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SER HUMANO
Somos animais, e como animais temos um corpo. Porém, não somos somente animais,
somos igualmente psicossociais. Esta é o que podemos chamar de nossa essência, que faz parte
da natureza, mas que se distingue dos demais animais pela sua capacidade sapiens. Tal
capacidade, inclusive, nos faz perceber a passagem do tempo e da existência, pois temos a
consciência da finitude e da morte. Talvez melhor do que denominarmos de natureza humana,
seja mais pertinente designarmos com a expressão condição humana.
1
Poeta português (1948-1997).
Não obstante não ser nosso objetivo aqui enfocar a questão humana pela corporalidade,
não podemos também desconsiderar sua real importância na constituição dessa multiplicidade
imbricada intitulada ser humano. Mesmo que nosso objetivo seja melhor entender como se
arquiteta o psiquismo humano, faz-se necessário reconhecer a biologia do fenômeno
psicológico.
PSIQUISMO FETAL
Ainda que haja um rudimentar e tosco funcionamento psíquico na vida intrauterina, pois
o mesmo demonstra ser possuidor de sensações, percepções e sensibilidade, trata-se de um
funcionamento psíquico basilar, primário e rústico, totalmente relacionado às impressões
corpóreas.
Não há no feto, nem também quando se inicia a vida extrauterina, uma pessoas
existente dentro daquele corpo. A subsistência psíquica naqueles momentos iniciais da vida é
fundamentalmente manifestações somáticas de um existir. Ainda que não haja uma pessoa
dentro daquele corpo em formação, pode-se inferir que ali se encontra germinalmente aspectos
embrionários de uma futura personalidade que ainda vai se organizar e se conceber. Hoje,
graças, inclusive, ao avanço tecnológico (ultrassonografia tridimensional, ressonância
magnética, tomografia computadorizada) se considera que são respostas ao ambiente que lhe
chega até ele. Além disso, acredita-se com mais clareza que fatos ocorridos no período fetal
provavelmente irão afetar e influenciar o desenvolvimento tanto bio evolutivo quanto
psicoafetivo do mesmo.
2
Poeta e prosador (1572-1631).
3
Corte.
4
Para um melhor aprofundamento da temática sugerimos os seguintes textos: Psiquismo Fetal; um olhar
psicanalítico (in: http://www.sprgs.org.br/diaphora/ojs/index.php/diaphora/article/view/73) e Estados
Comportamentais do Feto e Psiquismo Pré e Perinatal (in:
https://www.academia.edu/11815479/Estados_comportamentais_do_feto_e_psiquismo_pr%C3%A9_e
_periinatal?auto=download).
Embora o psiquismo fetal se encontre impossibilitado de perceber a existência de um
mundo externo a si mesmo, o feto responde a estímulos em sua relação corpórea materno-fetal.
Evidente que quanto mais saudável for o ambiente pré-natal melhor será o início da vida do
indivíduo.
Certas doenças mentais (entre elas a esquizofrenia) podem possuir gatilhos genéticos,
assim como a obesidade, longevidade e temperamento. Contudo, tudo indica, que tais questões
não se resumem a um único fator, mas sim a interação complexa entre hereditariedade e
ambiente5.
NO PRINCÍPIO É O CORPO
5
No tocante à temática, sugerimos ver: http://www.cerebromente.org.br/n14/mente/genetica-
comportamental1.html,
https://www.researchgate.net/publication/334779262_Genetica_um_fator_de_influencia_na_formaca
o_da_personalidade e https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102-
79722000000200004&script=sci_arttext&tlng=pt.
Somos seres biopsicossociais. Nosso início é fundamentalmente biológico antes mesmo
de nos tornarmos psicossociais. Não existe alma humana (psiquismo) sem um corpo que lhe
carregue e lhe dê sustentação, nem muito menos haverá psiquismo humano na acepção da
palavra se não houver inter-relacionamento pessoal. Como já dizia o pediatra e psicanalista
inglês Donald Winnicott, “There is not such a thing as a baby” (não existe essa coisa chamada
bebê), que em outras palavras significa “que um bebê não existe sozinho, ele existe com sua
mãe”.
O nascimento não marca apenas a saída do corpo fetal para fora do útero, mas
igualmente inicia o desenvolvimento do psiquismo na vida extrauterina.
Assim como o corpo humano (organismo) irá continuar se desenvolvendo após a vida
intrauterina, o cérebro e o psiquismo igualmente assim procederão.
Pelo acima exposto, nem precisa destacar o quanto importante são os primeiros meses
de vida e a primeira infância para o desenvolvimento da pessoa humana. É neste período,
considerado sensível ou crítico do desenvolvimento (“período de molde”) que o cérebro
humano desenvolverá determinadas sinapses em detrimento de outras. Falhas ambientais de
cuidados ao bebê aumentam as chances de prejuízos no desenvolvimento neurobiológico e
psicológico da criança, com possíveis repercussões a médio e longo prazos8.
6
Thieme Revinter, 2ª edição, 2009.
7
Segundo Janet Gonzalez-Mena e Diana Eyer, O Cuidado com Bebês e Crianças e Pequenas na Creche,
AMGH, 2014.
8
Vide Efeitos da Depressão Materna no Desenvolvimento Neurobiológico e Psicológico da Criança, in:
https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0101-81082005000200007&script=sci_arttext&tlng=pt
Como parte do sistema nervoso central (SNC) o cérebro tem como função regular a
maioria das tarefas corporais e mentais. O cérebro é o centro do nosso sistema nervoso e
contém bilhões de neurônios (estima-se em torno de 86 bilhões).
A relação entre mente e cérebro é tão imbricada que é praticamente muito difícil, para
não dizer impossível, dissociá-las. Como afirma o neurocientista português António Damásio,
tanto o psiquismo (mente), quanto o cérebro e o corpo, agem conjuntamente, gerando uma
realidade única: o ser humano.
9
Vide: https://www.scielo.br/pdf/rprs/v25s1/a08v25s1.
10
Idem.
organismo para dar respostas rápidas em situações
estressoras.
DOPAMINA11 Ativa os circuitos de recompensa do cérebro, por isso é
conhecida como neurotransmissor do prazer.
Se a dopamina é chamada de neurotransmissor do
SEROTONINA12 prazer, a serotonina está relacionada a sentimentos de
bem-estar e felicidade.
Mac Lean divide o cérebro humano em três estratos funcionais distintos, a saber:
cérebro reptiliano, sistema límbico e neocórtex.
A parte mais profunda do cérebro é o cérebro reptiliano, ou seja, a parte mais basal,
composta pela medula e pelo cerebelo. Do ponto de vista evolucionista representa a parte mais
antiga e primitiva.
Já o sistema límbico (característico dos mamíferos inferiores), que está acima da parte
reptiliana e no centro do sistema nervoso central (SNC), é o chamado cérebro emocional. Aqui
está o que podemos denominar de “centro das emoções”.
O neocórtex, por sua vez, a parte mais recente de nossa evolução animal. Localizada na
parte pré-frontal do cérebro, esta é a parte racional, isto é, que planeja, antecipa, percebe a
temporalidade, capaz de exercer o pensamento abstrato e de inventar e criar. O “cérebro
racional”, como é conhecido, é o que nos diferencia do resto dos demais animais.
Nossa natureza humana (condição humana) tem uma outra característica bastante
peculiar e que, consequentemente, vai nos determinar sobremaneira, principalmente em
termos de desenvolvimento psicológico, que é nascermos prematuros, isto é, completamente
incapazes à sobrevivência por nós mesmos. Todos somos originariamente dependentes de um
cuidador. E não dependentes absolutos, mas dependentes prolongadamente. Tal dependência
prolongada vai deixar marcas indeléveis no arquitetar do nosso psiquismo e na formação da
personalidade.
Somos, pela nossa própria natureza, fadados à dependência através do vínculo com
outro humano que nos alimenta não apenas de leite e cuidados físico, mas também de afetos e
cultura (o ser humano é um ser biopsicossocial). Nesse sentido, a alma humana (psiquismo) é
decorrência e fruto não do nature x nurture, porém do nature e do nurture.
Cérebro: dispositivo com o qual pensamos que pensamos.
Aquilo que distingue o homem que se contenta com ser alguma coisa
do homem que quer fazer alguma coisa.
Ambrose Bierce14
11
Vide: http://www.aberta.senad.gov.br/medias/original/201704/20170424-094615-001.pdf.
12
Vide: https://www.scielo.br/pdf/rpc/v35n5/a04v35n5.pdf.
13
Para um melhor aprofundamento, vide:
https://www.researchgate.net/publication/284277719_Consideracoes_sobre_a_teoria_do_cerebro_tri
uno_e_sua_relevancia_para_uma_filosofia_da_mente_e_das_emocoes; e
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1808-42812008000200023
14
Escritor norte-americano (1842-1914).
O PSIQUISMO CRU
Cada criatura humana traz duas almas consigo:
uma que olha de dentro para fora,
outra que olha de fora para dentro
Machado de Assis15
PSIQUISMO CORPORAL
Ninguém nasce com uma pessoa dentro de si. Como disse o psicólogo estadunidense,
Gordon Allport, em seu clássico livro Personalidade, que no principiar da vida não somos
psicologicamente uma pessoa, mas sim uma coisa psicológica.
Não é porque no início da existência somos tão somente uma coisa psicológica, que não
tenhamos o potencial de ser uma pessoa. Como afirmava Winnicott, nascemos com uma
tendência inata ao crescimento.
Sequer começamos tão somente pelo corpo e sua carga genética. Subjetivamente
também podemos dizer que nascemos antes mesmo de nascer. Até antes mesmo de sermos
fecundados. Há igualmente uma herança psíquica nos esperando. Trata-se de uma transmissão
psíquica que vem tanto de quem estará conosco ao nascermos, quanto de gerações anteriores
(conceitos de Arquétipo/Jung e Superego/Freud, por exemplo).
Todo eu nasce do nós. Como assim? Antes de haver um eu dentro do psiquismo humano,
já existe um nós (pais, família, grupo social primário, comunidade, cultura, sociedade). Não há
como não nascer um eu separado do nós que representa nossos principais cuidadores, suas
personalidades, biografias e cultura. Fantasias, imagens, sonhos, desejos, ideais, traumas não
ditos, lutos mal elaborados e inconclusos, segredos e latências, fazem parte da história familiar
onde seremos, de alguma forma, herdeiros involuntários.
Como, evidentemente já salientamos, não existe alma (mente humana) sem corpo, este,
por sua vez, inicia-se por ocasião da fecundação do óvulo pelo espermatozoide (zigoto). De
15
Escritor brasileiro (1839-1908).
zigoto ao embrião, do embrião ao feto, do feto ao neonato, do neonato ao bebê, da bebê à
criança, da criança ao púbere, do púbere ao adulto. Aqui, desenvolvemos progressiva e
gradualmente, com altos e baixos, o psiquismo humano, sua personalidade e sua identidade.
F = G + A17
Freud foi bem perspicaz e inteligente ao considerar que o Ego seria a parte da mente
que entra em contato com a realidade, isto é, o mundo externo. Para ele o psiquismo primal e
basilar seria o Id, estrutura natural da mente (instintos/pulsões) e reservatório de todas as
pulsões humanas. Para ele o Id é um caos, um caldeirão das excitações efervescentes.
No principiar da vida o psiquismo é puro Id, segundo Freud. Com o tempo, vai-se
formando o Ego dentro da mente. Mais adiante vai se formar o que ele denominou de Superego.
O psiquismo em sua fase primitiva não possui ainda uma estrutura interna suficiente e
capaz de se autocontrolar em relação aos seus impulsos, Tal estrutura psíquica, convencionada
chamar de Ego, vai se construindo gradualmente mediante inúmeras experiências físicas de
prazer-desprazer. Como descrevia Winnicott, trata-se de uma construção silenciosa, que no
início se faz de maneira puramente corporal (Ego Corporal). É a partir, portanto, desse ego
corporal que vai se fazendo, o que denominou a psiquiatra e psicanalista de origem austríaca
Margaret Mahler, de nascimento psicológico18. Aos poucos a mente vai se se desmembrando
dessa sua natureza psicocorporal,19 por meio das inúmeras experiências corporais vivenciadas
pelo bebê desde sua condição neonato.
Pelo acima exposto, a pele terá importante papel no surgimento da noção de dentro e
fora do corpo (da noção de eu e não-eu), afinal é por meio da epiderme que um bebê inicia seu
contato com o mundo externo (Didier Anzieu, filosofo francês, intitulou de Eu-Pele). Segundo
16
Cesário de Mello, J. A Alma Humana: uma viagem ao interior do psiquismo e suas raízes, Labrador, 2018;
17
F = fenótipo (conjunto de características de um indivíduo), G = genótipo (herança genética) e A =
ambiente.
18
O Nascimento Psicológico da Criança, Artmed, 2002.
19
Unidade Psico-Soma, nas palavras de Winnicott. Edith Jacobson, psicanalista alemã, por sua vez,
chamou de Self Psicofisiológico Primário.
Winnicott, a pele tem a função de conter o psiquismo dentro do corpo. Através, portanto, das
sensações cutâneas a psique vai tomando consciência de sua existência intracorpórea20.
Enquanto o psiquismo for regido apenas por seus impulsos e não conseguir ele mesmo
se autorregular minimamente, não podemos falar de um Ego propriamente dito, nem que seja
um Ego ainda bastante primitivo e inacabado. Somente quando a mente for, ela mesma, capaz
de mediar impulsos e realidade, um Ego terá se estruturado dentro da psique humana. E quando
e como nasce no interior da alma (psiquismo) uma força que é capaz de se antagonizar com a
força dos impulsos e instintos? É o que vamos desenvolver abaixo.
PRINCÍPIO DO PRAZER-DESPRAZER
20
Para melhor entendimento vide A Ternura Tátil: o corpo na origem do psiquismo, in:
http://pepsic.bvsalud.org/pdf/psyche/v10n17/v10n17a07.pdf
21
Vide A construção Silenciosa do Ego Corporal, in:
http://www.spbsb.org.br/site/images/Novo_Alter/2011_2/06Ivanise.pdf
maneira contrária, ou seja, diminui o estado de tensão, podendo o psiquismo retornar ao estado
de equilíbrio homeostático anterior (Princípio de Nirvana22). A mente lactente, em sua
imaturidade primária, é regida por esse princípio primário que Freud denominou de Princípio do
Prazer. E assim ela se guia ou é guiada pelo Princípio do Prazer que podemos aqui resumir em
uma busca pelo prazer e evitação do desprazer.
22
Expressão criada por Freud para designar à tendência da mente em reduzir ao máximo o estado de
tensão interna, e manter o nível de excitação o mais baixo e constante possível (Princípio da Constância).
23
Zahar, 1984.
24
Imago, 1975.
PROCESSO PRIMÁRIO DE PENSAMENTO
Mesmo em seu estado bebezinho a mente pensa. Porém não pensa como pensa uma
mente mais amadurecida, isto é, através de símbolos, linguagem, sintaxe e lógica.
Mas, então, como pensa a mente enquanto ainda bastante primária e crua?
Provavelmente é uma forma de pensar baseada inicialmente apenas nas emoções. Uma forma
ou maneira de pensar sem nenhuma noção de mundo externo, realidade, noção de não e limite,
não linguística, caótica, atemporal, imediatista e baseada no Princípio do Prazer e no puro
descarrego dos impulsos. Teoricamente podemos dizer que essa forma originária de funcionar
o pensamento é, para uma mente mais amadurecida, o que chamamos de Inconsciente.
Não é porque o psiquismo amadurece com o tempo e as experiências que essa forma
deixará de existir nas profundezas da alma humana, Como dizemos acima, é de lá que surgem
os sonhos e suas narrativas oníricas, bem como o mesmo acontece na psicopatologia da
alucinação. Todos guardamos resíduos primitivos de pensar. O pensamento mágico que ainda
existe em nossa mente mesmo adulta (vide a superstição, por exemplo) é prova de que nunca
nos livraremos totalmente de nossas raízes psíquicas e seu funcionamento e maneira de pensar,
algo que pode se chamar de “narcisismo intelectual26”.
Quanto mais o psiquismo se desenvolve e amadurece menos ele estará funcionando sob
o processo primário de pensamento. Ele passa a ser comandado pelo processo secundário de
pensamento, que, por sua vez, é regido pelo Princípio de Realidade. Tal maneira de pensar,
posterior ao processo primário, é o que comumente chamamos de racional, pois nele
predominam o abstrato e as regras da lógica.
25
Conceito utilizado para entender e explicar o que leva o psicologicamente organismo ao movimento.
São, portanto, aspectos mobilizadores fundamentais da psique humana, sendo um construto teórico
muito válido e útil para compreender o funcionamento da dinâmica mental.
26
Vide O Pensamento Mágico na Constituição do Psiquismo, in:
http://www.ceccarelli.psc.br/texts/pensamento-magico-const-psiq.pdf.
27
Processo mental onde se discrimina e se diferencia a fantasia e a imaginação (mundo interno) da
realidade (mundo externo).
Quanto mais as imagens verbais predominam, este se afasta do período pré-linguístico
(processo primário de pensamento) e mais se torna uma espécie de Ego verbal-falante (com
palavras). Sucede-se, por conseguinte, na mente humana, uma virada linguística. O psiquismo
passa a pensar com palavras.
A ILUSÃO DA PERFEIÇÃO
O psiquismo humano nasce tão nu quanto o corpo, isto é, não tem em seu princípio
nenhuma noção da existência de mundo externo e das pessoas que lhe circundam e que com
ele convive. É um psiquismo anobjetal, ou seja, voltado somente para si mesmo. Ele é tudo, e
tudo é ele (onipotência).
A psique em estado cru vive uma fase pré-mundo, ainda não há a percepção da
existência de dentro e fora do corpo. É um período que já foi descrito como cheio de zumbidos,
clarões indefinidos e sensações imprecisas. O mundo externo não tem forma, contorno, rosto
ou nitidez. É como se fosse, no máximo, um imenso borrão ao alcance das mãos.
Evidente que a psique primitiva sente sua existência através do corpo, apenas sequer
sabe que existe. No início, sequer há Ego. Vive-se no âmbito tão somente do Ego Corporal. É um
período ilusório psíquico onde a mente sente-se respirando e vivendo uma solidão essencial28.
Não há lugar ainda pra o não-eu. Tudo faz parte da unidade somatopsíquica.
Vários autores criaram expressões diversas para designar essa fase inaugural da
existência extrauterina. Freud, como vimos, chamou de Ego Corporal. René Spitz29 de período
anobjetal. Jose Bleger30, por sua vez, cunhou o termo núcleo aglutinado, enquanto que Edith
Jacobson31 expressou como self psicofisiológico primário, e Mário Pacheco Prado32 de estado de
entranhamento.
28
Expressão criada por Winnicott.
29
Psicanalista austro-americano (1887-1974).
30
Psiquiatra argentino (1922-1972).
31
Psicanalista alemã (1897-1978).
32
Psicanalista brasileiro (1917-1991).
materno). É o instante do desenvolvimento (inicial) onde a energia psíquica (libido) se acha
totalmente direcionada ao próprio corpo, não havendo a mínima percepção de qualquer fora
de si. É o grande momento da fantasia onipotente primária da mente, pois é aqui em que ela se
acha capaz de satisfazer suas próprias necessidades (como saciar a fome, por exemplo).
https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-166X2003000300006
https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-166X2003000300006
Na simbiose normal, que tem seu auge em torno de 3-5 meses de idade, embora a
psique infante já comece a reconhecer algo além de si, ainda não reconhece a origem externo
do seu objeto cuidador. Trata-se de uma consciência nascente difusa e imprecisa. A relação
psicológica entre o ego incipiente e o objeto turvo é uma relação de fusão (aglutinação), razão
pela qual Mahler preferiu utilizar o termo simbiose.
33
http://www.filosofia.seed.pr.gov.br/arquivos/File/classicos_da_filosofia/mitos_gregos.pdf,
https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-166X2003000300006 e
https://www.scielo.br/pdf/estpsi/v20n3/a06.pdf.
34
Freud definiu libido como a energia eu provém dos instintos/pulsões.
No tocante a melhor compreender as ideias de Mahler, sugerimos:
O nascimento psicológico36
Antes do narcisismo primário Freud considerava que nos primeiros instantes e dias de
vida a libido estaria direcionada aos órgãos do próprio corpo, o que ele denominou de
autoerotismo. Lembrar que Freud não concebe um Ego, mesmo rudimentar, nos primeiros dias
da existência extrauterina. Com o surgimento de uma unidade mínima compatível a um eu
interior (ainda indiferenciado, porém, em relação ao mundo externo como tal), é que Freud
passa a denominar de narcisismo primário. Equivale a uma primeira imagem mental que o
psiquismo tem de si, contudo perfeita, onipotente e completa.
Não é difícil, portanto, compreender a concepção teórica que faz Freud, visto que antes
de haver um investimento psíquico em um objeto (libido de objeto), primariamente o
investimento é voltado ao interior da própria mente (libido de ego). Devemos considerar ainda
que nunca totalmente deixaremos de ter algum quantum de energia psíquica voltada a nós
mesmos (base mínima de qualquer amor próprio), Caso não houvesse algum investimento de
parte da nossa energia psíquica em nós mesmos, isso representaria a morte do eu/Ego.
35
In: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1677-11682018000300014
36
www.journals.usp.br.
37
Do Altar às Passarelas - Anorexia, Annablume, 2006.
38
Concepção com a qual estaremos aqui trabalhando.
uma mente amadurecida, de Ego Ideal. O Ego Ideal, portanto, é em nossa mente inconsciente
um substituto da onipotência perdida da infância, isto é, passa a ser, no âmago residual do
passado idílico, um depositário de toda idealização, perfeição e felicidades ilimitadas do
narcisismo primário39.
Outra característica importante nessa fase inicial onde predominam fantasias narcísicas
e ilusões de onipotência, é o próprio narcisismo dos pais (objetos cuidadores). É comum e
normal que os pais idealizem seus filhos, principalmente quando eles ainda são bebês e seu Eu
está se formando. Consciente e inconsciente existem desejos de que a criança venha a realizar
antigos sonhos da mãe e do pai. A mãe (objeto cuidador primal), regra geral, vive nos primeiros
meses uma relação com seu neonato de muita proximidade física e psicológica (naquilo que
Winnicott denominou de preocupação materna primária40). A mãe, em preocupação materna
primária, tem em seu bebê o cerne do seu universo. A criança, nessa época, representa o que
Freud chamou de sua majestade o bebê. Tal situação é propiciadora do renascimento do
narcisismo parental.
O narcisismo projetado dos pais no seu bebê encontra neste eco no próprio narcisismo
da fase infantil, e o ego rudimentar em formação identifica-se com tais ideais e os internaliza
como um ideal a ser alcançado e correspondido. Assim se cria, também no interior da mente
humana, o que convencionamos denominar de Ideal de Ego. Desse modo, da mesma maneira
que o Ego Ideal representa um herdeiro psíquico do narcisismo primário, o Ideal de Ego
representa um legatário das exigências narcisistas das figuras parentais.
Pelo acima exposto, é necessário entender que no interior mais fundo e enraizado da
alma humana habitam resíduos narcísicos da origem do narcisismo atávico e nativo do
psiquismo humano. Se fossemos comparar o homem a uma árvore, diríamos que a nossa raiz é
constituída tanto de Id quanto de narcisismo (Ego Ideal e Ideal de Ego), e por nosso tronco e
ramificações circula a seiva que vem das funduras e entranhas narcísicas da nossa natureza. É
desse salutar nutriente psíquico em que se rega nosso amor próprio e nossa autoestima.
Podemos afirmar, inclusive, que o narcisismo em suas características normais e saudáveis
resulta em proteção psíquica importante para o enfrentamento da própria existência e
resiliência frente às vicissitudes e adversidades da vida.
39
Para melhor entendimento e aprofundamento , vide A construção do conceito de superego em Freud,
in: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-73952005000100009.
40
Estado subjetivo de exarcebada sensibilidade, identificação e sintonia com as necessidades do bebê
Sugestões de leituras afins:
(Álvaro de Campos41)
41
Heterônimo do poeta português Fernando Pessoa (1868-1935). O texto acima é trecho do poema
Tabacaria.
O NASCIMENTO DO SELF
Eu não sou eu nem sou o outro,
Sou qualquer coisa de intermédio:
Pilar da ponte de tédio
Que vai de mim para o Outro.
Mário de Sá-Carneiro42
SELFOBJETO
O termo self (que em inglês significa “eu”, ‘si mesmo”, “próprio”, “auto”), representa a
individualidade de uma pessoa, sua subjetividade. Em psicologia tem várias traduções e
significações um pouco diferentes entre si, mas que caracteriza e aponta para o mesmo
ângulo: o eu43.
Winnicott, por exemplo, designa self como o produto dos processos dinâmicos que dão
a unidade e totalidade do ser. Já o psiquiatra e psicanalista austro-americano Heinz Hartmann
conceituou como “a imagem de si mesmo”. Para Carl Rogers, psicólogo estadunidense, o self é
o “autoconceito”, “a noção de eu” de um indivíduo. O psiquiatra e psicanalista suíço Carl Jung,
por sua vez, dimensionou o self como o arquétipo central, isto é, o unificador do consciente e
do inconsciente do psiquismo. Já houve alguém, inclusive, que definiu self como a imagem que
o cérebro tem de si mesmo.
Seja como for, self pode ser resumido como a pessoa se revela e se conhece, ou seja,
representa sua própria consciência de si mesmo. Em outras palavras, é a autoconsciência de ser
que se acredita que se é. É a consciência sobre o si próprio e envolve a autoimagem e a
autoestima. É a individualidade e a subjetividade da pessoa.
O nascimento do self começa ocorrer quando a mente toma consciência do seu próprio
corpo. Com o conhecimento do corpo e suas delimitações também se conhece o dentro e o fora,
o eu e o não-eu. O self e o objeto.
Neste momento evitemos pensar no self como nós o conhecemos adulto, isto é, a partir
do nosso próprio self já consolidado. Pensemos no seu nascimento, que não tem uma data e
nem se faz em um dia específico. Lembremos que seu processual nascimento é em uma época
que o psiquismo se encontra em um corpo lactente e infantil, portanto em um psiquismo
igualmente lactente (oral) e infantil.
Pelo acima exposto, não há self que não seja narcisista. Como propõe a Psicologia do
Self, através principalmente de seu principal nome, o psicanalista austro-americano Heinz
Kohut, o narcisismo não é somente um estágio inicial do psiquismo em desenvolvimento, mas
42
Poeta português (1890-1916).
43
Vide Self: um conceito em desenvolvimento, in: https://www.scielo.br/pdf/paideia/v22n52/14.pdf.
sim um estado permanente da alma humana. Neste sentido, o self é organizadamente narcisista
por excelência, tanto em seu nascedouro, como durante a vida inteira. Não há subjetividade
humana que não esteja banhada ou salpicada de narcisismo, seja saudavelmente falando, ou
não44.
Heinz Kohut propõe, pois, entendermos o objeto em relação ao self como selfobjeto
(selfobject). O selfobjeto é quem vai dar base e suporte ao self humano. Evidentemente que o
self nascente terá como selfobjeto suas figuras parentais. Não esquecemos que “o primeiro rosto
que o primeiro espelho da criatura humana é o rosto da mãe” (Winnicott).
Vejamos o que escrevem os autores norte-americanos Jesse Feist, Gregory Feist e Tomi-
Ann Roberts, em seu livro Teorias da Personalidade47:
“os bebês precisam dos cuidadores adultos não somente para gratificarem suas
necessidades físicas, mas também para satisfazerem necessidades psicológicas
básicas. Ao cuidarem das necessidades físicas e psicológicas, os adultos, ou
selfobjetos, tratam os bebês como se eles tivessem uma noção de self. Por exemplo,
os pais agirão com afeto, frieza ou indiferença dependendo, em parte, do
comportamento de seu bebê. Pelo processo de interação empática, o bebê assimila
as respostas dos selfobjetos como orgulho, culpa, vergonha ou inveja – todas
atitudes acabam formando os componentes fundamentais do self. Kohut definiu o
self como ‘o centro do universo psicológico do indivíduo’. O self dá unidade e
consistência às experiências, permanece relativamente estável ao longo do tempo
e é ‘o centro da iniciativa e um receptor de impressões’. O self também é o foco das
relações interpessoais da criança, moldando como ela se relaciona com os pais e
outros selfobjetos”.
Com o conceito de selfobjeto Kohut se afasta da ideia do psiquismo humano focado quase
como que exclusivamente do conflito edípico (Freud, Klein), e passa a enfatizar o pré-edípico,
assim como Winnicott e outros. Ao invés do homem culpado freudiano, temos o homem trágico
kohutiano, cujas raízes centrais estão montadas na fase oral e em sua relação com o objeto
cuidador (selfobjeto).
44
Vide: Kohut H., Análise do Self, Imago, 1988.
45
O self-grandioso, para Kohut, é uma parte normal do desenvolvimento psíquico. Uma autoimagem
grandiosa e exibicionista que nos acompanhará pelo resto da vida.
46
Imagem primitiva toda poderosa e perfeita que a criança tem de seus pais .
47
AMGH, 8ª edição, 2015.
Self não é igual a Ego, visto ser o Ego uma estrutura do psiquismo, enquanto o self
representa a imagem que o psiquismo tem de si, isto é, a maneira como uma pessoa se vê.
Uma das principais, senão a principal, diferença da Psicologia do Self em relação a teoria
estrutural da mente (Id, Ego e Superego) e a teoria das relações objetais (Melanie Klein) é que,
enquanto estas relevam os relacionamento internalizados (objetos internos), a Psicologia do
Self, por sua vez, salienta os relacionamentos externos como fundantes e mantenedores da
coesão do self e sua autoestima. Neste sentido, compreende-se o ser humano como um
indivíduo em constante busca de respostas de outras pessoas para tanto se validar quanto para
conservar o senso interno de bem-estar. Na perspectiva psicopatológica tal busca exacerba para
o desespero, com sentimentos inespecíficos de vazio, depressão e relacionamentos
insatisfatórios (patologias narcísicas).
AUTOIMAGEM
Nosso primeiro self é um self grandioso, e nunca nos livraremos totalmente dessa
necessidade de grandiosidade. Diríamos que é imprescindível e até saudável à uma mente
imatura, com suas necessidades narcisistas normais do início do desenvolvimento, afinal, todo
48
Vide Para um Introdução ao Estudo do Narcisismo, in:
http://repositorio.ispa.pt/bitstream/10400.12/2104/1/1983_4_395.pdf.
49
Artmed, 5ª edição, 2015.
bebê e toda criança pequena precisa se ser espelhado em sua grandiosidade natural,
consequência da ilusão psíquica inerente ao narcisismo de onde todos viemos. Qual a criança
que não necessita ser admirada e reconhecida em suas próprias auto idealizações infantis? Qual
a criança que não carece de ser a coisa mais linda do mundo para seus pais? Qual a criança que
não tem necessidade de ser a coisa mais importante na vida de uma mãe, por exemplo? Tudo
isso concorre para no início da vida ser elaborado no interior de si mesmo uma boa autoestima.
Nossa primeira imagem veio do olhar de quem nos cuidou (mãe). A mãe (ou
seu substituto) é o nosso primeiro espelho – espelho da alma. O olhar de nossa
família (grupo social primário) influencia bastante (positiva e/ou negativamente) o
delinear da nossa autoimagem. Como diz a psicóloga Suzy Cristine dos Santos, “esse
olhar contém valores, crenças e limites que podem definir aquela pessoa pelo resto
da vida”.
Todo psiquismo em sua fase infantil necessita se exibir, ser olhado, ser
validado. A mente procura na mãe o brilho do seu olhar sobre ela. Como afirmou
Kohut, o self grandioso não é somente grandioso, mas igualmente exibicionista.
Tais respostas de aprovação, segundo a Psicologia do Self, são essenciais e cruciais para
o desenvolvimento normal do psiquismo imaturo, fornecendo-o um senso de autovalor. Quando
isso não ocorre, quando o objeto cuidador falha em nutrir empaticamente às necessidades
narcísicas do psiquismo infante, tem-se a tendência da criança crescer com sua autoestima
comprometida, correndo-se o risco de se tornar um adulto com um self deficiente
narcisicamente, ou seja, deficiente em sua autovalorização. Vejamos o que escreve o psiquiatra
norte-americano e professor da Baylor College of Medicine em Houston (EUA):
“quando uma mãe falha em empatizar com a necessidade de seu filho por uma
resposta especular, a criança tem grande dificuldade em manter um senso de
completude e autoestima. Em resposta a essa falha de empatia, o senso de self da
criança se fragmenta, e ela tenta desesperadamente ser perfeita e ‘atua’ para os
pais para ganhar aprovação que tanto anseia50”.
50
Psiquiatria Psicodinâmica na Prática Clínica, 5ª edição, Artmed, 2015.
psiquismo infantil, afim de se proteger (proteger o “eu espontâneo/verdadeiro”), organiza-se
defensivamente de forma inautêntica (Falso Self).
Nem todo ambiente é facilitador, por razões várias. Há mães/pais que falham em falham
em exercer sua função de anteparo ou escudo protetor, e submetem seu bebê a uma excessiva
quantidade de estímulos que o psiquismo imaturo não consegue processar. Se as chamadas
falhas ambientais forem demasiadas o potencial do verdadeiro self tenderá psicologicamente a
ser obstruído como uma forma auto defensiva de proteção, ocultando-se por detrás de uma
“máscara artificial’ como uma maneira de se ajustar e se moldar ao ambiente falho e deficitário
em ser facilitador e provedor do Verdadeiro-Self. O psicanalista paquistanês-britânico Masud
Khan chamou isto de Self Adaptativo. É como se, ao invés do ambiente se adaptar às
necessidades psicológicas da criança, a criança tivesse que se adaptar às necessidades da mãe
(ambiente)51. Tais distorções na formação do self irá se refletir tanto na constituição da
autoimagem52 quanto na autoestima. Em outras palavras, uma boa autoimagem requer um self
bem estruturado.
AUTOESTIMA
51
Vide Os Conceitos de Verdadeiro e Falso Self e suas Implicações na Prática Clínica, in:
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-03942009000200005.
52
Para o psicanalista estadunidense Alexander Lowen, criador da análise bioenergética, o verdadeiro self
não se resume em apenas uma imagem mental, mas também incorpora os sentimentos de
incorporalidade, isto é, corpo é self. Sugerimos, a respeito do tema, o livro de Lowen Narcisismo, A
Negação do Verdadeiro Self, Summus, 2017.
Autoestima é definida como a qualidade de quem se valoriza. Auto significa si mesmo.
Estima significa afeição, bem-querer. Assim sendo, autoestima = ter afeição (amor) por si
mesmo.
Trata-se de uma avaliação subjetiva que o psiquismo faz da pessoa que nele habita, e
tanto pode ser positiva quanto negativa. Envolve crenças pessoais sobre si mesmo, tipo; “sou
capaz/sou incapaz”, “sou benquisto/sou malquisto”, “sou bom/não sou bom”. Também inclui
sentimentos autosignificantes, como, por exemplo, “tenho orgulho de mim/tenho vergonha de
mim” ou “sou digo/não sou digno”.
Uma boa autoestima, portanto, representa a pessoa gostar de si própria pelo o que ela
é. Engloba tanto gostar seus atributos, qualidades e competências, quanto aceitar igualmente
suas falhas, incompetências e características pessoais não idealizadas. Quem quer ser perfeito,
sem falhas, erros e imperfeições, fatalmente sofrerá de baixa autoestima, afinal o self real jamais
conseguirá atingir o self grandiosamente idealizadamente imaculado53/54. Parafraseando Clarice
Lispector55, autoestima é o sentimento de apreço que você tem com você, apesar de...
Ser bom, por exemplo em Geografia e História, e não ser bom em Matemática e Química
não faz de um indivíduo com autoestima boa ter uma visão negativa de si nos estudos em geral,
afinal é saudável reconhecer seus pontos fracos ou vulneráveis e seus pontos fortes e
competências. A autoestima, portanto, não necessariamente se restringe à áreas específicas,
mas engloba sentimentos generalizados de apreciação de si próprio.
Freud já disse que “a autoestima expressa o tamanho do ego”. Como vimos, o narcisismo
não extremado e limitado participa do desenvolvimento normal do ser humano. Temos que
destacar, mais uma vez, que a construção da noção de eu começa no período narcisista do
psiquismo humano. Por isso Freud subdividiu a autoestima em: autoestima primária (resíduo do
narcisismo infantil), autoestima derivada Ideal de Ego e a autoestima consequente da satisfação
da libido objetal56.
53
Vide conceito de Ego Ideal e Ideal de Ego, no subcapítulo A Ilusão da Perfeição.
54
Vide também artigo A Atualidade dos Conceitos Freudianos de Eu Ideal, Ideal do Eu e Supereu, in:
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1808-42812016000400008.
55
“uma das coisas que aprendi é que se deve viver apesar de. Apesar de, se deve comer. Apesar de, se
deve amar. Apesar de, se deve morrer. Inclusive muitas vezes é o próprio apesar de que nos empurra para
a frente. Foi o apesar de que me deu uma angústia que insatisfeita foi a criadora de minha própria vida”.
Trecho do livro Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres, Rocco, 1998.
56
Sobre o Narcisismo: uma introdução.
Uma baixa autoestima, por sua vez, compromete a funcionalidade pessoal do sujeito,
no sentido, principalmente, dele não se achar competente em desenvolver suas reais
potencialidades.
Uma autoestima baixa demonstra uma autocrítica às vezes bastante severa da pessoa
consigo mesma. Do ponto de vista estrutural e dinâmico é uma opressão psíquica sobre o
Ego/self. É o Ego Ideal/Ideal de Ego (Superego) cobrando do Ego Real um Ego que ele jamais
conseguirá alcançar. Cobranças narcisistas de auto perfeição faz nossas normais imperfeições
serem sentidas como retumbantes malogros e estrondosos fracassos
A autoconfiança tem sua base, seguindo o psicanalista de origem alemã Erik Erikson, na
primeira etapa do desenvolvimento psicossocial do ser humano. Segundo Erikson, no estágio
inicial da vida o psiquismo infante deve desenvolver confiança em relação ao ambiente que o
cerca. Trata-se do primeiro ambiente social da criança (bebê). É com relação às pessoas do
mundo que vivemos nossos primeiros passos na vida, principalmente em relação ao objeto
cuidador (mãe), que o psiquismo pueril e imaturo vai começar adquirir confiança em si mesmo.
Um ambiente inseguro, ou até mesmo hostil, que não atende bem às necessidades psicológicas
do infante, tende, no principiar d organização da psique, o desenvolvimento de medos,
inseguranças e incertezas em relação aos seus cuidadores, que tenderá a comprometer os
próximos estágios desenvolvimentais. O sentimento de autoconfiança, assim, ancora-se no
recebimento de amor e responsividades empáticas que seus cuidadores principais vão lhe
proporcionando. Afinal, acreditando no apoio dos seus cuidadores a criança pequena adquire
melhor confiança em ela própria explorar o mundo que se descortina à sua frente. Erikson
chamava isso de Confiança Básica58.
Evidente que iniciar a existência extrauterina não confiando no mundo que lhe dá
sustentação e que atende suas necessidades básicas, faz com que o psiquismo imaturo
desenvolva-se de maneira desconfiada com o ambiente que lhe passa mais sensação de
insegurança e/ou hostilidade. É um começo mais defensivo e desconfiado para a mente infantil,
comprometendo, assim, a base da autoconfiança.
57
Irreal no sentido de distorções interpretativas sobre fatos e eventos da existência. Fantasias, quando se
misturam às experiências de realidade, podem ter impactos em nós como se reais fossem.
58
Vide Desenvolvimento Psicossocial, in: https://repositorio-aberto.up.pt/handle/10216/9133 e Erikson e
a Teoria Psicossocial do Desenvolvimento, in: https://repositorio-aberto.up.pt/handle/10216/9133. Para
fins de consulta na fonte sugerimos o livro de Erikson titulado Infância e Sociedade, Ediciones Home, 1974.
estimular, através de um conjunto de sinais inatos do bebê, um objeto cuidador que lhe atenda
em suas necessidades mais básicas. Este movimento de proximidade/reciprocidade resulta em
um vínculo afetivo primordial ao desenvolvimento psicoemocional da criança. Essas primeiras
relações de apego, que se estabelecem na primeira infância, irá contaminar e se reproduzir no
estilo de apego que o indivíduo ao longo de sua vida inteira59.
1. Sinto que sou uma pessoa digna de apreço, pelo menos tanto quanto os outros.
2. Sinto que tenho qualidades positivas.
3. Geralmente, sou levado a pensar que sou um fracassado/a.
59
Vide Teoria do Apego: bases conceituais e desenvolvimento dos modelos internos de funcionamento,
in: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-52672005000100003.
4. Eu sou capaz de fazer as coisas tão bem quanto a maioria das pessoas.
5. Sinto que eu não tenho muito do que me orgulhar.
6. Tenho uma atitude positiva em relação a mim mesmo/a.
7. No geral, estou satisfeito/a comigo mesmo/a.
8.Gostaria de ter mais respeito por mim mesmo/a.
9. Às vezes me sinto inútil.
10. Às vezes eu penso que não sirvo para nada.
60
Escritor e filósofo romano (4 a.C .- 65 d.C.)
MORALIZAÇÃO DA
ALMA
SUPEREGO
Superego é um termo utilizado por Freud (em alemão Uber-Ich) para descrever a
instância (estrutura) moral da mente. Não nascemos, portanto, com Superego. Não há moral no
psiquismo lactente. Nem sequer há objetos internos (representações mentais de pessoas
externas). No início somos anobjetais. No início somos anômicos62. No início somos puro Id, ou
núcleo do Ego é ainda tão rudimentar e tosco que não tem ainda capacidade de se impor sobre
os impulsos e demandas do Id.
O Superego pode bem ser simbolizado como um juiz interior, representante tanto da
moral quanto uma espécie de legislador intrapsíquico. Também tem a função punitiva, isto é,
gerar culpa, remorso e arrependimento.
61
Escritora ucraniana naturalizada brasileira (1920-1977).
(*) Resultado da Escala da Autoestima de Rosenberg:
Pontuação menor que 15 = baixa autoestima.
Pontuação entre 15 e 25 = autoestima saudável
Pontuação + 25 = elevada autoestima (traços de arrogância/prepotência/narcisismo).
62
Ausência de regras e limites morais e éticos.
A expressão “super” da palavra Superego denota que este nasce do Ego, melhor, dele
se desprende e passa a ser uma nova força dentro do aparelho psíquico63. O Superego, portanto,
qualifica uma estrutura psíquica que pode ser subdividida em Ego Ideal, Ideal de Ego e Superego
propriamente dito64.
63
Expressão também criada por Freud para falar do conjunto de todas as partes eu compõem à mente.
No caso do modelo estrutural, seriam Id, Ego e Superego.
64
Vide: O Superego: em busca de uma nova abordagem, in: https://www.scielo.br/pdf/rlpf/v3n2/1415-
4714-rlpf-3-2-0026.pdf.
65
O termo Ego Real é aqui usado para designar o ego-representacional, isto é, como o Ego “se vê”.
66
Para melhor compreensão vide: Berlink, Luciana C., Melancolia: rastros de dor e perda, capítulo II,
Humanitas, 2008.
67
Julgamento intelectivo que distingue o que é certo e o que é errado para aquela dada pessoa.
68
Fase do desenvolvimento psicossexual (fase fálica) onde há uma espécie de disputa psicológica entre a
criança e o progenitor do sexo oposto.
69
Supera-se a “angústia de castração” (simbólica) pela aceitação da “castração” (simbólica).
70
Artmed, 2009.
da nossa matriz pulsional e instintiva. Enquanto o Ego é a parte da mente voltada à realidade, o
Superego é a parte da mente voltada ao social e, portanto, ao outro (altruísmo). Todavia, nem
sempre as coisas são plenamente assim tão parceiras.
71
Se assim fosse, o Superego corresponderia à internalização das paresonalidade parentais, mais
precisamente da personalidade do pai. Porém, a internalização tem a ver com aspectos parentais, e não
como o pai (ou os pais) são.
72
Forma como os pais se relacionam com os filhos.
73
Apud Psicopatologia: teoria e clínica, Artmed, 2016.
74
O Ego e o id e Outros Trabalhos, Edição standart brasileira das obras completas de Freud. Imago, 1996.
Superego que dela tira sua força para se opor ao Id, mas também uma força (agressiva)
para subjugar o Ego. Nesse aspecto, a crítica que a estrutura superegóica imprime sobre a
outra estrutura (Ego) tem o poder da culpa como sentimento opressor, e, às vezes, até com
tamanha rigidez, severidade e impediosidade75.
Claro que para entender tal dinâmica psíquica é necessário ter em mente o
chamado ponto de vista econômico que Freud nos instiga a pensar o psiquismo humano.
Refletir sobre o aspecto econômico significa raciocinar em termos do jogo de forças dentro
do aparelho psíquico, isto é, como uma estrutura tem força (energia psíquica) para se
antagonizar com outra força (energia psíquica). Lembrar que toda energia psíquica, em
princípio, demanda do Id (matriz energética do aparelho psíquico), mas que se distribui
tanto a serviço do Princípio de Realidade quanto ao Princípio do Dever76.
Mais uma vez ouçamos Freud: “se considerarmos mais uma vez a origem do
superego, tal como a descrevemos, reconhecemos que ele é resultado de dois fatores
altamente importantes: um de natureza biológica e outro de natureza histórica, a duração
prolongada, no homem, do desamparo e da dependência de sua infância77”. Nesta sua
afirmação é possível compreender a perpetuação da influência dos pais, agora a partir de
dentro do próprio psiquismo humano.
Por tudo acima exposto, podemos resumir em três em funções do Superego, sendo
as duas primeiras inerentes à subestrutura de caráter moral e a última inerente à
subestrutura inerente ao Ego Ideal/ideal de Ego, a saber:
- auto-observação;
- censura;
- cobrança.
75
Vide Avatares da Instância Crítica: supereu entre o isso e o princípio de morte, in:
https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-65642012000300003&script=sci_arttext&tlng=pt.
76
Com vistas a aprofundar o assunto vide: O Modelo Estrutural de Freud e o Cérebro: uma proposta de
integração entre a psicanálise e a neurofisiologia, in: https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0101-
60832010000600005&script=sci_arttext&tlng=pt.
77
O ego e o Id, op. Cit.
CONSCIÊNCIA MORAL
Não confundir a consciência moral com o Superego. Este é descrito como uma
estrutura formada dentro da mente em sua parte inconsciente, enquanto aquele, como a
própria expressão aponta, faz parte da porção consciente do psiquismo, portanto do
Ego78/Self.
Como sabemos, não nascemos com qualquer noção de moral. Somos naturalmente
anômicos. Porém, o ser humano, para se humanizar no sentido social da palavra (o ser
humano é um ser biopsicossocial). O processo de nos tornarmos humanos passa por aquilo
que conhecemos como socialização (primária e secundária). Evidente para que conceitos
morais se enraízem no interior da alma se faz necessário haver um mínimo de estruturação
superegóica na mesma,
Para o psicólogo suíço Jean Piaget o psiquismo imaturo evolui do estágio sensório-
motor por meio de uma função mental conhecida como imitação (a partir dos 2 anos,
aproximadamente), que se completa pelo efeito do que ele chamou de interiorização79.
78
Ego representacional.
79
Para melhor entendimento de tal dinâmica vide O Desenvolvimento da Criança nos Primeiros anos de
Vida, in: https://acervodigital.unesp.br/bitstream/123456789/224/1/01d11t01.pdf.
80
Nomia vem do grego nomos, que significa lei, regra, norma.
81
Vide Lawrence Kohlberg: ética e educação moral, Moderna, 2002.
obedecer para evitar um castigo. Tal estágio representa uma obediência para não ser
punido.
82
Para um melhor entendimento e aprofundamento vide Considerações sobre a Educação Moral de
Kohlber, in:
http://www.unoeste.br/site/enepe/2015/suplementos/area/Humanarum/Psicologia/CONSIDERA%C3%
87%C3%95ES%20SOBRE%20A%20EDUCA%C3%87%C3%83O%20MORAL%20DE%20KOHLBERG.pdf,
e Desenvolvimento Moral: de Piaget a Kohlberg, in:
https://periodicos.ufsc.br/index.php/perspectiva%20/article/viewFile/9127/10679.
SOMOS FEITOS DE
SONHOS
Quem olha para fora sonha,
quem olha para dentro desperta.
Carl Jung
FANTASIA
Considerando que as necessidades fisiológicas do bebê são atendidas pela mãe (objeto
cuidador), podemos também entender que vem dessa relação (que o neonato ainda é incapaz
de perceber) a mola propulsora da imaginação. Acredito que também não soaria um absoluto
83
Somniator em grego é sonhador.
disparate afirmar aqui que a origem dos sentimentos têm como base a mãe, aliás, a relação
bebê-mãe.
Não há atividade imaginativa que não seja fantasiosa. A relação entre fantasia e
imaginação é tão intrínseca que quase fica diferenciar uma da outra.
Claro, basta se auto observar, para perceber que o fantasiar nos fugir ou mudar o mundo
em que estamos vivendo. Todavia, se a fantasia tem esse “poder” psicológico também o tem
para o lado mais negativo possível, ou seja, nossas fantasias podem nos levar a imaginar o
melhor dos mundos, mas, por outro lado, pode nos levar a imaginar o pior dos mundos. Nem
todo sonho é tão sonho assim. Muitos sonhos podem ser pesadelos. A mesma mente que produz
príncipes encantados também produz bichos-papões.
84
Bisneta de Napoleão Bonaparte e contemporânea de Freud (ela viveu entre os anos 1882-1962), em
muito contribuiu, inclusive financeiramente, para a popularização da Psicanálise, além de ter ajudado
Freud e sua família a fugirem da Alemanha nazista.
85
Apud, Pugliese, R., Bebê Aquático, Appris, 2017.
Mesmo com o progressivo amadurecimento da mente, sua capacidade fantasiosa
permanece e nos acompanhará vida afora. Podemos, inclusive, até afirmar que o psiquismo
humano é tendenciosamente escapista. Em si isso não é de todo ruim, afinal a realidade em sua
totalidade provavelmente nos seria insuportável. Necessitamos de um pouco de ilusão, de
esperança, de fé, de crenças... enfim, se sonhos. Somos feitos da mesma matéria de que são
feitos os sonhos.
Como citado, a fantasia nos ajuda a fugir do mundo real, como ele é, para mundos
imaginários e paralelos. É uma defesa mental. Precisamos de algum consolo psíquicos, de
satisfações ilusórias. Como igualmente afirmava Freud, os seres humanos “não podem subsistir
da escassa satisfação que podem tirar da realidade”.
Fantasia, portanto, é o que a nossa mente cria como oposto da realidade. Ela pode tanto
criar um outro mundo totalmente diferente do real, como distorcer aspectos da realidade para
adequar a satisfações frustradas, embora, às vezes, a fantasia possa tomar formas psíquicas de
dramas, pesadelos e medos, que de fato seria inexistentes na ausência da fantasia. Fantasias,
por fim, é uma atividade mental inerente ao ser humano, uma atividade imaginativa inata e,
86
Para um melhor aprofundamento do tema, vide: Verdade e Fantasia em Freud, in:
https://www.scielo.br/pdf/agora/v14n1/a04v14n1.pdf, Melanie Klein e as Fantasias Inconscientes, in:
http://pepsic.bvsalud.org/pdf/wep/v2n2/v2n2a05.pdf e Fantasias Freudianas: aspectos centrais e
possível aproximação com o conceito de esquemas de Aaron Beck, in:
https://www.scielo.br/pdf/pusf/v18n2/v18n2a15.pdf.
muitas vezes, até, necessária e suavizadora à árdua experiência de viver e ter consciência do
viver e de sua finitude.
DESEJO
Desejo é falta, dizia Platão. Se desejo é falta, então somos seres de desejos, afinal somos
insuficientes, não podemos tudo e nem sequer somos tudo. Queremos ser perfeitos, mas não
somos. Queremos ser onipotentes, mas não somos. Queremos ser o centro do mundo, mas não
somos. Queremos tudo, mas não podemos. Queremos o que queremos na exata hora que
queremos, mas não conseguimos. Decididamente somos narcísicos frustrados.
O psiquismo humano tem carências psíquicas e por isso tem apetência. Por ter fome,
tem vontade e por isso tem carências e querências. É da nossa essência ir além dos instintos
naturais. Nossa substância humana é feita de sonhos e desejos.
O desejo humano é mais que apenas vontade. O desejo é em nós uma força que nos
propulsiona, nos direciona rumo a. Desejamos o que nos falta. E nos falta tantas coisas.
A mente nos ilude. A mente nos mente. Ela nos faz acreditar que alcançando a realização
de um dado desejo extinguir-se-á a tensão que ele nos provoca por dentro. Ledo engano. O
filósofo alemão Arthur Schopenhauer já no século XIX, em sua principal obra O Mundo como
Vontade e Representação87, escreveu que “o desejo, por sua natureza, é dor: sua realização traz
rapidamente a saciedade; a posse mata todo o encanto; o desejo ou a necessidade de novo se
apresentam sob nova forma: senão, é o nada, é o vazio, é o tédio que chega”.
Sim, necessitamos desejar para nos sentirmos vivaz. Embora o desejo nos inquiete, ele
nos anima, motiva-nos e nos impulsiona. Sim, desejo é sinônimo de impulso. E todo impulso é
por natureza ânsia. Baseado no Princípio do Prazer, o impulso é imediatista, por isso tem como
sinonímia palavras como rasgo, pulsão, rompante.
87
Contraponto, 2001.
Para Schopenhauer o humano oscila entre o sofrimento da necessidade e do desejo, e
o tédio que a satisfação da necessidade e do desejo nos provoca. Por isso, dentro da ótica
proposta pelo pensador, a mente precisa estar sempre desejando, pra fugir da infelicidade do
vazio, e se contentando com momentos passageiros de felicidade.
Freud, também alemão, bebeu dessa fonte de sabedoria88. Talvez sem Schopenhauer
Freud não chegasse ao conceito de inconsciente, ou talvez demorasse mais a percebê-lo. Talvez.
O que sabemos, contudo, é que Schopenhauer, muito antes de Freud, já nos falava da relação
entre o sonhar e a realidade. Para ele a vida é como se fosse um prolongado sonho, apenas
descontinuado quando dormimos e a trocamos por outros sonhos. Como diz o filósofo, o mundo
é uma representação que a mente faz dele (“o mundo é a minha representação”), por isso
refletiu: “nós temos sonhos; não é talvez toda a vida um sonho? Mais precisamente: existe um
critério seguro para distinguir sonho e realidade, fantasmas e objetos reais”.
A pergunta que se impõe agora é: existem desejos inconscientes? Resposta: sim. Nem
todo desejo alcança à superfície mental. Bem como é possível haver desejos que foram
expelidos da consciência, principalmente por questões morais (Superego).
Desejos que ameacem o equilíbrio psíquico, como, por exemplo, que afrontem a moral
do indivíduo, podem ser rechaçados da consciência pela força imperativa do Superego, ou, até
mesmo, impedidos de chegarem à consciência. Na linguagem da Psicanálise tal mecanismo
defensivo é conhecido como recalque.
Partindo do pressuposto freudiano que o afeto não pode ser inconsciente, apenas o que
pode ser recalcado, portanto, é o represente psíquico ideativo. Enfatizando: o recalcamento
recai somente sobre a ideia e não sobre o afeto (energia psíquica). A energia, então, desligada
88
Para melhor entendimento vide Apresentação: a presença de schopenhaueriana no pensamento de
Freud, in: http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0009-67252015000100009.
89
Freud e o Inconsciente, op. cit.
90
Segundo o psicanalista francês Jacques Lacan “a pulsão nunca se dá por si mesma, nem a nível
consciente, nem a nível inconsciente; ela só é conhecida pelos seus representantes: o representante
ideativo (vorstellung) e o afeto (affekt)”.
do representante ideativo se deslocaria ou para outro representante ideativo ou para o próprio
corpo (somatização)91.
Consciente
A B
C D G
E F
Pré-consciente
Figura 1: G (ideia) ao ser excluído do sistema consciente-pré-consciente foi expulso para o sistema inconsciente.
Um desejo sem força, ou seja, um desejo sem emoção, é um desejo anoréxico. Aliás,
nem sequer deveria ser chamado de desejo no sentido pulsional do mesmo. Podemos, então,
chamá-lo de apenas devaneios. Desejo, na acepção de impulso/rompante, é um estado interior
de tensão, que, por sua, vez acompanha-se de emoção. Afinal, a própria raiz etimológica da
palavra emoção vem do latim ex movere (mover para fora). Um impulso (desejo) quer se
91
Para melhor abrangência do assunto e compreensão vide Freud, S. As Neuropsicoses de Defesa, Obras
Completas, vol. III, Imago, 1969. Disponível em PDF in: https://docero.com.br/doc/snevve.
92
Coxia é um lugar situado dentro da caixa teatral, mas fora do palco. Também conhecida como
bastidores.
expressar em ação, isto é, em movimento, para fora do psiquismo. O desejo não vem sozinho93.
Ele de alguma forma vem acompanhado de alguma emoção (ânsia, afã) ou pode gerar emoções
(medo, ansiedade). Um desejo pode, por si mesmo, ser uma reação, uma resposta a um dado
estímulo, como, por exemplo, quando alguém nos provoca raiva e temos desejo de esmurrá-lo
ou até de matá-lo94. Por isso, conscientemente, os desejos (que chegam até nossa consciência)
precisam ser controlados.
MEMÓRIA
Sem memória não há sonhos humanos. Sem sonhos não seríamos humanos, afinal
somos feitos da mesma matéria de que são feitos os sonhos.
93
Desejo/impulso/motivação e emoção são e estão interligados.
94
Por isso é possível classificar os desejos em: desejos envolvidos com emoções, e desejos decorrentes
de emoções.
95
Filósofo grego (341-270 a.C.).
Cognição e Comportamento96, para quem a memória representa a capacidade de repetir a
execução de um comportamento, “um animal capaz de lembrar de uma estratégia de caça, ou
de repetir um desempenho ou de lembrar de que uma determinada atividade poderá lhe salvar
a vida estará levando vantagens de sobrevivência sobre aqueles que não são capazes de fazer o
mesmo”.
Memória declarativa97 é uma memória de curto prazo, bem como pode ser evocada
conscientemente, como, por exemplo, lembrar o nome de alguém, uma data, um evento, etc.
Por sua vez, a não-declarativa não envolve a recordação consciente. Trata-se de uma memória
de longo prazo, e ela se manifesta no nossos mínimos gestos, comportamentais e detalhes
atitudinais.
Porém, a memória evocativa não é tão confiável assim. Dizia Lacan, “vocês não podem
nunca estar certos de que uma lembrança não é uma lembrança encobridora. Quer dizer, uma
lembrança que bloqueia o caminho do que posso situar no inconsciente, isto é, a presença - a
ferida - da linguagem. Nós não sabemos nunca; uma lembrança, tal como ela é imaginariamente
revivida - o que é uma lembrança encobridora - é sempre suspeita”.
É muitas vezes difícil para nós duvidar da nossa memória, afinal são as lembranças
biográficas da nossa vida. Não é porque ela nos ilude que ela esteja nos mentindo. Nós
realmente acreditamos na evocação, pois foi assim que a registramos. Quando vivenciamos algo
que se fixa em nossa memória tal experiência é impregnada pelas emoções do instante, por
nossas fantasias, desejos, ângulo de percepção e, até, pela nossa personalidade, faixa etária e
capacidade cognitiva à época.
Memória tem lacunas. Freud reconheceu isso. A mente pode muito bem preencher tais
lacunas com lembranças irreais e/ou distorcidas. Nossa imaginação é fértil, podendo facilmente
se misturar às nossas recordações.
96
Casa do Psicólogo, 2007.
97
Na memória declarativa também se distingue a memória episódica e a memória semântica. Para tal vide
Eysenck, M. e Keane Mark, Manual de Psicologia Cognitiva, 7ª edição, Artmed, 2017, e o artigo Memória, in:
https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-79722015000400017.
98
Termo em latim que significa “depois”, “seguinte”.
99
Termo em latim eu significa “antes”, “anterior”.
feitos os sonhos, nossa memória também, isto é, quanto mais remota for a reminiscência mais
ela é uma mescla de realidade, devaneios e fantasias. Vivemos lendo a realidade contaminados
por nossa intrínseca qualidade onírica100.
100
Para aprofundamentos vide: Sobre a Lembrança: uma abordagem psicanalítica dos limites estruturais
da memória, in: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-79721999000300006, e
Paradoxos da Memória em Psicanálise, in:
https://www.researchgate.net/publication/335647216_Paradoxos_da_memoria_em_psicanalise_The_p
aradoxes_of_memory_in_psychoanalysis.
101
Jornalista e escritor uruguaio (1940-2015).
A GRAMÁTICA DAS
EMOÇÕES
Dar a cada emoção uma personalidade,
a cada estado de alma uma alma.
Bernardo Soares102
AFETOS PRIMÁRIOS
No século XVII o filósofo holandês Baruch Spinoza compreendeu que todos os afetos
provêm de três afetos primários; desejo, alegria e tristeza. Para ele a vida afetiva se origina do
conatus103, que é potência de agir, tendência inata à autoconservação. Segundo Spinoza essa
potência é tanto corpórea quanto mental (no corpo é apetite, na alma desejo)104. Assim sendo,
os afetos são a causa da ação (comportamento)105.
A alegria é o afeto com conatus elevado. Já a tristeza, o afeto com potência baixa. E o
desejo é o determinante da maneira de agir e existir. Da combinação dos três afetos primários
(analogamente às cores primárias) temos os demais afetos (raiva, medo, amor, aversão, ciúme,
inveja, culpa, arrependimento, frustração, esperança, gratidão, coragem, etc.)106.
Do ponto de vista da Psicologia Moderna, afeto é uma palavra que abrange tendência,
paixão, emoção, sentimento.
Sentimento e emoção não são sinônimos. Emoção é hoje definida como um conjunto de
respostas neuroquímicas que se manifesta no cérebro em reação a um estímulo externo.
102
Heterônimo do poeta português FernandoPessoa.
103
Em latim significa impulso, esforço, tendência.
104
Em Spinoza não há dicotomia entre corpo e mente.
105
O leitor aqui atento terá notado a relação entre conatus de Spinoza e pulsão em Freud.
106
Para melhor entendimento, vide Ornellas, L.S., Maria, Afetos: o que queres de mim?, Paco editorial,
2018.
Sentimento, em contrapartida, também é uma resposta, porém uma resposta à emoção, isto é,
como a pessoa se sente quanto experimenta uma emoção.
As emoções básicas, inatas, são raiva, medo (ansiedade), alegria e tristeza. Derivam-se
dos circuitos neurofisiológicos ligados ao sistema límbico, com ênfase na amígdala107. Já os
sentimentos estão relacionados ao neocórtex, que funciona como uma espécie “gestor
emocional”. Enquanto o sistema límbico desencadeia uma resposta emocional, o neocórtex
“segura”, “controla”, “regula” o impulso emocional para que seja mais moderado e adequado.
Considerando, pois, que os sentimentos são entendimentos que damos ao que nos
emociona, então, também podemos dizer que os sentimentos são experiências subjetivas das
emoções108. Damásio distingue sentimento de emoção considerando que o sentimento é um
afeto orientado ao interior (experiência subjetiva) e emoção é um afeto é voltado ao exterior
(ex movere)109.
Medo: estado afetivo provoca por uma ameaça de perigo. O medo é uma emoção de
alerta, que nos leva a movimentos tipo fuga-ataque111. Por estar ligado à vida (sobrevivência) p
medo é fundamental, pois antecipa o perigo. Embora na classificação usual de afetos positivo e
negativos o medo esteja no grupamento negativo (não se trata de um afeto prazeroso), por
outro lado é um afeto positivo enquanto relacionado a autopreservação. Todavia há medos reais
e medos irreais. Os medos irreais estão na base das fobias neuróticas e patologias de cunho
paranoide e evitativas.
Ansiedade é medo, mas tem lá sua diferença. Como emoção o medo é abrupto
desencadeado por algum evento do mundo externo. Medo é estado de tensão e é acompanhado
de alterações fisiológicas (elevação do batimento cardíaco, por exemplo). Ansiedade também.
Se o medo é um sinal de alerta e resposta frente a um perigo ou ameaça, a ansiedade é uma
antecipação, isto é, dispara antes da ameaça ocorrer. Por isso ansiedade é uma apreensão, uma
expectativa.
Raiva: necessitamos de agressividade para sobreviver. Ao menos era assim com nossos
ancestrais. A raiva é muitas vezes em nós provocada devida a uma frustração, a uma
contrariedade. Ou seja, quando nossos desejos não se realizam.
A agressividade nos é constitucional, além de bastante necessária à nossa auto
conservação. O psiquiatra e psicanalista escocês Ronald Fairbairn, um dos nomes mais
importantes da Teoria da Relações Objetais na primeira metade do século XX, percebeu que a
agressividade é a resposta que o psiquismo dá à frustração que o dado objeto externo o
submete. Para Fairbairn a energia psíquica tensiona em busca de descarga e para tanto requer
um objeto externo onde possa descarregar sua pulão ou parte dela. Neste sentido, o objeto
107
Parte da estrutura cerebral, que se localiza no interior dos lóbulos temporais, que processa as reações
emocionais.
108
Para maior abrangência do assunto vide: Psicologia das Emoções: uma proposta integrativa para
compreender a expressão emocional, in: https://www.scielo.br/pdf/pusf/v20n1/1413-8271-pusf-20-01-
00153.pdf.
109
Vide o Erro de Descartes: emoção, razão e o cérebro humano, Companhia de Bolso, 2009.
110
Há quem inclua outros afetos no conjunto das emoções básicas, tais como a surpresa e o nojo.
111
Há ainda um terceiro movimento: paralização (como se “fingisse de morto”).
externo é importante e fundamental auxiliar para o objetivo psíquico de liberar energia (desejo),
e, com isso, diminuir certo estado de tensão interna à mente humana112.
Alegria: tem-se alegria quando se sente algum prazer. Do ponto de vista físico (orgânico)
a alegria é uma emoção que incentiva a ação, bem como um afeto que atua como recompensa.
Por isso, a alegria está na base da motivação, ou seja, o que se deseja é a alegria que o objetivo
alcançado nos proporciona. Neuroquimicamente ocorre uma maior liberação de dopamina e
endorfinas.
Tristeza: o oposto da alegria. É caracterizada por uma queda do estanho de ânimo, bem
como por uma redução significativa da atividade cognitiva e comportamental. Há, então, de se
perguntar: qual a função evolutiva da tristeza para ela nos ser uma emoção básica? Resposta:
ajuda a recompor energia, ou seja, em situações onde não há como agir, força-nos a poupar
recursos e evita-nos que cometemos esforços e dispêndios de energia desnecessários. Em
termos mais simples: impede dar murro em ponta de faca113.
A tristeza também uma função psicológica autoprotetora, pois chama a atenção da
pessoa para um dado estimulo ou situação danoso, auxiliando, assim, a evitar uma conjuntura
potencialmente geradora de depressão.
AFETOS SECUNDÁRIOS
Afetos secundários são aqueles que desenvolvemos depois dos primários. Não são
afetos/emoções inatas. Não nascemos com eles, embora tenhamos potencial e tendência a
desenvolvê-los. Eles são praticamente inevitáveis, porém sua presença, ausência, grau e
intensidade são influenciados e determinados pela história de vida do sujeito em suas relações
interpessoais. Por essa razão, os afetos secundários são igualmente conhecidos como afetos
sociais.
Do ponto de vista dos afetos as emoções primárias são mais impactantes, abruptas,
porém passageiras, isto é, duram menos tempo; ao menos, menos tempo que os afetos
secundários, pois estes tendem a serem mais prolongados, vide, por exemplo, o amor e o rancor.
Em um momento de raiva intensa podemos querer partir pra cima de alguém com vontade de
esganá-lo, todavia não vamos ficar passando dias ou meses com essa mesma raiva e sua vontade
de trucidar o outro. Já o sentimento de vingança pode levar dias, meses, anos, até a vida inteira
consumindo por dentro uma pessoa.
112
Para melhor compreensão vide Bleichmar, Noberto M. e Bleichmar, Célia L., A Psicanálise Depois de
Freud, Artmed, 1992.
113
Expressão popular que significa “lutar contra uma coisa impossível de ser lutada” ou “insistir em algo
que não vai conseguir”.
São vários e muitos os sentimentos que podemos e vamos sentir na vida. Uns mais,
outros menos. A lista é imensa, e inclui afetos positivos e negativos, tais como: medo, raiva,
alegria e tristeza (não como emoções, mas como o sentir dessas emoções), ciúme, ternura,
inveja, amizade, cobiça, confiança, desconfiança, esperança, desesperança, amor, culpa,
gratidão, vaidade, bem-estar (felicidade), rancor, entusiasmo, vergonha, paixão, preocupação,
admiração, angústia, tranquilidade, pudor, adoração, saudade, júbilo, tédio, alívio, espanto,
otimismo, pessimismo, coragem, covardia, contentamento, desprezo, compaixão, vingança,
curiosidade, obrigação, bondade, solidão, respeito, ódio, solidariedade, mágoa, satisfação,
egoísmo etc. Muitos até se parecem, inclusive se fazem acompanhar de outros sentimentos.
Todavia cada sentimento é um sentimento com qualidade diferente entre si, sútil ou não.
Provavelmente um sentimento nunca se faz sozinho, isto é, é resultado de uma combinação de
vários outros. Todavia, observando melhor e mais agudamente os sentimentos humanos,
verifica-se que por detrás há sempre, de alguma maneira, uma emoção básica, como, por
exemplo, por detrás da vergonha existe medo (medo de ser humilhado, rejeitado,
ridicularizado), assim como por detrás da inveja, da mágoa, do rancor e da vingança existe raiva.
Já por trás do júbilo e do contentamento existe alegria; e no fundo da saudade e da nostalgia
existe algum grau de tristeza. E na base disso tudo encontra-se uma boa autoestima ou uma
baixa autoestima, às vezes tão alta que se transforma em euforia, ou tão baixa que se transverte
em depressão.
CULPA INCONSCIENTE
Não existe sentimento de culpa no principiar da vida psíquica. Não nascemos com tal
afeto. Um neonato e um bebê não sentem culpa. A culpa (vida capítulo Moralização da Alma)
somente vai se formar no interior da psique humana com a consolidação de uma estrutura
psíquica que convencionamos chamar de Superego.
Do ponto de vista estrutural o sentimento de culpa advém da tensão entre o Superego
e o Ego. Todavia essa culpa resultante da pressão do Superego sobre o Ego é o que conhecemos
como culpa inconsciente114, visto que, teoricamente, o Superego é entendido como uma
instância psíquica inconsciente. Sento um sentimento que não se sente (por ser inconsciente ao
Ego consciente), igualmente a instância consciente da mente (Ego representacional/Self) não
tem conhecimento da necessidade de punição que o Superego imprime devido à culpa. Tal
exigência de castigo, por sua vez, se exprime no comportamento, geralmente autodestrutivo ou
auto penalizante.
Mais do que uma culpa proveniente pela pessoa ter feito algo errado (isso é culpa
consciente/consciência moral), é uma culpa originada da hipercrítica do Superego em suas
subestruturas narcisistas, mais precisamente do Ideal de Ego. É comum chamarmos, frente à tal
ocorrência, o Superego de sádico, devido a sua opressora exigência de perfeição, agressividade
esta advinda dos precursores idealizados do Superego. Trata-se, assim, de um poder primitivo,
implacável e cruel em suas demandas de onipotência narcísica. Podemos ver um exemplo da
inclemência superegóica em casos, por exemplo, de transtornos obsessivos-compulsivos115.
Fiquemos, então, no momento com a seguinte solução: mesmo que não haja um
sentimento inconsciente (no caso a culpa), o Superego pode imprimir castigo ao Ego só pela
possibilidade de ter “pensado” (desejado). Embora tal “pensamento” (desejo) seja à parte
consciente da mente recalcado ou reprimido, interiormente o Superego “sabe” de tal desejo
que sequer o Ego consciente não sabe. Permitam-me, aqui, associar com um ditado popular que
diz escreveu não leu, o pau comeu. Trata-se de uma culpa não agida, ou seja, de uma culpa
desejada. Um desejo que não chegou à luz do mundo externo; que ficou reprimido nos porões
do psiquismo humano por ser demais repreensível pela moral ditada pelo Superego, e,
consequentemente, por demais insuportável ao Ego. A mente se defende de tais desejos
(excessivamente promíscuos, perversos, violentos ou incestuosos) recalcando-os e com eles
também a culpa que o Ego, então, não sentirá. O que fica de tal operação psíquica, é uma forte
114
Para melhor entendimento, vide: Sentimento de Culpa na Obra Freudiana: universal e inconsciente,
in: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-65642011000300011, e Sentimento
de Culpa e Superego: reflexões sobre o problema da moralidade na teoria freudiana, capítulo do livro
Culpa e Laço Social: possibilidades e limites, disponível in:
https://psiligapsicanalise.files.wordpress.com/2014/09/c3a2ngela-b-do-rosc3a1rio-e-jacqueline-de-o-
moreira-orgs-culpa-e-lac3a7o-social-possibilidades-e-limites.pdf
115
Vide: A Ferocidade da Culpa na Neurose Obsessiva: do desamparo à angústia moral, in:
https://www.redalyc.org/jatsRepo/2871/287142227005/html/index.html
116
Op. cit.
demanda vinda do inconsciente (onde o desejo e sua decorrente culpa estão contidos) por
punição e castigo. E, assim, sem se aperceber se exporá a riscos desnecessários e/ou transladará
o pecado ou crime que não fez (reprimido/recalcado) para transgressões secundárias que
possam gerar alguma culpa a ser sentida.
Trata-se, portanto, não de uma culpa por atos delituosos, mas sim uma culpa por não se
corresponder internamente o Idea de Ego. É como se a mente se culpasse por não ser perfeita;
ou ao menos culpasse a parte manifesta dela (o Ego é a parte de mente que lida com o mundo
externo) por não ser como ela (Ideal de Ego/Ego Ideal) gostaria de ser122.
Um Ego assim tão fragilizado sob a opressão do Superego em suas demandas idealizadas
se sente deficiente, incapaz, ineficiente, desqualificado e inapto. Um Ego assim tão submisso às
exigências narcisistas do Superego leva o sujeito a apresentar uma inevitável baixa autoestima.
Como escreve a psicanalista Urania Tourinho, em seu livro Depressão e Melancolia, 123“a falta
completa, ou quase completa, de autoestima se presentifica através de intensa recriminação.
Dizer-se um nada, um incompetente, um lixo reflete o sentimento de odiar-se a si próprio”. É
como se a pulsão de morte124 se sobrepusesse à pulsão de vida.
117
Há quem a chame de “culpa persecutória”.
118
Freud chega a usar a seguinte expressão: “como se tivesse se apossado de todo o sadismo disponível
na pessoa”.
119
A moralidade excessiva do Superego e suas exigência de perfeição em uma pessoa pode ser tanta que
o mesmo chega a ser cruel com a própria pessoa, isto é, com seu Ego. É como se o Superego quisesse
destruir o Ego.
120
Civilização Brasileira, 2008.
121
Vide também 1985: Luto e Melancolia, in:
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-58352016000100016, e Para uma
Abordagem Estrutural da Depressão: contribuições freudianas, in:
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1415-
11382008000200001#:~:text=Porquanto%2C%20neste%20%C3%BAltimo%20caso%2C%20entra,Supereg
o%20procura%20destruir%20o%20Ego.&text=O%20melhor%20que%20poder%C3%ADamos%20fazer,de
%201917%3A%20Trauer%20und%20Melancholie..
122
Vide melhor em A Melancolia na Obra de Freud: um narcisismo sem (des)culpa, in:
https://www.scielo.br/pdf/rlpf/v4n4/1415-4714-rlpf-4-4-0092.pdf.
123
Zahar, 2003.
124
Pulsão de morte e pulsão de vida são especulações teóricas importantes no modelo freudiano que
designa ambas como movimentos da vida. A pulsão de morte representa a nossa capacidade de
autodestruição, enquanto a pulsão de vida representa nossa inclinação à autopreservação e à
sobrevivência.
125
Peguin, 2016.
emoções brutas e o desejo concupiscente, enquanto o cavalo branco representa o impulso
moral e seus princípio. Já o condutor representa a vontade do intelecto. Cabe a este regrar os
cavalos antagonistas para que a biga siga o bom caminho.
Somos seres de desejos e moral. Somos seres que tem que lidar com eles dentro de um
contexto de realidade e sem excessos. Excesso de desejos, sem freios, pode nos machucar.
Excesso de moral pode nos oprimir e limitar. Excesso de realidade pode nos inibir e refrear-nos
tanto e nos amedrontar tanto que nos enclausuramos assustado e definhamos por dentro. E é
desse embate constante entre desejo x moral (conflito interno) e entre ambos e a realidade
(conflito com o mundo externo) que transita pela existência essa imaterialidade (alma)
materializada em um corpo, chamado de ser humano.
É do entrechoque e da luta intestinal entre nossos desejos e nossa moral que muitas
vezes a culpa, afinal sem desejo não há culpa, assim como sem moral também.
126
Escritor português (1974 - ).
NÓS SOMOS O QUE
PENSAMOS
Estou tonto,
tonto de tanto dormir ou de tanto pensar,
ou de ambas as coisas.
Álvaro de Campos127
FENOMENOLOGIA
Já afirmava o filosofo francês René Descartes no século XVII, cogito ergo sum (penso,
logo sou).
É comum proclamar “somos o que pensamos”. Mas por que somos o que pensamos?
Somos o que pensamos porque é através dos nossos pensamentos que vemos e fazemos o nosso
mundo. O nosso mundo não é a realidade, sequer uma cópia fidedigna do mundo externo a nós.
O nosso mundo, o mundo de cada indivíduo, é um mundo fenomênico, isto é, um mundo que
nos chega (que em nós entra) por meio dos nossos sentidos e da consciência imediata. Trata-se,
assim, de uma descrição que fazemos do mundo real, contaminada por nossos sensações,
experiências anteriores e pelas palavras que possuímos em nosso vocabulário mental.
Para o filósofo prussiano Immanuel Kant o mundo das coisas como as coisas são é o
mundo numênico. Já o mundo fenomênico é o mundo das coisas tal como as percebemos. Para
ele, os sons, as luzes, os sabores, os cheiros e aromas, as ideias não são em si objetos externos,
mas sim representações que nossas sensações e pensamentos fazem desses objetos. Desse
modo, por exemplo, uma fotografia tirada de uma dada cena, paisagem ou panorama não é a
cena, paisagem ou panorama, porém representação (uma imagem) captada pela câmara
fotográfica e pelo olhar do fotógrafo, ou seja, um pedaço de papel ou superfície sensível cuja
exposição luminosa fixou-se nele/nela128. A foto não é a cena, somente uma representação
fotografada da cena. Nós não podemos levar a cena, paisagem ou panorama (mundo real) para
casa, apenas a imagem dela captada. Parece a mesma coisa, mas não é a mesma coisa. A coisa
é uma coisa. A reprodução fotográfica129 dessa coisa é outra coisa, é uma representação.
127
Heterônimo do poeta português Fernando Pessoa.
128
A fotografia digital também é uma imagem fotográfica obtida através de um sensor óptico ligado a um
processador eletrônico que a transforma em arquivo de computador.
129
Fotografia vem do grego phos (luz) + graphein (grafar, desenhar). Ao pé-da-letra significa “desenhar
com a luz”, “escrever com a luz”.
O filósofo francês do século XX Merleau-Ponty130 ponderava que, por estarmos no
mundo real, somos condenados a vivenciá-lo por meio das nossas experiências, percepções e
significações. Nossas vivências são inseparáveis da nossa subjetividade, pois nosso mundo é o
mundo vivido. Quando morrermos esse mundo vivido morrer conosco, mas o mundo real
continua.
O mundo de fora nos chega fisiologicamente através dos sentidos e o cérebro atribui a
eles significados. Tal função cerebral e psíquica chama-se percepção. É por meio da percepção
que o ser humano interpreta suas impressões sensoriais e, assim, confere significação ao
percebido. Todavia, cada pessoa tem uma percepção de alguma maneira um pouco ou um tanto
divergente de outra pessoa. Por que isso acontece? Isso acontece porque somos
individualmente seres históricos e biograficamente diferentes.
Disse Merleau-Ponty que o corpo é mais do uma substância básica onde a alma habita
e dela tira suas percepções. O corpo é também o nosso estar-no-mundo, o nosso ser em
movimento, o nosso contato com a vida que nos circunda e pulsa por dentro.
130
Filósofo que muito dialogou e contribuiu com a Psicologia Fenomenológica. Vide: Entre a Filosofia e a
Ciência: Merleau-Ponty e a psicologia, in: https://www.scielo.br/pdf/paideia/v17n38/v17n38a04.pdf, e
Algumas Contribuições de Merleau-Ponty para a Psicologia em Fenomenologia da Percepção”, in:
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-68672009000100008.
131
Teoria de Carl Rogers sobre a Personalidade e o Comportamento, Arquivos Brasileiros de Psicotécnica
v. 12, n.3, 1960.
132
Martins Fontes, 2ª edição, 1999.
si sua história que se oculta e se revela no eu conhecemos como esquema corporal133.
Lembremos que o Ego é antes de tudo um Ego Corporal134.
O filósofo francês Jean Paul Sartre, conhecido como existencialista, ao se debruçar sobre
a fenomenologia destacou o papel da imaginação sobre a mesma. Para Sartre a imagem é uma
forma de consciência, mas se distingue da percepção, ou, como afirma em A Imaginação, “a
imagem é subjetividade”. Percepção, imaginação, memória tudo se mescla na consciência
fenomênica que o ser humano tem algo ou alguma coisa, qualquer algo, qualquer coisa.
Além do mais, pelo acima exposto, nossas crenças sobre o mundo verdadeiro (real) não
é uma cópia fidedigna da realidade, mas sim crenças relacionadas ao mundo fenomênico que
inferimos sobre o mundo que nos rodeia. O mundo psíquico não reproduz em exatidão o mundo
extra-psíquico, principalmente porque o mundo psíquico necessita de estruturas linguísticas e
simbólicas para produzir nosso conhecimento sobre o mundo externo, ou seja, que está fora da
mente humana.
COGNIÇÃO
A maior qualidade do homo sapiens é, sem sombra de dúvida, sua capacidade cognitiva.
Segundo o historiador israelita Yuval Harari, em seu livro Sapiens – uma breve história da
humanidade135, embora o homo sapiens já existisse há cerca de 150 mil anos ou mais136 atrás,
foi aproximadamente em torno de 70 mil anos que nossa espécie começou a dominar o planeta
Terra. Essa extraordinária transformação ficou conhecida como revolução cognitiva.
Difícil saber com exatidão o que aconteceu para propiciar tal transformação
revolucionária, mas, especula-se, que mutações genéticas ocorridas acidentalmente e ao acaso
contribuíram para as consequentes mudanças nas conexões internas do cérebro. Seja o que
133
Consciência que se tem do corpo, ou seja, a representação psíquica que se tem do próprio corpo.
134
Sobre a questão vide Xavier, R., Cesar, A Psicologia e o Problema Mente-Corpo, Jurua, 2012, e Sobre a
questão corpo-mente vide: Conceito Mente e Corpo Através da História, in:
https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1413-73722006000100005&script=sci_arttext
135
L&PM, 2015.
136
Há estimativa de até 350 mil anos.
tenha se sucedido, o homo sapiens deu um salto qualitativo na sua maneira de se comunicar,
isto é, na linguagem.
A palavra escrita registra a palavra falada. Somos seres de palavra, ser de linguagem.
Como afirmou o filósofo alemão Martin Heidegger, “a linguagem é a morada do ser”.
A cognição está em nossa cabeça. A cognição habita a psique humana. Como escreve o
psicólogo e professor universitário Joaquim Cesário de Mello, “com palavras percebemos o
mundo, tomamos consciência dele, e através do pensamento linguístico e simbólico (verbal)
tomamos consciência dos conteúdos internos da nossa mente. Tudo que nos é informado pelos
sentidos é “traduzido’ pelo pensamento verbal. Com as palavras tornamos apenas sensório-
motoras em experiências da consciência139”.
Como dissemos acima a cognição habita a psique humana. São processos mentais que
estão por detrás do nossos comportamentos. Sim, nossa primeira forma de comunicação não
foram as palavras, mas as emoções. Mas, com o desenvolvimento e a organização funcional do
cérebro e da mente, as palavras (linguagem) foram-se se tornando importantes aliados para o
Ego Representacional conter e regular os impulsos, os instintos e as emoções.
137
Companhia das Letras, 2004.
138
Do grego meso (meio) e pótamos (rios) = entre rios, região entre rios.
139
A Alma Humana: uma viagem ao interior do psiquismo e às suas raízes, Labrador, 2018.
DESENVOLVIMENTO DA INTELIGÊNCIA
PIAGET
As crenças são certezas que vão se criando no psiquismo de uma pessoa desde a
infância, muitas vezes resultado de influências de fatores externos (meio social).
Biologicamente o ser humano sente fome, sede, frio e calor. Temos instintos.
Neurofisiologicamente sente-se medo, raiva, ansiedade, alegria e tristeza. Também sente-se
sensações, percepções. Biopsicologicamente emoções transformam-se em sentimentos,
existem desejos, impulsos, pulsões. E se somos feitos da mesma matéria que são feitos os
sonhos, subjetivamente sonhamos, fantasiamos, imaginamos, nos iludimos... Igualmente
interna e psicologicamente, temos palavras, ideias, valores, moral, pensamentos e... crenças e
mitos.
Cada crença, cada pensamento ou ideia que temos sobre nós tem sua história. “A
criança é o pai do homem”, expressou o poeta inglês William Wordsworth muitos anos antes de
Freud.
Quando falávamos sobre a memória dizíamos que ela não de todo confiável. As
lembranças biográficas de nossas vidas não é uma cópia xerox; A memória nos ilude porque ela
se ilude. Nós realmente acreditamos na evocação, pois foi assim que a registramos. Aqui
também residem nossas crenças e mitos pessoais, e elas se misturam e se mesclam com a
memória no amalgamar de nossa identidade e autovisão. As visões que temos do nosso self, do
mundo e do futuro formam a designada tríade cognitiva.
140
Apud Pensamento, Crenças e Complexidade Humana, in:
https://www.youtube.com/watch?v=rlWZ671HqD8
Um esquema, portanto, é um conjunto organizado de percepções. Como vimos
anteriormente, nossas percepções são internalizações interpretativas e, consequentemente,
sofrem por passarem por uma espécie de filtro psicológico que é resultado da forma como
pensamo-nos e pensamos o mundo.
Young e outros, nos anos 90, perceberam que as terapias cognitivas tradicionais tinham
pouco resultado e eficácia frente a problemas caracterológicos, principalmente por serem eles
problemas originados desde a infância e, assim, faziam parte da curva de vida histórica do
indivíduo. Escreve ele: “experiências de vida nocivas configuram a origem básica dos esquemas
desadaptativos remotos. Os esquemas desenvolvidos mais cedo e mais fortes geralmente se
originam na família nuclear. Em grande medida, as dinâmicas da família de uma criança são as
dinâmicas de todo o seu mundo remoto. Quando os pacientes se encontram em situações
adultas que ativam os esquemas desadaptativos remotos, o que vivenciam é um drama da
infância, em geral com os pais141”.
Claro que os esquemas variam de pessoa para pessoa, pois a própria personalidade é
sempre singular, particular e única. Por isso há pessoas que se formam com esquemas iniciais
(remotos) mal-adaptativos, isto é, padrões cognitivos e emocionais autodestrutivos e
autodepreciativos que se originaram e se formaram desde à infância e que se leva pela vida
inteira. São esquemas remotos impregnados de memórias emocionais de insegurança, medo,
ansiedade, mágoas, desconsideração, negligência e necessidades não satisfatoriamente
atendidas ou respondidas.
Pelo acima exposto, pode-se facilmente afirmar serem quatro, no mínimo, os tipos de
experiências de vida infantis que incentivam a aquisição de esquemas desadaptativos, a
saber142:
141
Terapia do Esquema: guia de técnicas cognitivos-comportamentais inovadoras, Artmed, 2008.
142
Para melhor entendimento vide Terapia Focada em Esquemas: conceituação e pesquisas, in:
https://www.scielo.br/pdf/rpc/v35n5/a03v35n5.pdf.
143
Heterônimo do poeta português Fernando Pessoa.
A FACE VISÍVEL DA
ALMA
O que é persuasivo é o carácter de quem fala
e não a sua linguagem.
Menandro144
BEHAVIOR
Quando a Psicologia como ciência se iniciou no século XIX (Wihelm Wundt) começou
estudando o comportamento humano (Psicologia experimental), por ser esta a visível e
mensurável do psiquismo. Tanto assim era, como assim ainda é, porém não tão somente, que
classicamente definia-se Psicologia como a ciência que estuda o comportamento humano.
Com o advento no século XIX da Psicologia como ciência moderna, a partir dos primeiros
laboratórios de pesquisa e estudos, a Psicologia tomou alguns caminhos variados e
diversificados, levando-a para áreas como educação e trabalho, por exemplo. Todavia, o
behaviorismo propriamente dito surge como uma resposta ao empirismo imperante da
psicologia empregada por Wundt. A respeito dessa parte histórica da ciência da Psicologia,
sugerimos, para quem quiser aprofundar, História da Psicologia: rumos e percursos145.
Conhecemos o que se passa internamente com uma pessoa pela sua fala, pelos seus
gestos, pelas expressões faciais e corporais, pelo seu comportamento, atitude e jeito de ser.
Como disse Freud, “se a boca se cala, falam as pontas dos dedos”.
Há dois mundos, duas realidades, onde vive e respira o homem. O mundo por debaixo
da pele (mundo interno) e o mundo fora da pele (mundo externo), bem como a realidade
psíquica e a realidade física/social. No mundo psíquico habita a consciência (o Eu), mas o Eu não
144
Dramaturgo grego (342 – 292 a.C.).
145
Editora Trarepa, 2006, disponível in:
http://fms.edu.br/downloads/Psicologia/Historia_da_Psicologia_-_Rumos_e_percurs%20(1).pdf.
146
Expressão usada pelo behaviorismo para indicar que os conteúdos psíquicos (caixa preta) são
inacessíveis. Apenas o comportamento é que é observável.
é todo mundo psíquico. Se como dizia Shakespeare “há mais coisas entre o céu e a terra do que
imagina nossa vã filosofia”, também há mais coisas entre o Eu e o resto do psiquismo do que
imagina nossa vã consciência.
Podemos mentir com as palavras, mas nossos gestos são mais verdadeiros. Evidente que
podemos nos comportar simuladamente, porém no dia-a-dia, nos mínimos meneios, trejeitos,
gestuais e maneiras usuais de proceder passam informações e sinais reveladores de quem
somos por detrás das máscaras sociais. Em termos gerais, inclusive, a personalidade humana é
definida como um conjunto de características psicológicas que determinam a forma como
pensamos, sentimos e agimos. Isso mesmo, através das nossas ações e comportamentos
denotamos e transparecemos o que pensamos e sentimos, pois o que pensamos e sentimos
prescrevem e definem como nos comportamos.
O homem é um animal que fala. Mas não apenas linguagem oral, falada e verbal, mas
igualmente linguagem semiótica não verbal.
147
Vozes, 1986.
148
Dentro da concepção junguiana persona é a nossa fachada pública (arquétipo de conformidade), uma
espécie de face externa de nossa face interna. Geralmente o Ego Representacional se identifica com a
persona, porém isso aliena a pessoa de se conhecer genuinamente além da aparência psicológica que ele
usualmente se mostra e se vê no próprio espelho de si próprio.
149
Cultrix, 1973.
150
Isso inclui desde a expressão e linguagem corporal até a gestão dos silêncios.
Comunicação: abordagem centrada da pessoa, da psicóloga e educadora paulista Mariane
Ceron151.
PERSONALIDADE
Quem nos habita? A resposta imediata é: eu. Mas quem é o eu que supomos ser? Somos
realmente que pensamos que somos? Há um trecho no poema Tabacaria de Fernando Pessoa
que assim versa:” que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?/Ser o que penso? Mas penso
ser tanta coisa que não pode haver tantos!”
É comum para algumas pessoas buscarem saber melhor que se é através de horóscopo
ou testes de personalidade em revistas e sites da vida. Ora, se sabemos ser quem somos, então
por que procuramos saber quem somos? Confuso? Pois é. O ser humano é confuso, ambíguo,
complexo, labiríntico, contraditório e, por que não dizer, até mesmo um tanto misterioso
consigo mesmo, inclusive.
Quem nos habita é uma pessoa. É óbvio! Como já afirmou Winnicott, vamos construir
dentro do psiquismo, antes lactente e absolutamente imaturo, “o sentimento de que a pessoa
de alguém encontra-se no próprio corpo”. Esse alguém chama-se “eu”, “myself”.
Ninguém é uma pessoa se não for igualmente uma personalidade. Não é assim tão fácil
definir personalidade, afinal existem incontáveis formas e maneiras de fazê-la152. Porém, todas
elas entendem que personalidade é uma construção que se faz dentro do psiquismo ao longo
da vida, mais acentuadamente na infância e adolescência.
Utilizaremos aqui a definição clássica feita pelo psicólogo norte-americano Gordon
Allport em 1937, em seu não menos clássico livro Personalidade153. Explanou Allport que
personalidade é “organização dinâmica, dentro do indivíduo, dos sistemas psicofísicos, que
determina seu ajuste único ao ambiente”. É de também outro importante psicólogo americano
151
Disponível in:
https://www.unasus.unifesp.br/biblioteca_virtual/esf/2/unidades_conteudos/unidade24/unidade24.pd
f.
152
Vide Personalidade: o panorama nacional sob o foco das definições internacionais, in:
http://pepsic.bvsalud.org/pdf/per/v23n1/v23n1a08.pdf.
153
EPU, 1973.
Henry Murray que descreveu, em 1938, ser a personalidade uma “potencialidade ou prontidão
para responder de uma certa maneira, em determinadas circunstâncias dadas”.
Pelas definições acima, observa-se que a personalidade é uma organização interna
(mental/cerebral) que tem uma continuidade longitudinal e estáveis e padrões de
funcionamento e conduta. Trata-se de uma estrutura psicológica constituída por traços154, cujas
inter-relações compõem a personalidade de um dado indivíduo. É comum falarmos de traços
quando dizemos, por exemplo, que alguém é tímido, agressivo, nervoso, teimoso, afoito,
medroso, etc.
Ninguém nasce com personalidade. Embora ao nascermos haja algum embrião
psicofísico da futura personalidade que iremos formar ao longo da nossa vida, principalmente
na infância e adolescência, não há uma pessoa organizada dentro do interior da mente original.
Em seu livro o Nascimento Psicológico da Criança, Margaret Mahler foi sábia ao afirmar que o
nascimento biológico antecede ao psicológico. Nascimento biológico e psicológico não
coincidem no tempo. Para Mahler só começamos a psicologicamente nascer quando o
psiquismo lactente sai do autismo normal e passa pelo período desenvolvimental da simbiose
normal. Saindo dessas etapas normais do amadurecimento progressivamente, diz Mahler,
ingressa-se no que ela chamou de processo de separação-individuação155.
Nascemos com uma tendência inata ao crescimento, mas este crescimento dependerá
sobremaneira do ambiente social em que nascemos e iremos nos desenvolver. Ainda que exista
geneticamente e congenitamente uma predisposição a algumas características da
personalidade basilar, é por meio do encontro com os outros que vai se construindo e se
consolidando nossa personalidade.
Não há duas pessoas com idêntica personalidade, afinal não existem duas pessoas com
idêntica história de vida e iguais experiências e vivências. Mesmo criados no mesmo ambiente,
mesmo que sejam irmãos gêmeos univitelinos, os dois não vivem igualmente suas
experimentações com a vida, as pessoas e meio físico que os cerca. Um leva uma topada, por
exemplo, outro não; um leva um grito do pai por causa de uma determinada trela, outro não.
O desenvolvimento da personalidade em grande parte envolve conflitos entre o
psiquismo individual e o meio ambiente, mormente o social (mais especificamente a família).
Desse embate entre nossas demandas (inicialmente completamente narcisistas) e o mundo
social e a realidade é que irá nascer a pessoa que hoje somos.
Formamo-nos como pessoas (personalidade) em uma complexa combinação de fatores
intervenientes, tais como nosso corpo (esquema corporal), nossa sexualidade (fases oral, anal,
fálica, latência e genital), nossas relações filiais/fraternais (afetos, responsividades, socialização,
estilos parentais, etc.), nossa relação com o campo social familiar, escolar e geral
(psicossocialidade), nossa cognição/inteligência (do sensório-motor ao operacional formal),
nossa moralização (pré-convencional, convencional e pós-convencional), a cultura em que
vivemos, nossa classe social, nossa biologia, nosso sexo, nossas frustrações e gratificações,
nossos traumas, nossas aprendizagens escolar e social156...
154
Padrões habituais e relativamente estáveis ao longo da vida de comportamento, pensamento e
sentimento.
155
Para uma melhor compreensão vide A Teoria de Margaret Mahler sobre o Desenvolvimento Psíquico
Precoce Normal, in: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1677-
11682018000300014 e Conceito de Simbiose em Psicanálise: uma revisão de literatura, in:
https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-14982015000200257.
156
Vide A Natureza da Teoria da Personalidade, in:
https://www.larpsi.com.br/media/mconnect_uploadfiles/c/a/cap_1.pdf, e Teorias do Desenvolvimento
Nossa personalidade é um composto de temperamento, crenças, ideias, hábitos,
autoestima, autoconceito, cosmovisão, biografia, identificações, internalizações,
autoimagem/self, Ego, Superego consciente, inconsciente, traços e atributos vários. Somos,
portanto, resultado de uma combinação entrelaçada de fatores internos e externos que ocupa
e transita em um espaço de vida (campo psicológico157). Decididamente, nossa personalidade é
biopsicossocial. Mas também somos, como disse o filósofo suíço do século XIX Henri Amiel a
ilusão de acreditar que somos o que pensamos que somos. Alguém, inclusive, já disse que somos
três; quem pensamos que somos, quem os outros pensam que somos e quem realmente somos.
da Personalidade, in:
https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/1362936/mod_resource/content/1/Texto%20-
%20Teoria%20do%20desenvolvimento%20da%20personalidade.pdf.
157
O psicólogo alemão Kurt Lewin denominou de espaço vital, isto é, “a totalidade de fatos que
determinam o comportamento de um indivíduo em um determinado momento”.
158
Poeta português (1890-1916).