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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA

CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS


DEPARTAMENTO DE DIREITO
CURSO DE GRADUAÇÃO EM DIREITO

FERNANDA CECCON ORTOLAN

LAWFARE: O DIREITO COMO ARMA DE GUERRA NA RAZÃO


NEOLIBERAL

Florianópolis,
2019
Fernanda Ceccon Ortolan

LAWFARE: O DIREITO COMO ARMA DE GUERRA NA RAZÃO


NEOLIBERAL

Trabalho Conclusão do Curso de Graduação em


Direito do Centro de Ciências Jurídicas da
Universidade Federal de Santa Catarina como
requisito para a obtenção do Título de Bacharel
em Direito

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Jeanine Nicolazzi


Philippi
Coorientador: William Hamilton Leiria

Florianópolis
2019
A todos os inconformados.
AGRADECIMENTOS

Este trabalho é fruto de muito esforço, muitas leituras, muitas experiências que colhi
ao longo do curso de Direito e também dos outros cursos da vida.
Mas, mais do que isso, é fruto de uma feliz sequência de acasos, das artes do encontro
e de muitos privilégios que tive e me trouxeram até onde estou.
Minha família, que todos os dias é meu lar para diálogos, carinho, troca e aprendizado.
Entre nós, cultivamos, dia após dia, reflexões sobre o mundo que nos cerca, com as percepções
e críticas trazidas inevitavelmente por esse longo e por vezes doloroso processo. Ainda assim,
caminhar ao lado de vocês torna todo esse caminho mais bonito. Ao meu pai, Renato; minha
mãe, Liana; meus irmãos, Daniel e Júlia; ao nosso recente novo mini-membro de quatro patas,
Tonico: meu muitíssimo obrigada por serem quem são e por tudo o que construímos enquanto
família.
À Universidade Federal de Santa Catarina, meu agradecimento por todos os
aprendizados e vivências desses últimos cinco anos. A oportunidade de passar por uma
universidade pública e gratuita é um enorme privilégio, que deveria ser direito de todos. Em
tempos de desmonte da educação, que a luta continue e só se fortaleça.
Os aprendizados nesses anos de UFSC não teriam sido os mesmos não fosse pelos
meus quase dois anos fazendo parte do PET Direito. Lá, não só aprendi muito sobre Teoria do
Direito, mas também sobre a Universidade, sobre amizades, sobre acolhimento em momentos
difíceis. As tardes de quarta feira serão sempre lembradas com muito carinho.
Um enorme agradecimento à professora Jeanine, também pela orientação deste
trabalho, mas muito mais do que isso. Só tenho a agradecer por seu impecável papel como
tutora do PET e pela inspiração que representa para mim, desde o começo do curso, enquanto
professora e pesquisadora comprometida e ética. Desde as primeiras aulas de Teoria do Direito,
o exercício do pensamento crítico tornou-se, para mim, um caminho sem volta.
Certamente esses anos de UFSC fizeram-se mais leves com os bons encontros trazidos
no caminho, merecedores de especiais agradecimentos. Ao William, pela amizade que
construímos desde os primeiros momentos do curso e nosso processo seletivo para o PET
Direito. Por todos os cafés, conversas, desabafos, especialmente pela enorme ajuda na
construção deste trabalho. À Milena e à Bruna, pela amizade sincera, acolhedora e leve que sei
que sempre estará por perto. À Vitória, pelo companheirismo de todas as horas e por ser tão
autêntica. À Giovanna, com quem tive pouco convívio na UFSC, mas a quem agradeço pela
relação de carinho que até hoje temos, construída em algumas poucas aulas de italiano.
Para além da universidade, mais agradecimentos. Às amigas de infância e de todas as
horas, Ana Luiza, Clara, Dominique e Martina, estendendo o agradecimento às suas famílias,
que são quase a minha também. Obrigada, Téo, Eliani, Maria, Ricardo, Marco e Anne.
Não posso deixar de agradecer o apoio dos amigos: Mariah, Sachi, Bernardo, Letícia,
Patrícia e João Victor. Que nossos caminhos se comuniquem sempre, resistindo aos diferentes
cursos tomados pela vida. Também aos amigos do intercâmbio: Alessandra, Bernardo, Carlos,
Caroline, Daniel, Estevan, Gabriel e Letícia.
Agradeço também à Lurdes, pelo suporte e ajuda diária que em muito facilitou todo o
tempo dedicado a este trabalho, pelas conversas e por todas as trocas dos últimos anos.
Por fim, agradeço ao Gustavo, com quem há dois anos compartilho os mais bonitos
sentimentos e sonhos. Agradeço especialmente pela paciência nesses últimos meses, pelas
revisões e por seu gosto pela ABNT, por acreditar em mim nas vezes em que eu mesma não o
fiz, por termos um relacionamento que é, antes de tudo, afeto e companheirismo. Agradeço por
tudo aquilo que somos e também pelo que queremos ser.
En el siglo XX la mitad del mundo sacrificó la justicia em nombre de la
libertad y la otra sacrificó la libertad em nombre de la justicia. En el
siglo XXI sacrificamos las dos em nombre de la ‘Globalización’.
(Eduardo Galeano, 2010)
RESUMO

O presente trabalho busca analisar o que é lawfare, não somente compreendendo sua definição,
mas estudando suas relações com a razão de mundo neoliberal. Assim, o problema da pesquisa
consiste em saber se o Direito vem sendo utilizado, a nível global, e também mais
especificamente no Brasil, sob a forma de lawfare, enquanto uma arma dentro de um cenário
de guerra de aniquilação. Para responder a essa questão, o trabalho levantou a hipótese, ao final
confirmada, de que o Direito foi incorporado à razão de mundo neoliberal, de modo que a forma
de sua aplicação se dá pela via do lawfare, em um cenário de concorrência generalizada no qual
o Direito passa a ser não somente mercadoria, mas armamento. Além disso, a segunda hipótese,
igualmente confirmada, é a de que a prática do lawfare se configura no Brasil, sobretudo no
contexto da luta anticorrupção que se desenvolveu nos últimos anos. O método de abordagem
utilizado para a pesquisa foi o indutivo. O objetivo geral do trabalho consistiu, então, em
verificar se o Direito está sendo utilizado sob a forma do lawfare para atender às imposições de
uma agenda neoliberal. Para isso, procurou-se analisar historicamente a disputa entre projetos
políticos no contexto do pós-guerra, com a dissolução da antiga ordem mundial; em seguida,
buscou-se estudar os traços principais do neoliberalismo, ordem vitoriosa enquanto nova razão
do mundo; para, enfim, adentrar à figura lawfare, examinando seu(s) conceito(s) e as origens
do termo. Por fim, buscou-se analisar a influência do lawfare desde o discurso antiterror norte-
americano até o discurso anticorrupção brasileiro, sob a ótica das semelhanças e articulações
entre Brasil e Estados Unidos que as explicam. Os principais marcos teóricos desta pesquisa
foram: Pierre Dardot e Christian Laval, Michel Foucault, Carl Schmitt, Alain Supiot, Naomi
Klein e Ladislau Dowbor. Ao final do trabalho, as hipóteses foram confirmadas, demonstrando-
se como o lawfare está relacionado à utilização do Direito enquanto arma, atendendo às
necessidades de livre concorrência da razão neoliberal, tanto no mundo, como, mais
especificamente, no Brasil. A relevância da pesquisa se revela diante do cenário brasileiro de
incertezas jurídicas e políticas, em que o Direito não aparece como garantidor, mas enquanto
um ator fundamental para a inserção completa do Brasil no domínio neoliberal.

Palavras-chave: Lawfare. Neoliberalismo. Exceção. Corrupção.


ABSTRACT

The present study aims to analyze what is lawfare, not only by understanding its definition, but
also by studying its relations with the neoliberal world-reason. Thus, the research problem is
whether the Law has been used, on a global level, and more specifically in Brazil, under the
form of lawfare, as a weapon in a war of annihilation scenario. In order to answer this question,
the work proposed the hypothesis, confirmed at the end, that the Law has been incorporated by
the neoliberal world-reason, therefore its application happens through lawfare, in a context of
widespread competition where the Law can be used not only as a tradable good, but also as a
weapon. Besides that, the second hypothesis, also confirmed by the end of the work, is that the
practice of lawfare occurs in Brasil, especially in the context of the anti-corruption fight that
has been developed in the last few years. The inductive approach method was used for this
research. The main objective of this work consisted of verifying whether the Law is being used
under the form of lawfare to satisfy the impositions of a neoliberal agenda. In this regard, the
study analysed historically the dispute between political projects in the post-war context, with
the dissolution of the old world order; then, the work studied the main features of neoliberalism,
winning world order as a new world-reason; finally, the essay reached the figure of lawfare,
with the examination of its concept(s) and the origin of the term. Lastly, the study analysed the
influence of lawfare, from the American antiterror to the Brazilian anticorruption discourse,
under the perspective of the similarities and articulations between these countries. The main
theoretical landmarks of this research were: Pierre Dardot and Christian Laval, Michel
Foucault, Carl Schmitt, Alain Supiot, Naomi Klein and Ladislau Dowbor. At the end of the
work, the hypotheses were confirmed, demonstrating how the lawfare is related to the use of
Law as a weapon of war in order to attend the needs of the neoliberal rationality of free
competition, in the world and, more specifically, in Brazil. The relevance of this research is
revealed in view of the Brazilian context of political and legal uncertainties, where the Law
does not present itself as a guarantor of rights, but as a fundamental actor for the complete
insertion of Brazil into the neoliberal domain.

Keywords: Lawfare. Noliberalism. Exception. Corruption.


RÉSUMÉ

La présente étude essaie d’analyser ce qui signifie lawfare, non seulement par la compréhension
de sa définition, mais aussi par l’étude de ses relations avec la raison du monde néolibérale.
Ainsi, le problème de la recherche consiste à savoir si le Droit est utilisé, au niveau global, et
plus spécifiquement au Brésil, sous la forme du lawfare, comme une arme dans un contexte de
guerre d’anéantissement. Pour répondre à cette question, le travail a envisagé l’hypothèse,
confirmée à la fin, où le Droit a été intégré à la raison du monde néolibérale, de sorte que son
application survienne par la voie du lawfare, dans um contexte de concurrence généralisée dans
lequel le Droit n’est pas seulement une marchandise mais aussi un armement. En outre, la
seconde hypothèse, aussi confirmée à la fin du travail, c’est que la pratique du lawfare a lieu au
Brésil, surtout dans la lutte anticorruption qui s’est dévéloppée dans les dernières années. La
recherche a utilisé la méthode inductive. L’objectif général du travail a consisté à vérifier si le
Droit est utilisé sous la forme du lawfare pour répondre à des exigences de l’agenda néolibéral.
Pour cela, il a été éxaminé historiquement la dispute entre deux projets politiques au contexte
de l’après-guerre, avec la dissolution de l’ancien ordre mondial; ensuite, le travail a étudié les
principales caractéristiques du néolibéralisme, qui a été l’ordre victorieux comme nouvelle
raison du monde; enfin, l’étude est arrivé à la figure du lawfare, en examinant le(s) concept(s)
et l’origine du terme. Finalement, le travail a analysé l’influence du lawfare depuis le discours
antiterrorism nord-américain jusqu’au discours anticorruption brésilien, dans la perspective des
similitudes et articulations entre le Brésil et les États-Unis. Le cadre théorique de cette
recherche a été composé par: Pierre Dardot et Christian Laval, Michel Foucault, Carl Schmitt,
Alain Supiot, Naomi Klein et Ladislau Dowbor. À la fin du travail, les hypothèses ont été
confirmées, en montrant que le lawfare a rapport avec l’utilisation du Droit comme une arme,
en servant aux besoins de libre concurrence de la raison néolibérale, dans le monde et aussi au
Brésil. La pertinence de cette recherche se révèle face au scénario brésilien d’incertitudes
juridiques et politiques, dans lequel le Droit n’apparaît pas comme um garant, mais comme um
acteur fondamental pour l’insertion complète du Brésil au domaine néolibéral.

Mots-clés: Lawfare. Néolibéralisme. Exception. Corruption.


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 11

1 O GLOBO EM DISPUTA: DOIS PROJETOS PARA O ESTADO DE DIREITO NO


PÓS-GUERRA ....................................................................................................................... 15

1.1 PÓS-GUERRA: UM DECLÍNIO DO LAISSEZ-FAIRE?.............................................. 15

1.2 O ESPÍRITO DE FILADÉLFIA NA DISPUTA POR UMA NOVA ORDEM ............ 25

1.3 O ANTÍDOTO PARA A JUSTIÇA SOCIAL: A FORMAÇÃO DA SOCIEDADE


MONT-PÈLERIN ................................................................................................................ 37

2 NEOLIBERALISMO: TRAÇOS DA NOVA ORDEM................................................... 45

2.1 O NEOLIBERALISMO COMO RACIONALIDADE .................................................. 45

2.2 DEMOCRACIA: UM DESAFETO NEOLIBERAL ..................................................... 53

2.3 A GLOBALIZAÇÃO E A NORMA FUNDAMENTAL DA CONCORRÊNCIA: DO


DARWINISMO SOCIAL AO DARWINISMO NORMATIVO ........................................ 63

3 LAWFARE: QUANDO O NEOLIBERALISMO ENCONTRA O DIREITO............... 73

3.1 NOTAS SOBRE O LAWFARE ...................................................................................... 73

3.2 A DOUTRINA DO CHOQUE: A EMPREITADA NEOLIBERAL DO ANTITERROR


.............................................................................................................................................. 82

3.3 ANTICORRUPÇÃO: O LAWFARE CHEGA À PERIFERIA ...................................... 91


3.3.1 Por esses vazamentos eles não esperavam........................................................... 99

CONCLUSÃO ...................................................................................................................... 105

REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 109


11

INTRODUÇÃO

Estudar o Direito em meio à série de acontecimentos recentes na história do Brasil


pode ser causa de uma grande incompreensão e sentimento de impotência, diante da percepção
de que nós, estudantes e operadores do Direito, mesmo dotados de um certo conhecimento
técnico, somos, ainda assim, incapazes de entender o que está acontecendo ou de antever como
certas questões serão respondidas juridicamente. Isto é, há algum tempo o Direito vem sendo
compreendido como um jogo de tabuleiro com regras obscuras e variáveis desconhecidas,
incapaz de oferecer subsídios para combater os golpes antidemocráticos e a ascensão de um
governo símbolo da barbárie.
Por consequência, essa incompreensão vem acompanhada também de uma profunda
frustração, quando se percebe que o Direito foi antes aquele que permitiu essa sequência de
golpes em nosso curto e frágil histórico democrático, do que aquele que nos protegeu dele, de
alguma maneira. Assim, estudar o Direito criticamente implica reconhecer seu protagonismo
inserido em relações e hierarquias que não mais se explicam pela pirâmide kelseniana, mas sim
por interesses específicos sob o véu da pura tecnicidade exercida por seus operadores.
Diante da frustração, que acomete e imobiliza grande parte do setor comprometido
com o Estado Democrático de Direito, o presente trabalho foi pensado, desde o início, como
ferramenta para se compreender o que está acontecendo. Assim, motivado em superar essa
frustração, seu propósito é o de encontrar formas de ação frente a essa batalha de disputas em
que o Direito está imbricado hoje. Importante destacar que, para isso, o trabalho se guia por um
livre agir, que no dizer de Alain Supiot é diferente de obedecer ou reagir a determinado
acontecimento. Por essa razão, não se trata de encontrar uma reação frente ao que está posto,
mas sim uma ação, que só é livre na medida em que presume uma capacidade de ação, tal
como elucida Alain Supiot em sua obra. Pode-se dizer, então, que a grande busca aqui é por
essa capacidade de ação.
A pesquisa que ensejou o trabalho “Lawfare: o Direito como arma de guerra na razão
neoliberal” se encarrega de compreender como o Direito se coloca hoje no novo conceito de
guerra trazido pela nova ordem do mundo, o neoliberalismo. Assim, trata-se de saber se o
contexto do neoliberalismo, em que as exigências de concorrência generalizada se estendem a
todos os campos da vida, também incorporou o Direito, que passou a ser instrumentalizado
enquanto uma arma no cenário de guerra global. Além disso, a pesquisa também busca verificar
se – e como – esse fenômeno do lawfare se verifica no Brasil.
A hipótese levantada é a de que, no cenário neoliberal, o Direito é inserido no
imperativo de concorrência generalizada, de modo que se coloca na disputa global do livre
12

comércio. Sendo assim, deve adequar-se às necessidades dessa disputa, funcionando como uma
arma nesse cenário de guerra, que admite não somente o armamento tradicional, mas também
modernos meios de aniquilação política. Além disso, a hipótese trabalhada é a de que o lawfare
chegou ao Brasil, sobretudo pelas parcerias informais entre Brasil e Estados Unidos no contexto
da luta anticorrupção.
Assim se deu o pontapé inicial da pesquisa, que seguiu o método indutivo, sobretudo
pela análise bibliográfica de fontes primárias – tanto quanto fosse possível – para a verificação
das hipóteses em questão.
No primeiro capítulo do trabalho, buscou-se fazer um apanhado histórico do contexto
que marcou uma ruptura em relação à ordem anterior ao neoliberalismo. Para isso, o trabalho
retomou o período da primeira guerra mundial, analisando, sobretudo pela obra “O nomos da
Terra no direito das gentes do jus publicum europæum”, como se deu a dissolução da antiga
ordem mundial, centrada do direito das gentes europeu. Inicia-se o capítulo abordando o
contexto de descrença nos velhos dogmas do laissez-faire, que passavam a ser questionados
entre o final do século XIX e início do século XX. Com essas oscilações, a ordem mundial,
centrada na Europa por mais de quatro séculos, começava a ser dissolvida sem que houvesse
uma nova ordem para substituí-la imediatamente.
Assim, no cenário de disputa por uma nova ordem, o trabalho analisou dois dos
importantes atores que tentavam salvar o liberalismo, sob formas muito distintas. O primeiro
deles é representado pelo Espírito de Filadélfia, bem elucidado por Alain Supiot em livro de
idêntico título, e que diz respeito a uma série de textos que sucederam à segunda guerra-
mundial, reunindo ideias de justiça social e dignidade humana. Com a proclamação da
Declaração de Filadélfia, havia uma clara preocupação em não instrumentalizar o Direito, e em
colocar a Economia a serviço dos homens, e não o contrário. Em contraposição a essa proposta,
ganha corpo um grupo difuso em que se constitui o segundo ator nessa disputa: os intelectuais
do neoliberalismo. Embora eles discordassem entre si a respeito de uma série de questões, havia
entre eles uma grande convergência. Foi essa união de esforços que culminou na formação da
Sociedade Mont Pélèrin, dedicada a destruir sistematicamente as bases de justiça social que se
tentava erguer com o Espírito de Filadélfia.
Em seguida, o trabalho abordou os aspectos principais daquela que restou vitoriosa
como nova ordem do mundo. Assim, o segundo capítulo dedicou-se a estudar o neoliberalismo,
compreendido não enquanto uma ideologia, mas enquanto uma racionalidade que se impôs em
todos os aspectos da existência humana. Para esse momento do trabalho, foram fundamentais
as contribuições de Pierre Dardot e Christian Laval em “A Nova Razão do Mundo”, e de Michel
13

Foucault em “Nascimento da Biopolítica”, guiando a análise do neoliberalismo desde sua


fundação intelectual até suas práticas em toda e qualquer esfera da vida.
O capítulo seguiu abordando relações pouco amigáveis entre neoliberalismo e
democracia, analisando de que forma as práticas neoliberais, a despeito da desigualdade
crescente e piora nas condições de vida para a maioria esmagadora da população, conseguiram
manter-se imunes às forças democráticas. Para isso, analisou-se a relação entre neoliberalismo
e democracia tanto sob o ponto de vista de produção intelectual, quanto por meio de práticas e
estruturas que esvaziam o debate democrático para esse tipo de questão. Nesse ponto, viu-se
como a defesa cientificista da Economia serviu à legitimação do neoliberalismo.
Por fim, o segundo capítulo debruçou-se sobre a predominância de certos atores no
cenário da globalização, que estende a norma da concorrência a esferas inimagináveis. Dessa
forma, sobretudo com o auxílio de atores supranacionais e não democráticos, mostrou-se como
o Direito sujeitou-se também às normas da livre concorrência, ensejando um fenômeno que
Alain Supiot denomina como darwinismo normativo. Nesse cenário, em que o Direito perde
valor como um fim em si, garantidor da dignidade humana, e passa a ser mais um ator do livre
mercado, abre-se o caminho para a abordagem do lawfare, realizada no terceiro e último
capítulo do trabalho.
Buscando as origens do conceito de lawfare, o estudo realizado encontrou a definição
do major norte-americano Charles Dunlap Jr., além da visão atribuída ao antropólogo norte-
americano John Comaroff, que o analisa sob uma ótica colonizadora, partindo das grandes
potências para exercer domínio sobre territórios periféricos. Comaroff demonstra como essa
prática se relaciona com a arma de aniquilação de um adversário político não reconhecido como
legítimo.
A partir disso, o trabalho avaliou a distinção entre a antiga figura do inimigo da figura
do criminoso, este trazido sob o novo conceito de guerra que adveio da dissolução da antiga
ordem mundial. Com o auxílio das obras “Estado de Exceção”, de Giorgio Agamben, e “A
Doutrina do Choque”, de Naomi Klein, analisou-se a suspensão do Direito diante da figura de
um inimigo criminalizado, sob o exemplo principal da guerra antiterror perpetrada pelos
Estados Unidos, com força após os ataques em 11 de setembro de 2001. A guerra ao terror,
nesse sentido, representa tanto a suspensão das garantias individuais, como uma empreitada
neoliberal sob a forma da doutrina do choque, que permitiu uma série de reformas de livre
mercado, aproveitando a oportunidade de uma população atônita e desnorteada logo após o
ataque.
O desenho dos principais traços da guerra ao terror e sua relação com o neoliberalismo
e o estado de exceção permitiram a chegada do tópico que encerra o terceiro capítulo, abordando
14

a presença do lawfare no Brasil, sob a forma da guerra contra a corrupção, encampada por
autoridades brasileiras em parceria informal com as norte-americanas, tomando emprestados
regramentos externos. Para isso, o estudo contou com a análise de materiais divulgados pelo
WikiLeaks com uma série de telegramas entre autoridades brasileiras e norte-americanas,
descrevendo esforços no combate à corrupção através da realização do Projeto Pontes, bem
como contou com as recentes matérias divulgadas pelo Intercept Brasil revelando conluio entre
procuradores e magistrados no âmbito da operação Lava-Jato.
Espera-se, com o esforço deste trabalho, que as considerações levantadas permitam
uma melhor compreensão da utilização do Direito hoje, rompendo com a perspectiva tradicional
do Direito para analisar questões que envolvem disputa por poder em um cenário global.
Ressalte-se, ainda, que o estudo sobre lawfare, por ser ainda recente e pouquíssimo explorado
no Brasil e no mundo, ainda permitirá, certamente, debates mais profundos e extensos. De todo
modo, o trabalho não tem a presunção de esgotar a abordagem do tema, buscando servir
sobretudo como um dos elementos para despertar, nos operadores do Direito – aqueles que o
compreendem e respeitam –, e em todos aqueles que possam se insurgir, alguma capacidade de
ação.
15

1 O GLOBO EM DISPUTA: DOIS PROJETOS PARA O ESTADO DE DIREITO NO


PÓS-GUERRA

O final do século XIX e início do século XX trouxeram profundas modificações na


ordem do mundo. Com a dissolução do antigo nomos da Terra, centrado no direito público
europeu, havia uma ruptura que não deu lugar a uma nova ordem de forma imediata, mas deixou
um espaço de disputa sobre que projeto político faria as vezes dessa nova ordem do mundo.
Neste capítulo, analisa-se o cenário de declínio desse antigo nomos da Terra, que
trouxe a revisão dos velhos dogmas do liberalismo clássico, que já não mais serviam à leitura
da sociedade que enfrentara uma grande crise e também uma grande guerra. Assim, surgiam
novos atores na disputa, sob a forma de dois projetos políticos que, embora quisessem salvar o
liberalismo, pretendiam fazê-lo de modo muito distinto. De um lado, o Espírito de Filadélfia;
de outro, os neoliberais.

1.1 PÓS-GUERRA: UM DECLÍNIO DO LAISSEZ-FAIRE?

Pautar a discussão sobre neoliberalismo à luz de uma mera oposição entre estado
mínimo versus estado intervencionista mostra que, a despeito da popularidade desse tipo de
debate, pouco ele se aprofunda no que é essencial ao neoliberalismo. Em outras palavras, a
menção corriqueira que se faz às “políticas neoliberais”, ao “pensamento neoliberal” ou à
“ideologia neoliberal” por muitas vezes ignora que o neoliberalismo não se traduz em “Estado
mínimo”, e não se confunde com o liberalismo.
O que se deve ter claro, desde já, é que o neoliberalismo “não é herdeiro natural do
primeiro liberalismo, assim como não é seu extravio nem sua traição. Não retoma a questão dos
limites do governo do ponto em que ficou”1. Como se pretende demonstrar, o neoliberalismo
tem características próprias que pouco se comunicam com aquelas do liberalismo clássico.
Para isso, dando início ao presente trabalho, busca-se estabelecer, desde logo, a
distinção entre a figura clássica do liberalismo e do laissez faire daquilo que hoje chama-se
neoliberalismo. Para a melhor compreensão do fenômeno ascendente do neoliberalismo, é
necessário retroceder algumas décadas e analisar o contexto em que se encontrava o liberalismo
clássico – buscando compreender como esse contexto possibilitou uma mudança de paradigma
nada singela no modo de governar, e, para o que interessa a essa pesquisa, no modo de se pensar
o Direito.

1DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. Tradução:
Mariana Echalar. 1 ed. São Paulo: Boitempo, 2016. p. 34.
16

O liberalismo clássico tomou corpo no século XVIII e tinha como ponto central a
imposição de limites ao Estado. Na visão liberal, esses limites deveriam ser sempre
estabelecidos por leis econômicas naturais, que deveriam guiar a ação pública. Foi no fenômeno
do Liberalismo, acompanhado da economia política, que Michel Foucault aprofundou-se, em
suas aulas ministradas no Collège de France no ano de 1979, analisando as transformações que
marcaram um novo modo de governar em todo o ocidente.
Para explicar o fenômeno do liberalismo, Foucault aponta uma mudança, que se deu
em meados do século XVIII, caracterizando a razão governamental moderna. Para ele, essa
transformação consiste em uma limitação intrínseca da arte de governar, ou seja, uma limitação
interna à própria racionalidade governamental. Assim, a razão governamental não mais deve
respeitar somente limites externos – aqui se compreendendo os direitos naturais que limitam o
poder soberano -, mas deverá respeitá-los a partir de cálculos que ela mesma pode fazer, em
função dos objetivos que pretende alcançar.2 Trata-se de uma limitação interna à própria arte
de governar3, ou também de uma crítica interna da razão governamental, pautada em “como
não governar demais” 4. Ao analisar o que permitiu a emergência dessa crítica interna, Foucault
afirma que “esse instrumento intelectual, o tipo de cálculo, a forma de racionalidade que
permite que a razão governamental se autolimite” 5 não é o direito, mas a Economia Política.
O liberalismo marcou, segundo Foucault, uma nova arte de governar, que se
caracterizou pelo aparecimento de mecanismos internos que não mais têm a função de assegurar
o crescimento do Estado em termos de força, riqueza ou poder – como ocorre na Razão de
Estado -, mas justamente tem por finalidade limitar esse exercício do poder de governar.6
Entretanto, frisa Foucault que essa nova arte do governo mínimo é, ela mesma, uma Razão de
Estado: “é a razão do governo mínimo como princípio de organização da própria Razão de
Estado”.7
É de suma importância para o presente trabalho a questão suscitada por Foucault em
uma de suas aulas do Collège de France, no tocante ao papel do direito nessa transformação:
se a autolimitação do governo, a partir de uma razão de governo mínimo, é (não somente, mas)
também uma limitação jurídica, de que forma se pode formular uma limitação em termos de

2 FOUCAULT, Michel. O nascimento da biopolítica. Tradução: Pedro Elói Duarte. Lisboa: Edições 70, 2010. p.
36.
3 Importa notar que Foucault não pretende estudar a prática governamental real, mas sim a arte de governar, que é

a maneira de governar o melhor possível e também a melhor maneira possível de governar. Essas considerações
estão ilustradas na aula de 10 de Janeiro de 1979 do curso de Foucault trazido no Nascimento da Biopolítica.
(FOUCAULT, Michel. O nascimento da biopolítica. Tradução: Pedro Elói Duarte. Lisboa: Edições 70, 2010).
4 Ibid., p. 37.
5 Ibid., p. 38.
6 Ibid., p. 55.
7 Ibid., p. 56.
17

direito? Isto é, “se há uma economia política, o que acontece com o direito público?”8 Pautado
nessa limitação pelo Direito, há um deslocamento no problema central do direito público, que
deixa de ser a questão da soberania e passa a se concentrar em como estabelecer os limites ao
exercício do poder público. No resumo de seu curso em Nascimento da Biopolítica, Foucault
propõe que se analise o liberalismo
não como uma teoria nem como uma ideologia (...), mas sim como uma prática, ou
seja, como uma maneira de fazer orientada para objectivos e regulada numa reflexão
contínua. O liberalismo deve ser então analisado como princípio e método de
racionalização do exercício do governo – racionalização que obedece, e esta é a
sua especificidade, à regra interna da economia máxima. (...) a racionalização
liberal parte do postulado de que o governo (...) não pode ser, em si, o seu próprio fim.
9

Essa leitura, a partir do Nascimento da Biopolítica, foi partilhada por Christian Laval
e Pierre Dardot ao tratarem da crise liberal em A Nova Razão do Mundo. Para os autores
franceses, a crise que o liberalismo enfrentou foi uma crise de governamentalidade. Isto é, o
liberalismo, enquanto arte de governar, começou a enfrentar dificuldades advindas da
necessidade de intervenção política em matéria econômica e social, bem como da forma pela
qual se poderia justificar essa intervenção.10
Dardot e Laval mostram que a crise do liberalismo, que culminaria, mais tarde, no
nascimento do neoliberalismo, colocou dogmas liberais como o de um direito natural, da
liberdade do comércio, da propriedade privada e da confiança no equilíbrio do mercado sob
críticas das mais variadas: como se pode reduzir todo o funcionamento de uma sociedade à
soma das trocas entre indivíduos?11 O radicalismo na Inglaterra, a sociologia francesa e o
socialismo encarregaram-se de denunciar muitos desses dogmas.
A dificuldade em alimentar a crença nos livres contratos entre indivíduos formalmente
iguais, sobretudo nas relações de emprego, se explicava pela realidade das grandes indústrias
que se formavam com a revolução industrial. Jornadas de trabalho extenuantes, trabalho infantil
e o empobrecimento material, físico e mental dos operários que são ilustrados na figura de
Charles Chaplin, em Tempos Modernos, mostram que o liberalismo e seus dogmas estariam, a
qualquer hora, sujeitos a revisão.
No final do século XIX, a reforma de Otto von Bismark, que instituiu na Alemanha o
primeiro sistema público de aposentadoria, inaugurou, no final dos anos 1870, uma série de
regulamentações destinadas a proteger os assalariados. Nesse contexto é que apareceram, então,

8 Ibid., p. 66.
9 Ibid., p. 394. (grifo nosso).
10 DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. Tradução:

Mariana Echalar. 1 ed. São Paulo: Boitempo, 2016. p. 38.


11 Ibid., p. 37.
18

as primeiras legislações sobre trabalho infantil, limitação da jornada de trabalho, direito de


greve e associação, na intenção de combater o novo tipo de pobreza, fruto do novo ciclo de
negócios que começava a desenhar o capitalismo de grandes corporações.12
Além dessas críticas externas ao pensamento liberal, surgiram divergências dentro do
próprio liberalismo. É que, embora a questão de limitação da ação governamental
desempenhasse um papel central no liberalismo, a suposta unidade desse pensamento também
começou a enfrentar problemas a partir do século XIX. Compreendendo essa cisão como uma
crise interna do liberalismo, Dardot e Laval expõem algumas das divergências que passavam a
surgir entre dois tipos de liberalismo: de um lado, os reformistas sociais que tinham um ideal
de bem comum; de outro lado, aqueles que viam na liberdade individual um fim absoluto.13
Como demonstram os autores, não apenas por parte dos socialistas ou dos conservadores
declarados, mas também dentro do próprio pensamento liberal passou a haver um
questionamento à crença nas “virtudes da harmonia natural dos interesses e no livre desabrochar
das ações e faculdades individuais”14.
Para ilustrar essas divergências, Dardot e Laval trazem o pensamento de Tocqueville
e John Stuart Mill, que entre 1835 e 1840 se debruçavam sobre a tendência das sociedades
modernas de serem marcadas por uma maior intervenção governamental na vida social. Dardot
e Laval utilizam o exemplo de Mill como um ponto significativo que mostra a ruptura do
radicalismo inglês com o dogma da não intervenção estatal.15
Em On socialism, texto de Mill do ano de 1869, publicado postumamente em 1879, o
autor critica o controle da economia nos moldes socialistas e demonstra sua preocupação, que
perpassa outras de suas obras, com uma tirania democrática. Para ele, essa tirania resulta no
esmagamento dos indivíduos pelo peso da maioria e da opinião pública, causando uma
impotência do indivíduo que precisa ser remediada.16
No entanto, apesar das críticas que tece ao socialismo, Mill reconhece a limitação do
laissez faire e reconhece uma mutabilidade no conceito de propriedade: “A ideia de propriedade
não é uma única coisa, idêntica ao longo da história e incapaz de sofrer alterações, mas é
variável como todas as criações da mente humana”17. Nesse sentido, “a sociedade tem a
possibilidade de alterar qualquer direito de propriedade quando julgar, após a devida
consideração, que atrapalhem o bem público” 18.

12 Ibid., p. 41.
13 Ibid., p. 37.
14 Ibid., p. 42.
15 Ibid., p. 43.
16 Ibid., p. 44.
17 MILL, John Stuart. On socialism. Chicago: Belfords, Clarke & CO, 1879. p. 155. E-book. Disponível em:

http://www.gutenberg.org/ebooks/38138. Acesso em 08 mai. 2019. (Tradução nossa).


18 Ibid., p. 155.
19

Mas a esse movimento de relativização da não intervenção estatal por parte do


radicalismo inglês e do utilitarismo se contrapôs o pensamento de Herbert Spencer, no final do
século XIX. O spencerismo, opondo-se frontalmente ao intervencionismo econômico ou social,
introduziu alguns dos temas que seriam depois resgatados pelo neoliberalismo, anos mais tarde.
Seu pensamento se insere na segunda corrente dos liberais, composta pelos individualistas, que
acusavam o primeiro grupo, os reformistas, de terem traído o movimento liberal, cedendo ao
socialismo.19
Por volta de 1880, quando os velhos liberais foram percebendo a perda da unidade do
liberalismo, Spencer, ao ver a inclinação de utilitaristas à intervenção estatal, viu a necessidade
de refundar o utilitarismo sobre novas bases. Assim, com Spencer, o utilitarismo jurídico ou
econômico deu lugar a um utilitarismo evolucionista.
Esse é um ponto central no pensamento de Spencer: há uma lei da evolução que
impede qualquer intervenção do Estado. A partir disso, ele rechaça violentamente a postura dos
liberais reformistas, entendendo-os como falsos liberais ou socialistas. Para Spencer, as
proteções aos mais fracos são restrições que atrapalham a vida de todos os cidadãos, e a
intervenção estatal, reforçada, ainda, pela educação e pelo sufrágio universal, alimenta desejos
inacessíveis à grande massa.20 Para Spencer, a função do liberalismo no futuro será a de colocar
limites ao poder do parlamento, que está submetido à “pressão impaciente das massas incultas”
21
. O evolucionismo biológico de Spencer, que se utilizou da obra de Darwin, publicada em
1859, como forma de justificar a sobrevivência dos mais aptos para negar qualquer tipo de
intervenção que protegesse os mais fracos, deixou marcas na doutrina liberal – Dardot e Laval
até afirmam, nesse sentido, que o spencerismo possa ter representado uma verdadeira virada
dentro do pensamento liberal.
Sem a intenção de abordar pormenorizadamente essas vertentes do liberalismo que
entravam em conflito, bem como não querendo aqui esgotar as análises do darwinismo social,
que serão abordadas em outro momento oportuno deste trabalho, cabe enfatizar a crise interna
do liberalismo, que se buscou demonstrar até aqui.
Seja sob o ponto de vista de uma crítica interna ou externa, certo é que a doutrina do
livre mercado já não mais sabia responder ao fenômeno da “empresa” que se acentuava desde
o século XIX. Nessa época, Estados Unidos e Alemanha, enquanto duas potências emergentes,
tinham capitalismos que elucidavam a distância do protótipo liberal, que vê os indivíduos como

19 DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. Tradução:
Mariana Echalar. 1 ed. São Paulo: Boitempo, 2016. p. 46.
20 Ibid., p. 48.
21 Ibid., p. 50.
20

seres econômicos independentes e isolados. Na prática, essa visão não correspondia mais ao
sistema financeiro e industrial que se desenvolvia por meio de grandes grupos de interesse:
O surgimento dos grandes grupos cartelizados marginalizava o capitalismo de
pequenas unidades; o desenvolvimento das técnicas de venda debilitava a fé na
soberania do consumidor; e os acordos e as práticas dominadoras e manipuladoras dos
oligopólios e dos monopólios sobre os preços destruíam as representações de uma
concorrência leal, que beneficiava a todos. (…) Os políticos faziam sobretudo o papel
de marionetes nas mãos dos que detinham o poder do dinheiro. A ‘mão visível’ dos
empresários, dos financistas e dos políticos ligados a eles enfraqueceu
formidavelmente a crença na ‘mão invisível’ do mercado. 22
Além disso, em matéria de política internacional, cresciam as proteções alfandegárias,
nacionalismos e imperialismos, o que parecia, como um todo, contrariar a ordem liberal.
Percebeu-se, então, que os liberais “não dispunham de uma teoria das práticas governamentais
que haviam se desenvolvido desde meados do século” 23.
Esse processo de revisão nos dogmas do pensamento liberal, que começava na segunda
metade do século XIX, foi acelerado pela Primeira Guerra Mundial, que marcou uma ruptura,
aqui digna de uma extensa nota. Carl Schmitt foi o responsável por se debruçar sobre essa
mudança, que ele atribuiu como sendo o momento de dissolução do antigo nomos da Terra
centrado no direito público europeu.
Em “O nomos da Terra”, obra publicada em 1950, Schmitt se debruça sobre a ordem
do mundo. Ele vê a terra como a mãe do Direito: a tomada de terra, para Schmitt, é o ato
originário que funda o Direito.24 Esse ato originário, que pode ser tanto a tomada de terra,
quanto fundações de cidades ou estabelecimento de colônias25, funda o Direito tanto interna
quanto externamente. Voltado para o interior, ele cria as relações de posse e propriedade dentro
do grupo que tomou a terra. Externamente, esse grupo que tomou a terra se contrapõe a outros
grupos que também tenham tomado terras. Já em sentido contrário, “o mar não conhece essa
unidade clara entre espaço e direito, entre ordenação e localização” 26. Ou seja, “o mar é livre”
27
.
Enquanto que as ordenações pré-globais eram essencialmente terrestres, a época dos
Descobrimentos marcou uma consciência global nos povos europeus. No direito das gentes pré-
global, embora a Terra já fizesse parte de alguma partição, não havia, aí, um nomos da Terra,
pois não se tinha uma visão abrangente da ordem espacial como um todo. Embora o direito das

22 Ibid., p. 40.
23 Ibid., p. 42.
24 SCHMITT, Carl. O nomos da Terra no direito das gentes do jus publicum europæum. Tradução: Alexandre

Guilherme de Sá et al. 1 ed. Rio de Janeiro: Contraponto Ed PUC-Rio, 2014. p. 4.


25 Ibid., p. 40.
26 Ibid., p. 38.
27 Ibid., p. 38.
21

gentes dessa época já tivesse disposições jurídicas sobre paz e guerra, ele permanecia
rudimentar, pois não era capaz de alcançar uma circunscrição da guerra por meio do
reconhecimento de outros impérios como um inimigo, o que conduzia a uma guerra de
aniquilação. Faltava, então, “a concepção de uma ordem comum, que abrangesse toda a Terra”
28
.
Foi somente quando a Terra passou a ser vista globalmente, com os descobrimentos a
partir do século XV, que nasceu o primeiro nomos da Terra. Antes de abordar essa primeira
ordem global, é importante traçar, aqui, a definição que Schmitt dá a nomos:
O nomos é, portanto, a forma imediata na qual a ordem política e social de um povo
se torna espacialmente visível, a primeira medição e divisão das pastagens, ou seja, a
tomada de terra e a ordem concreta que nela reside e dela decorre. (...) Nomos é a
medida que parte o chão e o solo da Terra e os localiza em uma ordenação
determinada: é também a forma, assim adquirida, da ordem política, social e religiosa.
Medida, ordenação e forma configuram aqui uma ordem espacial concreta.29
Segundo Schmitt, esse nomos da Terra que surgiu marcava o moderno direito das
gentes europeu, que “consistia em uma determinada relação entre a ordem espacial da terra
firme e a ordem espacial do mar livre, e foi, durante quatrocentos anos, portador de um direito
das gentes eurocêntrico, o jus publicum europæum” 30. Essa ordem que surgia tinha por núcleo
o Estado territorial, e por princípio a igualdade de Direitos entre esses Estados europeus. Com
o surgimento de uma visão global da Terra, cientificamente mensurável, surgiu um problema
novo, que consistia em conformar uma ordem espacial global ao direito das gentes.31
Diante desse impasse, surgiram as primeiras linhas globais que passaram a dividir a
Terra. Essas linhas, que foram a primeira tentativa de delimitar o espaço global da Terra, não
eram somente divisoras no aspecto geométrico da superfície, mas também demarcavam os
conteúdos da ordem espacial da Terra. Essa ordem espacial, desde o século XVI até o século
XX, estava centrada na Europa: “na época, europeu designava o status normal que reivindicava
fornecer a norma para a parte não europeia da Terra. O termo civilização equiparava-se a
civilização europeia”32.
Cabe destacar, aqui, as amity lines (linhas de amizade), que marcavam a divisão entre
a Europa e o Novo Mundo. Para além dessas linhas, terminava o direito público europeu, e,
com ele, a circunscrição das guerras trazida pelo Direito das gentes europeu. Se no direito
público europeu os Estados se reconheciam como igualmente soberanos, inseridos em uma

28 Ibid., p. 53.
29 Ibid., p. 69.
30 Ibid., p. 46.
31 Ibid., p. 87.
32 Ibid., p. 87.
22

ordem comum, para além das linhas de amizade o direito que vale é somente aquele dos mais
fortes.33
O direito das gentes europeu, que caracterizou o nomos da Terra por quatro séculos,
trouxe uma importante mudança em relação ao conceito de guerra. Como os Estados europeus
se reconhecem como iguais, porquanto são soberanos, a guerra deixa de ser uma guerra de
aniquilação contra um criminoso, e passa a ser uma guerra contra o justo inimigo. Isto é, há
uma racionalização e uma humanização da guerra no âmbito do solo europeu, porque “a ambas
as partes beligerantes cabe o mesmo caráter estatal com igual direito” 34. É justamente porque
as partes se reconhecem como Estados soberanos que é possível diferenciar o inimigo do
criminoso. Isso demonstra como “o direito das gentes europeu conseguiu a circunscrição da
guerra com a ajuda do conceito de Estado” 35.
Schmitt dedica boa parte de sua obra à circunscrição da guerra, que ele aponta como
sendo a essência do direito das gentes europeu. Para Schmitt, essa forma de circunscrever a
guerra é a mais elevada forma de ordem, uma proteção contra a aniquilação mútua. Assim, o
êxito do jus publicum europæum foi em circunscrever a guerra, e não em eliminá-la.36
O momento que interessa ao presente trabalho, na análise do contexto de declínio do
liberalismo clássico, é o período final desse nomos da terra do direito público europeu, no
começo do século XX. Schmitt passa a analisar, em sua obra, a dissolução desse nomos, sob
um contexto em que o Direito público europeu deu lugar a um Direito das superpotências
mundiais. Com a dissolução do antigo nomos da Terra, o liberalismo centrado no Direito
Europeu via-se diante de sua grande crise.
Como aponta Schmitt, já no final do século XIX, a ciência do direito europeu
inclinava-se a considerar as colônias como território estatal. Essa alteração modificava a
estrutura de todo o direito público europeu, que era centrada justamente na distinção entre o
solo europeu e o solo não europeu.37 Nesse sentido, Schmitt afirma que as próprias potências
europeias “não somente haviam esquecido os pressupostos espaciais de seu próprio direito das
gentes, mas também haviam perdido todo o instinto político, toda a energia comum para
assegurar uma estrutura espacial própria e circunscrever a guerra”38.

33 Ibid., p. 95.
34 Ibid., p. 151.
35 Ibid., p. 151.
36 Ibid., p. 199.
37 Ibid., p. 237.
38 Ibid., p. 241.
23

Segundo Schmitt, “a primeira grande sombra”39 que havia caído sobre o jus publicum
europæum vinha do Ocidente. Tratava-se do poder ascendente dos Estados Unidos, em um
misto de isolamento em relação à linha de separação com a Europa, de um lado, e uma
“intervenção universalista e humanitária em escala mundial”40, de outro.
Assim como a antiga distinção entre povos civilizados, meio civilizados e selvagens,
as relações espaciais em escala continental e a distinção entre o status do solo da metrópole e
da colônia também se tornaram juridicamente irrelevantes.41 Surgia uma concepção de
universalismo global, à qual correspondia uma realidade no âmbito da economia, distinta do
Estado. Ou seja, “um comércio mundial e um mercado mundial livres, com livre circulação de
ouro, capital e trabalho”42. Nesse sentido, como foi sintetizado na própria obra de Schmitt,
“acima, abaixo e ao lado das fronteiras políticas dos Estados, traçadas por um direito das gentes
de aparência puramente interestatal e político, estendia-se o raio de ação de uma economia livre,
ou seja, não estatal, uma economia mundial” 43.
Essa passagem elucida a transição do liberalismo europeu, cujas bases erigiam-se
sobre relações entre Estados territorialmente definidos, que se reconheciam enquanto soberanos
e iguais, para a ascensão de uma economia mundial, destituída de espaço; uma economia não
territorial e não estatal. Essa mudança é perceptível quando Schmitt aborda a espécie de
participação que os Estados Unidos estabeleceram com a Liga de Genebra, que incluía um misto
de isolamento e intervenção.
Para Schmitt, a postura norte-americana era indicativa da razão pela qual a Liga de
Genebra não poderia representar uma nova ordem mundial, pela ausência das duas potências
territoriais modernas, representadas pela União Soviética e Estados Unidos.44 Nesse ponto,
Schmitt destaca que os Estados Unidos permaneciam formalmente ausentes da Liga de
Genebra, embora fizessem-se presentes de modo indireto, em uma “mistura de ausência oficial
e presença efetiva que caracterizava a relação entre os Estados Unidos, de um lado, e a Liga de
Genebra e a Europa, de outro”45. Essa mistura é de grande importância na análise aqui
pretendida, e “a chave para compreendê-la é a separação entre política e economia, defendida
pelos Estados Unidos e reconhecida pela Europa”46. Essa separação parece corresponder à regra

39 Ibid., p. 244.
40 Ibid., p. 244.
41 Ibid., p. 252.
42 Ibid., p. 252.
43 Ibid., p. 253.
44 Ibid., p. 263.
45 Ibid., p. 270.
46 Ibid., p. 274.
24

segundo a qual deve-se ter “o máximo possível de comércio e o mínimo possível de política”47.
Assim se marcava um método de exercício de influência dos Estados Unidos, “cuja
característica mais significativa era invocar o comércio livre (ou seja, livre de Estado) e o
mercado igualmente livre como padrão constitucional do direito das gentes”48.
Embora a antiga ordem mundial do Direito europeu já tivesse uma constituição
econômica reconhecida, criando um espaço econômico comum,49 tratava-se de uma
combinação entre economia livre e soberania estatal, na medida em que “a comunidade de um
liberum comercium internacional se escondia atrás da fachada dos Estados soberanos
territorialmente delimitados”50. Já no momento de passagem para a dissolução do nomos da
Terra, passou a haver um “movimento geral em direção à liberdade”51, que representou uma
“mobilidade total e intensiva, uma deslocalização geral”52, fazendo com que o dualismo entre
o direito interestatal e político e o direito econômico internacional passasse despercebido.
Ao se ausentarem de forma aparente da liga de Genebra, os Estados Unidos
asseguravam uma presença que não era política, mas econômica, embora sua participação
estivesse “pronta para o exercício do controle político, se necessário”53. Não foi por acaso,
então, que o poder econômico dos Estados Unidos no pós-guerra converteu-se imediatamente
em poder político, por mais que trouxesse, externamente, a noção de que se deveria reduzir a
política o tanto quanto fosse possível, em prol da economia. Ao tratar desse isolamento dos
Estados Unidos em relação à Europa, Schmitt esclarece que essa linha de isolamento norte-
americana não foi capaz de criar um novo nomos da Terra, embora estivesse inserida na
dissolução do nomos do direito público europeu.
Como trazido por Rüdiger Voigt na apresentação da edição brasileira da obra de
Schmitt, muito embora o fim da Primeira Guerra tenha confirmado o fim do velho nomos da
Terra, foi somente com a entrada dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial em 1941 que
o século norte-americano se aproximou de um dos seus ápices.54 Naquele momento, a Europa
já não ocupava o centro da ordem global, e os Estados Unidos tinham saído da Segunda Guerra
como os grandes vitoriosos. O antigo nomos da Terra já estava dissolvido, mas ainda não havia,
à época, um novo nomos que o houvesse substituído.
O contexto era de disputa. Resta compreender como essas disputas se deram no cenário
global desde a dissolução do nomos da Terra, e quais atores merecem o destaque na busca pela

47 Ibid., p. 274.
48 Ibid., p. 274.
49 Ibid., p. 211.
50 Ibid., p. 253.
51 Ibid., p. 255.
52 Ibid., p. 255.
53 Ibid., p. 275.
54 Ibid., p. 26.
25

instituição uma nova ordem mundial. Se um rápido exame da atualidade já indica a ordem que
se consagrou como grande vencedora, isso não torna menos importante o estudo do que foi
deixado para trás. É necessário, então, que se exponha uma versão pouco contada da história.

1.2 O ESPÍRITO DE FILADÉLFIA NA DISPUTA POR UMA NOVA ORDEM

Por mais que as propagandas tenham feito passar por natural o curso da sociedade
rumo à globalização econômica, apagando discussões que caberiam a toda a humanidade, essa
naturalização, na verdade, encobre a lembrança das lições sociais extraídas das guerras.55
Seguindo essa advertência de Alain Supiot, faz-se necessário analisar as tensões que vieram na
sequência da dissolução do antigo nomos da terra, mostrando como havia uma ordem mundial
em disputa, cujos rumos não foram decididos por caminhos naturais, como se possa fazer
parecer.
A crise do liberalismo, que se estendeu entre 1860 e 1930, trouxe à tona duas respostas
diferentes entre aqueles apegados ao liberalismo clássico.56 Em ordem cronológica, como
apontam Dardot e Laval, surgiram as figuras do novo liberalismo e do neoliberalismo. Desde
já, é perceptível pela semelhança na nomenclatura que “trata-se nos dois casos de responder a
uma crise do modo de governo liberal”.57 Nos dois casos, buscava-se fazer frente à ameaça de
fim do capitalismo que aparecera após a Primeira Guerra Mundial e que aparecia sob a forma
dos totalitarismos crescentes na Europa. No entanto, por mais singela que possa parecer a
distinção no nome de cada corrente, essa diferença, na verdade, traduz uma oposição nem
sempre percebida de forma imediata.
O novo liberalismo teve em John Keynes sua expressão tardia das mais elaboradas. O
britânico escreveu, em 1926, um ensaio intitulado O fim do laissez faire, em que resgata as
origens do liberalismo, abordando suas principais ideias, o contexto que lhe deu notoriedade,
e, ao fim, as críticas ao que ele entende como o dogma do laissez-faire. Nesse ponto, cabe
transcrever, aqui, o seguinte trecho de seu ensaio:
Devemos esclarecer desde o início os princípios metafísicos ou gerais sobre os quais
o laissez-faire fundamentou-se de tempos em tempos. Não é verdade que os
indivíduos possuam uma liberdade natural prescritiva em suas atividades
econômicas. (...) O mundo não é governado de cima de modo que os interesses
particulares e sociais sempre coincidam. Não é administrado aqui embaixo para que
esses interesses coincidam. Não é uma dedução correta dos princípios da economia

55 SUPIOT, Alain. O espírito de Filadélfia: a justiça social diante do mercado total. Tradução: Tânia do Valle
Tschiedel, Porto Alegre: Sulina, 2014. p. 9.
56 DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. Tradução:

Mariana Echalar. 1 ed. São Paulo: Boitempo, 2016. p. 68.


57 Ibid., p. 68.
26

que o interesse próprio esclarecido sempre opere a favor do interesse público.


Também não é verdade que o interesse próprio seja, de modo geral, esclarecido; mais
frequentemente, indivíduos agindo separadamente para promover seus próprios fins
são muito ignorantes ou muito fracos para atingir até a eles. A experiência não mostra
que indivíduos, quando fazem parte de uma unidade social, são sempre menos
esclarecidos do que quando agem separadamente.58
Muito embora Keynes tenha sido duramente criticado pelos neoliberais, deve-se ter
em mente que ele partilhava com eles uma mesma intenção de salvar, o quanto fosse possível,
o sistema capitalista de um modelo liberal que começava a enfraquecer.59 Contudo, como se
verá adiante, as diferenças se agigantaram frente às semelhanças entre as duas vertentes; e o
keynesianismo, juntamente com as políticas a ele vinculadas, passaram a ser o principal inimigo
dos neoliberais – até hoje.
Pela via do novo liberalismo, Keynes reivindicava para si a criação de um novo tipo
de liberalismo, que, contrariamente ao que seria proposto mais tarde pelos neoliberais, era
favorável à intervenção política, em uma conjugação do radicalismo inglês com o socialismo,
porém voltado para reformar o capitalismo. A proposta desse novo liberalismo consistia em
superar o dogma do laissez-faire, estipulando as agendas do Estado que deveriam “pôr em
questão, na prática, a confiança que se depositou até então nos mecanismos autorreguladores
do mercado e a fé na justiça dos contratos entre indivíduos supostos iguais”60. Ou seja, para
realizar os ideais do liberalismo e organizar o capitalismo, seria necessário defender meios
aparentemente contrários a ele, como por meio de leis trabalhistas, tributação progressiva e
auxílios sociais.
O pensamento de Keynes ganhou destaque na medida em que, com a Grande
Depressão de 29, o liberalismo se viu ainda mais ameaçado, chegando ao ponto que muitos
definem como o grande marco da crise do modelo liberal. O desemprego, a pobreza, a quebra
de empresas e a recessão nas economias mundiais colocou em evidência a descrença no modelo
autorregulador do laissez faire. Os Estados Unidos, palco dessa grande crise, viram uma reação
política nos anos subsequentes, com a necessidade de imposição de regulações, sobretudo sobre
o sistema financeiro. A política do New Deal, nesse sentido, inseriu-se em um novo
planejamento da política estadunidense. Implantado pelo então presidente Franklin Roosevelt,
o New Deal previa medidas sob forte influência do keynesianismo, tendo por objetivo criar
condições para a redução das taxas de desemprego, articulando uma atuação estatal positiva.

58 KEYNES, John Maynard. The end of laissez faire. Panarchy. Disponível em:
https://www.panarchy.org/keynes/laissezfaire.1926.html. Acesso em 10 mai. 2019. (Tradução nossa).
59 DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. Tradução:

Mariana Echalar. 1 ed. São Paulo: Boitempo, 2016. p. 58.


60 Ibid., p. 69.
27

Por outro lado, o neoliberalismo, que surgiu mais tarde, apresenta divergências.
Quanto à concepção segundo a qual as agendas do Estado devem ultrapassar o dogma do
laissez-faire, essa corrente está de acordo com a primeira, do novo liberalismo. No entanto, as
duas matrizes do neoliberalismo – o ordoliberalismo e o neoliberalismo austro-americano – se
opunham ao estado de bem-estar social, rejeitando qualquer forma de dirigismo econômico,
planificação ou intervencionismo estatal.
Em Nascimento da Biopolítica, Foucault aborda os caminhos do neoliberalismo
alemão e americano sob pontos de implantação diferentes. A implantação do neoliberalismo
alemão se liga à “República de Weimar, à crise de 1929, ao desenvolvimento do nazismo, à
crítica do nazismo e, por fim, à reconstrução do pós-guerra”61, ao passo que o neoliberalismo
americano está ligado à “política do New Deal, à crítica da política de Roosevelt”62 que se
desenvolve, sobretudo no período pós guerra, em uma crítica ao intervencionismo federal e aos
programas de assistência.
Apesar dessas distinções no curso histórico que contextualizou essas matrizes do
neoliberalismo, Foucault aponta os muitos aspectos comuns às duas correntes. Ele assinalada
que tanto a escola neoliberal alemã quanto a escola de Chicago tiveram a mesma base para
analisar os problemas do liberalismo:
para se evitar a redução de liberdade provocada pela passagem ao socialismo, ao
fascismo, ao nacional-socialismo, estabeleceram-se mecanismos de intervenção
econômica. Ora, será que estes mecanismos de intervenção econômica não
introduzem de forma sub-reptícia tipos de intervenção, não introduzem modos de ação
que são pelo menos tão comprometedores para a liberdade quanto as formas visíveis
e manifestas que se quer evitar?63
Ou seja, como aduz Foucault, o centro dos debates promovidos pelas escolas
neoliberais é o combate às políticas keynesianas e às políticas de bem-estar social crescentes
no período pós-guerras. Assim, em torno das políticas intervencionistas que se deram entre as
décadas de 30 e 60, antes e após a guerra, provocou-se uma crise do liberalismo, e, segundo
Foucault, “é esta crise do liberalismo que se manifesta em algumas reavaliações,
reconsiderações, em alguns projetos na arte de governar, formulados na Alemanha antes e logo
após a guerra, e atualmente na América”64.
Ao contrário da corrente do novo liberalismo, que era “mais consciente das relações
sociais e econômicas”, os neoliberais se opõem frontalmente a qualquer entrave ao jogo da

61 FOUCAULT, Michel. O nascimento da biopolítica. Tradução: Pedro Elói Duarte. Lisboa: Edições 70, 2010.
p. 110.
62 Ibid., p. 110.
63 Ibid., p. 99-100.
64 Ibid., p. 99-100.
28

concorrência. Não se trata, para eles, de limitar o mercado por meio de regulações, proteções
ao trabalho ou auxílios sociais, mas de “desenvolver e purificar o mercado concorrencial por
um enquadramento jurídico cuidadosamente ajustado”65. Assim, o neoliberalismo combina a
readequação da intervenção pública com uma ideia de mercado centrada na concorrência.
Na década de 30, iniciava a fundação intelectual da versão alemã do neoliberalismo.
Essa versão tomava a forma do ordoliberalismo, que só se impôs economicamente após a
Segunda Guerra mundial na República Federal da Alemanha.66 Buscando encontrar as origens
do ordoliberalismo, Foucault retoma o ano de 1948 para relembrar as exigências que deveriam
comandar as políticas econômicas na Europa no pós-guerra. Em primeiro lugar, havia a
exigência de uma reconstrução, ou seja, da “reconversão de uma economia de guerra numa
economia de paz”, e da “reconstituição de um potencial econômico destruído”67. Em segundo,
a exigência da planificação como um elemento central para essa reconstrução. Por fim, em
terceiro, a exigência era por “objectivos sociais que foram considerados politicamente
indispensáveis para evitar que recomeçasse o que acontecera, a saber, o fascismo e o nazismo
na Europa”68.
Essas exigências, como aduz Foucault, implicavam uma política de intervenção
estatal, que ele reconhece como uma “plena política Keynesiana”69. Do mesmo modo,
Wolfgang Streeck, ao se debruçar sobre o capitalismo pós 1945, relembra que o capitalismo
não é um estado natural, “mas, sim, uma ordem social que, associada a determinado tempo,
necessita ser formada e legitimada”70. O autor relembra que o capitalismo, àquela época, estava
sob uma situação defensiva, e que ele só conseguiu “renovar sua licença social” 71 com essas
políticas keynesianas, que contribuíram para uma fórmula da paz após a Segunda Guerra. Essa
fórmula, segundo Streeck, foi mediada e supervisionada por um Estado intervencionista, que
“impunha disciplina ao mercado, planejava e distribuía, tendo também de garantir os
fundamentos para o negócio do novo capitalismo, sob pena de perder sua própria
legitimidade”72.
Como entender, então, que possa ter surgido um neoliberalismo que se opusesse às
práticas keynesianas nesse contexto? O contexto do ano de 1948 era o do pós-guerra em que a

65 DARDOT, Pierre; Laval, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. Tradução:
Mariana Echalar. 1 ed. São Paulo: Boitempo, 2016. p. 69.
66 Ibid., p. 101.
67 Ibid., p. 111.
68 Ibid., p. 112.
69 Ibid., p. 112.
70 STREECK, Wolfgang. O tempo comprado: a crise adiada do capitalismo democrático. Tradução: Marian

Toldy. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2018. p. 72.


71 Ibid., p. 72.
72 Ibid., p. 72.
29

Alemanha ainda não estava reconstituída, de modo que não era possível, àquela época,
“reivindicar uma legitimidade jurídica na medida em que não há aparelho, não há consenso,
não há vontade coletiva que se possa manifestar numa situação em que a Alemanha está, por
um lado, dividida e, por outro, ocupada”73. Como coloca Foucault: como assegurar a limitação
do Estado ao mesmo tempo em que se deve fazer existir um Estado? “Como torná-lo aceitável
a partir de uma liberdade econômica que vai assegurar sua limitação e, ao mesmo tempo,
permitir que exista?”74
A defesa do ordoliberalismo era no sentido de que se poderia criar o novo Estado
Alemão por meio das liberdades econômicas. O centro do pensamento ordoliberal está na ideia
de que a ordem da concorrência não é uma ordem natural, e por isso deve ser assegurada pela
criação de um “quadro institucional especificamente adaptado a uma economia de
concorrência”75.
Sem o intuito de analisar pormenorizadamente a corrente ordoliberal, destaca-se o que
Foucault chama de “golpes de força teóricos e analíticos”76 do ordoliberalismo. O
ordoliberalismo foi exitoso ao associar o protecionismo, o assistencialismo econômico, o
planismo e o keynesianismo com o nazismo, sob a ideia de que “o nazismo é revelador de algo
que é simplesmente o sistema relações necessárias que existe entre esses diferentes
elementos”77. Com essa articulação, os ordoliberais encontraram no nazismo, e de quebra, nas
políticas intervencionistas, um grande adversário. O ponto mais fundamental resultante dessa
análise ordoliberal é o de que, considerando que os efeitos do nazismo não podem ser atribuídos
à economia de mercado, mas sim a defeitos intrínsecos do Estado, há uma passagem da crítica,
que deixa de se direcionar à economia de mercado e passa a ser uma crítica ao próprio Estado:
“É preciso dizer: nada prova que a economia de mercado tenha defeitos, nada prova que tenha
uma deficiência intrínseca, visto que tudo o que se lhe atribui como defeito e como efeito da
sua deficiência deve ser atribuído ao Estado”78.
Como se pôde notar, esses movimentos de resposta à crise do liberalismo não
constituem uma continuidade no pensamento liberal ou uma simples reação frente a uma crise.
Buscando salvar o capitalismo da ameaça socialista que se acentuava após a Segunda Guerra,
os movimentos não resgataram o liberalismo clássico, mas trouxeram inovações e métodos

73 FOUCAULT, Michel. O nascimento da biopolítica. Tradução: Pedro Elói Duarte. Lisboa: Edições 70, 2010.
p. 114.
74 Ibid., p. 140.
75 DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. Tradução:

Mariana Echalar. 1 ed. São Paulo: Boitempo, 2016. p. 102.


76 FOUCAULT, Michel. O nascimento da biopolítica. Tradução: Pedro Elói Duarte. Lisboa: Edições 70, 2010.

p. 154.
77 Ibid., p. 148.
78 Ibid., p. 154.
30

próprios que os mantivesse em pé na disputa por uma nova ordem mundial. Assim, inserem-se
na busca por um novo nomos da Terra, para substituir aquele que havia sido dissolvido com o
fim do direito público europeu.
Se a articulação de diferentes doutrinas até aqui expostas – sobretudo as do
neoliberalismo – parece apresentar alguns dos sujeitos ativos dentro dessa disputa por uma nova
ordem, é fundamental dedicar as próximas páginas a uma doutrina, uma corrente – ou melhor,
a um Espírito – que muito se aproximou na busca por instituir uma nova ordem mundial e
trouxe os caminhos necessários para fazê-lo. Passa-se a estudar, então, aquilo que Alain Supiot
chamou de Espírito da Filadélfia.
Supiot, jurista francês e atualmente professor no Collège de France, dedicou sua obra
O Espírito de Filadélfia – A Justiça Social diante do Mercado Total precisamente ao estudo
das lições aprendidas no período do pós-guerra, e em como elas foram negligenciadas com o
avanço da globalização econômica. A obra de Supiot tem sua análise centralizada no que o
autor chama de Espírito de Filadélfia, inaugurado com a Declaração de Filadélfia, datada de 10
de maio de 1944, assim como também tem central importância o seu princípio norteador de
justiça social.
Contextualizando a proclamação da Declaração de Filadélfia, denominada Declaração
sobre os fins e os objetivos da Organização Internacional do Trabalho, o texto, que
posteriormente se tornou anexo à Constituição da OIT, remonta ao contexto da “pesada
experiência histórica” do ano de 194479. Naquele ano, a Segunda Guerra mundial ainda não
havia chegado a seu fim, Hiroshima ainda não havia sido bombardeada, e a amplitude do
holocausto ainda era pouco conhecida. No entanto, já se sabia que os Aliados sairiam vitoriosos
do grande conflito, e os autores da Declaração de Filadélfia queriam iniciar uma nova ordem
mundial a partir das lições “da Guerra dos Trinta Anos, que estraçalhou o mundo de 1914 a
1945”80.
A Declaração de Filadélfia se insere, no pós-guerra, na busca por uma nova ordem
internacional não mais baseada na força, mas sim no Direito e na justiça81. Como se buscou
demonstrar anteriormente, o laissez-faire não havia sido capaz de impedir a destruição que se
instaurou na Europa com uma grande crise e duas grandes guerras. Os ideais da Revolução
Francesa de liberdade, igualdade e fraternidade resultavam, até então, limitados à preocupação
com a esfera da liberdade, sem a busca por concretização dos ideais de igualdade e fraternidade.

79 SUPIOT, Alain. O espírito de Filadélfia: a justiça social diante do mercado total. Tradução: Tânia do Valle
Tschiedel, Porto Alegre: Sulina, 2014. p.10.
80 Ibid., p. 10.
81 Ibid., p. 9.
31

Esses direitos ligados à liberdade, também denominados “Direitos de primeira dimensão”,


consistem nos direitos civis e políticos, vinculados ao individualismo predominante nos séculos
XVIII e XIX.82
Era preciso, então, passar à concretização dos ideais de igualdade e fraternidade,
dentro do que se chama de “Direitos de segunda e terceira dimensão”. Segundo Wolkmer, o
contexto histórico dos direitos de segunda dimensão está no processo de industrialização e nos
impasses socioeconômicos dele decorrentes, que remontam ao final do século XIX e às
primeiras décadas do século XX.83 Esse período dos direitos de segunda dimensão se associa
ao nascimento do Estado do Bem-Estar Social, no contexto político do desenvolvimento das
correntes socialistas, anarquistas e reformistas. Já os direitos de terceira dimensão dizem
respeito aos direitos transindividuais e se contextualizam no período pós-guerras,
caracterizando-se por políticas de proteção ao meio ambiente, ao consumidor, construindo os
ideais de fraternidade. Wolkmer inclui, ainda, dentre os direitos de terceira dimensão, a
proteção aos direitos da mulher, da criança, dos idosos, do deficiente físico e mental, das
minorias.
Como o presente trabalho não se destina a analisar pormenorizadamente os Direitos
Humanos e suas dimensões, o que importa reconhecer, aqui, é que a Declaração de Filadélfia
buscou concretizar os ideais franceses para além da primeira dimensão, representada pela
liberdade. A necessidade de reconstrução da sociedade, pautada na busca pela paz com base
em um princípio de justiça social, indica uma busca pelos direitos ligados à igualdade e à
fraternidade. Assim, integrando os três ideais da Revolução Francesa para se buscar uma
reconstrução social pautada não mais na força, no mesmo contexto da Declaração de Filadélfia
estão também a criação da Organização das Nações Unidas, em 1945, e a adoção da Declaração
Universal dos Direitos do Homem, em 1948.
Seja pela experiência dos campos de concentração nazistas ou pelos campos de
trabalhos forçados da União Soviética, para o espírito que tomava corpo na Declaração de
Filadélfia, essas barbáries derivavam de um mesmo problema central que deveria ser
enfrentado. Essa visão à qual se opõe o espírito de Filadélfia é a do cientificismo, ou seja, aquela
que considera os homens cientificamente, seja como material humano, no caso do nazismo, ou
como capital humano, para a experiência comunista.84

82 WOLKMER, Antonio Carlos. Introdução aos fundamentos de uma teoria geral dos “novos” direitos. Revista
Jurídica UNICURITIBA. Curitiba, v. 2, n. 31, 2013. p. 127. Disponível em:
http://www.egov.ufsc.br/portal/sites/default/files/593-2009-1-pb.pdf. Acesso em 05 mai. 2019.
83 Ibid., p. 128.
84 SUPIOT, Alain. O espírito de Filadélfia: a justiça social diante do mercado total. Tradução: Tânia do Valle

Tschiedel, Porto Alegre: Sulina, 2014. p. 10.


32

Embora esse modo de enxergar os homens cientificamente já fizesse parte de um


tratamento dado aos homens primitivos nos territórios explorados antes do século XX, a
novidade é que, a partir da primeira metade do século XX, esse fenômeno se estendeu também
aos homens civilizados. Assim, a visão cientificista, que busca pautar o governo sob leis
imanentes que devem reger a sociedade, agora se estendia em sentido amplo, enquanto um
verdadeiro princípio geral de governo.
A crítica tecida por Supiot, e, mais amplamente, pelo Espírito de Filadélfia, dirige-se
às duas principais variações do cientificismo que prosperaram no século XX. De um lado, a
crítica ataca o cientificismo relacionado às leis da biologia, tomando a forma da eugenia e de
leis raciais; de outro, critica-se o cientificismo das leis econômicas, sob a forma da ditadura do
proletariado.85
Para Supiot, essas variações convergem no ponto em que alimentam uma certa
descrença no Direito, considerando as leis científicas como sendo as leis verdadeiras que
deveriam reger a sociedade. Sob essa lógica, então, o Direito passa a ser visto como um sistema
de leis aparentes, sem legitimidade própria. Diante dessa descrença, como aponta Supiot, as
consequências podem tanto incluir a pura e simples abolição da ordem jurídica, ou podem se
restringir à manutenção de uma mera aparência de legalidade, “sempre suscetível de ser
dissipada por um apelo às verdadeiras leis”86.
Como aduz o autor, “tanto sob o comunismo como sob o Terceiro Reich, o Estado
legal era sempre exposto à intervenção das prerrogativas do estado de exceção”87. A legalidade
socialista na União Soviética, por exemplo, não conferia um direito preciso aos cidadãos, pois,
na verdade, subordinava o Direito aos objetivos do regime socialista. O primeiro artigo do
Código Civil da União Soviética representa essa subordinação ao dispor que “a lei garante os
direitos dos cidadãos, com exceção dos casos em que sua realização esteja em contradição com
seus objetivos socioestatais”88. Ou seja, tal regime não pode ser considerado um regime de
Direito no sentido da Declaração Universal de 1948, porque ele opera da mesma forma que um
conjunto de regras prescritas aos pacientes de um hospital psiquiátrico: o regulamento de um
hospital é tão somente um compilado de regras que, em si, não geram direitos; elas podem ser
descartadas a qualquer momento por uma decisão arbitrária do médico.89
Supiot lembra, ainda, que a descrença no Direito também se verifica na doutrina
nazista. Segundo essa doutrina, o Estado nazista tem a finalidade de conservar a comunidade,

85 Ibid., p. 13.
86 Ibid., p. 15.
87 Ibid., p. 16.
88 Ibid., p. 16.
89 Ibid., p. 16.
33

formada por seres biológica e espiritualmente semelhantes.90 Ou seja, o Estado e o próprio


Direito eram vistos, para o nazismo, em caráter instrumental, expostos a prerrogativas
ilimitadas do estado de exceção. O dever do cidadão, no regime nazista, não era o de observar
as leis positivas, mas atender à vontade do Führer, “que exige de cada um objetivos a atingir,
mais do que regras a observar”91. A partir do momento em que o Direito contrariasse as
vontades do líder nazista, o sistema poderia ser posto de lado, pois não representava, em si, um
regime de garantias aos indivíduos.
Mais propriamente, o Direito poderia ser, então, suspenso. Foi o que ocorreu no regime
nazista, que operou sob o estado de exceção durante doze anos. Assim que tomou o poder, por
meio de um Decreto promulgado em 28 de fevereiro de 1933, Hitler suspendeu as garantias
individuais então vigentes na Constituição de Weimar.92 Como aponta o filósofo italiano
Giorgio Agamben, a experiência nazista é uma expressão do totalitarismo moderno, definido
pelo autor como “a instauração, por meio do estado de exceção, de uma guerra civil legal que
permite a eliminação física não só dos adversários políticos, mas também de categorias inteiras
de cidadãos que, por qualquer razão, pareçam não integráveis ao sistema político”93. Desse
modo, embora o Estado de Direito mantenha uma legalidade aparente, sem uma declaração
formal do Estado de exceção, é a própria suspensão do Direito que caracteriza essas
experiências totalitárias do século XX.
Ou seja, nos dois exemplos trazidos por Supiot, o Direito é visto não somente como
um sistema fraco ou modificável, mas, na verdade, como um direito suspenso. Não é visto como
uma finalidade em si, mas sempre subordinado a uma lei científica maior, sempre apto a ser
suspenso quando as determinações do regime assim dispuserem. Nesses moldes, então, o
Direito sujeita-se à vontade soberana, que, para Carl Schmitt94, se traduz na vontade daquele
que decide sobre o Estado de Exceção.95
Como aponta Supiot, essa fragilidade do Direito precisava ser ultrapassada, a fim de
instaurar não somente a liberdade, mas também a segurança entre os indivíduos para que fosse
selado um acordo de paz social no período do pós-guerra. Foi então que, em contraposição à
subordinação do Direito, a Declaração de Filadélfia buscou resgatar seu protagonismo, de

90 Ibid., p. 17.
91 Ibid., p. 17.
92 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução: Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 12.
93 Ibid., p. 13.
94 SCHMITT, Carl. Teologia política. Tradução: Elisete Antoniuk. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. p. 6.
95 De qualquer modo, importa destacar que não era isso que se tinha em mente à época da Declaração, porque a

crítica que se fazia aos regimes totalitários na Declaração de Filadélfia não era aquela desenvolvida por Agamben
décadas mais tarde. Entretanto, é evidente a crítica da Declaração de Filadélfia aos regimes totalitários e em sua
relação com o Direito, mesmo sem o aporte teórico do Estado de Exceção e da suspensão do Direito desenvolvida
por Giorgio Agamben.
34

forma a colocar novamente as forças a seu serviço, estabelecendo princípios comuns a toda
ordem jurídica.96 Era preciso desvencilhar o Direito dos objetivos maiores dos regimes
totalitários.
Observa-se, contudo, que embora a Declaração de Filadélfia se oponha aos regimes
totalitários e à forma pela qual eles fizeram uso do Direito, tal qual Agamben, há uma distinção
fundamental em relação ao pensamento do filósofo italiano. É que, ao contrário deste, a
Declaração de Filadélfia alimentava a ideia de que seria possível alcançar a justiça social por
meio do direito, devendo, para isso, colocar as forças a serviço dele.
Feitas essas digressões, retoma-se o contexto da Declaração da Filadélfia, que,
conjugada com o preâmbulo da carta constitutiva das Nações Unidas e com a Declaração
Universal dos Direitos do Homem, caracteriza o que Supiot chama de Espírito da Filadélfia.
Da leitura desses textos, o autor destaca cinco aspectos fundamentais que constituem esse
espírito.
Em primeiro lugar, refuta-se a ideia de que os princípios enunciados nessas
Declarações sejam advindos de uma divindade sagrada ou observados a partir de leis naturais.
Assim, afastando o cientificismo e o naturalismo, para o espírito de Filadélfia o homem não
desvenda os princípios fundamentais de uma ordem da natureza ou de um deus, mas os afirma,
sob um ato de sua própria fé. Há uma fé nos direitos fundamentais, que parte do próprio homem,
conforme trazido pela Carta constitutiva das Nações Unidas: “Nós, os povos das nações unidas,
decididos: (...) a reafirmar nossa fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no
valor da pessoa humana (...).”97
A segunda característica é que esse ato de fé é também um ato de razão, ou seja, a fé
nos direitos fundamentais se construiu a partir de uma traumática experiência de guerras que
“resultaram em atos bárbaros que ultrajam a consciência da humanidade”98. Pelas experiências
passadas, através do uso da razão, percebeu-se, então, que “só se pode estabelecer uma paz
duradoura com base na justiça social”.99 Nesse sentido, o Direito desempenha um papel
fundamental, pois é ele o instrumento que permite tirar lições dessas experiências. Assim, dado

96 SUPIOT, Alain. O espírito de Filadélfia: a justiça social diante do mercado total. Tradução: Tânia do Valle
Tschiedel. Porto Alegre: Sulina, 2014. p. 18.
97ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Carta das Nações Unidas, ONU, 1945. Disponível em:

https://www.cm-vfxira.pt/uploads/writer_file/document/14320/Carta_das_Na__es_Unidas.pdf. Acesso em 7 mai.


2019.
98ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal dos Direitos Humanos, ONU, 1948.

Disponível em: http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/atuacao-e-conteudos-de-apoio/legislacao/direitos-


humanos/declar_dir_homem.pdf. Acesso em 7 mai. 2019.
99 SUPIOT, Alain. O espírito de Filadélfia: a justiça social diante do mercado total. Tradução: Tânia do Valle

Tschiedel. Porto Alegre: Sulina, 2014. p.156.


35

seu caráter imprescindível, é essencial, portanto, que “os direitos do homem sejam protegidos
pelo império da lei”100.
Em terceiro, o espírito de Filadélfia reconhece o princípio da dignidade inerente a
todos os seres humanos, “quaisquer que sejam sua raça, sua crença ou seu sexo”101. Assim,
enquanto princípio que funda a ordem jurídica, a dignidade humana sustenta os demais direitos
e princípios fundamentais, não se admitindo, portanto, nenhuma transação a seu respeito. Esse
reconhecimento coloca o homem sob uma proteção que lhe assegura que ele não será utilizado
como instrumento para outros fins. Ou seja, a dignidade do homem é uma finalidade principal,
que não pode ser afastada na busca pela concretização de objetivos maiores. Como explica
Supiot a respeito desse princípio, “a dignidade do homem interdita que seu corpo e suas
necessidades físicas, mesmo que o façam participar da vida animal, sejam tratados como o dos
animais”102.
Por consequência, a quarta característica do espírito de Filadélfia diz respeito ao modo
sob o qual esse princípio da dignidade deverá ser observado. É fundamental que a dignidade
esteja ligada a outros dois princípios, que são o da liberdade e da segurança. Aqui, é central
reconhecer como o Espírito de Filadélfia inovou ao trazer o princípio da segurança para colocá-
lo ao lado do da liberdade. Até então, a liberdade formal nos moldes do liberalismo clássico era
suficiente para assegurar a garantia dos direitos individuais. No entanto, ao trazer a necessidade
não só de liberdade, mas de segurança aos indivíduos, o Espírito de Filadélfia traz condições
para que a liberdade possa ser exercida em seu aspecto material, e para que o princípio maior
da dignidade humana seja alcançado.
Assim, a segurança é essencial para a dignidade do homem, uma vez que está
relacionada aos direitos “econômicos, sociais e culturais indispensáveis à sua dignidade e ao
livre desenvolvimento de sua personalidade”103. Da mesma forma, os textos principais do
espírito de Filadélfia também associam a segurança à liberdade, pois para que os seres sejam
efetivamente livres, é preciso que gozem de uma segurança física e econômica que lhes
assegure condições mínimas, como “saúde e bem estar, inclusive alimentação, vestuário,

100 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal dos Direitos Humanos, ONU, 1948.
Disponível em: http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/atuacao-e-conteudos-de-apoio/legislacao/direitos-
humanos/declar_dir_homem.pdf. Acesso em 7 mai. 2019.
101 SUPIOT, Alain. O espírito de Filadélfia: a justiça social diante do mercado total. Tradução: Tânia do Valle

Tschiedel. Porto Alegre: Sulina, 2014. p. 156.


102 Ibid., p. 21.
103ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal dos Direitos Humanos, ONU, 1948.

Disponível em: http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/atuacao-e-conteudos-de-apoio/legislacao/direitos-


humanos/declar_dir_homem.pdf. Acesso em 7 mai. 2019.
36

habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso


de desemprego, doença invalidez, viuvez, velhice (...)”104.
Para Supiot, essa aliança entre liberdade e segurança ergue os quatro princípios
trazidos pela Declaração de Filadélfia, enunciados no capítulo “I” da Declaração: i) o respeito
ao trabalho, não mais visto como uma mercadoria; ii) a liberdade de expressão e de associação,
compreendendo as liberdades coletivas; iii) a solidariedade (a partir da compreensão de que a
pobreza, onde quer que ela exista, é um perigo para a prosperidade de todos); e iv) a democracia
social, que diz respeito à participação nas discussões livres e em decisões de caráter
democrático, visando a promover o bem comum. Com isso, a dignidade humana leva à recusa
dos sistemas que negam a liberdade em nome da segurança, assim como àqueles que desprezam
as necessidades de segurança em nome da liberdade.105
Por fim, o quinto elemento que caracteriza o espírito de Filadélfia é que essa ligação
entre liberdade e segurança deve fazer com que a ordem econômica esteja subordinada a um
princípio de justiça social. Nesse ponto, embora a constituição da OIT já houvesse dito, em
1919, que a paz só pode se estabelecer se houver justiça social, a declaração de Filadélfia foi
duplamente inovadora a esse respeito.
Inicialmente, a Declaração trouxe, pela primeira vez, uma definição global de justiça
social, que pode ser facilmente compreendida pela leitura do seu art. II, “a”, segundo o qual
“todos os seres humanos, quaisquer que sejam sua raça, sua crença e seu sexo, têm o direito de
perseguir seu progresso material e seu desenvolvimento espiritual na liberdade e na dignidade,
na segurança econômica e com chances iguais”106.
Em segundo, a outra novidade inaugurada pela Declaração de Filadélfia é que, além
de trazer uma clara definição de justiça social, ela estabeleceu que a realização da justiça social
deveria ser um objetivo central de qualquer política, seja nacional ou internacional. Em outras
palavras, isso significa que a Declaração de Filadélfia colocou os programas de ação
governamental a serem sempre apreciados sob o ponto de vista da justiça social, de modo que,
“na Declaração de Filadélfia, a economia e a finança são os meios a serviço dos homens”107.
Esse último aspecto que caracteriza o espírito de Filadélfia é também o fio condutor
de todos os ideais que ele representa, articulando, com base no protagonismo da justiça social,
todos os propósitos antes apresentados. O ideal de justiça social é o que de mais significativo

104 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal dos Direitos Humanos, ONU, 1948.
Disponível em: http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/atuacao-e-conteudos-de-apoio/legislacao/direitos-
humanos/declar_dir_homem.pdf. Acesso em 7 mai. 2019.
105 SUPIOT, Alain. O espírito de Filadélfia: a justiça social diante do mercado total. Tradução: Tânia do Valle

Tschiedel. Porto Alegre: Sulina, 2014. p. 22.


106 Ibid., p. 156.
107 Ibid., p. 23.
37

se extrai do espírito de Filadélfia: trata-se de como esse movimento buscou subordinar a força
ao Direito, também colocando a economia a serviço dos homens e da concretização de sua
dignidade.
Enquanto a primeira parte do livro de Supiot traça os elementos principais da justiça
social e do Espírito de Filadélfia, em seguida, na segunda parte, ele analisa o processo que
inverteu essa lógica. Assim, no capítulo “II” da obra, intitulado “Mercado Total”, o autor busca
mostrar a ruptura, a partir de um espírito oposto ao que havia apresentado na primeira parte,
que passou a colocar os homens e o direito a serviço da economia, substituindo o objetivo de
justiça social pela livre circulação de capitais e mercadorias.
Buscou-se esclarecer, dentro do contexto de disputas por uma nova ordem mundial, as
características centrais do chamado Espírito de Filadélfia e o papel central da justiça social na
condução de políticas nacionais e internacionais para a instituição de um novo nomos da Terra.
Se o Espírito de Filadélfia trazia uma fórmula de paz, erguida pelo princípio de justiça social,
que parecia ser promissora para os caminhos de uma nova ordem mundial em meio a um mundo
em disputa, foi necessário aplicar-lhe uma forte dose de antídoto para que ela fosse, então,
relegada ao esquecimento.

1.3 O ANTÍDOTO PARA A JUSTIÇA SOCIAL: A FORMAÇÃO DA SOCIEDADE MONT-


PÈLERIN

Uma das importantes lições ensinadas pela História é que o seu curso não segue uma
linearidade, de modo que os diferentes rumos que seguem as sociedades não estão ligados por
uma linha evolutiva. As experiências passadas e as questões que ainda preocupam a atualidade
bem demonstram que as conquistas sociais podem retroceder a qualquer instante, e que mesmo
as construções fundadas na paz social podem ser desfeitas. Como se buscará demonstrar aqui,
foi o que ocorreu com o Espírito de Filadélfia, contra o qual se opuseram frontalmente forças
teóricas e políticas.
Foi em uma montanha na Suíça, com vistas para o Lago de Genebra, que se formulou
o antídoto perfeito para deter o Estado de bem-estar social da Europa e as políticas do New Deal
nos Estados Unidos. Em outras palavras, erguia-se um combate contra a nova ordem proposta
pelo Espírito de Filadélfia. Foi assim que, no ano de 1947, figuras como Friedrich Hayek,
Milton Friedman e Ludwig Von Mises reuniram-se em uma conferência para formar a
Sociedade Mont-Pèlerin.
A discussão sobre o marco de formação do neoliberalismo se estende entre muitos
autores e não há, quanto a isso, um consenso. Dardot e Laval apontam como marco inicial o
38

Colóquio Walter Lippmann, que se deu em Paris em 1938 e empregou pela primeira vez o
termo neoliberalismo. Também há quem atribua como início do neoliberalismo o lançamento
do livro O caminho da Servidão, de Hayek, em 1944, que criticava as variadas formas de
coletivismo, incluindo a social-democracia. Dardot e Laval entendem que o Colóquio Walter
Lippmann e a Sociedade Mont-Pèlerin estão correlacionados, pois, segundo os autores, “a
Sociedade Mont-Pèlerin aparece como um prolongamento da iniciativa de 1938”108. No
entanto, no Colóquio de 1938 ainda não era clara a distinção entre o novo liberalismo e o
neoliberalismo.
A escolha deste trabalho pela abordagem centralizada na Sociedade Mont-Pèlerin não
implica reconhecê-la como linha de largada do neoliberalismo, ignorando os outros marcos a
ela antecedentes. Na verdade, o que se busca, ao estudar essa Sociedade, é contextualizar a sua
formação e compreender como esse grupo foi a maior representação de um antídoto para a
ordem mundial representada pela Declaração de Filadélfia, datada de poucos anos antes.
Como adverte Gabriel Onofre em sua tese O papel dos intelectuais e think tanks na
propagação do liberalismo econômico na segunda metade do século XX, ao contrário do
cinema ou da literatura, os estudos históricos, em alguns casos, não podem começar pelo final.
Para isso, o autor procura estudar o neoliberalismo retrocedendo à sua formação, que se deu
“por uma história pouco linear e de forma alguma evolucionista ou monolítica” 109. Seguindo
essa ideia, passa-se a analisar brevemente o contexto prévio à formação da Sociedade Mont-
Pèlerin.
Para isso, antes de se direcionar à paisagem suíça de 1947, que recebia dezenas de
intelectuais preocupados com o destino do liberalismo, é preciso entender o que acontecera
anos antes, em 1938, na cidade de Paris. Nessa ocasião, foi por iniciativa do filósofo francês
Louis Rougier que se reuniram vinte e seis intelectuais em um evento batizado de Colóquio
Walter Lippmann. Como destaca Onofre, o colóquio pode ser considerado um marco para o
pensamento liberal, “pois, pela primeira vez, diversos estudiosos não apenas discutiram a crise
que o liberalismo enfrentava, mas também debateram a necessidade de sua refundação”.110 O
colóquio tinha o claro objetivo de discutir a crise do liberalismo, que se estendia até a década
de 30, e de formular novas agendas para um novo liberalismo. Buscava-se estabelecer, com o

108 DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal.
Tradução: Mariana Echalar. 1 ed. São Paulo: Boitempo, 2016. p.72.
109 ONOFRE, Gabriel da Fonseca. O papel dos intelectuais e think tanks na propagação do liberalismo

econômico na segunda metade do século XX. 2018. Tese (doutorado) – Universidade Federal Fluminense,
Niterói, 2018. p. 45.
110 Ibid., p. 50.
39

Colóquio, alguma espécie de rede internacional dedicada a estudar e propagar as ideias desse
novo liberalismo.111
Foi no Colóquio Walter Lippmann que o termo neoliberalismo passou a ser utilizado
com frequência entre os pensadores do campo liberal. Embora os participantes do Colóquio
divergissem em várias questões, o ponto central em que convergiam estava na crítica que teciam
às ameaças totalitárias que surgiam àquele tempo, bem como no temor de uma nova guerra.
Nesse sentido, Onofre afirma que havia duas grandes diretrizes do Colóquio: “os debates sobre
as ameaças fascista e comunista às instituições liberal-democráticas e a discussão sobre a
necessidade de revisão do liberalismo”112.
Embora tivesse diretrizes gerais, o Colóquio esteve marcado por grandes divergências
entre correntes intelectuais, destacando-se aquela entre o movimento que buscava reformular
as bases do liberalismo (representado pelo ordoliberalismo alemão) e aquele que rejeitava
críticas radicais ao laissez-faire (na figura do neoliberalismo austríaco). Isso mostra que não se
tratava de um encontro uníssono ou homogêneo, o que ajuda na compreensão de que “o
fenômeno do neoliberalismo, desde suas origens, é multiforme, plural e, até mesmo,
contraditório”113.
Ao final do Colóquio, o primeiro grupo – aquele que via a necessidade de reformular
as bases do liberalismo – saiu fortalecido, o que resultou na elaboração de um manifesto, que
reconhecia a necessidade de “renovar o capitalismo, afastando-os da versão radical pró-
mercado, assumida na segunda metade do século XIX”114. Onofre destaca que dos vinte e seis
participantes do Colóquio Walter Lippmann, quinze estariam no encontro promovido por
Hayek anos mais tarde - que mostraria outra hegemonia, dessa vez do grupo defensor de um
liberalismo mais radical.
Esses encontros entre liberais foram interrompidos pela Segunda Guerra Mundial, que
ameaçou e perseguiu muitos dos intelectuais presentes no Colóquio, fazendo com que muitos
tivessem de deixar seu país. Passada a guerra, eles voltaram a se organizar em torno da figura
de Friedrich Hayek, e nesse ponto se desenham os primeiros passos para a formação da
Sociedade que mais interessa a este trabalho.
Hayek, o austríaco que foi o grande organizador da formação da Sociedade Mont-
Pèlerin, já havia escrito importantes trabalhos na década de 30, mas o marco de sua grande
influência deu-se com o lançamento de seu livro “O Caminho da Servidão”, em 1944. A tese

111 Ibid., p. 65.


112 Ibid., p. 67.
113 Ibid., p. 72.
114 Ibid., p. 73.
40

central do livro é a de que todas as formas de coletivismo, seja o nazismo ou o socialismo,


levam à supressão das liberdades. Assim, para Hayek, a intervenção estatal na economia está
relacionada diretamente com as formas de totalitarismo. O livro despertou reações apaixonadas
internacionalmente, contribuindo para a popularização das ideias de Hayek.115 Frise-se, ainda,
que a popularidade não se deu somente entre intelectuais, mas principalmente entre empresários
liberais interessados em combater as intervenções do Estado na reconstrução do pós-guerra.
Foi nesse contexto que em 1945, após uma conferência em Zurique, Hayek foi
convidado por banqueiros e industriais suíços para um jantar. Como aponta Onofre, foi nesse
momento em que nasceu o projeto da Sociedade Mont-Pèlerin.116 Com a atenção principal
voltada para combater o coletivismo, durante essa viagem Hayek começou a articular mais
adeptos ao liberalismo, em diversos países, para que construíssem uma frente que agisse
conjuntamente contra as principais ameaças ao liberalismo que se apresentavam à época.
Embora o contexto mundial do pós-guerra tenha sido marcado pelo início da guerra
fria, com a polarização de dois grandes blocos, a tensão entre o capitalismo e o socialismo não
era a única vigente àquele momento. Como se buscou demonstrar até aqui, a tensão interna ao
próprio bloco capitalista marcou divergências profundas, e a formação da Sociedade Mont-
Pèlerin insere-se na disputa por uma nova ordem mundial, em contraposição à outra corrente
também capitalista, representada pelas ideias keynesianas e pelo Espírito de Filadélfia.
Se desde a década de 30 os defensores do liberalismo estavam recuados em razão do
aumento do papel dos Estados no pós-guerra, a iniciativa de Hayek constituía uma resposta
frente a esse intervencionismo, em defesa do liberalismo econômico. Foram chamados
aproximadamente cem estudiosos, incluindo economistas, sociólogos, historiadores, jornalistas
e filósofos. Hayek, preocupado com possíveis desavenças entre visões distintas do liberalismo
clássico, preferiu não estabelecer uma definição muito precisa sobre aquilo que estava
propondo.117
Após atravessar dificuldades não somente financeiras, mas políticas, dado o contexto
social dos países europeus no pós-guerra, tudo estava pronto para o primeiro encontro da
Sociedade Mont-Pèlerin:
O navio Queen Elizabeth partia da cidade de Nova Iorque levando os doze
participantes americanos. Da Alemanha, França, Grã-Bretanha e outros países
europeus seguiam mais trinta indivíduos. Todos se dirigiam aos Alpes suíços com um
mesmo sentimento: o de que cumpriam uma missão. Juntos, se consideravam
pregadores de um novo mundo. Convencidos da superioridade do mercado,

115 Ibid., p. 93.


116 Ibid., p. 106.
117 Ibid., p. 149.
41

desejavam-se expurgadores dos novos males da modernidade: o socialismo e o


capitalismo de bem-estar-social.118
Nos primeiros dias de abril de 1947, trinta e nove homens se reuniam nos Alpes Suíços
para discutir os rumos econômicos e políticos após a Segunda Guerra mundial.119 A escolha
pelo país para sediar o encontro não foi casual, considerando que o financiamento das atividades
do grupo contou com o apoio da elite econômica suíça. Nas falas que abriram aquele encontro,
em um luxuoso hotel suíço, percebia-se qual era o sentimento predominante: o de que “um
grande fardo pesava sobre o ombro daqueles homens. Crentes na decadência da civilização
ocidental, se acreditavam profetas de uma nova ordem”120.
Para se alcançar os objetivos de estruturar uma nova ordem, Hayek e seus discípulos
enfatizavam a necessidade de criar uma organização internacional capaz de produzir e
disseminar as ideias para solucionar essa crise da civilização ocidental. Novamente, por mais
que houvesse grandes ideias comuns, essa organização, tal qual aquela do Colóquio Walter
Lippmann, não era homogênea. É que havia, pelo menos, três grupos com propostas
divergentes: o dos defensores radicais do laissez-faire, representado por Ludwig von Mises;
aqueles que defendiam uma visão crítica ao laissez-faire, mas aproximados dos ensinamentos
da escola austro-americana, representados por Hayek e Milton Friedman; e, por fim, os que
defendiam uma economia social de mercado, da escola ordoliberal alemã.121
Essas divergências mostravam os desafios para se formar uma organização coesa,
sobretudo quando foi levantada a necessidade de elaborar uma carta de princípios e objetivos
da Sociedade Mont-Pèlerin. Foi designada uma comissão para elaborar o projeto inicial,
resultando em uma primeira declaração que gerou controvérsia entre os participantes do
encontro.122 O debate foi tão acirrado que Hayek, enquanto mediador e grande organizador da
sociedade, chegou a questionar a própria necessidade da declaração.123 Ao final, acabou sendo
elaborado um segundo projeto de declaração, que foi aprovado por quase todos os
participantes124, e que é a versão final que marca uma espécie de “certidão de nascimento da
Mont-Pèlerin”125.
Como o grupo que compunha a Sociedade Mont-Pèlerin era heterogêneo, a forma que
se encontrou para elaborar uma declaração que agradasse à quase unanimidade dos presentes

118 Ibid., p. 154. (grifo nosso).


119 Ibid., p. 161.
120 Ibid., p. 172.
121 Ibid., p. 181-182.
122 Ibid., p. 188.
123 Ibid., p. 192.
124 Todos aceitaram a nova declaração de objetivos, à exceção do economista francês Maurice Allais, que foi o

primeiro a deixar a Sociedade, criticando a visão dogmática da declaração que a aproximava mais do laissez-faire
e menos de uma verdadeira renovação do liberalismo.
125 Ibid., p. 193.
42

foi concentrar os esforços mais em um inimigo comum do que em ideais partilhados por todos
os participantes. Cabe, aqui, trazer a íntegra da Declaração dos objetivos da Sociedade Mont-
Pèlerin (statement of aims) em sua versão final:

Um grupo de economistas, historiadores, filósofos e outros estudiosos de


assuntos públicos da Europa e dos Estados Unidos encontraram-se no Monte Pelerin,
na Suíça, do dia 1 ao 10 de abril de 1947 para discutir a crise do nosso tempo. Esse
grupo, no desejo de perpetuar a sua existência, promovendo futuros encontros e
convidando pessoas de pensamento semelhante a participar, concordou com a
seguinte declaração de objetivos.
Os valores centrais da civilização estão em perigo. Em grandes partes da
superfície da Terra, as condições essenciais da dignidade humana e da liberdade já
desapareceram. Em outras, estão sob constante ameaça diante do desenvolvimento
das tendências políticas atuais. As posições do indivíduo e do grupo estão cada vez
mais comprometidas pela ampliação do poder arbitrário. Mesmo o bem mais precioso
do homem ocidental, a liberdade de pensamento e de expressão, está ameaçado pela
disseminação de credos que, alegando o privilégio de tolerância quando na posição de
uma minoria, procuram somente estabelecer uma posição de poder em que eles podem
suprimir e obliterar todas as visões que não sejam as suas.
O grupo sustenta que esses desenvolvimentos têm sido fomentados pelo
crescimento de uma visão da história que nega todos os padrões morais absolutos e
pelo crescimento das teorias que questionam a conveniência do Estado de direito. O
grupo sustenta também que eles foram estimulados por um declínio na crença da
propriedade privada e do mercado competitivo; pois sem o poder difuso e a
iniciativa associada a essas instituições é difícil imaginar uma sociedade na qual a
liberdade possa ser efetivamente preservada.
Acreditando que o que é essencialmente um movimento ideológico deve ser
associado a um argumento intelectual pela reafirmação de ideias válidas, o grupo,
tendo feito uma exploração preliminar do campo, é da opinião de que é desejável um
estudo mais profundo, nomeadamente, no que diz respeito às seguintes questões:
A análise e a descoberta da natureza da presente crise levando em conta suas
origens essencialmente morais e econômicas.
A redefinição das funções do estado, para se distinguir mais claramente
a ordem totalitária e a liberal.
Métodos de restabelecer o Estado de Direito e de assegurar seu
desenvolvimento de modo que os indivíduos e os grupos não estejam em posição de
interferir a liberdade de outros e que os direitos privados não possam se tornar a base
de um poder predatório.
A possibilidade de estabelecer padrões mínimos não prejudiciais à
iniciativa e ao funcionamento o mercado.
Métodos de combate ao mal-uso da História que incentivem credos hostis à
liberdade.
O problema da criação de uma ordem internacional condutora da
resguarda da paz e liberdade, permitindo o estabelecimento de relações internacionais
harmônicas.
O grupo não deseja fazer propaganda. Não procura estabelecer uma
ortodoxia rigorosa e detalhada. Não se alinha a nenhum partido político. Sua
finalidade é somente a de, promovendo a troca de opiniões entre mentes inspiradas
por certas ideias e concepções gerais em comum, contribuir para a preservação e o
aperfeiçoamento da sociedade livre.
Mont Pelerin (Vaud), Suíça, 8 de Abril de 1947126
Como se percebe das linhas gerais trazidas pela declaração das intenções da Sociedade
Mont-Pèlerin, há uma linguagem combativa às possibilidades de intervencionismo que

126 THE MONT-PELERIN SOCIETY. Statement of Aims. Disponível em:


https://www.montpelerin.org/statement-of-aims/. Acesso em 18 mai. 2019. (Tradução nossa) (Grifo nosso).
43

cresciam naquele momento do pós-guerra. Se, como se viu anteriormente, a Declaração de


Filadélfia e demais textos que compunham o espírito de Filadélfia traziam os elementos para a
busca por um novo nomos da Terra, o texto do encontro em Mont-Pèlerin falava da necessidade
de criação da uma nova ordem internacional, bem distinta daquela explicada no livro de Alain
Supiot.
A palavra de ordem na declaração de intenções da Sociedade Mont-Pèlerin é a
liberdade, que, segundo seus autores, está sob ameaça de ideologias totalitárias e prejudiciais
ao funcionamento do mercado. Como destaca Leandro Pires Salvador, a declaração mostra sua
“elaborada estratégia comunicativa, porquanto oculta seu próprio teor ideológico numa pseudo-
denúncia justamente contra outras ideologias que, no caso, ameaçariam a liberdade”127.
Do contraste do texto de Mont-Pèlerin com aquele da Declaração de Filadélfia,
percebe-se que há um deslocamento do eixo central para a nova ordem mundial buscada por
cada um desses dois movimentos antagônicos. De um lado, o espírito de Filadélfia buscava
colocar a economia a serviço dos homens, garantindo a dignidade humana por meio da
conjugação da liberdade com a segurança necessária para poder exercê-la. Por outro lado, nos
objetivos da sociedade Mont-Pèlerin a atenção se volta para a liberdade, diretamente associada
à liberdade do mercado e da concorrência generalizada, colocando os homens a serviço desses
objetivos – ou, ainda, colocando a política e o direito a serviço da economia.
Se em um primeiro momento pode parecer que os dois movimentos se opõem
frontalmente aos totalitarismos, havendo entre eles um inimigo em comum, essa aparente
convergência na verdade se desfaz diante da compreensão de que o grande inimigo, em Mont-
Pèlerin, é o capitalismo intervencionista da social-democracia do pós-guerra, representado pelo
próprio espírito de Filadélfia. Frisa-se que, à época, era esse capitalismo de bem-estar social
que representava o maior entrave à economia de livre mercado por eles proposta. Para isso, os
neoliberais identificaram nas raízes de qualquer intervencionismo e coletivismo também uma
espécie de totalitarismo, contrário às liberdades por eles defendidas.
Não sem tensões internas e dificuldades, a Sociedade Mont-Pèlerin começou a se
expandir já na sua primeira década de vida: enquanto na primeira lista de membros, datada de
1947, constavam sessenta e cinco membros, no ano seguinte esse número saltou para cento e
quinze.128 Na década de 60, uma crise interna da Sociedade, principalmente entre os polos do

127SALVADOR, Leandro Pires. Crise aérea e comunicação : o acidente do voo 3054 da TAM à sombra da mídia.
2008. Dissertação (Mestrado em Comunicação e Semiótica) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São
Paulo, 2008. Disponível em https://tede2.pucsp.br/bitstream/handle/5129/1/Leandro%20Pires%20Salvador.pdf.
Acesso em 15 mai. 2019. p.181.
128 ONOFRE, Gabriel da Fonseca. O papel dos intelectuais e think tanks na propagação do liberalismo

econômico na segunda metade do século XX. 2018. Tese (doutorado) – Universidade Federal Fluminense,
Niterói, 2018. p. 228.
44

liberalismo austro-americano e do suíço-alemão levou à saída dos ordoliberais do grupo. Assim,


com a saída dos ordoliberais, a partir de 1962, ganhou coro o discurso austro-americano em
defesa de um liberalismo mais desenfreado, voltado à promoção da concorrência generalizada
como norma máxima de governo dos homens.
Foi somente na década de 70 que a organização de Hayek ganhou notoriedade e
cresceu fortemente, em razão do declínio do keynesianismo e das políticas de bem-estar social,
com o aumento do desemprego e descontrole da inflação. Nesse momento, a Sociedade Mont-
Pèlerin “experimentou pela primeira vez a sensação de estar a favor da maré: A organização
(...) se beneficiava agora da nova conjuntura política e econômica”129. Na década de 80, a
sociedade já estava consolidada, e no ano de 1989 já tinha mais de quatrocentos membros.130
Atualmente, esse número aproxima-se de seiscentos.
Se essa história da Sociedade Mont-Pèlerin fosse contada a partir de seu final, mostrar-
se-ia, desde o início, como ela saiu vencedora do conflito por um novo nomos da Terra,
anunciando uma nova ordem mundial. Caso se começasse essa história pelo seu desfecho, como
no cinema ou na literatura, o retrato de início certamente seria aquele das práticas do
neoliberalismo enquanto uma nova razão do mundo. De toda forma, como nada disso foi feito
até aqui, e seguiram-se os padrões tradicionais, de se começar pelo começo e acabar pelo fim,
passa-se ao próximo capítulo dessa história do neoliberalismo – adiantando-se, desde já, que
ela não encontrou ainda o seu fim.

129 Ibid., p. 239.


130 Ibid., p. 263.
45

2 NEOLIBERALISMO: TRAÇOS DA NOVA ORDEM

Restando vitorioso da disputa, o neoliberalismo se consagra como mais do que uma


ideologia, constituindo-se enquanto uma racionalidade capaz de se estender a todas as esferas
da vida. Com as contribuições de Foucault, além de Pierre Dardot e Christian Laval, pretende-
se abordar, aqui, traços essenciais dessa nova razão do mundo.

2.1 O NEOLIBERALISMO COMO RACIONALIDADE

“Continuar a acreditar que o neoliberalismo não passa de uma ideologia, uma crença,
um estado de espírito que os fatos objetivos [...] bastariam para dissolver, como o sol dissipa a
névoa matinal, é travar o combate errado e condenar-se à impotência”.131 Com esse alerta,
Pierre Dardot e Christian Laval delimitam, desde o início de sua obra, o tipo de análise que
farão do neoliberalismo. A visão dos autores, recepcionada por este trabalho, já é elucidada na
capa da obra, intitulada A nova razão do mundo, que concebe o neoliberalismo como uma
racionalidade.
Essa compreensão do neoliberalismo enquanto uma racionalidade ajuda a explicar a
proliferação das práticas neoliberais para muito além das velhas dicotomias entre direita e
esquerda. Isto é, os discursos e as práticas que são próprios do neoliberalismo irradiam-se, de
alguma forma, nos discursos e práticas de todos os governos, a incluir aqueles dentro do campo
progressista, em políticas de esquerda, e também entre os governados. A razão neoliberal é
travestida, muitas vezes, sob a forma de práticas aparentemente neutras ou puramente técnicas,
que carregam, no entanto, as marcas fundamentais que desenham uma nova razão do mundo.
Como apontam Dardot e Laval em seu livro, o fenômeno do neoliberalismo de
esquerda só pode ser compreendido se traduzir-se neoliberalismo por algo que não seja um puro
e simples laissez-faire, uma ideologia. Para os autores, o campo da esquerda vem travando, de
um modo geral, um combate errado contra o neoliberalismo, pois só é possível analisar essa
proliferação neoliberal e dimensioná-la se o neoliberalismo for olhado sob a ótica de uma
racionalidade. Somente assim é possível analisar as práticas e discursos que se disseminam de
modo avassalador, e que são recepcionados pelos governos e pelos governados de esquerda,
que muitas vezes aceitam esses pressupostos como se fossem um dado contra o qual não há
como lutar (sob a ideia de que não há, senão esta, outra alternativa - there is no alternative,
como ensina o discurso de Margareth Thatcher).

131DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal.
Tradução: Mariana Echalar. 1 ed. São Paulo: Boitempo, 2016. p. 30.
46

Para tratar da racionalidade neoliberal a partir do livro de Dardot e Laval, é


imprescindível recorrer à referência central contida em A nova razão do mundo, que é o curso
ministrado por Michel Foucault no Collège de France em 1979, transcrito em Nascimento da
Biopolítica. A abordagem de Foucault, dedicada à governamentalidade, é endossada por Dardot
e Laval: para a dupla de autores franceses, este termo foi introduzido para significar as múltiplas
formas pelas quais “homens, que podem ou não pertencer a um governo, buscam conduzir a
conduta de outros homens, isto é, governá-los”132. Além disso, a análise é estendida também
para as técnicas de dominação que os homens exercem não somente sobre os outros homens,
mas sobre si mesmos, operando como um governo de si.
Ao escolher fazer uma abordagem a partir da prática governamental no exercício da
soberania política, Foucault opta por deixar de lado alguns temas universais e tradicionalmente
discutidos como objeto primário de estudo das ciências humanas, tais quais a soberania, o povo,
o Estado, o soberano. Em vez disso, seu caminho parte das práticas concretas, no modo pelo
qual elas se apresentam e se racionalizam, para só então passar a analisar os universais a partir
dessas práticas.133 Quando fala nessas práticas, Foucault pretende dedicar-se ao estudo da “arte
de governar, ou seja, a maneira refletida de governar o melhor possível e, ao mesmo tempo, a
reflexão sobre a melhor maneira possível de governar”.134
Como se viu no primeiro capítulo deste trabalho, Foucault tratou do liberalismo
clássico sob a análise da arte de governar, explicada por ele como sendo a razão do governo
mínimo, que trazia a ideia de limitação do Estado por princípios internos. Por sua vez, ao
abordar a crise do liberalismo, Foucault traz os questionamentos que passaram a ser feitos
quanto ao dogma do laissez-faire, mostrando que a razão governamental liberal, centrada na
liberdade, não se limita apenas a respeitar ou garantir as liberdades. O que o liberalismo
formula não é um imperativo “seja livre!”, no sentido de se abster de qualquer intervenção para
que a liberdade se concretize.
Na verdade, o liberalismo consome liberdade. Ou seja, há um consumo na medida em
que a prática governamental só pode funcionar se houver liberdade de mercado, de compra e
de venda. Se há consumo, deve também haver produção da mesma. E se deve haver produção
de liberdade, a prática governamental se vê diante da necessidade de organizar essa produção,
funcionando como gestora. A formulação do liberalismo torna-se, então, esta: “será produzido
o que for necessário para que você seja livre”. Com isso, tem-se que a liberdade não é um dado
natural, mas algo que se fabrica e se consome a todo momento.135

132 DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo…, op. cit., p. 18.
133 FOUCAULT, Michel. O nascimento da biopolítica, op. cit., p. 26/27.
134 Ibid., p. 26.
135 Ibid., p. 93/94.
47

Retomando o contexto histórico da crise do liberalismo, diante da atuação estatal


representada pelas políticas intervencionistas do começo do século XX, os neoliberais
debruçaram-se diante da situação do liberalismo naquele momento e puseram a seguinte
questão: até que ponto a intervenção estatal que produz liberdade não é, ela mesma,
comprometedora às liberdades individuais? Como já se buscou mostrar, essas questões
desenham o cenário do que Foucault entende por crise do dispositivo geral de
governamentalidade136 liberal.
Diante desse quadro, compreender o neoliberalismo enquanto uma nova razão do
mundo implica reconhecer que o antídoto neoliberal, ao enfrentar as políticas intervencionistas
de bem-estar social, não retomou as velhas formas do liberalismo, anteriores à sua crise. Se o
laissez-faire era um dogma que estava em crise, o neoliberalismo não era simplesmente uma
tentativa de ressuscitá-lo. Se havia uma crise na governamentalidade liberal, a resposta
neoliberal deveria estar à altura – ou seja, não deveria trazer um resgate a velhas ideias, mas
deveria apresentar-se sob a forma de uma governamentalidade nova, uma outra maneira de
governar os sujeitos e de fazer eles governarem a si mesmos.
Daí o alerta de Dardot e Laval sobre a ingenuidade em se enxergar o movimento
neoliberal reduzido a um projeto ideológico arquitetado por pessoas determinadas em um dado
contexto. Pensar o neoliberalismo somente como um desfazimento do estado de bem-estar
social impossibilita a compreensão da extensão das práticas neoliberais até os dias atuais e em
todos os campos da vida. A racionalidade neoliberal indica, mais do que aquilo que o
neoliberalismo desfez, tudo aquilo que ele produziu: os tipos de relação social, as
subjetividades, as novas formas de vida que foram construídas.137
Para os autores, reduzir o neoliberalismo à sua dimensão ideológica, tratando-o como
um retorno ao laissez-faire, negligencia a dimensão estratégica das políticas neoliberais. Dardot
e Laval alertam, entretanto, que, ao se falar em estratégia, o termo pode levar a uma má-
compreensão, fazendo-se entender que a estratégia se trate, desde o início, de um grande projeto
arquitetado por um grupo, de forma racional e controlada. Na verdade, ao longo do livro, a ideia
é aquela já elaborada por Foucault, segundo a qual essa estratégia é, na verdade, uma estratégia
sem sujeito ou sem estrategista.138
Pierre Dardot e Christian Laval buscam fazer uma abordagem genealógica, mostrando
a racionalidade liberal sob a forma de um longo processo, resultado de experimentos políticos
conduzidos nos anos 80, sobretudo nos Estados Unidos e na Inglaterra, mas antes testados nos

136 Ibid., p. 100.


137 DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo…, op. cit., p. 16.
138 FOUCAULT, Michel. O nascimento da biopolítica, op. cit., p. 192.
48

laboratórios periféricos do mundo – como ensina a experiência chilena na década de 70. Esses
movimentos culminaram no Consenso de Washington, em 1989, que difundiu em escala global
a nova racionalidade que se formava. Ou seja, para os autores, é necessário entender o
movimento neoliberal como um processo heterogêneo e complexo:
A lógica normativa que acabou se impondo constituiu-se ao longo de batalhas
inicialmente incertas e de políticas frequentemente tateantes. A sociedade neoliberal
em que vivemos é fruto de um processo histórico que não foi integralmente
programado por seus pioneiros; os elementos que a compõem reuniram-se pouco a
pouco, interagindo uns com os outros, fortalecendo uns aos outros. Da mesma forma
como não é resultado direto de uma doutrina homogênea, a sociedade neoliberal não
é reflexo de uma lógica do capital que suscita as formas sociais, culturais e políticas
que lhe convém à medida que se expande. (...) Consequentemente, a originalidade do
neoliberalismo está no fato de criar um novo conjunto de regras que definem não
apenas outro ‘regime de acumulação’, mas também, mais amplamente, outra
sociedade.139
Os autores defendem, nesse sentido, que a formação da nova racionalidade, surgida do
combate às políticas de bem-estar social e inserida na disputa por uma nova ordem mundial,
contou com o engajamento de grupos sociais, políticos e intelectuais, por motivos diversos.
Desde o início, não se pode deduzir que houve um movimento uno e organizado. O que houve,
para os autores, foi uma pressão exercida por determinadas condições, o que acabou catalisando
forças distintas para, então, constituir paulatinamente a nova racionalidade. Para explicar isso,
Dardot e Laval recorrem novamente a Foucault, fazendo uma leitura a partir das práticas:
“primeiro, há as práticas, frequentemente díspares, que instauram técnicas de poder (...) e são a
multiplicação e a generalização das técnicas que impõem pouco a pouco uma direção global”140.
A questão que se coloca, então, é: se o neoliberalismo foi original ao criar uma outra
sociedade, a partir de uma nova estratégia que se construiu por meio da concentração de
processos heterogêneos, que sociedade é essa? O que caracteriza essa nova razão do mundo? O
que são esses discursos e práticas? Aqui, embora definições curtas possam ser perigosas para
se tratar de questões tão complexas, algumas respostas podem orientar a discussão para depois
serem melhor desenvolvidas.
Na segunda parte da obra A nova razão do mundo, os autores dedicam-se ao estudo da
racionalidade neoliberal. Dentro da complexidade de elementos que a compõem, Dardot e
Laval definem, em linhas gerais, o neoliberalismo como “um conjunto de discursos, práticas e
dispositivos que determinam um novo modo de governo dos homens segundo o princípio
universal da concorrência”141. Como afirmam os autores, é a generalização da norma da
concorrência, expandida a todas as dimensões da existência humana, que marca a característica
principal dessa razão neoliberal.

139 Ibid., p. 24.


140 DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo…, op. cit. p. 192.
141 Ibid., p. 17.
49

Para Alain Supiot, essa concorrência como norma máxima mostra que se está diante
de uma utopia por ele denominada Mercado Total. Segundo essa utopia totalizante, “os homens,
os sinais e as coisas têm todos a finalidade de se tornarem comensuráveis e mobilizáveis, numa
competição tornada global, ou seja, a serem ‘liquidáveis’ no sentido jurídico do termo”.142
O tema da concorrência generalizada como norma reguladora da vida em todos os seus
aspectos também fora desenvolvido por Michel Foucault, em Nascimento da Biopolítica, de
forma digna de destaque.
Foucault demonstra, na passagem do liberalismo do século XVIII para o
neoliberalismo atual, uma mudança no princípio definidor do mercado. Inicialmente, na
tradição liberal, o que definia o mercado era a livre troca entre duas partes iguais e livres. Nesse
modelo, para se assegurar uma equivalência entre as partes contratantes, era essencial a não
intervenção de terceiros. Sendo assim, o papel do Estado era o de assegurar o funcionamento
do mercado, respeitando a liberdade das partes.143 Era papel do Estado intervir na produção,
para assegurar a propriedade individual do que estivesse sendo produzido; já o mercado, por
outro lado, era livre.
Para os neoliberais, em contrapartida, a essência do mercado não está mais na troca,
mas sim na concorrência. Com essa mudança no princípio do mercado, o fundamental não é
mais a equivalência entre as partes que lhes permite negociar, mas, pelo contrário, a
desigualdade entre elas, de modo que, nesse quadro, o mercado não é mais um ambiente
“natural” de livre troca, governado por um “princípio misterioso de equilíbrio”144. A
concorrência passa a ser, então, parte da estrutura essencial de uma teoria de mercado145, dotada
da capacidade de assegurar a racionalidade econômica, pois somente diante da concorrência
generalizada é que se pode avaliar as grandezas econômicas que deverão guiar as melhores
escolhas pelos sujeitos econômicos.
Percebe-se, assim, que essa alteração do princípio do mercado demonstra uma
profunda inversão. Se antes o mercado era um espaço de troca entre iguais, na razão neoliberal
é somente por meio das desigualdades e da concorrência que se pode guiar as escolhas racionais.
O mercado, centrado nas normas da concorrência, passa a ser um processo que leva à
racionalidade, e que forma os indivíduos, portanto, educando e construindo o sujeito
econômico.

142 SUPIOT, Alain. O espírito de Filadélfia…, op. cit., p. 55.


143 FOUCAULT, Michel. O nascimento da biopolítica. op. cit., p. 156.
144 DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo…, op. cit., p. 139.
145 FOUCAULT, Michel. O nascimento da biopolítica, op. cit., p. 157.
50

Essa extensão do mercado ao aprimoramento do indivíduo é a expressão do governo


de si, em que o mercado passa a ser um “processo subjetivo autoeducador e
autodisciplinador”146. Para o concorrencialismo neoliberal, é na concorrência do mercado que
há um fundamental processo de descoberta de informações por parte dos indivíduos colocados
sob a lógica da competição irrestrita. Nesse cenário, é característico esse novo “modo de
conduta do sujeito que tenta superar e ultrapassar os outros na descoberta de novas
oportunidades de lucro”.147
O mercado se mostra, então, como um processo de subjetivação, sob a figura do já
conhecido homo economicus, que, no entanto, não é mais aquele dos processos de troca. O
homos economicus neoliberal é, antes de mais nada, um empresário de si. Sob influência da
teoria do capital humano, que não mais analisa o objeto da economia pelos processos (do
capital, do investimento, do produto), mas se concentra nas escolhas dos sujeitos racionais e
suas consequências, o homem passa a ser o seu próprio capital: ele é para si seu próprio produtor
e sua fonte de rendimentos.148
Dardot e Laval dedicam parte de sua obra ao estudo das técnicas que contribuem na
formação do sujeito neoliberal. Ao contrário das antigas medidas disciplinares para tornar os
corpos mais dóceis, com a subjetivação neoliberal, o sujeito se vê inteiramente envolvido nas
atividades que lhes são exigidas. O indivíduo se insere na lógica da competição tal qual a
empresa:
Trata-se do indivíduo competente e competitivo, que procura maximizar seu capital
humano em todos os campos, que não procura apenas projetar-se no futuro e calcular
ganhos e custos como o velho homem econômico, mas que procura sobretudo
trabalhar a si mesmo com o intuito de transformar-se continuamente, aprimorar-se,
tornar-se sempre mais eficaz.149
Assim, o homo economicus neoliberal, na figura do empreendedor, incorpora em si o
modelo da empresa, que, junto com o princípio da concorrência generalizada, marca a grande
característica da nova razão do mundo. Como o mercado é um processo que forma o homem e
o ensina a conduzir a si próprio, somente com uma frequência cada vez maior dentro do
mercado que o indivíduo pode se conduzir racionalmente. Assim, trata-se de criar mais
situações de mercado que façam com que o sujeito neoliberal continue esse processo de
aprendizagem. Para aprender, o sujeito neoliberal precisa, a todo tempo e em todas as esferas
de sua existência, empreender.150

146 DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo…, op. cit., p. 140.
147 Ibid., p. 135.
148 FOUCAULT, Michel. O nascimento da biopolítica, op. cit., p. 280.
149 DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo…, op. cit., p. 333.
150 Ibid., p. 140.
51

Para os neoliberais, todo indivíduo possui dentro de si algo de empreendedor, e é a


economia de mercado que permite estimular esse espírito. Nesse cenário, o empreendedor
figura como sendo “um ser dotado de espírito comercial, à procura de qualquer oportunidade
de lucro que se apresente e ele possa aproveitar, graças às informações que ele tem e os outros
não”.151 Dardot e Laval explicam, ainda, como essa dimensão do empreendedorismo é uma
relação de si para si mesmo que serve de crítica contra a interferência estatal, porque é o sujeito
quem se responsabiliza pelas escolhas tomadas, com base nas informações que possui através
de um processo de aprendizagem e formação feito pelo mercado. Qualquer interferência nesse
processo poderia prejudicar o processo de formação do sujeito, que só se dá dentro da lógica da
concorrência.152
É por tal razão que Dardot e Laval chamam essa nova racionalidade de uma nova razão
do mundo: porque ela “atravessa todas as esferas da existência humana sem se reduzir à esfera
propriamente econômica”.153 Em outras palavras, não se trata da esfera econômica que absorve
as outras esferas da vida, mas de uma lógica de mercado que se expande de forma irrestrita,
seja enquanto processo que constitui o sujeito empresarial, seja na forma pela qual se guia a
ação pública e as formas de gestão.
Ao final do livro, Dardot e Laval sintetizam pontos de destaque da obra a partir do que
definem como os quatro principais aspectos dessa nova razão do mundo. Em primeiro lugar, o
mercado deixa de ser uma realidade natural e passa a ser uma realidade construída, que conta
com uma intervenção do Estado, sobretudo por meio de regulações aos direitos de propriedade
e da garantia de que a concorrência não será obstaculizada. Além disso, em segundo, o princípio
de funcionamento do mercado se desloca da troca para a concorrência, “definida como relação
de desigualdade entre diferentes unidades de produção ou ‘empresas’”154. Ou seja, se ao Estado
é incumbido o dever de construir o mercado, não mais visto como algo natural, isso significa
que ele tem o dever de zelar pela norma geral da concorrência.155
O terceiro destaque feito pelos autores, desenvolvido de forma mais pormenorizada no
livro está na ideia de que o Estado não somente deve zelar pela norma geral da concorrência,
mas ele mesmo está submetido a essa norma. Disso resulta, como afirmam os autores, uma
primazia do direito privado, que implica em um esvaziamento das categorias do direito público.

151 Ibid., p. 145.


152 Ibid., p. 142-148.
153 ANDRADE, Daniel Pereira; OTA, Nilton Ken. Uma alternativa ao neoliberalismo: Entrevista com Pierre

Dardot e Christian Laval. Tempo Social, São Paulo, v. 27, n. 1, p. 275-316, jan./jun. 2015. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-20702015000100275&lng=en&nrm=iso. Acesso
em 10 jun 2019.
154 DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo…, op. cit., p. 377.
155 Ibid., p. 378.
52

O Estado se vê, então, assim como todas as esferas da existência humana, sujeito às normas de
mercado.156
Por fim, o quarto aspecto merecedor de destaque diz respeito ao autogoverno dos
indivíduos, que incorporam a norma da concorrência para que sejam conduzidos ao papel de
empreendedores. Com isso, o modelo da empresa passa a operar enquanto um verdadeiro
modelo de subjetivação.157
Após analisar algumas das principais características da racionalidade neoliberal, vale
relembrar, mais uma vez, como essas práticas ganharam o espaço e a notoriedade que hoje
parecem bem consolidados. Dardot e Laval tratam da ascensão da nova razão do mundo como
sendo uma Grande virada, embora reconheçam que ela não se deu por um fator único e de
forma súbita.
Por mais que a crise do liberalismo tenha se articulado com as políticas neoliberais em
um momento histórico oportuno, esse é só um dos elementos para se contar essa história. O
segundo ponto que a explica é a longa luta ideológica que se travou contra o Estado de bem-
estar social que emergia no pós-guerra, como explicado no primeiro capítulo deste trabalho.
Por fim, o terceiro ponto está nas mudanças de comportamento, promovidas pelas técnicas e
dispositivos de disciplina, por mecanismos econômicos e sociais que passaram a exigir dos
indivíduos que governassem a si mesmos segundo a lógica da competição generalizada. Foi a
ampliação desses dispositivos que levaram a uma “racionalidade geral, uma espécie de novo
regime de evidências que se impôs aos governantes de todas as linhas como único quadro de
inteligibilidade da conduta humana”.158
Até aqui, buscou-se traçar os elementos principais que fundam as práticas neoliberais
e a caracterizam enquanto razão de mundo. Abordar o neoliberalismo enquanto uma
racionalidade implica reconhecer que as forças que alavancaram a estratégia neoliberal são de
ordem complexa e multifacetada, como se buscou fazer.
Embora a racionalidade neoliberal desdobre-se em mais uma infinidade de aspectos e
manifeste-se nas mais diversas áreas de estudo, foram selecionados, até aqui, alguns pontos
centrais para caracterizar a razão neoliberal, com foco no que se pretende estudar com este
trabalho.
No entanto, importa ressaltar que resta, ainda, outro importante aspecto do
neoliberalismo que permaneceu sem a devida análise. O ponto que ainda merece ser tratado
ajuda a explicar tanto a forma pela qual a racionalidade neoliberal se colocou nas últimas

156 Ibid., p. 378.


157 Ibid., p. 378.
158 Ibid., p. 193.
53

décadas, quanto relembra outro elemento imprescindível que faz parte dessa própria
racionalidade.
Do que ainda merece ser abordado, o primeiro ponto, então, é saber como essa
estratégia neoliberal se colocou de forma tão hegemônica, de modo que até os dias de hoje
parece escapar dos debates democráticos que a questionem de forma profunda. Para isso, trata-
se de explicar melhor alguns elementos-chave nessa virada neoliberal. O segundo ponto, que
se comunica com o primeiro, é compreender qual a relação que a razão neoliberal estabelece
com a democracia. Para isso, o caminho é analisar mais uma característica interna à razão
neoliberal, que se manifesta desde sua fundação intelectual.
Esses dois pontos dizem muito sobre a condução das práticas neoliberais em escala
global. Compreender as raízes da incompatibilidade entre neoliberalismo e o debate
democrático permite fazer com que o novo nomos da Terra se veja confrontado, tornando-se
exposta, então, sua relação pouco afetuosa com a democracia.

2.2 DEMOCRACIA: UM DESAFETO NEOLIBERAL

A razão neoliberal que começou a se erguer no contexto do pós-guerra, em um


enfrentamento ao estado de bem-estar social representado, aqui, pelo espírito de Filadélfia,
prospera em mínimos detalhes da vida nos dias atuais. Como se buscou demonstrar, a lógica da
competição e a ideia do indivíduo como empresário de si, responsável por seus sucessos e seus
fracassos, é a lógica dominante que guia as várias dimensões da existência humana.
Se esses discursos e práticas pareceram triunfar de modo desimpedido, a despeito dos
obscenos níveis de desigualdade por ele causados, isso indica que há um elemento chave na
fundação neoliberal que ainda merece ser abordado. Trata-se de saber, então, como o mercado
pode ter ficado blindado em relação às interferências democráticas. Nesse ponto, o
neoliberalismo traçou sua relação nada amistosa com a democracia por diferentes maneiras, em
contextos políticos distintos que merecem aqui alguma atenção.
Uma dessas maneiras experimentadas pelo neoliberalismo em sua relação com a
democracia foi por sua abolição direta, como ensina o modelo Chileno dos anos 70. No ano de
1970, Salvador Allende havia vencido a eleição chilena para a presidência e “se dispôs a
experimentar o caminho democrático-parlamentar para o socialismo”.159 No entanto, essa
vitória não foi bem recebida pela elite chilena e pelos norte-americanos, que estabeleceram um
bloqueio econômico no ano seguinte à eleição de Allende. Com o bloqueio, houve uma

159
BANDEIRA, Luiz Alberto. A formação do império americano: da guerra contra a Espanha à guerra no Iraque.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p. 316.
54

profunda instabilidade política e econômica, que fora instrumentalizada pelas elites para a
mobilização das classes médias, além das Forças armadas chilenas.
Pulando alguns capítulos dessa história, passa-se ao momento em que o governo de
Allende tentou resistir, mas no dia 11 de setembro de 1973 foi surpreendido por aviões que
sobrevoavam o palácio presidencial, acompanhados de tanques das Forças Armadas que
cercavam La Moneda. O palácio foi bombardeado; Allende, morto.
O golpe contra o governo democraticamente eleito de Salvador Allende marcou o
começo da primeira experiência política neoliberal, no grande laboratório em que se
constituíam as periferias do mundo, em particular a América Latina. Com o patrocínio das elites
chilenas e corporações estadunidenses, além da CIA e da secretaria de Estado norte-americana,
o modelo desfez as formas de organização popular, atuando sob uma política de violenta
repressão, tortura e desaparecimentos forçados que seguiram pela América do Sul naquela
década. Pinochet, que assumiu a presidência chilena, ficou no poder até 1990.
Foi no contexto do país sob o mando ditatorial de Pinochet que, em meio à recessão
econômica da recente crise chilena, um grupo de economistas neoliberais, conhecidos como
Chicago Boys, foram acionados. Encabeçados por Milton Friedman, muitos estudantes chilenos
que haviam estudado na escola de Chicago sob o financiamento do governo norte-americano
participaram da experiência que conjugou neoliberalismo e ditadura de que se fala até hoje.160
Seguiu-se, então, uma série de privatizações, que começaram de forma mais discreta,
intensificando-se após a visita de Friedman ao Chile, em 1975, instituindo reformas mais
radicais por meio de uma doutrina do choque, que será trabalhada mais adiante.
Como assinala Naomi Klein em sua análise em A Doutrina do Choque e a Ascensão
do Capitalismo de Desastre, o choque trazido pelo golpe no Chile veio acompanhado de duas
outras formas de choque. Introduziu-se, então, o choque econômico, com as medidas
neoliberais de Milton Friedman, e o choque da tortura que perseguiria qualquer um que se
opusesse à nova doutrina econômica. “Desse laboratório emergiu o primeiro Estado da Escola
de Chicago, e a primeira vitória na sua contrarrevolução global”.161
Embora esse episódio já demonstre, por si só, muito da relação entre neoliberalismo e
democracia, essa não é a única forma de se expressar a relação excludente que eles têm entre
si. Nesse sentido, merece destaque aqui a outra forma pela qual o neoliberalismo conseguiu se
desfazer de amarras democráticas que pudessem representar um freio à livre concorrência.
Trata-se, pois, da eliminação da tensão entre democracia e capitalismo, com o mercado

160 HARVEY, David. O neoliberalismo: história e implicações. Tradução: Adail Sobral e Maria Stela Gonçalves.
5. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2014. p. 17-18.
161 KLEIN, Naomi. The shock doctrine: the rise of disaster capitalism. New York: Picador, 2007. p. 87. (Tradução

nossa).
55

colocado acima da política, o que contou com a participação intelectual nessa construção, e foi
consagrado com reformas institucionais, marcadas pela “transição para uma política econômica
baseada num conjunto de regras, (...) para uma política fiscal imune aos resultados
eleitorais”162, como se pretende mostrar posteriormente.
A questão que se coloca, em um primeiro momento, é, então, a de saber qual a relação
que o neoliberalismo travou com a democracia, desde sua fundação intelectual, para se buscar
compreender como os imperativos neoliberais parecem estar protegidos de qualquer
intervenção democrática. Ou seja, se as populações estão desarticuladas e a razão neoliberal
está blindada de qualquer ameaça a sua hegemonia, trata-se de saber como o neoliberalismo
percorreu seus caminhos para essa despolitização, que se traduz tanto em um sentimento de
resignação quanto de impotência.
Ladislau Dowbor alerta, em A era do capital improdutivo, sobre os profundos níveis
de desigualdade que guardam relação com a hipertrofia do sistema financeiro, abordada de
forma central no seu livro. Dowbor introduz sua obra trazendo ao leitor suas convicções e
inquietações que moveram seu estudo e que, de certa forma, são também aquelas que deram
causa a este presente trabalho:
O que são minhas convicções? O motor que me move é uma profunda indignação.
Hoje 800 milhões de pessoas passam fome, não por culpa delas, mas por culpa de um
sistema de alocação de recursos sobre o qual elas não têm nenhuma influência. (...) É
relativamente fácil apontar os culpados e esperar que eles desapareçam. Mas eles não
vão desaparecer, porque o problema não está apenas nas pessoas e sim no sistema, na
forma de organização social, no processo decisório que impera numa sociedade
(...).163
O que se pretende abordar neste momento é que, se hoje o sistema é apresentado como
perfeito, eficiente e acabado, é porque houve um trabalho que o protegesse contra qualquer
forma contundente de indignação. Seria plausível, nesse sentido, dedicar este tópico à
desigualdade inerente ao neoliberalismo, abordando de forma minuciosa os índices de
distribuição de renda que escancaram as grandes falhas desse sistema, que prega a pobreza
como fruto das ações individuais pelas quais cada um deve ser responsável. No entanto, como
se pretende falar das desigualdades somente como um caminho para abordar a relação entre
democracia e neoliberalismo, sem que se faça dela o ponto principal da abordagem, é suficiente

162 STREECK, Wolfgang. O tempo comprado: a crise adiada do capitalismo democrático. Tradução: Marian
Toldy. 1. ed. São Paulo: Boitempo, 2018. p.107.
163 DOWBOR, Ladislau. A era do capital improdutivo: Por que oito famílias têm mais riqueza do que a metade

da população do mundo? São Paulo: Autonomia Literária, 2017. p.13.


56

destacar, ao menos, a pirâmide da riqueza global, referente ao ano de 2016164, trazida por
Dowbor165:
Figura 1 - A Pirâmide da Riqueza Global

A pirâmide mostra, sob o olhar da racionalidade neoliberal, que cerca de trinta milhões
de adultos (0,7%) têm mais riqueza do que outros mais de três bilhões, supostamente
responsáveis por suas próprias mazelas. Dowbor afirma, ainda, em sua pesquisa, que se for
ampliado o percentual de análise para o de 1% dentre os mais ricos, a riqueza por eles
acumulada ultrapassa a soma dos outros 99% de adultos do planeta. Diante disso, é
fundamental, na análise aqui pretendida, que se abandonem as lentes neoliberais ao se analisar
esses dados, para, enfim, entender a desigualdade apresentada na pirâmide sob uma ótica
verdadeiramente sistêmica. A estratégia neoliberal foi decisiva ao estabelecer sua relação hostil
com a democracia, de modo que situações como a da desigualdade social profunda
permaneceram negligenciadas, fora do escopo dos debates democráticos.
A fundação intelectual do neoliberalismo traz importantes contribuições para que se
possa entender sua relação com a democracia. Hayek, que é considerado “um dos pais do
fundamentalismo econômico contemporâneo”166, era crítico ferrenho aos textos do Espírito de

164 A Pirâmide da Riqueza Global trazida por Dowbor faz parte do Global Wealth Databook realizado pelo Instituto
de Pesquisa do banco Credit Suisse (Credit Suisse Research Institute). O relatório completo da pesquisa pode ser
consultado em: https://www.credit-suisse.com/corporate/en/articles/news-and-expertise/the-global-wealth-report-
2016-201611.html.
165 DOWBOR, Ladislau. A era do capital improdutivo..., op. cit., p. 27.
166 SUPIOT, Alain. O espírito de Filadélfia…, op. cit., p. 29.
57

Filadélfia, como já se buscou demonstrar. Para ele, os textos de reconstrução social do pós-
guerra traziam uma perigosa ideia de democracia ilimitada, alimentando os desejos e emoções
de uma população que desconhece as leis econômicas. Assim, as reivindicações por políticas
de justiça distributiva são, para Hayek, “um atavismo baseado em emoções originais”167,
contrário à ordem espontânea do mercado.
Na ideia de Hayek, a democracia ilimitada pode se degenerar em uma democracia
totalitária. A partir disso, Dardot e Laval apontam que essa concepção indica que, para o
austríaco, a democracia não é uma finalidade em si, mas se reduz a um simples meio necessário
para a seleção dos dirigentes.168 Isso demonstra uma preocupação central, que é a de “isentar
as regras do direito privado (o da propriedade e da troca comercial) de qualquer espécie de
controle exercido por uma ‘vontade coletiva’” 169.
Assim, para Hayek, as instituições baseadas na solidariedade, que derivam da
incompreensão da economia de mercado, devem ser desmanteladas mediante uma limitação da
democracia.170 Ele alerta para o problema que pode surgir das demandas populares, que levam
a uma intervenção que se amplia indefinidamente, fazendo com que a política se sobreponha à
economia. Sendo assim, de modo a evitar esse perigo, deve-se não somente desmantelar essas
instituições solidárias, mas impedir que elas reapareçam. A saída é, então, retirar da esfera
política a repartição de riquezas, esvaziando o debate público.
Em outras palavras, a saída é colocar a economia sobre a política, e mesmo sobre o
direito – o que perpassa por um caminho de despolitização da própria economia. Se a tradição
clássica era aquela da economia política, com o avanço neoliberal começou-se a falar em uma
“ciência econômica”, em uma tentativa de equiparar a economia às ciências da natureza e às
ciências exatas. Colocar determinados postulados econômicos enquanto normas científicas
poderia viabilizar uma fuga da economia dos debates políticos e de qualquer controle pela via
democrática. Para isso, “é necessário crer e fazer crer que a economia precisa da ciência”171
para que ela possa ser, então, despolitizada. No contexto da ascensão do neoliberalismo no
plano teórico, tratava-se, então, de dar legitimidade à economia enquanto ciência.
Nesse ponto, há um episódio que merece destaque. Em 1969, um grupo de economistas
neoclássicos conseguiu realizar aquilo que Patrick Moyont chamou de “um golpe de mestre”172,

167 HAYEK, Friedrich apud SUPIOT, Alain. O espírito de Filadélfia…, op. cit., p. 30.
168 DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo…, op. cit., p. 184.
169 Ibid., p. 184.
170 SUPIOT, Alain. O espírito de Filadélfia…, op. cit., p. 30.
171 Ibid., p. 31.
172 MOYNOT, Patrick. Nobel d'économie: coup de maître. Le Monde, França, 15 out. 2008. Disponível em:

https://www.lemonde.fr/idees/article/2008/10/15/nobel-d-economie-coup-de-maitre-par-patrick-
moynot_1107132_3232.html. Acesso em: 10 mai. 2019. (Tradução nossa).
58

com a criação do que se conhece até hoje como Prêmio Nobel da Economia. Naquele dia,
segundo Moyont, a economia, essencialmente política, morreu.
Antes de morrer, o químico sueco Alfred Nobel havia deixado uma herança para a
Fundação Nobel, criada em 1900, encarregada de administrar o Prêmio Nobel para premiar
aqueles que, segundo o testamento, “tivessem conferido maior benefício à humanidade”. Em
seu testamento, datado de 1895, são mencionadas as cinco disciplinas a serem contempladas
pelos prêmios: três delas eram constituídas pelas ciências exatas: física, química e medicina; ao
passo que as outras duas consistiam no Prêmio Nobel da literatura e da paz. Como destaca
Moyont, no testamento não houve menção a qualquer outra disciplina para além dessas cinco,
seja científica ou não. À época, não ocorria a ideia de tratar a economia enquanto uma ciência.
Anos mais tarde, no entanto, os economistas neoclássicos, buscando atingir uma ideia de
neutralidade e universalidade das regras econômicas, engajaram-se para mudar aquela situação.
No fim do ano de 1968, surgiu a oportunidade perfeita para a legitimação que os
neoliberais procuravam. Naquele ano, buscando ideias para a celebração de seu tricentenário,
o Banco Nacional da Suécia, após um lobby intenso, convenceu a Fundação Nobel e a
Academia de Ciências a criar um prêmio Nobel de economia. Contudo, embora até hoje se
utilize o mesmo termo para designar essa “sexta premiação”, não prevista no testamento de
Alfred Nobel, o prêmio Nobel de economia não se trata propriamente de um prêmio Nobel. O
prêmio chama-se “Prêmio do banco da Suécia em ciências econômicas em memória de Alfred
Nobel”, financiado não pela fundação, mas pelo próprio Banco da Suécia.
Com essa articulação, os pensadores da teoria econômica neoliberal ganharam espaço
e renome científico, ao melhor exemplo da figura de Hayek, vencedor do prêmio em 1974, e
Milton Friedman, em 1976. Com as bases mais sólidas para reconhecer a economia enquanto
ciência, sob o financiamento de banqueiros, o neoliberalismo começava a se mostrar blindado,
à prova da democracia.
Assim, ao atribuir à economia um caráter científico, a revolução ultraliberal, como
assim a chama Supiot, “reatou sem se dar conta com as grandes ideologias cientistas e,
especialmente, com o socialismo científico e sua fé na existência de leis econômicas imanentes
que a esfera política tem a missão de executar, não de questionar”.173 Nesse sentido, a proposta
da doutrina ultraliberal é exatamente oposta àquela do espírito de Filadélfia, que buscava
colocar a justiça social como o grande objetivo a ser atingido, assegurando-se a participação
popular na conquista por direitos sociais. Em sentido contrário, a doutrina ultraliberal, que
Supiot entende como neoliberalismo no plano econômico e neoconservadorismo no plano das

173 SUPIOT, Alain. O espírito de Filadélfia…, op. cit., p. 31.


59

relações internacionais174, prega que são as regras do livre mercado, o respeito à livre
concorrência que devem ser elevadas a grau máximo, relegando à democracia um papel
limitável e descartável.175
Ao analisar o fenômeno da derrocada do espírito de Filadélfia na Europa, Supiot
afirma que, de um modo geral, a Europa esteve fiel ao espírito de Filadélfia até o final do século
XX, embora já houvesse uma rejeição pelos países anglo-saxões e pelos comunistas. A situação
mudou, no entanto, com a derrocada do bloco socialista. Para o autor, naquele momento, a
Europa poderia ter seguido o caminho de uma reunificação, levando em conta a experiência
dos países pós-comunistas para auxiliá-los em sua reconstrução, com um pacto de refundação
da Europa.176 No entanto, o caminho tomado foi o de um alargamento, fazendo com que
houvesse um “alinhamento puro e simples do Leste com as regras em vigor no Oeste”177,
fragilizando as bases políticas do modelo social europeu e do espírito de Filadélfia.
Isso permitiu uma junção entre os ultraliberais e os dirigentes dos países pós-
comunistas, que se viram mais próximos da ideia do Mercado Total do que do espírito de
Filadélfia, que pregava o respeito pelo Direito e pelos ideais de democracia participativa. Ou
seja, assim como os neoliberais, os pós-comunistas alimentavam a descrença no Direito e na
democracia em razão de leis econômicas imanentes. Para que os antigos comunistas aderissem
ao Mercado Total, então, somente seria preciso substituir “as regras da vida em comum numa
sociedade socialista”178 pelas “regras da economia de mercado num mundo globalizado”179.
Com isso, o sistema europeu era o modelo perfeito para a democracia limitada, como havia sido
proposto por Hayek, herdando, do ultraliberalismo, a concorrência e a livre circulação de
mercadorias e capital; e, do comunismo, a democracia limitada e instrumentalização do
Direito.180
Outro elemento que auxilia na compreensão de como o neoliberalismo empenhou-se
em alertar sobre os perigos da democracia é explicado por Wolfgang Streeck em O tempo
comprado. O autor se dedica, em sua obra, a desmentir a teoria hegemônica e propagada na
razão neoliberal, segundo a qual a crise nas finanças públicas deve-se a um excesso de
demandas populares, a um excesso de participação política nas decisões econômicas, e também
a um excesso de democracia.

174 Ibid., p. 27.


175 Ibid., p. 30.
176 Ibid., p. 35.
177 Ibid., p. 35.
178 Ibid., p. 37.
179 Ibid., p. 37.
180 Ibid., p. 39.
60

A forma dominante pela qual são vistas as finanças públicas é aquela segundo a lógica
do common pool – ou do bem comum –: sob essa ótica, as finanças públicas são um recurso
que, como não são da ordem privada, podem ser explorados livremente. Nesse sentido, a
democracia figura como uma licença para explorar esses recursos indefinidamente. Assim,
como todos os atores – sejam os agentes públicos, sejam os eleitores – agem de forma racional,
ou seja, de forma egoísta, segundo a teoria, eles não se preocupam com o caráter limitado desses
recursos. Em outras palavras, para a teoria recorrente, quanto mais bens públicos, mais estarão
sujeitos à exploração por parte dos atores egoístas; e quanto mais democracia, mais esses atores
terão a licença para seguir reivindicações que geram os déficits orçamentários que são
acumulados em dívidas cada vez mais altas.181 Segundo essa teoria, então, “a resolução da crise
fiscal exige a proteção das finanças públicas contra exigências geradas num processo
democrático e, por fim, uma redução do bem comum criado pela tributação”182. Uma redução
das demandas democráticas, portanto.
O que Streeck procura fazer, em seu estudo, é desmistificar essa visão que atribui a
crise fiscal dos Estados a um excesso de democracia. Através de uma longa análise, ele conclui
que o grande salto causador do endividamento dos Estados não está propriamente ligado com
uma “inflação de reivindicações legitimadas de forma democrática pelos cidadãos eleitores”183.
Essa suposta inflação democrática não condiz com os índices que mostram o aumento na
desigualdade de rendimentos que se deu com a virada neoliberal, concentrando-se ainda mais
no topo da pirâmide. Wolfgang Streeck também aponta, a partir de suas análises, para uma
“estreita relação entre o crescimento, a diminuição e o novo crescimento do endividamento
público e a vitória do neoliberalismo sobre o capitalismo do pós-guerra, coincidente com uma
perda de poder político da democracia de massas”184. Em seu livro, o autor traz a representação
gráfica na perda de participação nas eleições parlamentares entre a década de 50 e o começo do
século XXI185:

181 STREECK, Wolfgang. Tempo Comprado…, op. cit., p. 96.


182 Ibid., p. 96.
183 Ibid., p. 96.
184 Ibid., p. 97.
185 Ibid., p. 102.
61

Figura 2 - Participação em eleições parlamentares nacionais entre 1950 e 2011

Streeck conclui, enfim, que as reivindicações que contribuíram para as crises fiscais
estão intimamente ligadas não com as pautas da vontade popular democrática, mas sim com
aquelas dos grandes bancos em situações de crise. Isto é, precisa-se reconhecer, enfim, que as
instituições financeiras e grandes corporações, em prática que se estende até hoje, apresentam-
se sempre como muito relevantes para o sistema (too big to fail), devendo ser resgatadas sempre
que necessário. Aqui, fala-se do capitalismo no pós-guerra, mas pode-se estender essa análise
para o atual contexto político, em que, diante de crises financeiras, as grandes corporações são
as últimas a serem questionadas e a sofrerem com políticas de contingenciamento e
austeridade.186-187.
Nesse sentido, Streeck afirma que, se houve um aumento de reivindicações que gerou
a crise nas finanças públicas, essas reivindicações estiveram concentradas “nas classes
superiores, cujos rendimentos e patrimônio aumentaram rapidamente nos últimos vinte anos,
sobretudo devido às reduções de impostos a seu favor”, ao passo que as prestações sociais não
acompanharam esse ritmo de crescimento – pelo contrário, estagnaram ou foram reduzidas.188
Com o fortalecimento da teoria das finanças públicas do common pool, os neoliberais
exercitaram uma lição, já abordada no primeiro capítulo deste trabalho, mas que merece ser
aqui ser retomada: “o máximo possível de comércio e o mínimo possível de política”.189 É

186 Nesse sentido, Dardot e Laval apontam que os riscos cada vez maiores assumidos pelas instituições de crédito
em meados dos anos 2000 só pôde se realizar na medida em que o Estado exercia o papel de fiador supremo do
sistema. Apontam os autores que o governo neoliberal é uma espécie de credor de última instância, o que explica
o salvamento, por parte do Estado, de muitas instituições financeiras, consagrando a máxima de nacionalizar riscos
e privatizar os lucros. (DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade
neoliberal. Tradução: Mariana Echalar. 1 ed. São Paulo: Boitempo, 2016. p. 204).
187 A respeito da crise de 2008, cabe relembrar que o plano de socorro do governo de George W. Bush chegou a

custar US$2,6 trilhões. (APÓS CRISE GLOBAL estourar em 2008, bancos receberam socorros bilionários. O
Globo, 2018. Disponível em: https://acervo.oglobo.globo.com/em-destaque/apos-crise-global-estourar-em-2008-
bancos-receberam-socorros-bilionarios-13495994. Acesso em: mai. 2019.
188 STREECK, Wolfgang. Tempo Comprado…, op. cit., p. 120.
189 SCHMITT, Carl. O nomos da Terra…, op. cit., p. 246.
62

precisamente por meio desse processo de desdemocratização, atribuindo à economia um caráter


científico e seguindo as normas do livre mercado como um dogma, que o neoliberalismo
marcou seu triunfo sobre a democracia.
A ideia de que a ciência econômica não está sujeita às deliberações democráticas
conseguiu provocar nos indivíduos um sentimento de apatia em relação aos processos políticos.
Com uma participação política cada vez menor, representada no gráfico anterior, Streeck
justifica essa queda não sob a ideia de que o povo está satisfeito, mas sim que está resignado
com a situação em que se encontra. Segundo o autor, o sentimento é de que, especialmente
para as camadas mais desfavorecidas, as eleições já não fazem mais diferença, principalmente
para aqueles que mais necessitam das mudanças políticas. Logo, “quanto menos esperança eles
depositam em eleições, menos perturbações resultantes de intervenção política têm de recear
aqueles que podem se dar ao luxo de depositar sua esperança nos mercados. (...)”.190
Na síntese de seus argumentos apresentados, Streeck relembra que o neoliberalismo
precisa de um Estado forte para travar as exigências sociais, sobretudo aquelas sob a forma de
organizações coletivas e sindicais quando colocarem em risco as forças do mercado. É nesse
sentido que o autor afirma que o neoliberalismo é incompatível com um Estado democrático,
“se entendermos por democracia um regime que intervém, em nome de seus cidadãos e por
meio do poder público, na distribuição dos bens econômicos resultante do funcionamento do
mercado”.191
Para resolver críticas contundentes nesse sentido, a saída neoliberal foi reduzir o
conteúdo da democracia a um “modo técnico de designação dos governantes”, fazendo com
que se relativizassem os critérios de diferenciação dos variados regimes políticos. Desse modo,
sob essa roupagem, a democracia é entendida como um método pelo qual se escolhem os
governantes. No entanto, se for abandonado esse reducionismo e passar-se a considerar que “a
democracia repousa sobre a soberania de um povo, o que aparece então é que, enquanto
doutrina, o neoliberalismo é, não acidentalmente, mas essencialmente, um antidemocratismo
(...)”192.
Falou-se muito, até aqui, da construção ideológica que culminou na atual relação entre
neoliberalismo e democracia. Não se pode deixar de lembrar, contudo, que a estratégia
neoliberal contou com uma série de fatores que fizeram do neoliberalismo uma nova razão do
mundo. Dentre esses fatores, é fundamental analisar o papel de extrema relevância que
desempenharam certas reformais institucionais, com a participação ativa de instituições

190 STREECK, Wolfgang. Tempo Comprado…, op. cit., p. 102.


191 Ibid., p. 103.
192 DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo…, op. cit., p. 384.
63

supranacionais que fortaleceram os dogmas do fundamentalismo econômico em escala


internacional, exigindo que todos os países se adequassem a essas imposições.
Essas instituições, como o Fundo Monetário Internacional e a Organização Mundial
do Comércio, que difundiram a nova “ortodoxia econômica neoliberal e monetarista”193,
ressignificaram, também, as possibilidades de qualquer exercício democrático que ameaçasse
o livre mercado. Ao estabelecer padrões a serem seguidos por todos os Estados, fazendo da
segurança financeira um imperativo categórico, essas instituições, que, em si, escapam a
qualquer controle democrático, são outra peça fundamental na análise aqui pretendida.
Com esses novos atores no cenário internacional, as políticas econômicas e sociais se
integraram à necessidade de adaptação à lógica neoliberal da concorrência generalizada.
Definia-se, assim, um sistema disciplinar mundial194, desmantelando de vez o que
tradicionalmente se entendeu por democracia liberal e soberania dos Estados. Nesse ponto, falar
sobre essas instituições supranacionais e a financeirização do capitalismo, fundamentais à razão
neoliberal, exige não somente uma análise na relação com a democracia, mas um
aprofundamento no tocante às regras da concorrência elevadas em escala mundial. Com isso, o
caminho estará, enfim, trilhado para um caminhar desimpedido do Mercado sobre a política,
sobre as relações sociais, e, especialmente, sobre o Direito.

2.3 A GLOBALIZAÇÃO E A NORMA FUNDAMENTAL DA CONCORRÊNCIA: DO


DARWINISMO SOCIAL AO DARWINISMO NORMATIVO

As novas formas políticas trazidas pelo neoliberalismo em muito ultrapassam um


retorno ao capitalismo e ao liberalismo clássico, como se buscou demonstrar até aqui. Elas
revelam, na verdade, “uma subordinação a certo tipo de racionalidade política e social
articulada à globalização e à financeirização do capitalismo”.195 Nesse sentido, Dardot e Laval
afirmam que a virada neoliberal só pode ter ocorrido mediante a implantação de uma nova
lógica normativa que reorientasse todas as políticas em nível global. Com a globalização e a
concentração de poder cada vez maior no mercado financeiro, a concorrência consagrou-se
enquanto norma fundamental dos governos, marcando a instauração de um novo sistema
disciplinar mundial.

193 HARVEY, David. O neoliberalismo…, op. cit., p. 49.


194 DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo…, op. cit., p. 197.
195 Ibid., p. 190.
64

Busca-se, entender, neste ponto, em que medida essa nova disciplina mundial fez a
concorrência imperar como norma máxima não somente entre empresas e indivíduos, mas
também entre Estados e até mesmo entre normas.
Dois atores fundamentais nessa narrativa são o Banco Mundial e o FMI, criados logo
após a segunda-guerra mundial, no Acordo de Bretton Woods, em 1945. Enquanto o Banco
Mundial tinha por atividade principal o financiamento dos países em desenvolvimento, o FMI
era responsável por manter o câmbio estável e zelar pelos acordos monetários. Dardot e Laval
destacam que a partir da década de 80 essas instituições passaram a desempenhar um papel
fundamental na difusão das normas neoliberais, passando a exercer uma intervenção que
“visava a impor o quadro político do Estado concorrencial, ou seja, do Estado cujas ações
tendem a fazer da concorrência a lei da economia nacional (...)”196.
Como visto, a fórmula do capitalismo do pós-guerra entrou em declínio a partir da
década de 70, fazendo com que o desemprego e a inflação atingissem altos índices, afetando,
inclusive, o lucro das classes mais altas. Diante disso, elevar as taxas de juros pareceu uma
forma de recuperar o lucro perdido, e o neoliberalismo ergueu a bandeira do combate à inflação
para impor suas medidas. Assim, com um aumento nas taxas de juros, surgiram grandes crises
de endividamento que afetaram países periféricos, com destaque aos latino-americanos.
Nesse contexto, no começo da década de 80, surgiam as principais lideranças políticas
neoliberais, após a experiência laboratorial nos países periféricos, com o destaque de Ronald
Reagan nos Estados Unidos (1981-1989) e Margaret Thatcher, no Reino Unido (1970-1990).
Com medidas de austeridade, conseguiram combater a inflação, elevando os juros, mas não
sem danos: o preço pago foram taxas crescentes de desemprego e de desigualdade de renda.
Como essas políticas neoliberais não floresceram sem causar controvérsias, era preciso uma
força-tarefa que se encarregasse de disseminar as políticas neoliberais em escala global.
Nesse ponto, o FMI exerceu um papel essencial, que consistiu na proliferação da
racionalidade neoliberal por meio de negociações de condições de pagamento com os países
endividados, concedendo empréstimos condicionados a planos de ajuste estrutural na política
de cada um desses países. O caso do México, em 1984, marca a primeira vez em que o Banco
Mundial concedeu empréstimo a um país em troca de reformas neoliberais.197 David Harvey
destaca os efeitos dessas reformas ao analisar dados do país entre 1983 e 1988, em que a renda
per capita reduziu em 5% ao ano, os salários foram reduzidos entre 40% e 50% e os subsídios
foram reduzidos, resultando em uma queda na qualidade da educação e saúde públicas.198

196 DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo…, op. cit., p. 198.
197 HARVEY, David. O neoliberalismo…, op. cit., p. 109.
198 C. LOMNITZ-ADLER apud HARVEY, David. O neoliberalismo…, op. cit., p. 109.
65

Sem deixar de mencionar o caso brasileiro, considerado o mais tardio episódio de


neoliberalização na América Latina, as políticas de neoliberalização marcaram nosso território
sob o Governo de Fernando Collor de Mello, entre 1990 e 1992. Como destaca David Maciel,
“o Plano Collor I anunciou a aurora da era neoliberal, que tinha o combate à inflação apenas
como aspecto inicial de um ambicioso processo de redefinição do padrão de acumulação
capitalista e de ofensiva contra os direitos sociais e trabalhistas”.199 Com o impeachment sofrido
por Collor em 1992, o ritmo de neoliberalização recuou, para ser retomado somente depois no
governo de Fernando Henrique Cardoso, em 1995.200
Na década de 80, FMI e Banco Mundial já se tornavam, então, “centros de propagação
e implantação do ‘fundamentalismo econômico do livre mercado’ e da ortodoxia neoliberal”.201
O neoliberalismo percebia, assim, que a forma mais eficaz para se defender do socialismo, do
fascismo, das políticas keynesianas e mesmo da vontade da maioria seria sujeitar a governança
democrática a essas instituições, “não democráticas e que não prestam contas a ninguém”.202
Como esclarece Naomi Klein,
[o] princípio era simples: países em crise precisam desesperadamente de ajuda
emergencial para estabilizar suas moedas. Quando a privatização e políticas de livre
comércio estão no pacote com um resgate financeiro, os países não têm muita escolha
a não ser aceitar o pacote por completo.203
Seguiu-se, então, uma série de mecanismos que começavam a mudar as regras internas
de cada país, colocando-os em uma disputa generalizada que lhes exigia as devidas adequações
às reformas neoliberais. Com isso, seguiram-se ondas de privatizações, em um movimento geral
de desregulamentação da economia, fazendo da regra da concorrência uma espécie de regra
universal dos governos.204 Ou seja, com a onda de neoliberalização da década de 80, os próprios
Estados entravam na concorrência generalizada, em uma corrida pela busca de investimentos
estrangeiros. Os Estados deveriam ser atrativos ao Mercado, independentemente dos custos que
as medidas pudessem ter para populações inteiras, para a garantia de direitos básicos, e para a
própria democracia – que assistiu a todo esse processo de mãos atadas.

199 MACIEL, David. O governo Collor e o neoliberalismo no Brasil (1990-1992). Revista UFG, ano XIII, n. 11,

dez. 2011. Disponível em: https://www.revistas.ufg.br/revistaufg/article/view/48390/23725. Acesso em: 29 mai.


2019.
200 FILGUEIRAS, Luiz. O neoliberalismo e crise na América Latina: o caso Brasil. CLACSO, Buenos Aires,

2003. Disponível em: http://biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/se/20100723022522/filgueiras.pdf. Acesso em: 29


mai. 2019.
201 HARVEY, David. O neoliberalismo…, op. cit., p. 38.
202 Ibid., p. 80.
203 KLEIN, Naomi. The shock doctrine: the rise of disaster capitalism. New York: Picador, 2007. p. 206.

(Tradução nossa).
204 DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo…, op. cit., p. 197.
66

Cabe destacar, ainda, que a atuação do Estado não foi somente pela via da
desregulamentação e de sua inserção na corrida da financeirização. Isso porque os próprios
Estados desempenharam um papel que contribuiu para a hipertrofia das instituições financeiras,
que passaram a assumir riscos cada vez maiores, a fim de aumentarem sua rentabilidade. Essa
assunção de riscos cada vez maiores só se fez possível porque o Estado se portou como o grande
fiador desse sistema, de modo que “o governo neoliberal faz o papel de credor de última
instância”.205 Essas intervenções do Estado enquanto fiador enunciam o princípio da
nacionalização dos riscos e privatização dos lucros. “Construtor, vetor e parceiro do capitalismo
financeiro, o Estado neoliberal deu um passo à frente, tornando-se efetivamente, graças à crise,
a instituição financeira de última instância”.206
David Harvey afirma que essa série de implementações do neoliberalismo
convergiram, enfim, enquanto uma nova ortodoxia com a articulação do Consenso de
Washington, em 1989.207 O encontro, que se deu nos Estados Unidos, tinha por principal
objetivo fazer um balanço das experiências realizadas até então na América Latina, para, então,
estabelecer recomendações, que incluíam cortes nos gastos sociais, reformas tributárias que
beneficiassem o Mercado (aqui, leia-se grandes corporações), privatizações, abertura
comercial e econômica, desregulamentação de leis trabalhistas.
Poucos anos mais tarde, na mesma onda de neoliberalização em escala global, a cidade
de Marrakesh, no Marrocos, foi palco de um acordo internacional que também é um capítulo
importante na história do neoliberalismo. O destaque principal do Acordo de Marrakesh é a
criação da Organização Mundial do Comércio, sobre o qual Alain Supiot se debruça ao traçar
diferenças elementares com relação à declaração de Filadélfia, de algumas décadas antes.
Segundo o autor francês, a competição enquanto objetivo principal a ser perseguido
em escala mundial faz parte de um dogma de que o crescimento do comércio e da produção
são, em si, uma finalidade, que, por sua vez, só pode ser alcançada em um ambiente de
concorrência generalizada.208 É sobre esse dogma que se erige o Acordo de Marrakesh ao
instituir a Organização Mundial do Comércio.
Desde o início, a dissonância em relação à Declaração de Filadélfia é nítida, ao
estabelecer o acordo que as relações entre os Estados devem ser orientadas para a melhoria dos
indicadores economicamente calculáveis, assim como o aumento da produção e circulação de
mercadorias e serviços.209 O objetivo principal pretendido passa a ser circundar tudo o que se

205 Ibid., p. 204.


206 Ibid., p. 205.
207 HARVEY, David. O neoliberalismo…, op. cit., p. 102.
208 SUPIOT, Alain. O espírito de Filadélfia…, op. cit., p. 56.
209 Ibid., p. 56.
67

liga à livre concorrência, em contraposição à Declaração de Filadélfia, que tinha um olhar para
os seres humanos, com a finalidade de lhes assegurar sua dignidade, pela concretização dos
ideais de justiça social.210
Supiot destaca, ainda, a terceira alínea do preâmbulo, segundo a qual a realização dos
objetivos propostos deve levar à celebração de acordos pela redução das tarifas aduaneiras e
quaisquer obstáculos ao comércio. Isso indica que as regras comerciais deixam de ser avaliadas
à luz do objetivo maior de justiça social, e passam a ser consideradas por si sós, de modo que
“não é previsto nenhum procedimento para permitir medir a eficácia da generalização da livre
circulação (...) em escala mundial, na visão dos objetivos de nível de vida, de taxas de emprego
e de remunerações”.211 O acordo de Marrakesh consagra, então, a lógica do Mercado Total,
segundo a qual o Mercado é o princípio que regula todas as ações, mobilizando “absolutamente
todos os recursos humanos, técnicos e naturais”212 para agirem segundo a norma geral da
concorrência.
Assim, o aporte teórico neoliberal que se viu no capítulo anterior passou não somente
a ganhar corpo por políticas nacionais, mas a ser disseminado pelas instituições supranacionais.
Essas instituições, ilustradas pelo Banco Mundial, FMI e, após, pela OMC, fizeram parte de
uma codificação mundial que redefiniu as formas pelas quais os Estados poderiam exercer sua
soberania e pela qual a população poderia exercer a democracia. A partir de então, os governos
e os povos estão adstritos a agir segundo as vontades do Mercado, em consonância com o
fundamentalismo econômico neoliberal, que se tornou uma espécie de religião oficial.213 214
No ritmo da neoliberalização em escala global, crescia a passos largos o capitalismo
financeiro, tomando o lugar do capitalismo fordista. Desde os anos 80, afirmam Dardot e Laval,
as transações já mostravam que o mercado financeiro havia se tornado autônomo em relação à
produção de bens e mercadorias.215 Com as privatizações engendradas pelo neoliberalismo, o

210 Ibid., p. 56.


211 Ibid., p. 57.
212 Ibid., p. 55.
213 Ibid., p. 33.
214 A respeito do tema, recomenda-se a entrevista com Giorgio Agamben intitulada “Deus não morreu. Ele tornou-

se Dinheiro". Na entrevista, o filósofo afirma: “Para entendermos o que está acontecendo, é preciso tomar ao pé
da letra a ideia de Walter Benjamin, segundo o qual o capitalismo é, realmente, uma religião, e a mais feroz,
implacável e irracional religião que jamais existiu, porque não conhece nem redenção nem trégua. Ela celebra um
culto ininterrupto cuja liturgia é o trabalho e cujo objeto é o dinheiro. Deus não morreu, ele se tornou Dinheiro. O
Banco – com os seus cinzentos funcionários e especialistas – assumiu o lugar da Igreja e dos seus padres e,
governando o crédito (até mesmo o crédito dos Estados, que docilmente abdicaram de sua soberania ), manipula
e gere a fé – a escassa, incerta confiança – que o nosso tempo ainda traz consigo”. (AGAMBEN, Giorgio. Deus
não morreu. Ele tornou-se Dinheiro. Entrevista com Giorgio Agamben. [Entrevista cedida a] Peppe Salvà. Instituto
Humanitas Unisinos, 2012. Tradução: Selvino J. Assmann. Disponível em:
http://www.ihu.unisinos.br/noticias/512966-giorgio-agamben. Acesso em: 02 jun. 2019).
215 DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo…, op. cit., p. 200.
68

capital estrangeiro passou a dominar as corporações, passando a haver um poder cada vez maior
na mão dos acionistas e investidores. Desse modo, as próprias empresas tiveram suas estruturas
modificadas, passando a ser controladas não mais por seus gestores, mas pelos acionistas.
É a vontade dos acionistas que, antes de mais nada, ganha o protagonismo nas
empresas. Do mesmo modo, não é mais o que ou como a empresa produz que ganha relevância,
mas sim, quanto valem suas ações. Essa mudança faz com que o mercado financeiro se torne
um “agente disciplinante para todos os atores da empresa, desde o dirigente até o assalariado
de base (...).”216 A autonomia dos gestores é, então, limitada, e o comportamento de todos
dentro da empresa deve estar condizente com políticas de valorização na bolsa de valores.
Passa-se a seguir a vontade intransigente dos grupos seletos de grandes acionistas e
investidores, que os neoliberais preferem chamar apenas de “Mercado”.
Dardot e Laval destacam esse caráter disciplinador dessa nova forma de capitalismo:
não se trata de um capitalismo desorganizado, mas de um capitalismo que se ergue sobre novas
bases, instaurando uma disciplina específica para fazer da concorrência uma norma
fundamental generalizada a nível global:

O que aprouve chamar de ‘desregulamentação’, termo ambíguo que poderia dar a


entender que o capitalismo não conhece nenhum outro modo de regulação, é na
realidade uma nova ordenação das atividades econômicas, das relações sociais, dos
comportamentos e das subjetividades. Nada é mais indicativo disso do que o papel
dos Estados e das organizações econômicas internacionais no estabelecimento do
novo regime de acumulação predominantemente financeiro. Há, de fato, uma falsa
ingenuidade no fato de se lamentar a força do capital financeiro em oposição à força
declinante dos Estados. O novo capitalismo está profundamente ligado à construção
política de uma finança global regida pelo princípio da concorrência generalizada.
Nisso, a ‘mercadorização’ (marketization) das finanças é a filha da razão neoliberal’.
217

Ou seja, a globalização não significou a retirada de qualquer imposição, mas trouxe


um novo sistema de disciplina, com regras a serem seguidas por todos os atores financeiros, a
incluir os indivíduos e os Estados. Não está mais em disputa a possibilidade de contrariar essa
nova ordem global, de modo que os sistemas políticos devem se adequar à abertura de fronteiras
à mercadoria e ao capital, pois só assim se possibilita a concretização do objetivo principal, que
é o da concorrência a nível mundial. Com isso, liberta das barreiras regulatórias, a atividade
financeira cresceu descontroladamente, ultrapassando em muito o poder que detêm os Estados,
a democracia ou a ultrapassada soberania nacional.
A atividade especulativa das empresas tornou-se muito rentável, causando uma bolha
abordada por Ladislau Dowbor em A era do capital improdutivo. O ponto central desenvolvido

216 Ibid., p. 201.


217 Ibid., p. 201-202.
69

na obra é que a desregulação no sistema financeiro fez com que a especulação substituísse
investimentos reais, causando um processo de drenagem no sistema produtivo.218 A distribuição
de renda em nível global, mostrada na imagem 01 do tópico anterior, indica um percentual
mínimo de 1% da população adulta mundial que detém mais recursos do que todo o restante da
população mundial. Dowbor se dedica, em toda sua obra, ao estudo da concentração de poder
nas grandes corporações, alertando para os desvios quando se consideram os Estados como os
grandes poderosos:

Quando na capa do The Economist aparece o nome da empresa BlackRock e seu


faturamento de 14 trilhões de dólares, quase equivalente ao PIB dos Estados Unidos,
temos de reajustar nossos conceitos. Foi realmente o Estado que se tornou um gigante
sem controle?219
O grupo seleto do 1% mais rico, que está à frente das grandes corporações que ditam
as regras do Mercado, tem fortunas tamanhas que não se satisfazem com o consumo. Desse
modo, essas fortunas são reaplicadas no mercado financeiro, que acentua a posição desses
super-ricos, pois a aplicação financeira rende muito mais do que investimentos produtivos:
enquanto o PIB cresce em um ritmo que oscila entre 1% e 2,5%, as aplicações financeiras têm
um rendimento acima de 5%. Dessa forma, cria-se “uma dinâmica de transformação do capital
produtivo em patrimônio financeiro: a economia real sugada pela financeirização planetária”.220
Dowbor aborda, em sua obra, uma pesquisa realizada pelo Instituto Federal Suíço de
Pesquisa Tecnológica, feito em 2011, intitulado “A Rede de Controle Corporativo Global”. O
que esse estudo mostra, aponta Dowbor, é que as grandes corporações se organizam em grandes
grupos cujo poder está altamente concentrado, desafiando qualquer tentativa de regulação por
parte dos governos nacionais. Como essas corporações são gigantes e desconhecem limites
espaciais, transitam livremente entre os terrenos que lhes forem mais favoráveis. Já as
possibilidades de regulação, por outro lado, não têm poder análogo, pois estão dispersas,
fragmentadas entre países que não se articulam para limitar esse poder desenfreado.221
A pesquisa suíça analisada por Dowbor indica que esse modelo de financeirização
desregulada traz uma tendência de dominação do sistema especulativo sobre o produtivo, de
modo que essa deformação não decorre de uma articulação global entre os atores beneficiados,
mas é estrutural. Entre esses grandes grupos corporativos, quando os interesses convergem, não
se faz necessário nenhum tipo de acordo, pois há uma espécie de solidariedade inerente a esse

218 DOWBOR, Ladislau. A era do capital improdutivo…, op. cit., p. 32.


219 Ibid., p. 55.
220 Ibid., p. 33.
221 Ibid., p. 47.
70

sistema, sobretudo quando se trata de evitar qualquer regulação, taxação ou controle por parte
de normas contrárias às do mercado.222
Essa lógica da concorrência como um processo disciplinador e revelador dos mais
aptos à sobrevivência em uma sociedade de Mercado reforça a aproximação do neoliberalismo
com darwinismo aplicado ao campo social. Como visto, a ideia desenvolvida pelo pensamento
neoliberal é a de que as condutas individuais são guiadas pela competição, consolidando um
darwinismo social, de modo que qualquer tipo de desequilíbrio à ordem da concorrência é
prejudicial a todo o processo evolutivo. A esse respeito, muito se tem estudado essa concepção
dos indivíduos em sociedade como se fossem colocados em luta pela sobrevivência, criticando-
se, em muitos casos, os lições de meritocracia trazidas por esse tipo de discurso.
O que se pretende demonstrar, aqui, vai além da crítica ao darwinismo social. Trata-
se de entender como a racionalidade neoliberal estendeu o discurso cientificista para legitimar
a norma da concorrência não somente entre os indivíduos, mas atingiu também os Estados, em
uma disputa pelos investimentos do capital financeiro, fazendo com que o Direito fosse
colocado na mesa de negociação.
Alain Supiot aborda o que ele chama de darwinismo normativo, de forma significante
e muito contributiva para a análise aqui pretendida. Destaca o autor que, no contexto do
Mercado Total, o Direito passa a ser mais um dos produtos dentro da competição no cenário
mundial. Desse modo, a lei natural que seleciona os mais aptos dentro do mercado competitivo
também é aquela que atravessa o Direito em um processo de seleção das normas mais aptas. O
Direito é colocado, então, sob norma da concorrência, em vez de, ao contrário, fazer com que
a concorrência se sujeite à lei.223
No cenário da globalização, os investidores e empresas são livres para buscarem as
leis que lhes forem mais favoráveis, não devendo se sujeitar às legislações dos países em que
operam.224 Abre-se um novo mercado de produtos legislativos, em uma livre disputa que visa
a selecionar as normas mais pertinentes aos interesses do mercado. Alain Supiot dá o nome a
esse processo: law shopping.225 As corporações passam a ser vistas como consumidoras do
Direito que melhor atender a suas exigências.
Nesse mercado de normas, afirma Supiot, o Banco Mundial exerce um papel
fundamental. Anualmente, a instituição publica um relatório que avalia os direitos nacionais e
a eficácia econômica de cada país.226 Essas publicações, feitas desde o ano de 2004, constituem

222 Ibid., p. 49.


223 SUPIOT, Alain. O espírito de Filadélfia…, op. cit., p. 58.
224 Ibid., p. 58.
225 Ibid., p. 59.
226 Ibid., p. 59.
71

o programa de pesquisa Doing Business, que analisa o contexto regulatório em 190 países
buscando relacionar os indicadores relacionados à atividade empresarial. Segundo consta em
nota do Ministério da Fazenda – hoje, Ministério da Economia, a respeito do tema, são
analisados onze indicadores, sendo eles:
i) Abertura de empresas; ii) Registro de propriedades; iii) Obtenção de crédito; iv)
Pagamento de impostos; v) Comércio entre fronteiras; vi) Execução de contratos; vii)
Resolução de insolvência; viii) Obtenção de eletricidade; ix) Proteção dos
investidores minoritários; x) Obtenção de alvarás de construção; xi) Regulação do
mercado de trabalho.227
Na última edição publicada, que ganhou o nome de Doing Business: Treinar para
Implementar reformas, o relatório se debruça sobre reformas regulatórias entre junho de 2017
e maio de 2018. A partir dos critérios estabelecidos, o trabalho estabelece um ranking para as
economias que mais passaram por reformas no sentido proposto pelo relatório: ganham
destaque países como Afeganistão, Djibouti, China, Azerbaijão, Índia, Togo, Quênia, Costa do
Marfim, Turquia e Ruanda228, demonstrando como o processo de neoliberalização atinge em
massa os países da periferia global. No mesmo sentido, o relatório também conclui que “um
terço de todas as reformas regulatórias registradas (...) foi implementado pelas economias da
África Subsaariana”229. O Brasil marca sua presença em diversos pontos do relatório, ganhando
destaque, aqui, em matéria de reformas na legislação trabalhista e de redução de complexidade
regulatória na abertura de empresas.
Como consta no próprio site do projeto, uma das conclusões do relatório publicado em
2019, que tem foco no no treinamento para implementar reformas, é a de que “oportunidades
para treinar tanto os funcionários do governo como os usuários dos serviços públicos estão
positivamente associadas com a facilidade de se fazer negócios”.230 Da mesma forma, o
relatório é entusiasta em estabelecer “uma melhor comunicação entre o governo e o setor
privado sobre mudanças legislativas”231.
Além dessa edição do relatório, ganham notoriedade outras pretéritas, como a edição
de 2005, intitulada Removendo Obstáculos para Crescer, na qual havia um capítulo dedicado
a analisar a facilidade em se contratar e demitir trabalhadores dentre todos os países

227 MINISTÉRIO DA FAZENDA. Nota de 1º de novembro de 2018. O que é Doing Business? Disponível em:
http://www.fazenda.gov.br/centrais-de-conteudos/publicacoes/analises-e-
estudos/arquivos/2018/doingbusiness2019_long_01_11.pdf. Acesso em: 03 jun. 2019.
228 BANCO MUNDIAL. Doing Business 2019: Training for reform. Comparing business regulation for domestic

firms in 190 economies. 16. ed. Washington: 2019 International Bank for Reconstruction and Development, 2019.
Tradução nossa. Disponível em: http://portugues.doingbusiness.org/pt/reports/global-reports/doing-business-
2019. Acesso em 29 mai. 2019.
229 BANCO MUNDIAL. Ibid. (Tradução nossa).
230 BANCO MUNDIAL. Ibid.
231 BANCO MUNDIAL. Ibid.
72

analisados,232 e a edição de 2011, denominada Fazendo a Diferença para os Empresários, que


se dedicou a estudar “reformas normativas destinadas a tornar mais fácil abrir e operar um
negócio”233.
Esse relatório se insere perfeitamente no contexto alertado por Supiot, em que há um
verdadeiro mercado de produtos legislativos. Funciona, então, como um cardápio para que as
corporações possam driblar, sem maiores dificuldades, qualquer regulação que lhes seja
prejudicial, qualquer Direito que possa reduzir sua rentabilidade. Assim, nesse cenário, a
concorrência entre sistemas jurídicos se fortalece de tal forma que é muito provável, como alerta
Supiot, que os produtos pouco competitivos sejam progressivamente eliminados.
Por fim, o que se pode concluir, até aqui, é que se tradicionalmente a democracia
poderia ter forças em suas reivindicações, se a soberania do Estado permitia diferentes formas
de governo, e se o sistema jurídico se erigia sobre princípios próprios e sobre as garantias
fundamentais de cada cidadão, hoje, as próprias noções de Democracia, Soberania, Direito e
Cidadania devem ser revisitadas. Para a análise que se segue, então, parte-se do pressuposto de
que, uma vez que as empresas são transnacionais, o dinheiro é imaterial e o sistema disciplinar
é global, o território não é mais capaz de limitar mais qualquer atuação dos grandes donos do
poder.
Retomando a lição de Carl Schmitt em O nomos da Terra, se está diante de um
universalismo destituído de espaço234. Na mesma linha, destaca Dowbor: “Na expressão que
utilizam, space is dead, o espaço morreu”235.

232 SUPIOT, Alain. O espírito de Filadélfia…, op. cit., p. 60.


233 BANCO MUNDIAL. Doing Business 2010: Fazendo a diferença para os empresários. Comparação de
regulamentações em 183 países. 8. ed. Washington: 2010 International Bank for Reconstruction and Development,
2010. Disponível em: http://portugues.doingbusiness.org/pt/reports/global-reports/doing-business-2011.
234 SCHMITT, Carl. O nomos da Terra no direito das gentes do jus publicum europæum. Tradução: Alexandre

Guilherme de Sá et al. 1 ed. Rio de Janeiro: Contraponto Ed PUC-Rio, 2014. p. 205.


235 DOWBOR, Ladislau. A era do capital improdutivo…, op. cit., p. 51.
73

3 LAWFARE: QUANDO O NEOLIBERALISMO ENCONTRA O DIREITO

O desenvolvimento do trabalho, até aqui, a respeito da nova ordem mundial e do


neoliberalismo enquanto nova razão do mundo, fez com que o debate pretendido alcançasse
temas relevantes ao Direito, buscando-se, assim, mostrar algumas das mudanças sofridas no
contexto de uma ordem global de livre troca e plena concorrência. Os sistemas jurídicos
encontram-se, na ordem global, sob a forma de participantes desse jogo da livre concorrência a
serviço das ordens de um mercado totalizante. Como já apontado, o Direito deixa de regular a
concorrência e se vê sujeito a ela.
A seguir, o trabalho pretende analisar como esse contexto representou uma abertura
para a prática do lawfare, condizente com a ordem do mundo na qual a livre concorrência é a
norma fundamental. Se o Direito passa a ser instrumentalizado, trata-se de entender em que
instrumento ele se constitui quando se está em uma guerra a nível global.

3.1 NOTAS SOBRE O LAWFARE

Sobre a forma do Direito neoliberal, Alain Supiot afirma que o Direito nascido do
neoliberalismo está impregnado de formas antigas, havendo sofrido um processo de
feudalização. Segundo o autor, esse processo ensina que as categorias do passado não seguem
uma linha evolutiva, e que formas antigas podem ser retomadas a qualquer tempo, “mesmo
porque não existe uma variedade infinita de tipos de estruturas jurídicas”.236
Fazendo referência à filosofia política chinesa, Supiot distingue o governo pelas leis
do governo pelos homens. Destaca o autor que, no governo pelas leis, a lei decorre da vontade
de um poder soberano e é imposta a todos de forma igual. Sendo assim, todos estão submissos
a leis gerais e abstratas, o que é também uma “condição de liberdade reconhecida para cada
um”.237 Essa estrutura implica a participação de um terceiro, que é a fonte e garantia das leis,
cujos interesses não se confundem com aqueles dos indivíduos.
Já no governo pelos homens, cada indivíduo está inserido em um sistema com muitos
elos de dependência, que não diz respeito à igual submissão de todos perante a lei abstrata. Essa
dependência se determina, na verdade, pela conformidade dos comportamentos dos indivíduos
de acordo com o lugar que cada um ocupa nessa rede de dependências, ou seja, “o que define a
condição jurídica dos homens, tanto em suas relações mútuas quanto em suas relações com as
coisas, é a inclusão nessas ligações pessoais, e não a submissão a uma mesma lei impessoal”.238

236 SUPIOT, Alain. O espírito de Filadélfia: a justiça social diante do mercado total. Tradução: Tânia do Valle
Tschiedel, Porto Alegre: Sulina, 2014. p. 93.
237 Ibid., p. 93.
238 Ibid., p. 94.
74

No governo pelas leis, são delimitadas duas esferas bem distintas: há um plano jurídico
referente a questões que dependem tão somente da deliberação da lei, independentemente de
qualquer cálculo de utilidade individual; e há o plano que se refere às ações calculáveis pelos
indivíduos, passíveis de negociação pela via do contrato. É nesse segundo âmbito, o do contrato,
que os indivíduos podem ser tratados como entidades abstratas e cambiáveis, uma vez que “suas
diferenças qualitativas são responsabilidade do domínio do incalculável que incumbe à Lei”.239
No modelo de governo pelos homens, por sua vez, essa distinção entre Lei e contrato,
entre incalculável e calculável, é turva. Ou seja, a lei é colocada sob negociação entre grupos
de interesse, fazendo com que a suposta lei geral e abstrata seja também suscetível de câmbio.
Nesse quadro, a figura do terceiro garantidor não desaparece, mas é fragmentada sob a forma
de múltiplos polos que estão conectados nessa mesma rede. O Estado, alerta Supiot, deixa de
ser soberano para se aproximar da figura de um suserano em relação a essa rede de interesses
global.240
Partilhando da crítica de Supiot, segundo a qual o direito neoliberal retomou o modelo
de governo pelos homens, passando pela instrumentalização do Direito abordada no capítulo
anterior, este trabalho chega, enfim, ao tema que lhe atribuiu seu título. Arriscando-se caminhar
sobre o terreno ainda pouco explorado do lawfare, pretende-se, aqui, trazer algumas
considerações principais sobre essa técnica e sua estreita relação com o caminho trilhado pelo
Direito neoliberal.
De antemão, faz-se necessário trazer à tona algumas dificuldades no estudo do tema,
que, embora venha sendo mencionado com certa frequência nos meios midiáticos e discussões
políticas, ainda não recebeu a devida dedicação em matéria acadêmica. As pesquisas por
abordagens brasileiras do lawfare mostraram que há alguns artigos e trabalhos esparsos que
mencionam o lawfare dentro de análises de casos práticos. No entanto, na grande maioria dessas
análises, são os casos que ganham protagonismo, e a menção ao lawfare é trazida, em geral,
juntamente com uma curta definição, sem, no entanto, dedicar-se de forma aprofundada ao seu
conceito, suas origens e sua íntima relação com o neoliberalismo.
Recorrendo à literatura estrangeira, esta pesquisa debruçou-se diante de um livro
inteiro dedicado ao lawfare, intitulado: “Lawfare: law as a weapon of war”, escrito pelo
professor de Direito da Universidade Estadual do Arizona e antigo procurador do Departamento
de Estado norte-americano, Orde Kittrie. A obra, publicada em 2016, tem a intenção de reunir
pontos relevantes sobre a matéria, trazendo, sobretudo, casos em que houve prática de lawfare.

239 Ibid., p. 94.


240 Ibid., p. 94.
75

O autor parte da constatação de que o Direito tem se tornado uma arma de guerra cada
vez mais poderosa. Ele inclui algumas razões que possam ter contribuído para essa crescente
instrumentalização, dentre as quais o número crescente de busca por leis e tribunais
internacionais, o aumento de organizações não-governamentais com foco em conflitos
armados, a revolução das tecnologias da informação e, por fim, o avanço da globalização e da
interdependência econômica.241
A análise que aqui se pretende fazer do lawfare, como se demonstrará, é muito distinta
daquela feita ao longo da obra de Kittrie. No entanto, é possível reconhecer, desde já, que há
ao menos uma concordância ao se admitir a globalização como sendo responsável pela
instrumentalização do uso do Direito como arma de guerra.
Reconhecendo o fenômeno de crescimento do Direito enquanto instrumento bélico, o
major-general norte-americano Charles Dunlap Jr. escreveu um artigo, em novembro de 2001,
que introduziu o termo lawfare sob a forma que é hoje mais utilizada e aceita
internacionalmente.242 Em outro artigo escrito alguns anos depois, ele definiu lawfare como
sendo “o uso – ou mau-uso – da lei como substituto de tradicionais meios militares para atingir
um objetivo operacional”.243
Dunlap, em seu texto, usou o termo para abordar o uso estratégico do Direito
principalmente para criticar o uso de leis que colocassem em risco a legitimidade das
campanhas militares orquestradas pelos Estados Unidos e Israel. Ele inicia seu artigo alertando
para esse suposto perigo: “Está, o lawfare, transformando a guerra em injustiça? Em outras
palavras, o direito internacional está prejudicando a habilidade de os Estados Unidos de
conduzirem efetivamente suas intervenções militares?”244 Para Dunlap, o conteúdo desse novo
direito internacional emergente, profundamente antidemocrático, teria o potencial de
comprometer a liderança dos Estados Unidos.
Ao atribuir o papel da globalização no crescimento do lawfare, Dunlap cita como
exemplo países europeus que, em meio a economias cada vez mais competitivas a nível
mundial, pareceram abandonar elementos de sua soberania. Esses países parecem confortáveis
com a ideia de obedecer ao Parlamento europeu, que é essencialmente uma legislação externa

241 KITTRIE, Orde F.. Lawfare: law as a weapon of war. New York: Oxford University Press, 2016. p. 1. Tradução
nossa.
242 DUNLAP JR, Charles J. Law and military interventions: preserving humanitarian values in 21st conflicts.

Humanitarian Challenges in Military Intervention Conference, 2001. Disponível em:


https://people.duke.edu/~pfeaver/dunlap.pdf. Acesso em 02 jun. 2019. (Tradução nossa).
243 DUNLAP JR., Charles J. Lawfare Today: A Perspective, Yale Journal of International Affairs 146-154

(Winter 2008). Disponível em: https://scholarship.law.xduke.edu/faculty_scholarship/3154/. Acesso em 02 jun.


2019. (Tradução nossa).
244 DUNLAP JR, Charles J. Law and military interventions: preserving humanitarian values in 21st conflicts.

2001. Tradução nossa. Disponível em: https://people.duke.edu/~pfeaver/dunlap.pdf. Acesso em 02 jun. 2019.


76

aos países-membros, em uma afronta à soberania estatal que jamais seria aceita, segundo
Dunlap, pelos Estados Unidos.245
Importa destacar, no entanto, que tanto para Dunlap, que cunhou o termo na forma
pela qual é mais utilizado hoje, quanto para Kittrie, o termo é neutro, não indicando, portanto,
que a prática do lawfare seja positiva ou negativa. Como qualquer arma, o lawfare pode ser
utilizado para fins diversos, não sendo intrinsecamente prejudicial. Kittrie destaca, nesse
sentido, não somente os efeitos malignos, mas também aspectos positivos à segurança norte-
americana, em situações nas quais o lawfare protegeu a população dos movimentos de
insurgência e em que os processos judiciais auxiliaram a combater o financiamento de
atividades consideradas terroristas.246
Para Orde F. Kittrie, o governo dos Estados Unidos engajou-se de forma esporádica
com o lawfare, sem desenvolver uma verdadeira estratégia ou doutrina a respeito dessa técnica,
o que ele considera uma oportunidade desperdiçada. Nos casos analisados em seu livro, ele
procura demostrar que em muitas vezes o lawfare pode substituir o conflito armado, por ser
uma prática menos danosa e menos custosa do que a guerra pelos meios tradicionais. 247 As
posições do autor quanto ao uso do lawfare pelos Estados Unidos tornam-se ainda mais claras
ao longo da obra: “este livro recomenda que os Estados Unidos e seus aliados melhorem suas
habilidades ofensivas e defensivas diante do lawfare instrumental (...)”.248
Embora, em um primeiro momento, a obra de Kittrie pareça servir exatamente ao
estudo do presente trabalho, a leitura de suas primeiras páginas já indica o distanciamento com
relação ao que aqui se pretende abordar a respeito do lawfare. O distanciamento mostra-se sob
diversas formas, entre elas a centralidade da segurança nacional dos Estados Unidos que
permeia toda a abordagem de Kittrie; o menor aprofundamento dedicado a questões teóricas
em benefício de casos práticos; a discussão em matéria de direito internacional sem um estudo
aprofundado de práticas de lawfare dentro das políticas internas. Assim, o livro de Kittrie e o
artigo de Dunlap Jr. permitem uma primeira abordagem do tema, marcada antes pelos seus
afastamentos do que pelas suas aproximações com o estudo aqui pretendido.
Naquele mesmo ano de 2001, outro estudo a respeito do lawfare também era
desenvolvido, dessa vez por John Comaroff, antropólogo norte-americano e então professor da

245 Ibid. (Tradução nossa).


246 KITTRIE, Orde F.. Lawfare: law as a weapon of war. New York: Oxford University Press, 2016. p. 7.
(Tradução nossa).
247 No original, de forma estendida: “Lawfare is almost Always less deadly than traditioanl warfare. […] Lawfare

is also almost Always less financially costly than traditional warfare”. (KITTRIE, Orde F.. Lawfare: law as a
weapon of war. New York: Oxford University Press, 2016. p. 3).
248 KITTRIE, Orde F.. Lawfare: law as a weapon of war. New York: Oxford University Press, 2016. p. 32-33.

(Tradução nossa).
77

Universidade de Chicago. A análise de Comaroff partia de pontos muito diferentes daquela


pretendida por Dunlap e Kittrie: o antropólogo dedica seu estudo às relações entreDdireito e
colonialismo, definindo lawfare como “o esforço para conquistar e controlar povos indígenas
pelo uso coercivo de meios legais”.249 Ele fala, portanto, em um lawfare de dominação, que
parte dos colonizadores para as colônias – muito distante do lawfare sofrido pelos Estados
Unidos, como argumentam Dunlap e Kittrie.
Em um livro publicado poucos anos mais tarde, intitulado Law and Disorder in the
Post Colony e escrito por John Comaroff juntamente com sua esposa Jean Comaroff, os autores
analisaram novamente o fenômeno do lawfare, abordando-o enquanto um “recurso a
instrumentos legais e à violência inerente ao Direito para cometer atos de coerção política”250.
Os autores tratam da violência inerente ao Direito a partir da perspectiva de Walter Benjamin
em seu ensaio Para uma Crítica da Violência (Poder).
O ensaio de Benjamin, publicado em 1921, busca estabelecer uma crítica das relações
entre violência e direito. No ensaio, Walter Benjamin discorre que a violência só se apresenta
como tal, “no sentido pregnante da palavra, quando interfere em relações éticas”251,
relacionando-se à esfera do Direito e da justiça, portanto. Nesse sentido, a relação entre Gewalt
– que pode significar tanto violência como poder – e o Direito se mostra na medida em que
toda violência, enquanto meio, é instituinte ou mantenedora do Direito.252
A violência não pode ser um fim em si, isto é, ela só pode servir como um meio. Sendo
assim, se a violência é aceita como meio, pode parecer que o critério existente para sua crítica
seja aquele relacionado aos fins para os quais a violência é utilizada, se justos ou injustos.
Assim, a crítica da violência implicitamente estaria inserida dentro de um sistema de fins
justos.253 Mas essa questão não responde à pergunta para saber se “a violência em geral,
enquanto princípio, é ética, mesmo como meio para fins justos”254. Para isso, Benjamin propõe
um critério de crítica ligado aos próprios meios, sem levar em conta os fins.
A posição adotada por Benjamin critica a visão jusnaturalista do Direito, segundo a
qual a violência é um produto da natureza que pode ser utilizado desde que para fins justos. Em

249 COMAROFF, John L. Colonialism, culture, and the law: A foreword. Law & Social Inquiry, v. 26, n. 2, p.
305-314, 2001. Tradução nossa. Disponível em: https://www.cambridge.org/core/services/aop-cambridge-
core/content/view/127843DF67C63ADF9098CD2AFC8F34B4/S089765460001282Xa.pdf/colonialism_culture_
and_the_law_a_foreword.pdf. Acesso em 05 jun. 2019.
250 COMAROFF, Jean; COMAROFF, John. Law and Disorder in the Postcolony. Social Anthropology, v. 15, n.

2, p. 133-152, 2007. p. 144. Tradução nossa. Disponível em:


https://onlinelibrary.wiley.com/doi/abs/10.1111/j.0964-0282.2007.00010.x. Acesso em 05 jun. 2019.
251 BENJAMIN, Walter. Para uma crítica da violência. In: BENJAMIN, Walter. Escritos sobre mito e linguagem.

2. ed. São Paulo: 34, 2013. p. 121.


252 Ibid., p. 136.
253 Ibid., p. 122.
254 Ibid., p. 122.
78

contrapartida, para o juspositivismo, a tese é diametralmente oposta: “se o direito natural pode
julgar cada direito existente apenas por meio da crítica aos seus fins, o direito positivo, por sua
vez, pode avaliar qualquer direito nascente apenas pela crítica aos seus meios”255. Assim,
enquanto para o direito natural a justiça dos fins legitima os meios, para o direito positivo a
justiça dos fins só pode ser garantida se os meios forem legítimos.
Diante da necessidade de estabelecer critérios independentes para fins justos e meios
justificados, Benjamin esclarece que sua investigação não pretende abordar os critérios de
justiça dos fins. Por isso, sua análise está centrada na “pergunta pela justificação de certos meios
que constituem a violência”256. Se os princípios do direito natural não auxiliam na resposta a
essa pergunta, o direito positivo pode ser aceitável como um ponto de partida para a
investigação do autor, na medida em que a teoria positivista compreende uma diferenciação
entre uma violência historicamente reconhecida, a violência sancionada, de uma violência não
sancionada.257
Ou seja, passa a haver uma violência em conformidade com o Direito. Nesse ponto é
que o sistema jurídico é quem tem a prerrogativa de estabelecer quais meios violentos são
válidos, o que “não se explicaria pela intenção de garantir os fins do direito mas, isso sim, pela
intenção de garantir o próprio direito”.258 Daí que, dando um verdadeiro salto no ensaio de
Benjamin, possibilitador de análises muito mais longas e aprofundadas, ele conclua que toda a
violência enquanto meio é instituidora ou mantenedora do Direito.
Giorgio Agamben analisa essa “oscilação dialética entre violência que põe o direito e
outra que o conserva”259 acrescentando uma terceira forma de violência que não aparece no
ensaio de Benjamin. Ele trata da violência soberana do estado de exceção, que não instaura e
nem conserva o Direito, mas “o conserva suspendendo-o e o põe excetuando-se a ele”260. Assim
como a violência divina, outra figura abordada por Benjamin, a violência soberana não se reduz
às formas trazidas na dialética da violência entre instituição e conservação do Direito.
Feita essa digressão sobre a relação entre direito e violência, pode-se retomar as lições
de Comaroff acerca do uso do Direito e da violência a ele inerente para fins políticos. Nesse
ponto, destaca o antropólogo, tradicionalmente o lawfare é utilizado pelo polo mais forte contra
o polo mais fraco, embora exista também um tipo de lawfare insurgente, em sentido contrário
àquele mais comum.

255 Ibid., p. 124.


256 Ibid., p. 124.
257 Ibid., p. 125.
258 Ibid., p. 127.
259 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua, v. I. Tradução: Henrique Burigo. Belo

Horizonte: Editora UFMG, 2002. p. 72.


260 Ibid., p. 72.
79

O antropólogo aponta três dimensões próprias à guerra que são igualmente aplicáveis
ao lawfare na contemporaneidade. O primeiro elemento diz respeito ao aspecto geográfico, isto
é, saber onde estão sendo travadas as guerras. Se no sentido da guerra bélica esse aspecto traz
um indicativo cartográfico, territorial, no lawfare esse elemento equivale à jurisdição. Nesse
ponto, o lugar pode ser determinante para as chances de sucesso de uma guerra sob a forma do
lawfare.261
O segundo ponto está relacionado com o armamento utilizado na guerra. No âmbito
do Direito, portanto, trata-se das ferramentas jurídicas, da lei, da jurisprudência que será
utilizada como forma de derrotar politicamente o inimigo. O Direito, aqui, é instrumentalizado,
trazendo em evidência a violência que lhe é inerente, conforme trazido pela leitura benjaminina
feita por Comaroff, para se prestar a aniquilação do inimigo.262
Por fim, relacionando-se com o anterior, o terceiro e último elemento diz respeito às
externalidades. Segundo Comaroff, trata-se, aqui, do ambiente criado para que o Direito seja
utilizado como arma contra o inimigo, a incluir a conjuntura que envolve a captura da mídia,
do Estado, da opinião pública pelas grandes corporações.263 No mesmo sentido dessa
abordagem, Ladislau Dowbor aborda a captura do sistema jurídico que cria um sistema paralelo,
desresponsabilizando grandes corporações por seus atos ilícitos, crimes financeiros e
ambientais, que passam a ser resolvidos com todo tipo de negociação e settlements. Além disso,
há a captura da mídia, controlada por poucos grandes grupos privados, que faz com que o
princípio da liberdade de imprensa não passe de algo surreal. O autor ainda traz um controle do
ensino e de publicações acadêmicas, além do controle direto sobre as pessoas que já não têm
mais sua privacidade resguardada.264
A partir dessas externalidades, Comaroff relembra a distinção entre rule of law e rule
by law. Enquanto o rule of law (governo da lei) se relaciona com o Estado de Direito, próprio
às democracias, sujeitando o exercício do poder político ao Direito, o rule by law (governo pela
lei) indica a utilização do Direito sob uma forma instrumentalizada por parte daqueles que
detêm o poder. Comaroff esclarece, nesse sentido, que o rule by law é característico de regimes
autárquicos, em que se faz uso do Direito para atacar o inimigo e controlar populações.265
Por fim, para se falar em “ataque ao inimigo”, na tentativa de traçar o panorama do
Direito empregado como arma de guerra pela via do lawfare, é pertinente recorrer, mais uma

261 JOHN COMAROFF explica Lawfare. 1 vídeo (21min). Publicado pelo canal A Verdade de Lula. Disponível
em: https://www.youtube.com/watch?v=skCRotOT1Lg. Acesso em 14 jun. 2019.
262 Ibid.
263 Ibid.
264 DOWBOR, Ladislau. A era do capital improdutivo: Por que oito famílias têm mais riqueza do que a metade

da população do mundo? São Paulo: Autonomia Literária, 2017. p. 121.


265 JOHN COMAROFF explica Lawfare. 1 vídeo (21min). Publicado pelo canal A Verdade de Lula. Disponível

em: https://www.youtube.com/watch?v=skCRotOT1Lg. Acesso em 14 jun. 2019.


80

vez, a Carl Schmitt. Isso porque o autor não só traz elementos essenciais para a compreensão
da mudança no significado de guerra trazida pela dissolução do antigo nomos da Terra, como
também se dedica, em O conceito do político, à questão da distinção entre amigo e inimigo
como o critério específico da política. Dada a importância da abordagem de Schmitt para a
leitura do cenário atual, permite-se, aqui, uma pequena digressão, com o retorno para sua obra.
Quanto à questão da inimizade, ou da política – estando ambas intimamente
conectadas –, Schmitt afirma que tal como os âmbitos moral, estético e econômico têm
diferenciações últimas às quais se pode recorrer a fim de determinar ações e motivos, o âmbito
da política também possui uma tal diferenciação específica. Se para a moral tem-se o bom e o
mau; para a estética, o belo e o feio; para a economia, o rentável e o não-rentável; para a política,
da mesma forma, tem-se o amigo e o inimigo. Esses âmbitos são distintos e não necessariamente
imbricados, de modo que pode ser rentável fazer negócios com o inimigo, assim como o amigo
pode não ser moralmente bom.266
O inimigo, então, afirma Schmitt, é essencialmente um Outro, um estrangeiro contra
o qual há a possibilidade real de um combate de vida e morte, isto é, aquele contra quem se
pode declarar uma guerra. Tal enfrentamento não precisa se concretizar, desde que haja sua
possibilidade.267 De todo modo, para Schmitt, o importante é que o inimigo é aquele com quem
se pode decretar também a paz. Ou seja, o inimigo não é um criminoso que precisa ser
aniquilado.268
Como se buscou demonstrar no primeiro capítulo deste trabalho, a circunscrição da
guerra marcou, durante mais de quatro séculos, o nomos da Terra do direito público europeu.
Os Estados europeus reconheciam-se enquanto iguais em direito, o que formava uma proteção
contra guerras de aniquilação. Se essa ordem europeia prosperou por tanto tempo, não foi por
haver eliminado a guerra, mas sim por circunscrevê-la. No cerne do direito das gentes europeu
estava, portanto, a circunscrição da guerra:

A essência de tais guerras era uma ordenada medição de forças em um espaço


circunscrito e diante de testemunhas. Tais guerras são o contrário de desordem. Nelas
encontra-se a mais elevada forma de ordem de que é capaz a força humana. São a
única proteção contra o ciclo das represálias que se multiplicam, contra as ações
niilistas de ódio e vingança, cuja finalidade absurda é a aniquilação mútua.269
A dissolução do antigo nomos da Terra trouxe um novo significado de guerra, como
buscou demonstrar Schmitt. Não havendo mais o pertencimento a um espaço comum, com a
dissolução da antiga ordem espacial a circunscrição da guerra não era mais perseguida pelos

266 SCHMITT, Carl. O conceito do político. Lisboa: Edições 70, 2015. p. 50-51.
267 Ibid., p. 51-56.
268 SCHMITT, Carl. O nomos da Terra…, op. cit. p. 151-153.
269 Ibid., p. 197-198.
81

Estados. Nesse ponto, Schmitt aponta a fragilidade do Protocolo de Genebra, assinado em 1925,
que tentou criminalizar a guerra sem se preocupar em circunscrevê-la. O protocolo fracassou,
segundo Schmitt, por não ter conseguido formular uma resposta aos aspectos materiais que se
colocavam no contexto da guerra.270
Apesar do fracasso do Pacto de Genebra, os norte-americanos que fomentavam a ideia
de criminalização da guerra conseguiram o que pretendiam anos mais tarde, com o Pacto
Kellog. Assinado em 1928, o pacto, também conhecido como Pacto Multilateral contra a
Guerra, “alterou o aspecto universal do direito das gentes”271, afirma Schmitt. Foi nesse ponto
em que o hemisfério ocidental surgiu no cenário mundial, determinando uma mudança no
sentido da guerra e trazendo uma nova linha global – não mais eurocêntrica.
Essa nova linha, afirma Schmitt, é uma linha de autoisolamento272 não somente
geográfico: “a expressão ‘hemisfério ocidental’ é reiteradamente usada de modo a identificar
os Estados Unidos com tudo o que – moral, cultural ou politicamente – faz parte da substância
desse hemisfério”.273 O autor aponta a pretensão da América em apresentar-se como um
“âmbito de garantia de paz e liberdade”274, em contraposição ao velho ocidente corrupto,
representado pelo direito das gentes europeu. O padrão de legalidade democrática dos Estados
Unidos foi elevado à condição de princípio do direito das gentes do hemisfério ocidental,
fazendo com que a adoção de uma constituição democrática fosse condição de reconhecimento
dos outros governos. Aí se expõe o caráter intervencionista da política adotada pelos Estados
Unidos, que passa a ser a responsável por definir os parâmetros de reconhecimento de outros
governos.
Esse reconhecimento dava-se no limite do hemisfério ocidental somente até o
momento em que os Estados Unidos decidiram reivindicar uma pretensão de intervencionismo
em escala mundial. A partir disso, Schmitt aborda a intervenção norte-americana ampliada para
uma escala global, de modo que os Estados Unidos, então, “reclamam o direito de decidir se
uma alteração territorial em qualquer parte do planeta está em conformidade com o direito ou
não. Tal pretensão diz respeito à ordem espacial do mundo inteiro”.275 Com isso, “estavam
justificadas intervenções que podiam abarcar todos os assuntos importantes da Terra – políticos,
sociais e econômicos”.276

270 Ibid., p. 302.


271 Ibid., p. 303.
272 Ibid., p. 311.
273 Ibid., p. 311.
274 Ibid., p. 312.
275 Ibid., p. 334.
276 Ibid., p. 335.
82

Sendo assim, o reconhecimento mútuo entre Estados soberanos já não mais existe, e a
guerra não mais é circunscrita, portanto. Em sentido contrário, a guerra passa a ser uma guerra
de aniquilação contra aqueles que não são reconhecidos como adversários, mas como
criminosos, por não se adequarem aos padrões definidos pela nova potência mundial.
Schmitt observa, então, que não somente a guerra deixou de ser circunscrita a um
determinado espaço, alastrando-se pelo globo, como, na verdade, foi, ela mesma, criminalizada.
É nesse momento, em que não se pode mais declarar guerras, que Schmitt vê o fim da política.
Estabelece-se uma certa ordem mundial de paz em nome da humanidade. Do que há duas
consequências: as guerras não são mais travadas de forma bélica, inclusive em decorrência do
avanço dos meios de destruição de massa, (eis que surge a guerra econômica e também o
lawfare) e o inimigo é colocado de fora da humanidade, um fora da lei a ser aniquilado.277 O
jurista alemão, no entanto, percebe exatamente o que há por trás da evocação da ideia de
humanidade: “um instrumento ideológico das expansões imperialistas particularmente
utilizável e, na sua forma ético-humanitária, um veículo específico do imperialismo
econômico.”278
A questão é, retomando o ponto central deste tópico, como essa nova configuração
mundial se comunica com o lawfare. Nesse cenário, marcado por uma guerra de aniquilação
contra tudo o que não sirva à nova ordem, não há reconhecimento de adversários, de sua
soberania ou de um regime de Direito. Resta, então, fazer uso do Direito somente enquanto
instrumento, sob a forma de lawfare, transformando-o em mais uma arma potencialmente letal
para aniquilar o inimigo.
Para discutir essa figura do inimigo, em seguida, o trabalho tomará emprestados
exemplos muito ilustrativos, em que o Direito só surge quando, suspenso, aponta contra a
cabeça do criminoso não adequado à nova razão do mundo. Passa-se, então, a entender o papel
da doutrina antiterror não somente sob sua tradicional versão norte-americana, mas também à
moda brasileira. Em termos mais populares: ao amigos, tudo; aos inimigos, a Lei!

3.2 A DOUTRINA DO CHOQUE: A EMPREITADA NEOLIBERAL DO ANTITERROR

“Eu chamo esses ataques orquestrados [...] na sequência de eventos catastróficos,


combinados com o tratamento de desastres como grandes oportunidades de marketing, de
‘capitalismo de desastre’”.279

277 SCHMITT, Carl. O conceito do político, op. cit., p. 97-99.


278 Ibid., p. 98.
279 KLEIN, Naomi. The shock doctrine: the rise of disaster capitalism. New York: Picador, 2007. p. 6. (Tradução

nossa).
83

Naomi Klein começou a se debruçar sobre a relação de dependência entre o


neoliberalismo e o poder do choque com a ocupação do Iraque pelos Estados Unidos, em 2003.
Em seguida, de Bagdá ela dirigiu sua pesquisa ao Sri Lanka, para onde viajou a fim de
testemunhar outra versão da manobra da doutrina do choque, ocorrida após o tsunami que
devastou o país em 2004.280 Ao início de sua pesquisa, afirma a jornalista e ativista canadense,
ela percebia que, tradicionalmente, as três principais demandas dos mercados – privatização,
desregulação governamental e cortes nos gastos sociais – apesar de impopulares, eram
negociadas pelos governos sob uma espécie de consenso mútuo entre supostos experts na
matéria.281
O que surpreendeu Klein e passou a ser o ponto central de seu estudo, ensejando o
livro A doutrina do choque e a ascensão do capitalismo de desastre é precisamente a nova
forma de imposição do programa neoliberal: por meio do choque, seja sob ocupação militar
logo após uma invasão estrangeira, ou no que sucede a um desastre natural. Com os exemplos
estudados em 2003 e 2004, a visão da autora retorna ao ano de 2001 para concluir que o dia
“11 de setembro deu a Washington o sinal verde para parar de perguntar aos países se eles
queriam a versão norte-americana de ‘livre comércio e democracia’ e para começar a impô-la
mediante choque e forças militares”.282
Retrocedendo ainda algumas décadas a mais, a década de 70 no Chile mostra a afeição
de Milton Friedman a essa doutrina do choque. Como já visto em momento anterior, a
população chilena experimentou as mais bruscas reformas institucionais e econômicas nos anos
da ditadura de Pinochet, que havia sido aconselhado por Friedman a impor uma rápida
transformação da economia, o que ficou conhecido por “revolução da Escola de Chicago”283.
Assim era a relação de Milton Friedman com o choque: “enquanto algumas pessoas estocam
comidas enlatadas e água para se prepararem para grandes desastres, os seguidores de Friedman
estocam ideias de livre-mercado”.284
Seguiu-se, assim, a estratégia apoiada por Friedman e seus discípulos, que consistia
em “aguardar por uma grande crise para então vender partes do Estado para atores privados,
enquanto os cidadãos ainda estavam cambaleando em função do choque, e então rapidamente
fazer ‘reformas’ permanentes”285. Por mais de três décadas, essa fórmula se espalhou para
disseminar o fundamentalismo do livre mercado em outros países. O que aconteceu em 11 de

280 Ibid., p. 9.
281 Ibid., p. 11.
282 Ibid., p. 11. (Tradução nossa).
283 Ibid., p. 8. (Tradução nossa).
284 Ibid., p. 7. (Tradução nossa).
285 Ibid., p. 7. (Tradução nossa).
84

setembro, afirma Naomi Klein, foi que essa ideologia teve sua chance de, enfim, voltar para
casa. 286
O medo gerado pelos ataques ao World Trade Center e ao Pentágono em 2001 serviu
não somente para justificar a guerra ao terror, mas também para assegurar o crescimento
exponencial de determinados mercados, como o departamento de segurança interna dos Estados
Unidos, que se tornou um setor de mais 200 bilhões de dólares.287 A autora mostra, ao longo
do livro, como a guerra ao terror e as violações que dela decorreram estiveram ligadas ao
interesse de algumas grandes corporações, fazendo da tortura uma parceira para o livre
comércio global.288
Não somente no sentido literal, mas também metaforicamente, a tortura auxilia na
compreensão do que é a chamada doutrina do choque trazida por Klein. Denominada sob o
eufemismo de “interrogação coercitiva” pela CIA, a tortura tem a finalidade de desorientar os
indivíduos, forçando-os a tomar atitudes contrárias a seus desejos. “A tortura, então, quebra as
fontes de resistência dos indivíduos, fazendo com que eles não mais tenham sentidos a respeito
do mundo que os cerca”289, sujeitando-os a fornecer as informações, confissões e renúncias que
se fizerem necessárias. Esse processo é mimetizado pela doutrina do choque, segundo Klein,
de modo que, em larga escala, uma sociedade inteira se vê desorientada e suscetível a aceitar
medidas que em condições normais não o faria. Aqueles que defendem a doutrina do choque
acreditam que somente mediante uma grande ruptura, decorrente de desastres naturais, guerras
ou ataques terroristas é que pode surgir o contexto perfeito para implementação de novas
políticas.290 Nesse sentido, o mais claro exemplo é aquele logo após o atentado de 11 de
setembro, que marcou uma espécie de “ano zero”, fazendo dos indivíduos e da sociedade
traumatizada uma folha em branco sobre a qual seria possível escrever novas histórias.291
Se antes do ataque às torres gêmeas os Estados Unidos participavam de práticas de
tortura de forma indireta e discreta, mediante fontes externas, sob experimentos realizados em
outros países com apoio norte-americano, a sociedade em choque pelo terror de 2001 era uma
verdadeira tábula rasa para que se desenhasse a tortura institucionalizada pelos próprios Estados
Unidos, que “exigiram o direito de torturar sem qualquer constrangimento”.292
Foi esse o contexto que motivou Giorgio Agamben ao cargo de professor que lhe tinha
sido ofertado na Universidade de Nova Iorque, em protesto à política estadunidense, e a

286 Ibid., p. 14.


287 Ibid., p. 15.
288 Ibid., p. 20.
289 Ibid., p. 20. (Tradução nossa).
290 Ibid., p. 35.
291 Ibid., p. 20.
292 Ibid., p. 51. (Tradução nossa).
85

publicar, em 2003, sua obra Estado de Exceção, dando continuidade a Homo Sacer: O Poder
Soberano e A Vida Nua, publicado anteriormente em 1995. Na obra, o filósofo italiano dedica-
se a reconstruir o conceito de estado de exceção para mostrar como essa prática não se aplica
em casos esporádicos ou excepcionais, mas que a exceção se tornou a regra. Ou seja, o estado
de exceção “tende cada vez mais a se apresentar como o paradigma de governo dominante da
política contemporânea”293, mesmo dentre os Estados chamados democráticos. Nesse quadro,
Agamben analisa o modo pelo qual “o direito inclui em si o vivente por meio de sua própria
suspensão”294, anulando o estatuto jurídico dos indivíduos para incluir a vida nua, a vida
“matável e insacrificável”295 do homo sacer.
Essa inclusão da vida nua pelo direito, sob a forma de sua própria suspensão, aparece
na sequência de atos que surgiram logo após o atentado em 11 de setembro. A guerra contra o
terrorismo, proclamada por George W. Bush após o ataque, instaurava um “estado de Guerra
global, uma guerra infinita e indefinida, contra um inimigo abstrato”.296 Na realidade, afirma
Moniz Bandeira em Formação do império americano, a guerra contra o terrorismo pretendia
se opor a todos os países do oriente médio que não aceitassem a hegemonia norte-americana:
era o fundamentalismo islâmico que representava, àquela altura, uma ameaça igual ou até maior
do que o comunismo durante a guerra fria.297
Em 6 de outubro, Bush lançou oficialmente a campanha global contra o terror,
declarando que as nações deveriam escolher entre “stand with the civilized world, or stand with
the terrorists”298, ou seja, escolher se elas estão aquém ou além da nova amity line. Nesse
discurso, fica claro onde se situa a figura do terrorista: no lugar da não-civilização, em oposição
à democracia liberal norte-americana. No dia seguinte, iniciavam-se os bombardeios às
instalações da Al-Qa’ida no Afeganistão.
Ao mesmo tempo em que se iniciava a ofensiva em território islâmico, as medidas
antiterror tomavam forma dentro do país símbolo das liberdades ocidentais. Logo nos primeiros
dias após o 11 de setembro, já se iniciava uma primeira versão do que seria, pouco mais tarde,
o Patriot Act.299 Aprovado quase que sem alterações pelo Congresso Americano, o Patriot Act,

293 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução: Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 13.
294 Ibid., p. 14.
295 AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: o poder soberano e a vida nua, vol. I. Tradução: Henrique Burigo. Belo

Horizonte: Editora UFMG, 2002. p. 48.


296 BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. A formação do império americano: da guerra contra a Espanha à guerra

no Iraque. 4. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014. p. 638.
297 Ibid., p. 639.
298 Tradução nossa: “Ficar do lado do mundo civilizado ou ficar do lado dos terroristas”. (THE WHITE HOUSE.

President Bush’s Radio Address to the Nation, October 6, 2001. The White House – Office of the Press Secretary,
October 6, 2001).
299 Ibid., p. 644.
86

promulgado em 26 de outubro, autorizava o procurador geral a manter presos os estrangeiros


suspeitos de atividade ameaçadora à Segurança Nacional, devendo ser deportados ou acusados
dentro do prazo de sete dias.300
Segundo o que afirma Agamben, em Estado de exceção, a nova ordem instaurada por
Bush inova ao “anular radicalmente todo o estatuto jurídico do indivíduo, produzindo, dessa
forma, um ser juridicamente inominável e inclassificável”301, que não é um prisioneiro, nem
um acusado, mas apenas tratado como detainee, isto é, ele é tratado como “objeto de uma pura
dominação de fato, de uma detenção indeterminada não só no sentido temporal mas também
quanto à sua própria natureza, porque totalmente fora da lei e do controle judiciário”.302 Nesse
sentido, explica Moniz Bandeira:
Dentro da moldura do USA Patriot Act, os direitos humanos e os direitos civis foram
violentados, no âmbito doméstico, com detenções sem acusação prévia ou
julgamento. Mais de 1.200 estrangeiros foram presos e deportados do Estados Unidos,
por meio de procedimentos secretos, sem que sequer seus nomes fossem revelados.
As liberdades individuais sofreram graves restrições dentro dos Estados Unidos.
Milhares de imigrantes de todas as nacionalidades, lá residentes, ou portadores do
green card, poderiam ser presos, indefinidamente, sem acusações formais, conforme
decisão da Suprema Corte e do Departamento de Justiça. [...] O procurador-geral John
Ashcroft, decidiu, igualmente, determinar a detenção por tempo indeterminado, sem
considerar as circunstâncias de cada um, dos estrangeiros que chegassem ilegalmente
nos Estados Unidos.303
Acresce-se, ainda, aquilo que José Maria Gomez entende como a peça-chave dessa
guerra ao terror: a ordem executiva assinada por George W. Bush em 13 de novembro de 2001,
intitulada Detenção, tratamento e julgamento de certos estrangeiros na guerra contra o
terrorismo. A ordem permitia que cidadãos não nacionais ficassem sob custódia por tempo
indeterminado, sem que lhes fosse assegurado recorrer aos tribunais norte-americanos, ao de
sua nação de origem ou aos estrangeiros. Além disso, caso passassem por um julgamento, a
competência seria das comissões militares nomeadas pelo próprio poder executivo
estadunidense. 304 Como bem pontua Agamben, é nessa ordem executiva (Military Order) que
se mostra de forma mais clara o “significado imediatamente biopolítico do estado de exceção
como estrutura original em que o direito inclui em si o vivente por meio de sua própria
suspensão”305. O século XXI tem início com a imagem da vida nua no campo de Guantánamo.

300 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução: Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 14.
301 Ibid., p. 14.
302 Ibid., p. 14.
303 BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. A formação do império americano: da guerra contra a Espanha à guerra

no Iraque. 4. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014. p. 644-645.
304 GÓMEZ, José Maria. Soberania Imperial, Espaços de Exceção e o Campo de Guantánamo. Desterritorialização

e Confinamento na “Guerra contra o Terror". Contexto internacional, v. 30, n. 2, 2008. p. 271. Disponível em:
https://search.proquest.com/openview/285dbe8294db202f850e74b2d8c796e0/1?pq-
origsite=gscholar&cbl=1936339. Acesso em 10 jun. 2019.
305 AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. Tradução: Iraci D. Poleti. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 14.
87

Como destaca Gomez em seu trabalho, a política antiterror norte-americana é um


retrocesso em relação às conquistas relacionadas aos Direitos humanos dos últimos sessenta
anos. 306 A estratégia neoconservadora pós 11 de setembro revela a subtração de uma categoria
inteira de não-cidadãos que não se enquadram no conceito estadunidense de civilização, e estão,
portanto, despidos de garantias, sujeitando-se tão somente à vontade discricionária do soberano.
Nesse sentido, Gomez conclui que, em última análise, a base dessa pretensão soberana
universal de soberania está no monopólio da violência em escala mundial pretendido pelos
Estados Unidos. Isto é, trata-se de uma “superioridade militar não apenas de fato [...] mas
também legítima, como se a sua própria força fosse de ‘outra’ natureza, de uma natureza que,
em última instância, não necessita de justificativa”307.
Retomando a perspectiva de Naomi Klein, viu-se, até aqui, a terapia de choque em seu
sentido mais literal, imprimido contra os não-cidadãos, não reconhecidos enquanto adversários
ou oponentes de guerra, mas verdadeiros inimigos para os quais toda garantia está suspensa.
Eles são colocados fora da lei ou fora da humanidade, como afirma Schmitt, de forma que a
eles só resta a aniquilação.308 Nesse ponto, Agamben lembra como essas políticas antiterror não
são medidas excepcionais, mas se tornaram a própria norma: “O terrorismo é inseparável do
Estado porque define o sistema de governo. Sem o terrorismo, o sistema atual de governo não
poderia funcionar.”309
Assim, se há uma relação entre Estado e terrorismo, da mesma forma há, também, uma
relação entre a doutrina do choque por ele causada e as regras do livre mercado, trazendo o
segundo sentido da terapia de choque abordado no livro de Klein. A autora dedica-se, nesse
ponto, à forma pela qual a Guerra ao Terror trouxe consigo uma doutrina do choque econômico,
abrindo caminho para a aplicação das teorias neoliberais mesmo às atividades mais essenciais
do Estado, supostamente protegidas de privatizações.
À época dos ataques do 11 de setembro, o Secretário de Defesa dos Estados Unidos
era Ronald Rumsfeld. Essa informação poderia ser um detalhe, não fosse pela trajetória de
Rumsfeld, que auxilia na compreensão de sua relação com a doutrina do choque. O Secretário,
que fez parte do governo de Gerald Ford, entre 1975 e 1977, havia dedicado suas últimas
décadas ao mundo corporativo, de modo que, ao ser nomeado por George W. Bush, já tinha

306 GÓMEZ, José Maria. Soberania Imperial, Espaços de Exceção e o Campo de Guantánamo. Desterritorialização
e Confinamento na “Guerra contra o Terror". Contexto internacional, v. 30, n. 2, 2008. p. 268. Disponível em:
https://search.proquest.com/openview/285dbe8294db202f850e74b2d8c796e0/1?pq-
origsite=gscholar&cbl=1936339. Acesso em 10 jun. 2019.
307 BALIBAR, Etienne apud GOMEZ, José Maria. Ibid., p. 290.
308 SCHMITT, Carl. O conceito do político. Lisboa: Edições 70, 2015. p. 99, 139.
309 PAÍS, El. Giorgio Agamben: “O estado de exceção se tornou norma”. 2018. Disponível em:

https://brasil.elpais.com/brasil/2016/04/19/cultura/1461061660_628743.html. Acesso em 10 jun. 2019.


88

uma fortuna acumulada em 250 milhões de dólares.310 A familiaridade de Rumsfeld com o


capitalismo de desastre, abordado por Naomi Klein, mostrou-se de forma mais explícita em
1997, quando ele foi nomeado presidente da Gilead Sciences, uma empresa de biotecnologia
que detinha a patente do tratamento para combate à gripe aviária. Naquele caso, se houvesse
uma epidemia do vírus ou mesmo uma grande ameaça por ele, a empresa veria suas vendas
subirem exponencialmente.311 A corporação já era familiar com o poder do choque.
Quando se juntou ao governo de Bush, em janeiro de 2001, Rumsfeld já havia
declarado sua intenção em reinventar a guerra, “fazendo dela algo mais psicológico do que
físico, mais espetacular do que uma luta, e muito mais lucrativo do que jamais antes havia
sido”312. O Secretário de Defesa propunha uma grande transformação, inserindo dentro das
forças armadas a lógica das grandes corporações, principalmente por meio da criação de uma
marca (branding) e pela terceirização.313 Buscando aproximar o Departamento de Defesa do
mundo corporativo, Rumsfeld proferiu um discurso no Pentágono, no dia 10 de setembro de
2001, em que afirmou que a maior ameaça ao país era a própria burocracia do Pentágono. Para
ele, o Departamento de Defesa deveria se concentrar nas guerras, ao passo que todas as outras
atividades não essenciais deveriam ser terceirizadas.314 O discurso foi impactante e
desencadeou reações muito contrárias, porque a própria Constituição dos Estados Unidos previa
que a segurança nacional deveria ser matéria de competência do governo. No entanto, apesar
das discordâncias, o ataque simbólico de Rumsfeld ao Pentágono não ganhou repercussão, pois
no dia seguinte o próprio Pentágono se veria diante de um ataque muito mais relevante, no
sentido menos metafórico do termo.315
Com o ataque em 11 de setembro, as ideias neoliberais tiveram sua fragilidade exposta,
e a série de privatizações dos anos 80 e 90, até então observadas sem maiores críticas,
começavam a trazer levantamentos. Naomi Klein exemplifica uma dessas preocupações com a
situação nos aeroportos: “em 10 de setembro, desde que os voos fossem baratos e lotados, nada
disso parecia um problema. Mas no dia 12 de setembro, contratar trabalhadores encarregados
da segurança nos aeroportos por 6 dólares a hora parecia irresponsável”316.
Quando Bush tomou posse, em 2001, a queda no crescimento das empresas indicava
a ameaça de uma grave crise econômica. Ao contrário do que sugeriria o modelo Keynesiano,
segundo o qual o incentivo às obras públicas seria uma forma de sair da recessão, a solução de

310 KLEIN, Naomi. The shock doctrine: the rise of disaster capitalism. New York: Picador, 2007 p. 358.
311 Ibid., p. 366.
312 Ibid., p. 358. (Tradução nossa).
313 Ibid., p. 359.
314 Ibid., p. 362.
315 Ibid., p. 363.
316 Ibid., p. 373-374. (Tradução nossa).
89

Bush foi que o governo desmantelasse a si mesmo. Mas com os atentados de 11 de setembro, a
solução de um governo autodestrutivo não pareceu uma boa ideia. Diante da população
aterrorizada em busca de proteção vinda de um governo sólido, os ataques poderiam ter posto
fim ao projeto de Bush.
Com a crise que sucedeu, decaía a fé na indústria privada para prover serviços
essenciais, e enquanto os CEOs caíam de seus pedestais, os verdadeiros heróis do 11 de
setembro eram os funcionários públicos que haviam trabalhado e até mesmo sacrificado suas
próprias vidas para as atividades de resgate. Naquele momento, aponta Klein, George W. Bush
tratou o serviço público com uma dignidade não vista havia pelo menos quatro décadas, e o
discurso de corte de gastos subitamente saiu de sua agenda.317
No entanto, apesar dos pronunciamentos públicos da época, o governo de Bush não
tinha a menor intenção de se converter às políticas keynesianas ou favorecer, de alguma forma,
a prestação de serviços públicos como forma de fugir da crise. Em sentido contrário, as falhas
no sistema de segurança que se mostraram no dia dos atentados somente reafirmam a ideia de
que somente as empresas privadas poderiam possuir a inteligência necessária para enfrentar os
novos desafios que se apresentavam em matéria de segurança nacional.318
O governo estava, sim, disposto a gastar dinheiro para movimentar a economia. Ocorre
que a política pretendida era muito distante daquela realizada por Roosevelt com o New Deal.
Tratava-se, na verdade, de um New Deal corporativista, com a transferência de dinheiro público
para grandes empresas. Explicando esse fenômeno à luz da ideia desenvolvida em sua obra,
Klein explica que “o que aconteceu no período de desorientação em massa depois dos ataques
foi, olhando-se por retrospectiva, uma forma doméstica de terapia de choque econômico”319.
A equipe de Bush, adepta às ideias de Friedman – sobretudo sob a figura de Rumsfeld,
que nutria admiração pelo economista desde a década e 60 e com ele manteve uma relação
próxima –, empenhou-se em explorar o choque que pairava sobre a nação inteira, para alavancar
sua visão de um governo vazio, em que tudo, desde a guerra até a resposta aos desastres, fosse
uma aventura lucrativa.320 Seguindo uma fórmula distinta daquela dos anos 90, que consistia
em simplesmente vender as empresas públicas, a estratégia seguida por Bush e sua equipe foi
construir uma nova estrutura para suas ações. Assim tomava forma a Guerra ao Terror,
construída para ser privatizada desde o princípio.321

317 Ibid., p. 374.


318 Ibid., p. 376.
319 Ibid., p. 376. (Tradução nossa).
320 Ibid., p. 376.
321 Ibid., p. 377.
90

O projeto da Guerra ao Terror precisava passar por dois estágios: primeiro, a Casa
Branca deveria se aproveitar do senso de perigo após os ataques para aumentar a demanda por
policiamento, vigilância, detenções e gastos com a guerra. Em segundo, essas novas funções
deveriam ser terceirizadas e entregues ao setor privado, sendo desenvolvidas de forma lucrativa.
Com isso, sob o pretexto de combate ao terrorismo, o que se criava era um verdadeiro complexo
do capitalismo de desastre, de forma que o governo se encarregava de garantir a demanda
necessária para um Estado de segurança privatizada.322
Naomi Klein destaca, nesse ponto, que a ferramenta ideológica mais efetiva na Guerra
ao Terror foi a reivindicação de que não se tratava mais de uma ideologia econômica que estava
em disputa. Não era mais essa a motivação da política interna e externa norte-americana, que
agora estava centrada na luta contra o terrorismo. O mantra segundo o qual o “11 de setembro
mudou tudo”, serviu para disfarçar o terreno conquistado pela ideologia do livre mercado e das
corporações a que ela se subordina. Nesse ponto, não se pode dizer que o 11 de setembro mudou
tudo: a única coisa que ele mudou foi a facilidade com que os neoliberais puderam perseguir
suas agendas ambiciosas.323 O Departamento de Segurança Nacional (Department of Homeland
Security), novo braço do Estado criado pelo regime de Bush, é uma clara expressão do modo
de governar terceirizado. Da mesma forma, a CIFA (Counterintelligence Field Activity),
agência de inteligência criada por Rumsfeld e independente da CIA, tem mais de 70% do
orçamento destinado a atores privados.324
Após uma série de exemplos, o que Naomi Klein conclui desse episódio é que, a
despeito das várias mudanças de nome dados à Guerra ao Terror, o seu formato permaneceu
inalterado. Essa guerra não é limitada nem pelo tempo, nem pelo espaço e nem pelo seu alvo.
Sob uma perspectiva militar, esses traços difusos e amorfos podem fazer parecer com que a
Guerra ao Terror não tenha chances de êxito. No entanto, sob uma perspectiva econômica, a
proposição por ela trazida é imbatível: não se trata de uma guerra passageira a ser vencida, mas
uma longa e lucrativa forma de guerra capaz de rearranjar toda a arquitetura econômica
global.325
Em síntese do estudo apresentado por Naomi Klein, a doutrina do choque é não
somente aquela que se aproveita das fragilidades causadas após uma situação de caos, mas é,
também, aquela que cria o próprio caos, em caráter permanente, para justificar suas medidas.
Como se buscou demonstrar até aqui, passando pela teoria do estado de exceção desenvolvida
por Agamben e pela doutrina do choque de Naomi Klein, a suspensão do direito se dá com a

322 Ibid., p. 377.


323 Ibid., p. 377-378.
324 Ibid., p. 379.
325 Ibid., p. 380.
91

criação de um estado de exceção permanente, e a implantação de medidas neoliberais se


aproveita da desorientação em meio ao caos para aplicar seu tratamento de choque econômico.
Viu-se, também, que a Guerra ao Terror significa, em linhas gerais, uma guerra sem
delimitação territorial ou temporal, assim como sem uma única figura que lhe sirva como alvo,
pois o alvo são todos aqueles que contrariem ou ameacem a hegemonia estadunidense, a
civilização na nova ordem do mundo. Em meio a essa guerra, que inova ao funcionar como
uma corporação, definindo uma marca própria e terceirizando suas atividades, também são
inovadoras as novas armas que podem ser empregadas. Não há mais qualquer tabu quanto ao
que pode ser privatizado ou não. Tudo está sujeito a participar do grande balcão de negociações.
Essas breves conclusões permitem transportar o estudo que se fez até aqui para o outro
lado da América, na tentativa de analisar o fenômeno da doutrina do choque à moda brasileira.
Se o país não teve notícias, até hoje, de atentados em largas proporções ou de desastres naturais
à altura do tsunami na Indonésia ou do furacão Katrina, pode parecer que a doutrina do choque
pouco reverbera em solo tupiniquim.
No entanto, não foi preciso qualquer atentado, ciclone ou tsunami para que fosse
travada uma espécie de antiterror à brasileira, incorporando medidas de exceção em um
contexto de guerra de aniquilação. Nesse cenário, o estudo do lawfare se correlaciona com a
doutrina do choque em sua versão brasileira, instaurada não após uma típica situação de caos,
mas como resposta a um flerte brasileiro com a social-democracia, que durou pouco mais de
uma década. Assim se desenhava, no Brasil, a luta anticorrupção, enquanto uma guerra também
despida de limitação temporal ou espacial, fundada também no maniqueísmo entre os
civilizados e os não civilizados – aqui, representados por políticos corruptos e apolíticos não
corruptos –, mas que tinha por principal objetivo não outro, senão abrir caminho, a pontapés,
para uma série de investidas neoliberais.

3.3 ANTICORRUPÇÃO: O LAWFARE CHEGA À PERIFERIA

“A corrupção não escolhe cores partidárias, ela se infiltra onde encontra espaço”326.
Com essa frase, o personagem-símbolo do discurso anticorrupção na atualidade brasileira
buscava, durante uma palestra em Nova York em 2018, reafirmar a defesa de sua atuação
enquanto juiz na empreitada anticorrupção que marcou o Brasil nos últimos anos. Na tentativa
de afastar as acusações de sua parcialidade nos processos em que atuou, Sérgio Moro tem sua
fala perfeitamente alinhada à ideia central da agenda anticorrupção, que nega aproximação com

326GLOBO, O. Moro diz que corrupção não escolhe partido e brinca com sua gravata vermelha. 2018.
Disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/moro-diz-que-corrupcao-nao-escolhe-partido-brinca-com-sua-
gravata-vermelha-22687452. Acesso em: 08 jun. 2019.
92

qualquer política ou ideologia. O discurso anticorrupção constrói-se, assim, sob a égide da


neutralidade, não em favor de quaisquer interesses privados, mas somente buscando combater
o problema tido como central na política brasileira e políticas periféricas do mundo todo.
Compreender o fenômeno da corrupção no contexto deste trabalho, e também para
além dele, exige que se analise brevemente o discurso anticorrupção apresentado a nível global.
A luta anticorrupção, de forma muito semelhante à guerra ao terror encampada pelos Estados
Unidos, representa uma visão peculiar de corrupção e da imagem do corrupto, justificando,
frequentemente, medidas de exceção em nome de uma batalha supostamente repleta de boas
intenções.
Em seu artigo intitulado “Political Corruption in the Age of Transnational
Capitalism”327, Peter Bratsis, professor de ciência política na City University of New York,
dedica-se às mudanças no discurso anticorrupção até chegar a seu significado atual, com as
implicações políticas por ele trazidas. Segundo o professor, a ascensão do atual movimento
anticorrupção remonta ao começo dos anos 90, seguindo o movimento de colapso da União
Soviética e de ascensão do capitalismo transnacional. Assim, para ele, o discurso anticorrupção
atual é uma forma encontrada para justificar intervenções nas políticas internas de Estados
periféricos, assim como uma forma para se tentar explicar a pobreza que os assola.
Em um trabalho prévio, Bratsis havia se dedicado a demonstrar as mudanças trazidas
na noção de corrupção por conta da ascensão do capitalismo transnacional.328 Compreendida
tradicionalmente como decadência e destruição, a noção de corrupção foi deslocada para um
novo entendimento que se tornou “a base sobre como as sociedades capitalistas puderam
estabelecer em que se constituem presenças normais ou patológicas de interesses particulares
na esfera política”329. Isto é, como a política consiste em constantes conflitos de interesses, a
maneira de se manter viva uma ficção segundo a qual há um interesse público é estabelecendo
distinções entre o que é aceitável ou não enquanto interferência dos entes privados na esfera
pública. A onipresença dos interesses privados na esfera pública não pode ser vista, por si só,
como corrupção, porque isso colocaria em questão a própria existência e poder das grandes

327 BRATSIS, Peter. Political Corruption in the Age of Transnational Capitalism: From the Relative Autonomy of
the State to the White Man’s Burden. Historical Materialism, v. 22, n. 1, p. 105-128, 2014. Disponível em:
https://www.academia.edu/5949120/Political_Corruption_in_the_Age_of_Transnational_Capitalism_From_the_
Relative_Autonomy_of_the_State_to_the_White_Mans_Burden. Acesso em 15 jun. 2019.
328 BRATSIS, Peter. The construction of corruption, or rules of separation and illusions of purity in bourgeois

societies. Social Text, v. 21, n. 4, p. 9-33, 2003.


329 BRATSIS, Peter. Political Corruption in the Age of Transnational Capitalism: From the Relative Autonomy of

the State to the White Man’s Burden. Historical Materialism, v. 22, n. 1, p. 105-128, 2014. p. 107. Disponível
em:
https://www.academia.edu/5949120/Political_Corruption_in_the_Age_of_Transnational_Capitalism_From_the_
Relative_Autonomy_of_the_State_to_the_White_Mans_Burden. Acesso em 15 jun. 2019.
93

corporações mundiais. Por isso, o discurso anticorrupção encarregou-se de normalizar certas


formas de presença e criminalizar outras.330
Se até os anos 90 a corrupção era tida como um problema fundamentalmente interno,
a partir disso ela passou a ser um tópico relevante na comunidade internacional.331 A
preocupação com a corrupção nessa época, afirma Nascimento, não se deve ao aumento de
práticas de corrupção, mas a uma alteração no próprio conceito do termo diante das
transformações enfrentadas pela economia global à época.332
A corrupção, com o novo sentido que adquiriu com a consolidação da globalização,
converteu-se em um problema social quando representou empecilhos às estratégias econômicas
transnacionais. Nesse sentido, importantes atores na luta anticorrupção em cenário mundial
foram também aqueles defensores da globalização econômica333: O Fundo Monetário
Internacional (FMI), a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE),
o Banco Mundial, a Agência dos Estados Unidos para Desenvolvimento Internacional
(USAID).
Em 1993, surgia a organização anticorrupção denominada Transparência
Internacional, dando início a uma série de campanhas encabeçadas por esses atores
supranacionais. Assim, “armados com doações vindas de muitas corporações e abraçando os
méritos de governança transparente e uma sociedade civil forte, essas organizações começaram
a pressionar por reformas legais e culturais ao redor do mundo”334. O movimento ocorreu tão
rapidamente, aponta Bratsis, que o Financial Times declarou o ano de 1995 como o ano da
corrupção.335
Esse súbito interesse dos atores privados e organizações internacionais intriga o autor,
não somente pelo fato de a corrupção ter se tornado uma pauta internacional, mas pelo fato de
os próprios agentes do capital transnacional terem lutado por essa transformação, demonstrando
uma suposta preocupação com as relações entre poder público e atores privados. Isto é, se a
compreensão do termo corrupção indicar tão somente uma subversão do bem público por

330 Ibid., p. 107.


331 Ibid., p. 107.
332 NASCIMENTO, Isabella Chaves. Descolonizando o discurso da corrupção: uma análise do envolvimento

do HSBC em corrupção transnacional. 2018. Dissertação (Mestrado em Administração da Faculdade de Gestão e


Negócios) - Universidade Federal de Uberlândia, Uberlância, 2018. p. 49. Disponível em:
http://clyde.dr.ufu.br/bitstream/123456789/22860/1/DescolonizandoDiscursoCorrupcao.pdf. Acesso em 18 jun.
2019.
333 Ibid., p. 16.
334 BRATSIS, Peter. Political Corruption in the Age of Transnational Capitalism: From the Relative Autonomy of

the State to the White Man’s Burden. Historical Materialism, v. 22, n. 1, p. 105-128, 2014. p. 109. Disponível
em:
https://www.academia.edu/5949120/Political_Corruption_in_the_Age_of_Transnational_Capitalism_From_the_
Relative_Autonomy_of_the_State_to_the_White_Mans_Burden. Acesso em 15 jun. 2019.
335 Ibid., p. 109.
94

interesses privados, não parece haver motivação para que as empresas e atores internacionais
de comércio e finanças lutem contra o papel que eles mesmos desempenham na política.336 Por
isso, para enfrentar a corrupção, foi preciso delimitar seu novo conceito.
O novo significado que toma a corrupção é o de uma falta de transparência. Bratsis
aponta, nesse sentido, que essa nova mudança se justifica por dois fatores que se relacionam:
primeiramente, a ideia de corrupção como opacidade serve a um esforço para reduzir custos de
transação, permitindo que se calcule mais facilmente a relação custo-benefício para tomadas de
decisões sobre investimentos, na intenção de atrair os outsiders do Estado na corrida por
investimentos internacionais. Em segundo, o autor aponta como a agenda anticorrupção serve
a um discurso colonialista, buscando explicar diferenças globais no que tange a riqueza e
desenvolvimento “enquanto um produto de inferioridade de culturas, padrões éticos e/ou
estruturas legais e políticas daquelas nações e regiões do mundo economicamente carentes”337.
Sob essa perspectiva, o discurso anticorrupção justifica uma normativa de dominação política
e econômica dos países avançados no cenário do capitalismo global.
“Na verdade, o movimento anticorrupção não estabeleceu como alvo o que é
frequentemente entendido como ‘corrupção’”.338 Bratsis estabelece uma distinção,
frequentemente encoberta, entre corrupção política e corrupção burocrática. Assim, a corrupção
burocrática diz respeito aos desvios no princípio da isonomia, que engendram uma aplicação
das leis de forma não isonômica por funcionários públicos, por conta de subornos, filiação
partidária ou relações familiares. Esse tipo de corrupção é aquele que entra em contato direto
com o cidadão. Já a corrupção política, por sua vez, diz respeito ao processo de formação das
leis e políticas públicas, envolvendo os atores privados por meio de lobby ou outras formas de
exercício de influência. Essa segunda forma de corrupção, por sua vez, relacionada à tomada
de decisões no processo de formação das políticas, é afastada da vida dos cidadãos comuns.339
Enquanto os atores da corrupção burocrática têm pouca margem formal para aplicação da lei
de forma não isonômica, na criação de políticas os atores têm muito pouca limitação para suas
ações.
Com isso, aponta o autor, o foco das investidas anticorrupção concentrou-se na esfera
burocrática, deslocando qualquer esforço que poderia ser endereçado à corrupção política no

336 Ibid., p. 110.


337 Ibid., p. 108.
338 BRATSIS, Peter. Political Corruption in the Age of Transnational Capitalism: From the Relative Autonomy of

the State to the White Man’s Burden. Historical Materialism, v. 22, n. 1, p. 105-128, 2014. p. 110. Disponível
em:
https://www.academia.edu/5949120/Political_Corruption_in_the_Age_of_Transnational_Capitalism_From_the_
Relative_Autonomy_of_the_State_to_the_White_Mans_Burden. Acesso em 15 jun. 2019.
339 Ibid., p. 110.
95

que tange aos grupos privados interferindo indefinidamente no processo de elaboração de leis
e tomada de decisões.340 Desse modo, cria-se uma percepção de que os Estados são limpos e
não corruptos. É com essa medida que a própria organização Transparência Internacional
elabora desde 1995 um Índice de Percepção da Corrupção (IPC), elaborando um ranking entre
180 países avaliados, merecendo destaque sua parte inferior composta por países pobres: “A
pior nação ranqueada foi a Somália, com 10 pontos, seguida pela Síria (13), o Sudão do Sul
(13), o Iêmen (14) e a Coréia do Norte (14)”.341
Inspirados no trabalho de Bratsis, Rejane Hoevler e Demian Melo escrevem “A agenda
anticorrupção e as armadilhas da pequena política”, em que também analisam o real papel
desempenhado pela agenda anti-corrupção. Partindo de uma diferenciação gramsciana entre
pequena política e grande política, os autores esclarecem que os atos contra a corrupção que
tomaram o Brasil levando ao declínio de uma incipiente social-democracia representam o
triunfo da pequena política. Isso é, relacionam-se com questões cotidianas dentro de uma
estrutura já estabelecida, sem, no entanto, atingir a grande política, que é aquela responsável
pelos problemas estruturais da sociedade, “como as contradições do modelo de
desenvolvimento econômico”342 que levam à profunda desigualdade social e pobreza que
marcam o país. Os autores também abordam essa mudança na agenda de combate à corrupção
a partir da década de 90, que passou a identificar estatismo com corrupção343, mostrando como
o discurso da falsa polarização entre público e privado trazido pela agenda anticorrupção
concentrou-se nas armadilhas da pequena política, restando “excluída a grande política das
classes subalternas”.344
Nesse sentido, destacam os autores, o discurso anticorrupção cresceu empenhando-se
em abordar as questões da pequena política, sem se ver disposto a enfrentar as relações
promíscuas da grande política, que necessariamente perpassam pelo poder corporativo
articulado em escala global para proteger a seus próprios interesses – os interesses “do
mercado”. Assim, o combate à corrupção na pequena política triunfa como uma espécie de
purificação que condena a política em si, fazendo da política o lugar da corrupção por
excelência. Não à toa, nesse sentido, que o discurso da não-política cresce de forma alarmante,
dando espaço aos discursos empresariais de gestão pública, ou supostamente imparciais da

340 Ibid., p. 110.


341 TRANSPARÊNCIA INTERNACIONAL BRASIL. Índice de Percepção da Corrupção 2018. Disponível em:
https://ipc2018.transparenciainternacional.org.br/. Acesso em 19 jun. 2019.
342 HOEVLER, Rejane; MELO, Demian. A agenda anti-corrupção e as armadilhas da pequena política. In:

DEMIER, Felipe (Ed.). A onda conservadora. Lugar: Mauad, 2016. p. 56-67.


343 Ibid.
344 Ibid.
96

atividade jurisdicional exercida por atores com interesses políticos não anunciados. Aqui,
lembramos mais uma vez a máxima norte-americana trazida na obra de Carl Schmitt: “o
máximo possível de comércio e o mínimo possível de política”345.
Curiosamente, a máxima da transparência vendida no discurso anticorrupção não
atinge importantes atores da grande política, compostos pelas grandes corporações. Sobre essa
opacidade, Ladislau Dowbor destaca que, ao mesmo tempo em que são expostas
frequentemente à mídia, as corporações somente o fazem por meio da publicidade e marketing.
Quando se trata de expor o que ocorre internamente, por sua vez, o que há é um esforço para
entravar qualquer iniciativa da mídia que as possa expor. Dowbor ilustra esses esforços por
meio da proibição de divulgação por empregados e ex-empregados do que ocorre dentro das
empresas, do segredo sobre processos tecnológicos e da perseguição sofrida por
whistleblowers, ou seja, empregados que denunciam certas práticas prejudicais à
coletividade.346 Ou seja, internamente às grandes corporações, a máxima da transparência é
brutalmente relativizada.
A doutrina anticorrupção, tal qual a doutrina antiterror, encarrega-se de autorizar a si
própria a extrapolar os limites democráticos e a suspender o direito quando necessário, criando
as circunstâncias para justificar uma suposta necessidade. Na história recente do Brasil,
exemplos não faltam para ilustrar os princípios do Estado Democrático de Direito solapados
por essa guerra indefinida e ecoada pela massa da população representada pela classe média.
O pacote das dez medidas contra a corrupção, projeto criado em 2015 pelo Ministério
Público Federal, é um exemplo nessa agenda brasileira, que reflete “uma guinada do MPF na
direção do repressivismo e do punitivismo, sem muitos olhos para a Constituição da
República”.347 O pacote prevê, por exemplo, uma proposta de “aumento da eficiência e da
justiça dos recursos no processo penal”348 que implica, na prática, o modelo neoliberal da
eficiência suprimindo garantias do devido processo legal, condenando a ação de defesa dos
acusados como “estratégias protelatórias”. Além disso, o projeto se preocupou em tornar mais
limitadas as possibilidades de concessão de habeas corpus, tentou permitir a execução

345 SCHMITT, Carl. O nomos da Terra no direito das gentes do jus publicum europæum. Tradução: Alexandre
Guilherme de Sá et al. 1 ed. Rio de Janeiro: Contraponto Ed PUC-Rio, 2014. p. 274.
346 DOWBOR, Ladislau. A era do capital improdutivo: Por que oito famílias têm mais riqueza do que a metade

da população do mundo? São Paulo: Autonomia Literária, 2017. p. 74.


347 COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. MPF: As 10 medidas contra a corrupção são só ousadas? Publicação

do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais–IBCCrim., v. 23, p. 2-3, 2015. Disponível em:


https://www.ibccrim.org.br/boletim_artigo/5668-MPF-As-10-medidas-contra-a-corrupcao-sao-so-ousadas.
Acesso em 19 jun. 2019.
348 BRASIL. Projeto de Lei n. 4850, de 29 de março de 2016. Estabelece medidas contra a corrupção e demais

crimes contra o patrimônio público e combate o enriquecimento ilícito de agentes públicos. Diário do Congresso
Nacional, Brasília, 2016. Disponível em:
https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2080604. Acesso em: jun. 2019.
97

provisória da pena, ou seja, o cumprimento de pena antes de decisão condenatória transitada


em julgado e reduziu drasticamente as nulidades processuais para combater a “impunidade e a
corrupção”349. O canal da Transparência Internacional, apoiador das medidas, lamentou que o
projeto tenha sido “precocemente encerrado no Congresso Nacional”350, lançando um novo
projeto intitulado “Novas Medidas Contra a Corrupção”351.
Sem a pretensão de aprofundar o estudo sobre as inúmeras práticas que suspendem
direitos em nome da batalha anticorrupção, cujos capítulos se renovam dia após dia, o presente
trabalho busca tomar um rumo distinto das importantes críticas comumente feitas a essa espécie
de doutrina do choque à brasileira. Para isso, correlacionando a noção de darwinismo normativo
com o estudo do lawfare e, por fim, com a doutrina anticorrupção que exerce seu poder nas
periferias do mundo, chega-se a um episódio peculiar e pouco lembrado pela narrativa oficial
da anticorrupção no Brasil.
No ano de 2004, o então magistrado brasileiro Sérgio Fernando Moro publicava um
artigo intitulado “Considerações sobre a operação Mani Pulite”, em que analisava como a
operação italiana tinha sido “uma das mais impressionantes cruzadas judiciárias contra a
corrupção política e administrativa”352. Ao analisar as causas que resultaram no sucesso da
operação, o juiz não esconde a pretensão de trazer operação semelhante ao Brasil, uma vez que,
segundo ele, “se encontram presentes várias condições institucionais necessárias para a
realização de ação semelhante no Brasil, onde a eficácia do sistema judicial contra os crimes
de ‘colarinho branco’, principalmente o de corrupção, é no mínimo duvidosa”353.
Dentre as causas de sucesso da operação, o autor dá destaque à deslegitimação do
sistema político, que “ao mesmo tempo em que tornava possível a ação judicial, era por ela
alimentada”354. Ou seja, a deslegitimação da política foi, na operação mani pulite, tanto causa
das ações judicias quanto consequência delas. Segundo Moro, a condução desses processos
contra autoridades governamentais pode desencadear uma série de reações contrárias, por isso
a importância atribuída pelo autor ao processo de deslegitimação da classe política. Nesse

349 BRASIL. Projeto de Lei n. 4850, de 29 de março de 2016. Estabelece medidas contra a corrupção e demais
crimes contra o patrimônio público e combate o enriquecimento ilícito de agentes públicos. Diário do Congresso
Nacional, Brasília, 2016. Disponível em:
https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2080604. Acesso em: jun. 2019.
350 MOHALLEM, Michael Freitas; BRANDÃO, Bruno; OLIVEIRA, Isabel Cristina Veloso de; FRANCE,

Guilherme de Jesus; ARANHA, Ana Luiza; MARTINI, Maira; ANGÉLICO, Fabiano; WANICK, Luca. Medidas
contra a corrupção. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Varga, 2018. Disponível em:
https://static.poder360.com.br/2019/05/Novas_Medidas_pacote_completo.pdf. Acesso em: jun. 2019.
351 TRANSPARÊNCIA INTERNACIONAL. Unidos contra a corrupção. Disponível em:
http://unidoscontraacorrupcao.org.br/. Aceso em: jun. 2019.
352 MORO, Sergio Fernando. Considerações sobre a operação mani pulite. Revista CEJ, v. 8, n. 26, p. 56-62,

2004. p. 56.
353 Ibid., p. 56.
354 Ibid., p. 57.
98

sentido, embora ele afirme a necessidade de um poder judiciário independente de pressões


internas e externas, ele admite que “a opinião pública, como ilustra o exemplo italiano, é
também essencial para o êxito da ação judicial”355. Assim, para alimentar a opinião pública, os
responsáveis pela operação italiana fizeram uso da imprensa, por meio de vazamentos que
“serviram a um propósito útil”.356 Ao tratar do tema ao longo do artigo, fica clara a inspiração
do magistrado nessas práticas, destacando, inclusive, que, no tocante a esses vazamentos
midiáticos, não pode haver uma “proibição abstrata da divulgação, pois a publicidade tem
objetivos legítimos e que não podem ser alcançados por outros meios”.357
Esses trechos em destaque ilustram bem dois pontos abordados até aqui a respeito do
lawfare: em primeiro lugar, ao atribuir valor à opinião pública enquanto uma condição essencial
ao sucesso da operação anticorrupção na Itália, tomando o modelo como exemplo a ser seguido
pelos tribunais brasileiro, aproxima-se da terceira dimensão do lawfare trazida por John
Comaroff. Trata-se, como se viu, das externalidades, do ambiente criado para dar as diretrizes
do julgamento antes mesmo que ele aconteça, com a participação preponderante da imprensa
nesse processo. O segundo ponto é que, ao reconhecer os riscos de os vazamentos midiáticos
representarem violações a privacidade dos acusados, Moro entende que eles servem a um
propósito útil, legitimando a espetacularização nas divulgações pela imprensa, pois levam a
resultados legítimos, que não seriam obtidos sob outra forma. Em outras palavras, trata-se de
instrumentalizar o Direito, colocando-o como arma justificada pela eliminação de um inimigo
maior.
O estudo do lawfare no Brasil poderia se encerrar nessa defesa teórica apresentada
pelo magistrado federal quanto às mais eficazes armas de combate à corrupção, não fossem os
fatos que sucederam nos anos subsequentes. Embora os acontecimentos posteriores não
demonstrem uma ruptura com o que já era demonstrado pelo artigo de Moro, alguns episódios
inovam ao ilustrar a aplicação dessas ideias sob o ponto de vista prático, consagrando, assim, a
chegada do lawfare no Brasil no bojo da luta anticorrupção.
Agradecendo, de antemão, ao trabalho de construção e fortalecimento de um
jornalismo independente e investigativo, representado, aqui, pelas figuras de Julian Assange e
Glenn Greenwald, passa-se a uma breve exposição de alguns desses episódios.

355 Ibid., p. 57.


356 Ibid., p. 59.
357 Ibid., p. 59.
99

3.3.1 Por esses vazamentos eles não esperavam

No ano de 2010, a plataforma Wikileaks realizou suas publicações mais conhecidas


até o momento, “revelando um abuso sistemático do sigilo oficial do governo e das Forças
Armadas dos Estados Unidos”358. Dentre os vazamentos divulgados pela organização fundada
por Julian Assange em 2006, estavam uma série de telegramas que mostram articulações entre
Brasil e Estados Unidos a respeito de políticas de Segurança Nacional e Antiterror envolvendo
os dois Estados.
Em seu último mês como Secretária de Estado dos Estados Unidos, Condoleezza Rice
enviou, em dezembro de 2008, telegramas para mais de 50 embaixadas, oferecendo auxílio
financeiro para atividades de combate ao terrorismo.359 Em resposta a esse telegrama, em 31 de
dezembro de 2008, Lisa Kubiske, à época conselheira da embaixada dos Estados Unidos em
Brasília, requereu o financiamento para uma conferência que teria início em agosto de 2009, e
que discutiria crimes financeiros ligados a terrorismo e organizações do narcotráfico na
América do Sul. A proposta era que a conferência expandisse em relação a outro evento
ocorrido no ano anterior, incluindo, dentre os participantes, ao menos 200 procuradores e juízes.
Ao final do telegrama, Kubiske solicitou um mínimo de 200 a 300 mil dólares para a realização
da conferência.360
Em 10 de março de 2009, Kubiske escrevia um novo telegrama enaltecendo as
“oportunidades para parcerias da aplicação da lei no Brasil”361. Na mensagem, a conselheira
demonstrava entusiasmo com os novos desafios e oportunidades para o Brasil em matéria de
aplicação da lei em parceria com os Estados Unidos naquele ano. Àquele momento, ela já
afirmava que a proposta, que levou o nome de Projeto Pontes, havia sido bem recebida por
autoridades federais, estaduais e municipais, demonstrando um potencial de cooperação. No
telegrama, fala-se do sucesso dos primeiros seminários do Projeto, demonstrando, nesse
sentido, que “o sucesso do primeiro seminário Pontes é uma indicação da vontade de uma multi-

358 ASSANGE, Julian. Quando o Google encontrou o WikiLeaks. Tradução: Cristina Yamagami. 1. ed. São Paulo:
Boitempo, 2015. p. 153.
359 RICE, Condolleezza. S/CT: solicitation for NADR–funded proposals to support the regional strategic

initiatives. Secretary of State para US Embassy in Brasília, 5 de dezembro de 2008. Canonical ID:
08STATE128554_a. Disponível em: wikileaks.org/plusd/cables/08STATE128554_a.html. Acesso em 20 jun.
2019.
360 KUBISKE, Lisa. Embassy Brasilia proposal for S/CT NADR project. US Embassy in Brasília para Secretary

of State, 31 de dezembro de 2008, Confidential. Canonical ID: 08BRASILIA1684_a. Disponível em:


wikileaks.org/plusd/cables/08BRASILIA1684_a.html. Acesso em 20 jun. 2019.
361 KUBISKE, Lisa. Opportunities for law enforcement partnerships in Brazil. US Embassy in Brasilia para

Secretary of State, 10 de março de 2009. Canonical ID: 09BRASILIA278_a. Disponível em:


wikileaks.org/plusd/cables/09BRASILIA278_a.html. Acesso em 20 jun. 2019.
100

jurisdição por parte de autoridades brasileiras, dispostas a realizar parcerias com os Estados
Unidos em assuntos de segurança pública”362.
Alguns meses mais tarde, em 30 de outubro de 2009, um novo telegrama. Dessa vez,
levava o seguinte título: “Brasil: Conferência de finanças ilícitas utiliza a palavra ‘T’, com
sucesso”363. A mensagem referia-se à conferência ocorrida no Rio de Janeiro, entre os dias 4 e
9 de outubro de 2009, que contou com a participação de autoridades brasileiras federais e
estaduais, além de outros representantes da América Latina. A conferência era uma das partes
do projeto Pontes anunciado por Lisa Kubiske no telegrama anterior.
A mensagem relata também que a conferência foi elogiada por meio de avaliações
escritas pelos participantes do evento, dentre os quais muitos pediram por mais treinamentos,
incluindo aqueles específicos para combate ao terrorismo. Nesse ponto, o telegrama destaca
que esse posicionamento difere da tradição brasileira, que historicamente evitou utilizar o termo
“terrorismo”, preferindo optar por nomenclaturas mais genéricas como “crimes
transnacionais”.364
Também foram feitos elogios quanto ao treinamento prático e multijurisdicional dado
aos participantes, que incluíram demonstrações sobre como, por exemplo, preparar uma
testemunha dentro dos processos. Quanto a esses participantes, o telegrama esclarece que juízes
federais e procuradores de cada um dos estados brasileiros fizeram-se presentes, além de
representantes do Distrito Federal e de mais de 50 policiais federais, bem como representantes
do México, Costa Rica, Panamá, Argentina, Uruguai e Paraguai.
A conferência foi aberta pela Vice-coordenadora antiterrorismo Shari Villarosa.
Contrariando a tradição brasileira de não falar na “palavra-T”, a fala de abertura fez menção
direta ao combate ao terrorismo e seu financiamento ilícito, sob a ótica segundo a qual essa
questão trata-se de um problema global, que deve, portanto, ser enfrentado globalmente.
Na sequência, o juiz Gilson Dipp abordou uma visão geral do histórico legislativo e
político da lavagem de dinheiro e de atividades ilícitas no Brasil. Em seguida, o então juiz
Sérgio Moro discutiu as quinze questões mais comuns nos casos de lavagem de dinheiro nas
cortes brasileiras. Falou-se, na oportunidade, vários aspectos sobre a investigação desses crimes
financeiros, incluindo cooperação internacional tanto formal quanto informal.
Os participantes fizeram aplicação prática das técnicas aprendidas na conferência, e
“enfatizaram a importância de se discutir técnicas de investigação e julgamento práticos, e a

362 Ibid. (Tradução nossa).


363 Ibid. (Tradução nossa).
364 Ibid. (Tradução nossa).
101

demonstração de exemplos concretos de cooperação entre procuradores e os aplicadores da


lei”.365 Ao final do telegrama, conclui-se que
A conferência claramente demonstrou que o setor judicial brasileiro está muito
interessado em se engajar mais proativamente na luta contra o terrorismo, mas precisa
de ferramentas e treinamento para se engajar efetivamente. Atualmente, a forma mais
efetiva de prender um suspeito de terrorismo é acusando-o de crime organizado, como
tráfico de drogas ou lavagem de dinheiro. [...] Consequentemente, há uma necessidade
contínua de providenciar treinamento prático para juízes brasileiros estaduais e
federais, procuradores, e oficiais de aplicação da lei no que tange ao financiamento
ilícito de condutas criminosas. [...] No geral, a conferência foi um sucesso, não
somente por convocar um número significativo de profissionais [...] para compartilhar
as melhores práticas de investigação e persecução de crimes, mas também para
reconhecer que o termo terrorismo não é um tabu para profissionais que têm que estar
preparados para o pior.366
Como destaca Gabriel Kanaan em artigo intitulado “O Brasil na mira do Tio Sam: O
projeto pontes e a participação dos EUA no Golpe de 2016”, a tática empregada na conferência
em solo brasileiro foi semelhante àquela já praticada na guerra ao terror nos Estados Unidos,
em que o tráfico de drogas serve à acusação de financiamento do terrorismo.367 Anos mais tarde,
o Brasil marcava um novo passo na direção proposta pelo governo norte-americano, com a
aprovação, em 2016, da lei Antiterror (Lei 13.260/2016), sancionada pela então presidenta
Dilma Rousseff, o que lhe rendeu duras críticas por parte do setor progressista brasileiro.
O papel dos treinamentos ofertados aos oficiais brasileiros na ocasião da conferência
do Projeto Pontes certamente não se exaure nesses telegramas vazados pelo WikiLeaks. Tanto
é que, anos mais tarde, em uma conferência chamada “Lições do Brasil: lutando contra a
corrupção em meio à turbulência política”, realizada pelo Atlantic Council em julho de 2017
em Washington, Kenneth Blanco, Vice-Procurador Geral Adjunto do Departamento de Justiça
dos Estados Unidos, afirmou ser “difícil imaginar uma relação de cooperação melhor na história
recente do que a que temos entre o Departamento de Justiça dos EUA e do Brasil”.368 Na sua
fala, Blanco justifica essa ação conjunta na medida em que, uma vez que a economia é global,
a luta contra o crime também deve ser global369, reiterando que “a corrupção prejudica a
competição livre e justa”370.

365 Ibid. (Tradução nossa).


366 Ibid. (Tradução nossa).
367 KANAAN, Gabriel Lecznieski. O Brasil na mira do Tio Sam: O projeto pontes e a participação dos EUA no

golpe de 2016. Anais do Encontro Internacional e XVIII Encontro de História da Anpuh-Rio: Hstória e Parceriais.
Disponível em:
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368 A COOPERAÇÃO escancarada entre Departamento de Justiça dos EUA e Lava Jato. 1 vídeo (15min).

Publicado pelo canal TV GGN. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=L6dVJJ5Rx-s. Acesso em 18


jun. 2019.
369 Ibid.
370 Ibid.
102

Como se vê, mais uma vez, o discurso anticorrupção se relaciona com a concorrência
generalizada de uma economia global, na qual os Estados Unidos exercem protagonismo sob
novas formas de imperialismo exercidas pela via do lawfare. O telegrama que relata a
conferência sobre crimes financeiros do Projeto Pontes é um rico objeto de estudo para a
compreensão dos fenômenos do lawshopping, de que se tratou no capítulo anterior.
Reconhecendo a limitação da legislação brasileira, procuradores e magistrados buscaram
contornar as limitações encontradas no Brasil, tomando emprestadas técnicas e métodos não
condizentes com o direito brasileiro para o enfrentamento do terrorismo e seus heterônimos.
A denúncia do lawfare vem sendo feita por alguns grupos nos últimos anos, sobretudo
por essa forma de cooperação informal ao arrepio do Estado democrático de Direito, passando
por uma legitimação sob o pretexto de combater um mal maior, tal qual no discurso antiterror
estadunidense, porém em versão brasileira anticorrupção. Nesse ponto, há de se concordar com
o artigo de Sergio Moro, segundo o qual a opinião pública é essencial para o sucesso da
operação. Isso porque, se dependesse de sua coerência juridica, as práticas da operação seriam
insustentáveis.
Muito recentemente, novos vazamentos vieram à tona, e, com ele, novos capítulos
nessa história do lawfare à moda verde-amarela.
No dia 9 de junho de 2019, o Intercept Brasil, agência de notícias que exerce
jornalismo investigativo no Brasil desde 2016, começou a publicar uma série de conversas
envolvendo juízes e procuradores atuantes no âmbito da Lava-Jato.371 A série de reportagens,
que ficou conhecida como Vaza-Jato, até o momento deste trabalho ainda não divulgou todos
os conteúdos obtidos. No entanto, as primeiras partes já reveladas indicam uma sequência de
irregularidades na força-tarefa que ficou conhecida como aquela capaz de limpar a corrupção
do país.
No ponto em que a conferência do Projeto Pontes indicava uma necessidade de
cooperação entre procuradores e aplicadores da lei, as conversas divulgadas pelo Intercept
Brasil mostram como essa orientação foi seguida ao pé da letra. A promiscuidade nas relações
entre aqueles que acusam e os que julgam é símbolo de que o Estado Democrático de Direito
foi suspenso, para que restasse tão somente um Direito instrumentalizado, ao bel-prazer
daqueles que detêm poder. Assim, o Direito é utilizado somente por sua violência, que lhe é
inerente, sob a forma de uma arma de aniquilação política do inimigo, reconhecido agora como
criminoso.

371GREENWALD, Glenn; REED, Betsy; DEMORI, Leandro. Como e por que o intercept está publicando chats
privados sobre a lava jato e sergio moro. The Incerpt Brasil, 2019. Disponível em:
https://theintercept.com/2019/06/09/editorial-chats-telegram-lava-jato-moro/. Acesso em: jun. 2019.
103

As articulações denunciadas pela Vaza-Jato e a reação apaixonada de defensores da


operação, negando qualquer irregularidade nos conteúdos, assinalam a seletividade no próprio
sentido do termo corrupção, que se presta a deslegitimar a política, sem chegar nos atores que
se colocam fora dela. Segundo essa lógica, a violação às normas mais fundamentais do Estado
de Direito por seus operadores faz com que eles sejam vistos como heróis, pois conseguem
driblar os entraves legais em nome de uma luta maior do que a própria democracia. Assim,
esses não são vistos como corruptos.
Retomando-se a conexão estabelecida por esses agentes entre terrorismo, corrupção e
narcotráfico, assim como a parceria EUA-Brasil nessas força-tarefas, um dos principais
envolvidos nas conversas divulgadas pelo Intercept, o atual Ministro da Justiça Sérgio Moro,
realizou às pressas uma viagem aos Estados Unidos em meio às divulgações pelo Intercept
Brasil. Após ser cobrado para explicar as razões da viagem, por parte de parlamentares que o
receberiam na Câmara de Deputados para que prestasse esclarecimentos sobre as conversas
divulgadas, o ministro afirmou que visitou a Special Operations Division da Administração
Antidrogas norte-americana (DEA) com o objetivo de “conhecer o modelo de força tarefa
multiagência contra o tráfico de drogas e aprofundar os laços para cooperação internacional”.372
Mais uma vez, a conjuntura aproxima intimamente as forças-tarefa anticorrupção, o
combate ao narcotráfico e a guerra ao Terror de modelo norte-americano. Esse moderno meio
de aniquilação pela via do Direito, ainda que possa parecer mais sutil do que os tradicionais
métodos, tem traços cada vez mais delineados com os episódios que seguem dando o tom da
forma neoliberal do Estado de Direito.
Legitimada pela opinião pública, majoritariamente conduzida por uma oligarquia
midiática, a instrumentalização do Direito sob a via do lawfare não é acidental ou casuística. O
que se buscou demonstrar, até aqui, é que o lawfare não é outra coisa, senão mais uma arma de
domínio neoliberal sobre todos os cantos do globo.
O estudo sobre o lawfare que aqui se pretendeu fazer não se deu sem dificuldades,
dada a pouca abordagem do tema até o presente momento. Além disso, buscou-se ultrapassar o
simples conceito e definição de lawfare, a que se dedica boa parte da literatura já existente, para
compreender suas as relações conexões com a razão neoliberal. Ou seja, tratou-se de
compreender como o neoliberalismo abriu caminho para que as práticas do lawfare seguissem
desimpedidas e sem maiores confrontamentos.

372 MORO, Sérgio Fernando. Visitamos a Special Operations Division da DEA - Drug Enforcement
Administration. Objetivo, conhecer o modelo de força tarefa multiagência contra o tráfico de drogas e aprofundar
os laços para cooperação internacional. 25 jun. 2019. Twitter: @SF_Moro Disponível em:
https://twitter.com/SF_Moro/status/1143671558696841216. Acesso em: jun. 2019.
104

No cenário de concorrência generalizada que se impõe a tudo e todos, defender o


Estado Democrático de Direito soa como uma tarefa mais complexa do que se faça parecer, na
medida em que o neoliberalismo põe não somente o Direito, mas a própria democracia em jogo.
Nesse sentido, o caso brasileiro de lawfare oferece um vasto objeto de estudo visível a olho nu,
revelando as facetas antidemocráticas em um processo de aniquilação no qual o Direito é
principal armamento.
Por um lado, é certo que analisar o lawfare como uma técnica não contingente ou
isolada, passando a vê-lo como fruto de uma racionalidade que se alastra a todos os campos da
vida, parece pouco animador. Com razão, melhor seria se bastassem os esforços para corrigir
questões pontuais que levam à deturpação do Direito. No entanto, a questão que se levantou
neste trabalho leva a um sentido diverso. A utilização do Direito como nova arma de
aniquilação na nova ordem mundial, sob a forma do lawfare, é o indicativo de mais um dos
aspectos da racionalidade neoliberal, que abala não somente as relações profissionais, pessoais,
sociais e psicológicas, mas também o próprio Direito.
Embora o cenário não permita muito otimismo, o que se pode esperar quando o lawfare
é levado a cabo, como ilustra a situação brasileira, é que, em situações limítrofes, em algum
momento o esgotamento da democracia pode, ele mesmo, chegar a seu limite. Frente a essa
possibilidade de uma ação verdadeiramente democrática, na contramão do que se alimenta hoje
em dia em tempos de despolitização e deslegitimação dos espaços políticos, mantém-se acesa
uma tímida faísca de expectativa. É essa partícula de esperança que prefere nutrir um imaginário
em que essas situações agudas, se devidamente discutidas e enfrentadas, podem alimentar, no
horizonte, alguma espécie de insurgência, corroborada pela participação de novos atores na
disputa por narrativas contra-hegemônicas à nova ordem. Seja por um jornalismo independente,
ciente de seu papel nos esforços democráticos que podem começar a surgir; seja por operadores
verdadeiramente comprometidos com o Direito enquanto um fim em si, rejeitando sua
instrumentalização e sujeição. Os esforços não são poucos; e a trajetória, árdua.
Afinal, não poderia ser diferente quando se está em um campo de batalha global.
105

CONCLUSÃO

Na introdução de “A era do capital improdutivo”, Ladislau Dowbor mostra uma


preocupação com o modo de pesquisa social que pretende desenvolver no livro. Para ele,
economista, mais importante do que se limitar à pura apresentação dos fatos, é que a pesquisa
social seja feita com clareza a respeito das convicções e valores daquele que a realiza. Dessa
forma, aquele que lê o trabalho poderá se situar em suas análises.
Sobre essa premissa, buscando romper com a imagem de um pesquisador puramente
técnico e neutro, Dowbor abre o livro esclarecendo quais são suas convicções, mostrando, de
certa forma, aquilo que dá sentido à realização de sua pesquisa: “O motor que me move é uma
profunda indignação. Hoje 800 milhões de pessoas passam fome, não por culpa delas, mas por
culpa de um sistema de alocação de recursos sobre o qual elas não têm nenhuma influência”373.
Ao ler esta frase, a autora deste trabalho não somente viu despertar seu interesse pelo
livro de Dowbor, mas também viu a necessidade de reafirmar quais seriam suas próprias
convicções que levaram à escolha de sua pesquisa. Como comunicar a suposta tecnicidade do
Direito com essa mesma indignação em relação ao sistema de desigualdade, competição e
meritocracia que está posto hoje? Essa reflexão revelou-se mais do que necessária, devendo ser
renovada de tempos em tempos para que a pesquisa acadêmica nunca se esqueça de tocar a
realidade em que está inserida.
Assim, como trazido na introdução da pesquisa, o principal motor que impulsiona este
trabalho é a frustração ao perceber como o Direito não somente não nos protegeu, mas foi ele
um dos mais importantes atores nos golpes que abriram portas para o processo de desmonte do
Estado brasileiro nos últimos anos. Nesse ponto, uma das questões principais que moveram os
estudos aqui pretendidos foi justamente a de saber que papel resta àqueles que defendem o
Estado de Direito quando a realidade pode fazer parecer que o próprio Direito tenha nos
conduzido à atual situação.
A partir disso, a hipótese levantada de que estamos diante de um cenário de guerra
global, em que há variados instrumentos de aniquilação, sendo o próprio Direito um deles,
auxiliou na condução de algumas respostas. Sendo assim, buscou-se resgatar um breve histórico
sobre a nova ordem do mundo - o nomos da Terra, entendido como unidade de ordenação e
localização -, a razão neoliberal e a nova forma do Direito incorporada por essa racionalidade
mundial.

373 DOWBOR, Ladislau. A era do capital improdutivo: Por que oito famílias têm mais riqueza do que a metade

da população do mundo? São Paulo: Autonomia Literária, 2017. p. 13.


106

No primeiro capítulo, buscou-se contextualizar o cenário de disputa. O direito público


europeu, sob a forma que havia prosperado por mais de quatro séculos, estava sendo dissolvido,
sem que fosse substituído imediatamente por uma nova ordem. Nesse ponto, iniciava-se uma
reconfiguração no significado de guerra, que deixou de ser circunscrita entre países soberanos,
passando a ser uma guerra de aniquilação em que não se reconhece o inimigo enquanto tal, mas
sim enquanto um criminoso.
Viu-se, também, como o espírito de Filadélfia, que centralizava o papel da proteção
aos direitos do homem, priorizando ideais de justiça social sobre lógicas totalizantes (seja pelo
comunismo, seja pelo ultraliberalismo), não saiu vitorioso dessa disputa. Em seu lugar,
prosperou uma visão de mundo neoliberal, centrada na competição, e na sujeição dos homens
a supostas leis naturais da economia. A essa visão, Dardot e Laval referem-se como razão de
mundo.
Partilhando desse entendimento, do neoliberalismo enquanto uma razão-mundo, o
segundo capítulo do trabalho abordou variados aspectos da racionalidade neoliberal, mostrando
algumas das práticas que se alastram para todas as esferas da vida, em variados espectros
políticos e ideológicos. O trabalho retomou as relações entre o neoliberalismo e a profunda
desigualdade por ele causada, demonstrando de que forma as mazelas sociais não representaram
qualquer ameaça, pela via democrática, à ordem dominante.
Nesse ponto, o trabalho confirmou a relação de incompatibilidade entre neoliberalismo
e democracia, destacando o discurso econômico cientificista como forma de afastar os debates
sobre política econômica de qualquer participação popular. Para além da rejeição intelectual da
democracia por parte dos principais expoentes do neoliberalismo, não somente os discursos,
mas também as práticas atuais, por meio de instituições supranacionais não-democráticas,
impondo a adoção de regras do livre mercado em nível global, indicam um esvaziamento da
soberania dos povos para escolher e participar das políticas de seus próprios Estados.
Confirmou-se, então, que o Direito foi incorporado ao quadro de concorrência
generalizada, de forma que os sistemas jurídicos devem ser atrativos aos interesses do mercado
internacional. Dessa forma, qualquer óbice à neoliberalização do direito deve ser imediatamente
contido. Com isso, então, concluiu-se que o Direito é colocado, no neoliberalismo, sobre uma
bancada de negociações, sem qualquer tabu que impeça sua livre circulação ou privatização.
Assim, o trabalho caminhou para seu último capítulo, e o cenário já estava dado. O
que se percebeu, então, é que o lawfare não é um fenômeno acidental que vem ocorrendo por
acaso nos últimos anos. Em sentido contrário, concluiu-se, com esta pesquisa, que o
alargamento da razão neoliberal abriu caminhos para que o Direito fosse comercializado,
inserido na livre troca, enquanto um instrumento de guerra com potencial bastante promissor.
107

Essa compreensão remontou à obra de Schmitt, que alertara sobre os novos meios modernos de
aniquilação no contexto de uma guerra não circunscrita.
Ao buscar elementos que demonstrassem essa instrumentalização do Direito enquanto
arma contra aquele não reconhecido enquanto inimigo (justus hostis), mas enquanto criminoso
que deve ser aniquilado, o trabalho abordou a guerra ao Terror norte-americana, enfatizada logo
após o ataque de 2001. Sobre o pretexto de combater um mal maior, suspende-se o próprio
Direito, dentro de uma guerra ao Terror cada vez mais privatizada e rentável pela própria
criação do Terror. Em um cenário em que fins justificam os meios, qualquer semelhança com
a luta anticorrupção brasileira não é mera coincidência.
Dessa conexão entre antiterror e anticorrupção, o trabalho pôde tecer algumas
conclusões. A primeira delas é que a luta anticorrupção abraçou a suspensão do Direito em
nome de um objetivo maior, constituído no combate a uma definição específica de corrupção.
Percebeu-se, assim, como essa definição de corrupção não põe em risco as estruturas de poder
em que grandes corporações ditam regras no mundo; em que a elaboração de leis e políticas é
feita segundo os interesses do mercado. A corrupção a ser combatida, aqui, diz respeito à
deslegitimação da própria política, em um processo de aceleração do esvaziamento democrático
já iniciado e avançado pela razão neoliberal.
A segunda importante conclusão que se pode extrair dessa conexão entre antiterror e
anticorrupção, a partir da análise das relações de cooperação formal e informal entre Brasil e
Estados Unidos, é que o modelo hegemônico norte-americano exerceu influência direta e
indireta na condução de processos judiciais e políticos brasileiros, estendendo o conceito de
antiterror para uma espécie de anti-tudo-aquilo-que-não-se-encaixe-na-nova-ordem. Exemplos
de medidas de exceção não faltam em tempos de lavajatismo, juízes heroicos e sensacionalismo
das grandes mídias. Concluiu-se, assim, como o caso brasileiro explicita a terceira dimensão
do lawfare, trazida por John Comaroff, em que as externalidades do processo judicial dizem
mais do que o próprio processo. Ou seja, há mais atores envolvidos no campo de batalha do que
se possa imaginar.
Assim, no momento final do trabalho, viu-se como certas medidas tomadas sob o
pretexto da luta anticorrupção são incompatíveis com o próprio Direito brasileiro, e foram, no
entanto, justificadas sob a ideia de que o Direito poderia ser utilizado enquanto meio (arma) no
contexto de um combate (guerra) à corrupção.
Falando no Direito como meio de combate, temos, em outras palavras, o Direito
enquanto arma dentro de um contexto de guerra. Essa conjugação pode fazer parecer que se
trate de um Direito de heróis ou salvadores da pátria contra algum vilão comum; que se trate de
um Direito com boas intenções; que se trate de um Direito com estratégias duvidosas,
108

justificado pelos seus legítimos (ou legitimados) fins. Na verdade, faça-se parecer o Direito do
mais nobre possível, ainda assim, seu verdadeiro nome é um só: lawfare.
109

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