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Sobre o judiciário e a judicialização*

Andrei Koerner1
Celly Cook Inatomi2
Márcia Baratto3

Resumen
El presente artículo presenta un análisis crítico de la noción “judicialización de la política”, a
través de su validez teórica para una pregunta y una reflexión sobre el poder judicial.

Palabras clave: Poder judicial en Brasil, política, democracia, constitucionalismo, Estado


de derecho.

Abstract
This article presents a critical analysis of the notion “political judiciary”, trough its theoric
validity for a question and a though about the judicial power.

Keywords: Judicial power in Brasil, politics, democracy, constitution, rule of law.

Fecha de presentación: 1.° de abril de 2011. Fecha de aceptación: 19 de abril de 2011.

* A ser publicado em Luís Eduardo Pereira da Motta e Maurício Mota (eds.). Teorias
Críticas da Judicialização. Ed. Campus-Elsevier, 2010.
1
Professor do Depto. de Ciência Política do ifch-Unicamp, coordenador do Grupo de
Pesquisas sobre Política e Direito (gpd-Ceipoc-Unicamp) e pesquisador do Instituto
Nacional de Pesquisas sobre os Estados Unidos (do ineu-cnpq).
2
Mestre em Ciência Política pelo ifch-Unicamp e pesquisadora do gpd-Ceipoc-Unicamp.
3
Mestre em Ciência Política pelo ifch-Unicamp e pesquisadora do gpd-Ceipoc-Unicamp.

Nuevos Paradigmas de las Ciencias Sociales Latinoamericanas


vol. II, n.º 4, julio-diciembre 2011, pp. 17 a 52
Nuevos Paradigmas de las Ciencias Sociales Latinoamericanas
vol. II, n.º 4, julio-diciembre 2011

18 Andrei Koerner - Celly Cook Inatomi - Márcia Baratto

O presente artigo apresenta uma análise crítica da noção “judicia-


lização da política”, apreciando a sua validade teórica para a pesquisa
e a reflexão sobre o Poder Judiciário. Não se questiona a sua validade
do ponto de vista normativo mas da sua capacidade de dar conta do
conjunto de fenômenos a que se refere e, assim, da sua utilidade para
a pesquisa empírica e a reflexão sobre os problemas políticos que ele
suscita. O artigo finaliza com a proposta de um quadro analítico para
a pesquisa sobre o Judiciário nas democracias constitucionais con-
temporâneas. A apresentação tem os seguintes pontos: (1) a análise
crítica da noção “judicialização da política”; (2) contra­exemplos a par-
tir do Judiciário Brasileiro; (3) apresentação de quadro analítico para
a pesquisa empírica sobre instituições judiciais e a ordem política.

Analise crítica da noção


“judicialização da política”

Será criticado o termo “judicialização da política”, formulado por Tate


e Valinder (1995) no início dos anos noventa, e publicado no livro
The global expansion os judicial power, e que se tornou de uso corren-
te desde então.
Apresenta-se inicialmente a definição adotada pelos autores (A
judicialização da política). Em seguida, mostram-se alguns de seus
problemas: ela apresenta deslizes conceituais, que simplificam as re-
lações entre os tribunais e a política, pois revela uma concepção es-
treita da jurisdição e do direito (A judicialização e o direito); ela apre-
senta uma abordagem parcial e enviesada sobre as transformações
dos Estados contemporâneos (Sobre as condições subjacentes à judi-
cialização), e ela revela ambigüidades que a tornam analiticamente
inútil, como se vê com a análise de diversas concepções de política.

A judicialização da política

Vamos aos trabalhos de Tate & Vallinder. Interessa inicialmente o


artigo de Tornbjorn Vallinder (1995) When courts go marching in,
que pretende explicitar o conceito de judicialização da política. Num
primeiro sentido, este conceito é sinônimo da “expansão global do
Poder Judiciário”, que se refere à infusão de processos decisórios judi-
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ciais ou análogos a eles a arenas políticas nas quais eles não ocorriam
previamente.
O autor parte da definição dada por um dicionário de inglês
(Oxford), que define “judicilização” como:

por um lado, a via de um julgamento legal, seja no exercício das funções por
um juiz seja no de sua capacidade; por meio de –ou em relação com– a admi-
nistração da justiça, o processo legal (judicial), ou por sentença de uma corte
ou um juiz; ou, por outro lado, de acordo com a maneira (estilo, jeito) de um
juiz, com o conhecimento e perfil judicial.

Dessa definição lexicográfica, o autor retira o significado de “judicia-


lização”:

1. A expansão do domínio das cortes ou dos juízes em detrimento dos políti-


cos e/ou da administração (the province of courts or the judges at the expense
of the politicians and/or the administration), isto é, a transferência de direitos
de tomada de decisão da legislatura, do gabinete ou do serviço público para
as cortes; ou, no mínimo,

2. A expansão de métodos judiciais de tomada de decisão para além do pró-


prio domínio do Judiciário.

Em resumo: judicialização envolve essencialmente desviar algo para


a forma de um processo judicial (Vallinder 1995: 13).
Ele diferencia as características das cortes e das legislaturas em
função dos seguintes critérios: atores, métodos de trabalho, regras
básicas de decisão, a resposta e as implicações da decisão. As cortes
têm como atores as duas partes do litígio e um terceiro, que atuam
num processo de produção de evidências e argumentação em audi-
ências públicas; a decisão é tomada por um juiz imparcial e se fixa em
casos individuais, cujos fatos ela determina e estabelece a regra rele-
vante. A decisão adquire o estatuto de “a única solução correta”. Na le-
gislatura há múltiplos atores, que estabelecem relações de barganha,
compromissos e alianças ocasionais; a decisão é tomada pelo princí-
pio majoritário e tem o caráter de fixar regras gerais sobre políticas,
implicando a alocação de valores na comunidade política. A decisão
tem o caráter de “a solução politicamente possível” (id., ibíd: 14).
Ele reconhece que a distinção não é nítida (como se vê no plea
bargaining e no princípio do stare decisis), mas considera que “é claro
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que os dois modelos conformam dois diferentes princípios e dois pa-


péis correspondentes, ambos indispensáveis numa democracia”. Para
fazer valer esses pontos, cita Herbert Wechsler (1959-60) para
quem “no [âmbito] judicial a ênfase está no papel da razão e dos prin-
cípios, distinguindo-se do legislativo e do executivo em que se apre-
ciam valores em conflitos”. Assim, Vallinder sintetiza que

é a tarefa das cortes proteger os direitos fundamentais dos cidadãos, o que,


seguindo Isaiah Berlin, chama-se liberdade “negativa”. A legislatura, por ou-
tro lado, tem que cuidar dos direitos e obrigações da maioria (legislativa). A
judicialização da política, poderia ser chamada, grosso modo, a expansão do
primeiro princípio em detrimento do segundo (id.; ibíd: 15).

Mais adiante, afirma que vê a decisão judicial e a decisão política ma-


joritária como dois pontos extremos de uma escala: num ponto está
o governo dos juízes e no outro o majoritarismo total. Assim, a judi-
cialização da política significaria que nas últimas décadas verifica-se
um movimento em direção ao primeiro pólo da escala (id.; ibid.: 24).
É uma definição estipulativa que distingue as características de
dois modelos de decisão, o judicial e o majoritário, que são colocados
em termos típico-ideais, afirmandose que nas situações empíricas as
distinções não são claras. Eles são associados a dois princípios de de-
cisão, os quais se distinguem apenas em termos de ênfase ou tendên-
cia. Os dois modelos são também associados a dois espaços ou centros
de decisão: as “Cortes” e a “Legislatura”. Os dois modelos de decisão
são colocados numa espécie de jogo de soma zero e as mudanças nas
suas relações são interpretadas como um processo histórico. Assim,
nessa caracterização, os dois modelos distintos de tomada de decisão
passam da condição de tipos ideais, de extremos de uma escala, para a
de indícios de um fenômeno identificável: a expansão global do Poder
Judiciário. As democracias contemporâneas estariam passando por
um processo de expansão do Poder Judiciário, que levaria ao domínio
dos juízes sobre as decisões políticas em detrimento dos represen-
tantes eleitos, presentes nas instituições majoritárias.
A judicialização da política teria como background, a partir da
segunda metade do século xx: a reorganização das democracias eu-
ropéias após à Segunda Guerra mundial, como prevenção ao proces-
so que permitiu a ascensão de Hitler ao poder em 1933; as reações
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ao planejamento estatal da economia, em que levaram ao Judiciário a


contestação ao predomínio do Executivo no intervencionismo estatal;
a restauração de teorias políticas deontológicas e/ou de direito na-
tural em resposta ao utilitarismo predominante na primeira metade
do século xx; o peso crescente do modelo institucional dos Estados
Unidos e da corte constitucional da Áustria, incorporado por organi-
zações internacionais (Vallinder, id.: 19-23).
No capítulo denominado “Why the expansion of judicial power?”,
C. Neal Tate (1995) formula um modelo com capacidade preditiva da
ocorrência da judicialização. Ele procura sistematizar quais seriam as
condições necessárias, facilitadoras e as eficientes da judicialização.
A democracia é a pré-condição necessária, as condições que facilitam
mas não provocam a judicialização são: um sistema de separação dos
poderes, uma política de direitos, um sistema de grupos de interes-
se e uma oposição que conhece os meios judiciais para atingir seus
interesses, partidos fracos ou coalizões governamentais frágeis nas
instituições majoritárias que levam a impasses políticos, apoio inade-
quado do público (às instituições majoritárias) e a delegação de auto-
ridade de decisão em algumas áreas de políticas. Sem essas condições,
pareceria “altamente improvável” que a judicialização possa ir muito
longe. Porém, a judicialização ocorre “apenas porque os juízes deci-
dem que eles devem: 1. Participar no processo de tomada de decisão
que poderia ser deixado à prudente ou insensata discrição de outra
instituição ou, ao menos ocasionalmente; 2. Substituir pelas soluções
de políticas que eles derivam aquelas que derivam de outras institui-
ções” (id., ibid.: 33). Assim, em termos simplificados, a judicialização
teria uma pré-condição necessária (democracia), algumas facilitado-
ras (separação de poderes, política de direitos – a mais relevante, ins-
tituições majoritárias pouco efetivas etc), e uma condição eficiente: o
ativismo de juízes em oposição à tendência dominante nas institui-
ções majoritárias. A judicialização seria um fenômeno raro, mas tor-
nar-se-ia cada vez mais freqüente, pela expansão das pré-condições
estipuladas, que permitem que juízes ativistas possam promover suas
preferências políticas contra os representantes eleitos (id., ibid.: 36).
Dada essa definição, examinam-se a seguir as concepções dos au-
tores sobre o direito e Judiciário, e suas relações com a democracia e
a decisão judicial.
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A judicialização e o direito

Vallinder coloca a oposição dos princípios de decisão como uma


questão de ênfase ou de tendência. Se tomada ao pé da letra, esvazia-
ria sua própria tese, pois não seria mais do que uma diferença de “es-
tilo” de tomada de decisão. Neste sentido, “judicialização da política”
significaria: “nas democracias contemporâneas, a tendência é que a
maioria das decisões seja tomada segundo princípios, regras e prece-
dentes, seguindo uma apreciação racional dos conflitos de interesses.
Os conflitos de valores sobre políticas tornar-se-iam argumentações
racionais, baseadas em princípios e apresentadas em procedimentos
regrados para a tomada de decisão, as quais se apuram segundo a
regra da maioria dos representantes eleitos ou dos juizes nomeados,
conforme o caso”. Apresentada desse modo, seria apenas uma tese so-
bre a racionalização dos processos decisórios nas democracias cons-
titucionais em que a expressão judicialização enfatizaria um dos seus
aspectos. Porém, o autor adota uma versão mais forte segundo a qual
os modelos de decisão são contrapostos: a expansão do modelo de de-
cisão judicial implica o fortalecimento das cortes e o correspondente
enfraquecimento do modelo majoritário e da Legislatura. Com isso,
recoloca o problema das relações entre constitucionalismo e demo-
cracia, de uma perspectiva processual.
Considerados como tipos, os pares opostos condensam três as-
pectos diferentes: os modelos de decisão (judicial versus majoritário),
os princípios de decisão (segundo a razão e princípios versus segundo
valores em conflito) e os centros, ou espaços, de decisão (cortes ver-
sus legislatura). A combinação desses três aspectos pode fazer senti-
do para a elaboração de tipos ideais, mas sem que eles sejam proje-
tados diretamente sobre o processo histórico. Mas os tipos servem
também para fixar uma idealização normativa dos papéis que devem
ser desempenhados pelas cortes e as legislaturas numa democracia
Isso se vê nas citações de Wechsler e Berlin mencionadas acima e
no contraste entre as implicações políticas positivas ou negativas dos
dois modelos de decisão majoritária e judicial.
Cabe então analisar a concepção de Judiciário e de direito ideali-
zada pelo autor e suas relações com a democracia. A análise que segue
centra-se em três questões; a colocação mesma escala dos modelos
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de decisão judicial e majoritário, as relações entre decisão judicial e


direito e o tema do ativismo dos juízes.

Decisão judicial e decisão majoritária,


ou democracia e Estado de direito

A expansão do modelo de decisão judicial seria reveladora da expan-


são do governo dos juízes nas democracias contemporâneas. Isso por-
que um modelo de decisão só pode crescer às expensas do outro e,
pela associação entre modelos e centros de decisão, a expansão de um
modelo implica a supremacia de um centro de decisão (e dos atores
que lhes são característicos) que é potencial ou efetivamente perigo-
so ao que se situa no pólo oposto. Assim, no capítulo final do livro os
autores afirmam que a expansão das cortes tem implicações negati-
vas para a viabilidade da democracia e a robustez da regra da maioria,
porque esse processo sustentaria a dominação de elites privilegiadas
e não representativas (os juízes), excluindo os cidadãos, que deveriam
ter sua representação numa democracia política e numa administra-
ção responsiva (Tate & Vallinder, 1995c: 527).
A contraposição entre os modelos de decisão judicial e majo-
ritário recoloca o debate sobre constitucionalismo e democracia. A
questão é saber se é possível colocar os dois modelos numa mesma
escala, ou seja, se faz sentido falar, num sentido próprio, em governo
dos juízes e em democracia puramente majoritária. Quanto à primeira
alternativa, a resposta é negativa, pois juízes só exerceriam funções
governamentais se deixassem de atuar na condição de juízes, pas-
sando a atuar como governantes. Isso porque, se consideramos o juiz
como uma investidura, ele exerce um papel institucional que se carac-
teriza por certas regras e modelos de decisão4, dentre os quais basta
referir aqui à ausência de direito de iniciativa e a validade de seus atos
a um processo judicial constituído. O exercício de funções governa-
mentais (sem se falar na legislativa) implica iniciativa e antecipação a
cenários, sobre os quais se atua de forma preventiva e projetiva. Essas


4
A investidura caracteriza o investimento político nesse papel institucional, e não se confun-
de com a concepção idealizada das funções e da prática dos juízes com fins normativos.
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ações podem ser realizadas por indivíduos que exercem, até mesmo
simultaneamente, o papel de juízes. Mas quando realizassem esse
tipo de ação, eles não o fariam na condição de juízes5.
Porém, o ponto mais relevante é o da possibilidade de democra-
cia puramente majoritária. Um regime democrático pressupõe uma
estrutura normativa que seja relativamente independente das deci-
sões da maioria imediata? Como O’Donnell (1999) mostrou de for-
ma metódica, o que se chama de estado de direito (direitos políticos,
liberdades cívicas) representam pressupostos implícitos aos modelos
da democracia competitiva (Schumpeter) e da poliarquia (Dahl).
Esses pressupostos não são condições apenas para a consistência da
democracia majoritária ao longo do tempo (limitações dos direitos
das minorias ao poder da maioria), mas para a própria possibilida-
de da democracia majoritária. Isso porque (além de determinadas
estruturas e formas de relações sociais) é necessária uma estrutura
normativa, relativamente independente das decisões imediatas da
maioria, que defina as regras de pertencimento à comunidade políti-
ca, às formas básicas de competição política, às liberdades de acesso à
informação, de expressão, de associação etc. Note-se que essas regras
devem ser estáveis e, pois, efetivadas e garantidas por sujeitos inves-
tidos nos papéis de administradores e juízes, que atuem com algum
distanciamento em relação aos interesses imediatos de seu partido e,
com relativa independência com relação à maioria legislativa. O que é
indispensável não é propriamente a separação de centros de decisão,
mas a investidura em papéis com modelos de decisão distintos6.
Assim como as relações entre estado de direito e democracia
não são de oposição simples, também as relações entre os modelos
de decisão judicial e majoritária não são da ordem de pólos que se
contrapõem numa escala. Desse modo, os desenvolvimentos das de-
mocracias constitucionais contemporâneas podem significar não a
tendência à supremacia de um centro de decisão sobre outro, mas
uma recomposição de princípios, modelos e centros de decisão, o que


5
Isso não significa que as decisões dos juízes não tenham dimensões projetivas e preven-
tivas, mas essas são conformadas pelos constrangimentos dos papéis para os quais eles
foram instituídos.

6
Para desenvolvimentos elaborados sobre esse tema, ver Beetham (1999) e Holmes
(1993).
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representa uma ordem política diferente do modelo da democracia


majoritária e do Estado liberal de direito.

Decisão judicial e produção normativa

Os autores não desenvolvem a análise sobre as questões de direito(s)


e política(s) que são suscitadas quando se trata de decisões judiciais.
A sua concepção de Judiciário e da decisão judicial parece ser a de
que o primeiro compreende juízes profissionais que apreciam prefe-
rencial ou exclusivamente casos individuais. Esses litígios se dão em
processos formalizados, que contam com uma sucessão de fases que
permitem a produção de evidências e a argumentação das partes. O
resultado será uma decisão por um juiz imparcial, o qual fixa racio-
nalmente os fatos e regras aplicáveis, e estabelece a regra individual
para o caso, que servirá como precedente para casos futuros subs-
tancialmente idênticos. A decisão judicial tem essa forma em virtude
de seu objeto e finalidade: versa sobre litígios individuais e protege
os direitos fundamentais, as “liberdades negativas”, dos cidadãos.
Destacando-se da Legislatura, as cortes não produziriam regras ge-
rais nem tratariam questões que envolvessem conflitos de valores so-
bre interesses coletivos.
Essa é uma concepção convencional das características do ju-
diciário no Estado liberal, elaborada pelo positivismo jurídico, que
tem sido bastante criticada pela teoria e a sociologia do direito. Além
disso, ela não retrata a prática decisória dos juízes comuns e nem
corresponde aos papéis dos juízes nos Estados europeus do século
xix. Desde o final do século xix já se questionava a doutrina de que
a sentença judicial é um processo de dedução de normas gerais, que
não envolve a apreciação de eventos ou condições externos ao litígio
entre as partes nem é voltada à realização de objetivos coletivos. A
crítica a essa concepção está presente em trabalhos de teoria e socio-
logia do direito em diversos países, como se vê na obra de Jhering e
seus seguidores na Alemanha, as doutrinas sociológicas do direito na
França, o realismo jurídico norte-americano e o realismo escandina-
vo7. Quanto aos juízes, os tribunais comuns participavam da produção


7
Isso pode ser visto de forma típica nos trabalhos, contrapostos sob aspectos fundamen-
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normativa (especialmente por meio dos avis e dos arrêts de principe


dos tribunais de cassação) e, desde o início do século xix, os juízes
administrativos exerceram ativamente o controle da administração
pública, o que, inicialmente era mais para assegurar a regularidade
administrativa pelo controle hierárquico sobre a burocracia do que
para proteger direitos individuais, o que se desenvolveu mais tarde.
Do mesmo modo, o Parlamento não atua em todos os seus momen-
tos como instituição puramente majoritária, como se vê em funções
judiciais que lhe são atribuídas (julgamento de crimes de responsa-
bilidade de altas autoridades), na fixação das regras do jogo parla-
mentar (regimentos, códigos de conduta, comissões de inquérito, sin-
dicâncias). Criam-se regras que tornam possível o jogo parlamentar
e instituem-se juízes dentre os próprios parlamentares. Não se deve
idealizar essas criações, afirmando que se movem segundo puros
princípios racionais, mas elas indicam que os princípios e os modelos
de decisão associam-se mais diretamente a certos tipos de investidu-
ra do que uma divisão entre centros de decisão.
Assim, princípios, modelos e centros de decisão não devem ser
confundidos, para evitar a projeção de características de uns sobre
outros. Ao mesmo tempo, não há uma distinção de natureza entre a
atividade dos juízes, ou os princípios e modelos de decisão que eles
adotam e as dos legisladores. Trata-se de investiduras com princí-
pios, constrangimentos e objetivos distintos. Em ambas as situações
entram em jogo princípios, argumentação racional e procedimentos
regrados, assim como a barganha, conflitos de valores, objetivos po-

tais, de Kelsen e Carl Schmitt. Para Kelsen, a decisão judicial é criadora de norma in-
dividual, na qual estão presentes, por um lado, o aspecto da aplicação da norma superior
que habilita o órgão inferior a emitir a norma individual (a sentença) e, por outro lado,
o ato de vontade do sujeito habilitado a emitir a norma individual. Como há um ato de
vontade, a norma inferior não pode ser completamente determinada pela norma supe-
rior. Em Carl Schmitt o gap entre a norma geral e a norma individual, o qual sempre é
mediado pela decisão, não havendo, pois, determinação. Contemporaneamente, vale citar
trabalhos de teoria e sociologia do direito a respeito da produção normativa, como os de
André-Jean Arnaud, de Jacques Commaille e Bruno Jobert, de Boaventura de Sousa
Santos, ou de François Ost & Michel van de Kerchove. Eles mostram como a estrutura
conceitual da teoria do direito torna o direito estatal permeável a processos sociais e
políticos e, pois, como a produção normativa não se cinge aos espaços institucionais do
Estado, nem às instâncias formalmente legitimadas para a sua produção.
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líticos etc. Também não há uma distinção substancial entre normas


jurídicas que estabelecem direitos fundamentais e as regras de pro-
gramas de políticas públicas. Trata-se, em ambos os casos, de normas
com princípios e propósitos, que fixam condutas e proibições em fun-
ção de programas mais ou menos indeterminados, para cuja concre-
tização será imprescindível o concurso dos agentes investidos para
isso, sejam juízes, administradores ou mesmo o corpo legislativo, e
outros agentes sociais implicados no processo8.

Ativismo dos juízes

O modelo elaborado por C. Neal Tate (1995) é aparentemente sim-


ples, pois distingue as posições dos juízes apenas em função de atitu-
des, se são ativistas ou nãoativistas, e duas orientações, ou preferên-
cias políticas: de direita ou de esquerda. No entanto, a sua utilização é
difícil, pois, como ele admite, conflitos entre juízes e instituições ma-
joritárias não podem ser postos facilmente em uma única dimensão.
A contraposição simples não deixa espaço para levar em conta ou-
tras dimensões relevantes, como o social, o cultural e o religioso. Mas
vale ressaltar que o modelo exclui uma fonte específica de conflitos
nas decisões judiciais, que ocorrem entre juízes (e os demais agentes
especializados no direito), ou entre juízes e representantes eleitos: são
as divergências a respeito de questões de direito – fundamentos, inter-
pretação, direitos a proteger, direitos e objetivos a promover, procedi-
mentos, o papel, as prerrogativas e as atribuições dos juízes e de ou-
tros sujeitos do processo judicial etc. O modelo do juiz aplicador da lei
a casos particulares só comporta duas alternativas; o juiz é não-ativis-
ta quando aplica metodicamente a regra geral aos casos particulares,
ou, se for juiz de common law, busca fielmente, de forma politicamente
neutra, a regra, ou o precedente, aplicável ao caso, ou o juiz é ativista,
quando, para adotar decisões substitutivas das intenções dos repre-
sentantes eleitos postas na lei, ele faz as suas preferências políticas
intervirem no seu ofício de julgar, e com isso distorce a aplicação da lei
ou a caracterização do caso sob julgamento.


8
Ver o modelo de decisão judicial em Muller, 2000 e Haberle, 1997.
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Assim, conflitos e divergências entre os juízes e desses com os re-


presentantes eleitos não se dão em apenas uma dimensão esquerda-di-
reita. A investidura e o papel dos juízes envolve questões e problemas
específicos que podem resultar em conflitos com os representantes elei-
tos, mas que não resultam diretamente de suas orientações políticas9.

A judicialização e a política

Sobre as condições subjacentes à judicialização

Do ponto de vista das condições para a judicialização, os autores


apontam um conjunto heterogêneo de fatores com os quais preten-
dem abarcar as transformações das democracias constitucionais
contemporâneas em seu conjunto. Mas as condições apresentadas
compreendem apenas algumas das características relevantes para a
análise do tema. E não há uma discussão sistemática das relações en-
tre as condições apresentadas para a judicialização e o conjunto mais
amplo de estruturas, modalidades e sentido político da ação nas de-
mocracias representativas.
Os fatores genericamente apresentados provocam diversas inda-
gações sobre o seu significado, alcance, interações. Assim, por exem-
plo, o tema da política de direitos, que é definida como “a aceitação
do princípio de que indivíduos ou minorias têm direitos que podem
ser efetivados (enforced) contra a vontade de supostas maiorias”, faria
aumentar a significação política daqueles (os juízes) cuja locação ins-
titucional usualmente facilita que criem regras que favorecem as mi-
norias diante da maioria. Porém, políticas de direitos têm implicações
sociais muito mais gerais, tanto para as relações sociais como para
as instituições e programas de ação estatais. Não se tem uma relação
necessária entre as políticas de direitos e a maior relevância do Poder
Judiciário, as discussões sobre o Judiciário no Welfare State nos anos
setenta e oitenta indicavam antes o contrário, uma expansão da capa-
cidade de ação da administração pública, com suas ações planificadas
e de larga escala, perante as quais os objetos e métodos de decisão ju-
dicial tornavam-se impotentes. Neste caso, a política de direitos alia-


9
Ver Gillmann, 1999.
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da à capacidade governamental da maioria não seria facilitadora da


judicialização. Como a ilustração indica, coloca-se a questão de quais
seriam os efeitos provocados pela combinação das condições facilita-
doras e quais seriam os potenciais de judicialização provocados pelas
diversas combinações possíveis.
Se o termo judicialização da política é utilizado num sentido ma-
cro-sociológico, como um diagnóstico das transformações mais am-
plas das sociedades contemporâneas, é vago, pois não se sabe a quais
processos ele se refere. O termo é também parcial e enviesado, por-
que enfatiza mudanças no Judiciário, as quais são apenas uma parte
de um conjunto mais amplo de mudanças na política contemporânea
e porque sugere que o Judiciário “escapou” do figurino que lhe seria
adequado dentro de uma democracia representativa, apontando uma
usurpação do poder democrático, que tem como ponto de referência
o modelo do Estado liberal e do positivismo legalista do século xix.
Vale a pena notar, incidentalmente, que o tema da judicialização
da política foi formulado como um modelo e uma hipótese para servir
de quadro a pesquisas comparadas. NO entanto, a sua recepção en-
tre nós ocorreu sob a forma de um “estilo” de teorização corrente no
campo do direito nos últimos tempos. Grosso modo, esse estilo adota
os esquemas analíticos elaborados por teorias sociais para a interpre-
tação macrosociológica, mas não os toma como premissas teóricas,
que deveriam servir como suporte para formular hipóteses para a
pesquisa empírica. Adotam-se esses esquemas como quadros descri-
tivos de transformações sociais, como explicações já pré-elaboradas
dos processos sociais ou políticos. E os acontecimentos passam a ter
o papel de ilustrações, servem para confirmar aquele esquema empí-
rico, e não se indaga nem as questões metodológicas para a pesquisa
daqueles processos e nem as fissuras, descontinuidades, inconsistên-
cias, surpresas que eles colocam para o pesquisador.
É preciso ainda examinar a posição da democracia como condi-
ção necessária para a judicialização. C. Neal Tate afirma que

é difícil imaginar um ditador, independentemente de seu ou sua uniforme


ou bandeira ideológica, 1. Convidar ou permitir mesmo nominalmente que
juízes independentes aumentem a sua participação na feitura das decisões
de políticas públicas mais importantes, ou 2. Tolerem processos de tomada
de decisão que colocam a aderência a regras procedimentais legalísticos e
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30 Andrei Koerner - Celly Cook Inatomi - Márcia Baratto

direitos acima da realização rápida de resultados substantivos desejados”


(id.; ibid.: 28-29).

Porém, ele apresenta de modo demasiadamente simplificado as dis-


tinções entre regimes democrático e ditatorial, não contemplando as
gradações e dificuldades que esses tipos de regime podem apresen-
tar. Com isso, ele estabelece uma relação de necessidade entre demo-
cracia e relevância do Poder Judiciário, como se o fortalecimento do
Poder Judiciário fosse uma conseqüência da democracia e só pudesse
existir naquelas condições. Em outros termos, a efetividade do prin-
cípio majoritário seria condição para o modelo de decisão judicial e
este somente se desenvolveria plenamente dentro daquele.
Dado que o modelo de decisão majoritário torna-se condição do
modelo judicial, a sua relação não é mais a de pontos extremos de
uma escala. Então, o processo de judicialização não é mais da ordem
do deslocamento entre dois pontos extremos da escala, que estariam
em relação de independência, pois criados como tipos pelo próprio
pesquisador. Ele se torna da ordem de uma mudança nas relações en-
tre um fator condicionante (a democracia, o modelo majoritário) e
um fator condicionado (as cortes, o modelo judicial). A tese torna-
-se, então: dadas as condições de uma democracia estável, o modelo
judicial se desenvolve quase como um parasita do modelo majoritá-
rio para, no fim, usurpar a sua posição, e substituí-lo em prol de seus
princípios, métodos e centros de decisão. A capacidade preditiva do
modelo é posta em xeque se o Judiciário for investido de poderes po-
líticos relevantes em regimes não-democráticos ou se neles os juízes
usarem ativamente seus poderes de decisão, mesmo contra a orienta-
ção predominante nas instituições governamentais (não necessaria-
mente majoritárias) ou valores e ideologias socialmente dominantes.

Política(s)
Em artigo anterior10, elaborado com Débora Alves Maciel, exami-
nou-se a ambigüidade com que é utilizado o termo “judicialização”,
que se refere:

Maciel, D. A. e Koerner, A. Sentidos da judicialização da política: duas análises. Lua Nova,


10

pp. 113 a 134.


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Sobre o judiciário e a judicialização 31

a mudanças institucionais, que podem se tratar de ampliação de competên-


cias, de novas formas de organização, de procedimentos etc; a estratégias,
orientações dos sujeitos, que podem ser tanto o chamado ativismo dos juízes
como o dos outros agentes jurídicos; a processos sociais mais amplos nas de-
mocracias contemporâneas (juridicização das relações sociais; colonização
do mundo da vida etc.).

Os autores não definem em quais sentidos a política seria judiciali-


zada. Eles se referem a decisões que deveriam ser deixadas às ins-
tituições majoritárias, por serem de interesse dos cidadãos em seu
conjunto. Pode-se delinear por exclusão o âmbito dessas decisões,
pois eles definem o domínio das cortes como o da decisão sobre casos
individuais, para a proteção dos direitos fundamentais. Assim, todas
as demais questões de interesse comum caberiam à decisão majori-
tária. No entanto, essa separação simples teria sido obscurecida pela
política de direitos, e as delegações, pelas instituições majoritárias,
de seus poderes de decisão sobre questões coletivas aos juízes, as
quais transformariam questões políticas em jurídicas. Mas eles não
discutem quais seriam os limites dessas declarações e delegações,
por exemplo, se alguma política de direitos teria implicações positi-
vas para a democracia ou se alguns tipos de decisão sobre interesses
coletivos (defesa e segurança nacional, por exemplo) seriam imunes
à judicialização.
O modelo preditivo dá outras indicações sobre os sentidos em
que a política seria judicializada: nas democracias contemporâneas,
haveria a delegação expressa de poderes de decisão política aos juízes,
a política de direitos converteria conflitos de interesses em questões
jurídicas e os juízes ativistas tomariam partido dessa situação para
avançar suas preferências políticas. Assim, pode-se apreciar a tese da
judicialização, analisando-se se poderes politicamente relevantes de
decisão dos juízes ocorrem especificamente nas democracias, se a de-
legação desses poderes é um fenômeno recente e se o ativismo dos
juízes é uma questão contemporânea. Essas questões são analisadas a
seguir, tomando-se os diversos sentidos de “política” em inglês como
fio condutor. Ver-se-á que o termo judicialização designa fenômenos
que não são novos e nem sempre controversos.
1. Política pode ser considerada a polity, ou seja, comunidade
política ou Estado, a unidade territorial dotada de uma organização
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32 Andrei Koerner - Celly Cook Inatomi - Márcia Baratto

auto-referida, com um “governo” que, detém a capacidade de ser a úl-


tima instância de tomada de decisões e que ordena as relações sociais
que se se encontram sob o seu escopo. Em outros termos, é o Estado,
no sentido da teoria geral (Jellinek) ou, noutro registro, das teorias
marxistas.
É possível falar aqui de judicialização da política? Trata-se de um
fenômeno recente, vinculado ao ativismo dos juristas?
Evidentemente que não, “judicialização” da polity pressupõe não
tanto a democracia, mas o próprio Estado moderno (para não se falar
em outras épocas e espaços). Uma característica definidora do Estado
moderno é a tendência ao monopólio do uso da força física legítima e,
para isso, foi essencial a unificação, em esferas de decisão do próprio
Estado, do território e dos sujeitos sobre os quais se exerce a jurisdi-
ção, das fontes normativas e das organizações capazes de mobilizar
instrumentos de violência.
Embora esse processo seja variável ao longo do tempo e nos di-
ferentes países, o que é evidente é que o Estado moderno formou-se
a partir da sua capacidade de se sobrepor às formas de organizações
concorrentes, que tinham a pretensão de formar espaços territoriais,
ordens (nobres, religiosos e corporações do ofício, por exemplo) ou
domínios concorrentes da vida social (direito canônico) etc. A con-
centração da jurisdição “judicial” no Estado implicava a criação de um
corpo de juízes ativistas no sentido de que seu papel era afirmar a so-
berania do Estado sobre as pretensões de outras jurisdições e ordens
normativas em seu território. Porém, este processo é marcado por
conflitos, decorrentes de questões políticas de cada Estado (diversi-
dade étnica, religiosa, lingüística), entre diversos princípios e fontes
de direito (direito natural, direitos tradicionais, direito romano, legis-
lação, isenções e privilégios), entre jurisdição e razão de Estado, entre
governantes e juízes, com suas próprias origens sociais e adesões.
O Judiciário foi investido de poderes centrais para a defesa do
Estado, desde a instituição dos Estados constitucionais contem-
porâneos. Nos Estados Unidos, isso se vê no poder reconhecido ao
Judiciário federal para controlar a decretação, pelo chefe do Executivo,
da suspensão do habeas corpus em tempo de guerra. O significado da
exclusão do conhecimento judicial de questões políticas é questão
bastante controvertida.
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Sobre o judiciário e a judicialização 33

Assim, falar em “judicialização” da ordem política, ou da polity,


implica colocar considerações sobre a conformação do Judiciário no
processo de formação e vigência da ordem estatal, mas o termo novo
não acrescenta grande coisa para compreender a questão11.
2. Política pode ser considerada como politics, ou as atividades
que, no interior de uma ordem política, dedicam-se de forma especia-
lizada às atividades governamentais e suas relações com a sociedade.
É a política, no sentido comum do termo.
Neste sentido parece haver alguma novidade. Vê-se no noticiário
que decisões judiciais intervêm cotidianamente nas atividades políti-
cas, o que dá a impressão de uma constante ação “externa” dos juízes
sobre “os políticos”. Mas os autores afirmam que a democracia e a se-
paração de poderes são condições para a judicialização e, assim, esta
seria um fenômeno recente, que se expandiu junto com a extensão
das democracias em muitos países do mundo ao longo da segunda
metade do século xx.
A atuação dos tribunais na política já ocorria nas monarquias
européias, nos confrontos entre o monarca, a aristocracia e o clero.
Emblemáticos são os impasses recorrentes enfrentados pela monar-
quia francesa ao longo do século xviii, em episódios que estão asso-
ciados diretamente à eclosão da Revolução Francesa. Os magistrados
eram ativos participantes das intrigas palacianas, em sua condição de
noblesse de robe, em virtude de sua competência técnica, de suas ori-
gens ou alianças sociais. Mas a sua intervenção “na política”, enquanto
juízes, torna-se visível nos Estados contemporâneos, em que se sepa-
ram Estado e sociedade civil, distribuem-se os poderes, especializa-se
a política e forma-se, gradualmente, o Judiciário autônomo, com juí-
zes especializados.
A criação de um Poder Judiciário com poderes de intervenção na
política não tinha apenas a função de proteger as liberdades individu-

Aliás, poderíamos, num exercício paradoxal, falar que, nos últimos tempos teria havido
11

uma desjudicialização da polity (ou pelo menos das suas pré-condições), se considerar-
mos que a globalização teve como efeitos a expansão da produção normativa interna-
cional, o reforço da lex mercatoria,o fortalecimento de instituições multilaterais com
poderes jurisdicionais ou quase-judiciais. Mas a emergência dessas instâncias poderia
significa a judicialização da ordem internacional. Evidentemente, essa é só uma obser-
vação e não valeria a pena seguir por essa via.
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34 Andrei Koerner - Celly Cook Inatomi - Márcia Baratto

ais. Os federalistas norteamericanos atribuíam ao Judiciário federal


um papel de manutenção do equilíbrio geral dos poderes fixados pela
Constituição. Um sistema constitucional que estabelecia a divisão e
o exercício compartilhado da soberania implicava a adoção de uma
forma de controle dos diversos poderes que não resultasse na supre-
macia do poder que exercesse o controle. Por essa razão o controle
seria atribuído ao Judiciário federal, cujos integrantes não tinham po-
der de iniciativa, eram vinculados a procedimentos e não podiam agir
segundo sua vontade, mas em nome da Constituição, não dispondo de
controle sobre a força militar, de comando sobre os agentes e nem dos
recursos públicos12. Ou seja, o equilíbrio da Constituição seria função
do controle ativo dos juízes sobre os outros poderes políticos, o qual,
ao invés de expressar a adesão à política majoritária, pressupõe o exa-
me substantivo da compatibilidade entre as atividades e produtos da
política e a Constituição13. Em outros termos, os juízes independentes
são instituídos para intervir na(s) política(s), e essa intervenção é efe-
tiva mesmo quando ocorre com pouca freqüência.
E, como lá, aqui nós temos, desde a primeira Constituição republi-
cana, adotado o controle judicial da constitucionalidade de atos legisla-
tivos, e reconhecido outros poderes do Judiciário no campo do direito
público. O modelo do controle das leis foi adaptado em países europeus
a partir de meados do século xix, reforçado na Constituição austríaca
de 1920 e expandido após a ii Guerra Mundial. Assim, a judicialização
da politics confunde-se com a própria criação e consolidação do Estado
constitucional contemporâneo, no qual a formação de um campo de
atividades reconhecido como a política, diferenciado de outros, dentre
os quais a atividade judicial, é coetânea à criação de sistemas de con-
trole e de equilíbrios, nos quais foram atribuídos aos juízes poderes de
controle sobre “a política”, e criadas modalidades complementares de
controle sobre os próprios juízes (o julgamento pelo Senado de crimes
de responsabilidade praticados por juízes, por exemplo).

Ver Madison, Hamilton, Jay, (1979), especialmente o cap. 78, e Baylin (2003).
12

Esses poderes políticos dos juízes são mais significativos porque lá os juízes federais são
13

nomeados pelo chefe do Executivo com aprovação do Senado e os juízes estaduais são em
boa parte eleitos diretamente pelos eleitores. O mesmo acontece em muitos outros países
da América latina, que se inspiraram no modelo norte-americano.
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Sobre o judiciário e a judicialização 35

Não é o caso de entrar em detalhes sobre esse assunto interessan-


te, pois o objetivo é indicar que, se considerado como “judicialização
da politics”, o termo não indica novidade e não acrescenta grande coi-
sa; não nos auxilia, pois, a pensar as relações entre Judiciário e política.
3. Política no sentido de policy, ou seja, programas de ações pú-
blicas, definidas pelo legislador ou implementadas pelo governo em
função das suas decisões. Este parece ser o campo privilegiado da ju-
dicialização, segundo o modelo apresentado por C. Neal Tate (1995),
das condições necessárias e facilitadoras para a judicialização. No
plano comportamental, a judicialização seria desencadeada por juí-
zes ativistas cujas orientações ideológicas sejam opostas às dominan-
tes nas instituições majoritárias, em sistemas democráticos, que, ao
atribuir-lhes poderes extensos e terem governos pouco efetivos, abri-
riam oportunidades para a sua ação.
Aqui também se vê uma intensa ação cotidiana dos juízes e insti-
tuições judiciais, chamadas cotidianamente a decidir sobre as políti-
cas públicas, o sentido dos direitos, tanto a sua limitação como a sua
efetivação etc. Ora, se definimos as políticas não no sentido estrito
de políticas sociais, mas no de todas os programas e ações governa-
mentais, as instituições judiciais fazem parte de uma arquitetura que
investe os juízes com papéis determinados de decisão. Ou seja, se o in-
vestimento na jurisdição judicial é um aspecto da polity, e se a exten-
são dos poderes dos juízes é uma dimensão da politics, o exercício da
jurisdição é o da implementação, segundo um modelo de decisão par-
ticular, de policies. Tanto porque os juízes cotidianamente examinam,
controlam, interpretam e implementam planos de ação governamen-
tais quanto porque, nas democracias constitucionais contemporâne-
as determina-se que os conflitos sejam traduzidos em litígios sobre
violações de direitos, que serão decididos segundo um determinado
modelo, por agentes com determinadas características (juízes profis-
sionais, com garantias e vedações etc., ou processos administrativos
com recurso para o Judiciário). Enquanto delegados estatais, os juízes
foram investidos do poder de implementar policies, segundo os méto-
dos de decisão que lhes são próprios. Os processos contemporâneos
dão continuidade a essa forma de investidura, agora desprovida de
limitações procedimentais mais antigas, mas não a ponto de configu-
rar uma mudança nas relações entre maioria legislativa e juízes. Os
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36 Andrei Koerner - Celly Cook Inatomi - Márcia Baratto

papéis atribuídos às instituições judiciais são mutáveis ao longo do


tempo e nos vários países, e não é adequado tomar-se uma determi-
nada distribuição de papéis –a do Judiciário árbitro dos conflitos civis
no estado liberal do final do século xix– como modelo para avaliar
todos os demais.
A expansão da litigiosidade é muitas vezes tomada para eviden-
ciar a judicialização. No entanto, trata-se de fenômeno complexo, re-
lacionado, em nossos países, com a democratização, a urbanização, a
precariedade dos direitos sociais, os conflitos políticos, a privatização
dos serviços e bens públicos promovida por reformas neoliberais etc.
Não pode servir de critério para afirmar que há um maior protagonis-
mo do Poder Judiciário, pois é, no máximo, um índice da sua ativação.
4. No sentido de ação, estratégica ou voltada à promoção de valo-
res, o termo judicialização seria ainda mais fluído e incerto, pois não
é recente e nem se pode dizer que seja crescente (ou decrescente), se
tomamos um quadro mais amplo de observação do que o que ocorre
no nosso país nos últimos anos. A ativação do Poder Judiciário por
grupos sociais é um processo associado à luta política e à mobiliza-
ção cívica, ou por interesses. Neste tema, é importante não considerar
apenas a ativação do Judiciário por movimentos populares, que bus-
cam a promoção de direitos sociais ou culturais, mas também o seu
uso por grupos econômicos ou elites políticas. Afinal, os instrumentos
e recursos proporcionados pelo Judiciário são bastante relevantes e
não são desprezados pelos que deles podem lançar mão.
Esse sentido da judicialização da política é, pois, bastante variá-
vel, uma vez que depende de muitos fatores, como o quadro norma-
tivo, condições sociais e econômicas (crise ou reformas econômicas
de grande alcance), a conjuntura política, as estratégias e valores dos
agentes que buscarem promovê-los junto ao Judiciário, assim como a
apreciação que eles tenham da probabilidade de sucesso de sua atu-
ação judicial. Deve-se considerar que a atuação judicial é uma entre
outras ações promovidas pelos agentes sociais, as quais permanecem
enquanto corre o processo judicial. Assim, a ação judicial pode ser
apenas um recurso auxiliar no conjunto das estratégias dos agentes
sociais, e sua relevância é relativa às relações dinâmicas entre esses
agentes, que se dão nesse conjunto mais amplo de ações. Para tratar
desse tema, tem sido utilizada pela bibliografia internacional o termo
Nuevos Paradigmas de las Ciencias Sociales Latinoamericanas
vol. II, n.º 4, julio-diciembre 2011

Sobre o judiciário e a judicialização 37

“mobilização legal”, ou “mobilização do direito”, que trabalha a ativa-


ção do Judiciário pelos grupos sociais do ponto de vista específico de
suas estratégias e relações (McCann, 1994, 1999).
As ilustrações mostram que os juízes têm relevância política em
situações diversas da democracia, que, segundo o modelo da judicia-
lização da política, seria pré-condição para tal. A investidura de juízes,
com poderes sobre questões cruciais para a estabilidade da ordem
política, identifica-se com a própria formação dos Estados moder-
nos. Outras atribuições de poderes encontram-se já na formação dos
Estados constitucionais contemporâneos. A investidura na função
de julgar é indissociável da apreciação do papel a ser desempenha-
do pelos juízes na promoção de políticas estatais. Juízes receberam
atribuições para a promoção de políticas estatais, sem que tenham
sido idealizados como árbitros passivos dos litígios individuais. Os
magistrados foram ativos agentes de intrigas políticas, voltaram-se à
promoção, ou, pelo contrário, à resistência a políticas do governo cen-
tral, e por vezes se engajaram na proteção e promoção de direitos em
situações oligárquicas e autoritárias.
Assim, embora a expressão “judicialização da política” tenha
pretensão de servir para caracterizar uma expansão global do Poder
Judiciário, ela é inútil, porque não permite distinguir as diversas di-
mensões das relações do Poder Judiciário –e das instituições judiciais
e agentes jurídicos como um todo– com “a política”.
De um modo geral, a fluidez conceitual sobre o sentido de políti-
ca não é surpreendente, dadas as relações constitutivas do Judiciário
com a ordem política e a extensão de poderes atribuídos aos juízes
nas democracias constitucionais contemporâneas. Seria mais realista
partir da constatação de que não há a possibilidade de fixar um tra-
çado geral da “província” de questões próprias às cortes. Mas, com
isso, não se teria referência fixa a partir da qual se poderia afirmar um
processo de expansão do Poder Judiciário.

Exemplos a partir do judiciário brasileiro

Os autores colocaram a democracia como uma pré-condição para a


judicialização da política. No entanto, o protagonismo político dos ju-
ízes não é fenômeno recente e nem é exclusivo de períodos de demo-
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38 Andrei Koerner - Celly Cook Inatomi - Márcia Baratto

cracia. Apresentam-se a seguir exemplos das múltiplas relações entre


o Judiciário brasileiro e a(s) política(s).
No Império, o Judiciário era considerado parte da ordem política
global e sua atuação se dava em função desta.
– Os magistrados imperiais eram, por excelência, os agentes da
ordem política, dada a sua atuação como juízes (e, pois, agentes da or-
dem), como representantes políticos e como administradores (chefes
de polícia, presidentes de província). Deve-se compreender bem: não
só porque inexistiam as vedações constitucionais à atividade políti-
ca dos juízes, mas porque os próprios dirigentes políticos imperiais
consideravam correta essa participação dos juízes na política. Sua
atuação situa-se no cerne da política do Império, mas eles divergiam
sobre a extensão dos poderes do centro político do Império sobre o
território. Uma questão de direitos fundamentais de cidadania cinde
os juízes tanto quanto os partidos políticos: os direitos dos escravos.
O ativismo de juízes do Império é vasto, como a sua atuação contra a
direção política do Imperador e a extensão da capacidade do centro
político do Império, contra a extensão do poder civil sobre o eclesiás-
tico, intervindo em questões de política externa, ao resistirem à re-
pressão ao tráfico de escravos depois de 1850.
– Algumas das políticas mais relevantes no período imperial fo-
ram atribuídas aos magistrados e promotores, como a implementa-
ção da Lei de Terras e da Lei do Ventre Livre. Essa atuação não é sur-
preendente quando se tem em mente que essas carreiras eram tudo
o que havia no país como esboço de burocracias públicas. O ativismo
dos juízes era aqui necessário nos dois sentidos, seja para superar
as limitações e contradições que haviam sido postas nos textos das
leis pelos representantes dos proprietários, a fim de implementar a
política do governo central contra as resistências dos proprietários
quanto, por motivos práticos ou de princípio, resistir àquela política
em favor desses interesses. Em outros termos, o ativismo dos juízes
era um elemento relevante para o sucesso ou o fracasso de duas polí-
ticas públicas fundamentais para a formação da sociedade brasileira
contemporânea.
– A ativação do Judiciário por movimentos populares para fazer
valer seus direitos e a receptividade de uma parte dos juízes a essas
demandas não começou ontem. Indivíduos pobres, livres, libertos ou
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Sobre o judiciário e a judicialização 39

mesmo escravos, não estavam presentes em processos judiciais ape-


nas como sujeitos passivos (réus) ou como objetos (escravo-coisa)
dos processos. Não era incomum que eles ativassem o Judiciário para
defender ou promover seus direitos. Uma parte importante da histó-
ria do direito e do Judiciário no Brasil é a da atuação de movimentos
pela abolição em conjunto com rábulas e advogados para promover a
libertação de escravos.
Foram utilizadas referências ao período imperial para ilustrar
a “judicialização” nos quatro sentidos da política tratados acima. O
Judiciário centrado na resolução de casos individuais, na proteção
passiva das liberdades negativas reconhecidas aos já cidadãos, é a
parte da história do conservadorismo político, engajado na limitação
do alcance de medidas legislativas do poder central que visassem pro-
mover mudanças sociais no país. A outra parte é a de um engajamento
ativo na concretização de políticas, em nome da proteção dos direitos
fundamentais e liberdades de todos (incluídos os reduzidos à escravi-
dão e outras situações análogas), com o se qual buscava transbordar
os limites de medidas que resultavam de uma maioria político-parla-
mentar precária.
Ilustrações de protagonismo político do Judiciário podem ser
encontradas em outros momentos da nossa história: basta lembrar
a atuação do stf nos conflitos entre oligarquias políticas na Primeira
República e na limitação da repressão do governo federal aos movi-
mentos oposicionistas, na limitação dos poderes da administração pú-
blica durante o Estado Novo ou nos habeas corpus em favor dos presos
militares após 1964. Ou, por outro lado, as atribuições administrativas
que os juízes ainda hoje têm, seja como fiscais externos de atos admi-
nistrativos, seja no controle de direitos indisponíveis, seja, ainda, como
responsáveis pela administração de um dos poderes do Estado.
Mas é interessante fazer referência a duas instituições caracterís-
ticas do Judiciário brasileiro que indicam as suas relações intrínsecas
com a construção da ordem política democrática e voltada à realiza-
ção da justiça social em nosso país.
A Revolução de trinta é considerada como o marco que fixou as
bases do Estado brasileiro contemporâneo, a partir da qual a política
foi nacionalizada, no sentido do reconhecimento do papel do Estado
na promoção de determinados valores e de que os partidos e grupos
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40 Andrei Koerner - Celly Cook Inatomi - Márcia Baratto

sociais deveriam organizar-se tendo o conjunto do país como base


territorial e como âmbito das ações que visavam promover. A partir
dela foram definidas as características e funções do Estado com a
qual: foi redefinido o pacto federativo, com o fortalecimento dos po-
deres e atribuições da União; foram criadas as instituições que per-
mitiram a formação de uma política eleitoral competitiva, em termos
nacionais; as relações entre os poderes, foram reconhecidos poderes
ativos do poder Executivo, cabendo ao legislativo controlar e limitar
a utilização daqueles poderes; o papel dirigente do Estado na econo-
mia, pois foram criados órgãos técnicos e colegiados que permitiram
ao Executivo planejar e investir na economia, bem como arbitrar os
interesses econômicos divergentes; seu papel no reconhecimento de
direitos sociais, com o desenvolvimento de políticas e de burocracias
públicas federais voltadas à defesa e promoção de direitos sociais.
Entre essas criações estão a Justiça Eleitoral e a Justiça do
Trabalho. Examinemse, brevemente, o seu significado e seu papel. Em
primeiro lugar, a Justiça Eleitoral. “Representação (ou verdade eleito-
ral) e Justiça” era a palavra de ordem da revolução de trinta, e referia-
-se à necessidade de promover reformas que garantissem a verdade
das eleições, que seria garantida pela organização do processo sob a
responsabilidade de um Judiciário independente. Esse tema apresen-
ta um duplo aspecto: por um lado, o fato de que o Poder Judiciário
não é um agente que limita exteriormente uma dinâmica de compe-
tição política sem regras entre grupos que procuram a representa-
ção popular. Pelo contrário, atribui-se ao Poder Judiciário o papel de
organizar as eleições para que elas sejam competitivas, cuidando de
todas as suas etapas, como se sabe: desde o alistamento até a procla-
mação dos eleitos. Assim, a justiça eleitoral funciona como um ver-
dadeiro órgão administrativo das eleições (organização, fiscalização
etc.), exercendo também poderes (quase) legislativos, dado o poder
normativo de que dispõem os tribunais eleitorais e os poderes tipica-
mente jurisdicionais. Isso é conhecido por todos, mas não se reflete
sobre o seu significado: de que o Poder Judiciário –ou as instituições
judiciais como um conjunto– são partes inerentes da criação de uma
ordem política (polity) democrática competitiva no Brasil. Assim, a
Justiça eleitoral não é um agente externo que exerce poderes quase
que usurpados sobre os políticos e as eleições; ela exerce um poder
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vol. II, n.º 4, julio-diciembre 2011

Sobre o judiciário e a judicialização 41

que lhe foi atribuído desde a Revolução de trinta e que foi reafirmado
em todas as constituições, democráticas ou não, desde então. Seu pa-
pel não é apenas proteger passivamente os direitos políticos, mas o de
criar as condições institucionais para o exercício daqueles direitos em
condições compatíveis com a democracia política.
Por outro lado, o Poder Judiciário independente não existia em
1930. O que havia era uma justiça federal precária e os Judiciários
estaduais engajados na política oligárquica, sendo que as garantias
da magistratura eram reconhecidas em apenas alguns estados. Assim,
um dos resultados da Revolução de 1930, e da Constituição de 1934, é
a fixação das bases da independência do Poder Judiciário e das garan-
tias da magistratura. Deste modo, o Judiciário é instituído como um
poder independente de uma ordem política competitiva e promotora
de objetivos nacionais, econômicos e de direitos sociais. Em outros
termos, as bases da independência do Poder Judiciário estão no pró-
prio movimento e processo político que redefiniram o Estado brasi-
leiro contemporâneo. Assim, os papéis de que é investido e o exercí-
cio de suas funções devem ser considerados, pelo analista, em função
dessa instituição política e não de um modelo do que deve ser o Poder
Judiciário numa sociedade liberal abstrata.
A criação da Justiça do Trabalho também pode ser analisada sob
esse prisma. À primeira vista, teríamos no Brasil um exemplo de judi-
cialização precoce das relações de trabalho. Mas a adoção –em bases
nacionais– de um modelo legislado de relações de trabalho, se não
teve efetividade imediata, fixou bases normativas que projetaram as
formas legítimas das relações de trabalho e, assim, criou as condições
institucionais para o mercado de trabalho contemporâneo no país. E
à Justiça do Trabalho, junto com os órgãos administrativos, coube o
papel de implementar essa política social. Tanto pelos seus poderes
jurisdicionais como o seu papel de supervisão das condições de tra-
balho, de mediação dos conflitos e de fixação das normas coletivas de
trabalho. A história da Justiça do Trabalho confunde-se com a própria
criação da legislação trabalhista e sua dinâmica de institucional refle-
te as políticas públicas para os direitos trabalhistas. Veja-se o papel
da Constituição de 1988 na ampliação da Justiça do Trabalho e as ini-
ciativas para limitá-la nos anos noventa. A Justiça do Trabalho resulta
de uma crítica à concepção do juiz passivo e neutro, do positivismo
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42 Andrei Koerner - Celly Cook Inatomi - Márcia Baratto

legalista e do processo “dualístico”, presentes no modelo liberal-con-


servador predominante até então. Ou seja, a Justiça do Trabalho tor-
nase o protótipo para um Judiciário adequado à ordem competitiva e
democrática que então se procurava inaugurar.
Assim, esses exemplos mostram que é necessário tratar o Poder
Judiciário do ponto de vista da ordem política como um todo e não
como um poder dotado de certas características, definidas a partir de
um modelo abstrato.
Dada a história das relações entre poder político e instituições
judiciais no Estado brasileiro contemporâneo, é discutível estabele-
cer uma relação unívoca entre, por um lado, a democracia e, por outro
lado, o Poder Judiciário relevante. Após a Revolução de trinta, a insti-
tuição de juízes como responsáveis por decisões políticas relevantes
é o resultado de decisões políticas, tomadas por lideranças de uma
revolução política predominantemente anti-liberal, que acabou por
institucionalizar uma democracia competitiva e criar espaços de re-
solução de conflitos sociais. Ou seja, os poderes políticos do Poder
Judiciário brasileiro não foram produzidos pelo ativismo de juízes
que buscavam substituir os representantes eleitos. Aqueles poderes,
mas também as limitações e fraquezas das instituições judiciais são
resultado tanto de processos democrático-liberais quanto de perío-
dos autoritários.
Essas indicações se tornam mais evidentes quando se consi-
dera o fortalecimento significativo das instituições judiciárias pela
Constituinte de 1946, que investiu, ao mesmo tempo no Judiciário
central (stf) e no dos estados, mas também excluiu os poderes juris-
dicionais da administração federal. Por sua vez, depois de 1964, os
governos militares limitaram os poderes do Judiciário em questões
de defesa do Estado e de intervenção na política levada a cabo pelos
militares, mas, por outro lado, procuraram fortalecer os poderes do
Judiciário central, especialmente depois da Reforma Constitucional
n.° 7, de 1977. Os militares fortaleceram os poderes do stf para o
controle de decisões do Congresso, e os poderes do tse para a condu-
ção do processo eleitoral. Buscaram criar instrumentos de controle
sobre os Judiciários estaduais e reconstituir a jurisdição no âmbito da
administração pública. Assim, era um Judiciário com poderes limita-
dos mas fortalecido institucionalmente que emergia do regime auto-
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Sobre o judiciário e a judicialização 43

ritário, com atribuições para intervir no processo político e orientar


todo o processo eleitoral. Em outros termos, se não era provável a
proliferação de juízes ativistas, a consolidação de uma burocracia ju-
diciária com poderes de intervenção política era um aspecto central
do regime autoritário.

Um quadro para análise do poder judiciário

As observações que seguem procuram traçar um quadro analítico para


tratar o Judiciário do ponto de vista da ordem política. O objetivo é for-
mular uma abordagem que considere as características do Judiciário
nas democracias constitucionais contemporâneas mas que não adote
como quadro conceitual as teorias elaboradas pelos juristas.
Como é usual na análise de instituições, não há um conjunto de-
finido de traços com os quais se possa identificar as características
próprias ao Poder Judiciário. Aquilo que poderia definir sua atuação
–a decisão de litígios individuais de acordo com a lei, tendo em vista
a proteção dos direitos individuais– não é, em vários países, atribui-
ção exclusiva do Judiciário. Mas a definição deixa de fora muitas das
atividades mais importantes e características do Judiciário, como a
resolução de litígios coletivos e a produção de normas gerais. Uma
perspectiva pragmática parece ser mais adequada –identifica-se o
Judiciário pelo que os juízes fazem, segundo as leis e a sua prática
num determinado Estado. Porém essa perspectiva tem limites, na me-
dida que restringe o campo de observação, tomando como ponto de
partida a forma atual das instituições, que permite analisar a dinâmi-
ca interna do Judiciário, mas é parcial para analisar as relações com o
seu “exterior” e as suas especificidades historicamente constituídas.
Parte-se do termo polivalente “jurisdição” para a apresentação
da perspectiva e o quadro analítico proposto. Em seu sentido 14, ju-

Em seu sentido antigo, iurisdictio, poder de dizer o direito, era contraposto a imperium,
14

que se definia como a capacidade de dar ordens, o conjunto de poderes que têm seu prin-
cípio na detenção de uma fração de poder público, o poder de dispor da força pública. No
exercício da jurisdição, o pretor, embora autoridade pública apenas examinava se o pe-
dido era admissível (jurisdictio), aprovando que o cidadão iniciasse uma ação, que seria
julgada por um árbitro ou um júri (judicatio). Daí resultou a oposição entre a jurisdição
como simples declaração do direito, feita por um magistrado (pretor) ou por um tribu-
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risdição refere-se, por um lado, à ordem estatal como um todo, como


um atributo do Estado soberano, tanto do ponto de vista externo, o
seu reconhecimento como sujeito da sociedade internacional, como
interno, a autoridade para fixar as regras das relações sociais ocor-
rentes no seu território. Daí que o termo é sinônimo de competência,
autoridade ou poderes de órgãos ou agentes estatais (sua jurisdição
compreende certo território, domínio etc.). Por outro lado, jurisdição
refere-se ao poder delegado para determinar o sentido da lei, resol-
vendo litígios. Daí estão associados os significados dos tribunais em
seu conjunto, os seus agentes (chefe de jurisdição), determinado âm-
bito ou tipo de competência (jurisdição civil ou administrativa, juris-
dição sobre uma determinada comarca, jurisdição privilegiada, juris-
dição de exceção), extensão dos poderes dos juízes (jurisdição plena
ou restrita), forma do processo (jurisdição graciosa ou contenciosa).
No estado de direito, para se garantir os direitos por meio de julga-
mentos imparciais, essa forma de “jurisdição judiciária” tem extenso
campo de aplicação e características particulares, como a separação
de poderes, as formalidades processuais, as prerrogativas e vedações
dos magistrados etc.
Nos Estados modernos, o tendencial monopólio da força física
legítima sobre o território significou a unificação, pelas instâncias de
decisão do Estado, das fontes normativas e das organizações capa-
zes de mobilizar instrumentos de violência. A jurisdição “judicial” é
a investidura de uma parcela daquela capacidade para determinadas
autoridades para que exerçam os seus poderes sobre um conjunto
determinado de litígios (conflitos “civis” persecuções penais), sob
formas e condições estabelecidas. Para isso, adotam-se determinados
arranjos institucionais que impõem aos conflitos a forma de oposição
entre direitos, e que assumem assim a forma de litígios a serem deci-

nal de cidadãos, e a os atos de execução desse direito declarado, que eram inicialmente
atribuídos aos próprios cidadãos e, mais tarde, passaram a ser garantidos pela autorida-
de pública. Essa distinção entre declaração do direito e atos de execução foi associada à
separação dos poderes do Estado contemporâneo, em que ao Judiciário caberia apenas
a primeira, cabendo a segunda ser promovida pelo Estado (execuções penais) ou pelos
próprios credores (portadores de um título judicial válido que declare uma obrigação
certa e determinada contra um devedor), com a ajuda da força pública, quando necessá-
ria a execução forçada da dívida (cfr. Verbetes “jurisdição” e “imperium” em Cornu, 2007
e Babot e Boucaud-Maître, 2002).
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Sobre o judiciário e a judicialização 45

didos, com as garantias do devido processo legal, por um juiz impar-


cial, segundo o direito.
Nas democracias constitucionais contemporâneas, a delimitação
entre jurisdição “geral” e jurisdição “judicial” torna-se menos preci-
sa. A ordem política adota a forma de comunidade política instituída,
regulada e voltada à realização do direito. A jurisdição judicial conti-
nua como uma forma especial de investidura mas os seus papéis na
ordem política são muito mais amplos, incluindo a garantia da ordem
constitucional, das condições da democracia política, do pluralismo e
a efetividade do princípio do direito nas relações políticas e sociais.
Eliminaram-se restrições à jurisdição judiciária, baseadas em prerro-
gativas, domínios reservados para o exercício da autoridade; modifi-
cam-se os processos judiciais, que admitem sujeitos coletivos, objetos
abstratos e decisões com efeitos gerais, para garantir o acesso de to-
dos e controlar abusos do poder político e econômico. Generaliza-se a
forma do “devido processo legal” para a tomada de decisão na admi-
nistração pública. Criam-se agências autônomas e especializadas para
tratar as áreas da regulação da economia e os conflitos sociais, com
importantes papéis na prevenção e resolução de litígios. Adotam-se
compromissos internacionais de caráter jurídico e com efeitos vincu-
lantes, cuja efetivação pelas autoridades nacionais, é controlada pelos
próprios juízes dos Estados. Desenvolvem-se as técnicas de interpre-
tação sistemática e teleológica do direito baseado em princípios do
estado de direito, da democracia e dos direitos fundamentais. Tudo
isso indica, em suma, que não há critério claro para delimitar a juris-
dição judicial e a jurisdição “geral” nos Estados constitucionais con-
temporâneos.
Ao mesmo tempo, os Estados desenvolveram historicamente gran-
de variedade de formas institucionais, como um todo, e também para o
Poder Judiciário. Embora haja importantes tendências de convergência,
devido à integração regional, à internacionalização do direito etc, a di-
versidade é ainda bastante saliente. Assim, definem-se a seguir dimen-
sões de análise que tratam da distribuição da jurisdição entre o Poder
Judiciário e outras instâncias estatais de tomada de decisão. O objetivo
é reconhecer as formas pelas quais a maneira essa distribuição permite
que o Judiciário independente proporcione a proteção dos direitos dos
cidadãos, mas também torne efetiva a democracia constitucional, por
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meio de processos de tomada de decisão coordenados com os de outras


instituições estatais e agentes políticos e sociais.

Duas dimensões gerais

Para analisar o Poder Judiciário adotam-se duas dimensões, associa-


das aos sentidos da jurisdição: a política judiciária e a produção nor-
mativa do Estado15.

Política judiciária

O Poder Judiciário pode ser considerado do ponto de vista de um tipo


particular de organização do poder político, que exerce a “jurisdição
judicial”, uma investidura ou delegação do poder de tomada de deci-
são estatal. A criação de um Judiciário independente tem uma série
de implicações que podem ser consideradas como a organização dos
tribunais, do corpo de magistrados e a direção do Judiciário.
Assim, a política judiciária pode ser considerada em termos de
organização dos tribunais, procedimentos e pessoal16. O exercício da
jurisdição pode ser mais ou menos monopolizado, segundo ele seja
exercido exclusivamente por membros do corpo de magistrados. Será
homogêneo que este seja unitário ou dividido, e segundo linhas de es-
pecialização, organização territorial ou funções dos agentes judiciais
no processo.
A instituição de um Poder Judiciário independente é indissociável
da autonomia dos juízes, uma vez que este é o próprio objetivo daque-
le. Mas os termos não são sinônimos e, ao contrário, podem revelar-se
conflituosos. A autonomia dos juízes envolve, além das condições para
a sua atuação nos processos judiciais, suas prerrogativas e vedações
pessoais, a sua participação na organização a que pertencem, em parti-
cular suas relações com a direção do Judiciário. Assim, a autonomia dos
juízes implica a dissociação formal entre a organização dos tribunais, a

15
Ver as comparações propostas por Guarnieri e Pederzolli (1996) e por Zaffaroni
(1994).
16
Para informações sobre o Judiciário em democracias constitucionais contemporâneas,
ver Bell (2006), Charbonnier (2008).
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Sobre o judiciário e a judicialização 47

direção administrativa do Judiciário e o governo dos juízes. Isso signi-


fica que a relação entre os juízes de primeira e de segunda instância no
exercício da jurisdição não é hierárquica. A direção do Judiciário (ad-
ministração da justiça e governo dos juízes) pode ser atribuição de um
ou mais comitês, no âmbito do próprio Judiciário ou como agência in-
dependente, nos quais os juízes profissionais são majoritários (direção
autônoma), ou organizados no âmbito de outros poderes do Estado, em
geral um órgão do Poder Executivo, em comitês nos quais os juízes pro-
fissionais têm participação secundária (direção heterônoma).
A direção heterônoma compreende o governo dos juízes, a admi-
nistração do Judiciário ou os dois fatores. Quando a direção é autôno-
ma, pode haver a coincidência ou a distinção entre os três elementos. O
determinante para a autonomia dos juízes é a concentração de segunda
instância e governo dos juízes; o determinante para a independência do
Judiciário é a autonomia no governo dos juízes e direção do Judiciário.

Produção normativa

Com modelo próprio de decisão dos casos, a “jurisdição judicial” par-


ticipa, da produção normativa da ordem constitucional17. Indicam-se
a participação na preservação da ordem constitucional democrática,
que compreende a defesa do Estado de direito e a organização da de-
mocracia competitiva.
O Judiciário participa da formulação de normas gerais, seja por
atribuições próprias de caráter normativo ou consultivo, seja pela
participação de juízes individuais nos processos de decisão das insti-
tuições majoritárias.
O Judiciário atua na prevenção de litígios, em que as instâncias ju-
diciais se articulam com outras agências, para ou extra-judiciais, para
elaborar regras e resolução de litígios privados, cabendo ao Judiciário
a supervisão do processo decisório, a fim de assegurar o respeito aos
direitos e garantias constitucionais.
Enfim, a produção normativa compreende as decisões na resolução
de litígios judiciais propriamente ditos, em que instâncias judiciais têm
atribuições específicas de tomar decisões de anulação de normas legais

Ver Cane (2009), Fromont (2006).


17
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ou regulamentares, com efeitos gerais, ou, alternativamente, de genera-


lizar decisões tomadas em casos individuais, transformandoas em nor-
mas judiciais de efeitos vinculantes, ou ao menos de conhecimento am-
plo entre juízes e administradores. E, ainda, por processos do tipo das
garantias constitucionais, que permitem o acesso amplo ao Judiciário, o
qual é capaz de produzir decisões imediatas com efeitos gerais.
A esse respeito é relevante considerar, por um lado, os efeitos
das decisões judiciais e, por outro, os poderes do juiz no processo,
direção dos atos processuais e a abertura do processo judicial à di-
versidade de auto-compreensão normativa dos sujeitos, que levam a
diferentes maneiras de construção do conflito e de tomada de deci-
são. O Judiciário brasileiro tem atuação relevante nesses campos, e
o objetivo é indicar a maneira pela qual sua ação é coordenada com
outros poderes do Estado e atores sociais.
O quadro proposto limita-se a tratar as relações entre a ordem
política e o Judiciário, que permitam analisar aquelas dimensões ins-
titucionais de uma perspectiva comparada. Não se pretende, com ele,
formular um roteiro voltado à explicação dos formatos historicamente
assumidos pelo Judiciário em uma dada sociedade e nem abordar a di-
nâmica institucional, particularmente a análise das decisões judiciais.
Poder-se-ia finalizar com um roteiro de questões a serem consi-
deradas para levar em conta as transformações do Judiciário brasileiro
contemporâneo, o qual deveria comportar: 1. Como quadro analítico
geral e não esquema explicativo pré-definido, as características ma-
cro-sociológicas da sociedade, a formação social, num sentido marxis-
ta: a estrutura da produção, a conformação das classes sociais, as re-
lações entre elas; 2. As suas formas de organização política, tais como
o modelo de Constituição, as relações entre os poderes, a federação,
as relações entre o Estado e a economia; 3. As suas tendências glo-
bais de desenvolvimento, isto é os processos históricos pelos quais se
conformou aquela estrutura de classes e estas formas de organização
política; 4. As conformação específicas das instituições judiciais e dos
atores jurídicos: sua forma de organização, os padrões de socialização
e carreira, as suas práticas e técnicas, as regras que se consolidaram,
as posições políticas e teóricas que são adotadas em torno de temas
internos e externos ao campo propriamente judicial. Em termos mais
específicos, para compreender as instituições judiciais hoje é preciso
considerar o quadro da crise do Estado desenvolvimentista e das re-
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Sobre o judiciário e a judicialização 49

formas orientadas ao mercado que lhe seguiram, a estrutura constitu-


cional de 1988, com suas mudanças posteriores (incluídas as tensões
entre elas), e seus efeitos para as instituições judiciais, assim como as
funções e o papel dos juristas, tanto nas suas relações internas como
nas relações com o sistema político e com a sociedade mais ampla.

Conclusão
A judicialização da política é um nome atribuído a partir do início dos
anos noventa ao protagonismo político de juízes, o qual não represen-
tava qualquer novidade e não tinha implicações fundamentais para
as democracias contemporâneas. Uma exploração dos sentidos desse
termo nos diversos países revela que ele é utilizado para se referir
a questões muito distintas, como o poder de investigação criminal
dos juízes italianos no processo das mãos limpas, a expansão da ju-
risdição administrativa na Inglaterra, as reformas do sistema judicial
na Suécia, os conflitos sobre direitos na América Latina, a adoção de
modelos de democracia constitucional nos países póscomunistas da
Europa orientais etc.
Entre nós, o início de pesquisas em ciência política e sociologia
sobre o Poder Judiciário brasileiro no começo dos anos noventa coin-
cidiu com um contexto político marcado pela tensão entre a ampliação
de suas atribuições na Constituição de 1988, continuidade organiza-
cional e de quadros e uma agenda de reformas liberalizantes que se
voltou contra a Constituição e um possível protagonismo dos juízes.
A expressão foi incorporada pela linguagem acadêmica, pauta
a agenda de pesquisas e tornou-se de uso corrente. O presente arti-
go tentou questionar esse prêt-àpenser, que se apresenta como um
atalho aparentemente simples, que permite formular diretamente
questões polêmicas sobre a atuação dos juízes sobre as políticas pú-
blicas sob a democracia constitucional pós-1988. Com base na aná-
lise apresentada, conclui-se que a expressão judicialização da polí-
tica é teoricamente inválida, porque apresenta deslizes conceituais,
ao simplificar as relações entre os tribunais e a política, revelando
uma concepção estreita da jurisdição e do direito; ela representa uma
abordagem parcial e enviesada sobre as transformações dos Estados
contemporâneos e, enfim, ela apresenta ambigüidades sobre o seu
campo de aplicação, as relações entre Judiciário e política, o que a tor-
na analiticamente inútil.
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Procurou-se no final fixar um quadro analítico para a pesquisa


do Poder Judiciário, que seja capaz de levar em conta as suas amplas
atribuições nas democracias constitucionais contemporâneas, mas
que não adote as interpretações formuladas pela teoria constitucio-
nal. Esse quadro deverá viabilizar uma pesquisa sobre o Judiciário
brasileiro em perspectiva comparada, a fim de se identificar aspec-
tos particulares em que as nossas instituições judiciais padecem de
limitações para a proteção de direitos de cidadania e a efetivação da
democracia constitucional. O resultado político depende da maneira
pela qual as participação na política judiciária e as formas de pro-
dução normativa interagem com as outras instituições estatais e os
atores sociais. A comparação de diversos países permitirá avaliar os
limites atuais do Judiciário brasileiro, e os potenciais resultados das
reformas em curso.

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