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ARQUITETURA DA ALMA

A FORMAÇÃO DO PSIQUISMO HUMANO

Joaquim Cesário de Mello


início
corpo
que te seja leve o peso das estrelas
Al Berto1

SER HUMANO

De que é feito o ser humano? De carne, proteínas, carboidratos, neurônios, vísceras,


células, nervos, músculos, ossos... Mas também é feito de desejos, sonhos, fantasias,
lembranças, inteligência, imaginação, pensamentos, emoções e sentimentos. O ser humano,
para se tornar um ser humano na acepção da palavras, também é feito de valores, moral,
crenças, conceitos, princípios, costumes, cultura... Isso é um ser humano: um conjunto complexo
e entrelaçado de sistemas, biológico, psicológico e social.

Somos animais, e como animais temos um corpo. Porém, não somos somente animais,
somos igualmente psicossociais. Esta é o que podemos chamar de nossa essência, que faz parte
da natureza, mas que se distingue dos demais animais pela sua capacidade sapiens. Tal
capacidade, inclusive, nos faz perceber a passagem do tempo e da existência, pois temos a
consciência da finitude e da morte. Talvez melhor do que denominarmos de natureza humana,
seja mais pertinente designarmos com a expressão condição humana.

A condição humana implica nossas algumas diferenças do restante do mundo natural.


Embora igualmente façamos parte dele, somos um tanto além, pois conseguimos ultrapassá-lo,
sendo esta uma experiência exclusiva da nossa condição humana.

1
Poeta português (1948-1997).
Não obstante não ser nosso objetivo aqui enfocar a questão humana pela corporalidade,
não podemos também desconsiderar sua real importância na constituição dessa multiplicidade
imbricada intitulada ser humano. Mesmo que nosso objetivo seja melhor entender como se
arquiteta o psiquismo humano, faz-se necessário reconhecer a biologia do fenômeno
psicológico.

Nenhum homem é uma ilha, completo em si próprio;


cada ser humano é uma parte do continente, uma parte de um todo.
John Donne2

PSIQUISMO FETAL

Ainda que haja um rudimentar e tosco funcionamento psíquico na vida intrauterina, pois
o mesmo demonstra ser possuidor de sensações, percepções e sensibilidade, trata-se de um
funcionamento psíquico basilar, primário e rústico, totalmente relacionado às impressões
corpóreas.

Não há no feto, nem também quando se inicia a vida extrauterina, uma pessoas
existente dentro daquele corpo. A subsistência psíquica naqueles momentos iniciais da vida é
fundamentalmente manifestações somáticas de um existir. Ainda que não haja uma pessoa
dentro daquele corpo em formação, pode-se inferir que ali se encontra germinalmente aspectos
embrionários de uma futura personalidade que ainda vai se organizar e se conceber. Hoje,
graças, inclusive, ao avanço tecnológico (ultrassonografia tridimensional, ressonância
magnética, tomografia computadorizada) se considera que são respostas ao ambiente que lhe
chega até ele. Além disso, acredita-se com mais clareza que fatos ocorridos no período fetal
provavelmente irão afetar e influenciar o desenvolvimento tanto bio evolutivo quanto
psicoafetivo do mesmo.

Do ponto de vista psíquico pode-se levantar a hipótese de um funcionamento psíquico


arcaico no feto, aquilo que o psiquiatra e psicanalista inglês Wilfred Bion denominou de proto-
psiquismo embrionário e fetal. Bem antes dele, o neurologista austríaco e “pai da Psicanálise”
Sigmund Freud nomeava que “a vida extrauterina e a primeira infância apresentam uma
continuidade bem maior do que a impressionante cesura3 do ato do nascimento nos permite
supor”. Realmente, o nascimento não significa em si mesmo início, mas continuidade,
continuidade das fases embrionário e fetal que antecederam ao bebê. Não se nasce como se
fossemos uma tela tão em branco assim4.

2
Poeta e prosador (1572-1631).
3
Corte.
4
Para um melhor aprofundamento da temática sugerimos os seguintes textos: Psiquismo Fetal; um olhar
psicanalítico (in: http://www.sprgs.org.br/diaphora/ojs/index.php/diaphora/article/view/73) e Estados
Comportamentais do Feto e Psiquismo Pré e Perinatal (in:
https://www.academia.edu/11815479/Estados_comportamentais_do_feto_e_psiquismo_pr%C3%A9_e
_periinatal?auto=download).
Embora o psiquismo fetal se encontre impossibilitado de perceber a existência de um
mundo externo a si mesmo, o feto responde a estímulos em sua relação corpórea materno-fetal.
Evidente que quanto mais saudável for o ambiente pré-natal melhor será o início da vida do
indivíduo.

O ambiente pré-natal é o corpo da mãe. Fatores internos e externos da mulher grávida


poderão afetar o desenvolvimento físico e psicológico do feto, tais como o equilíbrio emocional
da gestante, uso de drogas, enfermidades, tipo de alimentação, etc. Podemos até dizer, que a
personalidade da mãe pode ter influência sobre a gravidez, principalmente em relação ao seu
comportamento em diante à gestação e/ou seu comportamento de um modo geral.

Outro fator preponderante no início da formação de todo e qualquer ser humano é a


hereditariedade. Alguns estudos contemporâneos, por exemplo, apontam que os genes podem
ter influência de até cerca de 50% sobre o QI de uma pessoa. Claro, contudo, que o percentual
de hereditariedade não é algo estático ou fixo, pois fatores ambientais vão influenciar tais
tendências ou predisposições. Tanto o ambiente como a criação e as experiências de vida vão
em muito interferir e até mesmo modificar certos componentes potenciais ao longo do
desenvolvimento humano.

Certas doenças mentais (entre elas a esquizofrenia) podem possuir gatilhos genéticos,
assim como a obesidade, longevidade e temperamento. Contudo, tudo indica, que tais questões
não se resumem a um único fator, mas sim a interação complexa entre hereditariedade e
ambiente5.

NO PRINCÍPIO É O CORPO

5
No tocante à temática, sugerimos ver: http://www.cerebromente.org.br/n14/mente/genetica-
comportamental1.html,
https://www.researchgate.net/publication/334779262_Genetica_um_fator_de_influencia_na_formaca
o_da_personalidade e https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-
79722000000200004&script=sci_arttext&tlng=pt.
Somos seres biopsicossociais. Nosso início é fundamentalmente biológico antes mesmo
de nos tornarmos psicossociais. Não existe alma humana (psiquismo) sem um corpo que lhe
carregue e lhe dê sustentação, nem muito menos haverá psiquismo humano na acepção da
palavra se não houver inter-relacionamento pessoal. Como já dizia o pediatra e psicanalista
inglês Donald Winnicott, “There is not such a thing as a baby” (não existe essa coisa chamada
bebê), que em outras palavras significa “que um bebê não existe sozinho, ele existe com sua
mãe”.

O nascimento não marca apenas a saída do corpo fetal para fora do útero, mas
igualmente inicia o desenvolvimento do psiquismo na vida extrauterina.

No principiar da vida após o útero materno, o psiquismo nada mais é do que um


amontoado desordenado e desencontrado de sensações, sustos e abalos sensório-motores sem
sentido. É bem provável que em seu estado mais primitivo e cru, na mente humana inexista a
mínima estrutura de um ego. Algo semelhante a isso ainda há de se formar, embora alguns
teóricos gostem de utilizar-se de termos como ego rudimentar ou núcleo de ego. Winnicott, por
exemplo, definia esta etapa do desenvolvimento psíquico como um período inaugural, como um
estado de não integração, ou seja, o ego ainda não se apresente como uma unidade, estando
seu núcleo primal fragmentado e disperso. Já o biólogo e psicólogo suíço Jean Piaget pontuava
ser esse um estágio sensório-motor, onde predominam os reflexos inatos e as sensações brutas.
Tais reflexos presentes, já evidenciados no nascimento, vão proporcionar gradualmente a
conexão inicial do bebê com o ambiente.

Assim como o corpo humano (organismo) irá continuar se desenvolvendo após a vida
intrauterina, o cérebro e o psiquismo igualmente assim procederão.

O cérebro de um recém-nascido (neonato), segundo se pode observar através de


avançadas técnicas de imagem atuais, que o seu volume total do cérebro dobra no primeiro ano
de vida. Do ponto de vista do peso, o cérebro do neonato pesa em torno de 25% da média final
que alcança na idade adulta (cerca de um quilo e meio). Segundo a neurologista e professora
titular de Neurologia Infantil da Universidade Estadual de Campinas (SP), Maria Valeriana
Ribeiro, em seu livro Neurologia do Desenvolvimento da Criança6, com um ano a massa
encefálica será praticamente triplicada para 900 gramas, aproximadamente, crescendo, a partir
de então, em ritmo mais lento até a sua adulteza. Aos três anos de idade, o cérebro terá 90% do
seu peso final7.

Pelo acima exposto, nem precisa destacar o quanto importante são os primeiros meses
de vida e a primeira infância para o desenvolvimento da pessoa humana. É neste período,
considerado sensível ou crítico do desenvolvimento (“período de molde”) que o cérebro
humano desenvolverá determinadas sinapses em detrimento de outras. Falhas ambientais de
cuidados ao bebê aumentam as chances de prejuízos no desenvolvimento neurobiológico e
psicológico da criança, com possíveis repercussões a médio e longo prazos8.

6
Thieme Revinter, 2ª edição, 2009.
7
Segundo Janet Gonzalez-Mena e Diana Eyer, O Cuidado com Bebês e Crianças e Pequenas na Creche,
AMGH, 2014.
8
Vide Efeitos da Depressão Materna no Desenvolvimento Neurobiológico e Psicológico da Criança, in:
https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0101-81082005000200007&script=sci_arttext&tlng=pt
Como parte do sistema nervoso central (SNC) o cérebro tem como função regular a
maioria das tarefas corporais e mentais. O cérebro é o centro do nosso sistema nervoso e
contém bilhões de neurônios (estima-se em torno de 86 bilhões).

Neurônios são células do tecido nervoso responsáveis pelas transmissões de impulsos


nervosos. Tal transmissão é feita por meio da liberação de pequenas moléculas chamadas de
neurotransmissores, que são mensageiros químicos responsáveis pela informação entre os
neurônios e outras células do corpo. Entre os neurotransmissores mais conhecidos temos a
serotonina, a dopamina, a noradrenalina, a adrenalina, as endorfinas, entre outros.

Por serem transmissores de impulsos nervosos os neurotransmissores são definidos


como mensageiros químicos que transportam, estimulam e equilibram sinais entre os
neurônios. É como se os neurônios falassem entre si através deles. São bilhões de células que
trabalham diuturnamente para manter o funcionamento do nosso cérebro, que, por sua vez,
gerencia desde a nossa respiração, frequência dos batimentos cardíacos, apetite, até nosso
humor e nossas emoções.

Entre um neurônio e outro há um pequeno espaço chamado de fenda sináptica, isto é,


onde uma extremidade de um neurônio pré-sináptico (axônio) transmite um influxo nervoso
(neurotransmissor) para a extremidade de outro neurônio (dendrito) que o recebe e o envia
para o interior da célula (núcleo). Dependendo do neurotransmissor o neurônio receptor é
estimulado ou inibido, Neste sentido, podemos analogamente entender o neurotransmissor
como uma espécie de chave que abre ou fecha portas.

Existem 6 tipos conhecidos de neurotransmissores (aminoácidos, peptídeos,


monoaminas, purinas, gasotransmissores e acetilcolina). Para o nosso enfoque aqui vamos nos
centrar, no momento, nas monoaminas, mais especificamente a epinefrina (adrenalina), a
noradrenalina, a dopamina e a serotonina.

É nesse locus corpóreo onde se encontram a neurologia e a psicologia, isto é, unidas


formam o que aqui chamamos de alma humana.

Evidentemente que o psiquismo (psique/alma) só existe na existência de um cérebro.


Claro, pois, que os processos psíquicos (mentais) ocorrem no cérebro, porém não é este quem
dá significado, significação ou sentido às coisas e à vida. Assim sendo, podemos afirmar que o
cérebro responde ao que a mente interpreta, ao mesmo tempo em que o cérebro influencia na
maneira de interpretar da mente. Há quem diga que o cérebro é o conteúdo, a mente a forma.

A relação entre mente e cérebro é tão imbricada que é praticamente muito difícil, para
não dizer impossível, dissociá-las. Como afirma o neurocientista português António Damásio,
tanto o psiquismo (mente), quanto o cérebro e o corpo, agem conjuntamente, gerando uma
realidade única: o ser humano.

Atua no sistema cardiovascular para manter o corpo em


9
ADRENALINA estado de alerta em situações de estresse, seja para lutar
ou fugir.
Sua função principal é manter a pressão sanguínea em
níveis estáveis. É importante em situações de
NORADRENALINA10 emergência, pois aumenta a energia química do

9
Vide: https://www.scielo.br/pdf/rprs/v25s1/a08v25s1.
10
Idem.
organismo para dar respostas rápidas em situações
estressoras.
DOPAMINA11 Ativa os circuitos de recompensa do cérebro, por isso é
conhecida como neurotransmissor do prazer.
Se a dopamina é chamada de neurotransmissor do
SEROTONINA12 prazer, a serotonina está relacionada a sentimentos de
bem-estar e felicidade.

Embora a visão do cérebro trino13 proposta pelo neurocientista norte-americano Paul


Mac Lean seja bastante reduzida, para fins do presente texto ela nos é muito útil.

Mac Lean divide o cérebro humano em três estratos funcionais distintos, a saber:
cérebro reptiliano, sistema límbico e neocórtex.

A parte mais profunda do cérebro é o cérebro reptiliano, ou seja, a parte mais basal,
composta pela medula e pelo cerebelo. Do ponto de vista evolucionista representa a parte mais
antiga e primitiva.

Já o sistema límbico (característico dos mamíferos inferiores), que está acima da parte
reptiliana e no centro do sistema nervoso central (SNC), é o chamado cérebro emocional. Aqui
está o que podemos denominar de “centro das emoções”.

O neocórtex, por sua vez, a parte mais recente de nossa evolução animal. Localizada na
parte pré-frontal do cérebro, esta é a parte racional, isto é, que planeja, antecipa, percebe a
temporalidade, capaz de exercer o pensamento abstrato e de inventar e criar. O “cérebro
racional”, como é conhecido, é o que nos diferencia do resto dos demais animais.

Nossa natureza humana (condição humana) tem uma outra característica bastante
peculiar e que, consequentemente, vai nos determinar sobremaneira, principalmente em
termos de desenvolvimento psicológico, que é nascermos prematuros, isto é, completamente
incapazes à sobrevivência por nós mesmos. Todos somos originariamente dependentes de um
cuidador. E não dependentes absolutos, mas dependentes prolongadamente. Tal dependência
prolongada vai deixar marcas indeléveis no arquitetar do nosso psiquismo e na formação da
personalidade.

Somos, pela nossa própria natureza, fadados à dependência através do vínculo com
outro humano que nos alimenta não apenas de leite e cuidados físico, mas também de afetos e
cultura (o ser humano é um ser biopsicossocial). Nesse sentido, a alma humana (psiquismo) é
decorrência e fruto não do nature x nurture, porém do nature e do nurture.
Cérebro: dispositivo com o qual pensamos que pensamos.
Aquilo que distingue o homem que se contenta com ser alguma coisa
do homem que quer fazer alguma coisa.
Ambrose Bierce14

11
Vide: http://www.aberta.senad.gov.br/medias/original/201704/20170424-094615-001.pdf.
12
Vide: https://www.scielo.br/pdf/rpc/v35n5/a04v35n5.pdf.
13
Para um melhor aprofundamento, vide:
https://www.researchgate.net/publication/284277719_Consideracoes_sobre_a_teoria_do_cerebro_tri
uno_e_sua_relevancia_para_uma_filosofia_da_mente_e_das_emocoes; e
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1808-42812008000200023
14
Escritor norte-americano (1842-1914).
O PSIQUISMO CRU
Cada criatura humana traz duas almas consigo:
uma que olha de dentro para fora,
outra que olha de fora para dentro
Machado de Assis15

PSIQUISMO CORPORAL

Ninguém nasce com uma pessoa dentro de si. Como disse o psicólogo estadunidense,
Gordon Allport, em seu clássico livro Personalidade, que no principiar da vida não somos
psicologicamente uma pessoa, mas sim uma coisa psicológica.

Não é porque no início da existência somos tão somente uma coisa psicológica, que não
tenhamos o potencial de ser uma pessoa. Como afirmava Winnicott, nascemos com uma
tendência inata ao crescimento.

O nascimento biológico e o psicológico não são ao mesmo tempo. Primeiro nascemos


biologicamente, porém o nascimento psicológico (noção de Eu) vem depois, com o
desenvolvimento. Observem que isso não invalida já haver funcionamento psíquico desde a vida
fetal, conforme abordado anteriormente. Porém, o eu ainda não tem é uma noção psíquica
integrada de si, ou seja, uma noção de eu, propriamente dita.

Sequer começamos tão somente pelo corpo e sua carga genética. Subjetivamente
também podemos dizer que nascemos antes mesmo de nascer. Até antes mesmo de sermos
fecundados. Há igualmente uma herança psíquica nos esperando. Trata-se de uma transmissão
psíquica que vem tanto de quem estará conosco ao nascermos, quanto de gerações anteriores
(conceitos de Arquétipo/Jung e Superego/Freud, por exemplo).

Todo eu nasce do nós. Como assim? Antes de haver um eu dentro do psiquismo humano,
já existe um nós (pais, família, grupo social primário, comunidade, cultura, sociedade). Não há
como não nascer um eu separado do nós que representa nossos principais cuidadores, suas
personalidades, biografias e cultura. Fantasias, imagens, sonhos, desejos, ideais, traumas não
ditos, lutos mal elaborados e inconclusos, segredos e latências, fazem parte da história familiar
onde seremos, de alguma forma, herdeiros involuntários.

A alma humana genericamente falando, não tem morfologia definida. Ao menos no


início. Cada pessoa, cada indivíduo, cada singularidade, cada personalidade, foi aos poucos
tomando forma de gente dentro do psiquismo originariamente cru e bruto.

Como, evidentemente já salientamos, não existe alma (mente humana) sem corpo, este,
por sua vez, inicia-se por ocasião da fecundação do óvulo pelo espermatozoide (zigoto). De

15
Escritor brasileiro (1839-1908).
zigoto ao embrião, do embrião ao feto, do feto ao neonato, do neonato ao bebê, da bebê à
criança, da criança ao púbere, do púbere ao adulto. Aqui, desenvolvemos progressiva e
gradualmente, com altos e baixos, o psiquismo humano, sua personalidade e sua identidade.

Embora sejamos um psiquismo habitando (preso) a um corpo, o mesmo se organiza e


se estrutura (personalidade) sofrendo forte influência do ambiente. Nosso potencial de herança
genética pode ser estimulado ou desestimulado através de nossos encontros com os outros (meio
social) e o momento que esses encontros acontecem. Somos, portanto, um amálgama, de
influência fisiológicas e sociais de onde se desenvolve e se constrói na psique a personalidade
humana16.

Como dizemos precedentemente, a vida humana não é um embate entre nature e


nurture, mas uma integração orgânica e vivente entre ambos. Somos, pois:

F = G + A17

Freud foi bem perspicaz e inteligente ao considerar que o Ego seria a parte da mente
que entra em contato com a realidade, isto é, o mundo externo. Para ele o psiquismo primal e
basilar seria o Id, estrutura natural da mente (instintos/pulsões) e reservatório de todas as
pulsões humanas. Para ele o Id é um caos, um caldeirão das excitações efervescentes.

No principiar da vida o psiquismo é puro Id, segundo Freud. Com o tempo, vai-se
formando o Ego dentro da mente. Mais adiante vai se formar o que ele denominou de Superego.

O Ego, em sua formação primeva e rudimentar, é inicialmente um Ego corporal, pois


deriva das sensações somáticas, isto é, que advém das sensações corpóreas. Tais sensações são
sentidas ou como prazerosas ou como desprazerosas. Trata-se de um Ego-Prazer, afinal se
origina por meio do Princípio do Prazer-Desprazer. É um Ego rústico e tosco ainda, a serviço do
Id, em detrimento da realidade.

O psiquismo em sua fase primitiva não possui ainda uma estrutura interna suficiente e
capaz de se autocontrolar em relação aos seus impulsos, Tal estrutura psíquica, convencionada
chamar de Ego, vai se construindo gradualmente mediante inúmeras experiências físicas de
prazer-desprazer. Como descrevia Winnicott, trata-se de uma construção silenciosa, que no
início se faz de maneira puramente corporal (Ego Corporal). É a partir, portanto, desse ego
corporal que vai se fazendo, o que denominou a psiquiatra e psicanalista de origem austríaca
Margaret Mahler, de nascimento psicológico18. Aos poucos a mente vai se se desmembrando
dessa sua natureza psicocorporal,19 por meio das inúmeras experiências corporais vivenciadas
pelo bebê desde sua condição neonato.

Pelo acima exposto, a pele terá importante papel no surgimento da noção de dentro e
fora do corpo (da noção de eu e não-eu), afinal é por meio da epiderme que um bebê inicia seu
contato com o mundo externo (Didier Anzieu, filosofo francês, intitulou de Eu-Pele). Segundo

16
Cesário de Mello, J. A Alma Humana: uma viagem ao interior do psiquismo e suas raízes, Labrador, 2018;
17
F = fenótipo (conjunto de características de um indivíduo), G = genótipo (herança genética) e A =
ambiente.
18
O Nascimento Psicológico da Criança, Artmed, 2002.
19
Unidade Psico-Soma, nas palavras de Winnicott. Edith Jacobson, psicanalista alemã, por sua vez,
chamou de Self Psicofisiológico Primário.
Winnicott, a pele tem a função de conter o psiquismo dentro do corpo. Através, portanto, das
sensações cutâneas a psique vai tomando consciência de sua existência intracorpórea20.

Do ponto de vista estrutural da mente, somente poderemos falar de um Ego


propriamente dito quando o psiquismo começar a conseguir, mesmo que rudimentarmente, se
auto segurar, isto é, for capaz de se auto antagonizar (Id x Ego). De puro escravo das demandas
do Id, o Ego irá se organizar tentando ser senhor do Id.

Dessa origem somatossensorial, e por meio de informações proprioceptivas e


exteroceptivas, o psiquismo em formação começa a identificar e a conceber a existência de si
próprio. A mente vai se conhecendo enquanto mente a partir da diferenciação de mundo
interno e mundo externo. Nasce-se, assim, progressivamente, um Eu dentro da alma
(psiquismo). Pode-se, então, dizer que no interior da alma humana processa-se uma gestação
psíquica21.

Enquanto o psiquismo for regido apenas por seus impulsos e não conseguir ele mesmo
se autorregular minimamente, não podemos falar de um Ego propriamente dito, nem que seja
um Ego ainda bastante primitivo e inacabado. Somente quando a mente for, ela mesma, capaz
de mediar impulsos e realidade, um Ego terá se estruturado dentro da psique humana. E quando
e como nasce no interior da alma (psiquismo) uma força que é capaz de se antagonizar com a
força dos impulsos e instintos? É o que vamos desenvolver abaixo.

PRINCÍPIO DO PRAZER-DESPRAZER

Inicialmente o psiquismo é como uma unidade somatopsíquica. Sua capacidade de


diferenciar estímulos é tosca e ainda bastante limitada. Percebe-se e se diferencia os estímulos
e suas diferenciações corpóreas de duas formas básicas e rudimentares: prazer e desprazer.

As sensações de desprazer corpóreo (fome, por exemplo) desequilibra a homeostase


psíquica, isto é, elevam o estado de tensão dentro do psiquismo. O prazer, por sua vez, age de

20
Para melhor entendimento vide A Ternura Tátil: o corpo na origem do psiquismo, in:
http://pepsic.bvsalud.org/pdf/psyche/v10n17/v10n17a07.pdf
21
Vide A construção Silenciosa do Ego Corporal, in:
http://www.spbsb.org.br/site/images/Novo_Alter/2011_2/06Ivanise.pdf
maneira contrária, ou seja, diminui o estado de tensão, podendo o psiquismo retornar ao estado
de equilíbrio homeostático anterior (Princípio de Nirvana22). A mente lactente, em sua
imaturidade primária, é regida por esse princípio primário que Freud denominou de Princípio do
Prazer. E assim ela se guia ou é guiada pelo Princípio do Prazer que podemos aqui resumir em
uma busca pelo prazer e evitação do desprazer.

A mente em estado de tensão interna procura descarregá-la mediante atividade motora.


Acontece que muitas vezes, ao longo do desenvolvimento infantil, o bebê, e depois a criança,
irá se defrontar com certas experiências de descarrego impulsivo que ao invés de aliviar
desprazer gerará mais desprazer. Exemplifiquemos de maneira bem simples: digamos que uma
criança bem pequena se veja impulsionada a colocar a mão em uma panela de água quente.
Assim fazendo vai sentir a dor de se queimar. Isso lhe dará uma aprendizagem de sofrimento.
Da próxima vez que tal impulso novamente se manifestar, a criança tenderá a segurar seu
próprio impulso pela lembrança automática da experiência negativa de dor. Observe, nesse
exemplo, que devido ao próprio Princípio do Prazer-Desprazer (buscar o prazer e fugir da dor),
o psiquismo humano vai aos poucos adquirindo um certo controle a dados impulsos
antecipadamente percebidos como perigosos. Desse modo, o mesmo psiquismo que demanda
o impulso, passa também a segurá-lo, a serviço do Princípio do Prazer-Desprazer. Inicia-se, deste
modo, gradualmente, no interior da mente humana, um antagonismo entre uma força que quer
atuar sem consequências seus impulsos (Id) e outra força que começa a regular, impedir ou adiar
tais impulsos imediatistas e inconsequentes (Ego). O Ego, portanto, é a parte da mente que vai
nascer do psiquismo primário (Id) que lida com a realidade e suas consequências, ou seja, o Ego
psicologicamente atua a serviço do Princípio de Realidade.

Para maior aprofundamento do assunto, sugerimos a leitura dos livros Freud e o


Inconsciente, de Luiz Garcia-Roza23, e Noções básicas de Psicanálise, de Charles Brenner24.

22
Expressão criada por Freud para designar à tendência da mente em reduzir ao máximo o estado de
tensão interna, e manter o nível de excitação o mais baixo e constante possível (Princípio da Constância).
23
Zahar, 1984.
24
Imago, 1975.
PROCESSO PRIMÁRIO DE PENSAMENTO

Mesmo em seu estado bebezinho a mente pensa. Porém não pensa como pensa uma
mente mais amadurecida, isto é, através de símbolos, linguagem, sintaxe e lógica.

Mas, então, como pensa a mente enquanto ainda bastante primária e crua?
Provavelmente é uma forma de pensar baseada inicialmente apenas nas emoções. Uma forma
ou maneira de pensar sem nenhuma noção de mundo externo, realidade, noção de não e limite,
não linguística, caótica, atemporal, imediatista e baseada no Princípio do Prazer e no puro
descarrego dos impulsos. Teoricamente podemos dizer que essa forma originária de funcionar
o pensamento é, para uma mente mais amadurecida, o que chamamos de Inconsciente.

O processamento primário de pensamento, portanto, está dirigido para ações imediatas


e sem tardeamento, associadas ao prazer e ao emocional tão somente. Do ponto de vista da
ideia de energia psíquica25, esta flui livremente do polo do estímulo ao polo da resposta. Quando
dormindo sonhamos, por exemplo, a mente em estado onírico funciona sob a égide do processo
primário de pensamento, sendo incapaz de distinguir fantasias e imagens de realidade. Da
mesma maneira acontece no fenômeno da alucinação, visto que os pensamentos sensoriais
surgem sem nenhuma base de fato.

Não é porque o psiquismo amadurece com o tempo e as experiências que essa forma
deixará de existir nas profundezas da alma humana, Como dizemos acima, é de lá que surgem
os sonhos e suas narrativas oníricas, bem como o mesmo acontece na psicopatologia da
alucinação. Todos guardamos resíduos primitivos de pensar. O pensamento mágico que ainda
existe em nossa mente mesmo adulta (vide a superstição, por exemplo) é prova de que nunca
nos livraremos totalmente de nossas raízes psíquicas e seu funcionamento e maneira de pensar,
algo que pode se chamar de “narcisismo intelectual26”.

Hoje, ao lidarmos com o psiquismo amadurecido, o processo primário de pensamento


representa a linguagem do inconsciente, onde fantasia e realidade se fundem e não se
distinguem. Quando acontece de o psiquismo estar sob predomínio do processo primário de
pensamento o teste de realidade do Ego27 encontra-se prejudicado.

Quanto mais o psiquismo se desenvolve e amadurece menos ele estará funcionando sob
o processo primário de pensamento. Ele passa a ser comandado pelo processo secundário de
pensamento, que, por sua vez, é regido pelo Princípio de Realidade. Tal maneira de pensar,
posterior ao processo primário, é o que comumente chamamos de racional, pois nele
predominam o abstrato e as regras da lógica.

O processo secundário de pensamento, portanto, é verbal (linguístico/simbólico), tem


em si noção de tempo e de não, bem como opera através da avaliação, reflexão e ponderação.

25
Conceito utilizado para entender e explicar o que leva o psicologicamente organismo ao movimento.
São, portanto, aspectos mobilizadores fundamentais da psique humana, sendo um construto teórico
muito válido e útil para compreender o funcionamento da dinâmica mental.
26
Vide O Pensamento Mágico na Constituição do Psiquismo, in:
http://www.ceccarelli.psc.br/texts/pensamento-magico-const-psiq.pdf.
27
Processo mental onde se discrimina e se diferencia a fantasia e a imaginação (mundo interno) da
realidade (mundo externo).
Quanto mais as imagens verbais predominam, este se afasta do período pré-linguístico
(processo primário de pensamento) e mais se torna uma espécie de Ego verbal-falante (com
palavras). Sucede-se, por conseguinte, na mente humana, uma virada linguística. O psiquismo
passa a pensar com palavras.

A ILUSÃO DA PERFEIÇÃO

O psiquismo humano nasce tão nu quanto o corpo, isto é, não tem em seu princípio
nenhuma noção da existência de mundo externo e das pessoas que lhe circundam e que com
ele convive. É um psiquismo anobjetal, ou seja, voltado somente para si mesmo. Ele é tudo, e
tudo é ele (onipotência).

A psique em estado cru vive uma fase pré-mundo, ainda não há a percepção da
existência de dentro e fora do corpo. É um período que já foi descrito como cheio de zumbidos,
clarões indefinidos e sensações imprecisas. O mundo externo não tem forma, contorno, rosto
ou nitidez. É como se fosse, no máximo, um imenso borrão ao alcance das mãos.

Evidente que a psique primitiva sente sua existência através do corpo, apenas sequer
sabe que existe. No início, sequer há Ego. Vive-se no âmbito tão somente do Ego Corporal. É um
período ilusório psíquico onde a mente sente-se respirando e vivendo uma solidão essencial28.
Não há lugar ainda pra o não-eu. Tudo faz parte da unidade somatopsíquica.

Winnicott reconhecia que essa espécie de solidão fundamental onde o psiquismo se


encontra encapsulado no início da vida jamais será reproduzido pela mente humana após seu
mínimo desenvolvimento. Claro que dentro da psique de cada um de nós habita algo desse
primitivo estado, porém jamais alcançado de maneira análoga, afinal é uma ilusão inerente a
um estado de não-ser (não eu), que a mente dele se desligará a partir de começar a ser um ser
(noção de eu). Chega até ser poético a frase que Winnicott se utiliza para disso explicar, quando
diz: “o indivíduo emerge não do inorgânico, mas da solidão”.

Vários autores criaram expressões diversas para designar essa fase inaugural da
existência extrauterina. Freud, como vimos, chamou de Ego Corporal. René Spitz29 de período
anobjetal. Jose Bleger30, por sua vez, cunhou o termo núcleo aglutinado, enquanto que Edith
Jacobson31 expressou como self psicofisiológico primário, e Mário Pacheco Prado32 de estado de
entranhamento.

A psiquiatra e psicanalista infantil norte-americana de origem húngara Margaret Mahler


(1897-1985), descreveu tal período inicial do psiquismo humano de autismo normal,
característico dos primeiros dias de vida. Segundo ela, é uma fase de estado de desorientação
alucinatória primitiva, com completa ausência de percepção de objeto externo (agente

28
Expressão criada por Winnicott.
29
Psicanalista austro-americano (1887-1974).
30
Psiquiatra argentino (1922-1972).
31
Psicanalista alemã (1897-1978).
32
Psicanalista brasileiro (1917-1991).
materno). É o instante do desenvolvimento (inicial) onde a energia psíquica (libido) se acha
totalmente direcionada ao próprio corpo, não havendo a mínima percepção de qualquer fora
de si. É o grande momento da fantasia onipotente primária da mente, pois é aqui em que ela se
acha capaz de satisfazer suas próprias necessidades (como saciar a fome, por exemplo).

A metáfora de denominar o psiquismo originariamente de narcisismo primário é


bastante útil para entendermos o funcionamento basilar da mente humana. Buscou-se na
mitologia grega o mito de Narciso, aquele que estava fadado a se apaixonar por sua própria
imagem. Para melhor compreender porque usou-se a lenda mítica de Narciso, sugerimos os
textos abaixo33:

Eco e Narciso: leituras de um mito

https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-166X2003000300006

Narciso: polimorfismo das versões e das interpretações psicanalíticas do mito

https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-166X2003000300006

A alma humana em estado bruto, ou seja, nua, crua e primitiva, é natural e


originariamente narcísica. O narcisismo é anímico à alma. Freud foi um pioneiro a teorizar tal
característica básica do psiquismo, em seu texto de 1914 Sobre o Narcisismo: uma introdução.

O conceito freudiano de narcisismo primário tem a ver com a concepção de


investimento psíquico. Como no principiar da vida, o psiquismo não tem objetos (não há
diferenciação entre mundo interno-mundo externo) a energia psíquica (libido34) está voltada ao
próprio psiquismo. Freud entenda que não existe Ego no início da vida, ele denomina essa libido
autodirigida de libido de ego. Como ele mesmo destaca, “dizemos que um ser humano tem dois
objetos sexuais – ele próprio e a mulher que cuida dele – e ao fazê-lo estamos postulando a
existência de um narcisismo primário em todos”.

A partir do segundo mês em média, graças ao desenvolvimento fisiológico, a mente


lactente, a partir do 2º mês de vida em média, começa a gradualmente perceber a existência da
mãe a quem o bebê dirige sua atenção, contudo ainda não consegue ter uma percepção real de
objeto externo, ou seja, “vê” a mãe como se fosse um prolongamento de si e tenha com ela uma
relação psicológica fusionada. O eu ainda não se diferencia do não-eu, e a auto percepção de
que há um dentro e um fora apenas está começando a gradualmente se distinguir. Mahler criou
a expressão simbiose normal a esse momento desenvolvimental.

Na simbiose normal, que tem seu auge em torno de 3-5 meses de idade, embora a
psique infante já comece a reconhecer algo além de si, ainda não reconhece a origem externo
do seu objeto cuidador. Trata-se de uma consciência nascente difusa e imprecisa. A relação
psicológica entre o ego incipiente e o objeto turvo é uma relação de fusão (aglutinação), razão
pela qual Mahler preferiu utilizar o termo simbiose.

33
http://www.filosofia.seed.pr.gov.br/arquivos/File/classicos_da_filosofia/mitos_gregos.pdf,
https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-166X2003000300006 e
https://www.scielo.br/pdf/estpsi/v20n3/a06.pdf.
34
Freud definiu libido como a energia eu provém dos instintos/pulsões.
No tocante a melhor compreender as ideias de Mahler, sugerimos:

A teoria de Margaret Mahler sobre o desenvolvimento psíquico precoce normal35

O nascimento psicológico36

Antes do narcisismo primário Freud considerava que nos primeiros instantes e dias de
vida a libido estaria direcionada aos órgãos do próprio corpo, o que ele denominou de
autoerotismo. Lembrar que Freud não concebe um Ego, mesmo rudimentar, nos primeiros dias
da existência extrauterina. Com o surgimento de uma unidade mínima compatível a um eu
interior (ainda indiferenciado, porém, em relação ao mundo externo como tal), é que Freud
passa a denominar de narcisismo primário. Equivale a uma primeira imagem mental que o
psiquismo tem de si, contudo perfeita, onipotente e completa.

Não é difícil, portanto, compreender a concepção teórica que faz Freud, visto que antes
de haver um investimento psíquico em um objeto (libido de objeto), primariamente o
investimento é voltado ao interior da própria mente (libido de ego). Devemos considerar ainda
que nunca totalmente deixaremos de ter algum quantum de energia psíquica voltada a nós
mesmos (base mínima de qualquer amor próprio), Caso não houvesse algum investimento de
parte da nossa energia psíquica em nós mesmos, isso representaria a morte do eu/Ego.

Já a psicanalista Cybelle Weinberg e o psiquiatra Taki Cordás37, assim descrevem o


narcisismo primário: “um primeiro estado de vida, anterior até mesmo à constituição do ego, e
do qual a vida intrauterina seria o arquétipo. Esta última acepção do narcisismo primário
prevalece no pensamento psicanalítico atual, como um estado rigorosamente anobjetal, ou pelo
menos indiferenciado, sem clivagem entre um sujeito e um mundo exterior”38.

Evidentemente que o psiquismo em seu processo de amadurecimento vai saindo dessa


posição narcisista primária, passando pelo egocentrismo, até chegar à adulteza e ao altruísmo.
Porém, isso não representa, como dito acima, no desaparecimento absoluto do narcisismo
primário. Além do amor próprio, a que fizemos menção acima, permanecerá no interior de todo
psiquismo humano alguma coisa de onipotência e exigência de perfeição. A isso chamamos, em

35
In: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1677-11682018000300014
36
www.journals.usp.br.
37
Do Altar às Passarelas - Anorexia, Annablume, 2006.
38
Concepção com a qual estaremos aqui trabalhando.
uma mente amadurecida, de Ego Ideal. O Ego Ideal, portanto, é em nossa mente inconsciente
um substituto da onipotência perdida da infância, isto é, passa a ser, no âmago residual do
passado idílico, um depositário de toda idealização, perfeição e felicidades ilimitadas do
narcisismo primário39.

Outra característica importante nessa fase inicial onde predominam fantasias narcísicas
e ilusões de onipotência, é o próprio narcisismo dos pais (objetos cuidadores). É comum e
normal que os pais idealizem seus filhos, principalmente quando eles ainda são bebês e seu Eu
está se formando. Consciente e inconsciente existem desejos de que a criança venha a realizar
antigos sonhos da mãe e do pai. A mãe (objeto cuidador primal), regra geral, vive nos primeiros
meses uma relação com seu neonato de muita proximidade física e psicológica (naquilo que
Winnicott denominou de preocupação materna primária40). A mãe, em preocupação materna
primária, tem em seu bebê o cerne do seu universo. A criança, nessa época, representa o que
Freud chamou de sua majestade o bebê. Tal situação é propiciadora do renascimento do
narcisismo parental.

O narcisismo projetado dos pais no seu bebê encontra neste eco no próprio narcisismo
da fase infantil, e o ego rudimentar em formação identifica-se com tais ideais e os internaliza
como um ideal a ser alcançado e correspondido. Assim se cria, também no interior da mente
humana, o que convencionamos denominar de Ideal de Ego. Desse modo, da mesma maneira
que o Ego Ideal representa um herdeiro psíquico do narcisismo primário, o Ideal de Ego
representa um legatário das exigências narcisistas das figuras parentais.

Pelo acima exposto, é necessário entender que no interior mais fundo e enraizado da
alma humana habitam resíduos narcísicos da origem do narcisismo atávico e nativo do
psiquismo humano. Se fossemos comparar o homem a uma árvore, diríamos que a nossa raiz é
constituída tanto de Id quanto de narcisismo (Ego Ideal e Ideal de Ego), e por nosso tronco e
ramificações circula a seiva que vem das funduras e entranhas narcísicas da nossa natureza. É
desse salutar nutriente psíquico em que se rega nosso amor próprio e nossa autoestima.
Podemos afirmar, inclusive, que o narcisismo em suas características normais e saudáveis
resulta em proteção psíquica importante para o enfrentamento da própria existência e
resiliência frente às vicissitudes e adversidades da vida.

39
Para melhor entendimento e aprofundamento , vide A construção do conceito de superego em Freud,
in: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-73952005000100009.

40
Estado subjetivo de exarcebada sensibilidade, identificação e sintonia com as necessidades do bebê
Sugestões de leituras afins:

Considerações sobre o narcisismo


http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-34372010000200011
Reflexões sobre o narcisismo normal e patológico
http://ojs.fsg.br/index.php/pesquisaextensao/article/view/1680
Subjetividade contemporânea: narcisismo e estados afetivos em um grupo de adultos jovens
https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-56652014000200012&script=sci_arttext&tlng=pt

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?


Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Génio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicómios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora génios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistámos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordámos e ele é opaco,
Levantámo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

(Álvaro de Campos41)

41
Heterônimo do poeta português Fernando Pessoa (1868-1935). O texto acima é trecho do poema
Tabacaria.
O NASCIMENTO DO SELF
Eu não sou eu nem sou o outro,
Sou qualquer coisa de intermédio:
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o Outro.
Mário de Sá-Carneiro42

SELFOBJETO

O termo self (que em inglês significa “eu”, ‘si mesmo”, “próprio”, “auto”), representa a
individualidade de uma pessoa, sua subjetividade. Em psicologia tem várias traduções e
significações um pouco diferentes entre si, mas que caracteriza e aponta para o mesmo
ângulo: o eu43.

Winnicott, por exemplo, designa self como o produto dos processos dinâmicos que dão
a unidade e totalidade do ser. Já o psiquiatra e psicanalista austro-americano Heinz Hartmann
conceituou como “a imagem de si mesmo”. Para Carl Rogers, psicólogo estadunidense, o self é
o “autoconceito”, “a noção de eu” de um indivíduo. O psiquiatra e psicanalista suíço Carl Jung,
por sua vez, dimensionou o self como o arquétipo central, isto é, o unificador do consciente e
do inconsciente do psiquismo. Já houve alguém, inclusive, que definiu self como a imagem que
o cérebro tem de si mesmo.

Seja como for, self pode ser resumido como a pessoa se revela e se conhece, ou seja,
representa sua própria consciência de si mesmo. Em outras palavras, é a autoconsciência de ser
que se acredita que se é. É a consciência sobre o si próprio e envolve a autoimagem e a
autoestima. É a individualidade e a subjetividade da pessoa.

O nascimento do self começa ocorrer quando a mente toma consciência do seu próprio
corpo. Com o conhecimento do corpo e suas delimitações também se conhece o dentro e o fora,
o eu e o não-eu. O self e o objeto.

Neste momento evitemos pensar no self como nós o conhecemos adulto, isto é, a partir
do nosso próprio self já consolidado. Pensemos no seu nascimento, que não tem uma data e
nem se faz em um dia específico. Lembremos que seu processual nascimento é em uma época
que o psiquismo se encontra em um corpo lactente e infantil, portanto em um psiquismo
igualmente lactente (oral) e infantil.

Pelo acima exposto, não há self que não seja narcisista. Como propõe a Psicologia do
Self, através principalmente de seu principal nome, o psicanalista austro-americano Heinz
Kohut, o narcisismo não é somente um estágio inicial do psiquismo em desenvolvimento, mas

42
Poeta português (1890-1916).
43
Vide Self: um conceito em desenvolvimento, in: https://www.scielo.br/pdf/paideia/v22n52/14.pdf.
sim um estado permanente da alma humana. Neste sentido, o self é organizadamente narcisista
por excelência, tanto em seu nascedouro, como durante a vida inteira. Não há subjetividade
humana que não esteja banhada ou salpicada de narcisismo, seja saudavelmente falando, ou
não44.

Voltemos a questão do nascimento do self. Se o self brota em nosso psiquismo a partir


da própria diferenciação entre o dentro e o fora da mente, o eu e o não-eu, então,
consequentemente, não há de se falar ou pensar o conceito de self dissociado ao de objeto. Da
mesmo forma que bebê sozinho não existe, self sozinho não existe.

Heinz Kohut propõe, pois, entendermos o objeto em relação ao self como selfobjeto
(selfobject). O selfobjeto é quem vai dar base e suporte ao self humano. Evidentemente que o
self nascente terá como selfobjeto suas figuras parentais. Não esquecemos que “o primeiro rosto
que o primeiro espelho da criatura humana é o rosto da mãe” (Winnicott).

Tratando-se de um período predominantemente narcísico (época da onipotência


mágica do psiquismo infante), tanto o self quanto o selfobjeto serão eivados de grandiosidade
narcísica. Ou, em outras palavras, o self grandioso45 e a imago parental idealizada46.

Vejamos o que escrevem os autores norte-americanos Jesse Feist, Gregory Feist e Tomi-
Ann Roberts, em seu livro Teorias da Personalidade47:

“os bebês precisam dos cuidadores adultos não somente para gratificarem suas
necessidades físicas, mas também para satisfazerem necessidades psicológicas
básicas. Ao cuidarem das necessidades físicas e psicológicas, os adultos, ou
selfobjetos, tratam os bebês como se eles tivessem uma noção de self. Por exemplo,
os pais agirão com afeto, frieza ou indiferença dependendo, em parte, do
comportamento de seu bebê. Pelo processo de interação empática, o bebê assimila
as respostas dos selfobjetos como orgulho, culpa, vergonha ou inveja – todas
atitudes acabam formando os componentes fundamentais do self. Kohut definiu o
self como ‘o centro do universo psicológico do indivíduo’. O self dá unidade e
consistência às experiências, permanece relativamente estável ao longo do tempo
e é ‘o centro da iniciativa e um receptor de impressões’. O self também é o foco das
relações interpessoais da criança, moldando como ela se relaciona com os pais e
outros selfobjetos”.

Com o conceito de selfobjeto Kohut se afasta da ideia do psiquismo humano focado quase
como que exclusivamente do conflito edípico (Freud, Klein), e passa a enfatizar o pré-edípico,
assim como Winnicott e outros. Ao invés do homem culpado freudiano, temos o homem trágico
kohutiano, cujas raízes centrais estão montadas na fase oral e em sua relação com o objeto
cuidador (selfobjeto).

44
Vide: Kohut H., Análise do Self, Imago, 1988.
45
O self-grandioso, para Kohut, é uma parte normal do desenvolvimento psíquico. Uma autoimagem
grandiosa e exibicionista que nos acompanhará pelo resto da vida.
46
Imagem primitiva toda poderosa e perfeita que a criança tem de seus pais .
47
AMGH, 8ª edição, 2015.
Self não é igual a Ego, visto ser o Ego uma estrutura do psiquismo, enquanto o self
representa a imagem que o psiquismo tem de si, isto é, a maneira como uma pessoa se vê.

Diferentemente de Freud, que considerou o narcisismo (narcisismo primário) uma fase do


desenvolvimento mental48, Kohut destaca que passamos do narcisismo infantil e evoluímos para
um narcisismo mais elevado.

Uma das principais, senão a principal, diferença da Psicologia do Self em relação a teoria
estrutural da mente (Id, Ego e Superego) e a teoria das relações objetais (Melanie Klein) é que,
enquanto estas relevam os relacionamento internalizados (objetos internos), a Psicologia do
Self, por sua vez, salienta os relacionamentos externos como fundantes e mantenedores da
coesão do self e sua autoestima. Neste sentido, compreende-se o ser humano como um
indivíduo em constante busca de respostas de outras pessoas para tanto se validar quanto para
conservar o senso interno de bem-estar. Na perspectiva psicopatológica tal busca exacerba para
o desespero, com sentimentos inespecíficos de vazio, depressão e relacionamentos
insatisfatórios (patologias narcísicas).

Citemos Glen Gabbard, em Psiquiatria Psicodinâmica na Prática Clínica49: “ao longo da


vida, todos nós necessitamos de respostas empáticas e confirmatórias dos outros a fim de
manter nossa autoestima. A maturação e o crescimento desviam a necessidade dos objetos do
self arcaicos, no sentido da capacidade de utilizar objetos do self mais apropriados e maduros”.

No tocante à evolução saudável do narcisismo, que inicialmente atribui perfeição ao self


(self grandioso) e perfeição às figuras parentais (imago parental idealizada), tais atribuições
narcísicas se transformam, com o amadurecer do psiquismo, em ambições saudáveis e ideais e
valores. Como propôs pensar Kohut, enquanto as ambições nos empurram, nossos ideais nos
puxam.

AUTOIMAGEM

Nosso primeiro self é um self grandioso, e nunca nos livraremos totalmente dessa
necessidade de grandiosidade. Diríamos que é imprescindível e até saudável à uma mente
imatura, com suas necessidades narcisistas normais do início do desenvolvimento, afinal, todo

48
Vide Para um Introdução ao Estudo do Narcisismo, in:
http://repositorio.ispa.pt/bitstream/10400.12/2104/1/1983_4_395.pdf.
49
Artmed, 5ª edição, 2015.
bebê e toda criança pequena precisa se ser espelhado em sua grandiosidade natural,
consequência da ilusão psíquica inerente ao narcisismo de onde todos viemos. Qual a criança
que não necessita ser admirada e reconhecida em suas próprias auto idealizações infantis? Qual
a criança que não carece de ser a coisa mais linda do mundo para seus pais? Qual a criança que
não tem necessidade de ser a coisa mais importante na vida de uma mãe, por exemplo? Tudo
isso concorre para no início da vida ser elaborado no interior de si mesmo uma boa autoestima.

A relação entre autoestima e autoimagem é bastante próxima, íntima e interligada. A


autoestima representa a percepção avaliativa (positiva/negativa) que o sujeito tem sobre si
mesmo. Já a autoimagem também tem a ver como o indivíduo se percebe (se vê), como ele se
descreve e se acha. Observa-se com isso, claramente, que a autoimagem engloba a parte
valorativa que a é a autoestima. Autoimagem e autoestima são imbricados.

É de autor desconhecido a seguinte afirmação: existem três pessoas dentro de cada


um de nós: a que eu acho que sou, a que os outros acham que eu sou, e a que Deus
sabe que sou. Pois é, parte do que pensamos que somos tem também a ver como os
outros pensam o que somos, principalmente nossos pais e pessoas significativas da
infância. Lembremos o que citamos anteriormente que o nosso narcisismo nos
acompanhará pela vida inteira, e que por todo o percurso de nossa existência pessoal
de alguma maneira, alguns mais outros menos, procuraremos ser validados e
confirmados pelos outros. Assim sendo, a autoimagem (como nos vemos) tem muito
a ver também com os olhares alheios sobre nós.

Nossa primeira imagem veio do olhar de quem nos cuidou (mãe). A mãe (ou
seu substituto) é o nosso primeiro espelho – espelho da alma. O olhar de nossa
família (grupo social primário) influencia bastante (positiva e/ou negativamente) o
delinear da nossa autoimagem. Como diz a psicóloga Suzy Cristine dos Santos, “esse
olhar contém valores, crenças e limites que podem definir aquela pessoa pelo resto
da vida”.

Todo psiquismo em sua fase infantil necessita se exibir, ser olhado, ser
validado. A mente procura na mãe o brilho do seu olhar sobre ela. Como afirmou
Kohut, o self grandioso não é somente grandioso, mas igualmente exibicionista.

Tais respostas de aprovação, segundo a Psicologia do Self, são essenciais e cruciais para
o desenvolvimento normal do psiquismo imaturo, fornecendo-o um senso de autovalor. Quando
isso não ocorre, quando o objeto cuidador falha em nutrir empaticamente às necessidades
narcísicas do psiquismo infante, tem-se a tendência da criança crescer com sua autoestima
comprometida, correndo-se o risco de se tornar um adulto com um self deficiente
narcisicamente, ou seja, deficiente em sua autovalorização. Vejamos o que escreve o psiquiatra
norte-americano e professor da Baylor College of Medicine em Houston (EUA):

“quando uma mãe falha em empatizar com a necessidade de seu filho por uma
resposta especular, a criança tem grande dificuldade em manter um senso de
completude e autoestima. Em resposta a essa falha de empatia, o senso de self da
criança se fragmenta, e ela tenta desesperadamente ser perfeita e ‘atua’ para os
pais para ganhar aprovação que tanto anseia50”.

De outra maneira Winnicott percebeu o mesmo fenômeno. Na sua terminologia ele


denominou de Falso Self. Tal expressão designa uma espécie de “distorção” do self onde o

50
Psiquiatria Psicodinâmica na Prática Clínica, 5ª edição, Artmed, 2015.
psiquismo infantil, afim de se proteger (proteger o “eu espontâneo/verdadeiro”), organiza-se
defensivamente de forma inautêntica (Falso Self).

Segundo Winnicott, todos nascemos com uma tendência ao crescimento inato, No


principiar da vida nossa psique é um potencial, isto é, um vir-a-ser. Caso encontre um ambiente
facilitador a tal crescimento psicológico, o psiquismo tenderá a evoluir de maneira autêntica e
genuína, ou seja, manifestando seu self verdadeiramente (Verdadeiro-Self). Todavia sabemos
que isso é praticamente impossível em termos ótimos. Nenhum ambiente (mãe) é tão
perfeitamente devotada assim. Claro que haverá falhas ambientais – é normal -, porém em
níveis suportáveis ao iniciante self (mãe suficientemente boa) para que o mesmo encontre
espaço ao seu desenvolvimento o mais originário possível. Todavia, mesmo assim, nem sempre
é o que acontece em vários casos e situações.

Nem todo ambiente é facilitador, por razões várias. Há mães/pais que falham em falham
em exercer sua função de anteparo ou escudo protetor, e submetem seu bebê a uma excessiva
quantidade de estímulos que o psiquismo imaturo não consegue processar. Se as chamadas
falhas ambientais forem demasiadas o potencial do verdadeiro self tenderá psicologicamente a
ser obstruído como uma forma auto defensiva de proteção, ocultando-se por detrás de uma
“máscara artificial’ como uma maneira de se ajustar e se moldar ao ambiente falho e deficitário
em ser facilitador e provedor do Verdadeiro-Self. O psicanalista paquistanês-britânico Masud
Khan chamou isto de Self Adaptativo. É como se, ao invés do ambiente se adaptar às
necessidades psicológicas da criança, a criança tivesse que se adaptar às necessidades da mãe
(ambiente)51. Tais distorções na formação do self irá se refletir tanto na constituição da
autoimagem52 quanto na autoestima. Em outras palavras, uma boa autoimagem requer um self
bem estruturado.

AUTOESTIMA

51
Vide Os Conceitos de Verdadeiro e Falso Self e suas Implicações na Prática Clínica, in:
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-03942009000200005.
52
Para o psicanalista estadunidense Alexander Lowen, criador da análise bioenergética, o verdadeiro self
não se resume em apenas uma imagem mental, mas também incorpora os sentimentos de
incorporalidade, isto é, corpo é self. Sugerimos, a respeito do tema, o livro de Lowen Narcisismo, A
Negação do Verdadeiro Self, Summus, 2017.
Autoestima é definida como a qualidade de quem se valoriza. Auto significa si mesmo.
Estima significa afeição, bem-querer. Assim sendo, autoestima = ter afeição (amor) por si
mesmo.

Trata-se de uma avaliação subjetiva que o psiquismo faz da pessoa que nele habita, e
tanto pode ser positiva quanto negativa. Envolve crenças pessoais sobre si mesmo, tipo; “sou
capaz/sou incapaz”, “sou benquisto/sou malquisto”, “sou bom/não sou bom”. Também inclui
sentimentos autosignificantes, como, por exemplo, “tenho orgulho de mim/tenho vergonha de
mim” ou “sou digo/não sou digno”.

Uma boa autoestima, portanto, representa a pessoa gostar de si própria pelo o que ela
é. Engloba tanto gostar seus atributos, qualidades e competências, quanto aceitar igualmente
suas falhas, incompetências e características pessoais não idealizadas. Quem quer ser perfeito,
sem falhas, erros e imperfeições, fatalmente sofrerá de baixa autoestima, afinal o self real jamais
conseguirá atingir o self grandiosamente idealizadamente imaculado53/54. Parafraseando Clarice
Lispector55, autoestima é o sentimento de apreço que você tem com você, apesar de...

Ser bom, por exemplo em Geografia e História, e não ser bom em Matemática e Química
não faz de um indivíduo com autoestima boa ter uma visão negativa de si nos estudos em geral,
afinal é saudável reconhecer seus pontos fracos ou vulneráveis e seus pontos fortes e
competências. A autoestima, portanto, não necessariamente se restringe à áreas específicas,
mas engloba sentimentos generalizados de apreciação de si próprio.

Como dissemos anteriormente, autoestima e autoimagem são imbricadas. A autoestima


tem muito a ver com a autoimagem. Para se compreender melhor a imagem que se tem de si é
preciso contextualizá-la, isto é, compreender que a imagem mental que fazemos de nós mesmos
é consequência de como representamo-nos e como percebemos, interpretamos e registramos
os eventos vividos na nossa história e biografia. Tanto a autoimagem e a autoestima compõe o
núcleo emocional de onde emana a maneira como nos vemos, reagimos e nos relacionamos
com o mundo externo e interno.

Freud já disse que “a autoestima expressa o tamanho do ego”. Como vimos, o narcisismo
não extremado e limitado participa do desenvolvimento normal do ser humano. Temos que
destacar, mais uma vez, que a construção da noção de eu começa no período narcisista do
psiquismo humano. Por isso Freud subdividiu a autoestima em: autoestima primária (resíduo do
narcisismo infantil), autoestima derivada Ideal de Ego e a autoestima consequente da satisfação
da libido objetal56.

Também vimos que a autoimagem é como se fosse o lado racional da autoestima,


enquanto a autoestima é como se fosse o lado afetivo da autoimagem. Assim como uma moeda
ambos são lados da mesma moeda.

53
Vide conceito de Ego Ideal e Ideal de Ego, no subcapítulo A Ilusão da Perfeição.
54
Vide também artigo A Atualidade dos Conceitos Freudianos de Eu Ideal, Ideal do Eu e Supereu, in:
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1808-42812016000400008.
55
“uma das coisas que aprendi é que se deve viver apesar de. Apesar de, se deve comer. Apesar de, se
deve amar. Apesar de, se deve morrer. Inclusive muitas vezes é o próprio apesar de que nos empurra para
a frente. Foi o apesar de que me deu uma angústia que insatisfeita foi a criadora de minha própria vida”.
Trecho do livro Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres, Rocco, 1998.
56
Sobre o Narcisismo: uma introdução.
Uma baixa autoestima, por sua vez, compromete a funcionalidade pessoal do sujeito,
no sentido, principalmente, dele não se achar competente em desenvolver suas reais
potencialidades.

Uma autoestima baixa demonstra uma autocrítica às vezes bastante severa da pessoa
consigo mesma. Do ponto de vista estrutural e dinâmico é uma opressão psíquica sobre o
Ego/self. É o Ego Ideal/Ideal de Ego (Superego) cobrando do Ego Real um Ego que ele jamais
conseguirá alcançar. Cobranças narcisistas de auto perfeição faz nossas normais imperfeições
serem sentidas como retumbantes malogros e estrondosos fracassos

O valor que alguém se dá é resultado em grande parte as experiências vivenciadas (reais


e/ou irreais57) pela transitar na vida, mormente, as relacionadas aos afetos (positivo/negativos),
à valorização, e os manejos frente aos fracassos e sucessos. Se dissemos acima que autoestima
está intrinsicamente relacionada à autoimagem, o mesmo se dá em relação à autoconfiança.

A autoconfiança tem sua base, seguindo o psicanalista de origem alemã Erik Erikson, na
primeira etapa do desenvolvimento psicossocial do ser humano. Segundo Erikson, no estágio
inicial da vida o psiquismo infante deve desenvolver confiança em relação ao ambiente que o
cerca. Trata-se do primeiro ambiente social da criança (bebê). É com relação às pessoas do
mundo que vivemos nossos primeiros passos na vida, principalmente em relação ao objeto
cuidador (mãe), que o psiquismo pueril e imaturo vai começar adquirir confiança em si mesmo.
Um ambiente inseguro, ou até mesmo hostil, que não atende bem às necessidades psicológicas
do infante, tende, no principiar d organização da psique, o desenvolvimento de medos,
inseguranças e incertezas em relação aos seus cuidadores, que tenderá a comprometer os
próximos estágios desenvolvimentais. O sentimento de autoconfiança, assim, ancora-se no
recebimento de amor e responsividades empáticas que seus cuidadores principais vão lhe
proporcionando. Afinal, acreditando no apoio dos seus cuidadores a criança pequena adquire
melhor confiança em ela própria explorar o mundo que se descortina à sua frente. Erikson
chamava isso de Confiança Básica58.

Evidente que iniciar a existência extrauterina não confiando no mundo que lhe dá
sustentação e que atende suas necessidades básicas, faz com que o psiquismo imaturo
desenvolva-se de maneira desconfiada com o ambiente que lhe passa mais sensação de
insegurança e/ou hostilidade. É um começo mais defensivo e desconfiado para a mente infantil,
comprometendo, assim, a base da autoconfiança.

O período fundamental a formação de um laço de segurança e afetividade com o objeto


cuidador (mãe) são os anos iniciais da vida, principalmente os dois primeiros. Naquilo que John
Bolwby chamou de Teoria do Apego, é nesse contexto interpessoal primal que se sustentam as
necessidades que sentimos. A relação bebê-mãe é o laço primordial, e dele repercutirá os nossos
relacionamentos efetivos adultos.

O desenvolvimento de um apego seguro vai requerer da mãe (pais) um comportamento


responsivo por parte deles. Para Bowlby o apego é inato, isto é, um mecanismo básico e
biologicamente programado do ser humano. Sem isso, não sobreviveríamos. O apego tem a ver,
pois, com recursos adaptativos à preservação, afinal sua função principal é encontrar e

57
Irreal no sentido de distorções interpretativas sobre fatos e eventos da existência. Fantasias, quando se
misturam às experiências de realidade, podem ter impactos em nós como se reais fossem.
58
Vide Desenvolvimento Psicossocial, in: https://repositorio-aberto.up.pt/handle/10216/9133 e Erikson e
a Teoria Psicossocial do Desenvolvimento, in: https://repositorio-aberto.up.pt/handle/10216/9133. Para
fins de consulta na fonte sugerimos o livro de Erikson titulado Infância e Sociedade, Ediciones Home, 1974.
estimular, através de um conjunto de sinais inatos do bebê, um objeto cuidador que lhe atenda
em suas necessidades mais básicas. Este movimento de proximidade/reciprocidade resulta em
um vínculo afetivo primordial ao desenvolvimento psicoemocional da criança. Essas primeiras
relações de apego, que se estabelecem na primeira infância, irá contaminar e se reproduzir no
estilo de apego que o indivíduo ao longo de sua vida inteira59.

PADRÃO DE APEGO CRIANÇA CUIDADOR


Utiliza o cuidador como uma base Responsivo e empático às
Seguro segura de onde a partir de pode necessidades da criança.
explorar com mais segurança o
mundo.
Grudenta e pegadiça. Tem Excessivamente protetor,
Ansioso grandes dificuldades em lidar com dificultando os iniciantes
a ausência e afastamento do processos de autonomia e
cuidador. independência.
Ansiosa porque o cuidador ora se Inconsistente. Um misto de
Ambivalente demonstra disponível e seguro, respostas apropriadas e
ora não. negligentes.
Sem sentimentos de segurança Pouca ou nenhuma
Evitativo em relação ao cuidador. disponibilidade e
Manifesta rebeldia, baixa responsividade.
autoestima e autoimagem Negligente/omisso.
negativa.
Distorção da autoimagem, Comportamento intimidante
Desorganizado comportamentos contraditórios e e assustador. Inclinação a
desorientados. Tendência ao maus-tratos e abuso contra a
desenvolvimento de depressão e criança.
angústia.

Quem se desenvolve, portanto, com baixa autoestima tenderá também a desenvolver


depressão e alguma grau de inadequação social, bem como uma qualidade de vida
subaproveitada. Afinal, se uma boa e equilibrada autoestima gera bem-estar subjetivo, o oposto
também pode ser verdadeiro, ou seja, uma baixa autoestima gera mal-estar subjetivo.

Abaixo a escala de medição da autoestima (RSES), desenvolvida pelo sociólogo norte-


americano Morris Rosenberg:

// Cada afirmação positiva recebe uma pontuação desde 0 (discordo totalmente)


a 3 (concordo totalmente), enquanto declarações negativas são pontuadas no
sentido inverso 3 (discordo totalmente) e 0 (concordo totalmente) //

1. Sinto que sou uma pessoa digna de apreço, pelo menos tanto quanto os outros.
2. Sinto que tenho qualidades positivas.
3. Geralmente, sou levado a pensar que sou um fracassado/a.

59
Vide Teoria do Apego: bases conceituais e desenvolvimento dos modelos internos de funcionamento,
in: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-52672005000100003.
4. Eu sou capaz de fazer as coisas tão bem quanto a maioria das pessoas.
5. Sinto que eu não tenho muito do que me orgulhar.
6. Tenho uma atitude positiva em relação a mim mesmo/a.
7. No geral, estou satisfeito/a comigo mesmo/a.
8.Gostaria de ter mais respeito por mim mesmo/a.
9. Às vezes me sinto inútil.
10. Às vezes eu penso que não sirvo para nada.

(Resposta no rodapé da próxima página)

Perguntas-me qual foi o meu progresso?


Comecei a ser amigo de mim mesmo.
Sêneca60

60
Escritor e filósofo romano (4 a.C .- 65 d.C.)
MORALIZAÇÃO DA
ALMA

O que é verdadeiramente imoral é


ter desistido de si mesmo.
Clarice Lispector61

SUPEREGO

Superego é um termo utilizado por Freud (em alemão Uber-Ich) para descrever a
instância (estrutura) moral da mente. Não nascemos, portanto, com Superego. Não há moral no
psiquismo lactente. Nem sequer há objetos internos (representações mentais de pessoas
externas). No início somos anobjetais. No início somos anômicos62. No início somos puro Id, ou
núcleo do Ego é ainda tão rudimentar e tosco que não tem ainda capacidade de se impor sobre
os impulsos e demandas do Id.

O Superego pode bem ser simbolizado como um juiz interior, representante tanto da
moral quanto uma espécie de legislador intrapsíquico. Também tem a função punitiva, isto é,
gerar culpa, remorso e arrependimento.

Mas como se forma estruturalmente o Superego dentro do psiquismo humano?

Seu prelúdio remonta ao narcisismo primário, ou melhor, à saída do narcisismo


primário. Como vimos em capítulos anteriores, o resíduo da ilusão de se ser perfeito fica em nós
como uma subestrutura denominada de Ego Ideal. Some-se a ele a imagem narcisista que
geralmente os pais projetam em seus filhos (sua majestade o bebê), o Ideal de Ego. Eles são
substratos básicos do que com o amadurecer psíquico vai se consolidar como Superego.

61
Escritora ucraniana naturalizada brasileira (1920-1977).
(*) Resultado da Escala da Autoestima de Rosenberg:
Pontuação menor que 15 = baixa autoestima.
Pontuação entre 15 e 25 = autoestima saudável
Pontuação + 25 = elevada autoestima (traços de arrogância/prepotência/narcisismo).

62
Ausência de regras e limites morais e éticos.
A expressão “super” da palavra Superego denota que este nasce do Ego, melhor, dele
se desprende e passa a ser uma nova força dentro do aparelho psíquico63. O Superego, portanto,
qualifica uma estrutura psíquica que pode ser subdividida em Ego Ideal, Ideal de Ego e Superego
propriamente dito64.

As subestruturas primitivas do Superego (Ego Ideal e Ideal de Ego) compõem, assim, a


parte psíquica (inconsciente) que nos cobra perfeição. Conscientemente sabemos e falamos que
“ninguém é perfeito”, e que “errar é humano”, mas mesmo assim quando falhamos ou quando
erramos nos auto acusamos como se quiséssemos no fundo ser perfeitos. É o nosso inseparável
narcisismo que, a partir das entranhas psíquicas, cobra-nos um ideal que o Ego Real65/self não
consegue corresponder66.

Já o Superego propriamente dito é a subestrutura mais tardia da estrutura supergóica.


Ele é consequência de um processo de internalização das figuras parentais, consequentemente
uma organização psíquica compostas por objetos introjetado que representa subjetivamente a
parte moral do psiquismo humano. Todavia não vamos confundir a estrutura superegóica com
a consciência moral67. Superego é uma instância estrutural do aparelho psíquico, que por
definição é inconsciente (consciente é a parte egóica que se representa e que lida com o mundo
externo). Poderíamos, porém, conciliar a questão dizendo que a consciência moral é a parte
superficial e psicologicamente visível do Superego, que se manifesta na parte consciente do Ego.

Para Freud o Superego se consolida com a passagem e resolução do complexo de épico68.


Metaforicamente falando é quando a psique infantil tem que abandonar a posição simbiótica
com a mãe (díade perfeita) e ingressar em um posição de tríade (criança-mãe-pai). É quando a
mente aceita que a mãe e seu amor não são só para ela. Que a mãe também ama outro ou algo
além do filho. O psiquismo, neste sentido, tem que reconhecer os limites dos seus desejos
incestuosamente narcísicos em relação ao objeto materno (objeto primal/relação matriz)69.

Figurativamente o Superego é resultado de um interdito (lei) aos desejos mais primais


que o é fusionamento com o objeto materno. Por isso é que se diz que o Superego é paterno.

Pelo acima exposto, podemos melhor entender as palavras de David Zimerman, em


Fundamentos Psicanalíticos: teoria, técnica, clínica – uma abordagem didática70, quando
conceitua Superego como “uma estrutura composta por objetos internalizados, aos quais
geralmente atribui-se um caráter persecutório, de intensidade maior ou menor e que, por meio
mandamentos, opõe-se às pulsões do Id...”

Assim sendo, o Superego como estrutura se forma psiquicamente como um aliado do


Ego na sua luta em conter os demandos inconsequentes do ID. Realidade e moral tornam-se
coligadas forças opositoras e controladoras frente aos arroubos imperiais dos desejos e impulsos

63
Expressão também criada por Freud para falar do conjunto de todas as partes eu compõem à mente.
No caso do modelo estrutural, seriam Id, Ego e Superego.
64
Vide: O Superego: em busca de uma nova abordagem, in: https://www.scielo.br/pdf/rlpf/v3n2/1415-
4714-rlpf-3-2-0026.pdf.
65
O termo Ego Real é aqui usado para designar o ego-representacional, isto é, como o Ego “se vê”.
66
Para melhor compreensão vide: Berlink, Luciana C., Melancolia: rastros de dor e perda, capítulo II,
Humanitas, 2008.
67
Julgamento intelectivo que distingue o que é certo e o que é errado para aquela dada pessoa.
68
Fase do desenvolvimento psicossexual (fase fálica) onde há uma espécie de disputa psicológica entre a
criança e o progenitor do sexo oposto.
69
Supera-se a “angústia de castração” (simbólica) pela aceitação da “castração” (simbólica).
70
Artmed, 2009.
da nossa matriz pulsional e instintiva. Enquanto o Ego é a parte da mente voltada à realidade, o
Superego é a parte da mente voltada ao social e, portanto, ao outro (altruísmo). Todavia, nem
sempre as coisas são plenamente assim tão parceiras.

O Superego também pode se tornar uma espécie de autoridade mandante do Ego.


Considerando o seu caráter interditor e, por vezes até persecutório (vide definição de Zimerman
acima), ele tem o poder de ameaçar e/ou oprimir às funções do Ego. A culpa, que é um
sentimento originário psicologicamente da estrutura superegóica, assim como o medo de sentir
culpa, embora afetos necessários à convivência social humana, quando exacerbados podem
limitar o Ego e até mesmo debilitá-lo e deprimi-lo. E quando e como isso acontece?

Em princípio deve-se destacar que a formação psíquica do Superego no interior do


psiquismo infantil não é consequência direta da identificação e internalização de características
egóicas parentais71. A identificação se faz muito mais com o Superego dos pais, o que se faz
através das práticas educativas e dos estilos parentais72. O psicanalista francês Jean Bergeret (et.
all.) reproduzindo Freud dispõe que “apesar de sua diferença fundamental, o Id e o Superego
têm um ponto em comum: ambos representam, de fato, o papel do passado. O Id da
hereditariedade, o Superego, o que ele pediu emprestado a outrem; enquanto que o Ego é
sobretudo determinado por aquilo eu ele próprio viveu, ou seja, pelo acidental, o atual73”.

É preciso também lembrar que a formação do Superego no psiquismo se faz em uma


época (infância) em que o Ego não tão forte assim. Em seu texto O Ego e o Id 74 (1923) Freud
assim descreve:

“temos afirmado repetidamente que o ego é formado, em grande parte, a partir de


identificações que tomam o lugar de catexias abandonadas pelo id; que a primeira dessa
identificações sempre se comporta como uma instância especial no ego de dele se mantém à
parte sob a forma de um superego: enquanto que, posteriormente, à medida que fica mais
forte, o ego pode tornar-se mais resistentes às influências de tais identificações. O superego
deve sua posição especial no ego, ou em relação ao ego, a um fator que deve ser considerado
sob dois aspectos: por um lado, ele foi a primeira identificação, uma identificação que se
efetuou enquanto o ego ainda era fraco; por outro, é o herdeiro do complexo de Édipo e,
assim, introduziu os objetos mais significativo no ego... Embora ela seja acessível a todas as
influências posteriores, preserva, não obstante, através de toda a vida o caráter que lhe foi
dado por sua derivação do complexo paterno – a saber, a capacidade de manter-se à parte
do ego e dominá-lo. Ele constitui uma lembrança da antiga fraqueza e dependência do ego e
o ego maduro permanece sujeito à sua dominação. Tal como a criança esteve um dia sob a
compulsão de obedecer aos pais, assim o ego se submete ao imperativo categórico do seu
superego”.

Pela perspectiva freudiana os impulsos incestuosos em relação ao objeto materno


são acompanhadas por impulsos parricidas (desejos infantis agressivos contra o objeto
paterno, visto puerilmente como rival na disputa do amor da mãe). Tais impulsos belicosos
com a identificação e internalização representa uma energia agressiva agora a favor do

71
Se assim fosse, o Superego corresponderia à internalização das paresonalidade parentais, mais
precisamente da personalidade do pai. Porém, a internalização tem a ver com aspectos parentais, e não
como o pai (ou os pais) são.
72
Forma como os pais se relacionam com os filhos.
73
Apud Psicopatologia: teoria e clínica, Artmed, 2016.
74
O Ego e o id e Outros Trabalhos, Edição standart brasileira das obras completas de Freud. Imago, 1996.
Superego que dela tira sua força para se opor ao Id, mas também uma força (agressiva)
para subjugar o Ego. Nesse aspecto, a crítica que a estrutura superegóica imprime sobre a
outra estrutura (Ego) tem o poder da culpa como sentimento opressor, e, às vezes, até com
tamanha rigidez, severidade e impediosidade75.

Claro que para entender tal dinâmica psíquica é necessário ter em mente o
chamado ponto de vista econômico que Freud nos instiga a pensar o psiquismo humano.
Refletir sobre o aspecto econômico significa raciocinar em termos do jogo de forças dentro
do aparelho psíquico, isto é, como uma estrutura tem força (energia psíquica) para se
antagonizar com outra força (energia psíquica). Lembrar que toda energia psíquica, em
princípio, demanda do Id (matriz energética do aparelho psíquico), mas que se distribui
tanto a serviço do Princípio de Realidade quanto ao Princípio do Dever76.

Podemos igualmente ponderar que o olhar judicativo e repreensivo dos pais se


tornam internamente componentes do Superego. Era algo que a estrutura egóica
anteriormente não tinha, ou seja, uma “voz’ e lhe criticar e lhe censurar. Essa é, talvez, a
melhor imagem que podemos ter do Superego: um juiz/censor interno a arbitrar o que deve
e o que não deve ser feito (Principio do Dever), e não somente o que deve ou não deve ser
feito (Princípio de Realidade). E é neste sentido que também podemos entender como o
Superego pode muito bem controlar o Ego, inclusive de maneira austera, autoritária e
severa.

Mais uma vez ouçamos Freud: “se considerarmos mais uma vez a origem do
superego, tal como a descrevemos, reconhecemos que ele é resultado de dois fatores
altamente importantes: um de natureza biológica e outro de natureza histórica, a duração
prolongada, no homem, do desamparo e da dependência de sua infância77”. Nesta sua
afirmação é possível compreender a perpetuação da influência dos pais, agora a partir de
dentro do próprio psiquismo humano.

Por tudo acima exposto, podemos resumir em três em funções do Superego, sendo
as duas primeiras inerentes à subestrutura de caráter moral e a última inerente à
subestrutura inerente ao Ego Ideal/ideal de Ego, a saber:

- auto-observação;
- censura;
- cobrança.

75
Vide Avatares da Instância Crítica: supereu entre o isso e o princípio de morte, in:
https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-65642012000300003&script=sci_arttext&tlng=pt.
76
Com vistas a aprofundar o assunto vide: O Modelo Estrutural de Freud e o Cérebro: uma proposta de
integração entre a psicanálise e a neurofisiologia, in: https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0101-
60832010000600005&script=sci_arttext&tlng=pt.
77
O ego e o Id, op. Cit.
CONSCIÊNCIA MORAL

Não confundir a consciência moral com o Superego. Este é descrito como uma
estrutura formada dentro da mente em sua parte inconsciente, enquanto aquele, como a
própria expressão aponta, faz parte da porção consciente do psiquismo, portanto do
Ego78/Self.

Como sabemos, não nascemos com qualquer noção de moral. Somos naturalmente
anômicos. Porém, o ser humano, para se humanizar no sentido social da palavra (o ser
humano é um ser biopsicossocial). O processo de nos tornarmos humanos passa por aquilo
que conhecemos como socialização (primária e secundária). Evidente para que conceitos
morais se enraízem no interior da alma se faz necessário haver um mínimo de estruturação
superegóica na mesma,

Segundo o filósofo e sociólogo alemão Jürgen Habermas “o desenvolvimento moral


é parte do desenvolvimento da personalidade, o qual, por sua vez, é decisivo para a
identidade do eu”. O que quer dizer com isso Habermas? Que a construção da identidade
do eu no psiquismo se processa através de mecanismos de aprendizagem.

Para o psicólogo suíço Jean Piaget o psiquismo imaturo evolui do estágio sensório-
motor por meio de uma função mental conhecida como imitação (a partir dos 2 anos,
aproximadamente), que se completa pelo efeito do que ele chamou de interiorização79.

No curso do adestramento pelo social (pais/família) dos instintos da criança


pequena, vai-se produzindo no interior do psiquismo os limites sócio/morais que
primeiramente lhe surgem heterogeneamente (de fora para dentro). Mantido o processo
de socialização a mente humana vai como quê ficando sensível aos preceitos morais e
éticos que lhe vão sendo introduzidos. Podemos, pois, resumir, a questão em termos da
passagem da anomia para a heteronomia e desta para autonomia80.

O desenvolvimento da moral no interior do psiquismo humano tem no psicólogo


estadunidense Lawrence Kohlberg seu nome mais importante. É dele a Teoria do
Desenvolvimento Moral81, que, segundo o mesmo, pode ser subdividido em três grandes
níveis, que, por sua vez, se subdividem em dois estágios cada um.

Nível 1 - pré-moral: também intitulada de moral pré-convencional, abrange


crianças entre 2 a 6 anos de idade, aproximadamente (1ª infância), Nesta faixa etária as
crianças ainda são muito individualistas e egocêntricas, razão pela qual os preceitos de
certo ou errado é dado pela autoridade (pais) externa. No primeiro estágio a questão da
moralidade para a criança é apenas uma questão de consequência direta, isto é, se será
punida ou não por determinado comportamento. O que o psiquismo infante aqui busca é

78
Ego representacional.
79
Para melhor entendimento de tal dinâmica vide O Desenvolvimento da Criança nos Primeiros anos de
Vida, in: https://acervodigital.unesp.br/bitstream/123456789/224/1/01d11t01.pdf.
80
Nomia vem do grego nomos, que significa lei, regra, norma.
81
Vide Lawrence Kohlberg: ética e educação moral, Moderna, 2002.
obedecer para evitar um castigo. Tal estágio representa uma obediência para não ser
punido.

Já o estágio segundo da moral pré-convencional é aquele em que a criança é


movida pelos seus interesses, no sentido do que ela ganha em obedecer. É uma fase
também reconhecida como hedonismo instrumental ingênuo.

No nível 2 – moralidade convencional: Este período é o período escolar. Já se há


enfoque nas relações interpessoais e suas reciprocidades, ou seja, diminui-se o egoísmo
característico da primeira infância. Descobre-se que agradar o outro é, por sua,
pessoalmente bom e gratificante. E quanto mais o psiquismo amadurece e a criança cresce,
ela atinge o 4º estágio, caracterizado por uma obediência aos deveres e a ordem social;

Nível 3 – pós-convencional: aqui os princípios morais estão estabelecidos no


interior da mente humana. Coincide com o chegar primaveril da adolescência até a adulteza
psíquica. Reconhece-se a natureza abstrata do certo e errado, assim como a separação
entre o indivíduo e a sociedade. Com a recognição (constatação) de que as regras são
arbítrios convencionais, percebe-se o princípio do bem-estar coletivo (ou da maioria) e o
direito do outro.

Em seu estágio mais avançado, o psiquismo moralizado os princípios de justiça e


ética compõem à consciência. O que é certo ou errado é agora baseado não exclusivamente
por cumprimento de regras sociais, mas por princípios de escolha baseados em valores
pessoais, que nem sempre são compatíveis com o que a maioria pensa e julga. Respeita-se
a igualdade entre os humanos, mas também a dignidade e os preceitos individuais. Para
Kohlberg poucos atingem esse nível elevado de consciência moral, embora, em princípio,
todos tenhamos potencial para aqui chegar. Estima-se que cerca de 10-15% das pessoas
atingem a moral pós-convencional em seus estado mais superior82.

Para que um homem possa ser absolutamente intelectual,


tem que ser um pouco imoral.
Fernando Pessoa

82
Para um melhor entendimento e aprofundamento vide Considerações sobre a Educação Moral de
Kohlber, in:
http://www.unoeste.br/site/enepe/2015/suplementos/area/Humanarum/Psicologia/CONSIDERA%C3%
87%C3%95ES%20SOBRE%20A%20EDUCA%C3%87%C3%83O%20MORAL%20DE%20KOHLBERG.pdf,
e Desenvolvimento Moral: de Piaget a Kohlberg, in:
https://periodicos.ufsc.br/index.php/perspectiva%20/article/viewFile/9127/10679.
SOMOS FEITOS DE
SONHOS
Quem olha para fora sonha,
quem olha para dentro desperta.
Carl Jung

FANTASIA

O dramaturgo inglês William Shakespeare escreveu em sua peça A Tempestade “somos


feitos da mesma matéria que os sonhos”. Sim, o ser humano sonha. Sonhar faz parte da nossa
natureza e essência.

Sonhamos porque pensamos. Pensamos porque sonhamos. Aliás, os sonhos vêm


primeiro; o pensamento, enquanto cognitivo/racional, vem depois. Não somos assim tão
sapiens (ao pé-da-letra) no início da vida. Somos fabulares, ou melhor, somos psicologicamente
seres de ilusão e fantasia. Diria que somos homo somniator83 (homem sonhador).

Uma das funções psicológicas básicas do psiquismo humano é a imaginação. Imaginação


é uma capacidade mental que permite representar algo que não está presente ou sequer existe.
Todo ser humano nasce com uma imaginação em plena atividade. Psicologicamente a mente
lactente é pura fantasia, enquanto seu corpo é pura sensação advinda dos sentidos. Lembremos
que a psique em seu estado cru é uma psique somatopsíquica.

Considerando que as necessidades fisiológicas do bebê são atendidas pela mãe (objeto
cuidador), podemos também entender que vem dessa relação (que o neonato ainda é incapaz
de perceber) a mola propulsora da imaginação. Acredito que também não soaria um absoluto

83
Somniator em grego é sonhador.
disparate afirmar aqui que a origem dos sentimentos têm como base a mãe, aliás, a relação
bebê-mãe.

A psicanalista francesa Marie Bonaparte84 chamava a mãe de criatura-abrigo e criatura-


nutrição, e que vinha da nossa relação com essa mãe primordial todas as nossas primeiras
respostas afetivas. O filósofo francês Gaston Bachelard, inclusive, afirmava que o amor-filiar era
o primeiro princípio ativo e força impulsionadora e inesgotável da imaginação85.

Não há atividade imaginativa que não seja fantasiosa. A relação entre fantasia e
imaginação é tão intrínseca que quase fica diferenciar uma da outra.

A fantasia só pode existir na imaginação de quem fantasia. Do ponto de vista


psicanalítico a fantasia seria algo como um recurso defensivo da mente, que criaria uma situação
ou mundo irreal e paralelo à realidade. A fantasia, neste sentido, tem a função de criar uma
satisfação ilusória, satisfação esta que a realidade não está, ou não pode, satisfazer.

Claro, basta se auto observar, para perceber que o fantasiar nos fugir ou mudar o mundo
em que estamos vivendo. Todavia, se a fantasia tem esse “poder” psicológico também o tem
para o lado mais negativo possível, ou seja, nossas fantasias podem nos levar a imaginar o
melhor dos mundos, mas, por outro lado, pode nos levar a imaginar o pior dos mundos. Nem
todo sonho é tão sonho assim. Muitos sonhos podem ser pesadelos. A mesma mente que produz
príncipes encantados também produz bichos-papões.

Se através do ato de fantasiar construímos mundos paralelos, o psiquismo primário


acredita neles, pois é, até então, o único mundo que ele conhece. Um mundo de puras
percepções corpóreas e somáticas. Um mundo sentido pelas sensações e pelos movimentos.
Um mundo onde nada mais há, somente a psique-soma, nos dizeres de Winnicott.

A mente humana, em seu estado de funcionamento inicial, incapaz ainda de diferencias


mundo interno e mundo externo, vive psicologicamente o que se experimenta no nível
somático, ou, como descreveu Winnicott, “a elaboração imaginativa de partes, sentimentos e
funções somáticas”. Destarte, podemos inferir que a vida psíquica é no começo uma vida
psicossomática, visto a psique viver com base no soma (corpo).

Como a mente primitivamente falando não consegue diferenciar-se (mundo interno e


mundo externo), não há para ela ambiente, mas sim uma unidade fusional psique-ambiente.
Isto é mais uma representação do funcionamento originário mental, pois a psique sequer se
representa como uma unicidade, pois no início ela é não-integrada. Aos poucos tais vivências
fragmentadas e desagregadas vão se aglutinando e se consolidando em uma psique
inteiramente fantasiosa e narcisista, impregnada de ilusões onipotentes. É como se a mente
fosse se percebendo um ser, porém, um ser único em uma espécie de solidão existencial.
Lembremos da concepção winnicottiana de que o ser humano emerge da solidão, cuja estado
de absoluta solidão coincide com o estado psicofisiológico do bebê de absoluta dependência de
um cuidador. É uma solidão psicologicamente fictícia, visto que, na realidade, existir a presença
de outro ser humano que lhe fornece lhe guarnece de cuidados e que lhe atende em suas mais
necessárias necessidades básicas e vitais.

84
Bisneta de Napoleão Bonaparte e contemporânea de Freud (ela viveu entre os anos 1882-1962), em
muito contribuiu, inclusive financeiramente, para a popularização da Psicanálise, além de ter ajudado
Freud e sua família a fugirem da Alemanha nazista.
85
Apud, Pugliese, R., Bebê Aquático, Appris, 2017.
Mesmo com o progressivo amadurecimento da mente, sua capacidade fantasiosa
permanece e nos acompanhará vida afora. Podemos, inclusive, até afirmar que o psiquismo
humano é tendenciosamente escapista. Em si isso não é de todo ruim, afinal a realidade em sua
totalidade provavelmente nos seria insuportável. Necessitamos de um pouco de ilusão, de
esperança, de fé, de crenças... enfim, se sonhos. Somos feitos da mesma matéria de que são
feitos os sonhos.

Como citado, a fantasia nos ajuda a fugir do mundo real, como ele é, para mundos
imaginários e paralelos. É uma defesa mental. Precisamos de algum consolo psíquicos, de
satisfações ilusórias. Como igualmente afirmava Freud, os seres humanos “não podem subsistir
da escassa satisfação que podem tirar da realidade”.

Evidentemente o que acontece com o amadurecer da psique é que ela, embora


produtora de inúmeros desejos imaginosos, consegue distinguir e diferencias, em grande parte,
fantasia de realidade. Sob a égide do Princípio de Realidade, a alma humana entende que sonhar
acordado não é a mesma coisa de acreditar como realidade o que ela mesma está fantasiando.
Caso os devaneios passem a se misturar com a realidade de forma massiva e delirante, estamos,
pois, frente a um grave quadro psicopatológico.

Ousarei dizer que um pouco de mistura (fantasia-realidade) existe psicologicamente,


porém, dependendo do grau e da intensidade, isso não caracterizaria uma doença mental.
Superstições são exemplos disso. Retomando, mas uma vez Freud, fantasiar é uma reserva
natural que a mente humana preserva em suas características naturais. Afinal, o que seria da
arte sem a fantasia e a imaginação?

A questão agora a se pensar é se o psiquismo é capaz de fantasiar sem que a parte


consciente se dê conta. Sim, tudo indica que sim. O fantasiar nos é inato, e se a mente ao se
desenvolver se divide em consciente e inconsciente, teremos também de ter fantasias
inconscientes. São fantasias resultantes dos processos primários mentais. A psicanalista inglesa,
contemporânea da também psicanalista inglesa Melanie Klein, Susan Isaacs, proferiu que nada
existe no psiquismo humano que não tenha sua base nos processos mentais primários
inconscientes86.

Se inicialmente o funcionamento fantasmático (fantasiar) é experimentadas por meio


das sensações corpóreas, com o desenvolvimento do psiquismo as fantasias passam a assumir
formas de imagens psíquicas e também passam a ser expressas psicologicamente associadas às
palavras e os Processo Secundário de Pensamento. Elas se transformam, assim, em
representações mentais conscientes.

Fantasia, portanto, é o que a nossa mente cria como oposto da realidade. Ela pode tanto
criar um outro mundo totalmente diferente do real, como distorcer aspectos da realidade para
adequar a satisfações frustradas, embora, às vezes, a fantasia possa tomar formas psíquicas de
dramas, pesadelos e medos, que de fato seria inexistentes na ausência da fantasia. Fantasias,
por fim, é uma atividade mental inerente ao ser humano, uma atividade imaginativa inata e,

86
Para um melhor aprofundamento do tema, vide: Verdade e Fantasia em Freud, in:
https://www.scielo.br/pdf/agora/v14n1/a04v14n1.pdf, Melanie Klein e as Fantasias Inconscientes, in:
http://pepsic.bvsalud.org/pdf/wep/v2n2/v2n2a05.pdf e Fantasias Freudianas: aspectos centrais e
possível aproximação com o conceito de esquemas de Aaron Beck, in:
https://www.scielo.br/pdf/pusf/v18n2/v18n2a15.pdf.
muitas vezes, até, necessária e suavizadora à árdua experiência de viver e ter consciência do
viver e de sua finitude.

DESEJO

Desejo é falta, dizia Platão. Se desejo é falta, então somos seres de desejos, afinal somos
insuficientes, não podemos tudo e nem sequer somos tudo. Queremos ser perfeitos, mas não
somos. Queremos ser onipotentes, mas não somos. Queremos ser o centro do mundo, mas não
somos. Queremos tudo, mas não podemos. Queremos o que queremos na exata hora que
queremos, mas não conseguimos. Decididamente somos narcísicos frustrados.

O psiquismo humano tem carências psíquicas e por isso tem apetência. Por ter fome,
tem vontade e por isso tem carências e querências. É da nossa essência ir além dos instintos
naturais. Nossa substância humana é feita de sonhos e desejos.

O desejo humano é mais que apenas vontade. O desejo é em nós uma força que nos
propulsiona, nos direciona rumo a. Desejamos o que nos falta. E nos falta tantas coisas.

A fonte de nossos desejos é nossa incompletude. E neste sentido nossa alma é


insaciavelmente desejante. A fonte de onde brotam nossos desejos é tão inesgotável e
insatisfazível que me vejo pensando que no fundo mais escondido de nossas interioridades
anímicas o que mais desejamos é o próprio ato de desejar.

A mente nos ilude. A mente nos mente. Ela nos faz acreditar que alcançando a realização
de um dado desejo extinguir-se-á a tensão que ele nos provoca por dentro. Ledo engano. O
filósofo alemão Arthur Schopenhauer já no século XIX, em sua principal obra O Mundo como
Vontade e Representação87, escreveu que “o desejo, por sua natureza, é dor: sua realização traz
rapidamente a saciedade; a posse mata todo o encanto; o desejo ou a necessidade de novo se
apresentam sob nova forma: senão, é o nada, é o vazio, é o tédio que chega”.
Sim, necessitamos desejar para nos sentirmos vivaz. Embora o desejo nos inquiete, ele
nos anima, motiva-nos e nos impulsiona. Sim, desejo é sinônimo de impulso. E todo impulso é
por natureza ânsia. Baseado no Princípio do Prazer, o impulso é imediatista, por isso tem como
sinonímia palavras como rasgo, pulsão, rompante.

87
Contraponto, 2001.
Para Schopenhauer o humano oscila entre o sofrimento da necessidade e do desejo, e
o tédio que a satisfação da necessidade e do desejo nos provoca. Por isso, dentro da ótica
proposta pelo pensador, a mente precisa estar sempre desejando, pra fugir da infelicidade do
vazio, e se contentando com momentos passageiros de felicidade.

Freud, também alemão, bebeu dessa fonte de sabedoria88. Talvez sem Schopenhauer
Freud não chegasse ao conceito de inconsciente, ou talvez demorasse mais a percebê-lo. Talvez.
O que sabemos, contudo, é que Schopenhauer, muito antes de Freud, já nos falava da relação
entre o sonhar e a realidade. Para ele a vida é como se fosse um prolongado sonho, apenas
descontinuado quando dormimos e a trocamos por outros sonhos. Como diz o filósofo, o mundo
é uma representação que a mente faz dele (“o mundo é a minha representação”), por isso
refletiu: “nós temos sonhos; não é talvez toda a vida um sonho? Mais precisamente: existe um
critério seguro para distinguir sonho e realidade, fantasmas e objetos reais”.

Por ser o desejo (impulso) essencialmente hedonista, Freud o destaca como


intrinsicamente ligado à sexualidade (prazer) e ao infantil (Princípio do Prazer). Uma criança, um
psiquismo imaturo, é naturalmente um sujeito de desejo. Quanto mais imaturo for o psiquismo,
mais desejante é o sujeito, aliás, melhor dizer que é um sujeito sujeitado ao imperativo do
desejo.

A pergunta que se impõe agora é: existem desejos inconscientes? Resposta: sim. Nem
todo desejo alcança à superfície mental. Bem como é possível haver desejos que foram
expelidos da consciência, principalmente por questões morais (Superego).

Psicologicamente um desejo é uma potência criativa, isto é, pode se realizar (evidente


que nem todos desejos são potencialmente realizáveis assim, como, por exemplo, desejar ser
eterno ou ir até Júpiter). Dependendo do desejo, ele pode ser prejudicial ou danoso tanto ao
psiquismo como ao corpo ou a pessoal social do sujeito desejante. Por isso os desejos precisam
ser regulados, controlados e, muitas vezes, contidos.

Desejos que ameacem o equilíbrio psíquico, como, por exemplo, que afrontem a moral
do indivíduo, podem ser rechaçados da consciência pela força imperativa do Superego, ou, até
mesmo, impedidos de chegarem à consciência. Na linguagem da Psicanálise tal mecanismo
defensivo é conhecido como recalque.

Um impulso, pulsão ou desejo só emerge para o nível consciente (o Ego é a parte


estruturação da mente que lida com o mundo externo, isto é, a parte da mente que executa os
impulsos) através da representação psíquica do mesmo. Segundo Garcia-Rosa89 o representante
psíquico da pulsão (desejo) engloba o componente ideativo (palavra) e o componente afetivo
(expressão qualitativa da energia pulsional) 90.

Partindo do pressuposto freudiano que o afeto não pode ser inconsciente, apenas o que
pode ser recalcado, portanto, é o represente psíquico ideativo. Enfatizando: o recalcamento
recai somente sobre a ideia e não sobre o afeto (energia psíquica). A energia, então, desligada

88
Para melhor entendimento vide Apresentação: a presença de schopenhaueriana no pensamento de
Freud, in: http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0009-67252015000100009.
89
Freud e o Inconsciente, op. cit.
90
Segundo o psicanalista francês Jacques Lacan “a pulsão nunca se dá por si mesma, nem a nível
consciente, nem a nível inconsciente; ela só é conhecida pelos seus representantes: o representante
ideativo (vorstellung) e o afeto (affekt)”.
do representante ideativo se deslocaria ou para outro representante ideativo ou para o próprio
corpo (somatização)91.

Permitam-me uma metáfora simplista sobre a questão: pensem em uma teatro


hermeticamente fechado e escuro, sendo que o palco é apenas iluminado por um foco de luz
que acompanha cada ator (personagem) em cena. Quando o foco de luz enfoca um ator os
demais deixam de serem vistos. Pois é. Pensem agora que o teatro é a mente humana e o palco
a parte consciente dela. Cada ator é uma ideia (representante ideativo psíquico) e que o foco de
luz seja a energia psíquica que o ilumina (representante afetivo). Quando se ilumina uma ideia
(ator) ele fica visível à consciência, e os demais atores não (pré-consciente). Porém, descolando-
se o faixo do foco de luz de um ator a outro este fica iluminado (visível) e o primeiro agora não
mais, isto é, o primeiro ator antes iluminado estava na consciência e o outro (e os demais)
estavam no pré-consciente. Quando um outro ator (ideia/pensamento) é ficado fica ele agora
consciente e o outro (assim como os demais) volta a à pré-consciência. E assim se faz a dinâmica
do pensamento consciente. Dois pensamentos (ideias) não ocupam o mesmo lugar no mesmo e
exato instante (mesmo que o deslocamento de um pensamento a outro seja psiquicamente seja
em um átimo de tempo que nem notamos). Todavia, para que uma ideia seja recalcada (expulsa
da consciência e do pré-consciente) ele deverá ser expulsa do palco, isto é, para a coxia92. Assim,
fora do palco, mas não do teatro (psiquismo), o foco de luz não consegue alcançá-la. A
coxia/bastidores, neste exemplo, representa o inconsciente.

Sistema Consciente-Pré-consciente Sistema Inconsciente

Consciente

A B

C D G

E F

Pré-consciente
Figura 1: G (ideia) ao ser excluído do sistema consciente-pré-consciente foi expulso para o sistema inconsciente.

Um desejo sem força, ou seja, um desejo sem emoção, é um desejo anoréxico. Aliás,
nem sequer deveria ser chamado de desejo no sentido pulsional do mesmo. Podemos, então,
chamá-lo de apenas devaneios. Desejo, na acepção de impulso/rompante, é um estado interior
de tensão, que, por sua, vez acompanha-se de emoção. Afinal, a própria raiz etimológica da
palavra emoção vem do latim ex movere (mover para fora). Um impulso (desejo) quer se

91
Para melhor abrangência do assunto e compreensão vide Freud, S. As Neuropsicoses de Defesa, Obras
Completas, vol. III, Imago, 1969. Disponível em PDF in: https://docero.com.br/doc/snevve.
92
Coxia é um lugar situado dentro da caixa teatral, mas fora do palco. Também conhecida como
bastidores.
expressar em ação, isto é, em movimento, para fora do psiquismo. O desejo não vem sozinho93.
Ele de alguma forma vem acompanhado de alguma emoção (ânsia, afã) ou pode gerar emoções
(medo, ansiedade). Um desejo pode, por si mesmo, ser uma reação, uma resposta a um dado
estímulo, como, por exemplo, quando alguém nos provoca raiva e temos desejo de esmurrá-lo
ou até de matá-lo94. Por isso, conscientemente, os desejos (que chegam até nossa consciência)
precisam ser controlados.

A propósito de cada desejo deve-se colocar a questão:


'Que vantagem resultará se eu não o satisfizer?'.
Epicuro95

MEMÓRIA

Sem memória não há sonhos humanos. Sem sonhos não seríamos humanos, afinal
somos feitos da mesma matéria de que são feitos os sonhos.

Memória é a capacidade que temos de armazenar psiquicamente informações, bem


como de recuperá-las. É a forma como o cérebro retém dados advindos das experiências vividas
e/ou sentidas. É uma das funções mais complexas do nosso organismo.

A memória não é somente constituída de lembranças, mas também de silêncios e


esquecimentos. Não é uma função cerebral apenas dos humanos, mas somos animais que temos
à nossa disposição quase 100 bilhões de neurônios para processá-la. Tal capacidade cognitiva
compartilhada por muitos animais teve e tem uma função adaptativa à sobrevivência e à
evolução. Em sua função evolutiva, a memória determina quem somos, porque somos e como
nos comportamos. Graças a tal habilidade cognitiva existimos, apesar de tantas intempéries,
predadores e adversidades da vida ancestral, e atual. Segundo o psicólogo e professor da
Universidade Federal de Ciências da Saúde (RS) Alcyr Alves de Oliveira, em seu livro, Memória,

93
Desejo/impulso/motivação e emoção são e estão interligados.
94
Por isso é possível classificar os desejos em: desejos envolvidos com emoções, e desejos decorrentes
de emoções.
95
Filósofo grego (341-270 a.C.).
Cognição e Comportamento96, para quem a memória representa a capacidade de repetir a
execução de um comportamento, “um animal capaz de lembrar de uma estratégia de caça, ou
de repetir um desempenho ou de lembrar de que uma determinada atividade poderá lhe salvar
a vida estará levando vantagens de sobrevivência sobre aqueles que não são capazes de fazer o
mesmo”.

A qualidade da memória humana, que é multifacetada, é a única entre todos os animais


que é capaz de lembrar e entender as palavras (memória semântica). Como diz o autor
supracitado, somos a única espécie que possui um sistema linguístico capaz de descrever e
classificar coisas, objetos e entes, reais e/ou imaginárias.

É comum os neurocientistas classificarem a memória em declarativa e não-declarativa.


A memória declarativa, também denominada de explícita, é a que armazena as lembranças e
que pode evocá-las conscientemente. Já a memória não-declarativa (procedural), chamada de
implícita, está relacionada aos procedimentos, que se manifesta nas habilidades motoras, como,
por exemplo, amarrar sapato, escovar os dentes, dirigir um carro.

Memória declarativa97 é uma memória de curto prazo, bem como pode ser evocada
conscientemente, como, por exemplo, lembrar o nome de alguém, uma data, um evento, etc.
Por sua vez, a não-declarativa não envolve a recordação consciente. Trata-se de uma memória
de longo prazo, e ela se manifesta no nossos mínimos gestos, comportamentais e detalhes
atitudinais.

Porém, a memória evocativa não é tão confiável assim. Dizia Lacan, “vocês não podem
nunca estar certos de que uma lembrança não é uma lembrança encobridora. Quer dizer, uma
lembrança que bloqueia o caminho do que posso situar no inconsciente, isto é, a presença - a
ferida - da linguagem. Nós não sabemos nunca; uma lembrança, tal como ela é imaginariamente
revivida - o que é uma lembrança encobridora - é sempre suspeita”.

É muitas vezes difícil para nós duvidar da nossa memória, afinal são as lembranças
biográficas da nossa vida. Não é porque ela nos ilude que ela esteja nos mentindo. Nós
realmente acreditamos na evocação, pois foi assim que a registramos. Quando vivenciamos algo
que se fixa em nossa memória tal experiência é impregnada pelas emoções do instante, por
nossas fantasias, desejos, ângulo de percepção e, até, pela nossa personalidade, faixa etária e
capacidade cognitiva à época.

Memória tem lacunas. Freud reconheceu isso. A mente pode muito bem preencher tais
lacunas com lembranças irreais e/ou distorcidas. Nossa imaginação é fértil, podendo facilmente
se misturar às nossas recordações.

Considerando que quando no presente resgatamos uma lembrança do passado, o que


estamos fazendo é evocando a posteriori98 algo que aconteceu a priori99. Lembramos hoje com
o psiquismo amadurecido sobre alguma coisa que nos aconteceu quando o psiquismo era
infantil (imaturo). É como se olhássemos pela janela memorial da alma com olhares adultos o
que vivenciamos com olhares meninos e crianças. Se somos feitos da mesma matéria que são

96
Casa do Psicólogo, 2007.
97
Na memória declarativa também se distingue a memória episódica e a memória semântica. Para tal vide
Eysenck, M. e Keane Mark, Manual de Psicologia Cognitiva, 7ª edição, Artmed, 2017, e o artigo Memória, in:
https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-79722015000400017.
98
Termo em latim que significa “depois”, “seguinte”.
99
Termo em latim eu significa “antes”, “anterior”.
feitos os sonhos, nossa memória também, isto é, quanto mais remota for a reminiscência mais
ela é uma mescla de realidade, devaneios e fantasias. Vivemos lendo a realidade contaminados
por nossa intrínseca qualidade onírica100.

A memória guardará o que valer a pena.


A memória sabe de mim mais que eu;
e ela não perde o que merece ser salvo.
Eduardo Galeano101

100
Para aprofundamentos vide: Sobre a Lembrança: uma abordagem psicanalítica dos limites estruturais
da memória, in: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-79721999000300006, e
Paradoxos da Memória em Psicanálise, in:
https://www.researchgate.net/publication/335647216_Paradoxos_da_memoria_em_psicanalise_The_p
aradoxes_of_memory_in_psychoanalysis.
101
Jornalista e escritor uruguaio (1940-2015).
A GRAMÁTICA DAS
EMOÇÕES
Dar a cada emoção uma personalidade,
a cada estado de alma uma alma.
Bernardo Soares102

AFETOS PRIMÁRIOS

Antes do surgimento da Psicologia como disciplina científica que estudo os fenômenos


psíquicos e os comportamentos humanos, a Filosofia já se dedicava a analisar e refletir sobre os
afetos humanos.

Filosoficamente afeto é um estado da alma, ou seja, um sentimento. Etimologicamente


vem do particípio passado do verbo latino afficere (affectus), que significa disposição da alma,
sentimento, vontade. Interessante observar que também é raiz de onde se origina o verbo afetar
e o termo afecção.

No século XVII o filósofo holandês Baruch Spinoza compreendeu que todos os afetos
provêm de três afetos primários; desejo, alegria e tristeza. Para ele a vida afetiva se origina do
conatus103, que é potência de agir, tendência inata à autoconservação. Segundo Spinoza essa
potência é tanto corpórea quanto mental (no corpo é apetite, na alma desejo)104. Assim sendo,
os afetos são a causa da ação (comportamento)105.

A alegria é o afeto com conatus elevado. Já a tristeza, o afeto com potência baixa. E o
desejo é o determinante da maneira de agir e existir. Da combinação dos três afetos primários
(analogamente às cores primárias) temos os demais afetos (raiva, medo, amor, aversão, ciúme,
inveja, culpa, arrependimento, frustração, esperança, gratidão, coragem, etc.)106.

Do ponto de vista da Psicologia Moderna, afeto é uma palavra que abrange tendência,
paixão, emoção, sentimento.

Sentimento e emoção não são sinônimos. Emoção é hoje definida como um conjunto de
respostas neuroquímicas que se manifesta no cérebro em reação a um estímulo externo.

102
Heterônimo do poeta português FernandoPessoa.
103
Em latim significa impulso, esforço, tendência.
104
Em Spinoza não há dicotomia entre corpo e mente.
105
O leitor aqui atento terá notado a relação entre conatus de Spinoza e pulsão em Freud.
106
Para melhor entendimento, vide Ornellas, L.S., Maria, Afetos: o que queres de mim?, Paco editorial,
2018.
Sentimento, em contrapartida, também é uma resposta, porém uma resposta à emoção, isto é,
como a pessoa se sente quanto experimenta uma emoção.

As emoções básicas, inatas, são raiva, medo (ansiedade), alegria e tristeza. Derivam-se
dos circuitos neurofisiológicos ligados ao sistema límbico, com ênfase na amígdala107. Já os
sentimentos estão relacionados ao neocórtex, que funciona como uma espécie “gestor
emocional”. Enquanto o sistema límbico desencadeia uma resposta emocional, o neocórtex
“segura”, “controla”, “regula” o impulso emocional para que seja mais moderado e adequado.

Considerando, pois, que os sentimentos são entendimentos que damos ao que nos
emociona, então, também podemos dizer que os sentimentos são experiências subjetivas das
emoções108. Damásio distingue sentimento de emoção considerando que o sentimento é um
afeto orientado ao interior (experiência subjetiva) e emoção é um afeto é voltado ao exterior
(ex movere)109.

Vejamos agora, suscintamente, as emoções básicas110.

Medo: estado afetivo provoca por uma ameaça de perigo. O medo é uma emoção de
alerta, que nos leva a movimentos tipo fuga-ataque111. Por estar ligado à vida (sobrevivência) p
medo é fundamental, pois antecipa o perigo. Embora na classificação usual de afetos positivo e
negativos o medo esteja no grupamento negativo (não se trata de um afeto prazeroso), por
outro lado é um afeto positivo enquanto relacionado a autopreservação. Todavia há medos reais
e medos irreais. Os medos irreais estão na base das fobias neuróticas e patologias de cunho
paranoide e evitativas.

Ansiedade é medo, mas tem lá sua diferença. Como emoção o medo é abrupto
desencadeado por algum evento do mundo externo. Medo é estado de tensão e é acompanhado
de alterações fisiológicas (elevação do batimento cardíaco, por exemplo). Ansiedade também.
Se o medo é um sinal de alerta e resposta frente a um perigo ou ameaça, a ansiedade é uma
antecipação, isto é, dispara antes da ameaça ocorrer. Por isso ansiedade é uma apreensão, uma
expectativa.

Raiva: necessitamos de agressividade para sobreviver. Ao menos era assim com nossos
ancestrais. A raiva é muitas vezes em nós provocada devida a uma frustração, a uma
contrariedade. Ou seja, quando nossos desejos não se realizam.
A agressividade nos é constitucional, além de bastante necessária à nossa auto
conservação. O psiquiatra e psicanalista escocês Ronald Fairbairn, um dos nomes mais
importantes da Teoria da Relações Objetais na primeira metade do século XX, percebeu que a
agressividade é a resposta que o psiquismo dá à frustração que o dado objeto externo o
submete. Para Fairbairn a energia psíquica tensiona em busca de descarga e para tanto requer
um objeto externo onde possa descarregar sua pulão ou parte dela. Neste sentido, o objeto

107
Parte da estrutura cerebral, que se localiza no interior dos lóbulos temporais, que processa as reações
emocionais.
108
Para maior abrangência do assunto vide: Psicologia das Emoções: uma proposta integrativa para
compreender a expressão emocional, in: https://www.scielo.br/pdf/pusf/v20n1/1413-8271-pusf-20-01-
00153.pdf.
109
Vide o Erro de Descartes: emoção, razão e o cérebro humano, Companhia de Bolso, 2009.
110
Há quem inclua outros afetos no conjunto das emoções básicas, tais como a surpresa e o nojo.
111
Há ainda um terceiro movimento: paralização (como se “fingisse de morto”).
externo é importante e fundamental auxiliar para o objetivo psíquico de liberar energia (desejo),
e, com isso, diminuir certo estado de tensão interna à mente humana112.

Alegria: tem-se alegria quando se sente algum prazer. Do ponto de vista físico (orgânico)
a alegria é uma emoção que incentiva a ação, bem como um afeto que atua como recompensa.
Por isso, a alegria está na base da motivação, ou seja, o que se deseja é a alegria que o objetivo
alcançado nos proporciona. Neuroquimicamente ocorre uma maior liberação de dopamina e
endorfinas.

Tristeza: o oposto da alegria. É caracterizada por uma queda do estanho de ânimo, bem
como por uma redução significativa da atividade cognitiva e comportamental. Há, então, de se
perguntar: qual a função evolutiva da tristeza para ela nos ser uma emoção básica? Resposta:
ajuda a recompor energia, ou seja, em situações onde não há como agir, força-nos a poupar
recursos e evita-nos que cometemos esforços e dispêndios de energia desnecessários. Em
termos mais simples: impede dar murro em ponta de faca113.
A tristeza também uma função psicológica autoprotetora, pois chama a atenção da
pessoa para um dado estimulo ou situação danoso, auxiliando, assim, a evitar uma conjuntura
potencialmente geradora de depressão.

AFETOS SECUNDÁRIOS

Afetos secundários são aqueles que desenvolvemos depois dos primários. Não são
afetos/emoções inatas. Não nascemos com eles, embora tenhamos potencial e tendência a
desenvolvê-los. Eles são praticamente inevitáveis, porém sua presença, ausência, grau e
intensidade são influenciados e determinados pela história de vida do sujeito em suas relações
interpessoais. Por essa razão, os afetos secundários são igualmente conhecidos como afetos
sociais.

Do ponto de vista dos afetos as emoções primárias são mais impactantes, abruptas,
porém passageiras, isto é, duram menos tempo; ao menos, menos tempo que os afetos
secundários, pois estes tendem a serem mais prolongados, vide, por exemplo, o amor e o rancor.
Em um momento de raiva intensa podemos querer partir pra cima de alguém com vontade de
esganá-lo, todavia não vamos ficar passando dias ou meses com essa mesma raiva e sua vontade
de trucidar o outro. Já o sentimento de vingança pode levar dias, meses, anos, até a vida inteira
consumindo por dentro uma pessoa.

112
Para melhor compreensão vide Bleichmar, Noberto M. e Bleichmar, Célia L., A Psicanálise Depois de
Freud, Artmed, 1992.
113
Expressão popular que significa “lutar contra uma coisa impossível de ser lutada” ou “insistir em algo
que não vai conseguir”.
São vários e muitos os sentimentos que podemos e vamos sentir na vida. Uns mais,
outros menos. A lista é imensa, e inclui afetos positivos e negativos, tais como: medo, raiva,
alegria e tristeza (não como emoções, mas como o sentir dessas emoções), ciúme, ternura,
inveja, amizade, cobiça, confiança, desconfiança, esperança, desesperança, amor, culpa,
gratidão, vaidade, bem-estar (felicidade), rancor, entusiasmo, vergonha, paixão, preocupação,
admiração, angústia, tranquilidade, pudor, adoração, saudade, júbilo, tédio, alívio, espanto,
otimismo, pessimismo, coragem, covardia, contentamento, desprezo, compaixão, vingança,
curiosidade, obrigação, bondade, solidão, respeito, ódio, solidariedade, mágoa, satisfação,
egoísmo etc. Muitos até se parecem, inclusive se fazem acompanhar de outros sentimentos.
Todavia cada sentimento é um sentimento com qualidade diferente entre si, sútil ou não.
Provavelmente um sentimento nunca se faz sozinho, isto é, é resultado de uma combinação de
vários outros. Todavia, observando melhor e mais agudamente os sentimentos humanos,
verifica-se que por detrás há sempre, de alguma maneira, uma emoção básica, como, por
exemplo, por detrás da vergonha existe medo (medo de ser humilhado, rejeitado,
ridicularizado), assim como por detrás da inveja, da mágoa, do rancor e da vingança existe raiva.
Já por trás do júbilo e do contentamento existe alegria; e no fundo da saudade e da nostalgia
existe algum grau de tristeza. E na base disso tudo encontra-se uma boa autoestima ou uma
baixa autoestima, às vezes tão alta que se transforma em euforia, ou tão baixa que se transverte
em depressão.

Devido ao pequeno espaço que em que o presente texto se desenvolve, destacaremos,


no momento, tão somente o sentimento de culpa, visto ele ter uma importância dinâmica
fundamental na forma e maneira que se arquiteta a alma humana, Não que os outros
sentimentos não tenham sua monta e relevância, mas, decididamente, a culpa é um sentimento,
embora denominado de secundário, tão influente no interior e no comportamento humanos,
que, diria, equivale-se em vulto e dimensão às emoções básicas e primárias. Do sentimento de
culpa – assim como o medo, a raiva, a alegria e a tristeza – desdobram-se vários outros afetos
secundários que a ele se interligam. Vamos, pois, à culpa, contudo, não a culpa como a
conhecemos, isto é, no sentido de sentimento subjetivo que se manifesta à consciência quando
alguém avalia moralmente seus atos de maneira negativa, mas a culpa que a consciência não se
dá conta, comumente denominada de culpa inconsciente.

CULPA INCONSCIENTE

Não existe sentimento de culpa no principiar da vida psíquica. Não nascemos com tal
afeto. Um neonato e um bebê não sentem culpa. A culpa (vida capítulo Moralização da Alma)
somente vai se formar no interior da psique humana com a consolidação de uma estrutura
psíquica que convencionamos chamar de Superego.
Do ponto de vista estrutural o sentimento de culpa advém da tensão entre o Superego
e o Ego. Todavia essa culpa resultante da pressão do Superego sobre o Ego é o que conhecemos
como culpa inconsciente114, visto que, teoricamente, o Superego é entendido como uma
instância psíquica inconsciente. Sento um sentimento que não se sente (por ser inconsciente ao
Ego consciente), igualmente a instância consciente da mente (Ego representacional/Self) não
tem conhecimento da necessidade de punição que o Superego imprime devido à culpa. Tal
exigência de castigo, por sua vez, se exprime no comportamento, geralmente autodestrutivo ou
auto penalizante.

Para o psicanalista Franz Alexander de origem húngara Franz Alexander um dos


fundadores da criminologia psicanalítica em meados do século XX, a “culpa inconsciente”
manifesta-se em uma espécie de constante desconforto que a pessoa tem consigo própria. É
como se sua mente dissesse a si mesma: “eu não sou uma pessoa boa, por isso mereço ser
castigada”.

Mais do que uma culpa proveniente pela pessoa ter feito algo errado (isso é culpa
consciente/consciência moral), é uma culpa originada da hipercrítica do Superego em suas
subestruturas narcisistas, mais precisamente do Ideal de Ego. É comum chamarmos, frente à tal
ocorrência, o Superego de sádico, devido a sua opressora exigência de perfeição, agressividade
esta advinda dos precursores idealizados do Superego. Trata-se, assim, de um poder primitivo,
implacável e cruel em suas demandas de onipotência narcísica. Podemos ver um exemplo da
inclemência superegóica em casos, por exemplo, de transtornos obsessivos-compulsivos115.

Teoricamente, contudo, a ideia de afeto inconsciente é questionável no campo da


Psicanálise, como podemos ver em Freud e o Inconsciente, de Luiz Garcia-Roza116. Porém,
filigranas teóricas à parte, o conceito de “culpa inconsciente” tem-se mostrado de muito
utilidade prática e clínica. Freud, por sua vez, deixa aberto, em suas elucubrações sobre o tema,
a discussão, considerando que a culpa surgida do remorso por uma ação má é consciente,
enquanto que a culpa derivada de um impulso (desejo) mau pode permanecer inconsciente.
Observem que uma coisa é a ação, a outro é o desejo.

Fiquemos, então, no momento com a seguinte solução: mesmo que não haja um
sentimento inconsciente (no caso a culpa), o Superego pode imprimir castigo ao Ego só pela
possibilidade de ter “pensado” (desejado). Embora tal “pensamento” (desejo) seja à parte
consciente da mente recalcado ou reprimido, interiormente o Superego “sabe” de tal desejo
que sequer o Ego consciente não sabe. Permitam-me, aqui, associar com um ditado popular que
diz escreveu não leu, o pau comeu. Trata-se de uma culpa não agida, ou seja, de uma culpa
desejada. Um desejo que não chegou à luz do mundo externo; que ficou reprimido nos porões
do psiquismo humano por ser demais repreensível pela moral ditada pelo Superego, e,
consequentemente, por demais insuportável ao Ego. A mente se defende de tais desejos
(excessivamente promíscuos, perversos, violentos ou incestuosos) recalcando-os e com eles
também a culpa que o Ego, então, não sentirá. O que fica de tal operação psíquica, é uma forte

114
Para melhor entendimento, vide: Sentimento de Culpa na Obra Freudiana: universal e inconsciente,
in: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-65642011000300011, e Sentimento
de Culpa e Superego: reflexões sobre o problema da moralidade na teoria freudiana, capítulo do livro
Culpa e Laço Social: possibilidades e limites, disponível in:
https://psiligapsicanalise.files.wordpress.com/2014/09/c3a2ngela-b-do-rosc3a1rio-e-jacqueline-de-o-
moreira-orgs-culpa-e-lac3a7o-social-possibilidades-e-limites.pdf
115
Vide: A Ferocidade da Culpa na Neurose Obsessiva: do desamparo à angústia moral, in:
https://www.redalyc.org/jatsRepo/2871/287142227005/html/index.html
116
Op. cit.
demanda vinda do inconsciente (onde o desejo e sua decorrente culpa estão contidos) por
punição e castigo. E, assim, sem se aperceber se exporá a riscos desnecessários e/ou transladará
o pecado ou crime que não fez (reprimido/recalcado) para transgressões secundárias que
possam gerar alguma culpa a ser sentida.

Voltemos, pois, a metáfora da “culpa inconsciente117”. Ela contribui a entender a


dinâmica de certos quadros depressivos. Devido a severidade do Superego, no caso da
melancolia, além de rigoroso e austero, o Superego demonstra-se bastante forte, mais forte,
bem mais forte, que o Ego. Se o Superego e o Ego fossem pessoas, diríamos que o Superego
descarrega sua ira118 no coitado do Ego que fragilmente pouco ou quase nada consegue se
defender119. Sobre tal psicodinâmica é introdutório e basilar o texto Luto e Melancolia120 de
Freud121.

Trata-se, portanto, não de uma culpa por atos delituosos, mas sim uma culpa por não se
corresponder internamente o Idea de Ego. É como se a mente se culpasse por não ser perfeita;
ou ao menos culpasse a parte manifesta dela (o Ego é a parte de mente que lida com o mundo
externo) por não ser como ela (Ideal de Ego/Ego Ideal) gostaria de ser122.

Um Ego assim tão fragilizado sob a opressão do Superego em suas demandas idealizadas
se sente deficiente, incapaz, ineficiente, desqualificado e inapto. Um Ego assim tão submisso às
exigências narcisistas do Superego leva o sujeito a apresentar uma inevitável baixa autoestima.
Como escreve a psicanalista Urania Tourinho, em seu livro Depressão e Melancolia, 123“a falta
completa, ou quase completa, de autoestima se presentifica através de intensa recriminação.
Dizer-se um nada, um incompetente, um lixo reflete o sentimento de odiar-se a si próprio”. É
como se a pulsão de morte124 se sobrepusesse à pulsão de vida.

O ser humano é descrito como um ser biopsicossocial. Psicologicamente o ser humano


é um ser de desejos e de moral. Platão, em Fedro125, utiliza-se da parábola da biga para explicar
a alma humana. Segundo ele, a alma é como se fosse uma biga puxada por dois cavalos alados
(um preto e um branco) e guiada por um condutor. O cavalo preto representa as paixões, as

117
Há quem a chame de “culpa persecutória”.
118
Freud chega a usar a seguinte expressão: “como se tivesse se apossado de todo o sadismo disponível
na pessoa”.
119
A moralidade excessiva do Superego e suas exigência de perfeição em uma pessoa pode ser tanta que
o mesmo chega a ser cruel com a própria pessoa, isto é, com seu Ego. É como se o Superego quisesse
destruir o Ego.
120
Civilização Brasileira, 2008.
121
Vide também 1985: Luto e Melancolia, in:
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-58352016000100016, e Para uma
Abordagem Estrutural da Depressão: contribuições freudianas, in:
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1415-
11382008000200001#:~:text=Porquanto%2C%20neste%20%C3%BAltimo%20caso%2C%20entra,Supereg
o%20procura%20destruir%20o%20Ego.&text=O%20melhor%20que%20poder%C3%ADamos%20fazer,de
%201917%3A%20Trauer%20und%20Melancholie..
122
Vide melhor em A Melancolia na Obra de Freud: um narcisismo sem (des)culpa, in:
https://www.scielo.br/pdf/rlpf/v4n4/1415-4714-rlpf-4-4-0092.pdf.
123
Zahar, 2003.
124
Pulsão de morte e pulsão de vida são especulações teóricas importantes no modelo freudiano que
designa ambas como movimentos da vida. A pulsão de morte representa a nossa capacidade de
autodestruição, enquanto a pulsão de vida representa nossa inclinação à autopreservação e à
sobrevivência.
125
Peguin, 2016.
emoções brutas e o desejo concupiscente, enquanto o cavalo branco representa o impulso
moral e seus princípio. Já o condutor representa a vontade do intelecto. Cabe a este regrar os
cavalos antagonistas para que a biga siga o bom caminho.

Analogamente à parábola de Platão, podemos retratar o psiquismo humano como


composto da força de três verbos: querer, poder e dever. Quando os verbos estão harmônicos e
congruentes, seguimos em frente na estrada da vida, da nossa vida, rumo aonde queremos,
podemos e devemos chegar. Porém, quando ao menos um dos verbos se antagoniza com os
demais entramos em conflito. Às vezes queremos e podemos, mas não devemos. Outras
podemos, devemos e não queremos. Bem como pode haver instantes e/ou situações em que
queremos, mas não devemos nem podemos...

Somos seres de desejos e moral. Somos seres que tem que lidar com eles dentro de um
contexto de realidade e sem excessos. Excesso de desejos, sem freios, pode nos machucar.
Excesso de moral pode nos oprimir e limitar. Excesso de realidade pode nos inibir e refrear-nos
tanto e nos amedrontar tanto que nos enclausuramos assustado e definhamos por dentro. E é
desse embate constante entre desejo x moral (conflito interno) e entre ambos e a realidade
(conflito com o mundo externo) que transita pela existência essa imaterialidade (alma)
materializada em um corpo, chamado de ser humano.

É do entrechoque e da luta intestinal entre nossos desejos e nossa moral que muitas
vezes a culpa, afinal sem desejo não há culpa, assim como sem moral também.

O que distingue um adulto de um jovem


é o sentimento de culpa.
Joel Neto126

126
Escritor português (1974 - ).
NÓS SOMOS O QUE
PENSAMOS
Estou tonto,
tonto de tanto dormir ou de tanto pensar,
ou de ambas as coisas.
Álvaro de Campos127

FENOMENOLOGIA

Já afirmava o filosofo francês René Descartes no século XVII, cogito ergo sum (penso,
logo sou).

É comum proclamar “somos o que pensamos”. Mas por que somos o que pensamos?
Somos o que pensamos porque é através dos nossos pensamentos que vemos e fazemos o nosso
mundo. O nosso mundo não é a realidade, sequer uma cópia fidedigna do mundo externo a nós.
O nosso mundo, o mundo de cada indivíduo, é um mundo fenomênico, isto é, um mundo que
nos chega (que em nós entra) por meio dos nossos sentidos e da consciência imediata. Trata-se,
assim, de uma descrição que fazemos do mundo real, contaminada por nossos sensações,
experiências anteriores e pelas palavras que possuímos em nosso vocabulário mental.

Para o filósofo prussiano Immanuel Kant o mundo das coisas como as coisas são é o
mundo numênico. Já o mundo fenomênico é o mundo das coisas tal como as percebemos. Para
ele, os sons, as luzes, os sabores, os cheiros e aromas, as ideias não são em si objetos externos,
mas sim representações que nossas sensações e pensamentos fazem desses objetos. Desse
modo, por exemplo, uma fotografia tirada de uma dada cena, paisagem ou panorama não é a
cena, paisagem ou panorama, porém representação (uma imagem) captada pela câmara
fotográfica e pelo olhar do fotógrafo, ou seja, um pedaço de papel ou superfície sensível cuja
exposição luminosa fixou-se nele/nela128. A foto não é a cena, somente uma representação
fotografada da cena. Nós não podemos levar a cena, paisagem ou panorama (mundo real) para
casa, apenas a imagem dela captada. Parece a mesma coisa, mas não é a mesma coisa. A coisa
é uma coisa. A reprodução fotográfica129 dessa coisa é outra coisa, é uma representação.

127
Heterônimo do poeta português Fernando Pessoa.
128
A fotografia digital também é uma imagem fotográfica obtida através de um sensor óptico ligado a um
processador eletrônico que a transforma em arquivo de computador.
129
Fotografia vem do grego phos (luz) + graphein (grafar, desenhar). Ao pé-da-letra significa “desenhar
com a luz”, “escrever com a luz”.
O filósofo francês do século XX Merleau-Ponty130 ponderava que, por estarmos no
mundo real, somos condenados a vivenciá-lo por meio das nossas experiências, percepções e
significações. Nossas vivências são inseparáveis da nossa subjetividade, pois nosso mundo é o
mundo vivido. Quando morrermos esse mundo vivido morrer conosco, mas o mundo real
continua.

O poeta norte-americano Edward E. Cummings certa vez disse em uma palestra na


Universidade de Harvard: “ninguém mais pode estar vivo no lugar de vocês, assim como vocês
também não podem estar vivo no lugar de outra pessoa”. Cada pessoa, cada indivíduo, cada
psique, tem sua pessoa, sua individualidade e sua psique (noção de eu). Em outras palavras, as
experiência do presente são vivenciadas e interpretadas à luz das experiências do passado.

O psicólogo norte-americano Carl Rogers ressaltava que esse mundo que


experenciamos é o mundo fenomenológico. Esse mundo é o mundo pessoal e privado de cada
indivíduo, e, para Rogers, não se resume tão somente ao que a mente percebe, processa e
simboliza conscientemente, mas também experiências sensoriais e corpóreas que o psiquismo
em sua parte consciente sequer se dá conta. Sim, o organismo (aqui incluso o cérebro e a psique)
reage ao ambiente que lhe é externo como o percebe e lhe dá sentido. A psicóloga brasileira
Ruth Scheeffer exemplifica da seguinte maneira: “dois indivíduos dirigindo carro numa estrada
mal iluminada, que é conhecida do primeiro e desconhecida para o segundo, ao perceberem uma
sombra, reagirão de maneira diversa. O primeiro a identificará como um arbusto ou algo
inofensivo e o segundo pode até reagir com medo131”.

O mundo de fora nos chega fisiologicamente através dos sentidos e o cérebro atribui a
eles significados. Tal função cerebral e psíquica chama-se percepção. É por meio da percepção
que o ser humano interpreta suas impressões sensoriais e, assim, confere significação ao
percebido. Todavia, cada pessoa tem uma percepção de alguma maneira um pouco ou um tanto
divergente de outra pessoa. Por que isso acontece? Isso acontece porque somos
individualmente seres históricos e biograficamente diferentes.

A experiência prévia, isto é, as experiências anteriormente vividas, influenciam a


acuidade e a sensibilidade com que se experiencia e se conhece o que se está experimentando.
Nosso estado tanto psicológico quanto fisiológico são determinantes em nossas percepções.

Disse Merleau-Ponty que o corpo é mais do uma substância básica onde a alma habita
e dela tira suas percepções. O corpo é também o nosso estar-no-mundo, o nosso ser em
movimento, o nosso contato com a vida que nos circunda e pulsa por dentro.

Escreve Merleau-Ponty em Fenomenologia da Percepção132, “o que importa para a


orientação do espetáculo não é meu corpo tal como de fato ele é, enquanto coisa no espaço
objetivo, mas meu corpo enquanto sistema de ações possíveis, um corpo virtual cujo ‘lugar’
fenomenal é definido por sua tarefa e por sua situação”. Nosso posicionamento, porém, e
portanto, não é entender o corpo como organismo que sente, mas um organismo que traz em

130
Filósofo que muito dialogou e contribuiu com a Psicologia Fenomenológica. Vide: Entre a Filosofia e a
Ciência: Merleau-Ponty e a psicologia, in: https://www.scielo.br/pdf/paideia/v17n38/v17n38a04.pdf, e
Algumas Contribuições de Merleau-Ponty para a Psicologia em Fenomenologia da Percepção”, in:
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-68672009000100008.
131
Teoria de Carl Rogers sobre a Personalidade e o Comportamento, Arquivos Brasileiros de Psicotécnica
v. 12, n.3, 1960.
132
Martins Fontes, 2ª edição, 1999.
si sua história que se oculta e se revela no eu conhecemos como esquema corporal133.
Lembremos que o Ego é antes de tudo um Ego Corporal134.

O filósofo francês Jean Paul Sartre, conhecido como existencialista, ao se debruçar sobre
a fenomenologia destacou o papel da imaginação sobre a mesma. Para Sartre a imagem é uma
forma de consciência, mas se distingue da percepção, ou, como afirma em A Imaginação, “a
imagem é subjetividade”. Percepção, imaginação, memória tudo se mescla na consciência
fenomênica que o ser humano tem algo ou alguma coisa, qualquer algo, qualquer coisa.

Além do mais, pelo acima exposto, nossas crenças sobre o mundo verdadeiro (real) não
é uma cópia fidedigna da realidade, mas sim crenças relacionadas ao mundo fenomênico que
inferimos sobre o mundo que nos rodeia. O mundo psíquico não reproduz em exatidão o mundo
extra-psíquico, principalmente porque o mundo psíquico necessita de estruturas linguísticas e
simbólicas para produzir nosso conhecimento sobre o mundo externo, ou seja, que está fora da
mente humana.

COGNIÇÃO

A maior qualidade do homo sapiens é, sem sombra de dúvida, sua capacidade cognitiva.
Segundo o historiador israelita Yuval Harari, em seu livro Sapiens – uma breve história da
humanidade135, embora o homo sapiens já existisse há cerca de 150 mil anos ou mais136 atrás,
foi aproximadamente em torno de 70 mil anos que nossa espécie começou a dominar o planeta
Terra. Essa extraordinária transformação ficou conhecida como revolução cognitiva.

Difícil saber com exatidão o que aconteceu para propiciar tal transformação
revolucionária, mas, especula-se, que mutações genéticas ocorridas acidentalmente e ao acaso
contribuíram para as consequentes mudanças nas conexões internas do cérebro. Seja o que

133
Consciência que se tem do corpo, ou seja, a representação psíquica que se tem do próprio corpo.
134
Sobre a questão vide Xavier, R., Cesar, A Psicologia e o Problema Mente-Corpo, Jurua, 2012, e Sobre a
questão corpo-mente vide: Conceito Mente e Corpo Através da História, in:
https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1413-73722006000100005&script=sci_arttext
135
L&PM, 2015.
136
Há estimativa de até 350 mil anos.
tenha se sucedido, o homo sapiens deu um salto qualitativo na sua maneira de se comunicar,
isto é, na linguagem.

Os animais se comunicam. Os animais, até insetos como as formigas e as abelhas, têm


linguagem. Mas a nossa, a do homo sapiens, sofisticou-se, tornou-se gradualmente complexa.
Não se sabe, por exemplo, que inventou ou proferiu a primeira palavra. Não se sabe muita coisa
sobre a origem linguística do ser humano, aliás. A italiana de doutora em Antropologia Social,
Bruna Franchetto, em Origens da Linguagem137 de sua autoria, escreve que “a questão da
origem da linguagem ou, em outros termos, da evolução do comportamento comunicativo
humano é altamente controvertida, dada a inexistência de provas e testemunhos factuais”.
Contudo, para os fins do presente texto, o que nos importa é como hoje a linguagem, as
palavras, o pensamento verbal predominam no interior do psiquismo humano e concorre para
nos reger.

Hoje somos humanos civilizados. O berço da civilização ocidental, e bem provavelmente


de todas as civilizações humanas, é a antiga Mesopotâmia138, uma planície fértil localizada entre
os rios Tigre e Eufrates e cercada pelo deserto do Sinai, a cordilheira de Zagros, o mar
Mediterrâneo e O Golfo Pérsico. Nessa região viveram vários povos, entre eles os sumérios, os
assírios e os babilônicos. Atribui-se ao sumérios a criação da escrita, à época cuneiforme
(ideográfica). Ali surgiu a História. Antes o que tínhamos era a Pré-História.

A palavra escrita registra a palavra falada. Somos seres de palavra, ser de linguagem.
Como afirmou o filósofo alemão Martin Heidegger, “a linguagem é a morada do ser”.

A cognição está em nossa cabeça. A cognição habita a psique humana. Como escreve o
psicólogo e professor universitário Joaquim Cesário de Mello, “com palavras percebemos o
mundo, tomamos consciência dele, e através do pensamento linguístico e simbólico (verbal)
tomamos consciência dos conteúdos internos da nossa mente. Tudo que nos é informado pelos
sentidos é “traduzido’ pelo pensamento verbal. Com as palavras tornamos apenas sensório-
motoras em experiências da consciência139”.

Como dissemos acima a cognição habita a psique humana. São processos mentais que
estão por detrás do nossos comportamentos. Sim, nossa primeira forma de comunicação não
foram as palavras, mas as emoções. Mas, com o desenvolvimento e a organização funcional do
cérebro e da mente, as palavras (linguagem) foram-se se tornando importantes aliados para o
Ego Representacional conter e regular os impulsos, os instintos e as emoções.

137
Companhia das Letras, 2004.
138
Do grego meso (meio) e pótamos (rios) = entre rios, região entre rios.
139
A Alma Humana: uma viagem ao interior do psiquismo e às suas raízes, Labrador, 2018.
DESENVOLVIMENTO DA INTELIGÊNCIA
PIAGET

CRENÇAS & ESQUEMAS

Segundo definição do Wikipédia, crença “é o estado psicológico em que o indivíduo


adota e se detém a uma proposição ou premissa para a verdade, ou ainda, uma opinião formada
ou convicção”. Crença, portanto, é uma ideia que se acredita verdadeira.

As crenças são certezas que vão se criando no psiquismo de uma pessoa desde a
infância, muitas vezes resultado de influências de fatores externos (meio social).

Em princípio, na meninice, as crenças são maneiras infantis de se dar sentido à vida.


Muitas crenças puerícias ficam como apenas lembranças de lendas, mitos e crendices da época
em éramos crianças. Porém, outras vão se consolidando no interior da alma humana como se
fossem tatuagens coladas à autoimagem e à cosmovisão (visão de mundo).

Somos o que pensamos. E pensamos tantas coisas, muitas, principalmente, em relação


a nós mesmos. Nossas crenças pessoais, conjuntamente aos valores e princípios próprios,
formam a representação psíquica que temos sobre quem acreditamos que somos e como vemos
à vida, o mundo e os outros.

Biologicamente o ser humano sente fome, sede, frio e calor. Temos instintos.
Neurofisiologicamente sente-se medo, raiva, ansiedade, alegria e tristeza. Também sente-se
sensações, percepções. Biopsicologicamente emoções transformam-se em sentimentos,
existem desejos, impulsos, pulsões. E se somos feitos da mesma matéria que são feitos os
sonhos, subjetivamente sonhamos, fantasiamos, imaginamos, nos iludimos... Igualmente
interna e psicologicamente, temos palavras, ideias, valores, moral, pensamentos e... crenças e
mitos.

Tudo acima exposto resulta em motivações. As motivações geram comportamentos.


Comportamentos acarretam consequências. As consequências produzem emoções, impulsos,
fantasias, pensamentos... E assim circularmente a realidade psíquica interage com a realidade
externa e a realidade externa interage com a realidade psíquica, e vice-versa e versa e vive.

Somos seres socioculturais. Segundo o psicólogo, filósofo e antropólogo francês Edgar


140
Morin , a cultura faz parte do sujeito e não imprime apenas suas marcas, mas também um
registro e uma lavra psíquica de como o sujeito deve organizar, conceber, lidar com o mundo ao
seu redor e com os demais seres humanos.

Cada crença, cada pensamento ou ideia que temos sobre nós tem sua história. “A
criança é o pai do homem”, expressou o poeta inglês William Wordsworth muitos anos antes de
Freud.

O que trazemos da infância são as profundezas e raízes da nossa personalidade, do


nosso self, do nosso Ego representacional, da nossa autoimagem e autoestima. E pensar
(exatamente porque pensamos) que podemos construir internamente inúmeras ideações e
cognições distorcidas, deturpadas e desvirtualizadas.

Quando falávamos sobre a memória dizíamos que ela não de todo confiável. As
lembranças biográficas de nossas vidas não é uma cópia xerox; A memória nos ilude porque ela
se ilude. Nós realmente acreditamos na evocação, pois foi assim que a registramos. Aqui
também residem nossas crenças e mitos pessoais, e elas se misturam e se mesclam com a
memória no amalgamar de nossa identidade e autovisão. As visões que temos do nosso self, do
mundo e do futuro formam a designada tríade cognitiva.

Desde meados dos anos 60 do século XX a Psicologia denomina tais pensamentos


autodirigidos distorcidamente de crenças centrais. Tais crenças alteram a nosso autopercepção,
bem como o fluxo do nossos pensamentos. São crença de caráter negativo e auto depreciativo
que se manifestam em nossa consciência naquilo que se convencionou chamar de pensamentos
automáticos.

O conjunto de crenças centrais formam o que denomina-se de esquemas mentais, ou,


mais simplesmente, de esquemas. Os esquemas são padrões cognitivos, isto é, representações
psíquicas que representam a maneira como o sujeito se vê, vê o mundo e a vida. Diríamos que
são ferramentas psicológicas que usamos para nos entender e nos situar na existência do
mundo. O termo foi introduzido na Psicologia em meados dos anos 20 do século XX por Piaget,
e hoje é bastante utilizado nas chamadas Terapias Cognitivas Comportamentais, mais
precisamente pela desenvolvida pelo psicólogo e psicoterapeuta norte-americano Jeffrey Young
(Terapia do Esquema). Cognitivamente esquema é um modelo (protótipo, paradigma) de pensar
e se comportar. Particularmente abrangeríamos para um padrão de pensar, sentir e se
comportar. Em outras palavras, nossa personalidade e não somente nossa ideação.

140
Apud Pensamento, Crenças e Complexidade Humana, in:
https://www.youtube.com/watch?v=rlWZ671HqD8
Um esquema, portanto, é um conjunto organizado de percepções. Como vimos
anteriormente, nossas percepções são internalizações interpretativas e, consequentemente,
sofrem por passarem por uma espécie de filtro psicológico que é resultado da forma como
pensamo-nos e pensamos o mundo.

Young e outros, nos anos 90, perceberam que as terapias cognitivas tradicionais tinham
pouco resultado e eficácia frente a problemas caracterológicos, principalmente por serem eles
problemas originados desde a infância e, assim, faziam parte da curva de vida histórica do
indivíduo. Escreve ele: “experiências de vida nocivas configuram a origem básica dos esquemas
desadaptativos remotos. Os esquemas desenvolvidos mais cedo e mais fortes geralmente se
originam na família nuclear. Em grande medida, as dinâmicas da família de uma criança são as
dinâmicas de todo o seu mundo remoto. Quando os pacientes se encontram em situações
adultas que ativam os esquemas desadaptativos remotos, o que vivenciam é um drama da
infância, em geral com os pais141”.

Claro que os esquemas variam de pessoa para pessoa, pois a própria personalidade é
sempre singular, particular e única. Por isso há pessoas que se formam com esquemas iniciais
(remotos) mal-adaptativos, isto é, padrões cognitivos e emocionais autodestrutivos e
autodepreciativos que se originaram e se formaram desde à infância e que se leva pela vida
inteira. São esquemas remotos impregnados de memórias emocionais de insegurança, medo,
ansiedade, mágoas, desconsideração, negligência e necessidades não satisfatoriamente
atendidas ou respondidas.

Pelo acima exposto, pode-se facilmente afirmar serem quatro, no mínimo, os tipos de
experiências de vida infantis que incentivam a aquisição de esquemas desadaptativos, a
saber142:

- frustrações prejudiciais de necessidades;


- traumatização;
- excesso de experiências boas que moderadamente seriam saudáveis;
- internalização parental.

O que receamos e tenderemos a evitar a resumir a complexidade humana a causas ou


origens únicas, sejam elas traumas, pensamentos, emoções, desejos frustrados ou elementos
outros. Somos multifacetados. Somos multidimensionais. Somos biopsicossociais. Não podemos
reduzir ou resumir as questões cruciais do ser humano a um x ou y mínimos. Consideramos uma
visão mesquinha e pobre da heterogeneidade desse ser diverso e variável que somos. Por isso,
iremos encerrar nosso pequeno e breve presente texto com o capítulo seguinte sobre o
comportamento humano, mas sabendo que muito, muito, mas muito mesmo há se se explorar,
pesquisar e entender sobre essa espécie única que habita o planeta Terra, e, até prova em
contrário, o Universo.

A maioria pensa com a sensibilidade, eu sinto com o pensamento.


Para o homem vulgar, sentir é viver e pensar é saber viver.
Para mim, pensar é viver e sentir não é mais que o alimento de pensar.
Bernardo Soares143

141
Terapia do Esquema: guia de técnicas cognitivos-comportamentais inovadoras, Artmed, 2008.
142
Para melhor entendimento vide Terapia Focada em Esquemas: conceituação e pesquisas, in:
https://www.scielo.br/pdf/rpc/v35n5/a03v35n5.pdf.
143
Heterônimo do poeta português Fernando Pessoa.
A FACE VISÍVEL DA
ALMA
O que é persuasivo é o carácter de quem fala
e não a sua linguagem.
Menandro144

BEHAVIOR

Quando a Psicologia como ciência se iniciou no século XIX (Wihelm Wundt) começou
estudando o comportamento humano (Psicologia experimental), por ser esta a visível e
mensurável do psiquismo. Tanto assim era, como assim ainda é, porém não tão somente, que
classicamente definia-se Psicologia como a ciência que estuda o comportamento humano.

Com o advento no século XIX da Psicologia como ciência moderna, a partir dos primeiros
laboratórios de pesquisa e estudos, a Psicologia tomou alguns caminhos variados e
diversificados, levando-a para áreas como educação e trabalho, por exemplo. Todavia, o
behaviorismo propriamente dito surge como uma resposta ao empirismo imperante da
psicologia empregada por Wundt. A respeito dessa parte histórica da ciência da Psicologia,
sugerimos, para quem quiser aprofundar, História da Psicologia: rumos e percursos145.

Behavior em inglês significa comportamento. Porém, isso não representa um abandono


ao estudo dos pensamentos, emoções e sentimentos. Embora no princípio o interior do
psiquismo fosse considerado uma “caixa preta146”, as motivações que estão subjacentes em
nossos comportamentos, de alguma maneira, sempre intrigou os psicólogos, behavioristas ou
não. Por isso é que se diz que a Psicologia é a ciência que estuda o comportamento e seus
processos mentais (motivações).

Conhecemos o que se passa internamente com uma pessoa pela sua fala, pelos seus
gestos, pelas expressões faciais e corporais, pelo seu comportamento, atitude e jeito de ser.
Como disse Freud, “se a boca se cala, falam as pontas dos dedos”.

Há dois mundos, duas realidades, onde vive e respira o homem. O mundo por debaixo
da pele (mundo interno) e o mundo fora da pele (mundo externo), bem como a realidade
psíquica e a realidade física/social. No mundo psíquico habita a consciência (o Eu), mas o Eu não

144
Dramaturgo grego (342 – 292 a.C.).
145
Editora Trarepa, 2006, disponível in:
http://fms.edu.br/downloads/Psicologia/Historia_da_Psicologia_-_Rumos_e_percurs%20(1).pdf.
146
Expressão usada pelo behaviorismo para indicar que os conteúdos psíquicos (caixa preta) são
inacessíveis. Apenas o comportamento é que é observável.
é todo mundo psíquico. Se como dizia Shakespeare “há mais coisas entre o céu e a terra do que
imagina nossa vã filosofia”, também há mais coisas entre o Eu e o resto do psiquismo do que
imagina nossa vã consciência.

A Psicologia não se resume apenas em estudar a vida mental consciente, embora a


experiência psíquica da consciência seja fundamental. O behaviorismo mais radical buscou
produzir uma ciência independente do subjetivo, ou seja, adotou o comportamento como
objeto de estudo.

No hoje antológico livro O Corpo Fala: a linguagem silenciosa da comunicação não-


verbal147, do psicólogo de origem francesa Pierre Weil e colaborador, os autores expõem os
princípios latentes e subterrâneos que regem nosso corpo, ao mesmo tempo que se revelam em
uma linguagem de vocabulários não verbais, como, por exemplo, quando roemos unhas
demostramos sinais de ansiedade e nervosismo.

Podemos mentir com as palavras, mas nossos gestos são mais verdadeiros. Evidente que
podemos nos comportar simuladamente, porém no dia-a-dia, nos mínimos meneios, trejeitos,
gestuais e maneiras usuais de proceder passam informações e sinais reveladores de quem
somos por detrás das máscaras sociais. Em termos gerais, inclusive, a personalidade humana é
definida como um conjunto de características psicológicas que determinam a forma como
pensamos, sentimos e agimos. Isso mesmo, através das nossas ações e comportamentos
denotamos e transparecemos o que pensamos e sentimos, pois o que pensamos e sentimos
prescrevem e definem como nos comportamos.

O comportamento humano é a exteriorização da pessoa que por baixo da pele habita.


Consciente e inconscientemente, deliberada e não deliberadamente, podemos emitir inúmeros
sinais e vestígios da nossa personalidade e suas neuroses. Como dizia Jung, nossa interação com
o mundo externo se faz através da nossa persona148.

Analisar melhor o comportamento é também conhecer melhor o outro ou a si mesmo.


Muitas vezes somos incongruentes, isto é, nosso estado fisiológico e atitudinal não está em
sintonia com o que falamos e manifestamos. Entrar em contato consigo, portanto, passa por
entender não necessariamente ou tão somente porque penso e/ou sinto assim, mas também
porque atuo e comporto-me desse jeito.

O homem é um animal que fala. Mas não apenas linguagem oral, falada e verbal, mas
igualmente linguagem semiótica não verbal.

Somos seres de significações, assim como seres comunicacionais. Emitimos mensagens,


bem como recebemos mensagens. Somos emissores e receptores ao mesmo tempo. Em
Pragmática da Comunicação Humana149, o psicólogo e filólogo austro americano Paul
Watzlawick, um dos mais destacados nomes Teoria da Comunicação, nos diz que é impossível o
ser humano não se comunicar. Para ele nos comunicamos de maneira digital (o que é dito) e
analógica (como é dito150). Para melhor compreensão do assunto vide Habilidades da

147
Vozes, 1986.
148
Dentro da concepção junguiana persona é a nossa fachada pública (arquétipo de conformidade), uma
espécie de face externa de nossa face interna. Geralmente o Ego Representacional se identifica com a
persona, porém isso aliena a pessoa de se conhecer genuinamente além da aparência psicológica que ele
usualmente se mostra e se vê no próprio espelho de si próprio.
149
Cultrix, 1973.
150
Isso inclui desde a expressão e linguagem corporal até a gestão dos silêncios.
Comunicação: abordagem centrada da pessoa, da psicóloga e educadora paulista Mariane
Ceron151.

PERSONALIDADE

Quem nos habita? A resposta imediata é: eu. Mas quem é o eu que supomos ser? Somos
realmente que pensamos que somos? Há um trecho no poema Tabacaria de Fernando Pessoa
que assim versa:” que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?/Ser o que penso? Mas penso
ser tanta coisa que não pode haver tantos!”
É comum para algumas pessoas buscarem saber melhor que se é através de horóscopo
ou testes de personalidade em revistas e sites da vida. Ora, se sabemos ser quem somos, então
por que procuramos saber quem somos? Confuso? Pois é. O ser humano é confuso, ambíguo,
complexo, labiríntico, contraditório e, por que não dizer, até mesmo um tanto misterioso
consigo mesmo, inclusive.
Quem nos habita é uma pessoa. É óbvio! Como já afirmou Winnicott, vamos construir
dentro do psiquismo, antes lactente e absolutamente imaturo, “o sentimento de que a pessoa
de alguém encontra-se no próprio corpo”. Esse alguém chama-se “eu”, “myself”.
Ninguém é uma pessoa se não for igualmente uma personalidade. Não é assim tão fácil
definir personalidade, afinal existem incontáveis formas e maneiras de fazê-la152. Porém, todas
elas entendem que personalidade é uma construção que se faz dentro do psiquismo ao longo
da vida, mais acentuadamente na infância e adolescência.
Utilizaremos aqui a definição clássica feita pelo psicólogo norte-americano Gordon
Allport em 1937, em seu não menos clássico livro Personalidade153. Explanou Allport que
personalidade é “organização dinâmica, dentro do indivíduo, dos sistemas psicofísicos, que
determina seu ajuste único ao ambiente”. É de também outro importante psicólogo americano

151
Disponível in:
https://www.unasus.unifesp.br/biblioteca_virtual/esf/2/unidades_conteudos/unidade24/unidade24.pd
f.
152
Vide Personalidade: o panorama nacional sob o foco das definições internacionais, in:
http://pepsic.bvsalud.org/pdf/per/v23n1/v23n1a08.pdf.
153
EPU, 1973.
Henry Murray que descreveu, em 1938, ser a personalidade uma “potencialidade ou prontidão
para responder de uma certa maneira, em determinadas circunstâncias dadas”.
Pelas definições acima, observa-se que a personalidade é uma organização interna
(mental/cerebral) que tem uma continuidade longitudinal e estáveis e padrões de
funcionamento e conduta. Trata-se de uma estrutura psicológica constituída por traços154, cujas
inter-relações compõem a personalidade de um dado indivíduo. É comum falarmos de traços
quando dizemos, por exemplo, que alguém é tímido, agressivo, nervoso, teimoso, afoito,
medroso, etc.
Ninguém nasce com personalidade. Embora ao nascermos haja algum embrião
psicofísico da futura personalidade que iremos formar ao longo da nossa vida, principalmente
na infância e adolescência, não há uma pessoa organizada dentro do interior da mente original.
Em seu livro o Nascimento Psicológico da Criança, Margaret Mahler foi sábia ao afirmar que o
nascimento biológico antecede ao psicológico. Nascimento biológico e psicológico não
coincidem no tempo. Para Mahler só começamos a psicologicamente nascer quando o
psiquismo lactente sai do autismo normal e passa pelo período desenvolvimental da simbiose
normal. Saindo dessas etapas normais do amadurecimento progressivamente, diz Mahler,
ingressa-se no que ela chamou de processo de separação-individuação155.
Nascemos com uma tendência inata ao crescimento, mas este crescimento dependerá
sobremaneira do ambiente social em que nascemos e iremos nos desenvolver. Ainda que exista
geneticamente e congenitamente uma predisposição a algumas características da
personalidade basilar, é por meio do encontro com os outros que vai se construindo e se
consolidando nossa personalidade.
Não há duas pessoas com idêntica personalidade, afinal não existem duas pessoas com
idêntica história de vida e iguais experiências e vivências. Mesmo criados no mesmo ambiente,
mesmo que sejam irmãos gêmeos univitelinos, os dois não vivem igualmente suas
experimentações com a vida, as pessoas e meio físico que os cerca. Um leva uma topada, por
exemplo, outro não; um leva um grito do pai por causa de uma determinada trela, outro não.
O desenvolvimento da personalidade em grande parte envolve conflitos entre o
psiquismo individual e o meio ambiente, mormente o social (mais especificamente a família).
Desse embate entre nossas demandas (inicialmente completamente narcisistas) e o mundo
social e a realidade é que irá nascer a pessoa que hoje somos.
Formamo-nos como pessoas (personalidade) em uma complexa combinação de fatores
intervenientes, tais como nosso corpo (esquema corporal), nossa sexualidade (fases oral, anal,
fálica, latência e genital), nossas relações filiais/fraternais (afetos, responsividades, socialização,
estilos parentais, etc.), nossa relação com o campo social familiar, escolar e geral
(psicossocialidade), nossa cognição/inteligência (do sensório-motor ao operacional formal),
nossa moralização (pré-convencional, convencional e pós-convencional), a cultura em que
vivemos, nossa classe social, nossa biologia, nosso sexo, nossas frustrações e gratificações,
nossos traumas, nossas aprendizagens escolar e social156...

154
Padrões habituais e relativamente estáveis ao longo da vida de comportamento, pensamento e
sentimento.
155
Para uma melhor compreensão vide A Teoria de Margaret Mahler sobre o Desenvolvimento Psíquico
Precoce Normal, in: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1677-
11682018000300014 e Conceito de Simbiose em Psicanálise: uma revisão de literatura, in:
https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-14982015000200257.
156
Vide A Natureza da Teoria da Personalidade, in:
https://www.larpsi.com.br/media/mconnect_uploadfiles/c/a/cap_1.pdf, e Teorias do Desenvolvimento
Nossa personalidade é um composto de temperamento, crenças, ideias, hábitos,
autoestima, autoconceito, cosmovisão, biografia, identificações, internalizações,
autoimagem/self, Ego, Superego consciente, inconsciente, traços e atributos vários. Somos,
portanto, resultado de uma combinação entrelaçada de fatores internos e externos que ocupa
e transita em um espaço de vida (campo psicológico157). Decididamente, nossa personalidade é
biopsicossocial. Mas também somos, como disse o filósofo suíço do século XIX Henri Amiel a
ilusão de acreditar que somos o que pensamos que somos. Alguém, inclusive, já disse que somos
três; quem pensamos que somos, quem os outros pensam que somos e quem realmente somos.

Eu não sou eu nem sou o outro,


Sou qualquer coisa de intermédio:
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o Outro.
Mário de Sá-Carneiro158

Não sei quem sou, que alma tenho.


Quando falo com sinceridade não sei com que sinceridade falo.
Sou variamente outro do que um eu que não sei se existe (se é esses outros)...
Sinto crenças que não tenho.
Enlevam-me ânsias que repudio.
A minha perpétua atenção sobre mim perpetuamente me ponta
traições de alma a um carácter que talvez eu não tenha,
nem ela julga que eu tenho.
Sinto-me múltiplo.
Sou como um quarto com inúmeros espelhos fantásticos
que torcem para reflexões falsas
uma única anterior realidade que não está em nenhuma e está em todas.
Como o panteísta se sente árvore (?) e até a flor,
eu sinto-me vários seres.
Sinto-me viver vidas alheias, em mim, incompletamente,
como se o meu ser participasse de todos os homens,
incompletamente de cada (?),
por uma suma de não-eus sintetizados num eu postiço.
(Fernando Pessoa)

da Personalidade, in:
https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/1362936/mod_resource/content/1/Texto%20-
%20Teoria%20do%20desenvolvimento%20da%20personalidade.pdf.
157
O psicólogo alemão Kurt Lewin denominou de espaço vital, isto é, “a totalidade de fatos que
determinam o comportamento de um indivíduo em um determinado momento”.
158
Poeta português (1890-1916).

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