Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
net/publication/315995045
O NASCIMENTO PSICOLÓGICO
CITATION READS
1 788
1 author:
SEE PROFILE
All content following this page was uploaded by Elaine Pedreira Rabinovich on 07 April 2019.
3 O NASCIMENTO PSICOLÓGICO
RESUMO
A autora conceitna o nascimento psicológico como a separação entre criança e mãe; após uma
fase em que ocorreu um estado de fusão entre ambas.
Essa separação ocorre através de um processo em que, de um lado, o bebe encontra satisfação de
suas necessidades através da maternagem, enquanto, de outro, vai sendo exposto a um processo
de frustração que o leva a recriar, através da representação mental, o objeto do qual depende para
sobreviver.
É descrito, de um modo geral, esse processo, enfatizando-se a interrelacão mãe-criança.
– 28 –
Refere-se ao Art. de mesmo nome, (I)1 - Opinião, 54-63, 1991 Rev. Bras. Cresc. Des. Hum. S. Paulo, I(1), 1991
– 29 –
Refere-se ao Art. de mesmo nome, (I)1 - Opinião, 54-63, 1991 Rev. Bras. Cresc. Des. Hum. S. Paulo, I(1), 1991
bral. A cavidade oral é o grande depositário das tege o ego rudimentar e possibilita o início da iden-
sensações do recém-nascido com total presença tificação do objeto externo. Aos três meses, o sor-
de sensações interoceptivas e proprioceptivas. riso social inespecífco, caracterizado pela resposta
Quando o bebe mama, ele olha a mãe, caracteri- do bebe ao sinal gestáltico “rosto em movimen-
zando, assim, o que Spitz (1983, p. 78) descreveu to” marca a entrada da criança no estágio de rela-
como a “experiência situacional unificada”, ou ção de objeto que satisfaz a necessidade, isto é, a
seja, a conexão mão-boca-labirinto-pele funde-se criança começa a perceber que a só tisfação de
com a primeira imagem facial, a face da mãe. Com suas necessidades vem de um objeto parcial que
esse olhar, inicia-se a transição da percepção por teria como função satifazê la A resposta do sorri-
contato para a percepção à distância. A percep- so especifico dirigido à mãe é um sinal crucial de
ção à distância, segundo Spitz (1983, p. 79), é a que um elo particular entre criança e mãe foi es-
utilizada pelo adulto; é o que ele chama de siste- tabelecido. O próximo sinal é o
ma diabético baseado no Sistema Nervoso Cen- “desabrochamento”, um estado de alerta bem mais
tral, musculatura estriada e localização precisa dos permanente, mais persistente e com
órgãos sensoriais. A experiência da amamentação direcionarne^nto de objetivos, isto indica que a
ativa o sistema perceptual diacrítico que gradual- atenção do beba, que durante os primeiros meses
mente substitui a organização cinestésica origi- de simbiose era, em grande parte, dirigida para
nal e primitiva. Esta organização, por sua vez, dentro, gradualmente se expande através do
consiste em sensações globais difusas, sincréticas surgimento da atividade perceptiva dirigida para
e viscerais, envolvendo a musculatura lisa e o sis- fora durante os crescentes perfodos de vigília.
tema nervoso simpático-parassimpático. Esta Aos seis meses tem início uma experiên-
mudança de sistema é que permite a percepção cia de tentativa de separação-individuação. Pode-
do mundo, existindo fora da criança. se observar comportamentos da criança como:
Como último elemento nesta experiência puxar o cabelo, as Grelhas, o nariz da mãe; tentar
situacional unificada, a mãe olha a criança. O olhar colocar comida na boca da mãe; afastar o corpo
da mãe fomece, por assim dizer, a própria ima- dela quando no seu colo, de modo a poder olhá-la
gem da criança. Winnicott (1975, p. 154) diz que melhor, examinando-a e ao mundo ao seu redor.
o precursor do espelho é o rosto da mãe e que o Estes comportamentos são sinais definidos de que
bebé vê a si próprio no rosto da mãe. Se não hou- o bebe começa a diferenciar seu próprio corpo do
ver retomo, haverá atrofia da capacidade criativa corpo da mãe.
e/ou retirada para si próprio. Assim, é o olhar da No sexto e sétimo mês tem lugar o auge da
mãe a via para a mudança do sistema perceptual exploração táctil, manual e visual do rosto da mãe
cenestésico para o sistema perceptual diacrftico. pelo bebé, assim como das partescobertas e des-
Não apenas o olhar da mãe fornece esse cami- cobertas do seu corpo. O beba dá seus primeiros
nho: o talo, o modo de pegar e segurar, o tom e o passas em direção à libertação num sentido cor-
ritmo de sua voz, o calor de seu corpo, o seu mo- poral, de sua condição completamente passiva de
vimento. Baseada nessas trocas recíprocas entre bebé de colo. Ocorreria então, para alguns auto-
criança e mãe, fom^la-se a imagem corporal da res, como Spitz (1983, p. 141), a ansiedade dos
criança, sendo esta a base sobre a qual é construído oito meses: quando um estranho se aproxima da
o eu da criança. criança, ela apresenta intensidades variaveis de
Segundo Mahler (1977, p. 71), quando apreensão ou ansiedade e rejeita 0 estranho. Nes-
nasce, a criança está protegida por um escudo se momento a criança distingue claramente um
autístico. Os cuidados matemos diminuem a ten- estranho de um não-estranho. Para Spitz (1983,
são, assim como os comportamentos expulsivos p. 145), a ansiedade manifestada pela criança es-
de tossir, urinar, espirrar, defecar, regurgitar e taria ligada ao medo de perda da mãe: quando
vomitar. A criança não diferencia, mas discrimi- confrontada com um estranho, sua reação é de
na diferentes qualidades de experiência: uma boa/ que nao se trata de sua mae e, portanto, esta aban-
prazeiroza, outra má/desprazeirosa. A mãe é todo donou-a Ainda segundo Spitz, assim como para
o prazer e todo o desprazer, ela é tanto a fome, outros autores, a ansiedade dos oito meses reflete
quanto a sua satisfação. A partir do segundo mês o falo de que a criança estabeleceu, neste momen-
o bebe começa a ter uma consciência difusa de to, uma verdadeira relação objetal, isto é, de que
que algo o satisfaz. O escudo começa a se tom- a mãe total se tornou seu objeto de amor, e a pró-
por e há um deslocamento da catexia, da energia pria criança se diferenciou da mae.
libidinal para a órbita sirnbiótica da unidade dual. Mahler discorda de Spitz quanto ao com-
O escudo é substituido pela simbiose. Qualquer portamento que indicaria o momento da consti-
experiência desprazeirosa, exterior ou interior, é tuição da verdadeira relação objetal. Para ela
projetada para além da fronteira comum. Isso pro- (1977, p. 78), o padrão visual de “confrontar com
– 30 –
Refere-se ao Art. de mesmo nome, (I)1 - Opinião, 54-63, 1991 Rev. Bras. Cresc. Des. Hum. S. Paulo, I(1), 1991
a mãe” a partir dos sete a oito meses é o sinal a mãe se perceba e se constitua como um indiví-
mais importante e razoavelmente regular do iní- duo, determinam condições de subnutrição afetiva
cio da diferenciação somato-psíquica. Segundo para o Slho. As condições sócio-econômicas são
ela, confrontar é comparar o familiar com o não- a totalidade e os invariantes dentro dos quais a
familiar, comparar a mãe e o outro e descobrir o criança nasce e em função do que se estrutura a
que pertence ou não ao corpo da mãe. Uma ex- díadre mãe-criança. As condições sócio-
pectativa confiante, fruto da relação da criança conômicas são as necessárias, mas não suficien-
com o seu meio, garantiria ou não esta explora- tes para a inserção da mãe de e para a sociedade e
ção e esta comparação, com ou sem ansiedade. da criança, de e para a mãe. Já as condições cul-
Segundo Mahler (1977), o nascimento da turais poderiam ser as suficientes, embora não ne-
criança como indivíduo começa quando, numa re- cessárias, para que o desenvolvimento ocorra de
ação à resposta seletiva da mãe e suas “deixas”, a tal ou qual modo.
criança gradualmente altera seu comportamento. Por “mãe” tem sido designado a(s)
Segundo essa autora, seria a necessidade incons- pessoa(s) que satisfaz(em) as necessidades da
ciente específica da mãe que ativa, entre as poten- criança, que cuida(m) dela de um modo sistemá-
cialidades infinitas do bebe, aquelas que, em parti- tico e continuo, que lhe dá proteção, conforto e
cular, criam, para cada mãe, a criança que repetiria assistência e que tem um relacionamento
suas próprias necessidades individuais e singula- reciprocante com ela. A maternagem não se refe-
res, dentro dos limites dos dons inatos da criança. re necessariamente à mãe natural, embora frequen-
É a tessitura do relacionamento mãe-crian- temente seja por ela realizada. Crianças criadas
ça que permite que de um estado de não-diferen- em creches ou com outros tipos de vinculações,
ciação o bebe vá acumulando experiências, re- que não com a mãe, desenvolver-se-ão de acordo
gistrando-as, organizando-as, integrando-as e, no com a qualidade destas vinculações. Considera-
final deste processo, tenha condições de perceber mos características essenciais da maternagem a
a mãe como alguém diverso dele e ele próprio continência ou holding, a reciprocidade afetiva e
como separado dela. comunicativa, e os cuidados contínuos e sistemá-
O que a mãe reflete é usualmente chamado ticos. O conceito de maternagem nos parece sufi-
de “amor”. Através da identificação primária, a crian- cientemente amplo para englobar sistemas de cui-
ça vai incorporando as técnicas de cuidado até con- dados que, embora diversos entre si, garantam a
seguir cuidar de si própria: seria o “amor-próprio”. sobrevivência dos bebés como seres humanos,
Para que experiências sejam imprimidas, adaptados à cultura onde viverão e capazes de
é preciso que elas tenham u n significado, o ma- transmiti-la aos seus descendentes.
terial não significativo não é registrado. Grande Enquanto a “gestação psicológica” é fruto
parte do significado das experiências é dado atra- da presença materna, o “parto psicológico” é fru-
vés de trocas com outro ser humano. Só uma re- to da ausência da mãe. O nascimento psicológico
lação recíproca ou “reciprocante” é capaz disto. ocorre porque, entre a sensação de necessidade e
O abeto materno orienta os afetos do bebe e con- o seu desaparecimento através da satisfação, há
fere qualidade de vida à experiência deste. É no - demoras. Estás demoras—a falta—desempenham
(por e do interesse da mãe e da criança por esta) um papel fundamental no desenvolvimento
inter-essere (= entre seres) que a criança nasce, adaptativo. A percepção do ambiente baseia-se na
aparece e vem ocupar o seu lugar no mundo. tensão gerada por um impulso não satisfeito.
A atitude emocional materna, facilitadora Freud já dizia que uma condição para que
ou controladora, permissiva ou limitadora, se faça 0 teste da realidade é que os objetos que
aprovadora ou rejeitadora, positiva ou negativa, é uma vez trouxeram real satisfação tenham sido
que vai ajudar a desenvolver tais ou quais rela- perdidos. Winnicott (1975, p. 25) continua que
ções. Além disso, há um feed-back recíproco e não há possibilidade alguma de um bebe progre-
constante dentro da díade: trata-se de uma rela- dir do princípio do prazer para o princípio da rea-
ção complementar, homeostática, embora de dois lidade a menos que exista uma “mãe suficiente-
seres tão diferentes. Enquanto a mãe satisfaz as mente boa”. Esta é uma mãe que efetua uma
necessidades do bebe, esse satisfaz ou não as da adaptação ativa às necessidades do bebe, uma
mãe. Apenas para ilus trar a complexidade dessa adaptação que diminui gradativamente a interven-
inter-relação complementar, citamos a necessida- ção materna, segundo a crescente capacidade da
de do bebe de mamar para aliviar a tensão que a criança em aquilatar o fracasso da adaptação e
mãe sente quando está com os selos entumescidos. em tolerar os resultados da frustração. Inicialmen-
Sob condições sub-humanas de vida a mãe te, a mãe propicia a ilusão de que o seio, ou seja,
não conseguirá humanizar o filho. Condições sa- todos os cuidados fazem parte do bebê. A mãe
cio econôrnicas muito precárias, impedindo que coloca o seio real exatamente onde e quando o
– 31 –
Refere-se ao Art. de mesmo nome, (I)1 - Opinião, 54-63, 1991 Rev. Bras. Cresc. Des. Hum. S. Paulo, I(1), 1991
bebê está pronto para criá-lo. Assim procedendo, é a condição para o início de operações mentais
cria uma área intermediária entre o que é objeti- de complexidade cada vez maior. O intelecto, ele
vamente percebido e o que é subjetivamente con- próprio, é um produto da falta e a cultura e a civi-
cebido, entre a realidade e a criatividade. A mãe lização, suas conseqüências. Tudo que nos foi
sobrepõe a realidade ao desejo da criança e dá a dado uma vez e que nos falta tentamos criar na
essa a ilusão de que existe uma realidade externa realidade a fim de obtermos a segurança que a
correspondente à sua própria capacidade de criar. entrada no mundo nos tirou. Por ironia dos deu-
Após isto, a mãe tem a tarefa de desiludir gradati- ses, a perda da onipotência é o momento do nos-
vamente. Se a ilusão-desilusão correr normalmen- so surgimento como seres humanos.
te, está pronto o palco para a frustração do des-
mame, isto é, a separação da figura materna e o
início da constituição do bebé enquanto indiví- BIBLIOGRAFIA
duo (Winnicott, 1975, p. 28).
O objeto real ausente – a mãe – frustra. A GOULD, S. Darwin e os Grandes Enigmas da
frustração é sentida como aniquilamento. Para di- Vida. São Paulo, Martins Fontes, 1987, pp. 65-
minuir a dor, para se apaziguar, a criança elabora 70.
e coordena os registros espalhados no sistema ner- HOFFER, W. O Desenvolvimento Prirnitivo e a
voso. É a angústia ante a ausência da mãe que faz Educação da Criança. Rio de Janeiro, Imago,
com que a criança a recrie em sua mente, repre- 1983, pp. 19-27.
sente-a mentalmente mesmo em sua ausência. MAHLER, M. S. O Nascimento Psicológico da
Com isto, adquire a noção de permanência do Crianca: Simbiose e Individuacão. Rio de Ja-
objeto. A mãe, tornada permanente e não mais pro- neiro, Zahar, 1977, pp. 59-86.
duto de sua onipotência, faz com que a criança PLAGET, J. Biologie et Connaissance. Paris,
reconheça que seus sentimentos de ódio, quando Gallinard, 1967
ela a frustra, e os de amor, quando ela a gratifica SPITZ, R. A. O Primeiro Ano de Vida. São Paulo,
em suas necessidades, são dirigidos a uma mes- Martins Fontes, 1983, pp. 23-164.
ma pessoa. Concomitantemente, a própria crian- WINNICOTT, D. W. Da Pediatria à Psicanálise.
ça se reconhece como sujeito desses dois senti- Rio de Janeiro Francisco Alves, 1982, p. 43.
mentos, fundindo impulsos agressivos e O Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro,
libidinosos. A partir deste momento, a criança pas- lmago,
sa a se preocupar com a mãe como um todo. YTJNG, C. G. Tipos Psicológicos. Rio de Janei-
A tolerância à ambiguidade e à frustração ro, Zahar, 1976, pp. 525-527.
Agradecimento: este trabalho foi germinado em anos de discussões em reu^ldoes semanais do CDH. Um agradecimento especial ao Dr.
Cláudio Saltini.
– 32 –