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NATAL-RN
2019
NATÁLIA GALVÃO DA CUNHA LIMA FREIRE
NATAL-RN
2019
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS
DEPARTAMENTO DE DIREITO PÚBLICO
CURSO DE DIREITO
COMISSÃO EXAMINADORA
________________________________________________________
________________________________________________________
________________________________________________________
Encerro este ciclo na Universidade Federal do Rio Grande do Norte com um misto de
alegria e saudade. Nela conheci pessoas, culturas e mundos que ampliaram o meu... nunca mais
fui a mesma. E que bom!
Ao Professor Walter Nunes, que me possibilitou sua companhia durante seis semestres,
enquanto monitora, aprendendo todos os dias algo novo, agradeço pela confiança, atenção e
carinho. O senhor é um professor no sentido mais exato da palavra, um incentivador, e tenho
muito orgulho de chamá-lo de mestre. Obrigada pelo presente que o senhor e sua família são
em nossas vidas.
Agradeço também aos mestres que, ao longo do curso, se não me ensinaram sobre
Direito Penal, me proporcionaram algo igualmente valioso: ampliaram o meu olhar sobre o
mundo e foram exemplos vocacionados. Gostaria de representá-los nas figuras da Professora
Maria do Perpétuo Socorro Wanderley e do Professor Francisco Barros.
Este trabalho, assim como minha graduação, é o somatório de muitos, direta ou
indiretamente, e a eles agradeço, antes de tudo, em nome dos meus pais, meus primeiros
Professores. Graças a eles, compreendi o valor do estudo, do trabalho e de procurar enxergar as
dores do outro. Foi meu pai que me ensinou a amar o ensino público e fazer da Universidade
Federal a minha casa, como a sala de aula sempre foi seu chão. Com minha mãe, aprendi a
caridade, que guiou diversas escolhas que fiz nesse caminho. O suporte de vocês é a minha
maior realização.
Agradeço a Eduardo, meu irmão, por dividir as dores e alegrias da vida comigo, e por
mesmo tão diferente de mim, ser a certeza de que nunca estarei só no mundo.
Aos meus avós, Olindina e Clenio, pelo incentivo à continuidade dos meus estudos, e a
uma escolha de curso tão parecido comigo, mas que não era capaz de visualizar. Talvez me
conheçam mais do que eu. Agradeço a Deus por cruzar a nossa vida e por ser um pedacinho de
vocês.
À minha bisavó Maria e minha avó Jacira, responsáveis pelo melhor cartão de visitas
que eu poderia sonhar em ter - anotaram em um papel o que eu desejava profissionalmente, e
desde então, não há um só conhecido a quem não tenham dito que a neta era “advogada
criminalista”, mesmo no primeiro ano de faculdade. Tenho muito orgulho das mulheres que
são.
Ao meu tio Diógenes, meu professor e minha inspiração para tudo, agradeço por
alimentar os meus sonhos e me ensinar a advocacia “sob o perfil da poesia”. Rogo a Deus que
me permita nunca deixar de assim vê-la.
A Gabriel, que ouviu minhas posições, aqui contidas, com paciência e carinho, mas
sobretudo me fez entender o que Valter Hugo Mãe dizia, quando escreveu sobre quem nos faz
sentir “o dobro do que somos”. Sinto-me o dobro do que sou ao seu lado, e dividir projetos com
você é uma realização para mim.
Aos irmãos que recebi da vida: Bia, Márcia, Ruth, Aryam, Pedro e Gabriella, em Natal,
Salvador, São Paulo, Fortaleza ou Toronto - a alegria de vocês com minhas pequenas conquistas
e o interesse em compreender como vejo o mundo significa, para mim, uma prova de amor.
Obrigada por tudo.
A Alana, Ana e Glícia, agradeço pelo suporte para que pudesse concluir esta pesquisa,
pela amizade no dia a dia de trabalho e pela alegria sincera com que me acolheram. Por essa
alegria, também, agradeço à equipe do nosso Escritório, que tanto me ajuda, representando a
todos nas figuras de João, Mércia e Roberto.
Ao Professor Laércio Segundo de Oliveira, sou grata pelas gentis e valiosas tardes de
contribuição neste estudo.
Agradeço, por fim, ao meu bisavô, Hélio Galvão, com quem não me foi permitida a
convivência terrena, mas que por inspiração divina, despertou a escolha do tema deste trabalho.
Trata-se do assunto de seu último livro publicado em vida, cuja existência só descobri após
iniciado o processo de escrita.
RESUMO
The present monograph aims to analyze the challenges of the attribution of criminal
responsibility to entrepreneurial leaders, especially through the theory of dominion of fact and
the theory of improper omissive crimes. Starting, firstly, from a criminological analysis, it seeks
to understand the way in which the paradigm change in the criminal system occurred, reaching
these historically excluded from state repression individuals. The possibilities for the use of the
theory of the dominion of fact as a basis for authorship are verified by addressing the problems
of the identification of individual criminal responsibility within a complex organization,
marked by the division of tasks and functions, as is the modern enterprise. Having regard to
these considerations, we move on to bibliographical revisitation in order to observe the
possibilities of attributing responsibility using the theory of improper omissive crimes,
highlighting the limits to the position of guarantor, the panorama of causality and the extent to
which leaders can be held criminally liable for conduct by their subordinates. The partial
conclusions drawn from this event and its practical application, taking as their starting point a
number of cases where the accusation offer was used, are then compared to the offer of
complaint of the categories subject to this investigation. The work finally touches on the need
to revisit these dogmatic categories, with the aim of demonstrating that a model of responsibility
that considers only the position occupied by the business leaders within the structure is unlawful
in the light of criminal principles and legal provisions.
1
Defesa prévia, Alegações finais e Habeas Corpus publicadas em GALVÃO, Hélio Mamede de Freitas;
GALVÃO, José Arno. Responsabilidade penal de diretores de sociedade anônima: Caso BDRN. Natal: [s.n.],
1976.
SUMÁRIO
1 NOTAS INTRODUTÓRIAS
O interesse midiático sobre o poder punitivo o torna, não raro, terreno fértil para a
espetacularização. A publicidade do processo, imprescindível em um Estado de Direito,
convive com os olhares não apenas das partes, mas das esferas políticas e da opinião pública,
situando os operadores desse sistema em uma complexa relação.
De um lado, nos julgamentos penais, os conceitos e garantias impõem limites à
pretensão acusatória, enquanto de outro, enfrentam uma sociedade que se pauta pelo medo e
pela insegurança, reproduzindo um discurso emergencial. A esse discurso não interessam
garantias fundamentais, marcos teóricos para imputação, standards probatórios: o que não se
pode é deixar de aplicar a lei e condenar.
Volátil por essência, a vontade pública modifica, também, os alvos de seu raciocínio
condenatório. O fim da impunidade como demanda popular, se antes se referia apenas à cifra
negra dos crimes violentos ou à perseguição de grupos marginalizados, no panorama atual,
repercute nas classes outrora imunizadas, detentoras do poder econômico e político.
No caso brasileiro, o “Mensalão” (Ação Penal 470/STF) inaugura, ao menos se
considerado o impacto nacional, a ascensão de uma responsabilidade penal direcionada às mais
altas classes sociais, o que se perpetua, no atual momento, por meio da “Operação Lava Jato”.
A dogmática, no entanto, parece ter sido relegada a um segundo plano.
A importação de teorias do direito estrangeiro, oriundas de outros âmbitos de cultura
jurídica, na ânsia de suprir as lacunas existentes no ordenamento brasileiro e atender ao clamor
das ruas, fez morada na jurisprudência do país. Não se trata mais de lograr um resultado
seguindo a trilha da imputação, mas de determinar essa trilha a partir do resultado que se almeja.
E a criminalização dos “poderosos” parece ser, por ora, esse objetivo.
Quando o Direito cede lugar à mídia, o manejo de conceitos e noções teóricas conta
menos. As importadas teorias de que se falou, portanto, aplicam-se ainda quando incompatíveis
– entre si ou entre elas e os limites normativos –, e seus resultados são aterrorizantes. É nesse
contexto que se insere a problemática deste estudo.
Alguns dirigentes de empresas figuram, desde o “Mensalão”, entre os acusados dessas
grandes operações. Os delitos supostamente praticados referem-se, em quase totalidade, a
práticas no exercício de sua atividade econômica. Afirmar a responsabilidade penal, individual
e subjetiva, diante dessa circunstância, enfrenta como desafio as características típicas da
organização empresarial, a exemplo da intervenção de diversos sujeitos no curso dos
acontecimentos e a divisão de tarefas.
13
A) Denúncia Samarco
Ref. Inquérito Policial nº 183/2015 SRPF/MG
pela pessoa jurídica SAMARCO MINERAÇÃO S/A. Afirma o parquet, de acordo com as
investigações, que os denunciados “atuavam na condição de diretores, administradores,
membros de conselhos e de órgãos técnicos, gerentes, empregados, prepostos, mandatários ou
contratados da VALE, BHP e Samarco”, e que possuíam “conhecimento dos diversos
problemas, falhas ou “não conformidades” operacionais”, bem como do “progressivo
incremento da situação típica de risco, mesmo devendo e podendo agir para evitar o
rompimento da barragem de Fundão e os resultados penalmente desvalorados”, incidindo nas
figuras típicas por meio de condutas omissivas.
Atribuiu-se o dever de garante, além das pessoas jurídicas VALE, BHP e SAMARCO,
aos membros do Conselho de Administração da Samarco, da VALE e da BHP, aos
representantes da VALE e da BHP nos Comitês de Operação e Desempenho Operacional, aos
Diretores Executivos (Diretor Presidente e Diretor de Operações e Infraestrutura), aos gerentes
e engenheiros da SAMARCO (Gerência Geral de Geotecnia, Gerência de Geotecnia de
Barragens, Gerente Geral de Mina) e ao Engenheiro Sênior da VOGBR Recursos Hídricos e
Geotecnia Ltda., totalizando 3 (três) pessoas jurídicas e 21 (vinte e uma) pessoas físicas sob a
imputação de violação a deveres de garantia, nos termos do Art. 13, §2º, CP.
Trata-se de denúncia oferecida pelo Ministério Público Federal que, dentre outros,
imputa a Luiz Inácio Lula da Silva, em razão de sua função, a prática do delito de corrupção
passiva qualificada, por 3 (três) vezes, que teria se dado por meio de um esquema sob seu
comando. Assevera o parquet que cabia ao denunciado a nomeação e manutenção dos
ocupantes da Diretoria de Serviços e Abastecimento da Petrobras, sociedade de economia mista,
em cujo mandato foram assinados contratos e aditivos “comprometidos com a geração e
arrecadação de propinas” e garantindo o enriquecimento ilícito de “parlamentares dessas
agremiações, de si próprio, dos detentores dos cargos diretivos da estatal e de operadores
financeiros”.
Para tanto, na temática que interessa a este trabalho, valeu-se a denúncia de imputações
de autoria e participação por meio da aplicação de conceitos de domínio do fato e aparatos
organizados de poder, além de domínio da organização, atribuídos ao denunciado em destaque,
tanto referente à estatal petroleira quanto aos atos de diretores da empresa.
16
2
BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo: Hacia una nueva modernidad. Barcelona: Paidós, 1998. Traducción de
Jorge Navarro, Daniel Jiménez e M° Rosa Borras. p. 25.
3
A terminologia “sociedade do risco” ou “sociedade industrial do risco”, no contexto empregado neste trabalho,
corresponde, em brevíssima síntese, à modernidade que se desprende da sociedade industrial clássica, constituindo
uma nova figura. Trata-se de conceito amplamente desenvolvido por Ulrich Beck, na construção de sua teoria
sociológica.
4
MARX, Karl. O Capital: Crítica da Economia Política. Tradução de Rubens Enderle. 2. ed. São Paulo:
Boitempo, 2017. (Livro I - O processo de produção capitalista). p. 91.
5
MARX, Karl. O Capital: Crítica da Economia Política. Tradução de Rubens Enderle. 2. ed. São Paulo:
Boitempo, 2017. (Livro I - O processo de produção capitalista). p. 78-80.
6
Ibidem. p. 80.
7
BECK, ULRICH. La sociedade del riesgo. p. 26.
18
8
BECK, ULRICH. La sociedade del riesgo. p. 27.
9
D'AVILA, Fabio Roberto. Ofensividade e crimes omissivos próprios: Contributo à compreensão do crime
como ofensa ao bem jurídico. Coimbra: Coimbra Editora, 2005.
10
Com o conceito de criminalização primária e secundária, neste trabalho, adota-se o sentido empregado por Ela
Wiecko Castillo, correspondendo a processos de definição e seleção de sujeitos criminalizados, bens jurídicos que
merecem tutela penal e comportamentos ofensivos a esses bens, dignos de repressão. A criminalização primária,
assim, se fará pela produção de normas penais, enquanto a criminalização secundária se dará na aplicação dessas
normas penais. Nesse sentido, CASTILHO, Ela Wiecko Volkmer de. O controle penal nos crimes contra o
sistema financeiro nacional (Lei n. 7.492, de 16.06.86). 1996. 243 f. Tese (Doutorado) - Curso de Curso de Pós-
graduação em Direito, Centro de Ciências Jurídicas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 1996.
p. 25-26.
Ainda, Eugênio Raul Zaffaroni e Nilo Batista, em ZAFFARONI, Eugenio Raul et al. Direito Penal Brasileiro:
Teoria Geral do Direito Penal. 4. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2011. v. 1. p. 43.
11
Ibidem. p. 25.
12
A opção por abordar, neste momento, a ideia de fragmentariedade, em detrimento de um conceito de seletividade
penal, deve-se ao fato de que a criminalização primária é processo conduzido por agências políticas, que
selecionam, em regra, os bens jurídicos abarcados pela tutela penal, e embora permitam uma maior predisposição
a incriminar determinados grupos, em virtude do teor desses atos e condutas proibidas, não se dirige
exclusivamente a eles. A seletividade penal, que diz respeito à seleção de pessoas submetidas à coação penal, com
o fim de imposição de pena, é refletida com maior intensidade na criminalização secundária, que trata efetivamente
da ação punitiva sobre pessoas concretas, por intermédio de uma agência judicial.
Apesar dessas considerações, para um entendimento diverso, ver ZAFFARONI, E. Raul et al. Direito Penal
Brasileiro: Teoria Geral do Direito Penal. 4. ed. Rio de Janeiro: Renavan, 2011. p. 45, para o qual “considera-se
natural que o sistema penal leve a cabo a seleção de criminalização secundária apenas como realização de uma
parte ínfima do programa primário”.
19
13
SUTHERLAND, Edwin H. El delito de cuello blanco. Traducción del inglés de Rosa del Olmo. Madrid:
Ediciones La Piqueta, 1999. 339 p. p. 65.
14
BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de Perigo Abstrato. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 26.
15
BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de Perigo Abstrato. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 27.
16
Conforme alerta Bottini, em Crimes de Perigo Abstrato, o risco não implica que as técnicas sejam,
em um primeiro momento, lesivas e prejudicias, mas o estado de risco gera uma expectativa de perigo.
No mesmo sentido, Ulrich Beck: “Risks are not the same as destruction. They do not refer to damages
incurred. However, risks do threaten destruction. [...] The concept of risk thus caracterizes a peculiar
intermediate state between security and destruction, where the perception of threatening risks determines
thought and action”. BECK, Ulrich. Risk society revisited: Theory, politics and research programmes. In: ADAM,
Barbara; BECK, Ulrich; VAN LOON, Joost (Edits.). The risk society and beyond. London: Sage Publications,
2000. p. 211-229.
17
SILVA, Luciano Nascimento. Teoria do Direito Penal Econômico: Fundamentos Constitucionais da Ciência
Criminal Secundária. Curitiba: Juruá, 2010. p. 27.
20
18
SILVA-SANCHEZ, Jesus Maria. La expansión del derecho penal: Aspectos de la política criminal en las
sociedades postindustriales. 2. ed. Madrid: Civitas, 2001. p. 27.
19
Ibidem. p. 28.
20
D'AVILA, Fabio Roberto. Ofensividade e crimes omissivos próprios: Contributo à compreensão do crime
como ofensa ao bem jurídico. Coimbra: Coimbra Editora, 2005. p. 30.
21
A respeito da sensação social de insegurança, ver SILVA-SANCHEZ, Jesus Maria. La expansión del derecho
penal: Aspectos de la política criminal en las sociedades postindustriales. 2. ed. Madrid: Civitas, 2001. p. 32-42.
22
HASSEMER, Winfried; CONDE, Francisco Muñoz. Introducción a la Criminología y al Derecho
Penal. Valencia: Tirant Lo Blanch, 1989. p. 37-40.
23
SILVA, Luciano Nascimento. Teoria do Direito Penal Econômico: Fundamentos Constitucionais da Ciência
Criminal Secundária. Curitiba: Juruá, 2010. p. 39.
24
CASTILHO, Ela Wiecko Volkmer de. O controle penal nos crimes contra o sistema financeiro nacional (Lei
n. 7.492, de 16.06.86). 1996. 243 f. Tese (Doutorado) - Curso de Pós-graduação em Direito, Centro de Ciências
Jurídicas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 1996. p. 27.
25
Ibidem.
21
26
KARAM, Maria Lucia. A esquerda punitiva. Discursos Sediciosos: Crime, direito e sociedade, Rio de Janeiro,
v. 1, n. 1, p.79-92, jul. 1996.
27
Ibidem.
28
Ibidem.
29
FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2002. Vários tradutores. p. 83. “O direito penal mínimo, quer dizer, condicionado e limitado ao máximo,
corresponde não apenas ao grau máximo de tutela das liberdades dos cidadãos frente ao arbítrio punitivo, mas
também a um ideal de racionalidade e de certeza.”
30
ORWELL, George. A revolução dos bichos: Um conto de fadas. Tradução de Heitor Aquino. São Paulo:
Companhia das Letras, 2007. p. 137. “A troca de uma ortodoxia por outra não representa necessariamente um
avanço. O inimigo é a mentalidade de gramofone, concordemos ou não com o discurso que está tocando agora”.
22
metáfora extraída de “O Senhor das Moscas”, de William Golding, para demonstrar que, mesmo
de forma inconsciente, tende-se a reproduzir, após a crise, a mesma sociedade que se tinha31.
Não se nega, no sentido apontado por Pierpaolo Cruz Bottini, que as construções
dogmáticas se atrelam a ideologias específicas. Agora, no entanto, “o elemento político que
sustenta o preenchimento normativo dos conceitos é descortinado, deixa as entrelinhas, perde
a roupagem aparentemente técnica”, surgindo como “referência necessária a materializar e
preencher os elementos de referência normativa”32.
O descrédito a outras instâncias, sua falta de abrangência e uma desconfiança à
Administração Pública como meio de proteção, conduz a uma ideia corriqueira de que seria o
Direito Penal o “único instrumento eficaz de pedagogia político-social”, valendo-se desse
sistema como um mecanismo de “civilização”. Essa concepção, repetidamente, afasta o freio
da ultima ratio, como se as bases do sistema criminal e suas garantias fossem móveis,
disponíveis, em todo caso, às correntes políticas dominantes, ou à neutralização do sentimento
negativo, presente na opinião pública.
De um modo ou de outro, a urgência por respostas penais à criminalidade econômica,
se é seguro que se funda, em partes, pela real impotência do sistema, pensado para um período
histórico diverso do que se vivencia, também corresponde a uma demanda de criminalização,
para solucionar a insegurança dessa sociedade do risco ou, como dito, para intentar pôr fim à
“criminalidade dos poderosos”, ainda que de maneira simbólica, mas em todo caso, valendo-se
de instrumentos igualmente afastados das garantias tradicionais do Direito Penal.
Em outras palavras, a lógica empregada na persecução de determinados crimes, em
particular, para este trabalho, nos crimes econômicos, considera um objetivo final, tido como
elogiável, mas desconsidera que a legitimação do poder estatal não se preenche por esse
objetivo, senão por critérios de idoneidade dos meios empregados, necessidade e
proporcionalidade33, requerendo uma justificativa em face dos princípios limitadores desse
mesmo poder34.
31
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Estado de Polícia: Matem o bicho! Cortem a garganta! Tirem o
sangue! In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Direito e Psicanálise: Interlocuções a partir da literatura.
Florianópolis: Empório do Direito, 2016. p. 85-100.
32
BOTTINI, Pierpaolo Cruz. O paradoxo do risco e a política criminal contemporânea. In: MENDES, Gilmar
Ferreira; BOTTINI, Pierpaolo Cruz; PACELLI, Eugênio (Orgs.). Direito Penal Contemporâneo: Questões
controvertidas. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 109-134. (Série IDP). p. 129.
33
SCHUNEMANN, Bernd. Estudos de direito penal, direito processual penal e filosofia do
direito. Coordenação de Luís Greco. São Paulo: Marcial Pons, 2013. p. 77.
34
Caso contrário, ademais, se incide no “açodamento de discursos e decisões que mais encerram o condão de
refletores pessoais que refletores do justo”, crítica apresentada por PEREIRA, Erick Wilson. Lei da Precipitação.
In: PEREIRA, Erick Wilson. Consciência Democrática. Rio de Janeiro: José Olympio, 2008. Cap. 17. p. 70-72,
complementada ao relembrar o julgamento de Jesus Cristo em função do clamor público, fato que levou o então
23
Nesse universo, onde emergem discussões sobre a responsabilidade penal por ilícitos de
perigo abstrato, por delitos de mera desobediência e antecipação da tutela penal35, o ilícito típico
praticado por omissão é retomado, com maior relevo, enquanto técnica de tutela. Não se trata
de uma categoria nova. As inquietações sobre sua aplicação e limites, e da necessária revisitação
acadêmica, já eram antecipados, no país, por Tobias Barreto, desde 1879, quando desejava
provar, em suas palavras, que a ideia dos delitos omissivos não era comum entre nós, mas que
em virtude disso, necessitava de “abrir caminhos através das verdades feitas na academia, como
pílulas de botica”36.
Ultrapassados mais de cem anos da advertência de Tobias Barreto, Heleno Cláudio
Fragoso afirmava, ainda, a incerteza quanto aos princípios regentes da omissão no Direito
brasileiro, ao surgimento de um dever de atuar e, de todo modo, à inadequação de que os crimes
omissivos se refiram, exclusivamente, a deveres morais37.
A preocupação persiste, e não se pode admitir, para solucioná-la, a criação de um
“Direito Penal do risco”, no intento único de alcançar grupos que julgam não serem alcançados
pelos atuais limites do Direito Penal. Embora a criminalidade econômica acarrete um inegável
custo, exige-se um Direito Penal fiel a princípios fundamentais, que salvaguarde garantias,
inerentes ao próprio sistema, sob pena de pôr em risco a construção jurídico-doutrinária
alcançada38.
Com o necessário reconhecimento de limites inultrapassáveis no sistema criminal
clássico, não se defende a manutenção da “cifra dourada”, mas que as respostas penais se
governante, Pilatos, a “passar à história como exemplo de magistrado pusilânime e insensível”. Retome-se, aqui,
a inidoneidade do “clamor público” enquanto fundamento de repressão criminal, inclusive por sua volatilidade.
35
Características que, de acordo com Winfried Hassemer, especialmente no que se refere aos delitos de perigo
abstrato, marcam o “moderno direito penal”, ampliando seu âmbito de aplicação através de uma “redução dos
pressupostos do castigo”. HASSEMER, Winfried. Persona, mundo y responsabilidad: bases para una teoría de
la imputacion en derecho penal. Traducción de Francisco Muñoz Conde y María del Mar Díaz Pita. Bogotá:
Editorial Temis S. A., 1999. p. 24-25.
36
BARRETO, Tobias. Estudos de direito. Rio de Janeiro: Laemmer & C., 1892. 468 p. (Obras de Tobias Barreto;
1). Publicação Póstuma dirigida por Sylvio Roméro. Pg. 190:
“Eu me recordo de já ter assistido ao julgamento de um processo celebre, no qual os defensores do accusado, quasi
todos tidos em conta de juristas abalisados, allegavam seriamente que a melhor prova da innocencia do reu era
que, no momento do facto arguido, ele nada praticára de positivo, mas ao contrario, se distinguira pela inação; e
quando se lhes oppunha que nesta mesma inação, que nesta mesma falta de um acto positivo, que no caso teria
servido para obstar o morticínio (trata-vase de tal delicto), consistia o crime questionado, os bons juristas riam-se
com emphase, como diante de uma extravagância. Elles não comprehendiam a solução do problema, senão envolto
nesta velha casca: A mandou por B, C, D, E, matar F? [...] Tudo isso dirige-se a um fim: provar que a ideia dos
delictos omissivos não é commum entre nós, e, como tal, necessita de abrir caminho através das verdades feitas
na academia, como pílulas na botica.”
37
FRAGOSO, Heleno Claudio. Crimes omissivos no Direito Brasileiro. Revista de Direito Penal e
Criminologia, Rio de Janeiro, v. 33, p. 41-47, jan. 1982.
38
D'AVILA, Fabio Roberto. Ofensividade e crimes omissivos próprios: Contributo à compreensão do crime
como ofensa ao bem jurídico. Coimbra: Coimbra Editora, 2005.
24
sujeitem, em todo caso, a sua própria limitação. É preciso aceitá-la, para que não se esvaziem
as “regras do jogo”, a partir da criação de um sistema paralelo, unicamente para afastar ou
flexibilizar os limites impostos à intervenção estatal39.
Desastrosamente, essa criação paralela, na temática dos crimes omissivos impróprios e,
com mais força, quando empregada junto aos delitos econômicos, tem-se verificado pela via da
criminalização secundária40. O estudo dessa responsabilidade por omissão envolve, conforme
leciona Juarez Tavares, “questões relativas ao adequado e ao inadequado, ao simbólico e ao
intuitivo”41, razão pela qual sua utilização, sem parâmetros fixados, tende a se distanciar da face
liberal e do mínimo ético, tornando-se meio de controle para problemas sociais, características
compartilhadas com o Direito Penal simbólico42.
Em nossa legislação criminal, os delitos de omissão imprópria se associam a normas
proibitivas, infringidas por um sujeito que ocupava, na data do fato, posição de garantidor de
um dado bem jurídico, razão pela qual estaria obrigado a impedir o resultado43. Por ser forma
de realização típica, submetida às regras do sistema criminal e seus princípios, a utilização do
Direito Penal será possível apenas quando se verificar, em um primeiro momento, a existência
de fato típico relevante (desvalor da ação), possível de ser atribuído a um indivíduo concreto,
em respeito às fronteiras da culpabilidade e da proporcionalidade.
Dentro do largo espectro do Direito Penal Econômico, o subgrupo da criminalidade de
empresa possui particularidades que dificultam sensivelmente essa atribuição. É que o eventual
delito, realizado no interior de empresas, enfrenta problemas que, escapando das fronteiras
desse Direito, referem-se à própria estruturação empresarial; aspectos como a divisão de tarefas,
as organizações hierárquicas e a interferência de um sem-número de sujeitos na cadeia causal.
Na premissa de que a atividade dos atores envolvidos no processo de criminalização
secundária – especialmente os órgãos de acusação e o Poder Judiciário - não se justifica
39
A respeito do assunto, Silva Sanchez, A expansão, p. 73: “Pues ya proliferan las voces de quienes admiten la
necesidad de modificar, al menos en ciertos casos, las <<reglas del juego>>. Em ello influye, sin duda, la
constatación de la limitada capacidad del Derecho penal clásico de base liberal (com sus princípios de taxatividad,
imputación individual, presunción de inocencia, etc.) para combatir fenómenos de macrocriminalidad. Pero quizá
lo debido sea entonces asumir tales limitaciones”.
40
BARATTA, Alessandro. Criminologia critica y critica del derecho penal: Introduccion a la sociologia
juridico penal. Buenos Aires: Siglo XXI Editores Argentina, 2004. p. 95, aponta a criminalização secundária como
o processo de aplicação das regras gerais, enquanto a criminalização primária, já referenciada neste trabalho,
refere-se à elaboração de tais regras, isto é, ao processo imediatamente anterior, de penalização e despenalização.
41
TAVARES, Juarez. Teoria dos crimes omissivos. São Paulo: Marcial Pons, 2018. p. 28.
42
Hassemer, Winfried, «Derecho Penal Simbólico y protección de Bienes Jurídicos», en Varios Autores «Pena y
Estado», Santiago: Editorial Jurídica Conosur, 1995, pg. 4-5. “No se trata sólo de la aplicación instrumental del
Derecho penal y de la justicia penal sino (tras ellos) de objetivos preventivos especiales y generales: transmitir al
condenado un sentimiento de responsabilidad, proteger la conciencia moral colectiva y asentar el juicio social
ético; se trata de la confirmación del Derecho y de la observación”.
43
TAVARES, Juarez. Fundamentos de teoria do delito. Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2018. p. 389-396.
25
44
SCHUNEMANN, Bernd. Estudos de direito penal, direito processual penal e filosofia do
direito. Coordenação de Luis Greco. São Paulo: Marcial Pons, 2013. p. 160.
45
A respeito do direito de defesa, cumpre esclarecer que não se refere à mera defesa formal, satisfeita pela
oportunidade de manifestação nos atos do processo, mas do direito a uma defesa efetiva e eficiente, que só é
possível quando os parâmetros do jogo processual são claros, quando as categorias são previamente definidas,
inseridas em limites formais e materiais. Sobre a diferenciação, em âmbito processual penal, ver SILVA JUNIOR,
Walter Nunes da. Reforma Tópica do Processo Penal: Inovações aos procedimentos ordinário e sumário, com o
novo regime das provas, principais modificações. 3. ed. Natal: Owl, 2019. p. 60.
46
FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,
2002. Vários tradutores. p. 80-81. Ao caracterizar os modelos de direito penal autoritário, trata como ponto comum
entre os sistemas subjetivistas a privação de referências empíricas, construídas as figuras legais do delito
predominantemente a partir da “subjetividade desviada do réu”, alegando o Autor que o mesmo esquema pode ser
cumprido pela via judicial, a partir do abuso jurisprudencial das macroinstituições, inclusive com base na
colocação social e política do acusado.
47
Similar ao que se observa no perfil antidemocrático do Código de Processo Penal de 1941. Ver SILVA JUNIOR,
Walter Nunes da. Reforma Tópica do Processo Penal: Inovações aos procedimentos ordinário e sumário, com o
novo regime das provas, principais modificações. 3. ed. Natal: Owl, 2019. p. 38.
48
SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito Penal Empresarial: A omissão do empresário como crime. Belo
Horizonte: D'placido, 2016. (Coleção Ciência Criminal Contemporânea, v. 5). p. 27.
26
49
MARTIN, Adan Nieto et al. Compliance, criminologia e responsabilidade penal de pessoas jurídicas. In:
MARTIN, Adan Nieto (Coord.). Manual de cumprimento normativo e responsabilidade penal de pessoas
jurídicas. Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2018. p. 55-122. Coordenadores da edição brasileira: Eduardo Saad
Diniz e Rafael Mendes Gomes. p. 63.
50
SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito Penal Empresarial: A omissão do empresário como crime. Belo
Horizonte: D'placido, 2016. (Coleção Ciência Criminal Contemporânea, v. 5). p. 35.
51
MARTIN, Adan Nieto et al. Compliance, criminologia e responsabilidade penal de pessoas jurídicas. In:
MARTIN, Adan Nieto. Manual de cumprimento normativo e responsabilidade penal de pessoas
jurídicas. Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2018. p. 55-122. Coordenadores da edição brasileira: Eduardo Saad
Diniz e Rafael Mendes Gomes. p. 64.
52
FREUD, Sigmund. Psicologia das massas e análise do eu. Tradução de Renato Zwick. Porto Alegre: L&M,
2019. 176 p. p. 52.
27
53
MARTIN, Adan Nieto et al. Compliance, criminologia e responsabilidade penal de pessoas jurídicas. In:
MARTIN, Adan Nieto. Manual de cumprimento normativo e responsabilidade penal de pessoas
jurídicas. Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2018. p. 55-122. Coordenadores da edição brasileira: Eduardo Saad
Diniz e Rafael Mendes Gomes. p. 64. Em trabalho no mesmo sentido, BARAK, Gregg. Unchecked coporate
power: why the crimes of multinational corporations are routinized away and what we can do about it. London:
Routledge, 2017.
54
ESTELLITA, Heloisa. Responsabilidade penal de dirigentes de empresa por omissão: Estudo sobre a
responsabilidade omissiva imprópria de dirigentes de sociedades anônimas, limitadas e encarregados de
cumprimento por crimes praticados por membros da empresa. São Paulo: Marcial Pons, 2017. p. 39.
55
COSTA, José de Faria. A responsabilidade jurídico-penal da empresa e dos seus órgãos: ou uma reflexão sobre
a alteridade nas pessoas colectivas, à luz do direito penal. Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Coimbra, v.
2, n. 4, p. 537-559, 1998.
56
CARVALHO, Ivan Lira de. A empresa e o meio ambiente. Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru,
n. 25, p. 37-61, abr./jun. 1999. p. 39.
57
ESTELLITA, Heloisa. Responsabilidade penal de dirigentes de empresa por omissão: Estudo sobre a
responsabilidade omissiva imprópria de dirigentes de sociedades anônimas, limitadas e encarregados de
cumprimento por crimes praticados por membros da empresa. São Paulo: Marcial Pons, 2017. p. 39.
28
58
MARTIN, Adan Nieto et al. Compliance, criminologia e responsabilidade penal de pessoas jurídicas. In:
MARTIN, Adan Nieto. Manual de cumprimento normativo e responsabilidade penal de pessoas
jurídicas. Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2018. p. 55-122. Coordenadores da edição brasileira: Eduardo Saad
Diniz e Rafael Mendes Gomes. p. 66;
COSTA, José de Faria. A responsabilidade jurídico-penal da empresa e dos seus órgãos: ou uma reflexão sobre a
alteridade nas pessoas colectivas, à luz do direito penal. Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Coimbra, v.
2, n. 4, p. 537-559, 1998.
59
TAVARES, Juarez. A globalização e os problemas de segurança pública. Ciências Penais: Revista da
Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais, São Paulo, v. 1, n. 1. p. 127-142, jan./jun. 2004. p. 18.
60
COSTA, Helena Regina Lobo da. Responsabilidade penal da pessoa jurídica: um panorama sobre sua aplicação
no direito brasileiro. In: IBCCRIM et al. IBCCRIM 25 anos. Belo Horizonte: D'Plácido, 2017. p. 106.
61
SOUSA, Susana Aires de. A responsabilidade criminal do dirigente: algumas considerações acerca da autoria e
comparticipação no contexto empresarial. In: ANDRADE, Manuel da Costa; ANTUNES, Maria João; SOUSA,
Suzana Aires de (Orgs.). Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Jorge Dias de Figueiredo Dias. Coimbra:
Coimbra Editora, 2009. v. 2. (Studia Iuridica, 99. Ad Honorem, 5). p. 1007.
62
SCHUNEMANN, Bernd. Cuestiones básicas de dogmática jurídico-penal y de política criminal acerca de la
criminalidad de empresa. Anuario de derecho penal y ciencias penales, Madrid, v. 41, n. 2, p. 529-558,
mayo/agosto 1988. p. 531.
29
63
SCHÜNEMANN, Bernd. Cuestiones básicas de dogmática jurídico-penal y de política criminal acerca de la
criminalidad de empresa. Anuario de derecho penal y ciencias penales, Madrid, v. 41, n. 2, p. 529-558,
mayo/agosto 1988. p. 536.
64
Em virtude do recorte dado a este trabalho, a temática da cegueira deliberada não será abordada. Para melhor
compreender sua aplicação prática na jurisprudência brasileira, ver SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. A
aplicação da teoria da cegueira deliberada nos julgamentos da Operação Lava Jato. Revista Brasileira de Ciências
Criminais, São Paulo, v. 24, n. 122, p. 255-280, ago. 2016.
65
CONDE, Francisco Muñoz; ARÁN, Mercedes García. Derecho Penal: Parte General. 8. ed. Valencia: Tirant
Lo Blanch, 2010. p. 433.
30
tenha sua vontade substituída em um aparato organizado de poder; c) que preste, na fase de
execução, uma contribuição funcionalmente significativa ao fato66.
É o autor, assim, figura central do acontecer típico, e analisando a expressão do domínio
do fato, pode-se visualizar sua manifestação concreta em três formas: domínio da ação, domínio
da vontade e domínio funcional do fato.
Na primeira compreensão se terá a autoria imediata, isto é, o domínio sobre a própria
ação, realizando o sujeito pessoalmente todos os elementos de dado tipo penal. É a manifestação
mais clara da figura central. Ainda que tenha agido sob erro, causa excludente, de acordo com
o Código Penal brasileiro, essa situação não é capaz de alterar a autoria do fato típico, refletindo
unicamente na punibilidade67.
Já quanto ao domínio da vontade, o que se tem é um caso de atribuição de
responsabilidade ao sujeito que não praticou a conduta típica, mas foi, para tanto, a figura chave,
reduzindo o terceiro que executou o fato a mero instrumento68. Trata-se de autoria mediata.
Falta nessa hipótese a ação executória, divergindo da espécie apresentada no parágrafo anterior,
de forma que o domínio da vontade reitora é que determinará a autoria69.
Apesar da pluralidade de manifestações dessa modalidade, as razões mais substanciais
desse domínio, a partir de uma análise amparada pela teoria de Claus Roxin, consistem na
coação exercida sobre esse terceiro, no erro e no domínio por meio de um aparato organizado
de poder.
A coação sobre “o homem da frente” é circunstância problemática, desde o início,
porque não implica uma autoria compartilhada, como se verá que ocorre com a coautoria, mas
em uma verdadeira autoria dupla: tanto o que executa a ação quanto o que configura a vontade
desse executor ocupam lugar central na realização do tipo70.
Para melhor compreensão deste tópico, necessário esclarecer que domínio do fato não
é sinônimo de influência volitiva71. A influência de um agente, mais ou menos intensa sobre o
que executa o fato, não indica, por si, que possuía o domínio. Em uma rápida análise da
66
ROXIN, Claus. Autoria y domínio del hecho en derecho penal. Traduccion de la séptima edición alemana
por Joaquín Cuello Contreras y José Luis Serrano Gonzalez de Murillo. Madrid: Marcial Pons, 2000. p. 337.
67
Ibidem. p. 26.
68
GRECO, Luís; LEITE, Alaor. O que é e o que não é a teoria do domínio do fato: Sobre a distinção entre autor e
partícipe no direito penal. In: GRECO, Luís et al. Autoria como domínio do fato: Estudos introdutórios sobre o
concurso de pessoas no direito penal brasileiro. São Paulo: Marcial Pons, 2014. Cap. 1. p. 19-45. (Direito Penal e
Criminologia). p. 26
69
ROXIN, Claus. Autoria y domínio del hecho en derecho penal. Traduccion de la séptima edición alemana por
Joaquín Cuello Contreras y José Luis Serrano Gonzalez de Murillo. Madrid: Marcial Pons, 2000. p. 166.
71
Ibidem. p. 166.
71
ROXIN, Claus. Autoria y domínio del hecho en derecho penal. Traduccion de la séptima edición alemana por
Joaquín Cuello Contreras y José Luis Serrano Gonzalez de Murillo. Madrid: Marcial Pons, 2000. p. 168.
31
72
GRECO, Luís; LEITE, Alaor. O que é e o que não é a teoria do domínio do fato: Sobre a distinção entre autor e
partícipe no direito penal. In: GRECO, Luís et al (Org.). Autoria como domínio do fato: Estudos introdutórios
sobre o concurso de pessoas no direito penal brasileiro. São Paulo: Marcial Pons, 2014. Cap. 1. p. 19-45. (Direito
Penal e Criminologia). p. 27.
73
ROXIN, Claus. Autoria y domínio del hecho en derecho penal. Traduccion de la séptima edición alemana por
Joaquín Cuello Contreras y José Luis Serrano Gonzalez de Murillo. Madrid: Marcial Pons, 2000. Pg. 270.
32
Notório, portanto, que alguns fatores são decisivos para que o domínio da vontade possa
se fundamentar nesses casos, e serão sistematizados, neste trabalho, na ideia de fungibilidade
do executor a uma estrutura à margem do ordenamento jurídico (uma vez que, conforme se
extrai da construção de Claus Roxin, a direção e os órgãos executores devem manter-se ligados
a um ordenamento jurídico independente, que não se mova pelo Direito75).
A última expressão concreta do domínio do fato, à luz do recorte aqui eleito, é o domínio
funcional. Essa forma, que pode ocorrer tanto na fase executiva quanto na de preparação76, parte
de uma atuação coordenada. Se contribuem dois ou mais sujeitos, em decisão conjunta, para a
realização de um ato relevante, possuem eles o domínio funcional, figurando como verdadeiros
coautores do fato como um todo77.
Nos anos de 2012 e 2013, o evento “midiático, político e judiciário que ficou conhecido
como Mensalão”78, para valer-se das palavras de Nilo Batista, surpreendeu o cenário brasileiro.
A Ação Penal 470, a que passaremos a nos referir apenas como AP 470, com forte intervenção
da mídia e pressão de grupos citados neste trabalho como esquerda punitiva, no alcance
atribuído por Maria Lúcia Karam, inaugura no país um movimento de condenação aos sujeitos
antes penalmente inatingíveis79.
Incorporaram-se ao vocábulo popular - em substituição momentânea aos, até então mais
comuns, tipos de tráfico de drogas e roubo, apenas para ilustração - os dificultosos tipos de
corrupção ativa, corrupção passiva, peculato, gestão fraudulenta, dentre outros. Haveria, em
tais condenações, um “interesse social juridicamente protegido”80.
74
ROXIN, Claus. Autoria y domínio del hecho en derecho penal. Traduccion de la séptima edición alemana
por Joaquín Cuello Contreras y José Luis Serrano Gonzalez de Murillo. Madrid: Marcial Pons, 2000. p. 272.
75
Ibidem. p. 277.
76
Ibidem. p. 305.
77
GRECO, Luís; LEITE, Alaor. O que é e o que não é a teoria do domínio do fato: Sobre a distinção entre autor
e partícipe no direito penal. In: GRECO, Luís et al (Org.). Autoria como domínio do fato: Estudos
introdutórios sobre o concurso de pessoas no direito penal brasileiro. São Paulo: Marcial Pons, 2014. Cap. 1. p.
19-45. (Direito Penal e Criminologia). p. 31.
78
BATISTA, Nilo. Crítica do Mensalão. Rio de Janeiro: Revan, 2015. p. 7-8.
79
RODRÍGUEZ, Victor Gabriel. Mensalão: Liberdade, massacre da imprensa e algum testemunho pessoal. In:
PEDRINA, Gustavo Mascarenhas Lacerda (Org.). AP 470: Análise da intervenção da mídia no julgamento do
mensalão a partir de entrevistas com a defesa. São Paulo: Liberars, 2013. p. 30.
80
SOUZA, Luciano Anderson de. A essência da ação penal nº 470: o crime de corrupção. Letrado, São Paulo,
n. 101, p. 26-27, jul./dez. 2012.
33
81
STRECK, Lenio Luiz. As incongruências da doutrina: o caso da AP 470, a teoria do domínio do fato e as citações
descontextualizadas. Revista de Estudos Criminais, Porto Alegre, v. 12, n. 56, p. 97-111, jan./mar. 2015. p. 99.
82
CARAZZAI, Estelita Hass. Após 5 anos, Lava Jato soma controvérsias, 2.294 anos de penas e 159 condenados.
Folha de São Paulo, Curitiba, 17 mar. 2019. Disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/03/apos-5-anos-lava-jato-soma-controversias-2294-anos-de-penas-e-
159-condenados.shtml. Acesso em: 10 out. 2019.
83
SCHÜNEMANN, Bernd. Cuestiones básicas de dogmática jurídico-penal y de política criminal acerca de la
criminalidad de empresa. Anuario de derecho penal y ciencias penales, Madrid, v. 41, n. 2, p. 529-558,
mayo/agosto 1988. p. 532.
84
SCHÜNEMANN, Bernd. Temas actuales y permanentes deI Derecho penal después deI milenio. Madrid:
Tecnos, 2002. p. 129.
34
Passa-se a utilizar no presente estudo, para uma maior clareza, os conceitos de estrutura
vertical e estrutura horizontal. Enquanto estrutura vertical, trata-se da organização empresarial
baseada em divisão de tarefas e funções por hierarquia e subordinação, ao passo que a estrutura
horizontal corresponde a sujeitos situados em um mesmo plano, mas com atribuições distintas
ou complementares, representado do seguinte modo:
85
SCHÜNEMANN, Bernd. Temas actuales y permanentes deI Derecho penal después deI milenio. Madrid:
Tecnos, 2002. p. 533.
35
ocorrer não apenas entre órgãos dessa administração (Conselho Administrativo - Diretoria),
mas também no interior desses órgãos, por especialidades86.
Nessa circunstância, de existência dos setores especializados na administração, o que se
percebe são sujeitos de um mesmo nível hierárquico, mas com âmbitos de atuação distintos e
delimitados. A esses, com naturalidade, submeter-se-ão gerentes e encarregados, de maneira
que, em um único espaço, podem ser observadas as figuras da divisão de tarefas ou trabalho e
da coordenação, simultaneamente. Nota-se, nessa circunstância, que embora os núcleos sejam
dirigidos por sujeitos de altos postos empresariais, suas esferas de competência são restritas.
É possível, ainda, que a gestão ocorra por meio da junção de esforços de diversas
sociedades, com personalidades jurídicas distintas, mas realizando empreendimentos comuns87,
ou em grupos de empresas, em sistema matriz-filial88, controladora e controlada.
De todo modo, independente da estrutura, fato é que as contribuições dadas pelos
sujeitos, quando partes em uma empresa, não tendem à homogeneidade. Diferem-se não apenas
em intensidade, mas qualitativamente. O poder inicial de domínio, assim, torna-se
intermediário, transformado em uma função de coordenação, o que acarreta dificuldade à
imputação de responsabilidade penal.
A referência dessa estrutura normativa é a do agente individual, autorresponsável, com
poder de decisão e que executa o comportamento típico. Em suma, refere-se à autoria dolosa
direta individual. A localização dessa responsabilidade, entretanto, apresenta-se laboriosa ou
por vezes impossível no contexto de uma atividade econômica de empresa.
Quando há delegação de funções, com o aumento do número de agentes sujeitos a um
poder de mando e vigilância, tem-se, genericamente, uma atribuição que passa do delegante
para o delegado, transformando posições originais de garantia89.
Se a solução intuitiva conduz, em um primeiro momento, a persecução por meio de um
sentido top down de atribuição de responsabilidades, um olhar mais elucidativo sobre a estrutura
empresarial demonstrará que o superior não possui, em qualquer caso, o controle do domínio
86
ESTELLITA, Heloisa. Responsabilidade penal de dirigentes de empresa por omissão: Estudo sobre a
responsabilidade omissiva imprópria de dirigentes de sociedades anônimas, limitadas e encarregados de
cumprimento por crimes praticados por membros da empresa. São Paulo: Marcial Pons, 2017. (Direito Penal e
Criminologia). p. 43.
87
Ibidem. p. 43.
88
MARTIN, Adan Nieto et al. Compliance, criminologia e responsabilidade penal de pessoas jurídicas. In:
MARTIN, Adan Nieto (Coord.). Manual de cumprimento normativo e responsabilidade penal de pessoas
jurídicas. Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2018. p. 55-122. Coordenadores da edição brasileira: Eduardo Saad
Diniz e Rafael Mendes Gomes. p. 65.
89
SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito Penal Empresarial: A omissão do empresário como crime. Belo
Horizonte: D'placido, 2016. (Coleção Ciência Criminal Contemporânea v. 5). p. 154.
36
90
SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito Penal Empresarial: A omissão do empresário como crime. Belo
Horizonte: D'placido, 2016. (Coleção Ciência Criminal Contemporânea, v. 5). p. 149.
91
MARTÍN, Adán Nieto et al. Compliance, criminologia e responsabilidade penal de pessoas jurídicas. In:
MARTÍN, Adán Nieto (Coord.). Manual de cumprimento normativo e responsabilidade penal de pessoas
jurídicas. Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2018. p. 55-122. Coordenadores da edição brasileira: Eduardo Saad
Diniz e Rafael Mendes Gomes. p. 67; ESTELLITA, Heloisa. Responsabilidade penal de dirigentes de empresa
por omissão: Estudo sobre a responsabilidade omissiva imprópria de dirigentes de sociedades anônimas, limitadas
e encarregados de cumprimento por crimes praticados por membros da empresa. São Paulo: Marcial Pons, 2017.
(Direito Penal e Criminologia). p. 43.
92
ESTELLITA, Heloisa. Responsabilidade penal de dirigentes de empresa por omissão: Estudo sobre a
responsabilidade omissiva imprópria de dirigentes de sociedades anônimas, limitadas e encarregados de
cumprimento por crimes praticados por membros da empresa. São Paulo: Marcial Pons, 2017. (Direito Penal e
Criminologia). p. 49.
93
FEIJÓO SÁNCHEZ, Bernardo José. Autoria e participação em organizações empresariais complexas. Revista
Liberdades, São Paulo, n. 9, p. 26-57, jan./abr. 2012. p. 28.
37
94
FEIJÓO SÁNCHEZ, Bernardo José. Autoria e participação em organizações empresariais complexas. Revista
Liberdades, São Paulo, n. 9, p. 26-57, jan./abr. 2012. p. 28.
95
SOUSA, Susana Aires de. A responsabilidade criminal do dirigente: algumas considerações acerca da autoria e
comparticipação no contexto empresarial. In: ANDRADE, Manuel da Costa; ANTUNES, Maria João; SOUSA,
Suzana Aires de (Orgs.). Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Jorge Dias de Figueiredo Dias. Coimbra:
Coimbra Editora, 2009. v. 2. (Studia Iuridica, 99. Ad Honorem, 5). Pg. 1009.
96
ESTELLITA, Heloisa. Responsabilidade penal de dirigentes de empresa por omissão: Estudo sobre a
responsabilidade omissiva imprópria de dirigentes de sociedades anônimas, limitadas e encarregados de
cumprimento por crimes praticados por membros da empresa. São Paulo: Marcial Pons, 2017. (Direito Penal e
Criminologia). p. 51.
97
Nesse sentido, Renato de Mello Jorge Silveira, p. 149: “As grandes empresas, muitas vezes pela sua própria
dimensão ou gigantismo, têm estruturas de poder internas que acabam setorizando as esferas de liberdade dos
próprios funcionários, limitando, assim, a liberdade de organização de cada qual. Multiplicam-se, dessa forma,
diversas pequenas esferas de poder dentro de um microcosmo visto e percebido como uma empresa em si. [...]
Tendo-se em conta que a empresa se compõe de uma grande esfera de liberdade organizacional, mesmo que o
dirigente exerça significativo papel de mando, hão de se notar, no eixo hierárquico, micro-esferas de liberdade em
um nível médio de competência”.
38
98
SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito Penal Empresarial: A omissão do empresário como crime. Belo
Horizonte: D'placido, 2016. (Coleção Ciência Criminal Contemporânea v. 5). p. 156.
99
Ibidem.
100
CRESPO, Eduardo Demetrio. Fundamento da responsabilidade em comissão por omissão dos diretores de
empresas. Revista Liberdades, São Paulo, v. 14, n. 1, p. 61-92, set. 2013. Traduzido por Adriano Galvão. p. 12.
101
DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal: Parte Geral: Questões Fundamentais: A Doutrina Geral do Crime.
2. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2007. t. 1. p. 949.
102
Aqui, englobam-se as situações de autoridade e subordinação de pessoas plenamente responsáveis, mas que
atuam em serviço ou atividade organizada.
103
SCHÜNEMANN, Bernd. Cuestiones básicas de dogmática jurídico-penal y de política criminal acerca de la
criminalidad de empresa. Anuario de derecho penal y ciencias penales, Madrid, v. 41, n. 2, p. 529-558,
mayo/agosto 1988. p. 533.
39
104
CRESPO, Eduardo Demetrio. Sobre la posicion de garante del empresario por la no evitación de delitos
cometidos por sus empleados. In: SERRANO-PIEDECASAS, José Ramón; CRESPO, Eduardo Demetrio
(Orgs.). Cuestiones actuales de derecho penal economico. Coruña: Colex, 2008. p. 61-87.
105
Observe-se, como exemplo, a justificativa para utilização do sistema criminal apresentada por Eduardo Viana,
em detrimento de punições através de outros ramos do Direito: “De início, antes de fixarmos os pontos
principiantes deste debate, é preciso deixar clara a premissa de que o interesse em recorrer ao Direito Penal para
combater esse tipo de criminalidade, com reformas legislativas, não é determinado unicamente pelos escândalos
econômicos, mas sim por um necessário e imperativo processo de modernização do Direito Penal, cujo objetivo
é restaurar e preencher os espaços de impunidade surgidos com a sociedade de risco”. NEVES, Eduardo Viana
Portela. A atualidade de Edwin H. Sutherland. In: SOUZA, Artur de Brito Gueiros (Org.). Inovações no direito
penal econômico: contribuições criminológicas, político-criminais e dogmáticas. Brasília: Escola Superior do
Ministério Público da União, 2011. p. 45.
40
106
STRECK, Lenio Luiz. As incongruências da doutrina: o caso da AP 470, a teoria do domínio do fato e as
citações descontextualizadas. Revista de Estudos Criminais, Porto Alegre, v. 12, n. 56, p. 97-111, jan./mar.
2015. p. 107.
41
Tobias Barreto, ao escrever “Dos delitos por omissão” ainda na segunda metade do
século XIX, questionou se o delito comissivo, omissivamente perpetrado, faria parte do sistema
de direito criminal brasileiro108. Embora o Código Criminal de 1830 trouxesse ao lado da ação,
expressamente, a omissão voluntária contrária às leis penais enquanto crime, as preocupações
do autor referiam-se a uma parca reflexão teórica.
Seu crítico olhar, nesses escritos, ironizava a ausência de “mais de 3 páginas”, nas
publicações de comentários ao Código da época, que se destinassem à análise do crime por
omissão109. Foi Tobias Barreto, assim, o primeiro autor no cenário nacional a efetivamente
abordar o tema110.
Avançando a discussão para o Código Criminal de 1940, autores como Aníbal Bruno,
Nelson Hungria e Heleno Cláudio Fragoso buscaram suprir essa lacuna, dedicando seus estudos
à temática, sob uma concepção naturalística111. O contexto do supracitado Código, que conferiu
maior destaque aos princípios, favorecia também discussões em torno dos limites da imputação
penal.
107
ZAFFARONI, Eugenio Raul. Panorama atual da problemática da omissão. Revista de Direito Penal e
Criminologia, Rio de Janeiro, v. 33, n. 1, p.30-40, jan. 1982. Tradução do Dr. José Carlos Fragoso.
108
BARRETO, Tobias. Estudos de Direito. Rio de Janeiro: Laemmer & C., 1892. 468 p. (Obras de Tobias
Barreto; 1). Publicação Póstuma dirigida por Sylvio Roméro. Pg. 189.
109
BARRETO, Tobias. Estudos de Direito. Rio de Janeiro: Laemmer & C., 1892. 468 p. (Obras de Tobias
Barreto; 1). Publicação Póstuma dirigida por Sylvio Roméro. “O Dr. Mendes da Cunha, digo eu, na sua analyse
do código criminal, não se julgou obrigado a consagrar aos delictos, de que se trata, mais de três paginas, e estas
mesmas vasias de ideias, revelando pelo modo, por que encarou a questão, não ter della nem se quer um leve
pressentimento [...] É pois facílimo de conceber que, se um jurista da tempera do mencionado não contribuiu, nem
com um traço de pena, para suscitar-se e esclarecer-se o ponto, que ora discuto, nada havia a esperar dos seus
epígonos, aos quaes esta questão com todo o seu alcance, eu creio, nunca, se quer, appareceu em sonho”. p. 180-
190.
110
FRAGOSO, Heleno Claudio. Crimes omissivos no Direito Brasileiro. Revista de Direito Penal e
Criminologia, Rio de Janeiro, v. 33, p. 41-47, jan. 1982.
111
Ibidem.
42
112
HUNGRIA, Nelson; FRAGOSO, Heleno Claudio. Comentários ao Código Penal. 5. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 1978. v. 1. t. 2. p. 20.
113
GRECO, Luís. Problemas de causalidade e imputação objetiva nos crimes omissivos impróprios. Tradução
de Ronan Rocha. São Paulo: Marcial Pons, 2018. (Direito Penal e Criminologia). p. 17.
114
DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal: Parte Geral: Questões Fundamentais: A Doutrina Geral do Crime.
2. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2007. t. 1. p. 915.
115
TAVARES, Juarez. Teoria dos crimes omissivos. São Paulo: Marcial Pons, 2018. p. 45.
116
SILVA JUNIOR, Walter Nunes da. Curso de Direito Processual Penal: Teoria (constitucional) do Processo
Penal. 2. ed. Natal: Owl, 2015. p. 376-377.
43
117
ASSIS, Augusto. A responsabilidade penal omissiva dos dirigentes de empresa. In: LOBATO, José Danilo
Tavares; MARTINELLI, João Paulo Orsini; SOUZA, Humberto (Orgs.). Comentários ao Direito Penal
Econômico. Belo Horizonte: D'placido, 2018. p. 45-67.
118
DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal: Parte Geral: Questões Fundamentais: A Doutrina Geral do Crime.
2. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2007. t. 1.
119
SCHÜNEMANN, Bernd. Estudos de direito penal, direito processual penal e filosofia do
direito. Coordenação de Luis Greco. São Paulo: Marcial Pons, 2013. p. 165.
120
BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de omissão imprópria. São Paulo: Marcial Pons, 2018. (Direito Penal e
Criminologia).
121
BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de omissão imprópria. São Paulo: Marcial Pons, 2018. (Direito Penal e
Criminologia). p. 44.
44
122
BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de omissão imprópria. São Paulo: Marcial Pons, 2018. (Direito Penal e
Criminologia). p. 46
123
ESTELLITA, Heloisa. Responsabilidade penal de dirigentes de empresa por omissão: Estudo sobre a
responsabilidade omissiva imprópria de dirigentes de sociedades anônimas, limitadas e encarregados de
cumprimento por crimes praticados por membros da empresa. São Paulo: Marcial Pons, 2017. (Direito Penal e
Criminologia). p. 76.
124
ESTELLITA, Heloisa. Responsabilidade penal de dirigentes de empresa por omissão: Estudo sobre a
responsabilidade omissiva imprópria de dirigentes de sociedades anônimas, limitadas e encarregados de
cumprimento por crimes praticados por membros da empresa. São Paulo: Marcial Pons, 2017. (Direito Penal e
Criminologia). p. 78.
45
125
TAVARES, Juarez. Teoria do crime culposo. Prefácio de Claus Roxin. 5. ed. Florianópolis: Tirant Lo Blanch,
2018. p. 523.
126
ESTELLITA, Heloisa. Responsabilidade penal de dirigentes de empresa por omissão: Estudo sobre a
responsabilidade omissiva imprópria de dirigentes de sociedades anônimas, limitadas e encarregados de
cumprimento por crimes praticados por membros da empresa. São Paulo: Marcial Pons, 2017. (Direito Penal e
Criminologia). p. 76.
127
TAVARES, Juarez. Teoria do crime culposo. Prefácio de Claus Roxin. 5. ed. Florianópolis: Tirant Lo Blanch,
2018. p. 523-524.
46
128
ASSIS, Augusto. A responsabilidade penal omissiva dos dirigentes de empresa. In: LOBATO, José Danilo
Tavares; MARTINELLI, João Paulo Orsini; SOUZA, Humberto (Orgs.). Comentários ao Direito Penal
Econômico. Belo Horizonte: D'placido, 2018. p. 45-47.
129
LEITE, Alaor. Domínio do fato, domínio da organização e responsabilidade penal por fatos de terceiros: sobre
os conceitos de autor e partícipe na APn 470 do STF. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v.
22, n. 106, p. 47-90, jan./fev. 2014. p. 59.
130
LEITE, Alaor. Domínio do fato, domínio da organização e responsabilidade penal por fatos de terceiros: sobre
os conceitos de autor e partícipe na APn 470 do STF. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v.
22, n. 106, p. 47-90., jan./fev. 2014. p. 49-54.
47
O fundamento do dever especial de agir, ao menos apto a autorizar que se cogite a junção
entre a cláusula geral (no Brasil, representada no art. 13, CP) e um tipo penal, é discutido na
doutrina, preponderantemente, a partir de dois grandes critérios: o princípio do domínio sobre
os fundamentos do resultado, desenvolvido por Bernd Schunemann, e a competência por
organização, teoria de Gunther Jakobs.
Esses grupos doutrinários refletem a posição de garantidor, a seu modo, partindo de uma
devida e progressiva superação da teoria das fontes formais.
Sob a concepção de Schunemann, a estrutura comum entre uma comissão realizada por
conduta ativa e a comissão por omissão seria a correspondência entre “o centro pessoal de
controle” e o “movimento corporal causador do resultado”131. Esse domínio sobre o corpo não
poderia ser, em seu sentir, potencial ou hipotético, mas absoluto132.
Assim, assevera, “na medida em que o movimento corporal possibilita o nexo causal e
surge como fundamento imediato do resultado, o domínio imediato sobre esse fundamento
imediato do resultado é, assim, fundamento mediato do resultado”133, justificando uma
imputação penal ao sujeito.
Acrescenta o autor, em reflexões mais recentes, que na posição de garantidor, assim
como ocorre na essência da autoria por comissão, o domínio deve repousar sobre algum aspecto
essencial do acontecimento global. Nessa perspectiva, a construção de um dever de garantia
partirá de condições de domínio real, dividindo-se no domínio sobre o desamparo de um bem
jurídico e o domínio sobre uma causa essencial do resultado (onde se posiciona, por exemplo,
o domínio sobre funções perigosas).
Note-se que, assentes nessas ponderações, são os limites de domínio que demarcam os
limites da posição de garantidor.
Gunther Jakobs, de modo diverso, compreende que o fundamento da responsabilidade
penal na sociedade moderna se correlaciona com a existência de limites à configuração do
mundo externo. Em suma, por possuírem os sujeitos arbitrariedade ao fazê-lo, a
131
SCHÜNEMANN, Bernd. Sobre a posição de garantidor nos delitos de omissão imprópria: Possibilidades
histórico-dogmáticas, materiais e de direito comparado para escapar de um caos. In: SCHÜNEMANN, Bernd
(Org.). Estudos de direito penal, direito processual penal e filosofia do direito. Coordenação de Luís Greco.
São Paulo: Marcial Pons, 2013. p. 159-181. (Direito Penal e Criminologia). p. 171.
132
SCHÜNEMANN, Bernd. Sobre a posição de garantidor nos delitos de omissão imprópria: Possibilidades
histórico-dogmáticas, materiais e de direito comparado para escapar de um caos. In: SCHÜNEMANN, Bernd
(Org.). Estudos de direito penal, direito processual penal e filosofia do direito. Coordenação de Luís Greco.
São Paulo: Marcial Pons, 2013. p. 159-181. (Direito Penal e Criminologia). p. 171.
133
SCHÜNEMANN, Bernd. Sobre a posição de garantidor nos delitos de omissão imprópria: Possibilidades
histórico-dogmáticas, materiais e de direito comparado para escapar de um caos. In: SCHÜNEMANN, Bernd
(Org.). Estudos de direito penal, direito processual penal e filosofia do direito. Coordenação de Luís Greco.
São Paulo: Marcial Pons, 2013. p. 159-181. (Direito Penal e Criminologia). p. 171
48
responsabilidade teria origem quando lesionados os limites gerais dessa configuração 134, um
status geral, pertencente a qualquer membro da sociedade.
Por esse status, ao que Jakobs considera “sinalagma de seu direito de organização”135,
a todos surgirá o dever de não ultrapassar, com ela, o risco permitido. Existirá, desse modo, um
dever de asseguramento, concluindo que “todo titular de um círculo de organização é garantidor
da prevenção de um output que exceda o risco permitido”136.
Para verificar o dever de garante conforme a teoria de Jakobs, portanto, o decisivo é
que a atribuição do curso do dano faça parte da organização daquele sujeito. Como compreende
que todos os delitos têm por base a violação de um dever de garantia, as diferenças entre ação
e omissão tornam-se irrelevantes, quando analisadas sob uma perspectiva jurídica137.
Além do dever de asseguramento, o âmbito da responsabilidade pela própria
organização, de acordo com o autor, abarca casos de deveres de salvamento e os derivados da
assunção do domínio de risco. Os deveres de salvamento surgem quando o sujeito cria um risco
prévio ao bem jurídico alheio, pondo-se em condição de garante a partir dessa criação.
Na segunda hipótese – assunção –, que para o autor não pode ser esquecida no marco
da competência por organizações, o relevante não é apenas a promessa de uma prestação, mas
que o sujeito tenha abandonado outras medidas protetivas, produzidas como consequência
dessa promessa. Desse modo, aquele que assume “organiza, pois, mediante sua promessa, uma
minoração da proteção”, devendo compensá-la. Destaca Jakobs que essa hipótese – embora
julgue que de modo inadequado – é frequentemente designada como o dever em virtude de um
contrato138.
Diferentemente de Schunemann, para quem, ainda que exista um dever formal, a
responsabilidade penal por omissão só será possível quando verificado um domínio fático sobre
o desamparo, Jakobs considera que o delito se define pela lesão de uma expectativa aos demais
membros da sociedade ou aos deveres de solidariedade.
É imperioso considerar, antes de prosseguir com as propostas teóricas acima
consideradas, que essa doutrina atual, majoritariamente, parte de variações de uma divisão
134
JAKOBS, Gunther. Ação e Omissão no Direito Penal. Tradução de Maurício Antonio Ribeiro Lopes. Barueri:
Manole, 2003. (Coleção Estudos de Direito Penal, v. 2). p. 33.
135
JAKOBS, Gunther. Ação e Omissão no Direito Penal. Tradução de Maurício Antonio Ribeiro Lopes. Barueri:
Manole, 2003. (Coleção Estudos de Direito Penal, v. 2). p. 38.
136
JAKOBS, Gunther. Ação e Omissão no Direito Penal. Tradução de Maurício Antonio Ribeiro Lopes. Barueri:
Manole, 2003. (Coleção Estudos de Direito Penal, v. 2). p. 40.
137
BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de omissão imprópria. São Paulo: Marcial Pons, 2018. (Direito Penal e
Criminologia). p. 99.
138
JAKOBS, Günther. La imputación penal de la acción y de la omisión. Bogotá: Universidad Externado de
Colombia, 1996. (Cuadernos de Conferencias y Articulos; nº 12). p. 37-40.
49
introduzida por Armin Kauffman para compreender a matéria139. O autor elabora uma
dogmática específica para os delitos de omissão, considerando que apenas a omissão do garante
reúne os requisitos do delito comissivo140, mas que inexiste relação causal entre omitente e
resultado lesivo, razão pela qual não pode ser equiparado à ação.
Dessa maneira, para Kauffman, os tipos de resultado, previstos na Parte Especial, só
comportariam a imputação comissiva, sob pena de alargar-se a incidência. A extensão às
omissões só seria possível por uma construção jurídica específica, de modo que a imputação ao
que não impede o resultado, podendo fazê-lo, não é automática, mas exige um critério especial:
o dever de garante.
Esse dever, sob o enfoque da construção aludida, divide-se em garante de tipos especiais
omissivos e deveres de controle dos focos de perigo141, de maneira que o primeiro surgiria de
um preceito jurídico ou da assunção fática, enquanto os últimos, impondo o controle de riscos
a determinado sujeito, teriam origem na ingerência ou relações especiais de confiança142. Note-
se, por oportuno, que a teoria de Kauffman fornece importantes critérios para divisão, mas não
justifica materialmente uma posição de garantidor143.
O sistema brasileiro adotou como técnica a situação formal das fontes de posição de
garante. Nelson Hungria, ao comentar o Código Penal de 1940, afirmou que o dever jurídico de
evitação pode resultar de um mandamento jurídico, expresso ou tácito, de uma relação
contratual ou de uma situação de perigo precedentemente criada144, e que a regra do artigo deve
ser “entendida no terreno objetivo-causal”.
Em atenção ao princípio da legalidade, seja por seu fundamento político democrático-
representativo, seja de proteção particular ao poder estatal145, faz-se necessário estabelecer um
conteúdo material a essa posição de garantidor. Assim, atualmente, esse conteúdo tem se
139
ASSIS, Augusto. A responsabilidade penal omissiva dos dirigentes de empresa. In: LOBATO, José Danilo
Tavares; MARTINELLI, João Paulo Orsini; SOUZA, Humberto (Orgs.). Comentários ao Direito Penal
Econômico. Belo Horizonte: D'placido, 2018. p. 54.
140
KAUFMANN, Armin. Dogmática de los delitos de omisión. Traducción de la segunda edición alemana
(Gotinga, 1980) por Joaquín Cuello Contreras y José Luis Serrano González de Murillo Madrid: Marcial Pons,
2006. p. 252.
141
Ibidem. p. 199.
142
BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de omissão imprópria. São Paulo: Marcial Pons, 2018. (Direito Penal e
Criminologia). p. 80.
143
A propósito, para situar a teoria no espaço, vale notar, como destaca Pierpaolo Bottini, que a construção de
Armin Kauffman se atrelava à legislação alemã, que naquele momento, ainda não previa cláusula geral de
equiparação para as omissões impróprias. Em uma análise transposta para o contexto brasileiro, a cláusula é
materializada no Art. 13, §2º, CP, objeto de discussão neste capítulo.
144
HUNGRIA, Nelson; FRAGOSO, Heleno Claudio. Comentários ao Código Penal. 5. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 1978. v. 1. t. 2. p. 70.
145
MARTINELLI, João Paulo Orsini; BEM, Leonardo Schmitt de. Lições fundamentais de Direito Penal: Parte
Geral. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2019. p. 207-210.
50
construído na responsabilidade por fontes produtoras de perigo e pela posição especial de defesa
a certos bens jurídicos146.
No primeiro caso, a proteção pode se destinar a comportamentos do próprio sujeito ou,
também, a comportamentos e objetos sob sua responsabilidade. Aqui se situam, com maior
expressão, as hipóteses de ingerência, caso em que o dever de garantia pertencerá àquele que
criou o risco anterior do resultado (admitido no Código Penal brasileiro em seu art. 13, §2º,
“c”), e as hipóteses de responsabilidade por posição de proteção frente à conduta de
subordinados.
Já na posição especial de defesa frente a alguns bens jurídicos, é possível citar a
vinculação entre o garantidor e a vítima por obrigação social de proteção, as relações de trabalho
em que determinado sujeito se obriga à proteção de outros e a assunção de função protetiva
unilateral ou bilateral, conduzindo a confiança da proteção ao bem jurídico147.
Presumível, em face dessas conjecturas, que nosso ordenamento jurídico admite, por
vezes, imputações distintas dos limites impostos pela teoria de Schunemann ou de Jakobs. Para
Schunemann, a título ilustrativo, a posição de garantia pela ingerência restaria excluída, pois
atrela o autor à omissão imprópria a um domínio sobre a causa essencial do resultado148. De
mesmo modo, ao formular os deveres que derivam de competência institucional, Jakobs
fundamenta a responsabilidade pela preservação da confiança nessas instituições149,
circunstância que não se encontra dentre as possibilidades do Art. 13, §2º, CP.
Pertinente, no último caso, a crítica de Pierpaolo Bottini, que vislumbra a vinculação do
dever de garante a instituições desde que previsto em lei150, fundamentando-se na proteção de
bens jurídicos e não na tutela da confiança.
Com a mesma importância, pondera Juarez Tavares que a responsabilidade por infringir
deveres de organização deve considerar a descentralização administrativa dessas entidades,
neste trabalho abordada no Capítulo 2. Sob sua ótica, ainda que subsistentes as condições que
qualifiquem determinada entidade organizada, não é possível afirmar, unicamente por isso, que
daí resultam deveres impositivos que vinculam todos os integrantes, referindo-se apenas aos
que estejam associados de forma direta à atividade imposta151.
146
TAVARES, Juarez. Teoria dos crimes omissivos. São Paulo: Marcial Pons, 2018. p. 316.
147
TAVARES, Juarez. Teoria dos crimes omissivos. São Paulo: Marcial Pons, 2018. p. 316-317.
148
BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de omissão imprópria. São Paulo: Marcial Pons, 2018. (Direito Penal e
Criminologia). p. 88-89.
149
Ibidem. p. 104-105.
150
Ibidem. p. 104.
151
TAVARES, Juarez. Teoria dos crimes omissivos. São Paulo: Marcial Pons, 2018. p. 92.
51
Pelas observações feitas, resta claro que a importação de teorias, por melhor construção
dogmática que apresentem, exige, em todo caso, uma atenção particular. Em primeiro lugar,
porque seu desenvolvimento se dá perante um sistema jurídico distinto do nosso, com previsão
de condutas delituosas, às vezes, inexistentes em nosso ordenamento. Posteriormente, porque
sua aplicação prática pode ser prejudicada pela disposição normativa brasileira, seja
inadmitindo hipóteses reconhecidas – a exemplo da ingerência, impossibilitada pela teoria de
Schunemann, mas prevista no Código Penal vigente - seja alargando responsabilidades que
ultrapassam os limites legais – como o fundamento pela confiança, de Jakobs.
Isso não significa legitimar, pela via da criminalização secundária, distorções às teorias,
para que se adequem aos fins desejados no caso concreto por meio de um somatório de retalhos
convenientes. Do contrário, essa discussão antecede até mesmo o processo de criminalização
primária.
O já citado princípio da legalidade impõe uma interpretação restritiva ao poder estatal.
No panorama da criminalidade de empresa e da responsabilidade de dirigentes, questiona-se a
possibilidade de que o limite da garantia se estenda ao impedimento de ações de terceiros e, em
caso positivo, da abrangência desse dever. Uma fórmula geral, previne novamente Juarez
Tavares, é incompatível com os princípios que regem a imputação individualizada, pois
“transforma a omissão em cláusula de reserva de punibilidade”152.
Para limitar o dever de vigilância sobre subordinados, enquanto forma de dominar
perigos que provêm de atos desses sujeitos, faz-se necessário retomar a análise do art. 13, §2º,
CP.
Inicialmente, a lei como fonte do dever de garantia, nos termos da alínea “a” do
dispositivo em questão, determina que o dever de agir incumbirá a quem “tenha por lei
obrigação de cuidado, proteção ou vigilância”.
Exemplo pode ser observado na Lei 12.846/2013, quando em seu art. 27 atribui
responsabilidade civil, administrativa e penal à autoridade competente que, tendo conhecimento
de infrações previstas naquela lei, não adotar providências para apuração dos fatos.
Registre-se que a vedação à analogia in malam partem, enquanto princípio norteador do
direito criminal, implica que o conceito de “lei” seja tomado unicamente enquanto lei formal,
152
TAVARES, Juarez. Teoria dos crimes omissivos. São Paulo: Marcial Pons, 2018. p. 318.
52
na forma ordinária ou complementar, afastando quaisquer outros atos normativos dessa fonte
do dever de garantia153.
Mais dificultosos, contudo, são os limites ao disposto nas alíneas “b” e “c”, do citado
dispositivo, respectivamente ao que “de outra forma assumiu a responsabilidade de impedir o
resultado” e à citada situação de ingerência.
A posição de garantidor originada na assunção de impedir resultados, lesivos ou de
perigo, a bens jurídicos alheios, pode se dar mediante contrato ou assunção fática. Na conversão
do contrato em fonte do dever de agir, valorosa é a ponderação feita por Nilo Batista e Eugênio
R. Zafarroni, para os quais essa possibilidade só existirá “quando a confiança depositada no
sujeito exprimir uma especial obrigação de cuidado, proteção e vigilância”154. O contributo
central dessa crítica é afastar a condição de garantidor por uma mera imposição de
adimplemento extrapenal.
Quando instituída pela assunção fática de proteção, a posição de garantia se dará à
medida que o sujeito manifeste sua vontade e inicie, efetivamente, o exercício da função
protetiva155.
Uma expressão dessa garantia, significativa para o contexto de responsabilidade de
dirigentes, é o exercício de determinadas funções, circunstância em que o sujeito aceita
incumbências típicas de determinado cargo. Para melhor elucidar essa possibilidade, imaginem-
se funcionários que desempenhem função de controle e proteção ambiental em determinada
indústria.
Embora aceitem o encargo individual de fazê-lo, o dever não pode ser ilimitado. Aqui,
a omissão terá relevância penal quando, além do dever de agir, houver possibilidade concreta
de realizar a tarefa de proteção, além de um ato de disposição da vítima. Nas palavras de
Schunemann, não é o dever como tal, mas somente uma relação de domínio, possivelmente
advinda dele, que permite a equiparação entre agir e omitir156.
A alínea “c”, que estipula o dever de agir motivado pela ingerência, situa a posição de
garantidor no âmbito das novas fontes de perigo. Claus Roxin observa que, embora essa
previsão fosse amplamente reconhecida na dogmática a partir do século XIX, o fundamento da
153
BADARÓ, Gustavo Henrique; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de Dinheiro: Aspectos penais e
processuais penais: Comentários à Lei 12.683/2012. Prefácio de Maria Thereza Rocha de Assis Moura. 3. ed. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. p. 198.
154
ZAFFARONI, Eugenio Raúl et al. Direito penal brasileiro: segundo volume: introdução histórica e
metodológica, ação e tipicidade. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2010.
155
TAVARES, Juarez. Teoria dos crimes omissivos. São Paulo: Marcial Pons, 2018. p. 327.
156
SCHÜNEMANN, Bernd. Fundamento y límites de los delitos de omisión impropia: Con una aportación a
la metodología deI Derecho penal. Madrid: Marcial Pons, 2009. p. 413.
53
157
ROXIN, Claus. Ingerencia e imputación objetiva. Revista Penal, Valencia, n. 19, p. 152-161, jan. 2007.
Disponible en: http://201.23.85.222/biblioteca/index.asp?codigo_sophia=62162. Acceso en: 20 out. 2019. p. 154.
158
BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de omissão imprópria. São Paulo: Marcial Pons, 2018. (Direito Penal e
Criminologia). p. 162-163.
159
SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito Penal Empresarial: A omissão do empresário como crime. Belo
Horizonte: D'placido, 2016. (Coleção Ciência Criminal Contemporânea, v. 5). p. 196.
160
BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de omissão imprópria. São Paulo: Marcial Pons, 2018. (Direito Penal e
Criminologia). p. 163.
161
Nesse sentido, DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal: Parte Geral: Questões Fundamentais: A Doutrina
Geral do Crime. 2. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2007. t. 1. p. 945. “Todavia, se a questão constitui, em último
termo, um problema de ilicitude e se esta é sempre uma ilicitude pessoal e não meramente causal, então deve-se
ter por seguro que a causação de um perigo, em si mesma considerada, é incapaz de fundar um dever de garantia
e a consequente posição de garante”.
54
tenha sido praticada diretamente pelo sujeito, seja iniciando a ação ou assumindo o controle da
causalidade. Isso se deve aos efeitos do art. 13, §1º, do mesmo diploma legal, que determina a
superveniência de causa relativamente independente como excludente da imputação.
A posição de garante nesse caso, todavia, não deriva de uma mera causalidade, mas da
imputação objetiva de um atuar prévio, razão pela qual importa analisar se o risco criado
correspondia a um risco não permitido162. Tampouco basta que seja uma conduta contrária ao
dever, sem prejuízo de ponderar-se o caso à luz de critérios de criação e diminuição de riscos,
bem como de análises sobre o comportamento da vítima, em atenção ao princípio da
autorresponsabilidade163.
Podemos ressaltar, por conseguinte, que independente do fundamento da posição de
garantidor que se vislumbre, a existência dessa posição denota apenas uma relação especial com
dado bem jurídico ou fonte de perigo, mas não implica, tão somente por isso, que o sujeito
deveria agir para evitar o resultado. Apenas uma situação concreta de perigo é capaz de indicá-
lo.
Assim, em âmbito empresarial, a despeito de se compreender que os dirigentes exercem
uma função de garantidor em relação aos riscos dessa estrutura, disso não se extrai uma
responsabilidade sobre lesões praticadas por seus subordinados. Se assim o fosse, incidiria
sobre esse dirigente uma responsabilidade penal fundada em mera posição, vedada no Direito
Penal, por afastar uma imputação objetiva na medida em que viola o princípio da
culpabilidade164.
162
CRESPO, Eduardo Demetrio. Fundamento da responsabilidade em comissão por omissão dos diretores de
empresas. Revista Liberdades, São Paulo, v. 14, n. 1, p. 61-92, set. 2013. Traduzido por Adriano Galvão. p. 64.
163
A análise do comportamento da vítima condicionada pelo princípio da autorresponsabilidade exige, para que
se atribua o dever de garantidor a um terceiro, que a ação não esteja incluída no âmbito de responsabilidade da
própria vítima. Embora o conceito seja retomado no tópico 3.3 deste estudo, para maiores considerações ver
GRECO, Luís. Domínio da organização e o chamado princípio da autorresponsabilidade. In: ZILIO, Jacson Luiz;
BOZZA, Fábio da Silva (Orgs.). Estudos críticos sobre o sistema penal. Curitiba: LedZe, 2012.
164
Sobre a sistemática da imputação objetiva, destaca Ingeborg Puppe, em PUPPE, Ingeborg. A imputação objetiva
do resultado a uma ação contrária ao dever de cuidado. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v.
27, n. 155, p. 103-123, maio 2019. p. 121, que “primeiramente, há de se averiguar esse curso causal. Ou seja: deve-
se identificar aquela condição verdadeira e suficiente para a ocorrência do resultado, da qual a ação constitui parte
necessária. Com isso, há de ser investigado quais as características dessa ação que se mostram incompatíveis com
o dever de cuidado do autor na situação concreta. Apenas quando a ação possuir tais características é que o agente
terá criado um perigo concreto”.
Com relação ao princípio da culpabilidade, adota-se neste trabalho o sentido de culpabilidade como função
limitativa da pena, de maneira que por meio desse princípio, apenas atos externos dirigidos por vontade, capazes
de lesionar bens jurídicos ou colocá-los em perigo, podem sofrer repressão estatal. Ver, para tanto, ROXIN, Claus.
A culpabilidade como critério limitativo da pena. Revista de Direito Penal, Rio de Janeiro, 11/12, p. 7-20,
jul./dez. 1973. Disponível em: http://201.23.85.222/biblioteca/index.asp?codigo_sophia=20441. Acesso em: 21
out. 2019; CRESPO, Eduardo Demetrio. Culpabilidad y fines de la pena: con especial referencia al pensamiento
de Claus Roxin. Revista de Derecho Penal, Buenos Aires, n. 2, p. 197-239., 2007; SANTOS, Juarez Cirino dos.
Culpabilidade: desintegração dialética de um conceito metafísico. Revista de Direito Penal, Rio de Janeiro,
15/16, p. 51-64, jul./dez. 1974 e, nesta Universidade Federal do Rio Grande do Norte, MARQUES, Vinicius de
55
Outrossim, o próprio caput do art. 13, CP, faz referência a uma ação ou omissão
determinada, que seja causa de um resultado, para que exista relevância penal. Assim, apenas
por ocupar determinada posição, a imputação viola, sobretudo, a própria letra da lei165.
Não obstante a insuficiência da cláusula geral para elucidar as bases materiais da posição
de garantidor, algumas considerações parciais podem ser elencadas, a partir de uma
interpretação dogmática do dispositivo, especificamente no que interessa à responsabilidade
dos dirigentes de empresa.
Em primeiro lugar, na responsabilidade por fontes de perigo – ainda que eventualmente
compreendida como decorrência de deveres de confiança, concepção a que não se filia este
trabalho, por visualizar, nas alíneas do art. 13, §2º, CP, apenas a possibilidade de um dever
anuído, expressa ou tacitamente, ou por ingerência –, os próprios conceitos de perigo e de
controle são imprecisamente determináveis, do que decorre, também, uma incerteza quanto à
amplitude do dever de garantia.
Certamente, a verificação do controle e domínio, para fins de responsabilidade penal,
depende de uma análise concreta. Essa afirmativa, por outro lado, não corresponde a uma
posição de garante meramente casuística, o que seria incompatível com os próprios corolários
do princípio da legalidade. Exige-se um conhecimento anterior dos parâmetros dessa atribuição,
previamente delineados e, principalmente, que sejam possíveis quando confrontados com a
limitação normativa e com as garantias penais166.
A proporcionalidade imposta no processo penal – entendimento que perfeitamente se
estende ao sistema criminal, de forma ampla – exige que, em caso de conflito de preceitos,
prevaleça “o garantidor da liberdade sobre o que fundamenta sua supressão” 167. Desse modo,
deve ser tratada também a responsabilidade por garantia – existindo dúvidas sobre o parâmetro
Godeiro. Individualização da pena e aplicação da pena: Aportes para uma teoria da decisão final. 2018. 100 f.
Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação) - Curso de Direito, Centro de Ciências Sociais Aplicadas,
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2018. Cap. 1. p. 25-27.
165
ESTELLITA, Heloísa. Causalidade na omissão: Um panorama dos problemas das omissões paralelas e
sucessivas na criminalidade de empresa. In: LOBATO, José Danilo Tavares; MARTINELLI, João Paulo Orsini;
SANTOS, Humberto Souza (Orgs.). Comentários ao Direito Penal Econômico Brasileiro. Belo Horizonte:
D'placido, 2018. p. 73.
166
Em verdade, esta limitação se relaciona, também, com a própria dignidade do homem. Isso porque, conforme
leciona Keity Saboya, “deve-se compreender que o princípio da dignidade humana impede que o homem seja
convertido em objeto de persecuções permanentes, como se a espada de Dâmocles estivesse sempre pendente
sobre si. [...] Do contrário, o homem seria submetido a uma situação jurídica indefinida, indigna com a condição
humana, assemelhando-se a “máquina de persecução” a um “epulão insaciável, movida pela fobia de deixar
impune o hipotético réu””. SABOYA, Keity. Ne Bis in Idem: História, Teoria e Pespectivas. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2014. p. 165-166.
167
Trecho do voto do Ministro Eros Grau, em julgamento de mérito do HC 95009, STF.
56
de sua fixação e quando incerta diante do contexto fático, sua excepcionalidade reclama o
afastamento.
Algumas considerações a respeito dos limites da posição de garantia, especialmente em
ambiente empresarial, são evidenciadas a partir dessa premissa e do disposto neste capítulo. Em
primeiro lugar, que o uso das classificações de omissão imprópria pode, de fato, apresentar
utilidades práticas na seara empresarial, mas necessita atender aos fundamentos materiais de
uma posição de garantia.
Para tanto, é preciso compreender que o manejo de coisas ou a distribuição de funções
não gera, automaticamente, um dever de garante. Esse dever está condicionado a uma previsão
legal, à assunção ou ingerência.
Na ingerência, a imputação está limitada aos desdobramentos de um risco não
permitido, que ocasiona um resultado típico em virtude de desatenção às normas de cuidado168.
O alcance da ingerência, contudo, impõe que essa posição de garante não derive de uma mera
causalidade, mas da imputação objetiva de uma ação prévia169, sob pena de transformar-se em
instrumento de reprimenda penal às simples irregularidades.
Ainda quanto a esse fundamento da posição de garantia, importante notar que a
desatenção aos critérios limitadores pode conduzir a uma inadmissível responsabilidade
objetiva. Para evitá-la, a ingerência deve subordinar-se a alguns pressupostos, como o domínio
da causalidade, a existência de conduta não acobertada pelo risco permitido – e que o risco
proibido seja objeto de norma170–, que a ação consequente não se insira “na inteira
responsabilidade do executor”171 e que não se trate de ação autorizada por causa de justificação.
A respeito de um dos aspectos acima citado, “que o risco proibido seja objeto de norma”,
causa preocupação também a legitimidade da construção penal a que se refere. Em alguns casos,
a própria previsão do risco, tamanha a insuficiência, exigirá elementos valorativos, ampliando
as inseguranças. Na legislação penal brasileira, pode-se citar enquanto exemplo o crime de
168
BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de omissão imprópria. São Paulo: Marcial Pons, 2018. (Direito Penal e
Criminologia). p. 134.
169
CRESPO, Eduardo Demetrio. Sobre la posicion de garante del empresario por la no evitación de delitos
cometidos por sus empleados. In: SERRANO-PIEDECASAS, José Ramón; CRESPO, Eduardo Demetrio
(Orgs.). Cuestiones actuales de derecho penal economico. Coruña: Colex, 2008. p. 76.
170
Juarez Tavares, ao tratar da limitação no que tange ao risco, elenca, além dos dois requisitos expostos, a
necessidade de que a conduta não se inclua no risco habitual de vida, que o risco desencadeado pela ação
precedente possa se exaurir no resultado e que a inatividade posterior não tenha sido objeto de avaliação exclusiva
ou complementar por outra norma. TAVARES, Juarez. Teoria dos crimes omissivos. São Paulo: Marcial Pons,
2018. p. 336.
171
Ibidem. p. 340. A limitação pela inteira responsabilidade do executor refere-se aos parâmetros impostos pelo
princípio da autorresponsabilidade.
57
172
Lei 7.492/82, Art. 4º. “Gerir fraudulentamente instituição financeira: Pena – Reclusão de 3 (três) a 12 (doze)
anos, e multa. Parágrafo único: Se a gestão é temerária: Pena – Reclusão, de 2 (dois) a 8 (oito) anos, e multa”.
173
Para uma maior compreensão sobre a problemática e possíveis soluções jurídico-dogmáticas, ver RUIVO,
Marcelo Almeida. Criminalidade financeira: Contribuição à compreensão de gestão fraudulenta. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2011.
174
CRESPO, Eduardo Demetrio. Sobre la posicion de garante del empresario por la no evitación de delitos
cometidos por sus empleados. In: SERRANO-PIEDECASAS, José Ramón; CRESPO, Eduardo Demetrio
(Orgs.). Cuestiones actuales de derecho penal economico. Coruña: Colex, 2008. p. 76.
175
PUIG, Santiago Mir. Derecho Penal: Parte General. 8. ed. Barcelona: Editorial Reppertor, 2006. p. 328.
176
BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de omissão imprópria. São Paulo: Marcial Pons, 2018. (Direito Penal e
Criminologia). p. 135.
58
Por esse motivo, serão analisados a seguir alguns critérios e problemas práticos, notadamente
quanto à existência de nexo entre omissão e resultado.
Discorrendo sobre o injusto penal e os riscos não permitidos, sustenta Claus Roxin que,
como princípio básico da teoria do Estado, “o poder estatal de intervenção e a liberdade civil
devem ser levados a um equilíbrio, de modo que garanta ao indivíduo tanta proteção estatal
quanto seja necessária, assim como tanta liberdade individual quanto seja possível”177. Sendo
a missão subsidiária do Direito Penal a proteção de bens jurídicos, sob pena de intervir-se
indevidamente nas liberdades individuais, não haveria de se pensar em responsabilidade nos
delitos de resultado que prescindisse da dependência entre ação ou omissão e da mudança
ocasionada no mundo exterior.
Considere-se, no presente estudo, o termo “causalidade na omissão”178 – para afastá-lo
das discussões doutrinárias a respeito da existência de uma autêntica causalidade179 ou apenas
de uma causalidade hipotética180 –, enquanto relação condicional lógica. Não se tratará aqui da
177
ROXIN, Claus. A proteção de bens jurídicos como função do Direito Penal. Organização e tradução de
André Luís Callegari e Nereu José Giacomolli. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2018. p. 39.
178
Expressão empregada por Luís Greco, em GRECO, Luís. Problemas de causalidade e imputação objetiva
nos crimes omissivos impróprios. Tradução de Ronan Rocha. São Paulo: Marcial Pons, 2018. (Direito Penal e
Criminologia), em substituição às locuções “quase-causalidade” e “causalidade hipotética”.
179
A respeito disso, admite Gimbernat Ordeig que na atualidade ainda se afirma esta relação, como “categoria del
pensamiento que enlazaba antecedentes con conseguientes”, bem como permanece a compreensão, para alguns
autores, de que a modificação do mundo exterior pode se dar por condições positivas ou negativas. Ressalta, por
outro lado, que essas compreensões ainda são pouco preponderantes, pois a doutrina majoritária rejeita uma relação
de causalidade entre omissão e resultado, substituindo-a por uma probabilidade próxima à certeza de que a ação
omitida o evitaria. GIMBERNAT ORDEIG, Enrique. La causalidad en la omisión impropia y la llamada omisión
por comisión. Anuario de derecho penal y ciencias penales, Madrid, v. 53, p. 29-132, jan./dec. 2000. p. 33-35.
Há, ainda, a posição de Schuemann, para quem os resultados não se imputam diretamente em virtude de uma
causalidade ou de causalidade potencial, mas em razão do domínio, que pode se dar por uma ação causal ou por
outros fatores. SCHÜNEMANN, Bernd. Fundamento y límites de los delitos de omisión impropia: Con una
aportación a la metodología deI Derecho penal. Madrid: Marcial Pons, 2009. p. 427.
180
Sustenta este entendimento, a título exemplificativo, Muñoz Conde, para quem “realmente la omisión no puede
ser entendida como componente causal de ningún resultado, ya que la causalidad exige la puesta en marcha de
uma fuerza desencadenante que por definición falta em la omisión (ex nihilo nihil fit). Lo que importa em la
imputación de un resultado a uma conducta omisiva o, si se prefiere la terminología clásica, en la comisión por
omisión, es la constatación de una causalidad hipotética, es decir, la posibilidad fáctica que tuvo el sujeto de evitar
el resultado”. CONDE, Francisco Muñoz; ARÁN, Mercedes García. Derecho Penal: Parte General. 8. ed.
Valencia: Tirant Lo Blanch, 2010. p. 243-244.
Sobre isso, também, esclarece Silva Sanchez que “la a veces denominada "causalidad" o "cuasicausalidad" de la
omisión no tiene por función la de establecer una relación de causalidad que realmente no existe. Más bien, se
trata de un criterio de imputación objetiva deI resultado paralelo a los que se dan en la comisión activa superpuestos
a la causalidad y como sus correctivos.”. SANCHEZ, Jesus Maria Silva. El delito de omision: Concepto y sistema.
2. ed. Buenos Aires: Bdef, 2003. p. 294.
59
181
SANCHEZ, Jesus Maria Silva. El delito de omision: Concepto y sistema. 2. ed. Buenos Aires: Bdef, 2003. p.
286.
182
GRECO, Luís. Problemas de causalidade e imputação objetiva nos crimes omissivos impróprios. Tradução
de Ronan Rocha. São Paulo: Marcial Pons, 2018. (Direito Penal e Criminologia). p. 19-20. Apesar dessa colocação,
sustenta o autor posição pessoal quanto à existência de causalidade, ponderando, todavia, que não está seguro do
argumento, “ainda que nele não enxergue qualquer erro”.
183
CONDE, Francisco Muñoz; ARÁN, Mercedes García. Derecho Penal: Parte General. 8. ed. Valencia: Tirant
Lo Blanch, 2010. p. 238. “La possibilidad de acción es, por conseguiente, el elemento ontológico conceptual básico
común tanto a la acción como a la omisión”.
184
A saber, no Brasil, o exemplo é utilizado desde Tobias Barreto, em 1892, BARRETO, Tobias. Estudos de
Direito. Rio de Janeiro: Laemmer & C., 1892. 468 p. (Obras de Tobias Barreto; 1). Publicação Póstuma dirigida
por Sylvio Roméro, p. 140, ao recente MARTINELLI, João Paulo Orsini; BEM, Leonardo Schmitt de. Lições
fundamentais de Direito Penal: Parte Geral. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2019. p. 434.
60
185
ESTELLITA, Heloísa. Causalidade na omissão: Um panorama dos problemas das omissões paralelas e
sucessivas na criminalidade de empresa. In: LOBATO, José Danilo Tavares; MARTINELLI, João Paulo Orsini;
SOUZA, Humberto (Orgs.). Comentários ao Direito Penal Econômico Brasileiro. Belo Horizonte: D'placido,
2018. p. 69-113. p. 69.
186
“Si se da por seguro o, por lo menos, como muy probable que si el sujeto hubiera realizado la acción mandada,
el resultado no se hubiera producido, entonces se podrá indagar si cabe también la imputación objetiva del
resultado al sujeto de la omisión. [...] La evitabilidad del resultado es, pues, el criterio que, matizado y completado
con los derivados de las teorías de la causalidad y de la imputación objetiva, nos permite imputar ese resultado a
una conducta omissiva.” CONDE, Francisco Muñoz; ARÁN, Mercedes García. Derecho Penal: Parte General. 8.
ed. Valencia: Tirant Lo Blanch, 2010. p. 244.
187
ORDEIG, Enrique Gimbernat. Teoría de la evitabilidad versus teoría del aumento del riesgo. Anuario de
derecho penal y ciencias penales, Madrid, v. 68, p. 21-62, anual. 2015. p. 26.
188
Ibidem. p. 28.
189
ROXIN, Claus. Derecho Penal: Parte General: Fundamentos. La estructura de la teoria del delito. Traducción
de la segunda edición alemana y notas por Diego-Manuel Luzon Peña,Javier de Vicente Remesal y Miguel Díaz
y García Conlledo Madrid: Civitas, 1997. t. 1. p. 364.
190
Ibidem. p. 371.
61
191
Ibidem. p. 379.
192
GRECO, Luís. Problemas de causalidade e imputação objetiva nos crimes omissivos impróprios. Tradução
de Ronan Rocha. São Paulo: Marcial Pons, 2018. (Direito Penal e Criminologia). p. 23.
193
Exemplo que pode ser visto em GRECO, Luís. Problemas de causalidade e imputação objetiva nos crimes
omissivos impróprios. Tradução de Ronan Rocha. São Paulo: Marcial Pons, 2018. (Direito Penal e Criminologia).
p. 23, adaptado de decisão do Supremo Tribunal Alemão sobre o caso, em que se aplicou a teoria da evitabilidade
para absolvição do delito de homicídio culposo.
194
TAVARES, Juarez. Teoria dos crimes omissivos. São Paulo: Marcial Pons, 2018. p. 368-369.
195
TAVARES, Juarez. Teoria dos crimes omissivos. São Paulo: Marcial Pons, 2018. p. 369.
62
196
JOFFILY, Tiago. O resultado como fundamento do injusto penal. Florianópolis: Empório do Direito, 2016.
p. 199.
197
GRECO, Luís. Problemas de causalidade e imputação objetiva nos crimes omissivos impróprios. Tradução
de Ronan Rocha. São Paulo: Marcial Pons, 2018. (Direito Penal e Criminologia). p. 35-36.
198
Demonstrada neste trabalho, no que concerne ao seu objeto de estudo, no capítulo 2.
199
BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de omissão imprópria. São Paulo: Marcial Pons, 2018. (Direito Penal e
Criminologia). p. 198.
200
TAVARES, Juarez. Teoria dos crimes omissivos. São Paulo: Marcial Pons, 2018. p. 392.
63
201
Sobre essa formulação, aponta Juarez Tavares que em uma classificação inicial, a probabilidade era dividida
em objetiva e subjetiva, o que foi substituído pelas concepções científicas mais modernas de explicação epistêmica,
explicação modal e explicação ôntica, e a partir desses enfoques, segue-se para a criação de graus de probabilidade.
Com relação a esses, permanece a divergência valorativa, do que extrai o autor considerações sobre a necessidade
de uma lei geral de causalidade. A respeito disso, TAVARES, Juarez. Teoria dos crimes omissivos. São Paulo:
Marcial Pons, 2018. p. 378-392.
202
GRECO, Luís. Problemas de causalidade e imputação objetiva nos crimes omissivos impróprios. Tradução
de Ronan Rocha. São Paulo: Marcial Pons, 2018. (Direito Penal e Criminologia).
203
ESTELLITA, Heloisa. Responsabilidade penal de dirigentes de empresa por omissão: Estudo sobre a
responsabilidade omissiva imprópria de dirigentes de sociedades anônimas, limitadas e encarregados de
cumprimento por crimes praticados por membros da empresa. São Paulo: Marcial Pons, 2017. (Direito Penal e
Criminologia). p. 259.
204
GIMBERNAT ORDEIG, Enrique. Causalidad, omisión e imprudência. Anuario de derecho penal y ciencias
penales, Madrid, v. 47, n. 3, p. 5-60, set./dez. 1994. p. 21.
64
205
Para valermo-nos dos exemplos de ESTELLITA, Heloísa. Causalidade na omissão: Um panorama dos
problemas das omissões paralelas e sucessivas na criminalidade de empresa. In: LOBATO, José Danilo Tavares;
MARTINELLI, João Paulo Orsini; SOUZA, Humberto (Orgs.). Comentários ao Direito Penal Econômico
Brasileiro. Belo Horizonte: D'placido, 2018. p. 69-113. p. 71.
206
SCHÜNEMANN, Bernd. Cuestiones básicas de dogmática jurídico-penal y de política criminal acerca de la
criminalidad de empresa. Anuario de derecho penal y ciencias penales, Madrid, v. 41, n. 2, p. 529-558,
mayo/agosto 1988. p. 533
207
Perspectiva na qual cada uma das contribuições seria causa do resultado.
208
ESTELLITA, Heloísa. Causalidade na omissão: Um panorama dos problemas das omissões paralelas e
sucessivas na criminalidade de empresa. In: LOBATO, José Danilo Tavares; MARTINELLI, João Paulo Orsini;
SOUZA, Humberto (Orgs.). Comentários ao Direito Penal Econômico Brasileiro. Belo Horizonte: D'placido,
2018. p. 69-113. p. 82.
209
GRECO, Luís. Problemas de causalidade e imputação objetiva nos crimes omissivos impróprios. Tradução
de Ronan Rocha. São Paulo: Marcial Pons, 2018. (Direito Penal e Criminologia). p. 47-48.
65
Por meio de uma modificação da conditio sine qua non210, é proposta, para a resolução
dessa problemática, a figura causalidade alternativa: “se várias condições podem ser suprimidas
mentalmente de forma alternativa, mas não cumulativamente, sem que desapareça o resultado,
todas elas deverão ser consideradas causa”211.
Essa solução, entretanto, constrói-se sobre arbitrariedade, uma vez que transforma em
causa o que, no plano fático, não é – tal como os votos redundantes. Assim como a causalidade
cumulativa, evidencia-se inaplicável.
A problemática, conforme se observa, ainda não foi superada no plano da causalidade,
do que se extrai a consequência de necessária revisitação212, e deixa claro que as possibilidades
iniciais, seja por meio da teoria da equivalência, seja a adoção da teoria da diminuição do risco
– embora essa última se apresente como adequada, por ora, nas hipóteses de omitente único –
são insuficiente para solucionar casos dessa ordem.
Uma alternativa ao problema, proposta por Luís Greco, é a resolução pela figura da
coautoria, reconhecendo a impossibilidade, sem a dita revisitação, de que a culpabilidade seja
apta a resolvê-lo213. Assim, imputar-se-ia a conduta integral a cada sujeito que faça da parte do
“projeto” dessa conduta214.
Cumpre relembrar, oportunamente, que mesmo admitida a coautoria, perduram os
desafios dessa situação: conforme se descreveu no subtópico 2.2 do presente estudo, a coautoria
se destinaria apenas aos delitos dolosos, seguindo sem amparo os casos de omissão culposa,
admitida apenas na figura do colegiado, justamente a que se refere às omissões simultâneas.
No mesmo sentido de dificuldade se encontram as omissões sucessivas, definidas como
aquelas em que “a causalidade na omissão inicial é mediada por omissões sucessivas de outros
garantidores”215, ou seja, em que omitentes deveriam agir sucessivamente para a evitação do
resultado.
210
ESTELLITA, Heloisa. Responsabilidade penal de dirigentes de empresa por omissão: Estudo sobre a
responsabilidade omissiva imprópria de dirigentes de sociedades anônimas, limitadas e encarregados de
cumprimento por crimes praticados por membros da empresa. São Paulo: Marcial Pons, 2017. (Direito Penal e
Criminologia). p. 262.
211
GRECO, Luís. Problemas de causalidade e imputação objetiva nos crimes omissivos impróprios. Tradução
de Ronan Rocha. São Paulo: Marcial Pons, 2018. (Direito Penal e Criminologia). p. 49.
212
Ibidem.
213
Ibidem. p. 52.
214
ESTELLITA, Heloisa. Responsabilidade penal de dirigentes de empresa por omissão: Estudo sobre a
responsabilidade omissiva imprópria de dirigentes de sociedades anônimas, limitadas e encarregados de
cumprimento por crimes praticados por membros da empresa. São Paulo: Marcial Pons, 2017. (Direito Penal e
Criminologia). p. 263.
215
ESTELLITA, Heloisa. Responsabilidade penal de dirigentes de empresa por omissão: Estudo sobre a
responsabilidade omissiva imprópria de dirigentes de sociedades anônimas, limitadas e encarregados de
cumprimento por crimes praticados por membros da empresa. São Paulo: Marcial Pons, 2017. (Direito Penal e
Criminologia). p. 265.
66
Surgem, com maior incidência, nas estruturas verticais, seja na divisão de trabalho por
delegação, seja pelos limites impostos à possibilidade jurídica de agir, na organização
empresarial, quando determinado sujeito depende de outros para que cumpra seus deveres de
evitação do resultado. Apesar da prevalência nessas estruturas, não há óbice para verificá-lo
também em estruturas horizontais, pela incumbência diversa de atribuição, embora se
encontrem os sujeitos em um mesmo nível hierárquico216.
A não ocorrência do resultado estará condicionada, em suma, à conduta sucessiva de
um superior – na hipótese de estruturas verticais – ou de uma ação executiva ulterior – nas
estruturas horizontais.
Para uma melhor compreensão, tome-se o exemplo do compliance officer. Antes de
abordá-lo, entretanto, faz-se necessário situar a figura do compliance no centro das medidas de
gestão adequadas ao ambiente corporativo, tanto para a promoção de melhorias no
comportamento ético desses locais quanto para promover, por meio dos padrões de controle, a
evitação de resultados delitivos217.
A coordenação ou direção dessa atividade se realizará por meio de determinado sujeito,
designado para atuar no ambiente empresarial, exercendo a função de compliance officer ou
“oficial de ética”218. Sua missão seria garantir a adequação, o fortalecimento e o funcionamento
dos sistemas de controle interno219, mitigando riscos e buscando alcançar o cumprimento de
leis e regulamentos, em um local marcado por rupturas informacionais e descentralização.
O poder de supervisão e de autonomia desse sujeito, no entanto, não é homogêneo,
dependendo da realidade adotada para sua organização: tanto pode atuar como responsável
máximo, fazendo parte da alta direção empresarial, ou influindo nas decisões do órgão diretor,
quanto atuar apenas como um subordinado.
De todo modo, o fundamento de sua posição se relaciona com a responsabilidade social
corporativa, a já dita ética empresarial e, se tomado como verdadeiro o “espírito criminal de
216
ESTELLITA, Heloísa. Causalidade na omissão: Um panorama dos problemas das omissões paralelas e
sucessivas na criminalidade de empresa. In: LOBATO, José Danilo Tavares; MARTINELLI, João Paulo Orsini;
SOUZA, Humberto (Orgs.). Comentários ao Direito Penal Econômico Brasileiro. Belo Horizonte: D'placido,
2018. p. 69-113. p. 72.
217
SAAD-DINIZ, Eduardo. Compliance sob a perspectiva da criminologia econômica. In: CUEVA, Ricardo Villas
Bias; FRAZÃO, Ana (Orgs.). Compliance: perspectivas e desafios dos programas de conformidade. Belo
Horizonte: Fórum, 2018. p. 167-191.
218
MARTÍN, Adán Nieto. A institucionalização do sistema de compliance. In: MARTÍN, Adán Nieto
(Coord.). Manual de cumprimento normativo e responsabilidade penal de pessoas jurídicas. Florianópolis:
Tirant Lo Blanch, 2018. p. 231-256. p. 242-243.
219
WALKER JUNIOR, James; FRAGOSO, Alexandre. Da omisão penalmente relevante e a função de compliance
tax criminal nas empresas. In: WALKER JUNIOR, James; FRAGOSO, Alexandre (Orgs.). Direito Penal
Tributário: Uma visão garantista da unicidade do injusto penal tributário. 2. ed. Belo Horizonte: D'placido, 2019.
Cap. 9. p. 421-441.
67
220
MARTÍN, Adán Nieto. A institucionalização do sistema de compliance. In: MARTÍN, Adán Nieto
(Coord.). Manual de cumprimento normativo e responsabilidade penal de pessoas jurídicas. Florianópolis:
Tirant Lo Blanch, 2018. p. 231-256. p. 243.
221
Saliente-se que o termo “garantidor”, aqui, é empregado apenas para situar as omissões no tempo e espaço. Não
se trata, sobremaneira, de afirmar a posição de garantidor do complicance officer sem verificar os aspectos
trabalhados no subtópico 3.1, especialmente a previsibilidade do resultado. Tampouco de atribuir a essa figura,
também sem análise prévia, uma ideia de garantidor originário.
222
ESTELLITA, Heloisa. Responsabilidade penal de dirigentes de empresa por omissão: Estudo sobre a
responsabilidade omissiva imprópria de dirigentes de sociedades anônimas, limitadas e encarregados de
cumprimento por crimes praticados por membros da empresa. São Paulo: Marcial Pons, 2017. (Direito Penal e
Criminologia). p. 266.
223
ROXIN, Claus. Problemas da causalidade intermediada psiquicamente. In: ROXIN, Claus. Novos estudos de
Direito Penal. Organização de Alaor Leite. Tradução Luis Greco et al. 1. ed. São Paulo: Marcial Pons, 2014. p.
152-181.
224
A respeito da teoria de Claus Roxin e do que se revela neste ponto, cumpre, para fins de registro, apresentar
crítica de Paulo de Sousa Mendes, em MENDES, Paulo de Sousa. Crítica à idéia de diminuiçäo do risco de
Roxin. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 4, n. 14, p. 102-118, abr./jun. 1996, para quem a
adoção da teoria de diminuição do risco “usada com cautela, pode apenas desempenhar a função de mera heurística,
qual sinal intuitivo para a busca das verdadeiras razões materiais que sirvam de arrimo à interrupção do nexo de
imputação objectiva. Tais razões resumem-se, fundamentalmente, num princípio de proporcionalidade na aferição
dos títulos de responsabilidade”.
68
a ação devida diminuiria o risco, no que parece adequada a ponderação de Luís Greco, para
quem “um curso causal real, passível de ser distinguido de algo meramente hipotético, parece
não existir no presente contexto”225.
Sustenta esse último autor, ainda com apoio na diminuição do risco, embora com
fundamento distinto do que apresentara Roxin, que o comportamento adequado poderia ser
presumível por uma “regra de experiência”. Compreende, a partir disso, que em uma sociedade
onde impera o direito, enquanto fator de orientação observado por uma maioria, apesar de não
se poder postular a ficção de que o segundo garantidor (no esquema que aqui apresentamos) se
comportará sempre em conformidade com a norma, esse padrão deveria ser aceito como regra
de experiência226.
Constata-se que, também aqui, não há harmonia nas soluções apresentadas. A
divergência doutrinária indica, além dos riscos de adotar-se como absoluta qualquer das teorias,
que inexiste, ainda, uma resposta global à questão do nexo de causalidade na omissão
imprópria.
São muitos os pontos problemáticos da causalidade na omissão, os quais, quando
somados ao âmbito da criminalidade de empresa, como se observou, ampliam a complexidade
da temática. É preciso ter em vista que, apesar disso, a dificuldade não justifica o afastamento
da causalidade na omissão, exigida no Brasil mediante expressa no art. 13, CP.
Impõe-se, por conseguinte, que a temática seja refletida com serenidade pela
jurisprudência, para que não ocorra um abandono tanto dos limites normativos quanto de um
fundamento material, dogmaticamente amparado, que preencha os conceitos.
225
GRECO, Luís. Problemas de causalidade e imputação objetiva nos crimes omissivos impróprios. Tradução
de Ronan Rocha. São Paulo: Marcial Pons, 2018. (Direito Penal e Criminologia). p. 75.
226
Ibidem. p. 78-79.
69
imputação de dirigentes por mera posição. Tampouco o Direito Penal Econômico funciona
como ramo apartado da ciência jurídica, que comporte tratamento disforme com a realidade
global desse sistema. Seus institutos não podem, em busca de um alargamento da punibilidade,
apresentarem-se como quebras sistêmicas.
Se optar a jurisprudência pela omissão imprópria, enquanto estratégia de
responsabilidade penal, deverá ater-se a seus pressupostos. A identificação de um dever de
garantia, atribuível a esse sujeito, é imperiosa, mas ressalte-se que mesmo presente o dever de
garantia, não se demonstrará, apenas com base nisso, a existência de uma responsabilidade
omissiva imprópria.
Quando discutida a posição de garantidor de um dirigente, principalmente em face a
delitos praticados pelos membros da estrutura empresarial, não se pode olvidar que a
responsabilidade penal possível, em nosso ordenamento, é individual, pela prática de uma
conduta determinada. Desse modo, os aspectos de tipicidade devem ser preenchidos.
Porquanto, um dever de garantidor, que pressupõe um dever especial de agir para evitar
o resultado, só terá conformidade com o art. 13, §2º, CP, quando determinada por lei uma
obrigação de cuidado, proteção ou vigilância, quando de outra forma assumir o sujeito a
responsabilidade de impedir o resultado ou em virtude da ingerência. Do contrário, o que se
tem é uma ofensa ao princípio da legalidade, pela falta de previsão legal. Ofensa que também
se dará quando imputado um dever por simples posição ocupada em um ambiente empresarial,
por ferir a exigência clara da norma penal.
Enquanto conjunto de pessoas organizadas para a persecução de fins econômicos,
adotando o discurso da livre concorrência para pautar as relações de produção, da atividade
empresarial podem decorrer riscos, seja de lesionar bens jurídicos individuais e externos, sejam
bens jurídicos coletivos, supraindividuais. Por esse motivo, sem retomar aqui as objeções
doutrinárias a essa conclusão, quem exerce o controle, mesmo que parcial, sobre a fonte de
perigo, estaria sujeito a eventual atribuição como garantidor de vigilância, com fundamento na
alínea “b” do art. 13, §2º, CP.
Além do controle sobre as fontes de perigo, outros entendimentos que se prestam a
fundamentar a posição de garantidor de um dirigente empresarial, essencialmente, são o poder
diretivo sobre os subordinados e a ingerência. No primeiro caso, o elemento principal é a ideia
de domínio sobre um resultado, que decorreria de seu poder de “comando”; no segundo, a
existência prévia de uma organização potencialmente perigosa, que gerando um risco não
permitido, implicaria o dever de agir desse sujeito para evitar resultados lesivos.
70
227
Para maiores esclarecimentos na temática, GRECO, Luís. Domínio da organização e o chamado princípio da
autorresponsabilidade. In: ZILIO, Jacson Luiz; BOZZA, Fábio da Silva (Orgs.). Estudos críticos sobre o sistema
penal. Curitiba: LedZe, 2012.
71
228
STRECK, Lenio. Porque processo penal e garantias jamais rimam com "heterodoxia"! ConJur, São Paulo, 13
dez. 2018. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-dez-13/senso-incomum-porque-processo-penal-
garantias-jamais-rimam-heterodoxia. Acesso em: 08 out. 2019.
229
CASARA, Rubens R. R. Mitologia Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 197.
230
FREUD, Sigmund. Totem e Tabu: Algumas correspondências entre a vida psíquica dos selvagens e a dos
neuróticos. Tradução do alemão de Renato Zwick. Porto Alegre: L&pm Editores, 2013. p. 75.
231
Ibidem. p. 76.
232
O próprio Sigmund Freud, embora não se refira especificamente aos dirigentes de empresa, utiliza como
exemplo dessa categoria figuras situadas em espectros de poder, como os reis e os chefes. Ibidem, p. 76.
73
irregular, na persecução de tais sujeitos. Em uma análise sob o viés filosófico, oferecido por
Márcia Tiburi, o problema se insere em uma situação limite no que concerne à moral e à ética.
Em verdade, afirma, é “como se a ética e a moral realmente fossem excrecências inúteis” diante
do momento que se presencia233.
Há de se admitir que a substituição de um desejo democrático pelo desejo de audiência,
guiado pelo insaciável furor persecutório, não é evento novo. O fascínio pela repressão ao crime
acompanha a sociedade por séculos – que o demonstrem as execuções públicas, representadas
por espetáculos dantescos234, como o ainda estudado “cumprimento de sentença” de Tiradentes,
condenado à forca em 1792 –, estimulado pelos meios de comunicação.
A novidade, entretanto, reside no maior alcance dessas agências de comunicação, em
sua influência nos valores sociais, na capacidade de alterar o significado da realidade e nos
sentimentos que despertam nesses grupos235, atrelado aos efeitos simbólicos da mística “luta
anticorrupção”. Ao contrário, sua consequência no discurso jurídico, com maior ênfase desde a
AP 470, nada tem de simbólica: vem-se traduzindo, pragmaticamente, na utilização de
caminhos heterodoxos para alcançar o “legítimo fim”, e no que toca a este estudo, flexibilizando
os meios de imputá-lo.
Abandonando a valiosa lição de Schopenhauer, ao afirmar que quem quiser que seu
julgamento seja crido, deverá proferi-lo sem paixão, dado que “toda impetuosidade tem origem
na vontade: razão pela qual se haverá de atribuir o julgamento em questão a esta, e não ao
conhecimento, que é frio por natureza”236, o intento de responsabilizar os dirigentes
empresariais, como se ilustrará aqui por meio de denúncias oferecidas pelo órgão de acusação,
parece dizer mais sobre o tabu freudiano do que sobre a dogmática-jurídico-penal.
Crer-se-á, ainda ao valer-se da precisa lição, “que o juízo se originou da vontade
excitada” antes de que “a excitação da vontade tenha surgido do juízo” 237. Abandonados os
critérios de imputação, esvaziados os conceitos e afastados os limites impostos pelas garantias,
233
TIBURI, Marcia. Ética, hoje: o que a Lava Jato nos coloca como questão. 2019. Disponível em:
https://revistacult.uol.com.br/home/etica-lava-jato-marcia-tiburi/. Acesso em: 14 ago. 2019.
234
SHECAIRA, Sérgio Salomão. A criminalidade e os meios de comunicação social de massas. Revista
Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 3, n. 10, p. 135-143, abr./jun. 1995.
235
“De uma maneira ou de outra, as mensagens que são transmitidas passam a integrar a maneira de ser da
população que está submetida a sua influência. O mundo atual, mundo das comunicações, vive da ficção, da
fantasia, em que a definição de realidade assume um papel maior que a própria realidade. [...] Sentimentos intensos
e ocultos como a agressividade, os preconceitos sociais, raciais e morais e, principalmente, o medo, ganham vida
própria no grande espetáculo”. SHECAIRA, Sérgio Salomão. A criminalidade e os meios de comunicação social
de massas. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 3, n. 10, abr./jun. 1995. p. 136.
236
SCHOPENHAUER, Arthur. Aforismos para a sabedoria de vida. Tradução do alemão de Gabriel Valladão
Silva. Porto Alegre: L&PM, 2019. p. 219.
237
Ibidem.
74
é possível atingir o resultado a que se prestou a acusação: oferecer respostas penais aos anseios
públicos. Inverte-se a “ordem natural das coisas”, de maneira que o caminho argumentativo é
que decorrerá de um resultado desejado e preestabelecido.
A linguagem de que se valem esses instrumentos, assim como se destacou, ao abordar
o suposto “espírito criminal de grupo”, e a utilização de termos que facilitam a adesão a
investidas criminógenas, adquire aqui uma carga de violência simbólica, de perpetuação do
poder punitivo, a depender do momento em que sejam empregadas certas terminologias.
Expressões como “supremacia do interesse público”, “ponderação de valores” e “justa medida”,
apenas para elencar alguns exemplos, visam a transformar a ponderação em um “enunciado
performativo”238, descriterioso.
Dessa maneira, o preenchimento de determinados conceitos se dará por loteria, viciada,
muitas vezes, a depender de quem figura como acusado. Abre-se espaço para o cometimento
de arbitrariedades, sopesando princípios e categorias para um maior êxito probatório ou para o
oferecimento de soluções ao caso concreto, que se apresenta imensamente dificultoso em dadas
circunstâncias, como a que se revelou ao tratar, por exemplo, das omissões simultâneas.
Os problemas práticos são, sobretudo, de legitimidade. A simplificação ou o uso de
retalhos, construídos ao selecionar aspectos favoráveis ao intento punitivo em diversas teorias,
ainda quando incompatíveis umas com as outras, distancia-se da base do próprio sistema
criminal e da racionalidade da ordem jurídica239.
No tocante ao último aspecto, ao menos três hipóteses de violação se manifestam: a
ausência de clareza nos conceitos, impedindo que sejam verificáveis por qualquer pessoa; a
dificuldade de compreensão dos elementos constitutivos na disciplina dos fatos; e a
criminalização fundada não apenas em desdobramentos causais sensíveis, o que representa, à
luz do Código Penal brasileiro, e conforme já demonstrado, um problema de legalidade.
A sobrecriminalização, firmada por um processo político que expande o sistema
criminal e o endurecimento de sanções, por meio do medo e do sentimento de identificação
238
STRECK, Lenio Luiz. O que é isto - Decido conforme minha consciência? 4. ed. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2013. (Coleção O Que É Isto?). p. 51-52.
239
A respeito disso, esclarece Juarez Tavares que, “ainda que o significado de racionalidade seja polissêmico, será
possível impor condições mínimas que possam impedir a constituição de uma ordem jurídica irracional”. Assim,
assinala, seguindo a metodologia proposta por Hubner, uma ordem jurídica racional exigirá a presença, ao menos,
dos seguintes requisitos: “a) edificação de conceitos que, por sua clareza, possam ser identificados por qualquer
pessoa; “b) a disciplina de fatos de modo a possibilitar a compreensão de seus elementos constitutivos; c) a
sistematização de normas que obedeçam a uma sequência lógica; d) a fundamentação da criminalização apenas
sobre condutas e seus desdobramentos causais sensíveis; e) a subordinação das normas às características empíricas
da conduta e às condições de seu autor, segundo suas possibilidades e participação no processo de elaboração
legislativa.”. TAVARES, Juarez. Fundamentos de teoria do delito. Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2018. p. 63.
75
240
LYRA, José Francisco Dias da Costa. A sobrecriminalização ou a tendência de governar pelo crime e a
produção de castigos injustos: os excessos do Pharmakon no direito penal da modernidade. Revista Brasileira de
Ciências Criminais, São Paulo, v. 26, n. 150, p. 450-480, dez. 2018.
241
Valendo-se este trabalho da terminologia empregada por LYRA, José Francisco Dias da Costa. A
sobrecriminalização ou a tendência de governar pelo crime e a produção de castigos injustos: os excessos do
Pharmakon no direito penal da modernidade. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 26, n. 150,
dez. 2018. p. 470.
76
242
Item 25: “O Código de 1940 rompeu a tradição originária do Código Criminal do Império, e adotou neste
particular a teoria unitária ou monística do Código italiano, como corolário da teoria da equivalência das
causas (Exposição de Motivos do Ministro Francisco Campos, item 22). Em completo retorno à experiência
passada, curva-se, contundo, o Projeto aos critérios dessa teoria, ao optar, na parte final do artigo 29, e em seus
dois parágrafos, por regras precisas que distinguem a autoria de participação. Distinção, aliás, reclamada com
eloqüência pela doutrina, em face de decisões reconhecidamente injustas.”. Disponível em:
https://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/decreto-lei-2848-7-dezembro-1940-412868-
exposicaodemotivos-148972-pe.html. Acesso em: 15 out. 2019.
243
Isso se deve ao fato, como esclarece Pablo Alflen, de ter o legislador brasileiro admitido uma diferenciação
entre as modalidades de autoria, mas não estabelecer a acessoriedade do autor imediato. ALFLEN, Pablo
Rodrigo. Teoria do Domínio do Fato. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 169.
244
Denúncia apresentada em 1.1, “B”
245
Denúncia apresentada em 1.1, “C”
77
246
Observe-se, por exemplo, em ROXIN, Claus. Autoria y domínio del hecho en derecho penal. Traduccion de
la séptima edición alemana por Joaquín Cuello Contreras y José Luis Serrano Gonzalez de Murillo. Madrid:
Marcial Pons, 2000. p. 489-490.
247
Sobre esta afirmativa, ver GRECO, Luís; ASSIS, Augusto. O que significa a teoria do domínio do fato para a
criminalidade de empresa. In: GRECO, Luís et al (Orgs.). Autoria como domínio do fato: Estudos introdutórios
sobre o concurso de pessoas no direito penal brasileiro. São Paulo: Marcial Pons, 2014. p. 81-122. (Direito Penal
e Criminologia). p. 87 e ALFLEN, Pablo Rodrigo. Teoria do Domínio do Fato. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 196-
170.
248
Nesse ponto, convém informar a existência do problemático PSL nº 236, de 2012, tratando da Reforma do
Código Penal Brasileiro, ainda em tramitação. O anteprojeto apresentado pretende inserir o concurso de pessoas
no Art. 38, referindo-se, expressamente, a autor como aquele que “domina o fato”, inclusive “utilizando aparatos
organizados de poder”, categoria desenvolvida por Claus Roxin. Para consulta:
https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/106404. Acesso em: 15 nov. 2019.
249
ALFLEN, Pablo Rodrigo. Teoria do Domínio do Fato. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 170.
250
“Hay que encontrar un procedimiento com ayuda del cual quepa compelemntar en su contenido el concepto de
domínio del hecho de una manera que parte dé cuenta de los cambiantes fenómenos vitales, y por otra parte también
pueda alcanzar uma gran medida de determinación. Además, debe permitir someter a una regulación
generalizadora de las formas básicas que aparecen uma y otra vez en la multiplicidad de los grupos de casos, y al
mismo tiempo ofrecer la posibilidad de valoración justa de los casos concretos que escapan a la normación
abstracta. Alcanzar estos fines tan distintos sólo es posible concibiendo el domínio del hecho como concepto –
permítaseme la expresión – “abierto”.” ROXIN, Claus. Autoria y domínio del hecho en derecho
penal. Traduccion de la séptima edición alemana por Joaquín Cuello Contreras y José Luis Serrano Gonzalez de
Murillo. Madrid: Marcial Pons, 2000. p. 146.
78
Essa ideia, ainda, não é aplicável a todas as espécies delituosas, excluindo-se, por
exemplo, os delitos de dever, os delitos de mão própria e os delitos culposos251.
Disso decorre que não será possível confundir o domínio do fato com o poder de evitá-
lo, para atribuí-lo, assim, a todo e qualquer dirigente, em uma intuitiva posição de garantidor.
Isso porque essa teoria se refere aos delitos de domínio, comissivos dolosos. A posição de
garantidor, por sua vez, é prevista no art. 13, §2º, CP, como elemento típico dos crimes
omissivos impróprios, aos quais a ideia de domínio do fato é absolutamente inaplicável, mesmo
no sistema diferenciador.
Ademais disso, o domínio funcional do fato (apenas uma das expressões do domínio
do fato) deriva da existência de um plano comum – e da impossibilidade de realizá-lo se não
atuarem conjuntamente –, de ter cada sujeito “o fato em suas mãos”252, dividindo tarefas e
contribuições relevantes. Surge, portanto, já como resultado da argumentação, não podendo,
nem mesmo logicamente, ser também seu fundamento253.
Com base nesse conceito, se imputou a autoria aos dirigentes na primeira denúncia,
com destaques inseridos neste trabalho, inicialmente quanto ao delito de corrupção ativa:
251
Luís Greco e Alaor Leite, em GRECO, Luís; LEITE, Alaor. O que é e o que não é a teoria do domínio do fato:
Sobre a distinção entre autor e partícipe no direito penal. In: GRECO, Luís et al (Orgs.). Autoria como domínio
do fato: Estudos introdutórios sobre o concurso de pessoas no direito penal brasileiro. São Paulo: Marcial Pons,
2014. Cap. 1. p. 44.
252
ROXIN, Claus. Autoria y domínio del hecho en derecho penal. Traduccion de la séptima edición alemana
por Joaquín Cuello Contreras y José Luis Serrano Gonzalez de Murillo. Madrid: Marcial Pons, 2000. p. 309.
253
Assinalam Luís Greco e Alaor Leite, em GRECO, Luís; LEITE, Alaor. O que é e o que não é a teoria do
domínio do fato: Sobre a distinção entre autor e partícipe no direito penal. In: GRECO, Luís et al (Orgs.). Autoria
como domínio do fato: Estudos introdutórios sobre o concurso de pessoas no direito penal brasileiro. São Paulo:
Marcial Pons, 2014. (Direito Penal e Criminologia). Cap. 1. p. 39-40, que esse corresponde a um dos erros mais
comuns ao aplicar a teoria do domínio do fato na jurisprudência.
79
PETROBRAS, comparecendo nas reuniões para definir os ajustes e fazendo contatos diretos
com ALBERTO YOUSSEF para acordar o pagamento de propina por intermédio de doações
oficiais.” (fl. 33).
se de erro conceitual afirmar a conformidade dessas condutas, unicamente pelo descrito, com o
domínio funcional do fato, expressão da teoria do domínio do fato.
Com relação ao diretor Rodolfo Andriani, destinatário de mensagem cujo tema seria a
lista de convidados para uma suposta negociata de valores ilícitos, indicando essa situação que
“tinha o domínio funcional sobre os atos de corrupção ativa que eram desencadeados na IESA
ÓLEO E GÁS como um verdadeiro modelo de negócio”254, note-se que, ainda que porventura
existisse conhecimento do diretor a respeito de práticas ilícitas desencadeadas na empresa,
poderia cogitar-se o dever de evitá-las por meio de uma posição de garantia, mas não seria
possível, igualmente ao que se narrou acima, a imputação de autoria por intermédio do domínio
funcional. Decorre essa afirmativa da ausência de realização de mão própria dos elementos do
tipo, e por se inserir a posição de garantia no âmbito das condutas excluídas da teoria do
domínio do fato.
Especificamente na verificação do “plano comum”, em contexto empresarial, elemento
que torna dificultosa sua evidência é a distância entre os dirigentes empresariais e os
funcionários, bem como as assimetrias informacionais, impondo dificuldades concretas ao
preenchimento de requisitos para a coautoria, por meio dessa expressão de domínio.
Tal qual o plano comum, a análise do que representaria uma “contribuição relevante”
em contexto empresarial, enfrenta diversos percalços. Esse requisito objetivo pode se
manifestar, assim como se expôs no subtópico 2.2, tanto na fase preparatória quanto na fase
executória. Apesar de assim afirmá-lo255, Claus Roxin, no desenvolvimento de sua teoria,
mostra-se adequada a ressalva de Luís Greco e Augusto Assis, para quem “parece que, por
maior que seja, não há contribuição prestada na fase preparatória que possa compensar a falta
de contribuição relevante na fase executória”256.
A gravidade de imputar-se reciprocamente uma conduta delituosa, permitindo inclusive
que os dirigentes respondam não apenas por seus atos, mas também pelos praticados, à primeira
vista, por terceiros, exige uma forte legitimação.
Diante das dificuldades apresentadas, assim como, afastando-se do plano hipotético,
verdadeiramente não ser adequado transpor a teoria do domínio do fato para o sistema unitário
de autoria e participação, conforme se antecipou, sem repensá-la – o que não se daria
254
Fl. 33 da denúncia em questão.
255
ROXIN, Claus. Autoria y domínio del hecho en derecho penal. Traduccion de la séptima edición alemana
por Joaquín Cuello Contreras y José Luis Serrano Gonzalez de Murillo. Madrid: Marcial Pons, 2000. p. 323– 326
e 334-336.
256
GRECO, Luís; ASSIS, Augusto. O que significa a teoria do domínio do fato para a criminalidade de empresa.
In: GRECO, Luís et al (Orgs.). Autoria como domínio do fato: Estudos introdutórios sobre o concurso de pessoas
no direito penal brasileiro. São Paulo: Marcial Pons, 2014. p. 81-122. (Direito Penal e Criminologia). p. 96.
82
257
Interessante, a respeito disso, a conclusão de Luís Greco e Alaor Leite, ao analisar as hipóteses de
responsabilidade de dirigentes se utilizada a teoria do domínio do fato, em detrimento dos ordinários recursos do
Art. 29, CP. Afirmam os autores, ao final do estudo, que “se alguém, reportando-se ao domínio do fato, chegar a
uma conclusão que pune mais do que seria possível punir só com recurso ao Art. 29, do CP, há grande
probabilidade ou mesmo uma presunção de que esse alguém esteja aplicando a ideia de domínio do fato de forma
errônea, usando como artimanha retórica um termo cujo real significado desconhece”. 257 Luís Greco e Alaor Leite,
em GRECO, Luís; LEITE, Alaor. O que é e o que não é a teoria do domínio do fato: Sobre a distinção entre autor
e partícipe no direito penal. In: GRECO, Luís et al. Autoria como domínio do fato: Estudos introdutórios sobre o
concurso de pessoas no direito penal brasileiro. São Paulo: Marcial Pons, 2014. Cap. 1, pg. 45.
258
Ibidem. p. 27-28.
83
individual livre e responsável”, mas como figura “anônima e substituível”259. Excepciona, desse
modo, o princípio da autorresponsabilidade260.
Para tanto, sua vontade é fungível a uma estrutura similar a uma maquinaria, limitada,
conforme determina o próprio doutrinador, às estruturas situadas à margem do ordenamento
jurídico. Toca, esse ponto, uma característica intrínseca: a estrutura não se torna um aparato
organizado de poder por algumas condutas perpetradas em seu interior, mas surge como um261.
Em nada se assemelham essas definições à Petrobras, sociedade de economia mista para
a persecução de fins lícitos, dotada de estatuto e fiscalizada por órgãos federais. Mesmo que se
considere, em seu interior, a existência eventual de ações criminosas, a organização empresarial
se diferencia de todos os aspectos sob os quais constituiu Claus Roxin a figura dos aparatos
organizados.
Não há, ainda, qualquer fungibilidade, empiricamente comprovada, dos membros que
compõem seu quadro, mas apenas referência genérica a esse conceito, o que não é apto a
autorizar que delitos perpetrados por membros, prima facie, autorresponsáveis, fossem
atribuíveis também ao acusado, por meio da figura da autoria mediata por domínio de
organização.
Põe-se em evidência, mais uma vez, a inadequada utilização da teoria do domínio do
fato enquanto via de responsabilidade penal de dirigentes, seja por meio do domínio funcional,
seja do domínio da vontade.
259
ROXIN, Claus. Autoria y domínio del hecho en derecho penal. Traduccion de la séptima edición alemana por
Joaquín Cuello Contreras y José Luis Serrano Gonzalez de Murillo. Madrid: Marcial Pons, 2000. p. 273.
260
Ver GRECO, Luís. Domínio da Organização e o chamado Princípio da Autorresponsabilidade. In: GRECO,
Luís et al (Orgs.). Autoria como domínio do fato: Estudos introdutórios sobre o concurso de pessoas no direito
penal brasileiro. São Paulo: Marcial Pons, 2014. Cap. 6. p. 203-214. (Direito Penal e Criminologia).
261
A respeito disso, Figueiredo Dias: “A organização revela-se como uma “unidade funcional” com vida própria,
independente dos concretos indivíduos que a compõem. Devido à rigorosa disciplina interna, consubstancia um
instrumento ao serviço das decisões tomadas pelas instâncias de cúpula”. DIAS, Jorge de Figueiredo. Questões
fundamentais do direito penal revisitadas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. p. 366.
85
262
Denúncia apresentada em 1.1, “A”.
86
Destaca-se, nesse trecho, que a atribuição do dever de garantia tem como ponto de
partida uma afirmativa genérica, semelhante a uma responsabilidade solidária, que se
admissível em âmbito de responsabilidade civil, rechaça-se por completo em seara penal.
Inexiste, no supracitado trecho, qualquer individualização de condutas e contribuições, aferição
concreta do dever de agir, da cognoscibilidade, da possibilidade jurídica e da existência de nexo
causal, segundo o próprio art. 13, caput, CP.
Tratando do “dever e poder de agir” dos Membros do Conselho de Administração,
integrado por representantes da VALE e BHP, outro trecho mostra-se fundamental para uma
adequada análise dos pressupostos de omissão imprópria, quando em estruturas marcadas pela
divisão de tarefas e funções:
“E, mesmo nas hipóteses em que determinou a adoção de medidas específicas relacionadas à
gestão dos rejeitos produzidos pela SAMARCO, o Conselho omitiu-se em exercer seu poder-
dever de vigilância e suas competências organizativas, uma vez que se contentou em receber
passivamente informações não condizentes com a crítica realidade operacional da barragem de
Fundão transmitidas pelos diretores, KLEBER TERRA e RICARDO VESCOVI, ou pelos
representantes dos Comitês e Subcomitês de Assessoramento. Enfim, os membros do Conselho
de Administração, figurando na condição de administradores da SAMARCO, deixaram de
empregar, no exercício de suas funções, o cuidado e diligência que todo homem ativo e probo
deveria empregar na administração dos seus próprios negócios (art. 145 c/c art. 153, ambos da
Lei 6.404/76)138. Dessa forma, podendo e devendo agir para evitar o rompimento da barragem
de Fundão, uma vez que detinham obrigações de cuidado, proteção e vigilância, omitiram-se
de exercer seus deveres de organização, coordenação e vigilância geral das atividades da
empresa, deixando de impedir e de evitar os resultados penalmente desvalorados, razão pela
qual incidem nas figuras típicas abaixo indicadas na forma do art. 13, § 2º do Código Penal c/c
art. 2º da Lei n.º 9.605/98.” (fl. 203 e 204).
Como se buscou demonstrar neste trabalho, uma das características mais comuns do
ambiente empresarial é a descentralização e a execução, em âmbito vertical ou horizontal, de
papéis organizacionais distintos. As esferas de competência desses sujeitos, a partir disso, serão
87
também restritas, o que, somado às assimetrias informacionais, afastam a noção intuitiva de que
os administradores possuiriam, em todo caso, informações pormenorizadas sobre o
funcionamento de cada setor empresarial.
Quando a tomada de decisão desses administradores depende de orientação ou
esclarecimento de outros membros – a exemplo do que se descreveu no trecho acima
colacionado –, importará saber em que medida essas informações repassadas influíram no
omitir desses sujeitos, pois a capacidade fática de agir é composta, também, pela
cognoscibilidade263, diretamente relacionada ao conhecimento potencial do caráter injusto da
conduta.
Destarte, não é possível afirmar que, sem essa evidência, esteja caracterizada a
capacidade concreta de agir dos membros do Conselho de Administração.
Em um segundo momento, o trecho apresenta inconsistência conceitual, ao atribuir ao
Conselho de Administração obrigações de “cuidado”, “proteção” e “vigilância”, como se estes
guardassem, entre si, a condição de sinônimos. As categorias, que partem de uma divisão das
espécies de garantidores proposta por Armin Kaufmann264, possuem conceitos distintos, com
ideia central variável, inclusive, conforme o marco teórico que se utilize – como ilustração,
observe-se, assim como se antecipou no capítulo 3, que enquanto os garantidores de proteção,
para Schunemann, têm como ideia central a custódia, para Jakobs, seriam determinados pela
competência institucional.
Em linhas gerais, contudo, os garantidores de proteção possuem dever de vigiar e conter
perigos externos, que possam afetar o bem jurídico vulnerável, estando esse em relação de
dependência com o garantidor. Os garantidores de vigilância, por outro lado, possuem dever de
preservação de bens jurídicos e contenção de riscos, oriundos de uma fonte de perigo,
livremente organizada, mas devendo respeitar as esferas de segurança alheias, hipótese que
abarca também a ingerência265.
No mesmo erro incorre a imputação aos representantes da VALE e da BHP nos Comitês
de Operação e de Desempenho Operacional. Inicialmente, informa o parquet que os ditos
263
BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de omissão imprópria. São Paulo: Marcial Pons, 2018. (Direito Penal e
Criminologia). p. 140-141.
264
KAUFMANN, Armin. Dogmática de los delitos de omisión. Madrid: Marcial Pons, 2006. Traducción de la
segunda edición alemana (Gotinga, 1980) por Joaquín Cuello Contreras y José Luis Serrano González de Murillo.
p. 309-313.
265
ESTELLITA, Heloisa. Responsabilidade penal de dirigentes de empresa por omissão: Estudo sobre a
responsabilidade omissiva imprópria de dirigentes de sociedades anônimas, limitadas e encarregados de
cumprimento por crimes praticados por membros da empresa. São Paulo: Marcial Pons, 2017. (Direito Penal e
Criminologia). p. 96-103.
88
Comitês possuíam competências distintas, reunindo-se 3 (três) vezes ao ano para assessorar o
Conselho de Administração (fl. 204). Desse modo, afirma:
“Podendo e devendo agir para evitar o rompimento da barragem de Fundão, uma vez que
detinham obrigações de cuidado, proteção e vigilância, os representantes da VALE e da BHP
no Comitê de Operações e no Subcomitê de Desempenho Operacional se omitiram de exercer
seus deveres de assessoramento em questões técnicas e relacionadas à operação da barragem
de Fundão, concorrendo para que aqueles que detinham efetivo poder de decisão deixassem de
impedir e de evitar os resultados penalmente desvalorados, razão pela qual incidem nas figuras
típicas abaixo indicadas na forma do art. 13, § 2º do Código Penal c/c art. 2º da Lei n.º
9.605/98.” (fl. 205).
Ignora-se, novamente, a exigência do art. 13, §2º, CP, quanto à capacidade física de agir.
Em ambos os casos, ausente a possibilidade concreta de ação, deve-se afastar a incidência da
norma.
Outro ponto que merece questionamento, também nos dois casos, é de o parquet não
ter se remetido à causalidade das omissões. As hipóteses referidas se enquadram na figura das
omissões simultâneas, o que torna ainda mais complexa a atribuição de responsabilidade penal,
por não ser possível a imputação de resultado a todos os membros, unicamente por integrarem
o órgão colegiado.
Na mesma denúncia, imputa o Ministério Público Federal, ainda por omissão imprópria,
responsabilidade penal aos Diretores Executivos, a quem competiria a “direção dos negócios”,
o desenvolvimento de políticas gerais, códigos de conduta e zelar pela conformidade legal e
societária da SAMARCO (fl. 206).
Com fundamento apenas em suas atribuições na forma do estatuto, conclui o parquet,
também nesse caso, pela violação aos deveres de “cuidado, proteção e vigilância” (fl. 206).
Já quanto aos gerentes e engenheiros da SAMARCO, do seguinte modo atribuiu-se o
dever de garantia:
“Pelo fato de os gerentes/empregados serem engenheiros com profissão regulamentada pela Lei
n.º 5.194/66 e pela resolução do Conselho Federal de Engenharia e Arquitetura (CONFEA) n.º
1.010/2005, a eles impunha-se, ao longo do tempo em que estiveram à frente da barragem de
Fundão, os deveres de cuidado, proteção e vigilância relacionados à observância de seu Código
de Ética (Resolução CONFEA 1.002/2002)” (fl. 208).
89
266
BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de omissão imprópria. São Paulo: Marcial Pons, 2018. (Direito Penal e
Criminologia). p. 266.
267
ESTELLITA, Heloisa. Responsabilidade penal de dirigentes de empresa por omissão: Estudo sobre a
responsabilidade omissiva imprópria de dirigentes de sociedades anônimas, limitadas e encarregados de
cumprimento por crimes praticados por membros da empresa. São Paulo: Marcial Pons, 2017. (Direito Penal e
Criminologia). p. 147-148.
268
Ibidem. p. 149.
91
269
SOUZA, Artur de Brito Gueiros. A delegação como mecanismo de prevenção e de geração de deveres penais.
In: MARTÍN NIETO, Adán; SAAD-DINIZ, Eduardo; GOMES, Rafael Mendes (Coords.). Manual de
cumprimento normativo e responsabilidade penal das pessoas jurídicas. 2. ed. São Paulo: Tirant lo Blanch,
2019. p. 220.
270
O caso clássico, que levou ao desenvolvimento pela jurisprudência alemã do princípio da confiança, referia-se
ao dever de cuidado nas relações de trânsito. No entanto, embora não tenha sido previsto para estruturas
empresariais, esclarece Flávia Siqueira que o princípio, ao longo do tempo, deixou de se vincular apenas às
particularidades desse contexto, aplicando-se a outras situações em que haja intervenção de terceiros em um
resultado lesivo. PEREIRA, Flávia Siqueira Costa; NASCIMENTO, Adilson de Oliveira. A teoria da imputação
objetiva e o princípio da confiança no direito penal: considerações à luz do funcionalismo de Claus Roxin. De
Jure: Revista Jurídica do Ministério Público do Estado de Minas Gerais, Belo Horizonte, v. 13, n. 23, p. 47-100,
jul./dez. 2014.
271
Denúncia apresentada em 1.1, “A”.
92
Não parecem restar dúvidas de que a opção pelo domínio do fato, enquanto forma de
imputação da autoria, ao menos nos moldes desenvolvidos por Claus Roxin, não se
compatibiliza com o sistema de autoria proclamado na Exposição de Motivos.
Mesmo que se identifique a opção brasileira como uma teoria unitária “temperada”,
admitindo a separação de autor e partícipe segundo o critério da culpabilidade, o apoio causal-
naturalístico, nos crimes comissivos, impede a transposição das categorias do domínio do fato,
pensado em consonância com um sistema diferenciador. Tampouco admite a teoria seu
alargamento aos crimes omissivos.
Ao observar o uso do domínio do fato em casos práticos, que intentavam torná-lo
fundamento de autoria – embora não tenha sido concebido, tampouco, para essa substituição,
mas apenas como um critério reitor – comprova-se, empiricamente, uma violação tanto
principiológica quanto normativa.
Os casos expostos, no entanto, poderiam ser solucionados se verificadas posições de
garantia, recorrendo à omissão imprópria, amparada pelo Código Penal brasileiro. Essa opção,
em verdade, ofereceria respostas mais adequadas a um leque de casos envolvendo a
criminalidade de empresa, hoje tratados por meio de uma insustentável responsabilidade top
down.
Para que seja possível o uso da omissão imprópria, entretanto, deve-se ter em vista seus
pressupostos e delimitações conceituais. É por não fazê-lo que, ainda quando utilizada como
caminho de imputação, identificaram-se diversas inconsistências.
Em primeiro plano, tem-se a impossibilidade de compreender o dever de garantia como
equivalente à posição ocupada por determinado sujeito na estrutura empresarial. Essa
responsabilidade genérica é vedada pelo próprio art. 13, caput, CP, ao determinar que o
resultado de que depende a existência do crime só é imputado a quem lhe deu causa.
272
ESTELLITA, Heloisa. Responsabilidade penal de dirigentes de empresa por omissão: Estudo sobre a
responsabilidade omissiva imprópria de dirigentes de sociedades anônimas, limitadas e encarregados de
cumprimento por crimes praticados por membros da empresa. São Paulo: Marcial Pons, 2017. (Direito Penal e
Criminologia). p. 168.
94
A omissão, tida como causa, só adquire relevância penal quando os contornos do dever
de garantidor estiverem limitados à possibilidade jurídica de agir; ao que do sujeito era esperado
no âmbito da competência individual, juridicamente regulada.
Essa possibilidade será aferida no plano concreto, levando-se em conta o modo de
organização da empresa e, assim, a capacidade físico-real de evitar o resultado. Nesse cenário,
importa verificar a cognoscibilidade, isto é, que conheça o sujeito seus deveres de ação, o
contexto em que deveria fazê-lo e seja capaz de prever o resultado típico. O dever de garantia
não se confunde com um dever genérico de evitação, mas representa um dever de praticar
conduta determinada.
É preciso considerar, ainda, que identificar a posição de garantia e o dever de agir é
apenas o primeiro passo rumo à punibilidade desses sujeitos. Necessário que se estabeleça, em
sequência, o nexo de causalidade e a imputação objetiva, apenas para preencher os pressupostos
objetivos do tipo, etapa que também não encerra a responsabilidade, uma vez que remanesce a
necessidade de averiguação dos pressupostos subjetivos.
Diante das considerações feitas, a imputação por omissão imprópria, se fundada na mera
posição ocupada pelo sujeito, assemelha-se a uma responsabilidade objetiva, inadmissível no
sistema criminal de um Estado de Direito.
O que se deve buscar com a omissão imprópria, nos delitos de empresa, não é um
alargamento desmedido, fazendo uso de abstrações e distorcendo teorias estrangeiras para
suprir a dificuldade de identificar a responsabilidade individual, quando diante de estruturas
complexas, utilizando, para sua construção, conceitos antagônicos, esvaziados de sentido. É,
sim, que sejam refletidas pelos operadores de justiça as particularidades da dogmática da
omissão, a fim de estabelecer as molduras de sua incidência.
No que tange especificamente à criminalidade empresarial, o conhecimento dos agentes
de criminalização secundária – seja o julgador, o titular da acusação ou a própria defesa – sobre
o funcionamento da estrutura-empresa é imperioso. O fenômeno da delegação de poderes,
situação clássica nesses ambientes, representa um problema bastante significativo nessa
temática.
As esferas de liberdade dos sujeitos, em um contexto de organização de tarefas voltadas
a concretizar um objetivo comum, devem ser identificadas, sob pena de optar-se pela imputação
de toda a cadeia de gestão, o que também corresponde à inaceitável responsabilidade objetiva.
Concretizar os objetivos empresariais requer a desconcentração dos poderes de certos
núcleos, delegando-os a outros, para o aumento da produtividade. Há poderes, no entanto, que
não podem ser delegados, seja por imposição legal, seja porque descaracterizariam a própria
95
gestão, como o citado exemplo do Conselho Administrativo. Esse é o primeiro ponto que se
deve levar em conta, quando a imputação exigir que sejam enfrentadas tais relações, pois
implica no tortuoso dilema da responsabilidade pelos fatos praticados por terceiros.
Mesmo as atividades que podem ser delegadas, alterando os deveres originários,
acarretam para o delegante um dever residual de vigilância, que passará a ser exercido sobre o
correto desempenho das funções pelo delegado. A transferência se dará apenas quando esse
último assumir, verdadeiramente, o desempenho da atividade, pouco importando o que conste
nos Regimentos Internos, se não corresponderem à realidade fática.
Eventuais fatos delituosos, praticados no âmbito de atuação deste delegado, só serão
atribuíveis também ao delegante se resultarem de falha em seus deveres residuais de fiscalizar,
adequadamente, o cumprimento da atividade. Não se trata de um dever absoluto, mas razoável,
pautado pelo princípio da confiança, o que demanda também uma análise concreta.
Pensar de forma responsável a punibilidade nos crimes empresariais perpassa, assim, a
necessidade de corrigir, desde a peça acusatória, os mitos e distorções conceituais aplicados
nesse campo.
Se parece mais adequado o uso da omissão imprópria, em um número expressivo de
situações atinentes à criminalidade de empresa, o que se infere, em linhas gerais, é a necessidade
de que o uso da omissão seja fiel aos preceitos dessa modalidade dogmática, sob pena de
representar, em vez de um caminho metodológico possível, a expressão de uma ausência de
segurança jurídica, manipulada pelo arbítrio.
96
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
com delimitação das posições de garantia, apresenta-se como resposta mais técnica à imputação
desses sujeitos.
Há que se ater, no entanto, às particularidades da dogmática omissiva, análise prévia a
sua utilidade prática. Algumas considerações, quanto a isso, devem ser feitas. Em primeiro
lugar, para que seja possível falar em omissão imprópria, no Brasil, deve-se reportar ao art. 13,
§2º, CP, que restringe as fontes do dever de garantia à imposição legal de deveres de cuidado,
proteção e vigilância; ao que de outra forma tenha assumido a responsabilidade por evitar o
resultado ou, por fim, ao que com seu comportamento anterior crie o risco de ocorrência desse
resultado (ingerência).
A referência, no primeiro caso, em virtude da vedação à analogia in malam partem que
se impõe no Direito Penal, é a lei em sua concepção formal. As medidas que regulam profissões,
ou até mesmo os Regimentos da empresa, não são aptas a gerar, desse modo, um dever de
garantia.
Quanto à segunda fonte, há referência clara à assunção, que não se constitui por previsão
formal, ou pela mera ocupação de um cargo. Para que surja o dever de garantia, nessa
circunstância, essa assunção deve ser voluntária, manifestando-se de forma implícita ou tácita,
mas verificável no plano fático.
Nessa hipótese se enquadram, também, os deveres de vigilância gerados pela delegação
de funções ou tarefas.
Como última fonte do dever de garantia, pensa-se na ingerência, em que o sujeito cria
um risco não permitido pelo descumprimento de normas de cuidado ou de um dever ordinário
de diligência, ocasionando, dessa maneira, o risco da criação do resultado. Questão
fundamental, aqui, é compreender os modos com que se constituem os riscos não permitidos e
a relação de controle do sujeito quanto a sua produção.
Nota-se que o requisito inicial para a punibilidade, em todas as hipóteses descritas, é a
ocorrência de um resultado, para o qual se exigirá a intervenção do sujeito garantidor no intuito
de evitá-lo. Esse dever de ação, representado pela capacidade físico-real de fazê-lo, é composto
pela cognoscibilidade e pela capacidade jurídica. Invariavelmente, a averiguação se dará
concretamente, levando em conta a estruturação empresarial.
A ausência de qualquer dos pressupostos afasta a incidência da norma, pois nos termos
previstos no art. 13, caput, CP, a circunstância se transformará em omissão sem relevo penal.
Presentes o dever de garantia e a possibilidade de ação, é preciso, ainda, que se
estabeleçam a causalidade e a imputação objetiva do resultado, sem o que também se violará o
art. 13, caput, que expressamente o exige. Não se ateve o presente estudo às divergências
98
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4. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2011. v. 1.
108
APÊNDICE
Situação A
Ref. Inquérito Policial nº 183/2015 SRPF/MG
Disponível em: http://www.mpf.mp.br/mg/sala-de-imprensa/docs/denuncia-samarco
Situação B
Ref. Inquérito Policial autos nº 5006597-38.2016.4.04.7000
Disponível em: http://www.mpf.mp.br/pr/sala-de-imprensa/docs/denuncia-lula-sitio-de-
atibaia/view
Situação C
Ref. Inquérito Policial autos nº 5016060-38.2015.404.7000
Disponível em: http://www.mpf.mp.br/grandes-casos/caso-lava-jato/atuacao-na-1a-
instancia/parana/denuncias-do-mpf/documentos/DenunciaQGIesa48.pdf