificações introduzidas pela EC n. 20/98 não legitimam ju-
30/10/2003, convertida na Lei n. 10.833/03, dispondo sobre a
ridicamente as legislações anteriores que tenham sido editadas
cobrança "não-cumulativa" da COFINS, o que o legislador
de forma irregular, determinando a tributação com base em
chamou de "continuidade à reestruturação na cobrança das
fato que não era previsto no art. 195, I, do Texto Magno original,
contribuições incidentes sobre o faturamento". Ainda, obje-
como é o caso da Lei n. 9.718/98.
tivando empreender as modificações legislativas concernen-
tes ao assunto, surgiu a Lei n. 10.865/04, que, além de dispor
3.5.7. Instituição do regime da não-cumulatividade na contri- sobre a contribuição ao PIS e a COFINS incidentes sobre a
buição ao PIS e na COFINS importação de bens e serviços, alterou, em muitos aspectos,
o regime não-cumulativo das contribuições examinadas, con-
Com as sucessivas alterações legais e consequentes mo- ferindo nova redação a diversos dispositivos das Leis ns.
dificação e alargamento da regra-matriz de incidência dos 10.637/02 e 10.833/03.
mencionados tributos pela Lei n. 9.718, de 27/11/98, a contri-
Convém esclarecer, nesta oportunidade, que a tributação
buição ao PIS e a COFINS passaram a ter por base de cálculo
não-cumulativa é expressamente exigida pelo Texto Constitu-
o total das receitas da empresa, representando elevado ônus
cional relativamente ao IPI, ICMS, impostos e contribuições
econômico às cadeias industriais, comerciais e de serviços. Daí
residuais. Outros tributos, sobre os quais a Constituição é si-
o pleito dos contribuintes pela implantação da sistemática não-
lente, podem ser, em princípio, cumulativos, estando na intei-
cumulativa a esses tributos.
ra discrição do legislador infraconstitucional estabelecer ou
Nesse sentido, adveio a Medida Provisória n. 66, de não métodos para evitar a incidência em cascata.
29/08/2002, convertida na Lei n. 10.637/02, instituindo uma
Eis a razão pela qual a contribuição ao PIS e a COFINS
sêrie de medidas destinadas a implementar a "não-cumulati-
sempre foram cumulativas. Eis também a mesma base consti-
vidade" da contribuição ao PIS, como bem referido na exposi-
tucional que permitiu ao legislador ordinário prever o abati-
ção de motivos daquela Medida Provisória:
mento de créditos relativamente a essas contribuições (Leis
n.s 10.637/02 e 10.833/03). Naquele ensejo, o legislador desenhou
"(...) 2. A proposta, de plano, dá curso a uma ampla reestru-
turação na cobrança das contribuições sociais incidentes o modelo do sistema não-cumulativo, determinando quais
sobre o faturamento. Após a instituição da cobrança mono- seriam as pessoas jurídicas sujeitas a essa nova modalidade de
fásica em vários setores da economia, o que se pretende, na cálculo, os critérios para a quantificação do crédito, a forma de
forma desta Medida Provisória, é, gradualmente, proceder- sua compensação e, até mesmo, as limitações e vedações ao
se à introdução da cobrança em regime de valor agregado creditamento.
- inicialmente com o PIS/Pasep para, posteriormente, al-
cançar a Contribuição para o Financiamento da Segurida- Em seguida, procurando conferir status constitucional à não-
de Social (Cofins). (...) cumulatividade dessas contribuições, o constituinte derivado
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

editou a Emenda Constitucional n. 42, de 19/12/2003, acrescen- e da COFINS. Reduzindo as complexidades suscitadas pela
tando o § 12 ao art. 195, cuja redação vale transcrever: disciplina de tais tributos, podemos construir os seguintes
conteúdos prescritivos 255 :
"§ 12. A lei definirá os setores de atividade econômica para
os quais as contribuições incidentes na forma dos incisos I, Contribuição ao PIS: "Dado o fato de haver ingresso de
h; e IV do caput, serão não-cumulativas". receita, deve-ser o pagamento à União, pela pessoa jurí-
dica titular daquela receita, de tributo equivalente a 1,65%
Diante dessa Emenda, a não-cumulatividade da contri- da receita auferida".
buição ao PIS e da COFINS, que havia sido instituída por li-
COFINS: "Dado o fato de haver ingresso de receita, deve-
beralidade do legislador ordinário, com os permissivos e veda-
ser o pagamento à União, pela pessoa jurídica titular
ções pelos quais livremente optou, passou a apresentar conteú-
daquela receita, de tributo correspondente a 7,6% da re-
do mínimo de significação. Por imperativo constitucional,
ceita auferida".
pretendendo-se a aplicação do regime não-cumulativo àqueles
tributos, coube ao legislador apenas indicar os setores da ati- Simultaneamente, prescrevem as Leis n.s 10.637/02 e
vidade econômica em que deseja fazê-lo, sem, no entanto, 10.833/03 que, depois de apurado o quantum devido, na forma
autorizar que este limite o direito ao crédito, mitigando os acima referida, faz jus o contribuinte ao abatimento de certos
efeitos da não-cumulatividade 254 . valores, por elas denominados "créditos". Criam, com isso,
regras-matrizes do direito ao crédito, as quais objetivam con-
3.5.7.1. Direito ao crédito de PIS e COFINS cretizar o princípio da não-cumulatividade e podem ser assim
enunciadas:
Com o objetivo de implantar o regime da não-cumulati-
vidade à contribuição para o PIS e à COFINS, as Leis ns. Contribuição ao PIS: "Dado o fato da aquisição de bens,
serviços e a realização de despesas, deve-ser o direito do
10.637/02 e 10.833/03 permitem que do valor devido a título de
PIS e COFINS sejam deduzidos créditos, calculados com base contribuinte ao desconto, do montante do tributo devido,
de 1,65% calculado sobre o valor daqueles bens, serviços
no custo das aquisições de bens e serviços, bem como das des-
e despesas".
pesas incorridas, todos esses valores necessários à atividade
da pessoa jurídica. COFINS: "Dado o fato da aquisição de bens, serviços e a
realização de despesas, deve-ser o direito do contribuin-
Das regras-matrizes de incidência tributária advêm os
te ao desconto, do montante da contribuição devida, de
liames que têm por objeto o pagamento da contribuição ao PIS
7,6% calculado sobre o valor daqueles bens, serviços e
despesas".

254. Importa consignar que o art. 195, § 12, da CR/88 é dirigido, também, A relação jurídica de direito ao crédito (também denomi-
à contribuição para o PIS, pois prescreve que a não-cumulatividade será
nado "abatimento" ou "desconto") nasce como eficácia do fato
aplicada às contribuições incidentes na forma dos incisos I, b; e IV do caput.
A contribuição ao PIS, por seu turno, é incidente na forma do inciso I, b, do
art. 195, visto que tem por base de cálculo o faturamento ou a receita, nos
mesmos moldes da COFINS, sendo destinada ao financiamento da seguridade 255. Essa construção normativa é referente apenas à tributação das pessoas
social (seguro-desemprego). jurídicas abrangidas pela regra da não-cumulatividade.
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

da aquisição de bens e serviços e da sujeição a despesas rela- alguma forma, a operacionalidade deste último. Ora, havendo
cionadas com a atividade do contribuinte. Quanto à forma de por parte do contribuinte direito aos recursos que asseguram
cálculo do crédito, consiste na aplicação das alíquotas de 1,65% a não-cumulatividade, e desfrutando ele de isenção, não qua-
e 7,6%, caso se trate de contribuição ao PIS ou COFINS, inde- draria argumentar que um anula o outro, como se estivessem
pendentemente de os bens, serviços e despesas terem sido em oposição frontal. Ao contrário, tais providências ordinató-
onerados por equivalente alíquota. rias se entrecruzam, somando seus efeitos: o direito subjetivo
O montante do crédito não se afere com base no tributo à isenção e o direito constitucional à não-cumulatividade.
incidente na etapa anterior do ciclo econômico, mas sim a Se a operação é isenta, a regra-matriz de incidência tribu-
partir de alíquota previamente determinada, aplicada sobre o tária fica neutralizada, não havendo falar em acontecimento
valor da operação. Como decorrência disso, sendo o adquiren- do "fato gerador" e, por via de consequência, em nascimento
te sujeito ao regime não-cumulativo da contribuição ao PIS e da obrigação tributária. Entretanto, percutindo sobre o mesmo
da COFINS, está autorizado a descontar créditos calculados a suporte fáctico para determinar outro fato jurídico, a regra-
1,65% e 7,6% em relação a seus dispêndios, ainda que o forne- matriz de direito ao crédito produz seus efeitos, para o fim de
cedor do bem ou serviço seja onerado com alíquota diversa, constituir o direito ao crédito.
como é o caso das pessoas jurídicas tributadas pelo imposto de
Como o direito ao crédito não decorre diretamente da
renda com base no lucro presumido ou dos optantes pelo
incidência da norma tributária, fica sendo de todo irrelevante
SIMPLES, além das demais entidades relacionadas no art. 8 4
saber se a operação é ou não isenta, se o fato jurídico tributário
da Lei n. 10.637/02 e art. 10 da Lei n. 10.833/03. Isso evidencia
adquiriu ou não a concrescência que dele se esperava, se ir-
a independência entre a regra-matriz tributária e a regra-
rompeu ou não o vínculo obrigacional do imposto, se foi ou não
matriz do direito ao crédito.
cobrado o valor da eventual prestação. Na verdade, a cobran-
ça da dívida, a instalação da obrigação tributária, a concretude
3.5.7.2. O fenômeno da isenção no caso dos tributos não-cumu- do fato jurídico, a dinâmica da regra-matriz de incidência e a
lativos atuação da regra isentiva são momentos da fenomenologia
jurídica dos tributos que não influem na composição do direi-
Entre os efeitos produzidos pela regra de isenção não se to ao crédito. A atuação da regra isentiva não macula o direito
encontra qualquer detrimento à norma jurídica que regula o ao crédito. A norma de isenção existe para inibir a incidência
direito ao crédito. Aliás, não vai nisso grande novidade, uma da norma tributária, nos específicos casos nela previstos, e não
vez que a isenção, como acontece com outros mecanismos do para prejudicar o direito ao crédito, comprometendo, de algum
direito positivo, é instrumento relevantíssimo para que o legis- modo, as metas constitucionais da não-cumulatividade.
lador opere providências extrafiscais, modelando a aplicação
Apenas em relação ao ICMS a Carta Magna prescreve
do sistema tributário, em função dos objetivos e dos valores
que "a isenção ou não-incidência, salvo determinação em con-
que pretende alcançar.
trário da legislação: a) não implicará crédito para compensação
De ver está que o expediente da isenção deve caminhar com o montante devido nas operações ou prestações seguintes;
juntamente com os preceitos que asseguram a técnica da não- b) acarretará a anulação do crédito relativo às operações an-
cumulatividade, não sendo o caso de cogitar qualquer colisão teriores" (art. 155, § 2 2 , II). A tentativa de estender tal restrição
entre o preceito isentivo e o magno princípio, dificultando, de aos demais tributos não-cumulativos é fabricar prescrições,
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

em manifestação cerebrina, atribuindo-as a um pseudole- 3.5.7.3. Vedações ao crédito


gislador constitucional, que muito distante esteve de tais
elucubrações. Como já anotado, o regime não-cumulativo instituído
pelas Leis ns. 10.637/02 e 10.833/03 permite às empresas utilizar
Diversamente do que ocorre com o ICMS, no que diz
créditos de PIS e COFINS relativos às etapas anteriores da
respeito à contribuição ao PIS e à COFINS, o constituinte cadeia econômica para abatê-los dos valores das contribuições
não especificou o conteúdo, limites e extensão do princípio incidentes sobre suas receitas. Tais legislações, porém, limitam
da não-cumulatividade, deixando de pormenorizar o modo a possibilidade de creditamento, relacionando situações que
pelo qual o objetivo prescrito há de ser alcançado. Esse si- não fazem surgir esse direito. Prescrevem, no art. 3 2 , § 2 2 :
lêncio, no entanto, dista de implicar total liberdade do legis-
lador na implantação daquele primado. Ao contrário, a "Art. 3 4 (...)
singela indicação da não-cumulatividade como vector a ser § 2 2 Não dará direito a crédito o valor:
seguido revela a amplitude do princípio, que não comporta I — de mão-de-obra paga a pessoa física; e
restrição de espécie alguma, limitando sobremaneira a ação
II — da aquisição de bens ou serviços não sujeitos ao paga-
legislativa. mento da contribuição, inclusive no caso de isenção, esse
Por ocasião da disciplina da não-cumulatividade daquelas último quando revendidos ou utilizados como insumo em
produtos ou serviços sujeitos à alíquota 0 (zero), isentos ou
contribuições, à lei infraconstitucional é vedado restringir seu
não alcançados pela contribuição". (Acrescentado pela Lei
alcance ou extensão. Quando muito, poderá tratar dos deveres n. 10.865/04).
instrumentais necessários à concretização do princípio, como
procedimentos de constituição, registro e utilização dos crédi- Ponderando a redação de tais dispositivos com as hipó-
tos, bem como indicar os setores da atividade econômica su- teses que geram créditos de PIS e COFINS à pessoa jurídica,
jeitos ao regime não-cumulativo, observadas as peculiaridades iremos encontrar um problema. Mencionaremos o rico exem-
dos respectivos ciclos produtivos. plo da aquisição de ativos fixos, nas hipóteses de incidência
A conclusão há de ser peremptória: explicitamente posto das referidas contribuições, para plantar argumentos sólidos
o cânone da não-cumulatividade, que não só permite como àquela zona de penumbra e delimitar o campo da abrangên-
exige o exercício do direito ao crédito do tributo, e na ausência cia normativa. As Leis ns. 10.637/02 e 10.833/03 relacionam,
de obstáculo constitucional para sua implantação, as restrições expressamente, que "a pessoa jurídica poderá descontar cré-
válidas para o ICMS não podem ser aplicadas à contribuição ditos calculados em relação a: máquinas, equipamentos e
para o PIS e à COFINS. O princípio da não-cumulatividade outros bens incorporados ao ativo imobilizado adquiridos
prescrito às referidas contribuições consiste no direito de o para utilização na produção de bens destinados à venda, ou
contribuinte compensar, abater, deduzir ou reduzir o valor da na prestação de serviços" (art. 3Q, VI). Mas, quando os bens
forem adquiridos sem incidência das contribuições, o direito
contribuição correspondente às etapas anteriores do ciclo
ao crédito é limitado.
econômico (independentemente da efetiva incidência tributá-
ria), sem qualquer tipo de condição, limitação ou restrição. Para além do rigor, diversas são as hipóteses de não su-
Tudo para que apenas o valor agregado sofra tributação na jeição ao pagamento da contribuição ao PIS e da COFINS,
sequência da cadeia negocial. susceptíveis de serem enquadradas na parte inicial do preceito
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

restritivo acima (art. 3s, § 2 2 , II). Dentre elas, as mais comuns encargos de depreciação de máquinas, equipamentos, vasilha-
são: (i) inexistência de receita, não ocorrente o fato jurídico mes de vidros retomáveis e outros bens incorporados ao ativo
tributário que dá nascimento aos gravames; (ii) imunidade imobilizado, para fins de apuração da contribuição para o PIS/
tributária, por tratar-se de situação à qual o constituinte proi- PASEP e da COFINS. O ato confirma a possibilidade de des-
biu a incidência do tributo; e (iii) isenção, em que a obrigação conto de créditos relativos a bens do ativo fixo, estipulando o
tributária não nasce em virtude de ter o legislador ordinário modo e prazo em que deve ser feito, e proibindo, no art. 14, §
assim determinado, mediante mutilação parcial da regra-ma- 3 2 , II, a utilização de créditos "na hipótese de aquisição de bens
triz. Não obstante todos esses fenômenos jurídicos acarretarem usados". Não é difícil verificar que a vedação constante na
a não sujeição ao pagamento da contribuição, o dispositivo em Instrução Normativa, no sentido de não poderem ser aprovei-
exame confere tratamento diferenciado à isenção, determinan- tados créditos em tais hipóteses, é juridicamente inaplicável
do que, na hipótese dos bens e serviços adquiridos serem por violar o princípio da estrita legalidade tributária. As ins-
isentos, é vedado o direito ao crédito, apenas e tão-somente, truções normativas caracterizam-se como instrumentos nor-
se a saída desses bens e serviços também não se sujeitar ao mativos secundários, inteiramente subordinados à lei, não
pagamento de tais tributos. sendo veículos apropriados à inovação do ordenamento, me-
Nos termos dessa interpretação, e considerando a tecni- diante introdução de normas que obrigam os particulares. Por
cidade do vocábulo "isenção", cravemos nossas premissas ser ato infralegal, inadmissível o estabelecimento de restrição
metodológicas no exemplo da transferência de bens dos ativos não referida pelas leis ordinárias.
operacionais mediante conferência destes para formação do Esta é, a meu ver, a interpretação mais apropriada do
capital das subsidiárias. Segundo dispositivo legal, a mencio- dispositivo que examinamos. No entanto, registro que a posição
nada hipótese não daria direito ao crédito, visto não ser essa da Secretaria da Receita Federal é diversa. Segundo seu en-
aquisição sujeita à contribuição ao PIS e à COFINS em razão tendimento, não é possível creditar-se quando os bens adqui-
da inexistência de receita. ridos para esse fim sejam usados. Além disso, esse órgão ad-
Por outro lado, dando-se a aquisição dos ativos opera- ministrativo entende que os bens adquiridos, incorporados ao
cionais por ato de compra e venda, tem-se a ocorrência de ativo imobilizado, quando tal operação não se sujeite à contri-
receitas, as quais estão isentas da tributação. Daí por que, buição ao PIS e à COFINS, não geram direito ao crédito, mo-
nesse caso, mesmo não havendo exigência do pagamento de tivo pelo qual esses créditos devem ser buscados perante o
PIS e COFINS, a aquisição gera créditos às subsidiárias ad- Poder Judiciário.
quirentes. A isenção torna inviável o direito ao crédito tão só
quando os bens adquiridos forem revendidos ou utilizados 3.5.8. As cooperativas e o não cabimento de sua tributação
em produtos ou serviços sujeitos à alíquota zero, isentos ou pelo PIS e COFINS
não alcançados pelas contribuições.
Transportando agora nossas atenções para as hipóteses Nas sociedades cooperativas, os associados obrigam-se a
de aquisição de bens usados, deparamo-nos com a Instrução contribuir com bens ou serviços para o exercício de atividade
Normativa n. 457, de 18/10/2004, emitida pelo Secretário da econômica, de proveito comum e sem objetivo de lucro, con-
Receita Federal que, objetivando regulamentar o assunto, dis- forme demarcado pela Lei n. 5.764/71, que definiu a Política
ciplinou a utilização de créditos calculados em relação aos Nacional do Cooperativismo e instituiu o regime jurídico das

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

sociedades cooperativas, trazendo disciplina segura a respeito bem ou serviço consiste na somatória do custo e da mais-valia,
dos princípios e das relações que se estabelecem nesse tipo de motivo pelo qual, sendo o resultado econômico positivo, está-se
grupamento associativo. diante do "lucro". Nas cooperativas, porém, a composição do
preço ocorre de modo diverso, visto que seu intuito não é al-
Em tal espécie de sociedade, o cooperado participa como
cançar vantagem econômica, mas tão somente prestar serviço,
proprietário, atuando em todos os processos decisórios, de
criação e de manutenção da sociedade. Ao mesmo tempo, esse da forma menos onerosa possível, aos cooperados, atuando
sócio/proprietário figura como destinatário da atividade exer- como intermediárias nas operações entre estes e terceiros. No
cida pela cooperativa, ou seja, é consumidor dos serviços por caso, o preço de venda equivale ao custo do produto.
ela prestados. Eis o elemento caracterizador da cooperativa: a Na prática, entretanto, é difícil avaliar o exato custo da
existência de duas relações distintas, porém indissociáveis. mercadoria ou serviço, para fins de fixação do seu preço de
Uma, relação em que o associado faz as vezes do proprietário; venda. Por essa razão, é possível verificar-se, no final do perí-
outra, resultado da primeira, em que o cooperado toma parte odo de apuração, um resultado positivo ou negativo. No pri-
como beneficiário. meiro caso, fala-se em "sobra"; no segundo, em "prejuízo".
Desses liames decorrem os atos cooperativos, definidos Estes nada mais são do que uma consequência da difícil tarefa
no artigo 79, caput, e parágrafo único da Lei n. 5.764/71, como de apurar, antecipadamente, o exato montante dos custos, ou
aqueles praticados entre as cooperativas e seus associados, seja, um indesejável desencontro entre esses dois elementos:
entre estes e aquelas, bem como pelas cooperativas entre si, custo e preço, não se vislumbrando na "sobra" aquele intuito
para a consecução dos objetivos sociais, não implicando ope- lucrativo próprio das sociedades mercantis.
ração de mercado, nem contrato de compra e venda de produ- A legislação que disciplina a atividade cooperativa (Lei n.
to ou mercadoria. Esse é o fim das sociedades cooperativas: 5.764/71) prescreve, em seu art. 24, § 3 2 , que: "É vedado às
prestação direta de serviços a seus associados, sem objetivo de cooperativas distribuírem qualquer espécie de benefício às
lucro, ainda que para tanto seja necessário o exercício de ati- quotas-partes do capital ou estabelecer outras vantagens ou
vidades negociais como meio para a obtenção da finalidade privilégios, financeiros ou não, em favor de quaisquer associa-
proposta. dos ou terceiros, excetuando-se os juros até o máximo de 12%
Essa "intermediação" exercida pela cooperativa tem por (doze por cento) ao ano que incidirão sobre a parte integrali-
premissa a ausência de lucro. Seu objetivo é tão-somente zada". Observa-se, nessa pequena transcrição, a grande dife-
prestar serviços em benefício dos cooperados. Acerca do as- rença existente entre cooperativas e as tradicionais sociedades
sunto, cuida esclarecer que o fato de, nos termos do art. 80 da mercantis e de serviços, pois enquanto as segundas objetivam
Lei n. 5.764/71, efetivar-se a distribuição dos prejuízos e sobras a máxima retribuição monetária, essa espécie de remuneração
líquidas aos associados não lhe retira o caráter de sociedade é expressamente vedada relativamente às primeiras.
sem fins lucrativos, pois entre "lucro" e "sobra" há grande Como já anotei, a legislação complementar cumpre, em
diferença.
termos tributários, relevante papel de mecanismo de ajuste,
Costumeiramente, o preço de um produto ou serviço é calibrando a produção legislativa ordinária em sintonia com
composto pela soma do seu custo, acrescido de um valor que os mandamentos supremos da Constituição da República.
o proprietário de tal bem ou executor da atividade receberá Aproveito para renovar que a legislação complementar opera
pelo seu feito. Em outras palavras, o preço de venda de um de dois modos diferentes: (i) como instrumento das chamadas
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

"normas gerais de direito tributário", isto é, introduzindo termos de compatibilidade plena com o teor dos novos pre-
aqueles preceitos que regulam as limitações constitucionais ao ceitos constitucionais, como, aliás, já foi assentado páginas
exercício do poder tributário, bem como os que dispõem sobre atrás.
conflitos de competência entre as pessoas políticas de direito
Ocorre que o legislador, ao criar a Lei n. 5.764/71, dis-
constitucional interno; e (ii) como veículo deliberadamente
ciplinou, em muitos de seus dispositivos, matéria privativa
escolhido pelo legislador constituinte, tendo em vista a disci-
de lei complementar, como é o caso do adequado tratamen-
plina jurídica de certas matérias.
to tributário do ato cooperativo. Logo, em face dessa orien-
Assim, diante das peculiaridades inerentes às cooperati- tação semântica, foram tais preceptivos acolhidos pelo or-
vas, o constituinte houve por bem eleger a lei complementar denamento jurídico com a força vinculativa daquele Estatu-
como veículo introdutor de normas jurídicas tributárias no to, em função do assunto por eles regulado, não podendo,
âmbito dessa espécie de sociedade, prescrevendo, expressa- consequentemente, ser revogados ou alterados por legislação
mente, no art. 146, inciso III, alínea "c", da Carta Magna, com- ordinária.
petir à lei complementar estabelecer referidas normas, espe-
As cooperativas são criadas para beneficiar seus mem-
cialmente sobre "adequado tratamento tributário ao ato coope-
bros, atuando como uma espécie de intermediárias, porém
rativo praticado pelas sociedades cooperativas". Essa é uma das
sem finalidade lucrativa. Na hipótese de cooperativa de
matérias que o constituinte considerou especial e merecedora
produção, por exemplo, a sociedade é representante estatu-
de maiores cuidados, demandando disciplina rigorosa, a ser
tária dos produtores da matéria-prima, transformando-a em
introduzida no ordenamento mediante veículo normativo de
produto para comercialização e distribuindo-o no mercado.
posição intercalar, em decorrência de seu procedimento legis-
A produção e comercialização do bem são praticadas pelas
lativo mais complexo.
cooperativas, porém em nome dos cooperados, que são os
Estamos diante de típico exemplo do papel de ajuste re- beneficiados pelas prestações de serviços realizados por
servado à legislação complementar, para garantir a harmonia aquelas, sendo os verdadeiros titulares dos valores pagos
que o sistema requer. pelos adquirentes.
Consignados esses esclarecimentos e considerando que Suponhamos uma sociedade cooperativa que tenha por
a Lei n. 5.764/71 disciplina o regime das sociedades coopera- escopo proporcionar a seus cooperados condições de produ-
tivas, é o caso de registrar que referido Diploma Legal foi ção e comercialização de álcool e carburante. O fim dessa
incorporado à ordem jurídica instaurada com a Constituição sociedade é exatamente tornar viável a atividade produtiva
de 1988, por efeito da manifestação explícita contida no § 5 2 , dos sócios-cooperados, sendo tal objetivo alcançado por "in-
do art. 34, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, termédio" do processamento de cana-de-açúcar produzida
que assegura a validade sistêmica da "legislação anterior", pelos associados, tarefa realizada pelo cooperado, gerando
naquilo em que não for incompatível com o novo sistema tri- como produto o álcool combustível, para posterior comercia-
butário brasileiro. É o tradicional "princípio da recepção", meio lização. A produção da sociedade cooperativa, no entanto,
pelo qual se evita intensa e árdua movimentação dos órgãos faz-se em nome dos cooperados, sendo estes os verdadeiros
legislativos para o implemento de normas jurídicas que já se adquirentes dos valores pagos por terceiros, conforme está
encontram prontas e acabadas, irradiando sua eficácia em representado graficamente.
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

Cooperado Cooperativa Terceiros seu enquadramento na regra-matriz de incidência das contri-


(produtor da (intermediário; (adquirentes buições ao PIS e à COFINS, seja nos termos das Leis Comple-
cana-de- produtor do álcool) do álcool)
açucar) mentares n. 7/70 e n. 70/91, da Lei Federal n. 9.718/98 ou mesmo
da Medida Provisória n. 1858-6 e suas reedições.
Acerca das referidas contribuições, mister se faz registrar
que a primeira (PIS) foi instituída pela Lei Complementar n.
07/70, recepcionada pela Constituição da República de 1988
Na realidade, não estamos diante de duas operações mer-
(art. 239), enquanto a segunda (COFINS) teve sua introdução
cantis, acarretando dois ingressos distintos, sendo um relativo
no ordenamento jurídico mediante a Lei Complementar n.
aos cooperados e outro à cooperativa. Há apenas um ato de
70/91, com fundamento de validade no art. 195, I, da Carta
mercado, seguido de apenas um faturamento, consistente nos
Magna. Considerando o peculiar caráter do ato cooperativo,
valores recebidos pelos cooperados e resultantes das vendas a
tais veículos normativos excluíram as cooperativas do rol de
terceiros. Logo, inadmissível falar em faturamento ou receita
seus contribuintes, reconhecendo sua intributabilidade por
bruta da cooperativa, pois esta funciona como mera interme-
exações incidentes sobre o faturamento ou a receita.
diária, efetuando a cobrança e recebimento de valores em nome
dos cooperados. O legislador ordinário federal, porém, pretendendo alterar
a disciplina jurídica da contribuição ao PIS e da COFINS,
No exemplo, a cooperativa de produção é autorizada a
editou a Lei n. 9.718/98, estabelecendo, em seu art. 3.Q e § 1 2 ,
transformar a cana-de-açúcar em álcool combustível, bem como
que será tributada a receita bruta da pessoa jurídica, sendo
a negociar a venda desse produto, de propriedade dos coope-
irrelevante o tipo de atividade por ela exercida e a classificação
rados, com terceiros, possíveis adquirentes. Em síntese, essa
contábil adotada para as receitas. Posteriormente, expediu a
espécie de sociedade contrata a venda dos produtos de seus
Medida Provisória n. 1.858-6, determinando, no art. 23, II, "a",
associados, os quais, após concretizado o negócio, recebem o
a revogação da isenção constante do art. 6Q, inciso I, da Lei
fruto de seus esforços. Disso depreende-se que a atividade da
Complementar n. 70/91, no intuito de ver os atos cooperativos
cooperativa não configura empreendimento dissociado daque-
tributados pela COFINS. Além disso, essa mesma Medida
le praticado pelos cooperados, representando mero instrumen-
Provisória, tendo deixado de relacionar as cooperativas dentre
to para a realização dos fins por estes colimados.
aqueles que devem contribuir para o PIS com base apenas na
Todas as cooperativas, enfim, integram, juntamente com sua folha de salários, pretendeu ver exigida dessas sociedades
os cooperados, uma unidade econômica, agindo como um só a contribuição incidente sobre sua receita bruta.
ente, sempre em nome, por conta e em benefício dos associados,
As alterações suso mencionadas, porém, não podem pros-
titulares das eventuais receitas auferidas, sendo essa espécie de
256 perar, pois como já anotei e repito, as cooperativas não possuem
sociedade, na terminologia empregada por Waldírio Bulgarelli ,
faturamento nem receita bruta, o que representa cabal impos-
apenas uma "projeção do cooperado". Por esse motivo, não
sibilidade de incidência da regra-matriz tributária.
possuindo a cooperativa faturamento nem receita, é inadmissível
Não bastasse esse relevante argumento jurídico, convém
deixar marcado o descabimento de a lei complementar discipli-
256. Regime tributário das cooperativas, São Paulo, Saraiva, 1974, p. 18. nadora da tributação dos atos cooperativos vir a ser alterada ou

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PAULO DE BARROS CARVALHO

revogada, total ou parcialmente, por lei ordinária ou medida


provisória. Não fosse pela expressa previsão do art. 146, III,
"c", da Constituição da República, prescrevendo a necessida-
de de que o veículo introdutor de normas atinentes ao ade-
quado tratamento tributário dos atos cooperativos seja a lei
complementar, o próprio caráter desse instrumento norma-
tivo como mecanismo de ajuste assegurador do funcionamen-
to do sistema seria suficientemente hábil para impedir alte-
rações desse jaez. Capítulo 4
INFRAÇÕES E SANÇÕES TRIBUTÁRIAS
Sumário: 4.1. Estrutura lógica da regra sanciona-
tória — 4.1.1. Noções sobre o vocábulo "sanção" —
4.1.2. Ambiguidade do termo "sanção" e suas espé-
cies na esfera tributária — 4.1.3. Algumas palavras
sobre a norma secundária — 4.1.4. Regra-matriz e a
estrutura lógica das normas sancionatórios. 4.2.
Infrações tributárias: hipótese normativa, seu
núcleo constante — 4.2.1. Ilícitos ou infrações tribu-
tárias e os chamados "crimes fiscais" — 4.2.2. Clas-
sificações e espécies de infrações tributárias — 4.2.3.
As figuras do "abuso de direito" e da "fraude à lei"
no Ordenamento Jurídico Tributário Brasileiro —
4.2.4. Infrações tributárias no Código Tributário
Nacional — 4.2.5. Hipóteses de exclusão da penali-
dade. 4.3. Sanções no direito tributário — 4.3.1.
Sanção como consequente normativo — 4.3.2. Espé-
cies de sanções tributárias — 4.3.3. Impossibilidade
de cobrança de juros de mora no caso de medidas
liminares — 4.3.4. Excessos sancionatórios — 4.3.5.
Responsabilidade dos sucessores — 4.3.6. Respon-
sabilidade de terceiros — 4.3.7. Responsabilidade
por infrações — 4.3.8. Tipicidade, Vinculabilidade da
tributação e Denúncia Espontânea.

4.1. ESTRUTURA LÓGICA DA REGRA SANCIONATÓRIA


O traço característico do direito é a coatividade, que é
exercida, em último grau, pela execução forçada e pela restri-
ção da liberdade. Mas enganam-se aqueles que apontam para
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

a coatividade como sendo ela o aspecto que o individualiza de experimentando várias acepções distintas, conforme sublinhou
outros domínios normativos, tal qual a religião, a moral, etc. Em Eurico Marcos Diniz de Santi 257 :
linha de princípio, a coação é a característica determinante da
normatividade de um conjunto sistemático. Todos os sistemas "(i) a relação jurídica consistente na conduta substitutiva re-
normativos são essencialmente coativos, não servindo, pois, tal paratória, decorrente do descumprimento de pressuposto
aspecto, para diferençar o ordenamento jurídico de outros sis- obrigacional (de fazer, de omitir, de dar — genericamente pres-
temas de normas. No subsolo desta análise é que se revelará ser tações do sujeito passivo `Sp'); (ii) relação jurídica que habilita
a forma ou o modo com que a coatividade é exercida no direito o sujeito ativo Sa' a exercitar seu direito subjetivo de ação
(processual) para exigir perante o Estado-Juiz `Sj' a efetivação
o elemento de base capaz de dissociá-lo de outros domínios do
do dever constituído na norma primária e (iii) a relação jurídi-
social. Só a ordem jurídica prevê, como conseqüência final do ca, consequência processual deste 'direito de ação' preceituada
descumprimento de seus deveres, espécies de providências que na sentença condenatória, decorrente do processo judicial".
ora coage mediante emprego de força ora aplica penas privativas
de liberdade ou execução forçada. Nesta medida, o traço distin- Lourival Vilanova, bem interpretando a concepção kelse-
tivo reside inteiramente na forma de coação. niana, esclarece que o critério fundamental da distinção entre
Os seres humanos, exclusivos destinatários das regras jurí- normas primárias e secundárias repousa na circunstância de
dicas do direito posto, encontram-se diante de diferentes cami- estas últimas expressarem, no consequente, uma relação de
nhos no constante inter-relacionamento tecido pela vida em cunho jurisdicional, em que o Estado participa como juiz para
sociedade: ou cumprem os deveres estabelecidos nos dispositivos obter, coativamente, a prestação insatisfeita. Como corolário,
legais, ou não realizam essas condutas, incorrendo, por via de advém a necessidade de alojarmos as relações que não reves-
consequência, nas chamadas sanções. O ordenamento jurídico, tirem essa forma no quadro amplo das normas primárias (ou
como forma de tornar possível a coexistência do homem em endonormas, no léxico de Cossio). É o caso das chamadas
comunidade, quer garantir, efetivamente, o cumprimento das "sanções administrativas", projetadas para reforçar a eficácia
suas normas, ainda que, para tanto, seja necessária a adoção de dos deveres jurídicos previstos em outras normas, também
medidas punitivas que afetem a propriedade ou a própria liber- primárias, estabelecendo multas e outras penalidades. Podem
dade das pessoas. Daí por que, ao criar uma prescrição jurídica,
ter, como de fato muitas têm, finalidade punitiva, agravando o
concomitantemente o legislador enlaça uma providência sancio-
valor cobrado a título de tributo. Nada obstante, essa condição,
natória ao não-cumprimento do referido dever. O direito, por
por si só, não é suficiente para outorgar-lhes o caráter de nor-
assim dizer, garante seu ato de vontade, mediante a pressão
ma sancionatória no sentido estrito (perinorma, em Cossio),
psicológica de sanções, associadas, uma a uma, a cada descum-
primento de dever estabelecido. Mas o súdito, resistindo ao temor exatamente por faltar-lhes a presença da atividade jurisdicional
de punição do Estado, pode ser alvo do aparato coativo, ineren- na exigência coativa da prestação, traço decisivo na sua iden-
te ao Poder Público, momento em que se desencadeia efetiva- tificação normativa. São normas primárias que se justapõem
mente o procedimento sancionatório. No corpo dessa temática, às outras normas primárias, entrelaçadas, lógica e semanti-
encontraremos os conceitos de coerção, sanção e coação, cate- camente, a específicas normas secundárias, se bem que o
gorias imprescindíveis ao conhecimento da matéria jurídica. legislador, em obséquio à economia do discurso jurídico-posi-
tivo, integre os valores cobrados em cada uma das unidades
4.1.1. Noções sobre o vocábulo "sanção"

Procede afirmar que o vocábulo "sanção" não é unívoco, 257. Lançamento tributário, São Paulo, Max Limonad, 1996, pp. 38-39.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

normativas, estipulando uma única prestação, a ser exigida coativamente, a pedido do titular de direito violado, tendo em
coativamente pelo exercício da função jurisdicional do Estado. vista a conduta do sujeito infrator. A "sanção", por esse modo,
estaria contida no consequente de norma individual e concre-
Meditações como essas fizeram com que o Prof. Eurico
ta, como traço identificador do próprio direito.
de Santi adotasse a classificação das normas primárias "dispo-
sitivas" e "sancionadoras". Nada obstante, como vimos, o termo tem largo curso no
universo da comunicação jurídica e é muito empregado no
O vocábulo "sanção" comparece aqui na sua acepção
âmbito do direito tributário.
estrita, equivale a dizer, "norma jurídica em que o Estado-Juiz
intervém como sujeito passivo da relação deôntica, sendo su-
jeito ativo a pessoa que postula a aplicação coativa da prestação 4.1.3. Algumas palavras sobre a norma secundária
descumprida".
Convém sublinhar que as normas que põem no ordena-
mento sanções tributárias integram a subclasse das normas
4.1.2. Ambiguidade do termo "sanção" e suas espécies na secundárias, pois, como já observado, são providências em que
esfera tributária o Estado-jurisdição encontra-se em relação com o sujeito in-
frator para fins de aplicar-lhe coativamente uma sanção. Sob
A linguagem ideal para o discurso científico seria aquela
outro ponto de vista, mas ainda no intuito de identificar o qua-
composta apenas por termos unívocos, não fossem as palavras
dro conceptual normativo da sanção, as normas sancionatórias
todas elas vagas e potencialmente ambíguas. O remédio está
são regras de conduta e ostentam a mesma estrutura lógica da
no processo de elucidação, mediante o qual as proporções
regra-matriz de incidência: um antecedente, descritor de clas-
significativas do sinal linguístico crescem em determinação,
se de fatos do mundo real e uma conseqüência prescritora de
segundo os objetivos comunicacionais do autor da mensagem.
vínculo jurídico que há de formar-se entre dois sujeitos de
É a recomendação de Rudolf Carnap para assegurar o rigor do
direito. A proposição-hipótese está ligada à proposição-tese ou
estilo descritivo, na linguagem da ciência.
conseqüência pelo conectivo dever-ser na sua função neutra,
"Sanção" pode experimentar mutações semânticas que enquanto outro conectivo deôntico, modalizado nas formas
variam conforme o momento da sequência prescritiva (direito obrigatório, proibido ou permitido, une os sujeitos da relação
posto) ou expositiva (Ciência do Direito). Tanto é "sanção" a — pretensor e devedor. A diferença entre essa espécie norma-
penalidade aplicada ao infrator quanto a relação jurídica que tiva e as demais regras de comportamento está no anteceden-
a veicula, tratando-se de norma individual e concreta. Também te, tendo em vista que a regra sancionatória descreve fato ilí-
é "sanção" o consequente da norma geral e abstrata, como a cito qualificado pelo descumprimento de dever estipulado no
própria norma que tem como antecedente a tipificação do ilí- conseqüente da regra-matriz de incidência. Essa conduta é tida
cito. E participa do mesmo nome, ainda, o ato jurídico-admi- como antijurídica por transgredir o mandamento prescrito, e
nistrativo que encerra o processo de elaboração de certas leis. recebe o nome de "ilícito" ou "infração tributária". No conse-
Sobremais, recebe o nome de sanção também a percentagem qüente, estão previstas penalidades pecuniárias ou multas
a ser aplicada na base de cálculo da multa. Exemplo: "A sanção fiscais, impostas pelo Estado-jurisdição, configurando o objeto
será de 20% sobre o valor do imposto devido." do dever a ser cumprido pelo autor do ilícito. Eis a sanção como
Creio que a acepção de base do termo, nos domínios do liame de natureza obrigacional e o pagamento do valor estipu-
jurídico, está na providência que o Estado-jurisdição aplica lado é promovido a título de sanção.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

Convém assinalar que a referida estrutura normativa da estas últimas expressarem, no conseqüente, uma relação de
regra sancionatória nem sempre foi tida da forma como des- cunho jurisdicional, em que o Estado participa como juiz para
crita acima. Kelsen, já em seu Teoria Pura do Direito, dizia obter, coativamente, a prestação insatisfeita.
ser fato ilícito aquele enunciado convertido por uma norma Lembremos que as qualidades - primárias e secundárias
em pressuposto de sanção para seu agente. Neste passo, para -acompanhando o termo "norma" não dizem respeito, como
o autor, a norma primária descreveria a sanção, enquanto a alguns autores o afirmam, à cronologia dos eventos, isto é, à
secundária estabeleceria o comportamento desejado pela ordem temporal em que se dá a positivação desses enunciados.
ordem jurídica. O critério adotado em sua classificação toma- Na mesma linha, não procede a relação dessas normas toman-
va em conta o caráter funcional da estrutura normativa. Com do-a como de causa e efeito, isto é, entendendo a primeira como
estes torneios, a formulação de Kelsen expressa-se da seguin- o enunciado jurídico que dá o motivo - primária - da criação
te forma: de outra norma - secundária. No falar cotidiano, reflexões como
essas poderiam até ser aceitas. Contudo, cientificamente, a
norma primária dado certo comportamento humano, deve

situação é outra. Norma primária, regra que estatui direitos e
ser a sanção (ato coativo por parte de um órgão do Estado
deveres, e norma secundária, aquela que positiva a hipótese
pena ou execução forçada);
sancionatória, guardam entre si tão só a relação de anteceden-
norma secundária — dado certo fato temporal, deve ser a
te e conseqüente, conforme observaremos abaixo, produzindo,
prestação (ou comportamento que evite a conseqüência
coativa).
deste modo, aquilo que se entende por enunciado normativo
completo." 7-A
Sob tais concepções kelsenianas, seria possível erigir um Como corolário, advém a necessidade de alojarmos as
sistema normativo, perfeitamente válido e eficaz, tão-só esta- relações que não revestirem essa forma no quadro amplo das
belecendo dispositivos sancionadores, isto é, normas de caráter normas primárias (ou endonormas, no léxico de Cossio). É o
primário, na terminologia do citado autor. Acontece, porém, caso das chamadas "sanções administrativas", projetadas para
que da norma primária poder-se-á sempre extrair, logicamen- reforçar a eficácia dos deveres jurídicos previstos em outras
te, a norma secundária que lhe corresponda. Desse modo, para normas, também primárias, estabelecendo multas e outras
Kelsen, ao estatuir o legislador uma norma primária que enla- penalidades. Podem ter, como de fato muitas têm, finalidade
ce determinada sanção ao descumprimento de certa prestação, punitiva, agravando o valor cobrado a título de tributo. Nada
estará, irremediavelmente, criando o dever de cumprir a alu- obstante, essa condição, por si só, não é suficiente para outor-
dida prestação. Extrai-se da norma primária, por um processo gar-lhes o caráter de norma sancionatória no sentido estrito
lógico, a correspondente norma secundária, configurando-se
esta última expediente técnico para expor o Direito; enquanto
aquel'outra, qual seja a norma descritora de providência san- 257-A. A este respeito, atentemos às palavras de Lourival Vilanova: "norma
primária a que estatui direitos/deveres (sentido amplo) e norma secundária
cionadora da ordem jurídica, concentraria a essência da forma a que vem em consequência da inobservância da conduta devida, justamen-
coativa do ordenamento jurídico. te para sancionar seu inadimplemento (impô-la coativamente ou dar-lhe
conduta substitutiva reparadora). As denominações adjetivas "primária" e
Lourival Vilanova, bem interpretando a concepção kelse- "secundária" não exprimem relações de ordem temporal ou causal, mas de
niana, esclarece que o critério fundamental da distinção entre antecedente lógico para consequente lógico." (Estruturas Lógicas e o Sistema
normas primárias e secundárias repousa na circunstância de do Direito Positivo. São Paulo: Ed. Noeses. 2005, p.106).

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

257-
(perinorma, em Cossio), exatamente por faltar-lhes a presença D [ - R' (S', S") —> R" (S', S"')] c.
da atividade jurisdicional na exigência coativa da prestação,
traço decisivo na sua identificação normativa. São normas As normas primária e secundária, porém, não se apresen-
primárias que se justapõem a outras normas primárias, entre- tam simplesmente justapostas. O relacionamento entre ambas
laçadas, lógica e semanticamente, a específicas normas secun- dá-se por meio de conectivos com função lógica, dos quais o
dárias, se bem que o legislador, em obséquio à economia do mais adequado, segundo nossa opinião, é o disjuntor includen-
discurso jurídico-positivo, integre os valores cobrados em cada te (v), que suscita um trilema: uma ou outra ou ambas. O em-
uma das unidades normativas, estipulando uma única presta- prego desse conectivo tem a propriedade de mostrar que
ção, a ser exigida coativamente pelo exercício da função juris- tanto a norma primária como a norma secundária são válidas,
dicional do Estado. mas que a aplicação de uma exclui a da outra, podendo assim
ser representadas:
Em síntese, a norma primária tem em sua hipótese a co-
notação de um fato de possível ocorrência, ao passo que a hi- D { [H R' (S', S")] v [-R' (S', S") R" (S', S'")1}
pótese da norma secundária descreve a inobservância da
conduta prescrita na conseqüência da primeira. E, enquanto
aquela estatui direitos e deveres correlatos, esta prescreve a
4.1.4. Regra -matriz e a estrutura lógica das normas sancionatórias
sanção mediante o exercício da coação estatal. A norma primá- As normas jurídicas que põem no ordenamento sanções
ria estabelece relação jurídica de direito material (substantivo); tributárias integram a subclasse das regras de conduta e os-
a norma secundária, relação jurídica de direito formal (adjetivo tentam a mesma estrutura lógica da regra-matriz de incidência.
ou processual). Têm uma hipótese descritora de um fato do mundo real e uma
Analisando a arquitetura lógica interna das normas primá- consequência prescritora de vínculo jurídico que há de formar-
ria e secundária, observa-se que a primeira prescreve, em sua se entre dois sujeitos. A proposição-hipótese está ligada à
conseqüência, uma relação jurídica entre dois sujeitos de direito, proposição-tese ou consequência pelo conectivo dever-ser na
perfazendo a seguinte estrutura formal D [H —> R' (S', s”)]257-B. sua função neutra, enquanto outro conectivo deôntico, moda-
A conseqüência da norma secundária, por sua vez, prescreve lizado nas formas permitido, obrigado ou proibido, une os su-
outra relação jurídica em que o sujeito ativo é o mesmo da jeitos da relação - credor e devedor.
primária, havendo, porém, um terceiro sujeito S"' integrando
O antecedente da regra sancionatória descreve fato ilíci-
o pólo passivo da relação jurídica: o Estado, exercitando sua
to qualificado pelo descumprimento de dever estipulado no
função jurisdicional. Possui a norma secundária, por conse-
consequente da regra-matriz de incidência. É a não-prestação
guinte, a forma:

257-C. Interpretando a estrutura lógica: D é o functor-de-functor, que afeta


257-B. Explicando a fórmula: D é o functor-de-functor, que afeta a relação im- a relação implicacional; -R (S', S") é a hipótese, que se caracteriza por des-
plicacional; H é a hipótese, descritora de um fato lícito de possível ocorrência; crever o não-cumprimento da conduta intersubjetiva prescrita pela norma
é o functor implicacional, que denota o caráter condicional da fórmula; primária; —› é o functor implicacional, que denota o caráter condicional da
R' (S', S") é a consequência, prescritora de uma conduta intersubjetiva entre fórmula; R" (S', S"') é a consequência, que prescreve uma relação jurídica
dois sujeitos de direito, onde R' é o relacional deôntico e S' e S" são os sujeitos R" entre S' e S"' (sujeito ativo da norma primária e o Estado exercitando sua
da relação (sujeito ativo e sujeito passivo, respectivamente). função jurisdicional, respectivamente).

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

do objeto da relação jurídica tributária. Essa conduta é tida instante em que se considera acontecido o ilícito. Na conse-
como antijurídica, por transgredir o mandamento prescrito, e quência, depararemos com um critério pessoal - o sujeito
recebe o nome de ilícito ou infração tributária. Anote-se: "ilí- ativo será aquele investido do direito subjetivo de exigir a
cito" ou "infração tributária" são categorias relativas ao mun- multa e o sujeito passivo o que deve pagá-la - e um critério
do fáctico. As penalidades pecuniárias ou multas fiscais confi- quantitativo - a base de cálculo da sanção pecuniária e a
guram o objeto do dever a ser cumprido pelo autor do ilícito, percentagem sobre ela aplicada (chamada, como vimos, de
integrando liame, por isso mesmo, de natureza obrigacional. "sanção").
O pagamento do valor estipulado é promovido a título de san-
A indagação pormenorizada de cada um desses critérios,
ção. Novamente aqui estamos lidando com a dualidade termi-
do antecedente e do consequente, propiciará elevado grau de
nológica que tantos problemas já causou no campo das inves-
aprofundamento teórico na pesquisa do tema das infrações e
tigações científicas sobre o chamado "fato gerador".
sanções tributárias.
Atrelada ao antecedente ou suposto da norma sanciona-
dora está a relação deôntica, vinculando, abstratamente, o
autor da conduta ilícita ao titular do direito violado. 4.2. INFRAÇÕES TRIBUTÁRIAS: HIPÓTESE NORMATIVA,
SEU NUCLEO CONSTANTE
No caso das penalidades pecuniárias ou multas fiscais, o
liame também é de natureza obrigacional. Uma vez que tem O suposto das regras sancionatórias, vale recordar, hos-
substrato econômico, denomina-se relação jurídica sanciona- peda sempre a descrição de um acontecimento do mundo físi-
tória e o pagamento da quantia estabelecida é promovido co exterior, no qual alguém deixou de cumprir determinada
título de sanção. Tratando-se de outro tipo de sanção, que não prestação a que estava submetido, por força de outra norma
seja multa ou penalidade pecuniária, a relação não se altera na jurídica de conduta. Tratando-se de matéria tributária, o ilíci-
sua estrutura básica, modificando-se apenas o objetivo da to pode advir da não-prestação do tributo (da importância
prestação, que será um fazer ou não fazer. Perde o nome de pecuniária), ou do não-cumprimento de deveres instrumentais
vínculo de cunho obrigacional, mas continua sendo uma rela- ou formais. Seja como for, haverá um constante e invariável
ção jurídica sancionatória. Nestes casos, contudo, não,se trata traço que identifica, prontamente, estarmos diante de uma
da sanção compreendida em seu significado de base, ou seja, hipótese de ilícito tributário: é a não-prestação (não-p), pre-
em que se faz presente o Estado-Juiz. sente onde houver fórmula descritiva de infração.
No terreno do estudo das infrações e sanções também é Definimos a infração tributária, portanto, como toda ação
utilíssimo o esquema metodológico da regra-matriz, permitin- ou omissão que, direta ou indiretamente, represente descum-
do uma análise minuciosa do suposto, que traz a descrição primento dos deveres jurídicos estatuídos em leis fiscais.
hipotética do fato ilícito ou infração, e bem assim do conse-
quente, que nos leva à prescrição dos elementos que compõem Para o direito penal tem de haver a materialidade do
o nexo sancionatório. Tudo o que dissemos sobre os critérios evento, contrária aos desígnios da ordem jurídica (antijuridi-
da hipótese tributária vale para o antecedente da norma san- cidade), e, além disso, a culpabilidade, isto é, a imputação do
cionatória, que tem o seu critério material - uma conduta resultado delituoso à participação volitiva do agente. Sem dolo
infringente de dever jurídico -, um critério espacial - a conduta ou culpa, numa de suas gradações, não é punível a conduta
há de ocorrer em certo lugar - e um critério temporal - o que ocasionou o acontecimento típico e antijurídico. Nos
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

domínios do direito tributário, a linha diretriz não é bem essa, recolher, no prazo legal, valor de tributo descontado ou cobra-
penetrando outra sorte de indagações. do de terceiro (art. 2 2 , II). Posteriormente, também a Lei n.
8.212/91 arrolou tal situação como crime (art. 95).
4.2.1. Ilícitos ou infrações tributárias e os chamados "crimes
fiscais" 4.2.2. Classificações e espécies de infrações tributárias
O comportamento violador do dever jurídico estabelecido Já firmamos que infração tributária é o nome que se dá à
em lei tributária pode revestir as características de meras in- conduta transgressora de obrigações ou deveres relativos aos
frações ou ilícitos tributários, bem como de crimes fiscais, tributos, seja no que atina à conduta mesma, observada na sua
dessa maneira definidos em preceitos da lei penal. Entre tais concretude material, seja no que diz respeito à previsão hipo-
entidades existe uma distinção formal e, atrás disso, uma gran- tética que dela faz o suposto das normas sancionatórias. Des-
de diferença de regime jurídico, uma vez que os crimes fiscais cumprido o dever tributário, de natureza patrimonial (obriga-
estão subordinados aos princípios, institutos e formas do di- ção) ou sem valor pecuniário (deveres instrumentais ou for-
reito penal, ao passo que as infrações contidas em leis tributá- mais), irrompe uma relação jurídica de caráter sancionador,
rias, de caráter não-criminal, sujeitam-se aos princípios gerais com que o ordenamento positivo visa a punir o infrator, resta-
do direito administrativo. belecendo o equilíbrio do sistema normativo do direito.
São poucos os crimes tributários no Brasil. O Código Pe- Muitas são as propostas classificatórias dos comportamen-
nal de 1969 resumiu as hipóteses previstas no anterior (1940), tos delituosos em matéria tributária. Das mais difundidas é a
na Lei n. 4.729, de 14 de julho de 1965, e em outras esparsas, que distingue as infrações em objetivas e subjetivas, fundada
disciplinando somente a matéria atinente ao contrabando e ao no critério que leva em conta a participação subjetiva do agen-
descaminho, no art. 372. Por outro lado, permanece a equipa- te na realização da figura típica.
ração de certas condutas, transgressoras de dispositivos tribu-
Denominam-se infrações objetivas aquelas que independem
tários, ao crime de apropriação indébita, consoante o que es-
da intenção do agente. Apura-se somente o resultado: cumprida
creve a Lei n. 4.357, de 16 de julho de 1964.
a prestação, desaparece o vínculo; agora, em caso de inadimple-
Também foram inseridas, entre esses ilícitos, as condutas mento, não se cogita do animus do sujeito: de qualquer maneira,
definidas como crimes contra a Fazenda Pública, cujo sujeito incidirá juridicamente a sanção prevista. Ao documentar a exis-
ativo é o funcionário público federal que facilitar a prática de tência oficial dessas infrações, os funcionários encarregados de-
delitos contra a Fazenda Pública ou der causa ao não-recolhi- verão apenas comprovar o resultado, descabendo alusões ao modo
mento de tributos devidos à União (Lei n. 8.026, de 12-4-1990). intrínseco ou extrínseco da conduta violadora.
A Lei n. 8.137, de 27 de dezembro de 1990, por sua vez, Por outro lado, as infrações subjetivas requerem a presen-
alterou a definição dos crimes contra a ordem tributária, ça de dolo ou culpa (em qualquer de seus graus), sem o que o
reescrevendo aqueles delitos antes designados de "sonegação resultado não será imputado ao agente. Sendo assim, ao com-
tributária" pela Lei n. 4.729/65. A mencionada legislação alar- por em linguagem o fato ilícito, além de referir os traços con-
gou o rol dos fatos típicos configuradores dos crimes contra a cretos que perfazem o resultado, os funcionários da Adminis-
ordem tributária, redesenhando, outrossim, a figura da "apro- tração terão que indicar o nexus entre a conduta do infrator e
priação indébita", ao definir como crime o fato de deixar de o efeito que provocou, ressaltando o elemento volitivo (dolo ou
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

culpa, conforme o caso), justamente porque integram o vulto Da mesma forma, quero aludir também às situações em
típico da infração. que, deparando-se o funcionário do Fisco com a insatisfação
Também no campo dos deveres formais, inexistindo aqui- do dever instrumental, por exemplo, o atraso na escrituração
lo que seria a percussão automática das entidades do ordena- de livro obrigatório, intima o sujeito passivo para que satisfaça
mento, pois, como vimos, somente o ser humano é capaz de a prestação dentro de certo trato de tempo. Comparece aqui,
aplicar o direito, fazendo-o incidir, remanescerá, para o caso novamente, a norma individual e concreta, que aparentava não
de inobservância, a necessidade de constituição do fato e pres- existir nesses domínios, mas que surge no bojo do ato de inter-
crição de medida sancionatória. Isto quer significar que apenas câmbio procedimental conhecido por "intimação". Nela regis-
na hipótese de infração dos deveres instrumentais o sistema tra-se ter havido conhecimento do fato tributário, por parte do
jurídico brasileiro prevê a edição de norma individual e con- contribuinte, na condição de antecedente, e a relação jurídica
creta a ser exarada pelo poder administrativo. Havendo satis- veiculadora do dever formal, como consequente. Não se cogita
fação, a própria norma individual e concreta produzida pelo aqui de regra sancionatória, mas de regra confirmadora da
sujeito passivo atestará o cumprimento do dever que fora es- prestação jurídica devida.
tabelecido em caráter geral e abstrato. De quanto se pode observar na sistemática do direito
No que toca a essas prestações, o instante do nascimento brasileiro, os deveres instrumentais são previstos em normas
do dever está igualmente previsto no critério temporal da regra gerais e abstratas e se efetivam na concretude de normas in-
geral e abstrata, que ingressa no ordenamento imediatamente, dividuais, produzidas pelos sujeitos passivos do tributo. Com
uma vez que os "livros e efeitos fiscais" dos administrados frequência, mas pouco significando em termos quantitativos,
estarão sempre à disposição dos agentes da entidade tributan- pois o contingente de deveres formais é muito expressivo, a
te, justificando-se nesse aspecto sua publicidade para fins conduta que realiza o dever instrumental vem estipulada em
comunicacionais. Nas hipóteses de inadimplemento, em que norma individual e concreta expedida pela entidade tributan-
se requer, por parte do Fisco, a produção de norma individual te, na forma de intimações ou de notificações, precisando o
e concreta, criando o enunciado factual da infração e o enun- comportamento que se espera seja adotado pelo destinatário.
ciado relacional da medida punitiva, o funcionário competen- Mas claro está que essas hipóteses dizem respeito a prestações
te deverá expedi-la a contar do átimo em que tiver conheci- típicas, que refogem à generalidade dos procedimentos atribu-
mento da conduta omissiva, introduzindo-se a regra no sistema ídos ao administrado e, por isso mesmo, requerem especifica-
do direito positivo assim que dela tiver ciência o interessado. ções objetivas. Quando o diploma normativo indicar o conteú-
do do comportamento a ser seguido, precisando o objeto da
No quadro geral das possibilidades, entretanto, sobra
prestação, tornar-se-á despicienda a edição de norma indivi-
espaço para algumas exceções. Fundado no dever genérico de
dual e concreta, por parte do Fisco, deixando-se ao bom juízo
oferecer declarações e esclarecimentos às autoridades tribu-
do administrado o implemento da conduta e reservando-se
tárias, é comum lavrarem-se intimações para que o adminis-
às autoridades tributárias atuarem somente em caso de
trado se manifeste sobre certas matérias, em determinado
descumprimento.
intervalo de tempo, sob pena da aplicação de penalidades. Eis
aí a norma individual e concreta, emitida pelo poder tributan- Em face do inadimplemento da prestação instrumental,
te, para instar o sujeito passivo a cumprir deveres instrumen- costuma o Fisco optar por um, entre esses dois procedimentos:
tais ou formais. aplicar, desde logo, a sanção cabível, em substituição à conduta
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

que fora estabelecida para o devedor ou colocar-se no lugar Com base nas considerações apontadas, muitos autores,
do sujeito passivo, cumprindo, a seu modo, as providências sem ater atenção sobre as particularidades que subjazem o
formalizadoras. Não se exclui, ainda, a possibilidade de apli- subdomínio do direito tributário, aplicaram-nas de forma lite-
cação do dispositivo sancionatório acompanhado de notifica- ral em matéria de imposição de tributo. Tomam por critério
ção para que cumpra o dever dentro de outro prazo para atributos extra-jurídicos para desconsiderar o negócio parti-
tanto estipulado. cular, afrontando diretamente os princípios supremos que se
assentam na Constituição.
Traçado o paralelo com a regra-matriz de incidência,
notaremos a presença de deveres instrumentais que não se Por este ponto de vista civilista, consideram-se abuso de
perfazem em normas individuais e concretas, consistindo, antes, direito e fraude à lei toda forma contratual em "a) que existe,
em condutas de caráter omissivo, como o dever de tolerar ou em termos objetivos, uma vantagem do contribuinte e um
de suportar fiscalização. A linguagem aparecerá aqui tão-so- conseqüente prejuízo do Fisco, sob a forma de menor renda; e
mente em caso de inadimplemento da conduta atribuída ao b) que a finalidade única da operação é subtrair recursos ao
Erário, reduzindo a base de cálculo ou evitando a realização
administrado, ensejo em que o Fisco expedirá norma concreta
do fato gerador através de uma atividade contratualmente
("auto de embaraço à fiscalização", por exemplo), em que o
fraudulenta, no plano civilístico". 257- F Ora, sobre o primeiro
evento será relatado na forma competente. Essa peculiaridade
aspecto, falar em vantagem do contribuinte e prejuízo do Fis-
exibe outra diferença do dever instrumental em face da pres-
co, sob a forma de menor renda, é considerar estritamente
tação tributária: aquele não pode existir, em hipótese alguma,
critérios econômicos e não jurídicos. A aproximação cognosci-
sem norma individual e concreta.
tiva que se pretende está fora do recorte que o direito positivo
atribui a seus fatos e, portanto, são notas que não podem ser
4.2.3. As figuras do "abuso de direito" e da "fraude à lei" no consideradas como delimitadoras de um conceito jurídico.
Ordenamento Jurídico Tributário Brasileiro Há que se tomar nota que os antecedentes normativos,
em qualquer subdomínio do direito, guardam, na multiplici-
O conceito de abuso de direito vem sendo observado, no
dade de suas determinações, os recortes cognoscitivos que o
domínio tributário, na acepção que é apreendido pelos civilistas. próprio sistema normativo lhe imputa, não estando susceptível
Esta doutrina o considera como exercício anormal de um direi- de interferências de outros universos, como o econômico. Ali-
to, que fará com que o ato abusivo seja considerado ato ilícito, ás, oportuna a lição de Alfredo Augusto Becker:
devendo o seu autor reparar os danos aí advindos. 257-D O mesmo
acontece com a noção de fraude à lei, assumida por ato jurídico A doutrina da Interpretação do Direito Tributário, segundo
que, "para burlar princípio cogente, usa de procedimento apa- a realidade econômica, é filha do maior equívoco que tem
rentemente lícito. Ela altera deliberadamente a situação de fato impedido o Direito Tributário evoluir como ciência jurídica.
em que se encontra, para fugir à incidência da norma." 257-E Esta doutrina, inconscientemente, nega a utilidade do direi-
to, porquanto destrói precisamente o que há de jurídico den-
tro do Direito Tributário.
257-D. S. RODRIGUES, Direito Civil - Parte Geral, v. 1, 29a ed., São Paulo,
Saraiva, p. 312.
257-E. S. RODRIGUES, Direito Civil - Parte Geral, v. 1, 2P ed., São Paulo, 257 F. FRANCO GALLO Elisão Fiscal, economia de imposto e fraude à lei,
-

Saraiva, p. 226. in RDT 52 (1990), p. 7.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

Tudo no universo do direito positivo, portanto, está sob a a simulação não podem ser presumidas mas devem sim
dependência dos critérios adotados pelo ordenamento jurídico ser comprovada através de elementos contundentes apu-
que constrói o fato à sua maneira. Já em resposta ao item "b" ráveis, inclusive, através do devido processo legal. Entende-
apontado acima, pondera-se, ainda que, no campo do direito se por 'prova' os meios de demonstrar a existência de um
fato jurídico ou de fornecer ao julgador o conhecimento da
tributário, todos os fatos vão seguir a gramaticabilidade própria
verdade dos fatos.
deste subdomínio, respeitando imposições como Segurança
Jurídica, estrita legalidade, tipicidade, todos orientados quan-
Guarde-se, por todo exposto, que são três condições ne-
to à estrutura de repartição da competência tributária prescri-
ta na Constituição Federal. cessárias para o estabelecimento de vínculo tributário válido:
sem lei anterior que descreva o fato imponível, obrigação tri-
Tomemos o princípio da estrita legalidade, princípio butária não nasce (princípio da legalidade); sem subsunção do
i mplícito que é, diretriz axiológica que vem acrescer os rigo- evento descrito à hipótese normativa, também não (princípio
res procedimentais em matéria de tributo, dizendo mais do da tipicidade); havendo previsão legal e a correspondente sub-
que isso: estabelece que a lei adventícia traga, no seu bojo, os sunção do fato à norma, os elementos do liame jurídico irra-
elementos descritores do fato jurídico e os dados prescritores diado devem equivaler àqueles prescritos na lei. O desrespeito
da relação obrigacional. Esse plus caracteriza a tipicidade a esses cânones fulminará, decisivamente, qualquer pretensão
tributária. de cunho tributário.
A tipicidade tributária significa a exata adequação do fato Se considerarmos os valores máximos acolhidos por nos-
à norma, e, por isso mesmo, o surgimento da obrigação se so Texto Constitucional, principalmente em termos de tribu-
condicionará ao evento da subsunção, que é a plena corres- tação - segurança e certeza - que sustentam os cânones da
pondência entre o fato jurídico tributário e a hipótese de inci- legalidade e da tipicidade, torna-se extremamente problemá-
dência, fazendo surgir a obrigação correspondente, nos exatos tico captar a figura da desconsideração do negócio jurídico, em
termos previstos em lei. Não se verificando o perfeito quadra- especial tomando como critério o "abuso de direito" e a "frau-
mento do fato à norma, inexistirá obrigação tributária. Nesse de à lei", aludindo a noções de ordem econômica. São proce-
percurso, ou ocorre a subsunção do fato à regra, ou não ocorre, dimentos e conceitos que devem respeitar esses princípios,
afastando-se terceira possibilidade. Perfaz-se aqui a eficácia especialmente ao tratar de matéria de imposição tributária.
da lei lógica do terceiro excluído. Por outro lado, ocorrido o
No corpo desta temática, observando-se quadro concep-
fato, a relação obrigacional que nasce há de ser exatamente
tual do termo, o abuso de direito significa, portanto, norma
aquela estipulada no conseqüente normativo. No tocante ao
produzida por particular, constituída no exercício de compe-
tema ora em análise, também foi este o entendimento exarado
no acórdão n. 102-47.181, proferido pela Segunda Câmara do tência que excede as atribuições jurídicas que o direito auto-
C. Conselho de Contribuintes nos autos do Processo Adminis- riza ao sujeito, identificando-o como incompetente naquela
trativo n. 10865.002036/2002-81, verbis: função, ao mesmo tempo que atribui ao ato caráter de ilicitude.
Fraude à lei, por outro lado, é a produção de norma ilícita, com
Destarte, é absolutamente necessário restar demonstrada a feições de ato jurídico lícito, para fins de fugir à incidência
materialidade dessa conduta, ou então que fique configu- normativa. A localização de um ou outro ilícito exige, como
rado o dolo específico do agente evidenciando não somente a requisito essencial, norma válida no sistema, que, em termos
intenção mas também o seu objetivo, isso porque a fraude e objetivos, fundamenta a figura da ilicitude no direito. A partir
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

do enunciado normativo válido é que o exegeta vai encontrar "Art. 138. A responsabilidade é excluída pela denúncia es-
substrato para depreender desrespeito aos princípios consti- pontânea da infração, acompanhada, se for o caso, do paga-
tucionais de (ii) Segurança jurídica, (iii) certeza de direito (iv) mento do tributo devido e dos juros de mora, ou do depósito
estrita legalidade e (v) tipicidade, em afronta direta à estrutu- da importância arbitrada pela autoridade administrativa,
quando o montante do tributo dependa de apuração.
ra de repartição de competências tributárias realizada pela
Constituição. Estão nesses elementos a figura do ilícito do Parágrafo único. Não se considera espontânea a denúncia
apresentada após o início de qualquer procedimento ou
abuso de direito e da fraude à lei.
medida de fiscalização, relacionados com a infração".

4.2.4. Infrações tributárias no Código Tributário Nacional O dispositivo acima transcrito possibilita identificarmos
os requisitos necessários à configuração da denúncia espontâ-
Salvo disposição de lei em contrário, a responsabilida- nea, assim como a construção da respectiva norma jurídica.
de por infrações da legislação tributária independe da in-
Para que se tenha denúncia espontânea, necessário se faz
tenção do agente ou do responsável e da efetividade, natu-
a conjugação dos seguintes elementos:
reza e extensão dos efeitos do ato (CTN, art. 136). Eis aqui
uma declaração de princípio em favor da responsabilidade
(i) comunicação espontânea, ao Fisco, da infração pra-
objetiva. Mas, como sua formulação não está em termos ab-
ticada;
solutos, a possibilidade de dispor em sentido contrário ofer-
ta espaço para que a autoridade legislativa construa as (ii) tratando-se de infração consistente na ausência ou
chamadas infrações subjetivas. insuficiência de pagamento, o recolhimento do tribu-
to devido, acompanhado de juros de mora; e
O art. 137 aponta os casos em que a responsabilidade é
pessoal do agente: quanto às infrações conceituadas por lei (iii) inexistência de procedimento administrativo ou me-
como crimes ou contravenções, salvo quando praticadas no dida de fiscalização instalados para apurar aquela
exercício regular de administração, mandato, função, cargo ou ilicitude.
emprego, ou no cumprimento de ordem expressa emitida por
Verificados, cumulativamente, esses elementos (hipótese
quem de direito (inciso I); quanto às infrações em cuja definição
normativa), instala-se relação jurídica que determina, ao su-
o dolo específico do agente seja elementar (inciso II); e quanto
jeito ativo do liame obrigacional, a exclusão da responsabilida-
às infrações que decorram direta e exclusivamente de dolo
de àquele que denunciou espontaneamente a realização de
específico: a) das pessoas referidas no art. 134, contra aquelas
ilícitos tributários, não se devendo instaurar, por conseguinte,
por quem respondem; b) dos mandatários, prepostos ou em-
nenhum procedimento de fiscalização com vistas a infligir
pregados, contra seus mandantes, preponentes ou emprega- penalidade pela prática de infração ao sujeito que efetuou a
dores; c) dos diretores, gerentes ou representantes de pessoas
denúncia espontânea de tal ilícito (consequência normativa).
jurídicas de direito privado, contra estas (inciso III). A iniciativa do sujeito passivo, promovida com a observância
desses requisitos, tem a virtude de evitar a aplicação de multas
4.2.5. Hipóteses de exclusão da penalidade de natureza punitiva, porém não afasta os juros de mora e a
chamada multa de mora, de índole indenizatória e destituída
Prescreve o art. 138 do Código Tributário Nacional: do caráter de punição. Entendemos, outrossim, que as duas
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

medidas — juros de mora e multa de mora -- por não se excluí- ocorreu antes do procedimento fiscal específico e direta-
rem mutuamente, podem ser exigidas de modo simultâneo: mente relacionado com a infração (no caso, a Conferência
uma e outra. Fiscal de Manifesto). Acolhe-se o ato espontâneo de auto-
acusação para excluir as penalidades exigidas. Quanto à
São reiteradas as manifestações do Conselho de Contri- taxa de câmbio, a conversão de moeda estrangeira far-se-á
buintes no sentido de excluir a responsabilidade pela infração pela taxa de câmbio vigente na data de apuração da falta
sempre que houver denúncia espontânea dos erros e irregula- da mercadoria, considerando-se como tal aquela do lança-
ridades praticados pelo contribuinte: mento tributário (artigo 86, parágrafo único, artigo 87, II, c,
e artigo 107, parágrafo único, todos do Regulamento Adu-
)"260.
"IMPOSTO DE IMPORTAÇÃO. CONFERÊNCIA FINAL aneiro aprovado pelo Decreto n. 91.030/85
DE MANIFESTO. DENÚNCIA ESPONTÂNEA DA INFRA-
ÇÃO. Visita aduaneira e registro da D.I. não são procedi- Dito de outro modo, na forma de juízo hipotético, "se
mentos administrativos nem medidas de fiscalização ten- ocorrer a denúncia espontânea da infração tributária, consis-
dentes à apuração de diferenças na descarga do veículo tente na comunicação ao Fisco, pelo próprio sujeito passivo,
transportador (arts. 34/36 e 411/413 do Regulamento Adua-
acerca de ilícito tributário e do correspondente pagamento do
neiro). Denúncia espontânea apresentada antes das efetivas
tributo devido, junto com os juros de mora e a multa de mora,
medidas de fiscalização e procedimentos administrativos de
apuração das diferenças na descarga e antes do lançamento
antes de qualquer procedimento administrativo ou medida de
do montante de imposto a pagar, tendo sido feito o paga- fiscalização a ele relativo, então deve-ser a exclusão da respon-
mento do montante calculado pela autoridade aduaneira sabilidade pela prática do referido ilícito fiscal".
conforme documento de arrecadação apresentado. Carac-
Outra hipótese de exclusão de penalidade encontra-se na
terizada a denúncia espontânea para os fins do art. 138 do
CTN. Recurso voluntário provido" 258 .
figura do caso fortuito ou força maior. Segundo o art. 393 do
Código Civil, "o devedor não responde pelos prejuízos resultan-
"DECLARAÇÃO DE IMPORTAÇÃO. ERRO DE DIGITA-
ÇÃO. DENÚNCIA ESPONTÂNEA. No caso em questão, tes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se
entendo que a recorrente agiu corretamente com o Fisco e houver por eles responsabilizado". E, nos termos do seu pará-
de acordo com a lei. Ao verificar um evidente erro gráfico grafo único, o caso fortuito ou de força maior verifica-se com
ou de digitação dirigiu-se à repartição competente para a ocorrência de fato necessário, cujos efeitos não era possível
retificar a imprecisão havida. Em direito tal conduta enqua- evitar ou impedir.
dra-se exatamente nos termos do art. 138 do CTN, que trata
da denúncia espontânea, não havendo o que se falar na Tem-se por caso de força maior a verificação de fato extra-
aplicação da multa prevista no art. 522, IV, do Regulamento ordinário cujo acontecimento é suposto, porém inevitável. O
Aduaneiro de 1985. Recurso provido por maioria" 259 . caso fortuito também decorre de acontecimento extraordinário,
"CONFERÊNCIA FINAL DE MANIFESTO. Falta e acrés- o qual, além de irresistível, advém de causa desconhecida ou de
cimo de mercadoria. Verificado que a denúncia espontânea ato de terceiro, sendo, portanto, imprevisível. O legislador hou-
ve por bem equiparar os efeitos jurídicos de ambas as hipóteses,
considerando-as excludentes de responsabilidade.
258. Terceiro Conselho de Contribuintes, 3a Câm., Ac. 303-28458, Rel. Cons.
Levi Davet Alves, j. 12/06/1996.
259. Terceiro Conselho de Contribuintes, 2a Câm., Ac. 302-36467, Rel. Cons. 260. Terceiro Conselho de Contribuintes, 2a Câm., Ac. 302-32118, Rel. Cons.
Elizabeth Emílio de Moraes Chieregatto, j. 21/10/2004. Ronaldo Lindimar José Marton, j. 23/10/1991.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

Nem poderia ser diferente, visto que as normas jurídicas `CIVIL. INDENIZAÇÃO. TRANSPORTADORA. ROUBO
DE CARGA. FORÇA MAIOR. RESPONSABILIDADE.
sujeitam-se ao limite ontológico da possibilidade. Se a hipóte-
EXCLUSÃO.
se normativa eleger fato de impossível realização, a relação
1. O roubo de mercadoria durante o transporte caracteriza-
prevista na consequência jamais se instalará, sendo a norma
se como força maior, apta a excluir a responsabilidade da
carente de sentido deôntico. Do mesmo modo, a modalização empresa transportadora perante a seguradora do proprie-
das condutas interpessoais somente terá sentido dentro do tário da carga indenizada. Precedentes iterativos da Ter-
quadro geral da possibilidade, não havendo como prescrever, ceira e Quarta Turmas.
logicamente, a prática de conduta impossível. 2. Recurso especial conhecido e provido'. (Resp 222.821/S1
Quarta Turma, Rel. Min. Fernando Gonçalves, DJ de
É pacífico o entendimento do Superior Tribunal de Jus-
01/07/2004).
tiça no sentido de os casos fortuitos ou de força maior serem
`Processual civil e civil. Agravo no recurso especial. Trans-
excludentes da responsabilidade, como se observa nas seguin-
porte de mercadoria. Roubo. Responsabilidade da trans-
tes ementas:
portadora.
- O roubo de mercadoria praticado mediante ameaça exerci-
"PROCESSO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. INDENIZA-
da com arma de fogo é fato desconexo do contrato de trans-
ÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS. ASSALTO À
porte e, sendo inevitável, diante das cautelas exigíveis da
MÃO ARMADA NO INTERIOR DE ÔNIBUS COLETIVO.
transportadora, constitui-se em caso fortuito ou força maior,
FORÇA MAIOR. CASO FORTUITO. EXCLUSÃO DE RES-
excluindo a responsabilidade dessa pelos danos causados.
PONSABILIDADE DA EMPRESA TRANSPORTADORA.
Agravo não provido'. (AgRg no Resp 470.520/S1 Terceira
CONFIGURAÇÃO.
Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, DJ de 25/08/2003
99262
). ( ... ) .

1. Este Tribunal já proclamou o entendimento de que fato


inteiramente estranho ao transporte (assalto à mão ar- A imposição de sanções, em tais casos, dependeria da
mada no interior de ônibus coletivo) constitui caso for-
existência e da prova de conduta dolosa, o que, indiscutivel-
tuito, excludente de responsabilidade da empresa trans-
mente, não se verifica.
portadora.
2. Entendimento pacificado pela eg. Segunda Seção desta
Corte. Precedentes: REsp. 435.865/RJ; REsp. 402.227/RJ; 4.3. SANÇÕES NO DIREITO TRIBUTÁRIO
REsp. 331.801/RJ; REsp. 468.900/RJ; REsp. 268.110/RJ.
A garantia de que o feixe de proposições descritivas se
3. Recurso conhecido e provido" 261 .
dirige, efetivamente, sobre a base objetal, cobrindo-a por in-
"SEGURO. ROUBO DE CARGA. RESPONSABILIDADE.
teiro, segundo métodos previamente estabelecidos, é o que
EXCLUSÃO. CASO FORTUITO. (...) Segundo entendimen-
manifesta a vantagem do conhecimento científico, vertido
to consolidado, o roubo de carga constitui força maior, su-
sempre em linguagem rigorosa.
ficiente para excluir a responsabilidade da transportadora
perante a seguradora do proprietário da mercadoria trans- Decididamente, não creio em aprofundamento teórico
portada. Nesse sentido: sem que o agente do conhecimento, numa atitude de intros-

261. Superior Tribunal de Justiça, T., REsp 822.666/RJ, Rel. Min. Jorge 262. Superior Tribunal de Justiça, 4a T., Resp. 753.404, Rel. Min. Castro Filho,
Scartezzini, j. 17/08/2006. j. 01/08/2005.

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pecção, como estratégia para aproximar-se do objeto, desloque a que fica sujeito, toda vez que se formalizarem certos tipos de
provisoriamente o alvo de suas reflexões para os pressupostos ilícito.
do saber científico, reservando espaço para considerações de
Estudar as infrações é pesquisar o suposto das regras
ordem epistemológica.
sancionatórias, assim como indagar sobre as sanções é analisar
De fato, tratar das sanções tributárias e das sanções penais o conseqüente daquelas normas. No mandamento normativo
tributárias, a partir de seus fundamentos últimos, não é tarefa é que vamos conhecer o expediente assecuratório com que o
confortável. Testemunho desse asserto é o número pequeno legislador procurou resguardar o cumprimento de suas esti-
de produções dogmáticas sobre o assunto, além do tímido im- pulações prescritivas.
pulso de especulação vertical que as qualificam.
Vale a lembrança final, porém de extrema importância,
de que tratando-se de sanção, ainda que meramente material,
4.3.1. A sanção como consequente normativo a norma que delineia esse fato "antijurídico" não pode apre-
sentar tipologia aberta. Arquétipo aberto é o que constitui as
Assim como se denomina obrigação tributária ao liame
hipóteses das normas que regem o direito privado, já que as
jurídico que se estabelece entre dois sujeitos — pretensor e
garantias e os direitos individuais hão de ser interpretados com
devedor — designa-se por sanção tributária à relação jurí-
amplitude semântica. Norma sancionadora com tipo aberto
dica que se instala, por força do acontecimento de um fato
restringe, de maneira incontrolável, a liberdade e a proprieda-
ilícito, entre o titular do direito violado e o agente da infração.
de, ferindo e comprometendo a segurança do sistema jurídico.
Além desse significado, obrigação e sanção querem dizer,
Este, substancialmente, o motivo pelo qual o "tipo" das normas
respectivamente, o dever jurídico cometido ao sujeito pas-
sancionadoras há de ser sempre preciso e restrito.
sivo, nos vínculos obrigacionais, e a importância devida ao
sujeito ativo, a título de penalidade ou de indenização, bem Transportando essas considerações para o universo fác-
como os deveres de fazer ou de não-fazer, impostos sob o tico, podemos tomar como exemplo a hipótese descritora do
mesmo pretexto. factum da distribuição disfarçada de lucros, que, em se tratan-
A relação sancionatória vem mencionada no prescritor do de tipo sancionatório, deve pautar-se em termos estritos,
da regra, onde podemos colher todos os elementos necessários delimitados, rigorosamente, por critérios objetivos e de fácil
e suficientes para a sua identificação, num caso concreto. A determinação.
norma que estipula a sanção descreve o fato antijurídico no As indicações precisas dos sujeitos do vínculo e a forma
seu antecedente, e a providência desfavorável ao autor do ilí- de calcular-se o montante da penalidade aplicável ou a delimi-
cito (sanção) no conseqüente. tação do dever infringido pela prática ilícita, tudo isso vamos
Convém assinalar, conquanto já tenha sido anotado, que encontrar nos critérios do conseqüente: pessoal — sujeito ati-
a relação jurídica sancionatória pode assumir feitio obrigacio- vo e passivo; e quantitativo — base de cálculo e percentagem
nal, quando se tratar de penalidades pecuniárias, multas de da multa, ou a quantia fixa prevista na lei, ou, ainda, as espe-
mora ou juros de mora, como também veiculadora de meros cíficas formas de cumprimento do dever jurídico (de fazer ou
deveres, de fazer ou de não-fazer, sem conteúdo patrimonial. de não-fazer). Usamos quantitativo aqui nas acepções de quan-
Incluem-se nessa rubrica uma série de atos cuja prática a Fa- tificar o valor pecuniário e de quantificar a forma e a intensi-
zenda Pública impõe ao infrator, como também as proibições dade do dever.
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

4.3.2. Espécies de sanções tributárias excelência de punir o autor da infração cometida. Agravam,
sensivelmente, o débito fiscal e quase sempre são fixadas em
Diversas são as modalidade de sanções que o legislador níveis percentuais sobre o valor da dívida tributária. A legisla-
brasileiro costuma associar aos ilícitos tributários. Teceremos ção do imposto sobre a renda e proventos de qualquer nature-
considerações acerca das principais delas, elucidando os tipos za, por exemplo, prevê até 150% do valor do imposto não pago.
conforme os nomes que se lhes vêem atribuindo. No falar quo- Nessa hipótese, o montante do tributo seria a base de cálculo
tidiano, diferentes apelidos são dados a um mesmo instituto, e a percentagem corresponderia à alíquota, fazendo analogia
sendo, portanto, as referências abaixo não uma lista taxativa com o critério quantitativo da regra-matriz de incidência tri-
das modalidades sancionatórias, mas uma relação das princi- butária. Mas podem aparecer como uma importância já deter-
pais expressões que são associadas à matéria Espécies de san- minada, que não experimenta oscilações — são as penalidades
ções tributárias, que, por este motivo, pede reflexões mais de valor fixo, ou ainda estabelecidas entre dois limites, um
atiladas. Vejamos algumas delas: mínimo e um máximo, cabendo à autoridade administrativa
a) Penalidades pecuniárias, competente dosá-las segundo as circunstâncias de cada caso.

b) Multa de ofício,
Multa de ofício
c) Multa punitiva ou por infração,
d) Multa isolada, De fato, pensemos na premissa de que toda multa exerce
função de apenar o sujeito a ela submetido, tendo em vista o
e) Multa agravada, ilícito praticado. É na pessoa do infrator que recai a multa, isto
f) Multa de mora, é, naquele a quem incumbia o dever legal de adotar conduta
determinada e que, tendo deixado de fazê-lo, deve sujeitar-se
g) Juros de mora,
à sanção cominada pela lei. As multas fiscais, portanto, possuem
h) Acréscimos legais, caráter pessoal, pois como assevera Temístocles Brandão Ca-
i) Correção monetária, e valcanti 2 e -A, "podem ser consideradas indenizações, mas visam,
antes de tudo, a coagir o contribuinte: é processo de intimidação.
j) Outras providências, como apreensão de mercadorias Mesmo a multa de mora pode ser assim considerada, para coagir
e de documentos, bem como dos veículos que os transportarem; o contribuinte a pagar com pontualidade o seu débito". Essa linha
e, da mesma forma, suspensão ou inclusão de contribuinte a de raciocínio levou o Supremo Tribunal Federal a sumular que
regime fiscal especial, etc. "a multa fiscal moratória constitui pena administrativa, não se
incluindo no crédito habilitado em falência" (Súmula n. 565).
Penalidades pecuniárias Desse modo, qualquer que seja o nome que se lhe dê, toda
multa tem, incontestavelmente, natureza de sanção, advinda
As penalidades pecuniárias são as mais expressivas formas da inobservância de um dever jurídico. Agora, ao falarmos de
do desígnio punitivo que a ordem jurídica manifesta, diante do
comportamento lesivo dos deveres que estipula. Ao lado do
indiscutível efeito psicológico que operam, evitando, muitas 262-A. Teoria dos atos administrativos, São Paulo, Revista dos Tribunais,
vezes, que a infração venha a ser consumada, é o modo por 1973, p. 163.
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sua aplicabilidade ex ofício pela Administração Pública, torna-se multa punitiva. É no conseqüente da referida norma que nas-
necessário subclassificar seu contexto sancionatório para iden- cerá o direito subjetivo do Estado de exigir do sujeito infrator
tificar novo critério que a ordene dentro desta nova classe. uma quantia em dinheiro devida a título de punição pelo ato
ilícito. Dá-se, portanto, a um só tempo, a localização dos sujei-
Multa de ofício é expressão que indica o procedimento
tos da relação (sujeitos credor e devedor); assim como o surgi-
para a constituição do conseqüente sancionatório: lançamento
mento da figura do crédito/débito, objeto mesmo da relação.
de ofício. Nesta medida, significa simplesmente que é uma
espécie de sanção aplicada pela Autoridade Administrativa
mediante lançamento de ofício ou Auto de Infração ou Impo- Multa isolada
sição de Multa (AIIM). São geralmente da espécie punitiva, o
que, por sua vez, não exclui as de caráter moratório. As multas Multa isolada é o nome que se dá ao procedimento sancio-
de mora podem ser aplicadas mediante lançamento de ofício, natório que, como o próprio nome indica, isoladamente exige a
da mesma forma que as espécies punitivas em sentido estrito. multa por algum motivo que a lei o determina. Trata-se de um
A diferença entre uma e outra, no âmbito procedimental, está atributo que qualifica a forma de exigência da multa pelo Fisco.
em que as moratórias podem ser lançadas ora de ofício pela Assim, exemplificando, a multa será cobrada isoladamente,
autoridade ora por homologação pelo sujeito infrator. Por outro quando o tributo ou a contribuição houver sido paga após o
lado, contudo, as de cunho punitivo serão sempre de ofício. vencimento do prazo previsto em lei. Esta é a hipótese do inciso
Razão esta que justifica sua denominação multa de oficio. II do § 1 2 do art. 44 da Lei n. 9430/96, Lei do ajuste tributário,
com redação anterior às Medidas Provisórias n. 303/06 e n. 351/07
que prescrevia a forma de cobrança da multa isolada. Confiram-
Multa punitiva ou por infração se também as hipóteses dos incisos III a V262-13 .

Não é demasia repetir que o legislador nacional não dis- Em linha de princípio, entende-se por isolada a multa apli-
tinguiu as multas chamadas "punitivas" das "moratórias"; no cada mediante cobrança tão só do valor, a título de penalidade.
entanto, em razão do vasto uso desta expressão em domínios Agora, há que se tomar nota que tais espécies, em regra, serão
tributários, cumpre tecer comentários sobre as primeiras. também de ofício, em decorrência do procedimento a que se sub-
metem, e punitiva, em razão do seu específico intuito regulatório.
A multa punitiva encontra-se como espécie de sanção
tributária consistente numa prestação pecuniária, compulsória,
que sobrevém como decorrência da prática de determinadas
infrações, ação ou omissão do sujeito infrator contrária à lei 262-B. III - isoladamente, no caso de pessoa física sujeita ao pagamento
mensal do imposto (carne-leão) na forma do art. 8 2 da Lei n. 7.713, de 22
fiscal. É, pois, típica sanção de ato ilícito, de caráter essencial- de dezembro de 1988, que deixar de fazê-lo, ainda que não tenha apurado
mente intimidatório, aplicada tão só por ato jurídico próprio e imposto a pagar na declaração de ajuste;
observados os ditames do devido processo legal. IV - isoladamente, no caso de pessoa jurídica sujeita ao pagamento do im-
posto de renda e da contribuição social sobre o lucro líquido, na forma do
Em direito tributário, a constituição do ilícito se dá em art. 2 2 , que deixar de fazê-lo, ainda que tenha apurado prejuízo fiscal ou
regra pelo Auto de Infração, como acima já mencionado, veí- base de cálculo negativa para a contribuição social sobre o lucro líquido, no
culo normativo apto para constituir a infração no seu antece- ano-calendário correspondente;
dente e, mediante vínculo deôntico, instituir, no conseqüente, V - isoladamente, no caso de tributo ou contribuição social lançado, que não
a relação jurídica tributária sancionatória que irá impor a houver sido pago ou recolhido. (Revogado pela Lei n. 9.716, de 1998)

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Ainda na amplitude da providência de se caracterizar a prática do ato jurídico tributário. É aplicada quando a Admi-
multa isolada no âmbito do sistema tributário, vale a lembrança nistração Pública demonstra, por elementos seguros de prova,
de que, em face da sua própria natureza punitiva e de ofício, é no Auto de Infração, a existência da intenção do sujeito infra-
inadmissível a sua exigência cumulativa com outra multa de ofí- tor de atuar com dolo, fraudar ou simular situação perante o
cio. Nesses termos, é o entendimento da Câmara Superior de
Fisco. Para caracterizar a multa agravada, é necessário, ou-
Recursos Fiscais que consignou a exegese, no Acórdão CRSF/01-
trossim, a existência de fato doloso, fradulento ou simulado,
05.511, 262- C e em outros julgados do Conselho de Contribuintes 262-
devidamente provado, para se produzir a correta subsunção
D
.A solução encontrada por este Órgão Administrativo é no
do fato infracional à norma autorizadora do agravamento da
sentido de dever-se cancelar multa de ofício lançada isoladamen-
te, por caracterizar dupla pena relativa a uma mesma infração: penalidade.
A constituição do crédito tributário sancionatório dá-se
"PENALIDADE - MULTA ISOLADA - LANÇAMENTO
por ofício sendo, portanto, também do tipo "multas de ofício".
DE OFÍCIO FALTA DE RECOLHIMENTO - PAGAMENTO
Decorrem da prática de determinadas infrações, ações ou
POR ESTIMATIVA. Não comporta a cobrança de multa
isolada por falta de recolhimento de tributo por estimativa omissões do sujeito infrator contrárias à lei fiscal, deste modo,
concomitante com a multa de lançamento de ofício, ambas também chamadas multas punitivas ou por infração.
calculadas sobre os mesmos valores apurados em procedi-
É geralmente aplicada no percentual de 150%, objetivan-
mento fiscal". (Ac. n. 101-94.155)
do com isso intimidar a prática da infração e, por fim, evitar
Não poderia ser outra a conclusão, já que tanto a multa de situações dessa gravidade nos casos concretos. Por exemplo,
lançamento de ofício como a multa isolada decorrem da mesma quando dissonantes as informações na DCTF 262- E e os livros
situação fáctica, qual seja, ausência de recolhimento do tributo. fiscais, entende-se por demonstrado na situação concreta o
intuito de fraudar a Administração Pública, justificando-se a
Multa agravada aplicação da multa agravada de 150%. Em termos de linguagem
das provas, sendo as informações de valores na DCTF e DIPJ 262- F
É a espécie de multa que tem por conteúdo a agravação diversos ao dos livros fiscais dá-se por caracterizada a dispo-
de penalidade em decorrência de dolo, fraude ou simulação na sição de ludibriar o Fisco, de simular uma situação, o que
fundamenta a aplicação da multa agravada, neste caso, nos
termos do inc. II do art. 44 da Lei n. 9.430/96.
262-C. APLICAÇÃO CONCOMITANTE DE MULTA DE OFÍCIO E MULTA
ISOLADA NA ESTIMATIVA - Incabível a aplicação concomitante de multa
isolada por falta de recolhimento de estimativas no curso do período de apura- Multa de mora
ção e de ofício pela falta de pagamento de tributo apurado no balanço. (...)
262-D. MULTA ISOLADA- IMPOSSIBILIDADE DE COBRANÇA CUMULA- As multas de mora são também penalidades pecuniárias,
TIVA COM A MULTA DE OFÍCIO NORMAL - Deve ser afastada a aplicação mas destituídas de nota punitiva em sentido estrito. Nelas
da multa isolada concomitantemente com a multa de ofício normal, incidentes predomina o intuito indenizatório, pela contingência de o Poder
sobre o tributo objeto do lançamento. (Acórdão 102-4693.1)
MULTA ISOLADA - CUMULATIVIDADE COM A MULTA DE OFÍCIO -
Contendo o artigo 44, I, da lei n. 9430, de 1996, norma que alberga a falta,
genérica, de pagamento do Imposto de Renda, sua aplicação inibe a eficácia 262-E. Declaração de Débitos e Créditos Tributários Federais.
simultânea daquela contida no § r, III, desse artigo. (Acórdão 102-46375) 262-E Declaração de Informações Econômico-fiscais da Pessoa Jurídica.
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Público receber a destempo, com as inconveniências que isso reter consigo importância que não lhe pertence. Após a edição
normalmente acarreta, o tributo a que tem direito. A condu- da Lei n. 9.065, de 20 de junho de 1995, o valor correspondente
ta omissiva (não pagamento) do sujeito contribuinte, inde- aos créditos tributários federais é atualizado pela taxa SELIC
pendentemente de haver ou não culpabilidade, atinge certei- — Sistema Especial de Liquidação e Custódia, cujo índice
ra o direito subjetivo da Administração Pública ao crédito. O varia em função de critérios adotados pelo Banco Central do
descumprimento da obrigação tributária, em razão do des- Brasil. Pouco a pouco, Estados e Municípios vêm adotando
tempo, é causa que dá motivo a dano para o Erário Público, referida taxa para corrigir o valor dos créditos tributários de
pressuposto de fato para a imposição da multa de mora. Eis que são titulares, como fez o Estado de São Paulo com a Lei
aí a origem da sua função indenizatória. Muitos a consideram n. 10.619, de 20 de julho de 2000.
de natureza civil, porquanto largamente utilizadas em con-
tratos regidos pelo direito privado. Essa doutrina não proce-
de. São previstas em leis tributárias e aplicadas por funcio-
Acréscimos legais
nários administrativos do Poder Público, podendo, por isso A expressão "acréscimos legais" tem duas acepções: uma,
mesmo ser aplicadas ex ofício. estrita, utilizada para designar a correção monetária e os juros
de mora; outra, em sentido amplo, empregada para mencionar
Juros de mora tudo aquilo que aumenta o quantum do débito tributário a ser
recolhido, compreendendo a correção do valor aquisitivo da
Os juros de mora, cobrados na base de 1% ao mês, quan- moeda, juros de mora, multa de mora e sanção punitiva even-
do a lei não dispuser outra taxa, são tidos por acréscimos de tualmente aplicada. Enfim, o montante da importância exigida
cunho civil, à semelhança daqueles usuais nas avenças de di- do administrado, menos o valor originário da exação.
reito privado. Igualmente aqui não se lhes pode negar feição
Por outro prisma, a locução "acréscimos legais" postula
administrativa. Instituídos em lei e cobrados mediante ativi-
cobrir toda a extensão das verbas que podem ser exigidas ao
dade administrativa plenamente vinculada, distam de ser
ensejo da apuração do débito, independentemente da abertu-
equiparados aos juros de mora convencionados pelas partes, ra de prazo para o sujeito passivo defender-se. Abrangeria,
debaixo do regime da autonomia da vontade. Sua cobrança
desse modo, a correção monetária, juros de mora e multa de
pela Administração não tem fins punitivos, que atemorizem o mora, não alcançando, porém, as penalidades punitivas, para
retardatário ou o desestimule na prática da dilação do paga- a configuração das quais se torna necessário o respeito ao di-
mento. Para isso atuam as multas moratórias. Os juros adqui-
reito de defesa.
rem um traço remuneratório do capital que permanece em
mãos do administrado por tempo excedente ao permitido. Essa Claro está que essa instância de significação não afasta o
particularidade ganha realce, na medida em que o valor mo- direito subjetivo que todos têm de impugnar pretensões que
netário da dívida se vai corrigindo, o que presume manter-se entendam indevidas. O critério alude, apenas, ao modo como
constante com o passar do tempo. Ainda que cobrados em a exigência deve ser formulada, assumindo caráter procedi-
taxas diminutas (1% do montante devido, quando a lei não mental.
dispuser sobre outro valor percentual), os juros de mora são Vale a ressalva de que em muitos casos, tomam-se corre-
adicionados à quantia do débito, e exibem, então, sua essência ção monetária por acréscimo legal, ou mesmo por sanção, o
remuneratória, motivada pela circunstância de o contribuinte que a nosso ver, não nos parece a melhor concepção adotada.
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De fato, não é correto incluir entre as sanções que incidem pela A correção monetária não diz respeito à regra-matriz do
falta de pagamento do tributo, em qualquer situação, a conhecida i mposto, não participa da incidência tributária, e não está jun-
figura da correção monetária do débito. As leis tributárias, muitas gida aos limites constitucionais da competência tributária. É,
vezes, referem-se a ela (correção monetária) como acréscimo ou sim, instrumento de justiça e paz social que deve estar presen-
ônus que agrava a prestação do tributo. Em termos aritméticos, te em qualquer relação obrigacional de cunho pecuniário, seja
não há dúvida, trata-se de majoração. Todavia, para o direito, o ela pública ou privada. A correção monetária nada acrescenta
resultado corrigido traduz apenas o valor atual da dívida, sendo ao valor do principal, mas a ele incorpora as perdas sofridas,
o montante da correção uma parte do próprio objeto prestacional. ao longo do tempo, em decorrência da espiral inflacionária.
É por esse motivo que a dispensa da correção monetária do dé- Revela uma garantia de propriedade, na medida em que res-
bito equivale à remissão, perdão parcial da dívida tributária, que guarda o direito patrimonial de verdadeiros atos confiscatórios
só pode ocorrer nos termos de lei que expressamente a autorize. gerados pela inflação. Da mesma forma, não se enquadra como
penalidade ao fisco, uma vez que é simples reposição do valor
Acaso os índices corretivos não venham a significar, com
real da moeda, em decorrência da inflação, destituída, portan-
exatidão, a precisa intensidade do desgaste da moeda, num
to, de qualquer caráter de sanção por ato ilícito.
dado intervalo de tempo, é questão de fato, que dependeria de
prova adequada. Em princípio, presumem-se procedentes. O direito à correção monetária é consectário natural dos
princípios constitucionais da propriedade, da estrita legalida-
de e tipicidade em matéria tributária, bem como da isonomia
Correção monetária e da não-confiscatoriedade. Nessa linha de raciocínio, qualquer
restrição à correção monetária de indébitos tributários impli-
A despeito de correção monetária não ser hipótese de
caria flagrante ilegalidade e inconstitucionalidade, pois acar-
sanção, como já mencionado em comentários ligeiros acima,
retaria restituição a menor.
tendo em vista sua vasta referência em planos sancionatórios,
não sobeja traçar algumas de suas características para fins de
identificá-la em planos juridico-tributários. Outras providências penalizadoras
A correção monetária representa atualização do valor da Providência até certo ponto comum é a apreensão de
dívida, tendo em vista a desvalorização da moeda, em regime mercadorias e de documentos, bem como dos veículos que os
político-jurídico onde atua o problema inflacionário. O valor transportarem, em função de irregularidades verificadas pela
aquisitivo do dinheiro é corrigido, periodicamente, de acordo fiscalização. A devolução ficará condicionada ao pagamento do
com índices estimativos, de modo que, em qualquer tempo, é tributo devido, com as penalidades cabíveis, ou então, queren-
possível saber-se da expressão econômica do débito ou do do discutir a legitimidade do procedimento fiscal, o interessa-
crédito em relação a determinado intervalo de tempo. do terá de oferecer fiança idônea ou depósito de valor corres-
Essa recomposição do valor monetário encontra integral pondente à mais elevada multa aplicável à espécie. Todavia,
aplicação aos créditos de indébito tributário, pois a restituição acerca dessa medida sancionatória, consistente na retenção de
dos valores indevidamente recolhidos só será completa se bens para forçar o recolhimento do tributo ou da multa, já se
mantida sua real expressão econômica. Foi instituída pela Lei manifestou o Supremo Tribunal Federal, entendendo que "é
n. 4.357, de 16 de julho de 1964, e há muitos anos vem subsis- inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coerciti-
tindo a todas as investidas para suprimi-la. vo para pagamento de tributos" (Súmula 323).

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As mercadorias estrangeiras encontradas em situação necessárias para a fruição do regime especial, não se prestan-
irregular serão apreendidas e seu proprietário, independente- do, pois, a seguir a rotina de simplesmente documentar, pas-
mente do processo penal a ser instaurado, perdê-las-á em favor so a passo, os enunciados prescritivos que se congregam para
da Fazenda Pública. Tais bens, posteriormente, serão levados determinar a incidência.
a leilão e o produto arrecadado passará a constituir receita
tributária. O infrator sofrerá duas sanções: a de caráter admi-
nistrativo-tributário, em virtude da perda de mercadoria, e a
4.3.3. Impossibilidade de cobrança de juros de mora no caso
de índole criminal, mediante a pena que lhe será infligida.
de medidas liminares
A sujeição a regime especial de controle é outro expedien- A mora caracteriza-se, nos termos do artigo 394 do Códi-
te sancionatório de que a Fazenda Pública se utiliza, com re- go Civil brasileiro, pela ausência do pagamento no tempo, lugar
lação a certos impostos, como IPI e o ICMS. Aplica-se ao su- e forma previstos. Tratando-se de obrigação tributária, ocorre
jeito passivo que se mostra renitente quanto ao cumprimento a mora quando seu cumprimento dá-se em momento posterior
de suas obrigações e deveres tributários. Consiste na rotulagem àquele previsto na norma jurídica vigente no momento do
especial, na numeração ou no controle quantitativo dos produ- vencimento do tributo.
tos; no uso de documentos ou livros de modelos especiais; na Verificando-se a ocorrência de mora, duas espécies de
prestação de informações periódicas sobre as operações de seu normas jurídicas encontram aplicação: (i) norma que institui
estabelecimento; e até na vigilância constante dos agentes do a multa pelo não-pagamento do tributo e (ii) norma que deter-
Fisco, que poderão fazer plantões à porta do estabelecimento. mina a aplicação de juros em virtude do não-pagamento da
A cassação de regimes especiais de pagamento do im- prestação devida no prazo fixado. Ambas têm em comum o fato
posto, do uso de documentos ou de escrituração de livros de apresentarem, no antecedente normativo, a previsão do
específicos, concedida a certos contribuintes na conformida- descumprimento de obrigação prescrita em outra norma, ou
seja, a ocorrência de ilícito (não-pagamento do tributo na data
de da legislação em vigor, é outra medida punitiva aplicável
aprazada). Por via conseguinte, inocorrendo desobediência à
ao sujeito passivo que procedeu de modo fraudulento, no gozo
norma jurídica que determina quando o tributo deve ser reco-
das respectivas concessões. Tais medidas sancionatórias, a
lhido, inexiste mora, não havendo lugar para a aplicação de
propósito, são sentidas tanto quando infringida a obrigação
multa e juros.
principal de pagar, quanto aqueles deveres instrumentais ditos
de conformação de regime. Tais incumbências conferidas aos Sendo o Judiciário um dos órgãos encarregados de aplicar
contribuintes, vale dizer, voltam-se à fiscalização, controle e o direito, interpretando-o e expedindo normas individuais e
manutenção dos chamados "regimes especiais" concedidos concretas e individuais e abstratas, suas decisões introduzem
perante a Administração tributária. Nesse sentido, é interes- no sistema jurídico comandos direcionados à regulação de
sante verificar que a sanção pelo descumprimento de tais comportamentos intersubjetivos. Consequentemente, quando
deveres é, justamente, a perda do benefício ao "regime espe- uma decisão judicial é posta, o comando por ela emitido deve
cial" outorgado. Em franco contraste com aqueles deveres de ser seguido, sob pena de desencadear a aplicação da norma
conformação fáctica, que informam os regimes impositivos ou sancionadora.
ordinários, os deveres instrumentais de conformação de regime Por outro lado, sendo obrigatória a obediência à prescri-
visam tão somente a garantir a manutenção das condições ção normativa, quando o administrado segue a determinação
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de uma decisão judicial não lhe pode ser imposta sanção algu- cumprimento é o que objetiva a ordem jurídica, razão pela qual
ma. Todo aquele a quem é cometido um dever jurídico tem o não há como cogitar de punição àquele que age em observân-
direito de cumpri-lo. A Lógica Deôntico-jurídica expressa esse cia às suas determinações.
enunciado na composição formal: Op -* Pp, que se interpreta
Logo, quando o Judiciário reconhece o direito do contri-
assim: se alguém está obrigado à conduta "p", então esse alguém
buinte de deixar de recolher algum tributo em certa data,
tem a permissão de cumprir essa conduta "p". A permissão de
postergando-a, outorga-lhe direito que só pode ser entendido
cumprir a conduta está contida no modal obrigatório, da mes-
como orientação do agir do destinatário em consonância com
ma forma que a permissão de omiti-la está igualmente contida
o dever-ser expresso pela norma. E, se a mora tem por pressu-
na sua proibição: Vp—>P-p, que se lê: se alguém está proibido
posto justamente o não-cumprimento, na data aprazada, de
(V) de cumprir a conduta "p", então esse alguém terá a permis-
conduta devida, não sendo descumprido qualquer dever nor-
são (P) de omiti-la.
mativamente prescrito, não há que falar em sua ocorrência. Se
Vê-se, nessa imanência ingênita do direito embutido no de acordo com a prescrição contida na norma individual e
dever, um obstáculo intransponível à possibilidade teórica da concreta o prazo para cumprimento da obrigação ainda não
escravidão absoluta, pois ainda que suprimíssemos todos os venceu, inexiste mora.
direitos de uma pessoa, atribuindo-lhe somente obrigações e Em suma, a medida liminar que permite o recolhimento
proibições, não poderíamos deixar de admitir seu direito de do tributo em momento posterior ao previsto na norma geral
cumprir ou de omitir as condutas obrigatórias ou proibidas, e abstrata modifica o termo final da obrigação. Desse modo,
respectivamente. apenas o descumprimento do prazo para pagamento fixado na
Sendo assim, havendo medida liminar que prorrogue o norma individual e concreta é que acarretará a mora, possibi-
termo final do pagamento do tributo, esta deve ser observada litando a aplicação de multa e juros.
por seus destinatários. Trata-se de norma individual e concreta, Havendo postergação da data do pagamento por meio de
produzindo todos os efeitos inerentes às normas jurídicas válidas decisão judicial liminar e, mais tarde, por ocasião da sentença
e vigentes, fazendo nascer direitos e deveres subjetivos. Poster- ou do julgamento de recurso, sendo esta cassada, fica restabe-
gando o vencimento da obrigação tributária, atribui ao contri- lecido o prazo originalmente estipulado como termo final do
buinte a permissão para que ele a cumpra na data ali determi- recolhimento do tributo. Isso não significa, entretanto, que os
nada, em detrimento dos prazos previstos em outras normas efeitos já produzidos devam ser desconsiderados e que os atos
jurídicas. E, se é juridicamente permitido o não-recolhimento praticados sob sua égide devam ser analisados segundo os
do tributo nas datas previstas em outras normas jurídicas que termos da decisão revogadora. O artigo 5e, inciso XXXVI, da
não a introduzida mediante a liminar, não há como afamar a Carta Magna, veda terminantemente esse tipo de atitude.
ocorrência de mora, caso efetuado o pagamento na data judi-
cialmente estipulada. Não se pode admitir que ao cumprir os Em homenagem ao direito adquirido e ao princípio da
comandos da decisão judicial, exercendo direito que lhe está segurança jurídica, a nova norma deve alcançar apenas fatos
futuros. Admitir-se o contrário, asseveram Estevão Horvath e
assegurado por ela, seja o contribuinte considerado em mora.
José Roberto Pernomian Rodrigues 263 ,
Todas as decisões judiciais prescrevem alguma ação ou
omissão do destinatário, sendo expressão do dever-ser. Seu
descumprimento, portanto, representa um ilícito, desencadea- 263. "Efeitos da modificação de uma decisão judicial em matéria tributária",
dor da aplicação da norma sancionatória. Por outro lado, seu in Revista de processo, n. 89, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1998, p. 56.

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"seria reconhecer a inutilidade da atuação do Poder Judi- Com efeito, apenar-se com os consectários da mora aque-
ciário no questionamento da legalidade/constitucionalidade le contribuinte que apela ao Judiciário, e deste logo obtém
dos tributos, bem como reconhecer que as decisões judiciais proteção liminar, pelo fato de ela ter sido posteriormente cas-
que não põem fim ao processo são inúteis, incapazes de sada, significa, indiretamente, obstar ou no mínimo desenco-
amparar direitos dos administrados, o que não é o caso".
rajar o acesso ao Judiciário. Se a lei não pode excluir da apre-
ciação do Judiciário lesão ou ameaça a direito (artigo 5°, XXXV,
A exigência do recolhimento de multa e juros moratórios,
CR/88), com muito mais razão não pode ser interpretada de
numa hipótese como a suscitada, implicaria desconsiderar os
forma tal que o contribuinte que se utilize dessa prerrogativa
efeitos da decisão judicial, que, apesar de introduzir no orde-
fique prejudicado. Não se pode, portanto, qualificar de inadim-
namento jurídico norma individual e concreta, válida e vigen-
plente o contribuinte que obtém medida liminar postergando
te, seria como se não tivesse existido, visto que incapaz de
afastar as consequências decorrentes do não-pagamento no o vencimento do tributo.
tempo previsto na norma geral e abstrata. Estando o sujeito passivo protegido por uma decisão ju-
Mais ainda, estar-se-ia punindo o contribuinte que, no dicial, não incorre ele em mora, pois em tal situação não se
exercício do direito de ampla defesa, recorreu ao Judiciário, pode falar em inadimplemento ou impontualidade, no sentido
obteve decisão favorável e a cumpriu. Seria simplesmente de descumprimento de dever legal.
absurdo admitir que se pudesse contemplar, como hipótese de Corolário da inocorrência da mora é a inexigibilidade da
incidência da multa e dos juros de mora, a circunstância de multa e dos juros moratórios. Se resultam eles do descumpri-
alguém agir em cumprimento da determinação judicial. Nesse mento de um comando jurídico, inexistindo desobediência em
sentido, pondera Geraldo Ataliba 264 : virtude de outra norma jurídica, individual e concreta, respon-
sável pela alteração da primeira, não se observa comportamen-
"sempre que alguém atua concretamente, na conformidade
to contrário ao determinado pelo ordenamento jurídico. Con-
de um preceito normativo que lhe assegura o direito de
assim atuar, não pode o intérprete jamais entender como sequentemente, inexistindo mora, fica obstada a cobrança de
ilícito tal comportamento. É mesmo logicamente inconce- qualquer encargo moratório.
bível que um comportamento possa ser jurídico e antijurí-
dico ao mesmo tempo".
4.3.4. Excessos sancionatórios
Entendimento contrário levaria à conclusão de que incor-
São numerosas as manifestações doutrinárias e jurispru-
re em mora quem, recorrendo ao Judiciário, obtém decisão fa-
denciais contra sanções tributárias que exigem importâncias
vorável e a cumpre. Tal exegese deve ser veementemente repe-
desproporcionadas com relação ao tributo. Os fundamentos
lida. Não faz senso considerar inadimplente o contribuinte que
acode ao Judiciário, mostrando uma pretensão no mínimo plau- sobre que se edificam tais insurgências são, substancialmente,
sível e vendo concedida medida liminar em seu favor265 . dois: o princípio do respeito à capacidade contributiva e o da
proibição de confisco.
Realmente, uma pretensão de 300% (trezentos por cento)
264. Estudos e pareceres de direito tributário, vol. 2, São Paulo, Revista dos
Tribunais, 1978, p. 271.
do valor do tributo é algo sobremodo oneroso, que sufoca qual-
265. Cf. Eduardo Arruda Alvim, Mandado de segurança no direito tributário,
quer atividade econômica normal, tolhendo as possibilidades
São Paulo, Revista dos Tribunais, 1998, pp. 221-222. até da reeducação mental do contribuinte, para relembrar as

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

categorias de BECKER. Sabemos quais são os fins da arreca- trate de uma medida desproporcionada, excessiva em relação
dação dos tributos. Nesse trajeto, não interessa ao Estado- ao que se deseja alcançar".
Administração e à comunidade em geral que uma unidade
A aplicação desses princípios, entretanto, não se restrin-
econômica produtiva venha a desaparecer, em singela home-
ge à Administração Pública, devendo ser aplicado relativamen-
nagem à afirmação de um princípio, por mais relevante que te a todo raciocínio jurídico. Com efeito, o Supremo Tribunal
seja. Mesmo porque, ao lado das sanções de índole administra- Federal tem entendido imprescindível que a legislação disci-
tiva, como a de que tratamos, outras há de caráter penal, pu- pline as condutas de modo razoável e proporcional ao que
nindo os comportamentos que atentem contra valores funda- realmente tal conduta requer" 5-B. Disso conclui-se que as leis
mentais, entre eles o do recolhimento de tributos. Num país e atos do poder público submetem-se aos princípios da razoa-
em que os índices inflacionários sejam relativamente módicos, bilidade e proporcionalidade, devendo haver adequação entre
como acontece no Brasil de hoje, convenhamos que, em termos a imposição e o fim que se pretende atingir.
práticos, a penalidade é insuportável. E juridicamente, com a
força constitucional do primado do respeito à capacidade con- A imposição de multas, por conseguinte, deve ficar dentro
tributiva da pessoa, diretriz responsável pela concretização da do limite da razoabilidade e da proporcionalidade, ou seja,
própria igualdade em matéria tributária, fica muito difícil con- precisa guardar adequação com o ilícito praticado, não poden-
ceber a razoabilidade dessa sanção. Como as sanções existem do ser excessivo relativamente ao dano causado e ao benefício
obtido com prática indevida, pois como leciona Odete Me-
como expedientes que desestimulam as práticas indesejadas,
dauar 265 c, não podem ser impostas aos indivíduos obrigações,
de ver está que aquela cogitada na consulta em nada contribui
restrições ou sanções em medida superior àquela necessária
para os fins do Estado. Além disso, consubstancia um verda-
ao atendimento do interesse público, segundo critério de ra-
deiro confisco, figura que a Constituição brasileira também
zoável adequação dos meios aos fins. Havendo distorção entre
procura impedir, estatuindo-lhe a proibição peremptória. Esses
a medida exigida e o fim efetivamente nela previsto, in casu,
dois comandos constitucionais bastam para mostrar a incom-
entre a multa imposta e a finalidade de sua imposição, haverá
patibilidade entre sanções desse tipo e a sistemática constitu-
inadmissível violação aos mencionados princípios.
cional tributária que vigora no Brasil.
Vale a lembrança de que um dos princípios a serem se-
4.3.5. Responsabilidade dos sucessores
guidos pela Administração Pública é o da razoabilidade, se-
gundo o qual o meio deve ser adequado ao fim almejado. Sua Sabemos que o sujeito passivo é aquela pessoa que está
consecução exige proporcionalidade entre os meios de que em relação econômica com o fato jurídico tributário, dele ex-
se utilize a Administração e os fins que ela tem que realizar. traindo vantagens. Por outro lado, vezes há em que o Estado
265-
Com supedâneo em tais definições, leciona Agustin Gordillo A tem interesse ou necessidade de cobrar o tributo de pessoa
que uma medida é irrazoável, dentre outras situações, quan-
do "não guarde uma proporção adequada entre os meios que
emprega e o fim que a lei deseja alcançar, ou seja, que se
265-B. Veja-se, a título de exemplo, a concessão da medida liminar na ADIn
n. 1753/DF (DJU de 12/06/98, p. 51) e na ADIn n. 855/PR (DJU de 01/10/93,
p. 20.212).
265-A. Princípios Gerais de Direito Público. São Paulo: Revista dos Tribunais, 265-C. Direito Administrativo Moderno. São Paulo: Revista dos Tribunais,
1977, p. 183-184. 1996, p. 146.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

diversa. É o que se entende por sujeição passiva indireta, que lidade Tributária, em especial nos arts. 129 a 133 do CTN.
pode vir tanto como transferência, em uma de suas três hipó- Sucessão é a relação de aquisição de uma coisa por outrem. A
teses solidariedade, sucessão e responsabilidade, quanto como responsabilidade por sucessão, nesta medida, pressupõe um
substituição. Tal classificação tomava em conta critérios extra- negócio jurídico em que uma pessoa (terceiro) adquire de ou-
jurídicos, principalmente de cunho econômico ou da ordem da tra (contribuinte) determinado objeto gravado com débito
pragmática administrativa. Cravada estas premissas, não ha- tributário não satisfeito, recebendo, por sucessão, todos os
veria, em termos propriamente jurídicos, a divisão dos sujeitos deveres fiscais anteriores ao ato sucessório que integram o
em diretos e indiretos. Parece, pois, com ares de evidência, que objeto, ainda que o lançamento seja efetuado em momento
as hipóteses instituidoras de responsabilidade, estabelecidas posterior, conforme leciona art. 129 do Código.
pelo legislador, vinham maculadas como uma medida saneio-
nadora destinada a garantir a boa fiscalização e arrecadação No corpo do enunciado do art. 130 do CTN, apresenta-se
de tributos pelos Entes políticos. Tanto é assim que, a título a sucessão por aquisição de imóvel, em que há verdadeira as-
exemplificativo, não haveria outra justificativa que não a san- sunção do adquirente das obrigações anteriores do proprietário
cionatória a hipótese de responsabilidade do tabelião quanto daquele bem. Mais à frente, prescreve o art. 131 do mesmo Di-
ao Registro e arrecadação de ITBI na transferência de bens ploma a responsabilidade pessoal do adquirente ou remitente,
imóveis. A sua falta seria tido por infringência de seu dever pelos tributos relativos aos bens adquiridos ou remidos; do su-
jurídico de "providenciar a cobrança do imposto, no ato de cessor a qualquer título e o cônjuge meeiro, pelos tributos devi-
passar a escritura". Além de não ser essa a hipótese estabele- dos pelo de cujus até a data da partilha ou adjudicação, limitada
cida pelo legislador estadual para o imposto de transmissão esta responsabilidade ao montante do quinhão do legado ou da
"intervivos", parece, com ares de evidência, uma medida san- meação; e do o espólio, pelos tributos devidos pelo de cujus até
cionadora destinada a garantir a vigilância dos tabeliães, ao a data da abertura da sucessão. No primeiro caso, o artigo cuida
ensejo da lavratura de escritos públicos que visem a transfe- de outros bens que não aqueles do art. 130, isto, bens em geral
rência de propriedades imobiliárias. com exceção aos bens imóveis. Já na segunda hipótese, a suces-
são decorre da morte do proprietário, passando-se a proprieda-
Posto isto, cremos que, em termos técnico-jurídico, não de e os deveres que a ela integram aos seus sucessores. Por úl-
se deva falar em sujeito passivo indireto. Todas as pessoas timo, no caso de espólio, verifica-se a responsabilidade pessoal
colhidas pela endonorma tributária, para efeito de integrar o antes mesmo da sucessão. Nesta medida, verificado o débito
vínculo, na qualidade de devedores de prestação pecuniária, com o Fisco e realizada a partilha ou adjudicação, responde o
haverão de ser sujeitos passivos diretos. A distinção, repetimos, espólio pessoalmente com os débitos do de cujus.
só é possível em termos extrajurídicos, em que se considerem
dados econômicos. Sobremais, a categoria dos sujeitos passivos, Finalmente, dispõe, por último o Código, sobre a sucessão
em que aparece a transferência por responsabilidade, não deve empresarial de direito. Segundo dicção do art. 132, a pessoa
ser estudada no campo das endonormas, mas sim das perinor- jurídica de direito privado que resultar de fusão, transformação
mas tributárias, já que se apresentam como elementos do su- e incorporação é responsável pelo pagamento dos tributos
posto, ao qual se imputam sanções, por virtude da violação de devidos até a data do ato. Não é difícil verificar a pressuposição
deveres jurídicos. da Lei em trazer um dever de cooperação para que as presta-
ções tributárias venham a ser satisfeita, estabelecendo dever
A matéria que trata da Responsabilidade dos sucessores implícito de forçar a regularização do débito, antes da operação,
está disciplinada na Seção II, do Capítulo V sobre Responsabi- ou de assumir o ônus na qualidade de responsável.
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

Vale dizer que, ao disciplinar a responsabilidade tributá- As sanções, quaisquer que sejam, não são transferidas a
ria decorrente de incorporação, prescreveu o legislador nacio- terceiros mediante o vínculo da responsabilidade tributária,
nal que a pessoa jurídica resultante dessa operação societária pois o dever de com elas arcar decorre de conduta pessoal, não
(no caso, a incorporadora) fica obrigada a responder pelos coincidente com a obrigação tributária que, por sua origem lí-
valores devidos, pela incorporada, a título de "tributo". Quan- cita, é passível de transferência a quem a lei assim determine.
do o art. 132 atribui a responsabilidade tributária ao incorpo- Não bastassem os relevantes argumentos expostos, regis-
rador, o faz em relação aos "tributos". Não se refere a crédito tre-se que tanto o art. 132, do Código Tributário Nacional como
tributário, ou a obrigação principal, o que poderia, eventual- o art. 5 4 , do Decreto-lei n° 1.598/77, que disciplinam a respon-
mente, dar margem a discussões acerca da inclusão, nesses sabilidade dos sucessores nas hipóteses de alterações societá-
conceitos, das quantias correspondentes a penalidades pecu- rias, referem-se apenas a "tributos", não cuidando da transfe-
niárias. Ao empregar o vocábulo "tributo", não deixou dúvida rência dos créditos relativos a penalidades. Fosse intenção do
quanto aos valores cuja responsabilidade é passada ao incor- legislador abranger a relação jurídica tributária e a relação
porador, pois este exclui quaisquer exigências que configurem jurídica sancionatória, a elas teria feito expressa menção. Em
sanção por ato ilícito. resumo, gravemos: As infrações são de responsabilidade pes-
Dada a pessoalidade da pena em razão do seu nexo com soal de quem as praticou, sendo inadmissível sua transferência
as ações praticadas pelo infrator, o responsável somente res- a terceiros, estranhos à relação delituosa.
ponde por infrações quando para elas contribuir por ato pró- Decorrendo o ilícito tributário de atos de determinada
prio, não podendo assumir o pólo passivo de imposições de- pessoa, física ou jurídica, somente ela responde pela sanção
correntes de ilegalidades que jamais foram por ele pessoalmen- originada. A responsabilidade por sucessão abrange apenas os
te praticadas. "créditos tributários", entendidos como valores devidos a título
de "tributo", como expressamente referido no art. 132, que re-
O Supremo Tribunal Federal já se manifestou sobre o
gulamenta as sucessões empresariais. Vale recordar que "tribu-
assunto, no seguinte sentido:
to" não constitui sanção de ato ilícito (art. 3°, CTN), motivo por
que penalidade alguma pode ser objeto de transferência ao in-
"ICMS. MULTA PUNITIVA. NÃO RESPONDE POR ELA O
SUCESSOR NO NEGÓCIO. O art. 133 do CTN responsabili- corporador, independentemente de já ter sido constituída ou
za solidariamente o sucessor do sujeito passivo pelos tributos não, no instante em que se verificou a mutação societária.
que este não pagou, mas não autoriza a exigência de multas
Estou convicto de que a exegese do art. 129 veda a aplicação
punitivas, que são de responsabilidade pessoal do antecessor
de penalidade pecuniária ao sucessor, independentemente da
(CTN, art. 137. Súmula n. 192). Esse art. 133 não comporta
interpretação extensiva, que os arts. 106, 122, 134 e 137 do
autuação ter sido efetivada antes ou depois da incorporação,
CTN, interpretados sistemática e analogicamente, condenam. razão pela qual a parte inicial da nota transcrita ("não tendo sido
Padrões que decidiram casos anteriores ao CTN e em anta- autuada esta empresa anteriormente à sucessão") não se mostra
gonismo com a política legislativa destenão demonstram condizente com as normas integrantes do ordenamento posto.
dissídio com interpretação desse diploma (art. 135, do Regi-
mento Interno do Supremo Tribunal Federal). (...) Preceden-
Fiz essas considerações apenas para tornar clara a siste-
tes do Supremo Tribunal Federal. Recurso extraordinário não mática adotada pela legislação nacional, não deixando margem
conhecido." (STF —1 T. — RE 77571/SP — Rel. Min. Rodrigues a dúvidas acerca da responsabilidade por sucessão, quaisquer
Alckmin — DJ de 04.04.75). que sejam as características da situação concreta.
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

4.3.6. Responsabilidade de terceiros Havendo infração tributária subjetiva, praticada com dolo,
quer dizer, intenção de fraudar, de agir de má-fé e de prejudi-
A figura da responsabilidade de terceiros, no Código, vem car terceiros, aplicam-se as figuras da responsabilidade de
a aparecer nos arts 134 e 135, admitida nas hipóteses de im- terceiros e responsabilidade por infrações, prescritas nos
possibilidade de exigência do cumprimento da obrigação prin- arts. 135 e 137 do Código Tributário Nacional, respectivamen-
cipal pelo contribuinte. Os arts. 134 e 135 do Código Tributário te. As condutas que geram a responsabilidade exclusiva e
Nacional denunciam, com força e expressividade, o timbre pessoal são: excesso de poderes, infração de lei, infração do
sancionatório que vimos salientando. contrato social ou do estatuto.
O art. 134 tem aplicabilidade em relação a atos em que as Levemos em conta essas injunções para aplicar tais nor-
pessoas indicadas intervierem ou pelas omissões de que forem mas no caso do administrador (inciso III do art. 135 do CTN).
responsáveis, evidenciando a presença de um dever descum- O administrador deve sempre agir com cuidado, diligência e
prido como requisito à exigência do débito, em caráter suple- probidade. Deve zelar pelos interesses e pela finalidade da
tivo, dos sujeitos relacionados nos incisos I a VII. É intuitivo sociedade, o que se faz mediante o cumprimento de seu obje-
crer que, a despeito de se dizer expressamente solidária a res- tivo social, definido no estatuto ou no contrato social. Quando
ponsabilidade, a frase "nos casos de impossibilidade de exi- o administrador pratica qualquer ato dentro dos limites esta-
gência do cumprimento da obrigação principal pelo contribuin- belecidos, o faz em nome da pessoa jurídica e não como ato
te", que introduz o próprio texto do art. 134 do CTN, retoma o particular seu. Mas quando o administrador, investido dos
benefício de ordem, qualificando, deste modo, a responsabili- poderes de gestão da sociedade, pratica algo que extrapole os
dade por subsidiária. Nesta medida, cobra-se em primeiro do limites contidos nos contratos sociais, comete ato com excesso
contribuinte; cessadas as formas de exigência do dever legal
de poderes.
daquele, executa-se o responsável.
Tem-se infração à lei quando se verifica o descumprimen-
Vale a ressalva de que, em matéria de penalidades, a alu-
to de prescrição relativa ao exercício da Administração. A in-
dida responsabilidade subsidiária do caput do art. 134 do CTN
fração do contrato social ou do estatuto consiste no desrespei-
só se aplica às de caráter moratório. Sendo assim, é vedado à
to a disposição expressa constante desses instrumentos socie-
Administração Pública autuar terceiros por infrações cometi-
tários, e que tem por conseqüência o nascimento da relação
das pelo contribuinte, exceto nas situações em que aquele agiu
jurídica tributária.
com dolo específico na produção do ato infrator.
As situações acima relacionadas desencadeiam as impli-
O art. 135, não obstante também apresente caráter san-
cações jurídicas estipuladas pelo art. 135 do Código Tributário
cionatório. Elege hipótese diversa, mais grave, cominando
sanção igualmente mais severa: exige que tenham sido prati- Nacional, respondendo o administrador pessoalmente pelos
cados atos com excesso de poderes ou infração de lei, contrato débitos tributários cujo surgimento deu causa. Ainda que,
social ou estatutos, implicando a responsabilidade exclusiva e eventualmente, a sociedade beneficie-se de tais atos, compe-
pessoal daquele que agiu desse modo. Semelhante é a prescri- tirá ao administrador responder pessoalmente pela obrigação.
ção veiculada pelo art. 137 do Código Tributário Nacional, que, A relação jurídica de responsabilidade tributária não se altera
ao dispor sobre a figura da responsabilidade por infrações, em função de a sociedade ter-se beneficiado do ato ilícito, pois
atribui ao agente, de modo pessoal, a carga tributária decor- inexiste previsão legal nesse sentido. Para os fins da relação
rente das infrações que praticou de forma dolosa. existente entre o Fisco e o responsável, o benefício usufruído

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

pela sociedade é irrelevante, não havendo solidariedade nem procedimento administrativo ou medida de fiscalização rela-
subsidiariedade, mas somente obrigação pessoal do adminis- cionada com o fato ilícito, sob pena de perder seu teor de es-
trador pelo pagamento do valor correspondente ao tributo e pontaneidade (art. 138, parágrafo único). A iniciativa do sujei-
penalidades pecuniárias. to passivo, promovida com a observância desses requisitos, tem
a virtude de evitar a aplicação de multas de natureza punitiva,
4.3.7. Responsabilidade por infrações porém não afasta os juros de mora e a chamada multa de mora,
de índole indenizatória e destituída do caráter de punição.
Salvo disposição de lei em contrário, a responsabilidade Entendemos que as duas medidas — juros de mora e multa de
por infrações da legislação tributária independe da intenção mora — por não se excluírem mutuamente, podem ser exigidas
do agente ou do responsável e da efetividade, natureza e ex- de modo simultâneo: uma e outra.
tensão dos efeitos do ato (CTN, art. 136). Nota-se aqui uma
declaração de princípio em favor da responsabilidade objetiva.
4.3.8. Tipicidade, Vinculabilidade da tributação e Denúncia
Mas, como sua formulação não está em termos absolutos, a
Espontânea
possibilidade de dispor em sentido contrário oferta espaço para
que a autoridade legislativa construa as chamadas infrações O exercício do poder impositivo-fiscal, no Brasil, encontra-
subjetivas. se orientado por uma série de diretrizes, dirigidas especial-
O art. 137 aponta os casos em que a responsabilidade é mente para organizar as relações que nesse setor se estabele-
pessoal do agente: quanto às infrações conceituadas por lei cem. São os chamados "princípios constitucionais tributários",
como crimes ou contravenções, salvo quando praticadas no na maioria explícitos, e a que deve submeter-se a legislação
exercício regular de administração, mandato, função, cargo ou infraconstitucional, sempre que o tema da elaboração norma-
emprego, ou no cumprimento de ordem expressa emitida por tiva seja a instituição, administração e cobrança de tributos.
quem de direito (item I); quanto às infrações em cuja definição Pois bem, entre tais comandos, em posição de indiscutível
o dolo específico do agente seja elementar (item II); e quanto preeminência, situa-se o princípio da tipicidade tributária, que
às infrações que decorram direta e exclusivamente de dolo se define como a estrita necessidade de que a lei adventícia
específico: a) das pessoas referidas no art. 134, contra aquelas traga no seu bojo, de maneira expressa e inequívoca, os ele-
por quem respondem; b) dos mandatários, prepostos ou em- mentos descritores do fato jurídico e os dados prescritores da
pregados, contra seus mandantes, preponentes ou emprega- relação obrigacional.
dores; c) dos diretores, gerentes ou representantes de pessoas A aplicação do princípio exige que os agentes da Admi-
jurídicas de direito privado, contra estas (art. 137, III). nistração, no exercício de suas funções de gestão tributária,
Modo de exclusão da responsabilidade por infrações à indiquem, pormenorizadamente, todos os elementos do tipo
legislação tributária é a denúncia espontânea do ilícito, acom- normativo existentes na concreção do fato que se pretende
panhada, se for o caso, do pagamento do tributo devido e dos tributar, além dos traços jurídicos que apontem uma conduta
juros de mora, ou do depósito da importância arbitrada pela como ilícita.
autoridade administrativa, quando o montante do tributo de- De outra parte, o princípio da vinculabilidade da tributa-
penda de apuração (CTN, art. 138). A confissão do infrator, ção, recortado do Texto Supremo e inserido no art. 142 do
entretanto, haverá de ser feita antes que tenha início qualquer Código Tributário Nacional, traduz uma conquista no campo
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

da segurança dos administrados, em face dos poderes do Estado Especificamente em relação à inaplicabilidade do art. 61
moderno, de tal forma que o exercício da administração tribu- da Lei n. 9.430/96 na hipótese de denúncia espontânea, assim
tária encontra-se tolhido, em qualquer de seus movimentos, pela se manifestou aquela Egrégia Corte Administrativa:
necessidade de aderência total aos termos inequívocos da lei,
não podendo abrigar qualquer tipo de subjetividade própria aos "MULTA DE LANÇAMENTO DE OFÍCIO — MULTA ISO-
atos de competência discricionária. Para tanto, a mesma lei LADA — TRIBUTO PAGO APÓS VENCIMENTO, PORÉM,
ANTES DO INÍCIO DE AÇÃO FISCAL, SEM ACRÉSCIMO
instituidora do gravame, juntamente com outros diplomas que
DE MULTA DE MORA — É incabível a multa de lançamen-
regem a atividade do Poder Público, oferecem um quadro ex-
to de ofício isolada prevista no artigo 44, inciso I, § 1 4 , item
pressivo de providências, com expedientes das mais variadas II, da Lei n. 9.430, de 1996, sob o argumento do não recolhi-
espécies, tudo com o escopo de possibilitar a correta fiscalização mento da multa moratória de que trata o artigo 61 do mes-
do cumprimento das obrigações e deveres estatuídos. mo diploma legal, visto que, para qualquer dessas penali-
dades, impõe-se respeitar expresso princípio ínsito em Lei
E isto há de se aplicar integralmente à denúncia espon-
Complementar — Código Tributário Nacional — artigo 138.
tânea. Preenchidos os requisitos da hipótese de denúncia es-
Recurso provido" 265-E.
pontânea é vedado à Autoridade Administrativa aplicar de
multa de ofício. Eis dicção do Código Tributário Nacional, di-
A atividade administrativa é vinculada, devendo reali-
ploma normativo com força de lei complementar, que determi-
na a inexigibilidade da multa, seja moratória ou punitiva, zar-se nos exatos termos da lei. Isso não significa, contudo,
quando verificados os requisitos referidos em seu art. 138. ausência de interpretação dos dispositivos legais. Inconce-
bível pensar em aplicação do direito sem prévia atividade
Sobre o assunto, veja-se o posicionamento do Primeiro interpretativa. Cabe à Administração, portanto, examinar o
Conselho de Contribuintes: ordenamento em sua totalidade, para, diante do sistema
como um todo, identificar o dispositivo aplicável no caso
"IRPJ — DENÚNCIA ESPONTÂNEA — INEXIGIBILIDADE
concreto.
DA MULTA DE MORA — O art. 138 do CTN é norma de
caráter nacional, veiculando norma geral de direito tribu- Sendo a atividade administrativa plenamente vinculada,
tário dirigida, portanto, a todos os entes tributantes. Por a ela incumbe aplicar as regras que dispõem de modo especí-
isso que, consoante o art. 146, III, da Constituição de 1988,
fico sobre cada situação. Não se admite, por conseguinte, que
só lei complementar pode alterar seu conteúdo. O Código
se aplique lei ordinária em detrimento de lei nacional. Vale
Tributário Nacional não distingue entre multa punitiva e
multa simplesmente moratória; no respectivo sistema, a dizer a propósito, em comentários ligeiros ao art. 61 da Lei
multa moratória constitui penalidade resultante de infração n. 9.430/96 acima mencionado na decisão do 1Q Conselho de
legal, sendo inexigível no caso de denúncia espontânea, por Contribuintes, que referido Diploma tem aplicabilidade somen-
força do art. 138. Se inexigível a multa de mora, perde a te quando ausente a figura da denúncia espontânea, pois nos
causa a multa de ofício aplicada isoladamente pelo não casos em que esta se verificar a regra à qual se subsome o fato
recolhimento daquela quando da denúncia espontânea.
é outra: a do art. 138 do Código Tributário Nacional.
Recurso voluntário conhecido e provido" 265- D.

2
265-D. 5a Câm., Ac. 105-14349, Rel. Cons. José Carlos Passuello, j. em 265-E. 1 2 Conselho de Contribuintes, 4 Câm., Ac. 104-17933, Rel. Cons. Nelson
14.04.2004. Mallmann, j. em 22.03.2001.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

No subsolo do direito posto, não sobeja repisar que, ha- será uma pena", concluindo que as multas ditas moratórias não são
vendo denúncia espontânea, o art. 138 do Código Tributário impostas para indenizar a mora do devedor, mas para apená-lo.
Nacional determina seja excluída a responsabilidade pela in- Diante de tais considerações, conclui-se que todas as
fração, exigindo-se apenas o valor do tributo devido, com os multas fiscais, incluídas as chamadas "moratórias", têm, in-
respectivos juros de mora. Apesar da clareza desse dispositivo, contestavelmente, a natureza de sanção, advindo da inobser-
a fiscalização, muitas vezes, pretende o pagamento de multa vância de um dever jurídico. São, portanto, inexigíveis, quando
de mora, alegando não possuir ela cunho punitivo. Tal argu- configurada a denúncia espontânea a que se refere o art. 138 do
mentação, todavia, não se sustenta: primeiro, porque o legis- Código Tributário Nacional. É o que se depreende, inclusive,
lador nacional não distinguiu as multas chamadas "punitivas" das decisões proferidas pelo Superior Tribunal de Justiça:
das "moratórias"; segundo, pelo fato de que toda multa exerce
função de apenar o sujeito a ela submetido, tendo em vista o "I A egrégia Primeira Seção desta Corte firmou o entendi-
-

ilícito por ele praticado. mento de que, inexistente procedimento administrativo


prévio, visando a exigir o pagamento do tributo em atraso,
Para além do rigor, com o objetivo de esclarecer o que se
resta configurada a denúncia espontânea, quando o contri-
incluiria na hipótese de denúncia espontânea, a multa fiscal, buinte de per si o recolhe, sendo indevida a cobrança de
qualquer que seja sua modalidade, é espécie de sanção tribu- multa moratória que, no sistema tributário vigente, tem o
tária consistente numa prestação pecuniária, compulsória, que caráter de punição. Precedentes: REsp n. 499.652/SC, Rel.
sobrevém como decorrência da prática de determinadas infra- Min. Luiz Flux, DJ de 29.04.2003; REsp n. 306.716/SC, Rel. Min.
ções. É, pois, típica sanção de ato ilícito. Milton Luiz Pereira, DJ de 11.03.2002 e REsp. n. 241.114/RN,
265-
Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, DJ de 04.06.2001" G.
Seguindo semelhante linha de raciocínio, o Poder Judici- "AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO ESPECIAL -
ário, por diversas vezes, manifestou-se sobre o assunto. No ART. 138 DO CTN - DENÚNCIA ESPONTÂNEA - PAGA-
Supremo Tribunal Federal, o ilustre Min. Cordeiro Guerra MENTO INTEGRAL DO DÉBITO - EXCLUSÃO DA
chegou a afirmar que as sanções fiscais são sempre punitivas. MULTA MORATÓRIA - POSSIBILIDADE.
Na condição de Relator do RE n. 79.625-SP 265- F assentou: Na hipótese dos autos, a empresa contribuinte procedeu ao
recolhimento do débito antes de qualquer procedimento
De fato não disciplina o Código Tributário Nacional as san- fiscal, de forma que se torna incabível a cobrança da multa
ções fiscais de modo a estremá-las em punitivas ou morató- moratória. Com efeito, é pacífico o entendimento deste
rias, apenas exige sua legalidade, art. 97, V Superior Tribunal de Justiça no sentido de que o contri-
buinte que, espontaneamente, denuncia o débito tributário
em atraso e recolhe o montante devido, antes de qualquer
Também o Min. Moreira Alves, acompanhando o voto do procedimento administrativo ou medida de fiscalização, fica
Relator Min. Cordeiro Guerra, posicionou-se, por ocasião do exonerado de multa moratória.
julgamento do RE n. 80.554, no sentido de que "toda vez que, pelo Agravo regimental improvido" '.
simples inadimplemento, e não mais como caráter de indenização,
se cobrar alguma coisa do credor, este algo que se cobra a mais
dele, e que não se capitula estritamente como indenização, isso 265-G. AgRg no REsp 690.628/PR, lã T., Rel. Min. Francisco Falcão, j. em
03.05.2005, DJ de 06.06.2005, p. 209.
265-H. AgRg no Resp 610.847/RS, 2a T., Rel. MM. Franciulli Netto, j. em
265-E RTJ n. 80, p. 104-113. 21.09.2004, DJ de 21.02.2005, p. 147.

892 1 893
PAULO DE BARROS CARVALHO

É esse, também, o caminho trilhado pela Câmara Superior


de Recursos Fiscais:

"DENÚNCIA ESPONTÂNEA - MULTA MORATÓRIA:


Considera-se denúncia espontânea, portanto, abrigada
pela exceção prevista no art. 138 do CTN, o recolhimento
de tributos antes de qualquer procedimento da adminis-
tração tributária. E, conseqüentemente, as parcelas reco-
lhidas a título de multa moratória, em tal caso, devem ser
repetidas" 2654 . Capítulo 5
Nesta medida, é perfeitamente possível afirmar que todas PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO
as penalidades tributárias - pecuniárias ou não - são objeto de TRIBUTÁRIO
denúncia espontânea, conforme prevê art. 138 do CTN; sendo
o sujeito denunciante obrigado a pagar apenas o valor do tribu- Sumário: 5.1. Regras gerais da Administração
to devido e os juros de mora. Logo, as penalidades pecuniárias, Tributária - 5.1.1. Processo e procedimento -
as multas fiscais, incluídas as chamadas "moratórias", tendo 5.1.2. Ato administrativo e procedimento admi-
natureza sancionatória, não integram o quantum devido. nistrativo - 5.1.3. Procedimento administrativo
tributário como forma de controle das atividades
administrativas - 5.1.3.1. Princípios endógenos
aplicáveis ao procedimento administrativo tribu-
tário - 5.1.3.1.1. Princípio da legalidade objetiva
- 5.1.3.1.2. Princípio da oficialidade - 5.1.3.1.3.
Princípio do informalismo em favor do interes-
sado - 5.1.3.1.4. Princípio do devido processo -
5.1.3.1.5. Princípio da contraprodução -- 5.1.3.2.
Princípios exógenos aplicáveis ao procedimento
administrativo tributário. 5.2. Síntese da ativi-
dade da Administração tributária - 5.2.1. Clas-
sificação dos atos administrativos que integram
o procedimento administrativo - 5.2.2. Faculda-
des da Administração em matéria de lançamen-
to tributário - 5.2.2.1. Critérios do procedimen-
to administrativo e meios para se reconhecer a
perspectiva dimensível do fato jurídico tributá-
rio - 5.2.2.2. Observações críticas sobre as formas
de reconhecimento da medida do fato jurídico
tributário - 5.2.3. Limites às faculdades da Ad-
ministração no lançamento e garantias dos ad-
265-1. CSRF, ia T., Ac. 01-04.574, Rel. Cons. José Carlos Passuello, j. em ministrados - 5.2.3.1. Princípio da legalidade -
10.06.2003. 5.2.3.2. Limites da atividade de inspeção fiscal
894 895
PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

— 5.2.4. Procedimento administrativo e controle de "Não se confunde processo e procedimento. Este é a marcha
legalidade dos atos de aplicação de sanções — 5.2.5. dos atos do juízo, coordenados sob formas e ritos, para que
Algumas observações de política tributária acerca se atinjam os fins compositivos do processo. Já o processo
dos atos administrativos — 5.2.6. Impugnações e re- tem um significado diverso, porquanto consubstancia uma
cursos no procedimento administrativo tributário. relação de direito 'que se estabelece entre seus sujeitos
durante a substanciação do litígio'."

5.1. REGRAS GERAIS DA ADMINISTRAÇÃO TRIBUTÁRIA A figura do "processo" está jungida ao campo da jurisdi-
ção, em que se pressupõe a existência de órgão estatal, inde-
Recebe nomes diversos a conjugação de atos e termos, orga- pendente e imparcial, credenciado a compor conflitos de inte-
nizados harmonicamente, voltados para o fim de obter resultado resse, de maneira peremptória e definitiva.
que se substancia em ato expressivo e final da vontade do Estado,
enquanto Poder Público, no desempenho de suas funções. Alguns Seu caráter teleológico é exalçado por Augustin A. Gor-
a chamam de processo administrativo; outros, de procedimento dillo 267 , que distingue o vocábulo na sua concepção ampla,
administrativo. Interessa-nos restringir a discussão, no entanto, daquel'outra concepção estrita. Anota, porém, aquilo que
àquela forma precisa de processo/procedimento administrativo chama de perigo da noção ampla, porquanto, usualmente,
verificado na esfera tributária, que tem como conteúdo a discussão processo é sinônimo de juízo, e poderia chegar a entender-se
do ato de lançamento ou do ato de imposição de penalidade. que a decisão prolatada pela Administração, ouvido o inte-
ressado, resolveria definitivamente acerca dos direitos deba-
5.1.1. Processo e procedimento tidos. O autor argentino sublinha a necessidade de reservar-
mos ao processo uma atribuição específica, que vai além de
Tem-se empregado o termo "processo" para designar, simplesmente ouvir o interessado, mas que pressupõe a exis-
invariavelmente, tanto a discussão que se desdobra perante o tência de um julgador neutro e que não dependa de outrem,
Poder Judiciário quanto as controvérsias deduzidas no âmbito qualidades estas que em nenhum caso pode reunir plenamen-
da Administração Pública, sobre temas tributários ou mera- te a Administração. E assevera:
mente administrativos. A palavra, contudo, não parece reves-
tir a riqueza semântica que se lhe quer outorgar, sugerindo "Por esta razón también es conveniente reservar el concep-
dimensão mais restrita, um sentido mais estreito, justamente to de proceso y por ende de juicio para el proceso o juicio
em obséquio ao rigor da precisão dos conceitos jurídicos. estrictamente judicial, evitando con esta terminologia po-
sibles confusiones como las que se acaban de recordar 268 ."
De fato, "processo", nos domínios do direito, é o nome que
se dá ao instrumento de composição de litígios, ou ao complexo
de atos e termos voltados à aplicação do direito positivo a uma Penso ser imperiosa a distinção entre processo e procedi-
situação controvertida. Nele realiza o Estado, de forma plena, mento. Reservemos o primeiro termo, efetivamente, à composição
sua função jurisdicional, aplicando a lei e tornando efetivos os
ideais de Justiça. Como acentua José Frederico Marques 266 :
267. Tratado de derecho administrativo, Buenos Aires, Macchi-Lopes, 1974,
p. XVII-1 a XVII-5.
266. Instituições de direito processual civil, Rio de Janeiro, Forense, 2a ed., 268. Tratado de derecho administrativo, Buenos Aires, Macchi-Lopes, 1974,
1962, p. 31. p. XVII-1 a XVII-5.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

de litígios que se opera no plano da atividade jurisdicional do São aqueles atos jurídicos praticados segundo o direito
Estado, para que signifique a controvérsia desenvolvida perante administrativo, pelas pessoas administrativas, a que alude
os órgãos do Poder Judiciário. Procedimento, embora sirva para Ruy Cirne Limam, adicionando ao conceito anterior a acepção
nominar também a conjugação dos atos e termos harmonizados orgânico-formal que Oswaldo Aranha Bandeira de Mello
na ambitude da relação processual, deve ser o étimo apropriado refere em definição apartada. De modo análogo, Caio Tácitom
para referir a discussão que tem curso na esfera administrativa. separa os atos administrativos formais - "todos aqueles pra-
Firmadas tais premissas, é lícito dizer que a locução ade- ticados por um órgão administrativo" - dos materiais - "os
quada para aludirmos à impugnação de atos administrativos, que representam, substancialmente, o exercício da função
junto à própria Administração, no que tange à matéria dos administrativa do Estado, independentemente do órgão de
tributos, é "procedimento administrativo tributário". Isso não sua execução".
impede, é claro, que reconheçamos outras dimensões semân- No ato jurídico administrativo encontramos os requisitos
ticas ao vocábulo, mesmo dentro dos domínios do direito, como
estruturais do gênero "atos jurídicos", isto é, agente capaz,
por exemplo, em "processo legislativo."
objeto lícito, possível, determinado ou determinável e forma
prescrita ou não defesa em lei (art. 104 do Código Civil), além
5.1.2. Ato administrativo e procedimento administrativo de elementos que lhe dão especificidade, quais sejam, os mo-
tivos e a finalidade do ato. Haverá, portanto, cinco caracte-
Circunscritas as fronteiras do objeto deste estudo ao proce- rísticas, como tem entendido a melhor doutrina do direito
dimento administrativo tributário, quadra indagar de seu conte- administrativo.
údo, de seus antessupostos, de sua finalidade. Demais disso, im-
pende atinar ao significado intrínseco da locução "ato adminis- Como assinala Caio Tácito 272 , a capacidade do agente
trativo", de superior importância para a devida compreensão do assume, no direito público, sentido particular que se exprime
procedimento. Como unidade atômica e entidade irredutível da na regra da competência, ou seja, o poder legal de realizar de-
própria função administrativa, vamos nos imitir no exame da terminada parcela da função administrativa, e tal competência
compostura interior do ato jurídico administrativo, para depois, não adere à pessoa do agente, visto que se refere ao conteúdo
deslocarmos a atenção ao campo do procedimento. da função pública.
Oswaldo Aranha Bandeira de Mello 269 , polarizando o cen- Quanto ao objeto, não se pode adotar, sem a devida re-
tro de suas indagações no ato administrativo, firma as carac- serva, o requisito genérico dos atos jurídicos. Sobre a condi-
terísticas de essência daquela entidade, concebida no sentido ção geral da licitude, deve o objeto, ainda na conformidade
material ou objetivo, do magistério do ilustre professor, estar relacionado com a
competência específica da autoridade e com o grau de opção
"como manifestação de vontade do Estado, enquanto Poder que lhe tenha sido atribuído. Nos atos vinculados, o objeto
Público, individual, concreta, pessoal, na consecução do seu estará determinado no preceito legal, enquanto nos atos de
fim, de criação de utilidade pública, de modo direto e ime-
diato a produzir efeitos de direito".

270. Princípios de direito administrativo, 2a ed., Porto Alegre, Globo, p. 73.


269. Princípios derais de direito administrativo, vol. 1, Rio de Janeiro, Forense, 271. Direito administrativo, São Paulo, Saraiva, 1975, p. 55.
1969, pp. 413 414.
- 272. Direito administrativo, São Paulo, Saraiva, 1975, p. 58.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

de litígios que se opera no plano da atividade jurisdicional do São aqueles atos jurídicos praticados segundo o direito
Estado, para que signifique a controvérsia desenvolvida perante administrativo, pelas pessoas administrativas, a que alude
os órgãos do Poder Judiciário. Procedimento, embora sirva para Ruy Cirne Limam, adicionando ao conceito anterior a acepção
nominar também a conjugação dos atos e termos harmonizados orgânico-formal que Oswaldo Aranha Bandeira de Mello
na ambitude da relação processual, deve ser o étimo apropriado refere em definição apartada. De modo análogo, Caio Tácito 2 "
para referir a discussão que tem curso na esfera administrativa. separa os atos administrativos formais - "todos aqueles pra-
Firmadas tais premissas, é lícito dizer que a locução ade- ticados por um órgão administrativo" - dos materiais - "os
quada para aludirmos à impugnação de atos administrativos, que representam, substancialmente, o exercício da função
junto à própria Administração, no que tange à matéria dos administrativa do Estado, independentemente do órgão de
tributos, é "procedimento administrativo tributário". Isso não sua execução".
impede, é claro, que reconheçamos outras dimensões semân- No ato jurídico administrativo encontramos os requisitos
ticas ao vocábulo, mesmo dentro dos domínios do direito, como
estruturais do gênero "atos jurídicos", isto é, agente capaz,
por exemplo, em "processo legislativo."
objeto lícito, possível, determinado ou determinável e forma
prescrita ou não defesa em lei (art. 104 do Código Civil), além
5.1.2. Ato administrativo e procedimento administrativo de elementos que lhe dão especificidade, quais sejam, os mo-
tivos e a finalidade do ato. Haverá, portanto, cinco caracte-
Circunscritas as fronteiras do objeto deste estudo ao proce- rísticas, como tem entendido a melhor doutrina do direito
dimento administrativo tributário, quadra indagar de seu conte- administrativo.
údo, de seus antessupostos, de sua finalidade. Demais disso, im-
pende atinar ao significado intrínseco da locução "ato adminis- Como assinala Caio Tácito 272 , a capacidade do agente
trativo", de superior importância para a devida compreensão do assume, no direito público, sentido particular que se exprime
procedimento. Como unidade atômica e entidade irredutível da na regra da competência, ou seja, o poder legal de realizar de-
própria função administrativa, vamos nos imitir no exame da terminada parcela da função administrativa, e tal competência
compostura interior do ato jurídico administrativo, para depois, não adere à pessoa do agente, visto que se refere ao conteúdo
deslocarmos a atenção ao campo do procedimento. da função pública.
Oswaldo Aranha Bandeira de Mello 269 , polarizando o cen- Quanto ao objeto, não se pode adotar, sem a devida re-
tro de suas indagações no ato administrativo, firma as carac- serva, o requisito genérico dos atos jurídicos. Sobre a condi-
terísticas de essência daquela entidade, concebida no sentido ção geral da licitude, deve o objeto, ainda na conformidade
material ou objetivo, do magistério do ilustre professor, estar relacionado com a
competência específica da autoridade e com o grau de opção
"como manifestação de vontade do Estado, enquanto Poder que lhe tenha sido atribuído. Nos atos vinculados, o objeto
Público, individual, concreta, pessoal, na consecução do seu estará determinado no preceito legal, enquanto nos atos de
fim, de criação de utilidade pública, de modo direto e ime-
diato a produzir efeitos de direito".

270. Princípios de direito administrativo, 2a ed., Porto Alegre, Globo, p. 73.


269. Princípios derais de direito administrativo, vol. 1, Rio de Janeiro, Forense, 271. Direito administrativo, São Paulo, Saraiva, 1975, p. 55.
1969, pp. 413-414. 272. Direito administrativo, São Paulo, Saraiva, 1975, p. 58.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

competência discricionária deverá quadrar-se nos limites obtenção de resultado que consiste num ato expressivo e final
estipulados na lei, da liberdade apreciativa outorgada à Ad- da vontade do Estado, enquanto Poder Público, no desempenho
ministração. de suas funções administrativas.
Imprescindíveis se tornam tais adaptações ao reconheci- Vê-se, desde logo, que o procedimento traz à sirga um
mento da intimidade estrutural dos atos jurídicos administra- grupamento, mais ou menos complexo, de atos jurídico-admi-
tivos, merecendo considerar, ainda, os dois outros elementos nistrativos. Esses atos se compõem, sucessivamente, num todo
que completam sua existência: o motivo e a finalidade. orgânico, e em cada qual está sempre vivo o objetivo derradei-
O motivo está atrelado aos fundamentos que ensejaram a ro que anima o próprio existir do procedimento. No seu curso,
celebração do ato. Pode, na doutrina de Hely Lopes Meirelles 273 , é dado observar a marcha compassada, o fluir contínuo que
vir expresso em lei ou ficar ao critério do administrador. Tratar- vai ajeitar ensejo ao aparecimento da manifestação volitiva do
se-á, então, de ato vinculado ou discricionário, segundo a hi- Estado, expressa também num ato. Há, por isso mesmo, um
pótese. No primeiro caso, terá a autoridade que houver de indisfarçável aspecto teleológico, como se os elementos que lhe
celebrá-lo justificar a existência do motivo, sem o que o ato será imprimem compostura estivessem carregados de certo teor de
inválido ou, pelo menos, invalidável, por ausência de motivação. energia, capaz de impulsioná-lo para frente, no sentido de
Mas, deixado ao alvedrio do administrador, poderá ele praticá- atingir o alvo colimado.
lo sem motivação expressa. Caso venha a especificá-lo, porém, Ressalta à obviedade que o procedimento, enquanto su-
ficará jungido aos motivos aduzidos. cessão de atos administrativos, depende da validade e eficácia
Afinalidade é o objetivo que se pretende com a celebração de cada uma das respectivas atividades, a ponto de ver-se pre-
judicado, em seu caminhar, pelos vícios que porventura os
do ato, ou, no dizer de Seabra Fagundes 274 , o resultado prático
comprometam.
que se procura alcançar pela modificação da ordem jurídica.
Do quanto se disse, até aqui, já é possível chegarmos a
Coalescentes os cinco elementos que lhe dão substância,
uma conclusão de transcendental relevância: o procedimento
estaremos diante de ato jurídico administrativo. Entretanto,
administrativo tributário se consubstancia numa sucessão de
nem todo ato jurídico administrativo realiza os efeitos típicos a
atos tendentes a exercitar o controle de validade do lançamen-
que está preordenado. Importa saber de sua eficácia, da aptidão
to, da multa, da notificação de qualquer deles ou de ambos, a
para irradiar os efeitos que lhe são próprios. Todavia, satisfei-
fim de que a atividade desenvolvida pela Administração Pú-
ta a publicidade necessária, o ato existe, justamente por reunir
blica realize, de pleno, aquele peremptório conteúdo procla-
aqueles cinco componentes que dizem com sua essência.
mado pelos publicistas: "administrar é aplicar a lei de ofício".
De outra parte, procedimento administrativo é a conju- Os sucessivos controles de validade têm por escopo a precisa,
gação de atos e termos, organizados harmonicamente, para exata e fiel aplicação da lei tributária. A inobservância desse
preceito acarreta a presença de vícios. Por sua vez, o vício
aponta para a anulação do ato administrativo que pode ser
273. Direito administrativo brasileiro, 4a ed., São Paulo, Revista dos Tribu- empreendida tanto pela Administração, ex officio, como pelo
nais, 1976, p. 121. Poder Judiciário. Identificadas as irregularidades, é imperati-
274.O Controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário, Rio de Janei- va a anulação dos atos administrativos, bem como de todos os
ro, Forense, 1967, p. 38. atos que deles decorram ou neles se fundamentem.
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

5.1.3. Procedimento administrativo tributário como forma de certo que penetram o encadeamento das peças integradoras
controle das atividades administrativas da sucessão harmônica que culmina com a manifestação final
da vontade do Estado. Devem permear a celebração dos atos
A cadeia sistemática de atos e termos, que dão sentido de
e inspirar todas as providências que se fizerem necessárias no
existência ao procedimento administrativo tributário, já pôde
curso do procedimento, mas não é o objetivo capital, a razão
ser examinada no seu conteúdo, como uma sucessão de provi-
última, o desígnio pronto e direto que o particular e a Admi-
dências viradas ao fim precípuo de se aplicar, de ofício, mas
nistração almejam conseguir. Esta meta está restrita, em cará-
rigorosamente, a lei tributária. E tal observação não encerraria
ter primordial, à aplicação escorreita dos preceitos da lei, en-
qualquer curiosidade, uma vez que é cediço o princípio segun-
tendido este vocábulo na plenitude de seu conteúdo semântico.
do o qual a toda aplicação de penalidades deve preceder uma
Ao Judiciário, entretanto, cabe a aplicação do direito positivo,
verificação contraditória das provas produzidas nos autos, em
compondo litígios e realizando, com todo o vigor, os mais ele-
consonância com inúmeros postulados, entre eles o da ampla
vados padrões de Justiça. Reside aqui, precisamente, a distin-
defesa.
ção entre as funções da Administração, no contexto do proce-
Acontece que o procedimento administrativo tributário dimento administrativo e a do Judiciário, quando se trata do
não surde à luz, na ordem jurídica vigente, apenas no que se processo tributário. A tutela jurisdicional do Estado é conce-
refere à aplicação das chamadas multas ou outras sanções bida como atividade que se desempenha imediatamente vol-
fiscais. Tem ensejo, igualmente, no que concerne à exigência tada aos ideais de Justiça. Não há exagero até em afirmar-se
do tributo, concebida dentro dos mesmos parâmetros e cerca- que o Estado exerce a Jurisdição para celebrar a Justiça, mui-
da de idênticos cuidados. Por quê? Precisamente porque a to embora o faça também aplicando o direito, de ofício.
pretensão tributária esbarra em dois primados caríssimos, na
estrutura do direito positivo brasileiro: o direito de liberdade Tecidas essas considerações, fiquemos com a afirmação
e o direito de propriedade. A singela ameaça a esses dois direi- de que o procedimento administrativo tributário se traduz num
tos substanciais é motivo suficiente para que se desencadeie plexo de formalidades, armadas para o escopo de exercitar o
toda aquela sucessão de expedientes, alguns do Fisco, outros controle de legalidade de certos e determinados atos adminis-
do sujeito passivo, conduzindo-se a discussão de tal arte que trativos, como o lançamento, a imposição de penalidades e a
se promova, iterativamente, o controle de legalidade dos atos notificação. De ver está que outros existem, sugerindo também
praticados no plano de gestão dos tributos. um controle de legalidade e, nesta medida, seria admissível
afirmar que todo ato administrativo deve estar submetido à
Muitos autores, mais preocupados com a possível exis-
verificação de sua legitimidade. Interessa-nos, por ora, o pro-
tência de uma "Justiça Administrativa", têm procurado des-
cedimento administrativo tributário, razão pela qual centrali-
locar o cerne do problema, entendendo que o procedimento
zaremos nossas atenções naqueles específicos atos.
deva se ater a outras diretrizes, quem sabe mais amplas, con-
tudo, juridicamente menos verdadeiras e autênticas. Não se Desse modo, sempre que dúvida pairar sobre o teor de
pretende, com isso, afastar do plano da correta aplicação da juridicidade do lançamento, por exemplo, caberá ao sujeito
lei, nos domínios da relação do Ente Público com o adminis- passivo impugnar o ato, lembrando aquele controle. Provoca-
trado, os ideais de Justiça. Quer apenas significar que o pro- rá, assim, uma cadeia de outros atos e termos, propiciando
cedimento não persegue, como finalidade primeira e imedia- ensejo para a decisão de primeira instância, que nada mais é
ta, a concretização de critérios de Justiça. Tais anseios por que a manifestação de órgão superior (à autoridade competente
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

para realizar o ato de lançamento) acerca da validade do ato 5.1.3.1. Princípios endógenos aplicáveis ao procedimento
praticado. Insatisfeito, ainda, o particular pode interpor recur- administrativo tributário
so da decisão expedida pelo órgão a quo, provocando, nova-
A mais autorizada doutrina do direito administrativo tem
mente um controle de legalidade, agora mais especializado, e
refletido nas grandes diretrizes que hão de governar a marcha
cercado de prerrogativas mais solenes e importantes: a delibe-
do procedimento, de um modo geral, e, sobretudo, no campo
ração de um órgão colegial, de estrutura paritária (Tribunal de
das imposições tributárias. Segundo Agustín A. Gordillo 275 , os
Impostos e Taxas, Conselho de Contribuintes, etc.). Acresce princípios que informam o procedimento administrativo, di-
notar que não pára aí o exercício do controle da legitimidade zendo, diretamente, com o objetivo fundamental que a sucessão
dos atos administrativos pela própria Administração, uma vez de atos e termos persegue, são de dois tipos, aparecendo, con-
que outros atos serão praticados, invariavelmente compostos tudo, um terceiro grupo, que se prende a características exter-
para aquele fim. A culminância é o ato de apuração da dívida nas do procedimento, e que valem ser considerados.
ativa, seguida de sua inscrição no livro de registro da dívida
Os princípios ligados ao primeiro tipo e, portanto, intrín-
pública.
secos ao procedimento, guardam semelhança com formulações
Convém memorar, neste ponto, a grande importância de do processo penal, destacando seu caráter oficial, instrutório,
que se reveste esse ato, algumas vezes relegado pela própria donde se irradiam a chamada impulsão de ofício e as provas
Fazenda a uma posição de secundário relevo. É que o ato de pré-concebidas, como dado prioritário; os cânones do segundo
apuração da dívida ativa e subsequente inscrição no registro tipo visam a garantir a participação das pessoas no curso do
adequado, não só expressa o derradeiro instante em que a procedimento, aparecendo, nesse nível, o informalismo a favor
Administração pode desenvolver o específico controle da legi- do administrado, o da defesa adequada, com ampla possibilida-
timidade dos atos praticados, como também que esse exercício de de prova, o princípio do contraditório e da imparcialidade.
é feito por especialistas juridicamente qualificados. Na verda- Entre os princípios exógenos, teríamos, ainda na trilha do
de, por uma série de razões que não frisa retomar, as autorida- juriscultor argentino, aqueles que asseguram o caráter escrito
des que decidem, na esfera administrativa, não precisam ter do procedimento, o da ausência de custas e outros mais que não
formação jurídica especializada. Em inúmeras oportunidades interferem propriamente com a estrutura procedimental.
vamos encontrar profissionais de outras áreas do conhecimen-
Passemos a examinar, topicamente, esses postulados ca-
to cumprindo o mister de analisar o teor de juridicidade de atos
pitais, que nos permitem compreender o procedimento admi-
administrativos, sem que congreguem, para tanto, as condições
nistrativo tributário dentro de uma visão global e orgânica.
intelectuais que o juízo crítico requer.
Acredito que o único ato realizado, obrigatoriamente, por
5.1.3.1.1. Princípio da legalidade objetiva
profissionais habilitados na interpretação jurídica, é o de apu-
ração e inscrição da dívida ativa, porquanto se consubstancia O procedimento administrativo tributário deve seguir seus
em atividade privativa dos Procuradores da Fazenda. Se enla- trâmites no âmbito daquilo que se conhece por realização do
çarmos essa nota à situação, já mencionada, de ser esse o últi-
mo instante para que o controle de legalidade seja exercido,
ver-se-á, de modo claro e insofismável, o grande valor que 275. Procedimiento y recursos administrativos, 2a ed., Buenos Aires, Macchi,
representa. pp. 53-54.

904 905
PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

conteúdo objetivo das normas jurídicas, para preservar o 5.1.3.1.2. Princípio da oficialidade
i mpério da legalidade e da justiça. Como é cometido à Ad-
ministração "aplicar a lei de ofício", haverão de procurar Do princípio da oficialidade se desprende a regra de que
seus agentes a forma mais concreta, adequada e verdadeira o impulso do procedimento deve caber à Administração, quer
de realizar os comandos jurídicos. Esse princípio, que ilu- como desdobramento do próprio cânone da legalidade objeti-
mina toda a marcha do procedimento, atina, de maneira va, quer como imperativo de que a atividade, primeiro que diga
plena, com a ratio essendi da figura, visto que já examinamos, respeito ao interesse do particular, envolve um interesse pú-
com alguma insistência até, que o procedimento existe para blico e da Administração mesma, na medida em que, por seu
garantir ao Poder Público o aperfeiçoamento da intelecção intermédio, se controla a precisa e correta aplicação da lei.
da mensagem legislada, expedindo atos inteiramente con- Isso não quer exprimir que o início do procedimento não
sonantes com o sistema jurídico vigente. Nessa exata dimen- possa caber ao administrado ou, ainda, que certos atos proce-
são, a legalidade que deve presidir a celebração e anexação dimentais não sejam cometidos à sua iniciativa. Expressa,
dos atos, no quadro procedimental, não vem em favor ou única e exclusivamente, que compete ao Poder Público zelar
detrimento de qualquer das partes, antes pressupõe o obje- pelo curso regular do procedimento, evitando que seu progres-
tivo cardeal de efetivar os comandos legais nos seus precisos so fique tolhido por manifestações de inércia do interessado,
e estritos termos. com o comprometimento dos objetivos finais que norteiam sua
276
Obtempera Gordillo que, em função desse primado, existência.
explica-se: o caráter instrutório do procedimento; a possibi-
Demora-se aqui um fator de dessemelhança com relação
lidade de a autoridade proceder de ofício; e considerável ao direito processual civil, em que prevalece a diretriz segun-
amplitude na interposição de recursos e impugnações, faci- do a qual a lei atribui às partes assegurarem o caminhar do
litando assim, dentro do possível, o controle dos superiores
procedimento judicial, na busca da tutela jurisdicional do
hierárquicos sobre a boa marcha e legalidade da adminis-
Estado.
tração pública. Aduz, finalmente, que, em virtude desse
princípio, se esclarece porque a desistência do recorrente Convém advertir que quando se fala em impulso de ofí-
não veda à Administração prosseguir na busca da legitimi- cio, não se alude a um caráter absoluto, mas apenas prepon-
dade do ato prolatado, o que também ocorre com o faleci- derante, variando em sua intensidade conforme o tipo de
mento do interessado. interesse que se coloca como conteúdo da controvérsia.
Tratando-se de atos jurídicos de índole tributária, vigora o
Com supedâneo nesse postulado, apreendido em toda a
princípio com grande força e vitalidade, de tal modo que se
sua abrangência, emerge a necessidade de conferir-se ampla
torna admissível asseverar, sem qualquer extravagância, que
defesa ao administrado, não só como requisito erigido nos
foi deferida à Administração cuidar do avanço procedimental,
sistemas liberais, em homenagem à pessoa humana do parti-
afastando todas as hipóteses em que a sucessão de atos fique
cular, mas, sobretudo, como disposição técnica para assegurar
truncada, frustrando-se por essa via o controle de legalidade
a efetiva e correta aplicação da "legalidade objetiva".
dos atos praticados.
Deflui, também, da máxima da oficialidade o timbre ins-
276. Procedimiento y recursos administrativos, 2a ed., Buenos Aires, Macchi, trutório que há de acompanhar o procedimento administrativo,
p. 55. entendendo-se por isso a condição de que a produção de provas
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

e todas as demais providências para a averiguação dos fatos Como aplicação prática desse princípio, temos a tolerân-
subjacentes cabem tanto ao Poder Público quanto à parte in- cia quanto à denominação de recursos e peças impugnatórias;
teressada. Por evidência que no plexo das disposições norma- a consideração de medidas endereçadas a autoridades diversas,
tivas é que vamos encontrar a quem compete realizar esta ou dentro do mesmo órgão, ou dentro de certos limites. O que
aquela prova; tomar esta ou aquela providência no sentido de interessa, no caso, é a vontade de impugnar, o desejo de inter-
atestar os acontecimentos. Alguns expedientes são, por natu- por recurso, ficando para segundo plano os requisitos formais
reza, privativos da Administração, enquanto outros só ao ad- que dizem com a compostura da peça.
ministrado quadra produzir. No feixe de tais contribuições
Em súmula estreita, vale acentuar que o critério do infor-
reside o caráter instrutório do procedimento administrativo
malismo, que permeia o procedimento administrativo, inscre-
tributário e, com ele, a forma encontrada pelo direito para o
ve-se no plano das prerrogativas do administrado, vindo a fa-
esclarecimento dos fatos e subsequente controle da legalidade
vorecê-lo, beneficiá-lo e criar pressupostos para que participe
dos atos.
em igualdade de condições com o Poder Público no contexto
procedimental. Não aproveita, porém, à Fazenda, que deverá
5.1.3.1.3. Princípio do informalismo em favor do interessado ater-se ao espectro de requisitos formais que inspiram suas
manifestações. Caso admitíssemos o informalismo em favor da
O informalismo é um sainete bem próprio ao procedi- Administração, entraríamos nos perigosos domínios do arbítrio
mento administrativo. Por ele deve entender-se a ausência e no mar revolto das soluções extralegais.
de formas estritas, de modelos exclusivos, que podem ser
interpretados com alcances até discrepantes. Por um lado, o
informalismo muitas vezes conduz à arbitrariedade, pela 5.1.3.1.4. Princípio do devido processo
ausência de fórmulas determinadas, que se afiguram autên-
A diretriz suprema do devido processo legal, que anima
ticas garantias da segurança das relações procedimentais. Por
a composição de litígios promovida pelo Judiciário, e garante
outro, contudo, o informalismo significa a aceitação de um
quadro amplo de direitos e prerrogativas, para a busca da ampla liberdade às partes para exibir o teor de juridicidade e
melhor adequação fáctica ao suposto normativo geral e abs- o fundamento de justiça das pretensões deduzidas em juízo, se
trato. E é com tal acepção que há de ser acolhido, presumin- aplica com assomos de princípio capital ao procedimento ad-
do-se que todos os efeitos favoráveis que venha a suscitar, ministrativo tributário. Existe o chamado "devido processo
beneficiem o administrado. Daí a referência expressa a infor- legal", como instrumento exclusivo de preservar direitos e
malismo em favor do interessado. assegurar garantias, tornando concreta a busca da tutela ju-
risdicional ou do ato jurídico administrativo, o que consubs-
Adscrever-se um aspecto formal rígido para governar os tancia a manifestação final da Fazenda em questões tributárias
atos praticados pelo particular significaria, em última análise, que dependam de um ato formal expressivo de sua vontade.
criar empeços e sugerir embaraços a um relacionamento que
há de ser simples e objetivo, por natureza. Esse critério não é É com estribo nesse primado que não se concebe, nos dias
de aplicar-se à atividade administrativa, na pauta de sua inter- atuais, alguém ser apenado sem que lhe seja dado oferecer
venção procedimental. Favorece o interessado, o particular, a todas as razões favoráveis, que justifiquem ou expliquem seu
parte, não a Fazenda Pública, cujos atos serão celebrados e comportamento. É direito que mereceu referência explícita em
2
acompanhados com imprescindível rigor. nossa Carta Constitucional, consoante se vê do art. 5 , LV, da
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

CR/88, in verbis: "Aos litigantes, em processo judicial ou tolhido sob qualquer pretexto. Admoesta Gordillo 2 " que o ato
administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o "secreto del procedimiento sólo se justifica en casos excepcio-
contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ele nales y por decisión expresa de autoridad competente";
inerentes". b) oportunidade de expressar suas razões em momentos
Fique assinalado que à locução "aos acusados em geral", que antecedam a expedição do ato administrativo e, também,
se equipara, em tudo e por tudo, a situação de todos os admi- por desdobramento lógico, em instantes subsequentes à cele-
nistrados que tenham ameaçados seu patrimônio e sua liber- bração e publicidade do ato;
dade, por força de exigências de índole tributária. Já mencio- c) manifestação expressa da autoridade que está incum-
namos que o poder de império do Estado, na plataforma dessas bida de apreciar o feito, com relação a cada um dos argumentos
imposições, há de manifestar-se de forma extremamente cui- e das questões propostas, ressalvando-se, naturalmente, aquelas
dadosa, inspirada pelo zelo que a magnitude desses direitos que refugirem do segmento circunscrito na lide;
sugere, tratando-se, como se trata, de prerrogativas fundamen-
d) dever da Administração de decidir explicitamente os
tais ao ser humano no convívio com seus semelhantes.
pedidos, impugnações e recursos, fundamentando as soluções
A observância de tão elevado critério, porém, não há de alvitradas e analisando, topicamente, os pontos levantados pelas
inscrever-se no aparente quadro de faculdades externas e partes;
rotineiras, preservadas como singelos deveres dos agentes da
e) direito de fazer-se representar por profissional especia-
Administração, no decurso do procedimento. Antes de tudo,
lizado, o que se explica nas adnumeráveis situações em que o
são imperativos constitucionais, que embora expressos na-
sujeito passivo não tem o desejado conhecimento da sistemá-
quele já citado preceito, penetram inúmeros outros disposi-
tica que preside a exigência fazendária. Essa faculdade, toda-
tivos, quer no Texto Magno, quer em diplomas de inferior
via, não elide a defesa do próprio interessado, muitas vezes
estatura hierárquica. A ele devem curvar-se todos os funcio-
impossibilitado de contratar alguém para representá-lo.
nários incumbidos de intervir na marcha do procedimento,
curando, de ofício - sem necessidade de qualquer instância 2 2 - Direito a oferecer e produzir a prova adequada à
do particular - de sua preservação e do sentido e da profun- defesa de suas pretensões. Essa prerrogativa traz, também,
didade de sua existência, enquanto critério sobranceiro, di- como pressupostos:
retriz primeira e conquista inarredável do moderno Estado
de Direito, assim concebido como aquele que se submete à a) direito a que toda prova, razoavelmente proposta, seja
lei e à jurisdição. produzida, ainda que tenha que fazê-lo a própria Administração,
como atestados, certidões, informações, esclarecimentos, etc.;
O direito ao devido processo, o due process of law, antes-
supõe a verificação de uma série de desdobramentos, que b) direito a que a produção da prova seja efetivada antes
podem ser assim enumerados: que o Poder Público adote alguma posição definitória sobre o
conteúdo da questão;
til - Direito a ser ouvido, que abrange, por sua vez:
a) ampla publicidade de todos os atos do procedimento,
máxime aqueles privativos da Administração, firmando-se, 277. Procedimiento y recursos administrativos, 2a ed., Buenos Aires, Macchi,
nesse plano, o direito de vista do particular, que não pode ser p. 82.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

c) direito a participar na produção da prova feita pela depois subir, respectivamente, à apreciação do órgão de pri-
Administração, seja ela pericial ou testemunhal, como outra meiro grau ou da Corte Administrativa que decide em segunda
manifestação do princípio da publicidade. instância. Parece óbvio que esse vezo rompe com o equilíbrio
procedimental, atribuindo-se participação maior à Fazenda
que ao particular. Sobre violar o caráter contraditório, acaba
5.1.3.1.5. Princípio da contraprodução
por favorecer a Administração.
O princípio da contraprodução não assume, propriamen- É importante ressaltar que o princípio do contraditório
te, a categoria de primado independente, mas tem como está jungido à observância de certo grau de imparcialidade
premissa a configuração procedimental dentro da amplitude na solução do litígio. Não se pretende, é claro, que haja
do "devido processo legal". A realização desse cânone tem aquela imparcialidade absoluta que caracteriza, teoricamen-
como corolário imediato que se estabeleça uma sequência te, as emanações do Poder Judiciário. O esquema estrutural
contraditória, em que Administração e administrado se colo- que governa a existência do procedimento, desenvolvido nos
quem numa situação de equilíbrio, apta a propiciar o desdo- cancelos da Administração Pública, em que esta aparece
bramento do feito e ensejar a edição do ato conclusivo, para como interessada no deslinde do problema suscitado, por si
o qual propende. só já afasta a possibilidade de uma solução imparcial e equi-
Cabe asseverar que a cada expediente de iniciativa do ponderante.
particular corresponde um ato ou uma providência da Fazen- Sabe-se que a autoridade julgadora está premida por
da, de tal sorte que se configure a contradição inspiradora do contingências que a tornam mais próxima do ato administra-
procedimento, enquanto cadeia de atos e termos, associados tivo que abriu ensanchas à controvérsia do que à impugnação
orgânica e harmonicamente, para o fim deliberado de obter-se deduzida pelo interessado. É verdade intuitiva que não pode
um ato final, substanciador da vontade administrativa. A ser afastada sem desapreço do exame objetivo da realidade que
recíproca também é verdadeira, uma vez que todo ato admi- se estuda com o procedimento. Em contraponto, faz-se mister
nistrativo suscita, ou pode suscitar (não se tratando da mani- a existência de um mínimo de independência e imparcialidade,
festação derradeira), pedido de revisão, peça impugnatória para que se possa falar em contraditório e, por via de conse-
ou recurso. quência, em procedimento administrativo tributário. Por esse
É imperioso reconhecer que o princípio da contraprodu- mínimo de independência vêm lutando os tribunais adminis-
ção não se perfaz, apenas e tão-somente, com a possibilidade trativos do Brasil.
de o administrado ou a Administração oferecer argumentos e
provas que contradigam atos ou peças interpostas no procedi-
5.1.3.2. Princípios exógenos aplicáveis ao procedimento ad-
mento. Requer, sobretudo, que isso ocorra num ambiente de
ministrativo tributário
rigoroso equilíbrio, opondo-se equitativa e uniformemente, as
razões de ambas as partes. Consoante sublinhei, na esteira do juspublicista argen-
Deve ser vista com inusitada reserva, por exemplo, a prá- tino, outros princípios há que podem ser identificados como
tica utilizada no procedimento administrativo do Estado de exteriores ao procedimento, mas que servem para distingui-
São Paulo, em que o oferecimento de razões de defesa ou de lo de outras entidades jurídicas, interessando, portanto,
recurso dá espaço à manifestação do Representante fiscal, para enunciá-los.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

ls - O caráter escrito do procedimento, que assume relevo da celeridade suso mencionada. Os atos administrativos reali-
na dimensão em que os momentos de oralidade são muito re- zados no decurso do procedimento, assim como todos os mo-
duzidos e praticamente inexistentes. Essa particularidade se mentos que qualificam a participação do interessado, devem
traduz como imperativo que inibe arbitrariedades e afasta obedecer a disposições singelas, a pressupostos de fácil com-
pressões espúrias que, por uma razão ou por outra, poderiam preensão, a medidas de entendimento imediato ao comum dos
macular o curso normal do procedimento. Assim, até as provas homens, em ordem a que se torne possível assegurar o caminho
testemunhais hão de ser reduzidas a escrito. É fato, sobretudo do procedimento, em clima de rapidez e segurança. Ainda
de estabilidade, da própria relação procedimental. quanto aos atos administrativos, seria admissível certa imple-
2 4 - A ausência de custas é outro pormenor que marca, xidade, firmada a convicção de que o agente competente para
ainda que de maneira exterior, a realidade do procedimento efetivá-lo seja também competente na acepção vulgar do termo.
administrativo tributário, principalmente em cotejo com o Entretanto, no que entende ao particular, pareceria desatinado
processo judicial tributário. A justificação repousa no interes- exigir o cumprimento de formas complicadas, se não em casos
se que a Administração devota ao curso do procedimento, que excepcionais, onde as próprias circunstâncias requerem ma-
tem por escopo a edição de ato final controlador da legalidade nifestações complexas.
de atos anteriormente praticados. O procedimento interessa à
Se à rapidez se liga a simplicidade, é lícito dessumir que
Fazenda, que não pode pretender o exercício de direitos que a
da conjugação dos dois requisitos nasce a economia. De fato,
lei não lhe comete e não deve extrapassar os limites consigna-
não se pode pensar em economia, se nos deparamos com uma
dos no direito positivo para o implemento das imposições le-
cadeia iterativa de atos complexos, de providências rebuscadas,
galmente atribuídas. Embora de feição exógena, a ausência de
de expedientes estrambóticos, de exigências esdrúxulas, tudo
custas se prende ao sentido de existência jurídica do procedi-
isso associado numa "organização" que prima pela ausência
mento como um todo.
de prazos determinados para ambas as partes. Não há exagero
3Q -A rapidez, simplicidade e economia são também fato- em afirmar-se que a economia procedimental é decorrência
res externos, mas que devem inspirar a figura do protótipo de lógica e cronológica da simplicidade e da rapidez.
procedimento administrativo tributário. A rapidez interessa a
Vimos de ver os postulados endógenos e exógenos que
todos. O direito existe para ser cumprido e o retardamento na
devem inspirar o procedimento administrativo tributário, para
execução de atos ou nas manifestações de conteúdo volitivo
hão de sugerir medidas coibitivas, tanto para a Fazenda como que ele se realize como "sucessão itinerária e encadeada de atos
para o particular. Nesse domínio se situa a estipulação de pra- administrativos tendendo todos a um resultado final e conclu-
zos para a celebração de atos administrativos, bem como a sivo", no dizer de Celso Antonio Bandeira de Mello 27 S, ou, segun-
interposição de peças e outros expedientes que interessem aos do Alberto Xavier 279 , "como a sucessão ordenada de formalida-
direitos do administrado. Não se compaginam com os ideais des tendentes à prática ou à execução de um ato administrativo
de segurança e garantia das relações jurídicas certas situações por parte de uma autoridade ou órgão administrativo".
indefinidas, qualificadas pela inércia de agentes da Adminis-
tração ou do titular de direitos subjetivos.
278. Elementos de direito administrativo, São Paulo, Revista dos Tribunais,
A rapidez liga-se à simplicidade, uma vez que expedientes 1980, p. 71.
e providências complexas não poderiam responder ao requisito 279. Procedimento administrativo, São Paulo, Bushatsky, 1976, p. 89.
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

Seja como for, a coalescência de todos aqueles primados, todos os atos processuais devem ser susceptíveis de conhecimen-
derramando luzes sobre a sucessão articulada de atos e termos, to geral, salvo os processos que se desenvolvam em segredo de
outorga ao procedimento um sentido jurídico de grande signi- justiça. Mesmo nessa última hipótese, persiste a publicidade em
ficação, aparecendo como instrumento valioso para o surgi- relação às partes, cujo direito de ser comunicado a respeito dos
mento, no universo do direito positivo, de uma sadia e adequa- atos processuais não pode ser tolhido sob nenhum pretexto.
da manifestação de vontade do Estado enquanto Administração Quero dizer com isso que, falar em procedimento admi-
Pública. nistrativo tributário é identificar todos esses preceitos no ato,
sem o qual ele não persiste no direito. Esses princípios são as
5.2. SÍNTESE DA ATIVIDADE DA ADMINISTRAÇÃO regras diretivas da atividade da Administração Pública, inibin-
TRIBUTÁRIA do a produção normativa que se mostrar autoritária e extrale-
gal, de tal modo que os direitos fundamentais do contribuinte
Dentre os princípios exógenos do procedimento adminis- possam ser garantidos.
trativo tributário de um lado - rapidez, simplicidade e econo-
mia -, e os princípios endógenos de outro - legalidade, oficiali- 5.2.1. Classificação dos atos administrativos que integram o
dade, informalidade, devido processo legal -, encontraremos a procedimento administrativo
Administração tributária realizando, como primado da sua ati-
vidade, o controle de legalidade de seus atos com fundamento Assentando sua posição em catálogo exposto por Pietro
na Constituição da República, que determinou, expressamente, Virga, Celso Antonio Bandeira de Mello 28 ' classifica os atos que
a observância aos princípios inerentes ao devido processo legal compõem o procedimento administrativo, na conformidade da
(art. 52 , LIV). Trata-se de preceito de observância necessária em função que desempenham para o conjunto, em:
todos os procedimentos administrativos tributários. Representa,
a) atos propulsivos - que deflagram o procedimento. São
segundo Manoel de Oliveira Franco Sobrinho 280 , forma de con- atos de iniciativa, como as propostas, convocações, etc.;
ciliar o interesse público com o direito dos administrados: "a
segurança jurídica para os que dependem da Administração b) atos instrutórios ou ordinários - todos aqueles que se
através do controle das formas que a lei determinar para que os destinam a instrumentar e preparar as condições de decisão,
atos governamentais se legitimem na legalidade". tais como as informações, os laudos, as perícias, documenta-
ções, pareceres, etc.;
Desse princípio decorrem, dentre outros, vedação a juízo
ou tribunal de exceção, proibição de julgamento do processo c) atos decisórios - são os que decidem, resolvendo a se-
por autoridade incompetente, garantia de que o particular não quência procedimental;
será privado de sua liberdade física ou de seus bens sem o d) atos controladores - são os que confirmam ou infirmam
correspondente processo judicial, princípios da ampla defesa a legitimidade dos atos do procedimento ou a oportunidade da
e do contraditório, exigência de motivação das decisões e pu- decisão final;
blicidade dos julgamentos. Segundo o princípio da publicidade,

281. Curso de direito administrativo, 21a ed., São Paulo, Malheiros, pp.
280. A prova administrativa, São Paulo, Saraiva, 1973, p. 40. 422-423.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

e) atos de comunicação - aqueles que dão conhecimento a figura do lançamento, no seu aspecto fáctico-procedimental,
a terceiros dos atos que lhes devem ser noticiados. É o caso da isto é, na série de atos e termos em que se manifesta o proce-
publicação, da intimação, da participação, etc. dimento, objetivando-se no produto final, que é o ato de lan-
çamento tributário. Será exercício de competência adminis-
trativa, se a pessoa indicada pela lei para empreender esses
5.2.2. Faculdades da Administração em matéria de lançamento fatos for um agente administrativo. Mas será o desempenho de
tributário deveres instrumentais no caso do destinatário do mandamen-
to vira ser o próprio administrado.
A ambiguidade da expressão "lançamento tributário" é
do tipo processo/produto, havendo uma atividade de lançar e Debaixo dessa rubrica, interessam-nos os atos praticados
o resultado dessa atividade, que é o produto por meio dela pela Administração Pública, motivo pelo qual colocarei entre
obtido. Também pode ocultar-se nessa dupla fisionomia a di- parênteses metódicos os demais atos dos particulares. Isso nos
vergência sobre a constitutividade ou declaratividade do lan- permitirá outro isolamento temático, na medida em que sepa-
çamento, discussão que, para mim, parece totalmente ultra- ramos a palavra "faculdade", passando a examiná-la pelo
prisma da Lógica. "Faculdade" é operador relacional que pres-
passada. Temos que o procedimento administrativo é forma de
supõe dois termos-sujeitos: Administração e administrado.
apuração dos acontecimentos ocorridos no passado que, no ato
Representa-se pela conjunção de duas permissões: permissão
final, serão revestidos em linguagem competente. A linguagem
de cumprir a conduta e permissão de omiti-la. Em símbolos
descritiva é, ao mesmo tempo, declaratória de um referencial
formais: Fp =- (Pp.P-p).
e constitutiva do suporte físico-linguístico que representa este
referencial. E assim pode ocorrer com o lançamento. Todas as Ao mesmo tempo em que o agente público, fazendo as
providências relativas à atividade intelectual e material, de- vezes da Administração, dispõe de faculdades perante o sujei-
senvolvida para preparar o ato final, apresentando-o no estilo to passivo dos tributos, que também se expressa como um
de linguagem previsto na lei, estariam incluídas na fase, diga- "poder", aquele mesmo agente se acha atrelado à entidade
tributante, no contexto de outra relação de direito administra-
mos assim, procedimental, remanescendo o documento derra-
tivo, em que há de realizar determinado fato em cumprimento
deiro como produto daquela atividade, que seria o processo,
de seu dever. Nest'outra relação, o agente público é sujeito
melhor dizendo, o procedimento. Quando se usa "faculdades
passivo do vínculo, sendo sujeito ativo a Administração, como
da Administração", nesse campo, pretende-se aludir à "ativi-
órgão. Na primeira, aparece o agente público representando a
dade-procedimento" e não ao "documento-produto".
entidade tributante, como sujeito ativo, e o administrado, como
Por isso, em "Relatório Geral" que apresentei na XVIII sujeito passivo. A Administração obriga o agente que, por sua
Jornada Latino Americana de Derecho Tributário 282 , autores vez, obriga o administrado. Este se sujeita aos atos do agente
como Rodolfo R. Spisso, da Argentina, Ferreiro Lapatza 283 , da que, de sua parte, se sujeita às prescrições da Administração.
Espanha, e Andres Octavio, da Venezuela, sublinham o fato de Trata-se da decomposição analítica daquilo que conhecemos
que, pensar em "faculdades da Administração" implica admitir por "dever-poder" da entidade pública perante o sujeito pas-
sivo da obrigação tributária. Dever do agente, em face da Ad-
ministração; e poder, diante do administrado.
282. Montevidéu, Uruguai, de 1 a 6 de dezembro de 1996. A "faculdade administrativa" é mera permissão decorrente
283. Curso de derecho financiero espanõl, Madrid, Marcial Pons, 1990. do exercício vinculado da competência administrativa. Nesse
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

sentido, é possível afirmar que a atividade de gerir e liquidar às normas legais que definem e regulam, consoante o cânone
comporta a competência normativa tributária (potestad nor- da legalidade. Portanto, a lei deve estabelecer os métodos para
mativa tributária) e a competência de imposição (potestad de determinar o fato imponível, as formas de atuação, a iniciativa
imposición): cuida esta da correta aplicação da lei tributária e do processo e os efeitos jurídicos subsequentes. A "não discri-
compreende um conjunto de "potestades" que tem por objeti- cionariedade", nesta proporção, significa o necessário quadra-
vo investigar e comprovar fatos, constituindo o desenho mate- mento da atividade administrativa nos ditames legais. Nestes,
rial da norma tributária. A "potestad" de imposição é uma assentam os aspectos material, pessoal, espacial, temporal e
faculdade-dever. Vincular a "potestad" ao dever significa que, quantitativo da regra-matriz de incidência, limitando as facul-
de um lado, o Poder Administrativo deverá exercitar a "potes- dades da Administração a utilizar seu critério e livre-arbítrio
tad" sempre que exija o cumprimento daquela prescrição e, para solucionar questões tributárias.
pelo outro, que só poderá exercitá-lo na medida em que seu
exercício seja meio de cumprimento de dito dever.
5.2.2.1. Critérios do procedimento administrativo e meios
A atividade administrativa gestora suscita relações entre para se reconhecer a perspectiva dimensível do fato
a Administração e os particulares, cujo objeto são prestações jurídico tributário
de caráter instrumental que têm por finalidade imediata favo-
recer o exercício da gestão tributária, na busca do fato jurídico "Re-conhecer" é enunciar o conhecido. O ato de conhecer
impositivo. Tais deveres públicos de prestação denominam-se é atividade meramente intrapsíquica, particular a cada sujeito
deveres formais e consistem em obrigações de fazer que pres- cognoscente, mas o direito impõe método para reconhecimen-
crevem aos particulares condutas tendentes a facilitar a ativi- to das verdades jurídicas, constituindo aquilo que chamamos
dade diretiva da Administração tributária. Esta, no exercício de fatos jurídicos. A busca da verdade jurídica, entretanto,
de suas funções de aplicação do tributo ao caso concreto, deve pouco tem que ver com os valores verdadeiro/falso das lingua-
atuar com sujeição estrita ao princípio da legalidade, que se gens descritivas das Ciências. Há uma diferença que se revela
erige numa garantia dos administrados diante dos poderes fortalecida no plano pragmático: a Ciência procura explicar o
públicos. mundo dos objetos, agrupados nas quatro regiões ônticas; o
Ao analisar o termo "faculdades", pondera-se, todavia, direito, por outro lado, prescreve condutas intersubjetivas,
que somente à lei compete determinar os critérios da regra- compondo conflitos de interesses. O conhecer jurídico relativo
matriz de incidência. Cabe, deste modo, à Administração ape- ao ato de determinação tributária manifesta-se na evolução do
nas aplicar o que é prescrito em lei, carecendo, portanto, de procedimento administrativo. As normas que regulam esse
qualquer espécie de "faculdade", senão a de cumprir o precei- processo funcionam como filtros seletores de propriedades
to legal. O sistema de presunções, como procedimento de do real. Seu produto não será, certamente, a realidade mes-
substituição de um imposto sobre valores reais por outro sobre ma, mas a realidade reconstituída pela própria linguagem
valores médios, deve servir de base e razão inescusável para do direito.
remeter ao Parlamento a competência de sua regulação, res- Todo o conhecimento é redutor de complexidades e o
peitando o princípio da legalidade e garantindo a segurança conhecimento jurídico-prescritivo não foge à regra. No caso
jurídica. Assim sendo, as "faculdades da Administração" cons- das pretensões tributárias, o "re-conhecimento" dos fatos dar-
tituem manifestações de competência administrativa vinculadas se-á consoante recursos de linguagem que o direito positivo
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

liberar ao sujeito passivo, quando a ele couber fazê-lo, ou à auto- de juízo que se incorpora nos pressupostos da apuração indi-
ridade competente, no âmbito de procedimento administrativo. reta é uma regra de caráter procedimental, construída para
resolver problema de procedimento. A premissa para a certi-
Nesta segunda hipótese, assume grande interesse, atu- ficação indireta se encontra na impossibilidade fáctica de co-
almente, a classificação do lançamento pelo critério do pro- nhecer a real perspectiva dimensível do fato tributário. O Poder
cedimento e dos meios pelos quais as autoridades adminis- Público há de motivar suficientemente a técnica da apuração
trativas o realizam. Trata-se de uma determinação de ofício, indireta, justificando a impossibilidade do emprego do regime
que pode ser: a) sobre base certa; b) sobre base presumida; de determinação direta.
ou c) mista.
A ficção, por seu turno, abstrai toda consideração a res-
Meditemos que o sujeito passivo tem garantias de uma peito da probabilidade: ao utilizá-la, o legislador mesmo pres-
tributação pautada rigorosamente dentro dos limites da lei, cindiu da exploração do real. Diversamente, na base das pre-
ao mesmo tempo em que o Poder Público não pode aceitar a sunções legais, está o julgamento sobre fatos que não se pode
mutilação de seus direitos, pela ausência ou pela insuficiência conhecer facilmente, ou que, de ordinário, escapam à investi-
de suportes materiais que lhe permitam apurar a dívida tri- gação. Antecipando-se sobre o assunto, Alfredo Augusto Be-
butária também absolutamente dentro dos padrões legais. É cker284 , já em 1962, afirmava que:
assim que as legislações estabelecem o direito de o Fisco
prover aquela falta ou insuficiência por outros meios que lhe "existe uma diferença radical entre a presunção legal e a
dêem acesso à realidade subjacente, quantificando, então, a ficção legal: 'A presunção tem por ponto de partida a ver-
dívida tributária. dade de um fato: de um fato conhecido se infere outro
desconhecido. A ficção, todavia, nasce de uma falsidade. Na
Precisamente nesse sentido é o que se observa em quase ficção, a lei estabelece como verdadeiro um fato que é pro-
todos os supostos que autorizam a Administração a utilizar vavelmente (ou com toda a certeza) falso. Na presunção, a
procedimentos sobre bases presumidas. Na legislação nacional, lei estabelece como verdadeiro um fato que é provavelmen-
encontram-se casos em que o devedor tributário comete algu- te verdadeiro. A verdade jurídica imposta pela lei, quando
se baseia numa provável (ou certa) falsidade é ficção legal,
ma infração formal, tais como não ter apresentado a declaração
quando se fundamenta numa provável veracidade é pre-
a que estava obrigado, dentro do prazo de lei ou não ter exibi- sunção legal".
do livros e registros contábeis, quando intimado para tanto,
autorizando o emprego, pelo Fisco, de base de cálculo presu- Lembremo-nos de que, tratando dos métodos de apuração
mida. Sem embargo, também há hipóteses que não configuram da base de cálculo, há os diretos e indiretos. Diretos são aque-
infrações, como a não exibição de livros e documentos por les que se baseiam em declarações ou documentos apresenta-
motivo de perda ou roubo. dos pelo contribuinte ou em dados consignados em livros e
As regras que definem a base de cálculo constituem um registros fiscais, comprovados pela Administração. Ao contrá-
conjunto normativo complexo em que, como poucos, se mate- rio, o método indireto se baseia, em maior ou menor grau, em
rializa a dificuldade para diferençar as normas de direito subs-
tantivo das normas de direito formal, e este tema é de suma
i mportância para a compreensão plena dos regimes de apura- 284. Alfredo Augusto Becker, Teoria geral do direito tributário, 4a ed., São
ção indireta da base imponível. Daí a conclusão de que a regra Paulo, Noeses/Marcial Pons, 2007, p. 539.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

índices ou presunções. Sobre essas últimas, a Ciência do Di- (símbolos, índices e ícones). A diferença entre o chamado co-
reito costuma apresentar dois tipos: a presunção relativa e a nhecimento direto e o indireto está em que este último estaria
absoluta. A primeira surte efeitos limitados a determinadas representado por signos de segundo grau, vale dizer, signos de
pessoas e admite prova em sentido oposto. A contrario sensu, signos ou meta-signos. Não há, portanto, que falar em verdade
a presunção absoluta, juris et de jure, se irradia contra todos, material.
não admitindo prova em contrário. Limitando-se a inverter o Advém daí relevância da posição epistemológica que
ônus da prova, a presunção relativa torna mais complexo o adoto, distinguindo evento de fato. Não sobeja repetir, para fins
exercício do direito de defesa. Trata-se de presunção estabe- de esclarecimento da teoria da prova ora proposta, que os
lecida pela lei, a qual impõe nexo de causalidade entre dois
eventos sejam as alterações ocorridas com os objetos da expe-
eventos que, na realidade, não estão necessariamente ligados.
riência, no "mundo da vida", ao passo que os fatos se consubs-
As presunções absolutas, por sua vez, estão na zona cinzenta
tanciam no relato linguístico dos eventos. Esta tese, quando
em que o direito adjetivo se confunde com o direito substanti-
aplicada nos domínios do direito e, especificamente, do direito
vo, de tal modo que afirmar a presença do fato B, conduzindo
tributário, proporciona coerência que repercute na própria
à existência do fato A, sem possibilidade de comprovar o con-
noção de "verdade material" 285 , porquanto haveria de ser bus-
trário, significa o mesmo que querer aplicar uma norma de
cada na linguagem competente, isto é, em manifestações de
caráter substantivo que estabeleça a equivalência de B e A (a
linguagem aceitas pelo sistema do direito positivo, na qualida-
obrigação fiscal se funda na presunção de A e não de B). Apre-
de de "provas". A linguagem jurídica é constitutiva de sua
senta, portanto, os mesmos caracteres da relativa, induzindo
própria realidade. Eis justificado o fato de no direito admitir-se
uma situação de fato a partir de outra. Distingue-se desta úl-
como verdades jurídicas as presunções e as ficções, bem como
tima por constituir prova determinante, inadmitindo- se argu-
mentação em contrário. seus correlatos produtos: fatos sobre base presumida e fatos
sobre base mista.
As atividades administrativas de provar e de comprovar
5.2.2.2. Observações críticas sobre as formas de reconheci-
têm essencialmente por objeto fixar a dimensão do fato jurídi-
mento da medida do fato jurídico tributário
co e quantificar a base tributária, servindo-se, para esse fim,
No que concerne às técnicas de reconhecimento do fato dos meios e procedimentos estabelecidos na ordem jurídica.
jurídico tributário, sejam quais forem, haverão de pautar-se Nesta linha, de todos os procedimentos possíveis, o da deter-
pelo regime jurídico previsto para os tributos, segundo as linhas minação direta ou sobre base certa é o mais credenciado,
mestras fixadas na Constituição de cada país. A realização desfrutando, por isso, de preferência sobre os demais, tendo
desse modelo impositivo, não obstante, requer o seguimento em vista que é o procedimento que mais se ajusta ao primado
de uma linha diretiva que a teoria tradicional chama de prin- da capacidade contributiva, pois exige a medição direta da
cípio da busca da verdade material, orientação informadora que base: valor, renda, vendas, etc. Entretanto, este princípio não
vai ensejar o lançamento do tributo. se opõe de forma absoluta à existência de outros meios de
apuração, desde que não ofendam o Texto Constitucional.
Cumpre lembrar que, sendo os fatos ocorrências que já se
consumiram no tempo e, portanto, exauridas as circunstâncias
histórico-existenciais em que o evento aconteceu, seu conhe-
cimento será sempre indireto, mediante signos linguísticos 285. Frise-se: não adoto esta terminologia.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

No que toca aos problemas relativos à quantificação da o problema já não se situa nesse plano e sim no das regras
dívida tributária, há vários problemas que concorrem na deter- formais que, estipulando a competência dos funcionários da
minação da perspectiva dimensível do fato jurídico tributário, Administração, possam permitir-lhes, ainda que involuntaria-
entre eles, a utilização de termos indeterminados, por parte do mente, transgressões a direitos e garantias tão importantes
legislador, na definição da base imponível. para a pessoa do administrado.
Sobre esse tema, que pode ser trabalhado em várias di-
5.2.3. Limites às faculdades da Administração no lançamento reções de significado, aparecem os princípios da certeza do
e garantias dos administrados direito e da segurança jurídica como garantias constitucionais
aos direitos dos particulares e limitações às prerrogativas e
Tem suscitado muita inquietação o desconhecimento ou faculdades dos agentes públicos, indistintamente. A idéia se
a própria ausência de limites, dentro dos quais a atividade confirma perante exigência, em lei, de que as atividades admi-
administrativa possa mover-se com o auxílio dos signos indi- nistrativas em provar e comprovar fatos devem ser motivadas,
ciários. É região nebulosa, que dá ensejo a excesso de discri- na fase de comprovação, como forma de se defender os direitos
cionariedade, transbordando para a arbitrariedade de agentes dos administrados ao conteúdo das valorações realizadas pelo
da Administração, tudo com sérios detrimentos à racionalida- Poder Público. Exigência desse teor assume caráter fundamen-
de e ao bom funcionamento do sistema tributário. A desconsi- tal para o próprio controle da legalidade dos atos administra-
deração da chamada "escrita fiscal" tem sido feita, algumas tivos, seja pela Administração, seja pelo Poder Judiciário. E
vezes, de modo precipitado, passando a desclassificar-se, por valorizando a necessária motivação dos atos praticados pelo
inteiro, plano contábil que poderia, em boa parte, ser aprovei- Fisco, exige-se ainda o reconhecimento de uma relação de
tado. Funcionários da entidade tributante, animados pela proporcionalidade entre o número e a intensidade dos deveres
busca da "verdade material", passam a ingressar, desordena- de colaboração requeridos pela Administração fiscal, bem como
damente, em setores nem sempre admissíveis, pondo em risco o grau de veracidade adequado à atividade comprobatória.
a integridade de direitos fundamentais do cidadão.
Insistindo nesse ponto, entendo ser certo que o uso de
E não basta proclamar que os limites da ação do Estado valorações presuntivas pela lei se justifica, pois trata de intro-
ficam determinados pelo feixe dos direitos e garantias indivi- duzir certeza ali onde a medição direta da base real implica
duais, porque, nas situações que examinamos, qualquer desvio sérias dificuldades, aumentando a pressão fiscal indireta sobre
significará violação daqueles direitos. Como resolver esse de- o contribuinte. Por outro lado, a determinação da base median-
licado problema, isto é, dar instrumentos ao Poder Público para te as presunções absolutas ou ficções trazem consigo nota
que desenvolva seus programas de gestão tributária e, ao mes- positiva de sua neutralidade. Já as presunções juris tantum
mo tempo, assegurar a plataforma dos direitos fundamentais apresentam função técnica de fortalecer a posição do Fisco,
dos administrados? Ninguém discute a procedência de pre- evitando o encargo deste em provar diretamente a realidade
sunções relativas e absolutas, bem como de ficções, para que dos fatos, ao mesmo tempo em que trasladam esse encargo para
o subsistema das normas tributárias possa cumprir seus obje- o próprio sujeito passivo obrigado. No entanto, independente-
tivos reguladores. As presunções e ficções, utilizadas em pro- mente de se tratar de presunção absoluta ou de ficções, é fun-
cedimento administrativo de imposição tributária, haverão de damental, em todas essas situações recorrentes em direito
ser cuidadosamente construídas como tipos normativos. Mas tributário, identificar a correta adequação destes institutos aos
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

princípios fundamentais da ampla defesa, da impugnabilidade fato. O lançamento tributário, seja qual for o método utili-
dos atos administrativos do fisco, da reserva legal, da capacida- zado para sua celebração, somente se sustenta, no plano
de contributiva e da progressividade, como formas de garantir jurídico, com o rígido enquadramento legal, de tal modo que
os valores constitucionalmente defendidos na Carta Magna. quaisquer índices ou presunções utilizados devam estar
previstos em lei.
5.2.3.1. Princípio da legalidade
5.2.3.2. Limites da atividade de inspeção fiscal
Nas constituições atuais, o princípio da legalidade derra-
ma sua influência por todos os setores da ordem jurídica, não Sabemos que é de difícil obtenção um quadro de limites
sendo possível pensar no surgimento de direitos subjetivos e objetivos para o desempenho da atividade de inspeção fiscal,
deveres correlatos, sem que a lei os estipule ou delimite. E a exatamente porque, a "verdade material", procurada como fim
relevância desse cânone ultrapassa qualquer argumentação último do procedimento, não é algo tangível, materialmente
que pretenda enaltecê-lo. configurado. Essa verdade há de resultar de um processo às
Ora, no exercício administrativo de apuração da matéria vezes penoso de convicção, envolvendo elementos concretos e
tributável, duas são as formas de irradiação desse princípio: abstratos, o que torna complexa qualquer iniciativa no sentido
uma, relativa à norma de direito tributário material - que se de aprisioná-la para estabelecer seus limites.
projeta sobre o fato -; outra, a norma de direito tributário Neste ponto, tenho que é necessária a elaboração de pla-
formal, que regula o comportamento da Administração, no nos gerais de fiscalização, imperativo do equilíbrio entre os
proceder administrativo de apuração dos fatos e aplicação do direitos da Administração e do administrado, como se pode
direito material, de modo que se pode fixar, como premissa, verificar do trabalho daqueles que reivindicam um "Código de
que a determinação do fato jurídico e dos elementos que ser- Defesa do Contribuinte". A publicidade dos critérios em lei se
vem para identificar a quantia da obrigação tributária é re- converte em condição necessária para que a sua aplicação por
serva de lei. parte dos contribuintes possa ser controlada, comportando
A presunção de legalidade dos atos administrativos exige assim a possibilidade de impugnação da discricionariedade
que o Fisco atue de forma habitual dentro da esfera da legali- administrativa por desvio de poder. A fiscalização deve exercer-
dade. Entretanto, a presunção da legalidade do proceder ad- se com estrita observância dos direitos e garantias individuais,
ministrativo, de modo algum, é extensiva aos fatos tomados em devendo evitar-se o uso distorcido desse instrumento como
consideração por esses atos, de sorte que o Poder Público fique expediente sancionatório, além do respeito ao direito da inti-
na contingência de provar a relação de base da presunção, midade, que há de ser exigido.
restando ao contribuinte ainda a possibilidade de infirmar o
fato presumido, mediante apresentação da oportuna prova em 5.2.4. Procedimento administrativo e controle de legalidade
contrário. Nesta linha é que se afirma ser só a lei o instrumento dos atos de aplicação de sanções
adequado para estabelecer os elementos constitutivos da obriga-
ção. O princípio da reserva legal, nesta medida, outorga à Admi- Interessa-nos aludir a uma forma precisa de procedi-
nistração fiscal a função de interpretar conceitos jurídicos não mento administrativo, qual seja a do procedimento adminis-
definidos, inexistindo discricionariedade na determinação do trativo tributário, que tem como conteúdo a discussão do ato
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

de lançamento ou do ato de imposição de penalidade, ou, ain- ínsita a presunção (juris tantum) de legitimidade, cabe ao Poder
da, da própria notificação, como ato jurídico administrativo Público examinar o assunto com maior minúcia apurando sua
que é. conformação aos critérios fixados em lei. Tudo para que sejam
respeitados os direitos e garantias fundamentais assegurados
Vale dizer que tal procedimento apresenta-se como siste-
ao sujeito passivo da relação tributária.
ma de controle de legalidade dos atos administrativos. A deci-
são de primeira instância exerce controle inicial; o acórdão do Os atos jurídicos administrativos podem desaparecer do
tribunal administrativo visa, também, à verificação da validade mundo jurídico pela revogação ou pela anulação. A distinção
do ato exarado pela autoridade recorrida; e, às vezes, câmaras entre ambos foi elucidada pelo Egrégio Supremo Tribunal
superiores exercitam a análise da legalidade do próprio acórdão Federal, mediante edição da Súmula n. 473:
expedido pelo órgão colegial. Se atinarmos à lição categórica
de Seabra Fagundes 286 , mediante a qual administrar é aplicar "A administração pode anular seus próprios atos, eivados
a lei de ofício, poderemos reconhecer nessa atividade, de rigo- de vícios que os tornem ilegais, porque deles não se originam
direitos, ou revogá-los, por motivo de conveniência ou
roso e sistemático controle da legalidade dos atos administra-
oportunidade, respeitados os direitos adquiridos e ressal-
tivos, um signo expressivo da função administrativa, exercita- vada, em todos os casos, a apreciação judicial."
da na plenitude de seu conteúdo existencial.
Desse modo, sempre que pairar dúvida sobre o teor de Referida Súmula abrange os atos administrativos gené-
juridicidade de um desses atos administrativos, caberá ao su- ricos, devendo ser respeitadas, obviamente, as particularidades
jeito passivo impugnar o ato, suscitando aquele controle. De- jurídicas inerentes a cada modalidade específica integrante
sencadeará, assim, uma série de outros atos e termos, propi- dessa categoria de atos. No âmbito tributário é inadmissível
ciando ensejo para a decisão de primeira instância, que nada falar em revogação do ato de lançamento, fundamentada em
mais é que a manifestação acerca da validade do ato praticado, razões de conveniência ou oportunidade, pois uma de suas
manifestação essa emanada por um órgão superior à autorida- características é a "vinculação". Seu controle deve consistir,
de competente para realizar o ato de lançamento ou de aplica- portanto, no exame da legalidade, o que acarreta anulação do
ção de penalidade. Insatisfeitas quaisquer das partes, o parti- ato administrativo. Verificado vício dessa espécie, tanto a Ad-
cular ou a autoridade fiscal pode interpor recurso da decisão ministração como o Judiciário são competentes para proceder
expedida pelo órgão a quo, provocando, novamente, um con- à anulação.
trole de legalidade, agora mais especializado e cercado de
O ato jurídico administrativo de lançamento ou de apli-
prerrogativas mais solenes e importantes: a deliberação de um
cação de penalidade pode ser nulo, de pleno direito, se o mo-
órgão colegial, de estrutura paritária, como é o caso, por exem-
tivo nele declarado - a ocorrência de determinado fato jurídico,
plo, do Conselho de Contribuintes.
por exemplo, - inexistiu. Também será nulo quando violar
A necessidade de ser exercido o controle decorre da cir- norma hierarquicamente superior.
cunstância de que, apesar de a atividade administrativa trazer
Identificadas tais irregularidades, é imperativa a anulação
dos atos administrativos, bem como de todos os atos que deles
decorram ou neles se fundamentem. Esse é o motivo pelo qual
286. O controle dos atos administrativos pelo Poder Judiciário, Rio de Janeiro,
Forense, 1967. só se pode falar em reincidência depois de exarada decisão

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

administrativa irreformável que confirme a ocorrência do ilí- Do quanto se disse, é possível chegarmos à conclusão de
cito, mantendo a imposição punitiva. transcendental relevância: o procedimento administrativo
A título de exemplo, observe-se o disposto na Lei n. tributário se compõe de uma sucessão de atos tendentes a
9.847/99, que dispõe sobre a fiscalização das atividades relativas exercitar o controle de validade do lançamento, da imposição
ao abastecimento nacional de combustíveis. Essa legislação, de sanções, da notificação de qualquer deles ou de ambos, a
ao prescrever sanção administrativa mais severa no caso de fi m de que a atividade desenvolvida pela Administração Pú-
reincidência, dispõe, em seu art. 8Q, §§ 1 2 e 2 2 : blica atinja seu objetivo último, consistente na exata e fiel
aplicação da lei tributária. Identificadas irregularidades capa-
"§ 1 2 Verifica-se a reincidência quando o infrator pratica zes de viciar atos administrativos, tal qual o lançamento, por
uma infração depois da decisão administrativa definitiva vício no motivo ou na violação de norma hierarquicamente
que o tenha apenado por qualquer infração prevista nesta superior, dá-se por ato nulo, insusceptível de gerar efeitos ju-
Lei. rídicos tributários ou sancionatórios próprios.
§ 2Q- Pendendo ação judicial na qual se discuta a imposição
de penalidade administrativa, não haverá reincidência até
o trânsito em julgado da decisão" (grifei). 5.2.5. Algumas observações de política tributária acerca dos
atos administrativos
Na esfera tributária, esse tem sido, também, o critério
O procedimento administrativo tributário não se confun-
adotado pelo Conselho de Contribuintes:
de, já vimos, com o processo judicial tributário. Assente esta
"CONTRIBUIÇÃO AO IAA - Falta de recolhimento não
premissa, não nos parece recomendável a adoção de institutos
contestada. O foro é inadequado para o questionamento de e formas inerentes ao campo da relação processual, vale afir-
supostas inconstitucionalidades. Reincidência só se confi- mar, tudo aquilo que diga respeito ao processo, enquanto pro-
gura após o trânsito em julgado da decisão condenatória. cesso. Não se pretende afastar a possibilidade de enriquecer o
Recurso parcialmente provido" 287 (grifei). procedimento administrativo tributário com figuras hauridas
"CONSÓRCIO - PRAZO DE DURAÇÃO - É de se manter no direito processual. Todavia, estou em crer que o legislador
a penalidade aplicada, quando restar comprovado que fo- deva polarizar suas atenções nas entidades técnicas que asse-
ram descumpridas as normas previstas na legislação de guram a marcha do procedimento judicial para trasladá-las ao
regência (item 39 da Portaria MF n. 190/89). EXASPERA- segmento da discussão que se desdobra perante as vias do
ÇÃO DA MULTA - REINCIDÊNCIA - Não há por que se
Poder Executivo. A diferença surge de certa forma sutil. De
falar em reincidência quando não observada decisão defini-
nada serve para animar o procedimento administrativo tribu-
tiva, transitada em julgado, em processos anteriores que
discutiram a mesma prática punível nos últimos cinco anos. tário, por exemplo, chamar a decisão de primeiro grau de
Recurso provido em parte" 288 (grifei). sentença, utilizando, com isso, terminologia do Processo Judi-
cial. A sentença é uma instituição processual que revela a
prestação jurisdicional do Estado, na sua primeira manifesta-
287.Segundo Conselho de Contribuintes, ia Câm., Ac. 201-67362, Rel. Cons. ção. Por outro lado, fórmulas técnicas, como a perempção, a
Selma Santos Salomão Wolszczak, j. 17/09/91. preclusão, a contagem dos prazos, assumem feição de opera-
288.Segundo Conselho de Contribuintes, 2a Câm., Ac. 202-04508, Rel. Cons. tividade e praticidade, quando transportadas para o plano do
José Cabral Garofano, j. 19/09/91. procedimento administrativo tributário.
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

Estão aqui abaixo algumas sugestões que poderiam dar administrativa, pressupõe conhecimento profundo, não apenas
mais equilíbrio e racionalidade ao procedimento administra- do corpo de regras que disciplinam a matéria, mas, fundamen-
tivo tributário. Na verdade, estariam mais bem acomodadas talmente, dos grandes princípios de direito constitucional,
em texto de política tributária, porém ficam como registros administrativo, civil, comercial, tributário, sem falar, é claro,
para nossa reflexão. nas diretrizes que a Teoria Geral do Direito e a Filosofia do
Direito estabelecem, e que dão cunho de cientificidade ao mé-
a) Agilitar o procedimento com a estipulação de prazos
todo jurídico.
definidos e obrigatórios, para ambas as partes.
A alegação de que os assuntos sobre os quais decidem os
Reside aí fator de equilíbrio procedimental que não vem
órgãos administrativos, singulares ou coletivos, têm subjacên-
sendo observado nos procedimentos conhecidos, quer no pla-
cia econômica ou contábil, nada traz em desfavor daquela idéia,
no federal, quer no estadual ou municipal. Traduz um impe-
porquanto toda norma jurídica disciplina um segmento da
rativo do contraditório, à sombra do princípio da igualdade. Se
realidade social, do que se poderia supor que a aplicação do
tanto a Administração quanto o particular perseguem seus
direito teria como antecedente lógico o conhecimento de todos
interesses, buscando constituir o fato jurídico ao seu favor, o
os fenômenos sociais, o que é absurdo.
fenômeno jurídico subjacente, surpreendido na sua plenitude,
já que o interesse precípuo é a cabal aplicação do direito obje- Sobremais, aceitando-se como válido o argumento, have-
tivo, não se há de compreender que os prazos fluam em detri- ríamos de negar competência intelectual aos Juízes, Desem-
mento exclusivo do administrado, compelindo-o a celebrar bargadores e, bem assim, aos Ministros do Superior Tribunal
certos atos, sob pena de vê-los comprometidos pelo decurso do de Justiça e do Supremo Tribunal Federal, para o julgamento
tempo. Se mal que em homenagem à supremacia do interesse de questões tributárias, raciocínio que envolveria inusitado
público sobre o do particular se assinem prazos maiores para despropósito.
o cumprimento dos atos da Administração, ainda assim é inad- Acresce repontar que a estipulação guarda coerência com
missível a liberdade plena e irrefletida, a consagração da in- aqueles preceitos que aconselham se utilize o Código de Pro-
consequência, da tolerância sem peias e da absoluta falta de cesso Civil, como legislação supletiva. Ressalta à mais pura
parâmetros para os expedientes, as providências e os próprios evidência que se espera do julgador conhecimentos especiali-
atos decisórios que hão de ser exarados pela autoridade com- zados de direito processual civil, matéria das mais técnicas e
petente. Urge a consignação de prazos para a Administração, difíceis de quantas há no universo do saber jurídico.
como forma de atinência a esses princípios e, também, como O requisito da formação jurídica especializada deve ser
imposição inarredável dos mais elementares princípios de observado para todas as funções de direção do procedimento
segurança na vida das relações jurídicas. e, especialmente, para aquelas que expressam a manifestação
b) Assume proporções de inteira oportunidade a exigência de vontade da Administração.
do título de bacharel em direito para que o representante da c) No que toca à composição dos tribunais administrativos,
Fazenda, que se vai manifestar sobre a validade ou invalidade algumas ponderações devem ser feitas.
do ato, possa fazê-lo de maneira específica e responsável.
Conceber-se órgão dotado de certa autonomia e indepen-
A função de aplicar a lei aos casos concretos, solucionan- dência, que se possa colocar, dentro do possível, à salvo de
do conflitos de interesses, seja de natureza judicial ou mesmo pressões e influências, assim das Fazendas, que das entidades
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

de classe, não se compagina com as funções temporárias que e impõe penalidade pecuniária, sem, contudo, tipificar a infra-
serão exercidas por seus membros, mais precisamente no que ção, descrevendo-a ou aludindo ao dispositivo de lei transgre-
diz com o funcionário da Fazenda. dido. Mesmo que o interessado ofereça razões de recurso vo-
luntário, em prazo oportuno, demonstrando conhecer os fun-
É ineludível que o representante da Fazenda Pública,
damentos jurídicos da decisão, contingência que exibe não ter
Federal, Estadual ou Municipal, investido das elevadas atribui-
havido preterição do direito de defesa, ainda assim é de decre-
ções de membro de Conselhos ou Tribunais administrativos,
tar-se a nulidade do procedimento, por virtude da inexistência
ficará sujeito ao juízo de conveniência que sobre ele, periodi-
jurídica do ato. Faltou-lhe requisito de essência: o motivo de
camente, manifestará a Administração Pública, tendo em
sua celebração.
vista a renovação de seu mandato. Além disso, nas hipóteses
de não ser reconduzido, ver-se-á rebaixado às funções que Vem a ponto notar, a bem do rigor, que a indigitada nuli-
exercera outrora, circunstância que também não se coaduna dade não seria do ato, mas do procedimento que se desenvolveu
com a existência de órgão que desfrute de certa autonomia e ulteriormente a ele, porquanto jamais existiu, juridicamente,
independência. como ato administrativo, à míngua de um dos pressupostos de
sua tecitura intrínseca.
Medida de grande efeito, nesse sentido, seria o provimen-
to, por concurso de provas e títulos, entre os funcionários que Os atos administrativos, primordialmente os vinculados,
exerçam as atribuições de julgador de primeira instância (já devem hospedar o motivo ou causa de sua celebração. Caso
com formação especializada), posta a experiência que se pre- contrário, será impossível a verificação de sua legalidade e
sume hajam adquirido, no desempenho de seus misteres. isso, sabemos, não pode ocorrer com os atos de competência
A composição das Cortes Administrativas, desse modo, vinculada.
ficaria estruturada em nível de estabilidade dos membros da A rigidez diria com poucos atos do procedimento: auto de
Fazenda, que não teriam mandato determinado, disputadas as infração, notificação de lançamento, decisão de primeiro grau
vagas porventura existentes, entre os funcionários julgadores e outras peças de grande momento da lide.
de primeiro grau, consoante provas e títulos.
De fora parte os argumentos expostos, que entenderiam
d) O capítulo das nulidades merece consideração ade- mais com ditames de Direito Administrativo, cumpre agregar
quada. que a Teoria do Direito Processual Civil igualmente consagra
Se é correto afirmar que o procedimento não pode ficar hipóteses de imprestabilidade de atos jurisdicionais, por falta
prejudicado por irregularidades de somenos, irrelevantes no de certos pressupostos, desde a inépcia de petições que não
contexto genérico da controvérsia, não é de menor acerto o trazem o supedâneo legal, até a inexistência ou, em alguns
enunciado de que alguns atos há, cuja perfeição jurídica deve casos, nulidade absoluta de sentenças que se edificaram sem
ser observada, a qualquer título, ainda que a falha não venha elemento essencial.
em detrimento do direito de defesa do sujeito passivo. A orien- Os diplomas normativos que venham a disciplinar essa
tação traduz mera aplicação da teoria geral dos atos adminis- matéria deveriam expressar, se não quiserem distinguir os
trativos e do controle de sua legalidade. planos da existência e da validade dos atos administrativos,
Falando pela via ordinária: decisão de primeiro grau, em ao menos estabelecer como inquinados de nulidade absoluta
que a autoridade competente mantém a exigência do gravame todos aqueles que forem erigidos sem observância de elemento

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PAULO DE BARROS CARVALHO

estrutural, segundo a doutrina acolhida pelos bons autores


de Direito Administrativo.

5.2.6. Impugnações e recursos no procedimento administrativo


tributário

O lançamento tributário, ao ser lavrado pela autoridade


administrativa competente, vem impregnado dos atributos da
presunção de legitimidade e da exigibilidade. O sujeito passivo Capítulo 6
não se conformando poderá deduzir seus artigos de impugna-
ção, suscitando, então, o pronunciamento de órgão controlador TEORIA DAS PROVAS:
da legalidade daquele ato que, por sua vez, também abre en- CONTEÚDO, SENTIDO E ALCANCE
sejo a nova manifestação de insurgência do administrado,
mediante recurso a órgãos superiores da Administração, qua- Sumário: 6.1. Teoria das provas: conteúdo, sen-
se sempre estruturados em colégio. O contraditório adminis- tido e alcance - 6.1.1. Teoria das provas e cons-
trativo pode se prolongar, desde que as leis reguladoras da tituição do fato jurídico tributário - 6.1.2. Relação
matéria, no âmbito federal, estadual e municipal, assim o es- jurídica tributária e provas - 6.1.3. Prova e pre-
tabeleçam. Tais diplomas fixam as condições do procedimento, sunções no direito tributário - 6.1.4. Inscrição em
disciplinando os requisitos formais, os prazos, as autoridades dívida ativa como prova pré-constituída.
credenciadas a se manifestar e tudo mais que assegure o cará-
ter orgânico dessa sucessão de atos e termos, unificados em
torno de um objetivo final, qual seja a derradeira deliberação 6.1. TEORIA DAS PROVAS: CONTEÚDO, SENTIDO E
da Fazenda, acerca da questão debatida. ALCANCE
Respeitados os pressupostos instituídos em lei para o
Gostaria de dizer que as ponderações que vou fazer são
ingresso no procedimento administrativo tributário, as impug-
meras observações e reflexões a respeito da constituição do
nações e os recursos têm a força de sustar a exigibilidade do
fato jurídico tributário, aquele que o Fisco tem que criar para
crédito. Não quer isso dizer que o procedimento fique estag-
fazer valer o direito subjetivo ao tributo; aquele que o contri-
nado, o que seria absurdo supor, mas que o Poder Público, na
buinte acompanha ponto por ponto, passo por passo, para
pendência da solução administrativa, ficará inibido de inscre-
defender seus direitos, suas prerrogativas e suas garantias
ver a dívida e procurar o Poder Judiciário para requerer seus constitucionais.
direitos. Na ausência de impugnação, ou de recurso próprio,
como a exigibilidade não está trancada, a Fazenda passa, ime- Com efeito, a constituição dos fatos jurídicos é modo de
diatamente (em tese), a formulá-la, ingressando com o instru- usar-se a linguagem jurídico-prescritiva. Nós usamos a lin-
mento adequado, que é a ação de execução. guagem do direito para constituir os fatos jurídicos, modificá-
los ou desconstituí-los — o que significa dizer trabalhar, ou
operar, na faixa da criação da realidade jurídica. Quando nós
lutamos para desconstituir um fato significa dizer que estamos
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

trabalhando contra a constituição de fato jurídico que não foi e a prática, entre a ciência e a experiência. Eis a Ciência do
levado a bom termo. Direito Tributário oferecendo, mais uma vez, contribuição
Nesse sentido, devo registrar que o tema das provas está valiosa para a Teoria Geral do Direito, pois a dinâmica da pro-
passando por momento de reflexão. Este capítulo nada mais é va é observada no contexto do fato comunicacional e conside-
que um intervalo, uma passagem por essa trajetória de reflexão, rada em suas projeções axiológicas. Vamos a uma análise mais
de repensamento da teoria das provas. aprofundada.
Fato jurídico é a parte do suporte fáctico que o legislador,
6.1.1. Teoria das provas e constituição do fato jurídico tributário mediante a expedição de juízos valorativos, recortou do uni-
verso social para introduzir no mundo jurídico. Pontes de
Sempre é bom lembrar que o processo de positivação do Miranda argumenta que o suporte factual, que está no mun-
direito inaugura-se com os preceitos competenciais cravados do, não entra, sempre, todo ele. As mais das vezes, despe-se
no Texto Supremo e avança, gradativamente, em direção aos de aparências, de circunstâncias, de que o direito abstraiu; e
comportamentos inter-humanos para discipliná-los e tornar outras vezes se veste de aparências, de formalismo, ou se
possível a convivência social. Ora, tais providências são obtidas reveste de certas circunstâncias, fisicamente estranhas a ele,
por intermédio da linguagem das provas, de tal modo que vale para poder entrar no mundo jurídico. A própria morte não é
a afirmação categórica segundo a qual fato jurídico é aquele, fato que entre nu, em sua rudeza, em sua definitividade no
289
e somente aquele, que puder expressar-se em linguagem com- mundo jurídico .
petente, isto é, segundo as qualificações estipuladas pelas
normas do direito positivo. Ao promover essas incisões no plano da realidade social,
o legislador tem de levar em conta a estrutura lógica da nor-
Se acrescentarmos a essas meditações a decisiva e fecun- ma que vai compor, uma vez que as descrições factuais serão
da distinção entre evento e fato, tão presente na epistemologia associadas implicacionalmente a prescrições de conduta. O
do conhecimento pós-moderno, chegaremos ao ponto que nos mesmo fato social pode sofrer tantos cortes jurídico-concep-
interessa salientar. Estou convencido, aliás, de que em nenhum tuais quanto o desejar a autoridade que legisla, dando ensejo
outro domínio do universo jurídico, a dualidade fato/evento
à incidência de normas jurídicas diferentes. Ao confluírem
manifesta sua presença com tanta nitidez e vigor. Ou a mutação
sobre a mesma base de incidência, as várias regras vão pro-
ocorrida na vida real é contada, fielmente, de acordo com os
jetando, uma a uma, os peculiares efeitos que os fatos jurídi-
meios de prova admitidos pelo sistema positivo, consubstan-
cos irradiam.
ciando a categoria dos fatos jurídicos (lícitos ou ilícitos, pouco
importa) e da eficácia que deles se irradia; ou nada terá acon- Realizado o acontecimento da hipótese de incidência
tecido de relevante para o direito, em termos de propagação prevista no ordenamento jurídico tributário e constituído o fato
de efeitos disciplinadores da conduta. Transmitido de maneira pela linguagem competente, propaga-se o efeito jurídico pró-
mais direta: fato jurídico requer linguagem competente, isto é, prio, instalando-se o liame mediante o qual uma pessoa, sujei-
linguagem das provas, sem o que será mero evento, a despeito to ativo, terá o direito subjetivo de exigir de outra, sujeito
do interesse que possa suscitar no contexto da instável e tur- passivo, o cumprimento de determinada prestação pecuniária.
bulenta vida social.
Latente entre os conceitos fundamentais está a recomen-
dação de que o jurista é o ponto de intersecção entre a teoria 289. Tratado de direito privado, Rio de Janeiro, Borsoi, 1954, Tomo I, p. 20.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

Eis que os fatos jurídicos serão aqueles enunciados que pude- articulado de símbolos que vão orientar os destinatários quan-
rem sustentar-se em face de provas em direito admitidas. Daí to ao reconhecimento daquelas ocorrências. Quais os recursos
ocorre o fato jurídico tributário, dando ensejo ao nascimento de linguagem para constituir juridicamente o matrimônio?
da obrigação, o que, dito de outro modo, nada mais é do que a Como se prova a venda de um bem imóvel? De que modo se
fenomenologia da incidência tributária. constitui o fato da posse, num cargo público, de agente nome-
ado pelo Presidente da República? Quais os meios para dizer-
Convém observar que a incidência requer, por um lado,
mos, em linguagem do direito, que houve legítima defesa? E
a norma jurídica válida e vigente; por outro, a realização do
estado de necessidade? Com que argumentos alguém prova
evento juridicamente vertido em linguagem que o sistema
ser sujeito de direitos? Ser maior de idade para participar dos
indique como própria e adequada. Em tal acepção, quando se
atos da vida civil? Como se identifica, juridicamente, o crime,
fala em incidência jurídico-tributária estamos pressupondo a
o contrato, o ato jurídico administrativo?
linguagem do direito positivo projetando-se sobre o campo
material das condutas intersubjetivas, para organizá-las deon- Com efeito, estimo residir no capítulo das provas o meca-
ticamente. De ver está que o discurso prescritivo do direito nismo fundamental para o reconhecimento dos fatos da vida
posto indica, fato por fato, os instrumentos credenciados para social juridicizados pelo direito, bem como um dado impres-
constituí-los, de tal sorte que os acontecimentos do mundo cindível ao funcionamento do sistema de normas. É por isso
social que não puderem ser relatados com tais ferramentas de que Paulo Celso B. Bonilha 291 , em oportuna monografia sobre
linguagem não ingressam nos domínios do jurídico, por mais a prova no âmbito da discussão administrativa a respeito de
evidentes que sejam. Nesse sentido, encontra-se também Fa- tributos, pondera:
biana Del Padre Tomé"° em seu inovador A prova no direito
tributário: "Falar em meios de prova é cogitar dos instrumentos ou
provas, através dos quais os fatos serão representados no
"O sistema do direito positivo indica os momentos em que processo. Há meios hábeis para efetuar essa produção, de
os fatos podem ser constituídos mediante produção proba- acordo com a natureza do fato e, por via de consequência,
tória, impõe prazos para a apresentação de defesas e de os meios de prova variam de acordo com as necessidades
recursos (tempestividade), além de estabelecer o instante de utilização de métodos técnicos e juridicamente idôneos
em que as decisões se tornam imutáveis (coisa julgada). à fixação desses fatos em juízo".
Com determinações desse jaez, fornece os limites dentro
dos quais a verdade será produzida, prescrevendo sejam É importante relembrar, porém, que esse fenômeno não
tomadas como verídicas as situações verificadas no átimo se dá sem que um ser humano interfira, fazendo a subsunção
e forma legais, independentemente de sua relação com o
e promovendo a implicação que o preceito normativo determi-
mundo das coisas (grifos no original)".
na. É preciso que o homem movimente as estruturas do direi-
to, construindo, a partir de normas gerais e abstratas, outras
O sistema do direito positivo estabelece regras estruturais
gerais e abstratas ou individuais e concretas, imprimindo po-
para organizar como fatos as situações existenciais que julga
sitividade ao sistema. A incidência só se dá, invariavelmente,
relevantes. Cria, com isso, objetivações, mediante sistema

291. Da prova no direito administrativo, São Paulo, Revista Dialética, 2001,


290. A prova no direito tributário, São Paulo, Noeses, 2005, p. 33. p. 86.

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de maneira automática e infalível, sob a condição de que seja linguística do fato jurídico tributário e respectivas relações
vertida em linguagem competente pelo exegeta do direito. jurídicas. Diz respeito à composição da frase normativa em
Pois bem, para que haja o fato jurídico e a relação entre linguagem jurídica e isso só se dá por escrito.
sujeitos de direito que dele, fato, se irradiam, necessária se Cumpre reiterar a importância deste conceito. O proces-
faz não só a existência de linguagem que relate o evento acon- so civil e o processo penal dizem que as provas podem ser
tecido no mundo da experiência, como também o vínculo materiais, testemunhais e documentais. Eu digo que todas elas
jurídico que se instala entre duas ou mais pessoas. Não restam são documentais! Não há provas materiais e não há provas
dúvidas, portanto, de que o vínculo jurídico tributário que testemunhais. O relato das testemunhas é, necessariamente,
decorre imediatamente do fato jurídico tributário requer, para reduzido a termo, em linguagem escrita; caso contrário, não
sua exigibilidade, relato mediante linguagem própria pres- entram nos autos e, consequentemente, não ingressam no
crita pelo direito posto, que nada mais é que a própria "lin- mundo jurídico sem essa linguagem específica. Como é que os
guagem competente". sons produzidos pelo depoente ou por aquele que o está inter-
rogando poderiam ingressar nos autos? É algo absurdo. Aqui-
Essa atividade de formalização dos eventos e das relações
em linguagem é confiada, algumas vezes, à autoridade fiscal, lo que foi dito oralmente é reduzido a escrito. O escrivão o lerá
e outras, ao próprio particular (sujeito passivo). Formalizar em voz alta, entregará o documento ao depoente, este o assi-
significa construir as normas individuais e concretas, que nará e pronto: é o termo escrito, resultado deste procedimento,
apresentam em seu consequente o vínculo obrigacional, ora que ingressará nos autos.
atribuído ao contribuinte, ora ao Fisco. No caso do ICMS, por E as impressões digitais deixadas na arma do crime? Pois
exemplo, a construção das normas individuais e concretas que bem, essas impressões digitais vão fazer parte de um laudo
apresentam em seu consequente o vínculo obrigacional tribu- pericial, e esse laudo vai entrar nos autos. Então, onde é que
tário e o liame de direito ao crédito é atribuída, em caráter estão as provas materiais? Onde é que estão as marcas, os si-
originário, ao contribuinte, devendo essas regras jurídicas nais, os vestígios? Eis que reafirmaremos que todas as provas
individuais e concretas constar de um documento especifica- são indiciárias e, portanto, representativas do evento. Só in-
mente determinado pela legislação, e que consiste numa redu- gressa no sistema jurídico a reprodução em linguagem escrita
ção sumular, num resumo objetivo daquele tecido de lingua- do evento.
gem, mais amplo e abrangente, constante dos talonários de
O Professor Frederico Marques, renomado jurista, pro-
notas fiscais, livros e outros feitos jurídico-contábeis.
cessualista civil e penal, conhecedor de direito penal, direito
Tanto a produção da norma que contém a relação jurídi- administrativo, direito constitucional, diz, num momento das
ca tributária como a do vínculo de direito ao crédito são de suas Instituições de Direito Civil, que algumas vezes o laudo
competência do contribuinte, intervindo o Poder Público ape- não precisa ser escrito; mas ele não afirma que pode ser oral,
nas na hipótese de omissão ou irregularidades por parte do e, sim, que não precisa ser escrito.
administrado, situação em que caberá às autoridades fiscais,
Em uma primeira leitura, isso poria abaixo toda a expec-
em atividade substitutiva ou corretiva, construir a norma in-
tativa de conduzir o assunto com suporte no relato linguístico.
dividual e concreta e levá-la ao conhecimento do particular.
Mas, logo em seguida, esse doutrinador assevera: "Exemplo
Nesse contexto, falar em linguagem competente e em dessas situações é aquela em que o agente, entendendo muito
formalização é verter a concretude existencial em construção simples o que tem que relatar, deixa para fazê-lo no auto da
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

diligência". Então, pronto: ele não faz um laudo separado, mas referência a relações do contexto social que viriam a ser juri-
registra aquele evento no auto da diligência. Vemos que conti- dicizadas pelo direito, o que equivale a afirmar que emerge o
nua a necessidade da formulação escrita. vínculo, apenas e tão-somente, por virtude da imputação nor-
Ainda mais, recuperando a premissa de que o direito se mativa, indiferente à existência ou não de laço de caráter so-
realiza no contexto de um grandioso processo comunicacional, ciológico, político, econômico, ético, religioso ou biológico,
i mpõe-se a necessidade premente de que o documento do qual anterior à disciplina jurídica.
falamos seja oferecido à ciência da entidade tributante, segun- O direito cria suas próprias realidades, não estando con-
do a forma igualmente prevista no sistema positivo. De nada dicionado a atender, com foros de obrigatoriedade, à natureza
adiantaria ao contribuinte expedir o suporte físico que contém das relações contidas no plano sobre o qual incide. As fórmulas
tais enunciados prescritivos, sem que o órgão público, juridi-
e esquemas que constrói independem do fenômeno real que
camente credenciado, viesse a saber do expediente. Em algu-
organiza, contingência que explica disposições jurídicas que
mas situações, isso ocorre automaticamente, tal como no laudo
não só prescindem de vínculos subjacentes, como até chegam
judicial dos depoimentos testemunhais. Em outras, no entanto,
a assumir feição indisfarçavelmente antagônica. A chamada
fica a cargo da parte, como nos tributos sujeitos a lançamento
"morte civil", prevista no direito pretérito, é manifestação
por homologação.
significativa e eloquente dessa desvinculação. A ordem jurídi-
No direito tributário, o átimo dessa ciência marca o ins- ca declarava a morte de determinada pessoa, que passava a
tante preciso em que a norma individual e concreta, produzida ser coisa, perdendo aquela condição; tudo isso sem qualquer
pelo sujeito passivo, ingressa no ordenamento do direito posto, alteração do ser, enquanto vida animal. As ficções jurídicas,
formalizando o débito tributário ou o crédito do tributo. expediente largamente utilizado pelo legislador, nos diversos
setores da regulação social, consubstanciam outro modelo
6.1.2. Relação jurídica tributária e provas expressivo do desapego do direito, com referência à realidade
que ordena.
"Relação jurídica", como tantas outras expressões usadas A relação jurídica se instaura por virtude de um enuncia-
no discurso jurídico, prescritivo ou descritivo, experimenta do fáctico, posto pelo consequente de norma individual e con-
mais de uma acepção. É relação jurídica, entre outras, o liame creta, uma vez que, na regra geral e abstrata, aquilo que en-
de parentesco, entre pai e filho, o laço processual que envolve
contramos são classes de predicados que um acontecimento
autor, juiz e réu, e o vínculo que une credor e devedor, com
deve reunir para tornar-se fato concreto, na plenitude de sua
vistas a determinada prestação. Iremos nos ocupar dessa der-
determinação empírica. Enquanto na norma geral e abstrata
radeira espécie, que nas regras de comportamento atua deci-
o enunciado referencial se arma para o futuro, se programa
sivamente.
para frente, a norma individual e concreta vai fazer irromper
Para a Teoria Geral do Direito, "relação jurídica", também um liame jurídico específico mediante enunciado de índole
entre outras acepções, é definida como o vínculo abstrato, se- relacional, perfeitamente individualizado quanto aos termos,
gundo o qual, por força da imputação normativa, uma pessoa, sujeitos (ativo e passivo) e quanto à conduta-prestação, que é
chamada de "sujeito ativo", tem o direito subjetivo de exigir seu objeto. Subordinado o ato ou negócio jurídico a evento
de outra, denominada "sujeito passivo", o cumprimento de futuro e incerto, seus efeitos normais ficarão inibidos e somente
certa prestação. Nela se há de notar a exclusão de qualquer por ocasião do acontecimento previsto como condição suspensiva,
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

vertida em linguagem, é que nascerá, com todo o vigor carac- por meio de lançamento — ingressar no sistema do direito po-
terístico, o vínculo obrigacional tributário. sitivo, o que implica reconhecer que a relação se dá juntamen-
Neste sentido, tomando-se a norma individual e concreta, te com a ocorrência do fato jurídico. Daí falar em instauração
todos os elementos utilizados para a composição do enunciado automática e infalível do vínculo obrigacional, ao ensejo do
relacional serão formados a partir do fato e não do evento, que acontecimento do "fato gerador". A contar desse ponto na
já se consumiu. No processo de positivação da obrigação tri- escala do tempo, existirá um enunciado linguístico, formulado
butária, identificamos as seguintes etapas: (i) existindo uma em consonância com os preceitos da ordem jurídica (linguagem
regra-matriz de incidência tributária e (ii) verificando-se o competente), e que somente poderá ser modificado por outros
acontecimento do evento previsto na hipótese da norma geral enunciados especialmente proferidos para esse fim, segundo
e abstrata, (iii) com a correspondente produção da linguagem a orientação do sistema.
competente que constrói a norma individual e concreta, (iv) Nada diverso sucede com as relações jurídicas que veicu-
devidamente comunicada ao outro sujeito da relação jurídica, lam os deveres instrumentais, camada de linguagem prepara-
(v) dar-se-á o aparecimento formal do débito tributário. tória da percussão da norma individual e concreta. Dentre as
relações jurídicas que podem ser identificadas na fenomeno-
Somente quando efetivados os procedimentos acima es-
logia da incidência tributária estão aquelas que veiculam os
pecificados, sem a subtração de nenhuma etapa, é que estare-
chamados "deveres instrumentais" ou "formais". Os trabalhos
mos diante da existência formal da relação jurídica (obrigação
tributária). de Dogmática sempre mantiveram o vezo de cotej á-los com os
chamados deveres substanciais, relegando-os a posição secun-
No entanto, inexiste cronologia entre a verificação empí- dária. Reflexo disso está gravado na própria terminologia
rica do fato e o surgimento da relação jurídica, como se poderia edificada pela ciência e pelo direito positivo que os designam
i maginar num exame mais apressado. Instala-se o vínculo como "obrigações de caráter acessório", "deveres de contorno",
abstrato, que une as pessoas, exatamente no instante em que "deveres instrumentais" ou meramente "formais".
aparece a linguagem competente que relata o evento descrito
Penso que tais adjetivos, quando empregados com o pro-
pelo legislador. Para o direito, portanto, são entidades simul-
pósito de rebaixar a importância desses vínculos, incorrem em
tâneas, concomitantes.
forte imprecisão. Os deveres instrumentais serão tão relevan-
Composto o vínculo, ver-se-á o sujeito passivo tolhido na tes quanto os substanciais, se os examinarmos pelo prisma de
sua liberdade, jungindo-se ao cumprimento de certa prestação, que colaboram, em momentos distintos, para a realização do
e, bem assim, ameaçado em seu patrimônio, porque a exigên- mesmo fim, qual seja o da implantação do tributo.
cia fiscal se arma ao escopo de obter nele uma parcela pecuniá-
As relações jurídicas dos deveres instrumentais estão
ria. Idêntico interesse toca ao sujeito ativo, que tem, naquele
previstas, igualmente, em norma geral e abstrata, e também
momento, a assunção de seus direitos às chamadas receitas
surgem para o direito mediante a expedição de norma indivi-
derivadas ou coativas, com que provê o bem comum que a
dual e concreta, como no caso do tributo. Os deveres, enquan-
sociedade anela.
to previsão normativa, visam a estimular os destinatários no
O instante em que nasce a obrigação tributária é exata- sentido de exercitarem certas condutas producentes daquela
mente aquele em que a norma individual e concreta - produ- linguagem preliminar a que me referi e passam a existir, con-
zida pelo particular ou pela Administração, neste último caso cretamente, em termos jurídicos, quando forem cumpridos os
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

respectivos destinatários. A grande diferença reside na circuns- meios de prova admitidos em direito tributário decorrem, di-
tância de que os deveres instrumentais se apresentam bastan- reta ou indiretamente, da observância dessa classe de deveres
tes-em-si, exaurindo-se as expectativas normativas com a só jurídicos. E ato de aplicação jurídica requer, note-se, direito
realização da conduta prevista, isto é, com a expedição das substantivo e suporte factual. Precisamente esse é o substrato
regras individuais e concretas que os múltiplos deveres con- composto pela facticidade jurídica, enquanto produto ofereci-
substanciam. Enquanto isso, as normas individuais e concretas do pela concretização dos deveres instrumentais.
do lançamento, ou as correspondentes, de competência dos Estabelecendo paralelo com a proposição de Kant, na
administrados, são preparatórias da prestação pecuniária Estética Transcendental, em que "sem categorias, as intuições
compulsória, a que chamamos de "tributo". Dizendo de outro sensíveis seriam cegas, e sem as intuições sensíveis, as catego-
modo, aparecem como providências imprescindíveis para que rias seriam vazias", poderíamos dizer que o direito substantivo
o sujeito passivo satisfaça a obrigação nascida com o aconteci- tributário, sem tais deveres instrumentais, é cego, e estes, sem
mento do fato jurídico tributário, pelo que adquirem, nesse aquele, são vazios. Na ausência de deveres formais não há
sentido, aspecto procedimental, pois se atrelam ao ato jurídico incidência das normas de direito material, não há efeitos, nem
do pagamento como expediente derradeiro. crédito tributário, nem débito fiscal, nem produção normativa,
Em função de sua relevância no processo de apuração nem prova, e, tampouco, a segurança jurídica que a ordem
do crédito tributário podemos classificar, dicotomicamente, positiva visa a estabelecer 292 . O reflexo nítido da relevância dos
tais liames jurídicos em: (i) deveres instrumentais de confor- deveres instrumentais de conformação fáctica está estampado
mação de fáctica e (ii) deveres instrumentais de conformação na intensidade das sanções que prevêem seu descumprimento,
de regime. chegando a elevadas multas patrimoniais calculadas sobre o
valor da operação tributada.
São deveres instrumentais de conformação fáctica, entre
muitos outros, o de escriturar livros, prestar informações, ex- Os deveres instrumentais de conformação de regime, de
pedir notas fiscais, fazer declarações; tudo isso opera com o modo diverso, voltam-se à fiscalização, controle e manutenção
fi m de propiciar a base objetiva necessária para o efetivo exer- dos chamados "regimes especiais" concedidos pela Adminis-
cício da atividade impositiva, levada a termo pelo órgão próprio tração tributária. Nesse domínio, é interessante verificar que
da Fazenda Pública. Constróem, assim, uma camada de lin- a sanção pelo descumprimento de tais deveres é, justamente,
guagem, insuficiente ainda como expressão da norma indivi- a perda do benefício do "regime especial" outorgado. Em fran-
dual e concreta, porém utilíssima para preparar, no caso efeti- co contraste com aqueles deveres de conformação fáctica, que
vo, a percussão da regra-matriz de incidência, oferecendo a informam os regimes impositivos ou ordinários, os deveres
plataforma linguística com base na qual aquela norma indivi- instrumentais de conformação de regime visam tão-somente a
dual será expedida. O tecido formado pelo implemento desses garantir a manutenção das condições necessárias para a fruição
deveres instrumentais será o campo propício para detectarmos do regime especial, não se prestando, pois, a seguir a rotina de
a incidência da regra-padrão do tributo. simplesmente documentar, passo a passo, os enunciados

Outrossim, o cumprimento dessa classe de deveres for-


mais constitui o corpo de linguagem que está no subsolo da 292. Sobre a independência dos deveres instrumentais em face das obriga-
facticidade jurídica, sobre que as normas tributárias hão de ções principais, ver Paulo de Barros Carvalho, Curso de direito tributário,
incidir no ato de aplicação do direito, de tal sorte que todos os 19a ed., 2007, pp. 320-323.

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prescritivos que se congregam para determinar a incidência. jurídica exigirá que funcionário público habilitado pratique o
Tais deveres traduzem-se como camada de linguagem prepa- ato próprio, tipificando o fato do descumprimento e aplicando
ratória, participando na construção da prova e da norma jurí- a medida sancionatória cabível.
dico-tributária que a tome por base.
O cumprimento dos deveres instrumentais ou formais, 6.1.3. Prova e presunções no direito tributário
cometidos ao sujeito passivo das imposições tributárias, forma
um tecido de linguagem que, na sua integridade, relata o acon- Nem sempre, no entanto, a prova é tida como "fato". Às
tecimento de eventos e a instalação de relações jurídicas obri- vezes, poderá ser utilizada para referir-se a vínculo, como
gacionais. Poder-se-ia pensar, então, que o implemento desses ocorre nos casos das presunções. Ingressamos aqui nos estudos
deveres, já que se afiguram como linguagem competente em da aplicabilidade das presunções na sistemática das provas.
face da lei, bastaria para se dar por construída a norma indi-
Na presunção legal encontraremos, de um lado, o fato
vidual e concreta.
presuntivo e, de outro, o fato presumido. Considera-se provado
Não é assim, contudo. A regra jurídica individual e o fato legalmente presumido. E o que justifica essa previsão
concreta, quando ficar a cargo do contribuinte, há de cons- legal? Por que o fato presumido adquire, de pronto, status de
tar de documento especificamente determinado em cada fato provado? Tal se justifica pelo vínculo de associação prescri-
legislação, e que consiste numa redução sumular, num re- to pela lei. Desse modo, fala-se em presunção relativa, que ad-
sumo objetivo daquele tecido de linguagem, mais amplo e mite prova em contrário; mas, não havendo prova em contrário,
abrangente, constante dos talonários de notas fiscais, livros a associação se mantém; dado o fato presuntivo, deve ser o fato
e outros efeitos jurídico-contábeis. O documento da norma presumido, porque não houve prova em sentido oposto.
há de ter, além da objetividade que mencionei, o predicado
Há também aquela chamada "presunção humana", que
da unidade de sentido, uma vez que expressa enunciados é uma associação que nós fazemos em face de juízos de valor
prescritivos, a partir dos quais o intérprete fará emergir a sobre elementos de prova. É o que ocorre quando, verificados
norma individual e concreta.
os fatos "Fl", "F2", "F3", "F4", eu digo: "Diante desses acon-
É bem verdade que os enunciados conotativos que pres- tecimentos, dou por certificado o fato `F5'". Temos que consi-
crevem esses deveres se agrupam para formar normas jurí- derar também a existência da presunção absoluta, embora seja
dicas, com a mesma esquematização formal das demais uni- inadmissível na esfera tributária.
dades do sistema, confirmando, dessa maneira, o princípio Ainda com relação às presunções na Teoria das Provas,
da uniformidade sintática de que já nos ocupamos. Dirigem- cumpre tecer, por fim, algumas considerações no que tange às
se, diretamente, aos sujeitos passivos do tributo que imple- infrações tributárias. O discrime entre infrações objetivas e
mentarão, ou não, os expedientes previstos. Havendo acata- subjetivas abre espaço a larga aplicação prática. Tratando-se
mento aos comandos da ordem jurídica, os deveres instru- da primeira, o único recurso de que dispõe o suposto autor do
mentais lá estarão, na qualidade de prestações manifestadas ilícito, para defender-se, é concentrar razões que demonstrem
em forma de linguagem, formando o lastro sobre o qual a a inexistência material do fato acoimado de "antijurídico",
Fazenda Pública e os particulares exercerão gestões de con- descaracterizando-o em qualquer de seus elementos consti-
trole. Insatisfeitas as condutas prescritas, no tempo, lugar e tuintes. Cabe-lhe a prova, com todas as dificuldades que lhe
forma determinados na legislação específica, outra norma são inerentes.
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Agora, no setor das infrações subjetivas, em que penetra "INFRAÇÃO ADMINISTRATIVA. Constatado que houve
erro material na Declaração de Importação de mercadorias
o dolo ou a culpa na compostura do enunciado descritivo do
devidamente manifestadas e consignadas em fatura comer-
fato ilícito, a coisa se inverte, competindo ao Fisco, com toda a
cial, e evidenciada a míngua de dolo ou fraude na operação,
gama instrumental dos seus expedientes administrativos, exi- em que foram devidamente recolhidos os impostos, não há
bir os fundamentos concretos que revelem a presença do dolo como prosperar a exigência de multa do controle administra-
ou da culpa, como nexo entre a participação do agente e o re- tivo das importações, por ocasião da retificação da declara-
sultado material que dessa forma se produziu. Os embaraços ção apresentada pelo importador. Recurso provido"'
dessa comprovação, que nem sempre é fácil, transmudam-se (grifei).

para a atividade fiscalizadora da Administração, que terá a "IMPOSTO DE IMPORTAÇÃO. CLASSIFICAÇÃO FIS-
CAL. AFUGAN TÉCNICO. A mercadoria comercialmente
incumbência intransferível de evidenciar não só a materiali-
denominada Afugan Técnico, ingrediente ativo Pyrazophos
dade do evento como, também, o elemento volitivo que propi- 660, na forma como foi importada, identificado pela Labana
ciou ao infrator atingir seus fins contrários às disposições da como 'preparação fungicida' à base de uma solução de
ordem jurídica vigente. Pyrazophos em Xileno, classifica-se no código NBM
3808.20.99 da tarifa vigente à época da ocorrência do fato
As dificuldades probatórias a que nos reportamos, sejam gerador. INFRAÇÃO ADMINISTRATIVA. MULTA POR
as experimentadas pelo sujeito passivo, no caso de impugnar FALTA DE GUIA. A multa prevista no art. 526, II, do Regu-
pretensões punitivas por ilícitos de natureza objetiva, sejam lamento Aduaneiro é incabível quando o produto importado
aquelas outras que os funcionários da fiscalização tributária guarda correspondência com a descrição feita pelo importa-
enfrentam para certificar a infração subjetiva, nem sempre são dor e este está imbuído de boa-fé. DECLARAÇÃO INEXATA.
MULTA DE OFÍCIO. Incabível a aplicação de multa de
adequadamente suplantadas. Nos autos de infração, o agente
ofício na hipótese destes autos, posto que houve apenas
limita-se a circunscrever os caracteres fácticos, fazendo breve
classificação fiscal errônea, sem que tenha vestígios de dolo
alusão ao cunho doloso ou culposo da conduta do administra- ou má-fé por parte do importador, estando o produto descri-
do. Isto não basta. Há de provar, de maneira inequívoca, o to corretamente. Fundamentação: ADN Cosit n. 10, de
elemento subjetivo que integra o fato típico, com a mesma 16/01/1997. JUROS DE MORA. APLICABILIDADE DA
evidência com que demonstra a integração material da ocor- TAXA SELIC. A falta de pagamento de imposto no prazo
legal sujeita a aplicação dos juros de mora, calculados com
rência fáctica.
base na taxa SELIC. Compete exclusivamente ao Poder
Exige-se que se verifique a vontade concreta do agente Judiciário o controle da constitucionalidade das normas
de perpetrar ato lesivo aos interesses da fiscalização. Não teria jurídicas. Recurso parcialmente provido" 294 (grifei).
sentido apenar os intervenientes nas operações de efeitos tri-
butários cujas atividades foram regularmente praticadas, não É justamente por tais argumentos que as presunções não
causando, voluntariamente, danos ou obstáculos ao Fisco e à devem ter admissibilidade no que tange às infrações subjetivas.
exigência de tributos.
Breve análise dos julgados do Egrégio Conselho de Con- 293.Terceiro Conselho de Contribuintes, 2a Câm., Ac. 302-37114, Rel. Cons.
tribuintes do Ministério da Fazenda confirma o critério ora Corintho Oliveira Machado, j. 09/11/2005
exposto, evidenciando a imprescindibilidade da presença do 294.Terceiro Conselho de Contribuintes, 2a Câm., Ac. 302-37435, Rel. Cons.
dolo para fins de aplicação de sanções administrativas: Elizabeth Emílio de Moraes Chieregatto, j. 25/04/2006.

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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

O dolo e a culpa não se presumem, provam-se. A despeito dis- a certos campos de atuação da disciplina normativa, não acolhe,
so, predicando contornar os obstáculos que adviriam à ativi- excluídas raríssimas exceções, a técnica presuntiva para efeito
dade de fiscalização dos tributos, caso tivesse ela de pautar-se de caracterização do "fato jurídico tributário". Permite, sim,
dentro desses parâmetros estritamente legais, serve-se o legis- em outros setores da atividade tributária, mas resguarda o
lador do apelo à presunção, que equipara, desatinadamente, as instante da subsunção, qualificador que é do fenômeno jurídico
infrações subjetivas às objetivas. Tais preceitos brigam com a da incidência.
organização do nosso direito positivo, que não comporta equi- Observado este pressuposto, entendo que a lavratura do
paração dessa índole, agredindo a sólida estrutura de institutos lançamento, por exemplo, deve dar-se em conformidade com
jurídicos seculares e maculando a inteireza de direitos funda- os meios ou instrumentos reconhecidos pelo direito como há-
mentais consagrados no texto do Estatuto Supremo. beis. Reafirmo, a propósito, que nem sempre os expedientes
da linguagem natural, tão atuantes no intercurso diário de
Na trilha dessa orientação, que prestigia soberanamente
nossas relações, são recolhidos pela ordem jurídica. No proce-
o ordenamento jurídico como sistema, em detrimento da letra
dimento administrativo são admitidos os meios de prova tidos
fria e isolada dos escritos da lei, já existem importantes mani-
como idôneos no processo comum. Entretanto, por virtude de
festações do Poder Judiciário, emanadas, principalmente, do
sua peculiaridade, são muito pouco utilizadas a prova testemu-
antigo Tribunal Federal de Recursos, repudiando perempto-
nhal e a inspeção judicial, assim como a providência do depoi-
riamente o emprego de interpretações presuntivas no plano
mento pessoal. Em obséquio ao rigor, todo instrumento proba-
de ilícitos que requerem os elementos subjetivos na integrali-
tório se reduzirá à prova documental, pois em qualquer ins-
dade do seu enunciado. De fato, o tema das presunções no
tância, seja do procedimento administrativo, seja do processo
direito tributário deve ser observado com mais cautela. judicial, a linguagem escrita é a única capaz de objetivar os
Em razão das próprias especificidades do sistema tribu- signos jurídicos.
tário brasileiro, os recursos à presunção devem ser utilizados Vale salientar, a propósito, que não se permite ao funcio-
com muito cuidado. Nesse subdomínio do jurídico, não convém nário da Fazenda o emprego de recursos imaginativos, por
que a presunção mantenha atinência intrínseca com os aspec- mais evidente que pareça ser o comportamento delituoso do
tos estruturados da norma de incidência tributária. Há apenas sujeito passivo. É imprescindível a cabal demonstração de
de referir-se a elementos (situações/fatos) que possam condu- causalidade entre o fato, considerado como indício, e a efeti-
zir à tipificação da figura impositiva. va existência do ato infrator. É o registro que faz Luís Eduar-
Se considerarmos os valores máximos acolhidos pelo do Schoueri 295 :
Texto Constitucional, principalmente em termos de tributação
"O dever de provar a relação de causalidade é tão impor-
- segurança e certeza - que sustentam os cânones da legalida-
tante quanto a prova da ocorrência do indício. Enquanto
de e da tipicidade, torna-se extremamente problemático captar este é matéria que se encontra no campo dos fatos, a relação
a figura da presunção, sempre pronta a suscitar imprecisão, de causalidade caminha para o campo do pensamento, per-
dubiedade e incerteza. mitindo que a contra-prova se dê de modo próprio. Assim,

Uma providência salutar para o exegeta que lida com a


linguagem jurídica é lembrar-se, a cada momento, que o siste-
295. Processo administrativo fiscal, 2 vol, São Paulo, Dialética, p. 85.
2
ma brasileiro de direito positivo, dispensando cuidado especial
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PAULO DE BARROS CARVALHO DIREITO TRIBUTÁRIO, LINGUAGEM E MÉTODO

para que se desminta a relação de causalidade entre o in- norma individual e concreta inserida no ordenamento pelo ato;
dício e o fato a ser provado, pode-se não só mostrar que a e) finalidade: objetivo postulado pelo expediente.
referida relação não atende aos reclamos da lógica (prova
abstrata, lógica) como, simplesmente, demonstrar que a Satisfeitas as cláusulas da definição da estrutura do ato,
ocorrência do indício permitiria não só a ocorrência do fato acima relacionadas, estará ele perfeito perante o sistema jurí-
alegado como também de outro diverso". dico. Havendo, porém, vício em qualquer dos elementos, ter-
se-á ato defeituoso.
Em outras palavras, não pode haver sombra de dúvida Tratando-se de certidão de dívida ativa, esta desfruta de
sobre a concreção do fato que dá causa à autuação adminis- presunção de liquidez e certeza. Apresenta o atributo da cer-
trativa, sendo inaceitável adotar a figura da presunção, teza porque não expressa mero juízo de probabilidade acerca
tendo em vista que ela consiste no processo lógico em que da existência do débito, uma vez que certifica seu efetivo sur-
de um fato conhecido infere-se fato desconhecido e, portan- gimento. Possui liquidez porque manifesta o exato valor do
to, incerto. 2
débito, consignando um quantum determinado ". Tal presun-
ção, entretanto, é relativa, podendo ser ilidida, nos termos do
6.1.4. Inscrição em dívida ativa como prova pré-constituída artigo 3 4 , parágrafo único, da Lei n. 6.830/80 e do artigo 204,
parágrafo único, do Código Tributário Nacional.
Outro ponto a ser mencionado, ainda no tema da prova Verificando-se erro em qualquer dos elementos do ato que
no direito tributário, e de extrema relevância, é a prova pré- originaram a certidão de dívida ativa, fica refutada a sua pre-
constituída, que tem como suporte físico a certidão de inscrição sunção de liquidez e certeza. Assim, comprovando-se a inexis-
em dívida ativa (CDA).
tência de fundamento jurídico que respalde a constituição do
Consiste o documento em expediente emitido pela Fazen- débito, deixa ele de ser certo e, por via de consequência, líqui-
da Pública, como resultado do ato de inscrição de débito fiscal. do. A presunção de liquidez também é eliminada nas hipóteses
É o produto da apuração da liquidez e certeza do crédito, re- em que, embora existente o débito, este não corresponda ao
presentando o suporte físico da norma individual e concreta valor exigido. Ainda, como o motivo do ato consiste nas razões
introduzida no ordenamento mediante o ato da inscrição em que permitem sua prática, esse elemento, além de ser neces-
dívida ativa. sariamente legal e existente, deve articular-se com a finalidade
297
do ato. Por isso, afirma José Cretella Júnior que se o ato
Pondere-se que como o vocábulo "ato" padece do proble- administrativo é fundamentado em fato inexistente ou em fato
ma semântico da ambiguidade, do tipo "processo/produto". É existente, mas em proporção insuficiente para justificar a me-
ato tanto o processo de inscrição do crédito na dívida ativa dida aplicada, o ato se alicerçou em motivo viciado. Do mesmo
como o resultado dessa atividade, consubstanciado num docu- modo, desvirtuado o fim, o ato eiva-se de vício irreparável.
mento que passa a integrar o sistema do direito positivo (cer-
tidão de dívida ativa). Ambos, para serem perfeitos, devem
i mplementar as cláusulas da definição da estrutura do ato: a)
motivo ou pressuposto: acontecimento fáctico que exige ou 296.Cabe advertir que, essa presunção de certeza e liquidez, não é atributo
exclusivo da CDA. Todo ato que veicula norma relata a débito ou crédito de
possibilita a prática do ato; b) agente competente: funcionário tributo presume-se certa e líquida até prova em contrário.
indicado pela lei para o exercício de tal função; c) forma: orga- 297. Curso de direito administrativo, 16a ed., Rio de Janeiro, Forense, 1999,
nização de linguagem prescrita na lei; d) conteúdo ou objeto: p. 289.
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