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Direito Constitucional 1

Direito Constitucional I
2ºturma

“(...) O conceito de constitucionalismo transporta, assim, um claro juízo de valor. É, no


fundo, uma teoria normativa da política, tal como a teoria da democracia ou a teoria
do liberalismo (...)”

J.J. Gomes Canotilho

Henrique Milheiro
Direito Constitucional 2

Nota introdutória

Esta sebenta corresponde à fase final de apontamentos de minha autoria, realizados ao


longo do primeiro semestre do ano letivo 2020/2021, no âmbito da disciplina de Direito
Constitucional I. A partilha deste documento tem única e exclusivamente o intuito de
ajudar, servindo de base de apoio ao estudo a todos/as os/as colegas que vão fazer esta
cadeira, independentemente do método de avaliação (Frequências/ Exame Final/ Prova
Oral).

Como fonte de estudo e recolha de informação, esta sebenta conta com apontamentos
pessoais, com excertos de aulas, com transcrições de manuais e códigos inerentes à
disciplina, entre outras fontes. Todas as fontes são devidamente referenciadas, sem
prejuízo do trabalho dos seus autores. A matéria abordada em aula (pelo menos no
presente ano letivo) encontra-se sucintamente explicada, deixando de fora tópicos que,
embora estejam no manual ou noutras fontes, não foram alvo de estudo quer em aulas
teóricas, quer em aulas práticas. A estrutura organizatória deste documento segue os
pontos dos Sumários disponibilizados no Inforestudante. Algumas notas são também
introduzidas ao longo do texto, a fim de clarificar, desenvolver ou referenciar certos
pontos da matéria.

Com esperança de que facilite o estudo de todos/as os/as colegas que desta se sirvam, seja
no corrente ano letivo, seja num momento posterior, desejo a todos os que por este meio
se recorram votos de sucesso e bom estudo! Um bem-haja do vosso semelhante,

Henrique Milheiro, aluno caloiro do ano letivo 2020/2021

Henrique Milheiro
Direito Constitucional 3

Considerações preliminares 1

O que é o Direito Constitucional?

O Direito Constitucional constitui um ramo do direito público, além de ser interno no


âmbito territorial. Pode ainda ser considerado fragmentário, na medida em que
corresponde ao direito básico do ordenamento jurídico, partindo dele uma série de normas
das quais derivam muitas questões e, consequentemente, uma vastidão de ramos do
direito. Numa visão metafórica, o direito constitucional figura se como que um tronco de
uma grande árvore, do qual brotam vários ramos, os ramos de Direito.2

O Direito Constitucional está em crise?

Embora corresponda a um ramo do direito público interno, cada vez mais na atualidade,
ganha expressão a ideia de um direito constitucional em rede, com um supra
constitucionalismo extra estadual, exercendo cada vez mais influencia, o Direito
Internacional Público nas construções constitucionais. A Constituição Portuguesa de
1976, como veremos mais adiante, é aberta a esta ideia, desde logo nos artigos 7.º e 8.º.3

Qual o objeto(s) de estudo do Direito Constitucional?

O objeto concreto de estudo do Direito Constitucional é o direito do Estado e da República


(Res publica, no sentido de coisa pública, do cidadão); o direito das Liberdades; o direito
das fontes de Direito; o direito do político, sobre o político e para o político (traduzido
em forma de Estado e sistema de governo) e ainda o direito do Controlo.

1 Não constitui matéria de avaliação, contudo é fundamental uma interiorização destes conceitos a fim de

melhor entender a matéria concreta.


2 Importante reter a noção de que o Direito Constitucional é um núcleo duro de onde derivam os mais

variados ramos de Direito Público


3 Por ventura, numa tentativa de integração portuguesa na Comunidade Internacional, afastando-se do

isolamento político português que se foi progressivamente afirmando com o Estado Novo

Henrique Milheiro
Direito Constitucional 4

Primeiro olhar sobre a Constituição da República Portuguesa

Uma breve análise preliminar sobre a Constituição de 1976 permitirá salientar a sua
estrutura:

Princípios fundamentais: presentes desde o artigo 1º ao 11º, salvaguarda os princípios


fundamentais da República Portuguesa, como a soberania e legalidade (artigo 3º) e o
Estado unitário (artigo 6º).

Parte I- Direitos e Deveres Fundamentais: estende se desde de o artigo 12º ao 79º, onde
são consagrados os direitos e deveres fundamentais. Dentro desta parte existem dois
conjuntos de direitos e deveres distintos, que são chamados de catálogos. São eles o
catálogo dos Direitos, Liberdades e Garantias, que se estende desde de o artigo 24º ao
57º; e o catálogo dos Direitos e deveres económicos, sociais e culturais, que se inicia no
artigo 58º e termina no artigo 79º.4

Parte II: Organização Económica: compreendida entre o artigo 80º e o artigo 107º.

Parte III: Organização Política: Esta parte incide sobre a organização política do regime
democrático, identificando os órgãos de soberania e as suas demais competências.
Estende se entre o artigo 108º e o 276º.

Parte IV: Garantia e Revisão Constitucional: prevê o controlo de violações á


Constituição no sentido normativo (Título I- Fiscalização da constitucionalidade), desde
o artigo 277º ao artigo 283º. Além disso, prevê também, no Título II- Revisão
Constitucional, os limites á revisão constitucional, desde de o artigo 284º ao 289º. 5

4 São os chamados catálogos dos DLG (Direitos, Liberdades e Garantias) e DESC (Direitos Económicos,

Sociais e Culturais), matéria frequentemente alvo de avaliação em exames. Encontra-se sucintamente


explicada no fim desta sebenta.
5 Matéria relevante para a resolução de casos práticos, encontra-se explorada mais à frente neste documento

Henrique Milheiro
Direito Constitucional 5

Constitucionalismo e movimentos Constitucionais

Constitucionalismo- é um conceito bastante abrangente e com várias definições. Numa


primeira análise o Constitucionalismo pode ser entendido, como uma “(...)” teoria ou
ideologia que ergue o princípio do governo limitado indispensável à garantia dos
direitos, em dimensão estruturante da organização político-social de uma comunidade
(...)”. 6

Assim, distinga se o Constitucionalismo moderno e o Constitucionalismo antigo.

Constitucionalismo moderno- corresponde a uma teoria normativa da política, á


semelhança da teoria da democracia ou teoria do liberalismo. Pode ser visto, num plano
histórico-descritivista, como um movimento político, social e cultural, que a partir de
meados do século XVIII, questionou nos planos políticos, filosófico e jurídicos, os
tradicionais esquemas de domínio político, sugerindo, ao mesmo tempo, a invenção de
uma nova forma de ordenação e fundamentação do poder político.

Constitucionalismo antigo- conjunto de princípios escritos ou consuetudinários


alicerçadores da existência de direitos estamentais perante o monarca e simultaneamente
limitadores do seu poder.

Ao constitucionalismo antigo opôs se o constitucionalismo moderno, com a idealização


de uma constituição moderna.

6 J.J. Gomes Canotilho, in Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª. Edição, Almedina

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Direito Constitucional 6

Constituição moderna- ordenação sistemática e racional da comunidade política através


de um documento escrito, no qual se declaram liberdades e direitos e se fixam os limites
do poder político. Este conceito engloba, portanto, três dimensões fundamentais:

• Ordenação jurídico-política plasmada num documento escrito;

• Declaração, nessa carta, de um conjunto de direitos fundamentais e respetivo


modo de garantia;

• Organização do poder político segundo esquemas tendentes a torna-lo


limitado e moderado;

Atente se que este é um conceito ideal, não correspondendo na íntegra à realidade


concreta de nenhum modelo histórico do constitucionalismo!!

Observemos agora alguns dos movimentos constitucionais que foram pioneiros no


constitucionalismo, salientando as suas características:7

Constitucionalismo Inglês: a revelação da Constituição ou o modelo historicista

• Em Inglaterra desde cedo que se ganhou confiança na ideia de transferência o


poder soberano do monarca para outra instituição. Para a monarquia subsistir, o
poder soberano tinha de ser passado para outra instituição que não fosse o
monarca.8 Enquanto noutros Estados o movimento constitucional se marcou por
revoluções e contrarrevoluções, em Inglaterra houve uma revelação. A soberania
do Parlamento é essencial uma vez que esta assembleia, por ser um órgão plural
favorece, a discussão, a transparência, e ainda a existência de várias visões

7 Cada um com os seus traços caracterizadores concretos, que devem ser entendidos num contexto histórico,

político e social de cada país. Assim, importa ter sempre a noção de que, embora cada um tenha contribuído
(alguns mais do que outros) para o desenvolvimento do conceito de constitucionalismo, e influenciado de
algum modo o constitucionalismo português, não deixam de ser produtos dos meios em que surgiram.
8 In Aula Prática 2 Dra. Joana Neto- consultar também PowerPoint disponibilizado in material de apoio-

“Constituição, movimentos constitucionais e história do constitucionalismo constitucionais”

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Direito Constitucional 7

distintas. Ao colocar o poder soberano num órgão plural, os súbitos sentiam se


representados:

• Assim é desde logo relevante a referência a três períodos distintos9, relativamente


á evolução do constitucionalismo inglês. Primeiramente, desde 1215 (Magna
carta) até meados do século XVII, temos o designado período monocrático, que
se carateriza pela prevalência do poder na coroa. Segue se o período aristocrático,
que se estendeu desde de 1689 (Bill of Rights) até á reforma eleitoral de 1832,
período durante o qual prevaleceu o poder na Camara dos Lordes (corpo não-
eleito) nas instituições de poder político britânico. Finalmente, desde da reforma
eleitoral de 1832 até ao presente, assiste se ao período democrático, com a
democratização das instituições políticas, no qual ascende e prevalece a Camara
dos Comuns.

• Denota se assim uma intencionalidade relativa ao fim do arbítrio do poder do


monarca, bem como a proteção da propriedade e a liberdade dos cidadãos de
ataques fiscais ou outros promovidos pelo monarca, e preservação dos privilégios
adquiridos, ou seja, uma garantia aos cidadãos ingleses.

• Este longo processo de revelação, forma se e inicia se em 1215, com a assinatura


da Magna Carta pelo rei João e alguns barões ingleses. Este documento, embora
inicie o período monocrático, limitou o poder absoluto do monarca. Radicou a
liberdade pessoal de todos os ingleses, bem como a segurança da pessoa e dos
bens de que se é proprietário (artigo 39º). Foi, portanto, a pedra angular do
constitucionalismo em Inglaterra.

• Com a garantia da liberdade e da segurança, impos se a criação de um processo


justo regulado por lei, o due process of law, onde se estabelecessem as regras
disciplinadoras da privação da liberdade e da propriedade. Já as leis do país (law
of the land), reguladoras da tutela das liberdades são dinamicamente interpretadas

9Para um estudo mais aprofundado deste tópico consultar PowerPoint disponibilizado em material de apoio
– “Constituição, movimentos constitucionais e história do constitucionalismo constitucionais”

Henrique Milheiro
Direito Constitucional 8

e reveladas pelos juízes, e não pelo legislador, que assim vão sedimentando o
direito comum (common law) de todos os ingleses; nota se aqui, o papel relevante
da jurisprudência.

• Importa compreender a dimensão de constituição não escrita, não existe um texto


único da Constituição. Encontra se apenas algumas regras constitucionais
relativas à organização e funcionamento do poder político. Assim, as normas que
constituem a Constituição inglesa, provem de várias fontes, salientado se vários
textos de valor constitucional, como a Magna Carta (1215); Bill of Rights (1689);
Constitucional Reform Act (2005)10; além de normas constitucionais costumeiras,
que têm caracter de obrigatoriedade e convenções constitucionais, que são
praticas reiteradas, sem acompanhamento da convicção de obrigatoriedade. A
Constituição assumirá, pois, um carácter flexível, não tendo de seguir nenhum
procedimento específico, com alterações feitas a partir das Leis do Parlamento.

• Saliente se também a Soberania do Parlamento, que se afirma com a Glorious


Revolution (que pôs termo ao período de guerra civil em Inglaterra) o Rei deixa
de ser o líder absoluto e o poder passa para o Parlamento. O Parlamento é
composto pela Croa, pela Camara dos Lordes e pela Camara dos Comuns. O
Governo é o responsável pelo Parlamento. Há assim uma dimensão de Governo
Misto, e de Constituição Mista. Em cada época há um órgão que exerce maior
influência, não estando, porém, independente dos restantes órgãos, que o limitam.
O poder é assim partilhado entre o Rei, a Camara dos Lordes e a Camara dos
Comuns.

• Por último, será relevante salientar a ideia do Rule of Law. Têm de haver normas
claras e transparentes que pautam o comportamento das pessoas, e ainda a garantia
de defesa aquando a quebra dessas regras. A Rule of Law pode ser entendida em
quatro pontos. Primeiramente, a observância de um processo justo legalmente
regulado, quando se tiver de julgar e punir os cidadãos, privando os da sua

10Lista completa dos documentos com valor constitucional em PowerPoint disponibilizado em material de
apoio – “Constituição, movimentos constitucionais e história do constitucionalismo constitucionais”

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liberdade e propriedade previstas na Magna Carta, ou seja, o due process of law.


Seguidamente temos a proeminência dos costumes, princípios e instituições que
a tradição e a experiência dos juristas e dos tribunais mostraram ser essenciais
para a salvaguarda dos indivíduos face ao poder político, ou seja, o papel relevante
e fundamental da jurisprudência. Há ainda a sujeição de todos os atos do executivo
ao poder do parlamento, garantido que o poder político é exercido conforme o
Direito (ideia de “Estado de Direito”, aqui assumida no Rule of Law). Por último
saliente se a ideia de igualdade perante a lei e igualdade de todos no acesso aos
tribunais, a fim destes aí defenderem os seus direitos de acordo com os princípios
do direito comum dos ingleses (Common Law), face a qualquer entidade pública
ou privada.

Constitucionalismo Norte Americano: “We the people”

• Sendo os Estados Unidos uma colónia britânica, os seus colonos gozavam dos
direitos relativos à proteção da sua propriedade e liberdade. Porém, Inglaterra
imponha uma série de taxas e impostos sobre esta colónia e não lhe assegurava
representação parlamentar (“taxation without representaiton”). Face a esta
conjuntura, os colonos americanos começam se a insurgir contra a Inglaterra (“no
taxation, without representaiton”). Neste ambiente é notável o trabalho dos
Founding Fathers, como Jefferson e Hamilton, que se assumiram como ideólogos
da independência. Estes homens foram responsáveis pela elaboração dos Fedralist
Papers, uma série de jornais onde procuraram perceber como deviam organizar
politicamente aquele território. Redigiram depois a Constituição de 1789, que
aprovaram no segundo congresso da Filadélfia. Este documento, alem de
organizar o poder, procurou limitar lo.

• A Constituição Norte-Americana inicia se com a fórmula “We the people” - “Nós


o povo”, demonstrando que a soberania radica no povo, embora se elegem
indivíduos políticos para a exercer. Afirma se com isto uma limitação normativa
do domínio político através de uma lei escrita, que além da idealização de um

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presidente, o que assegurava um limited goverment, aquele que é limitado pela lei,
que se assume como Higher Law, pautando as regras disciplinadoras do poder e
sancionando o governante que as violasse.

• É uma Constituição escrita, à semelhança da francesa e distanciando se da inglesa.


É, pois, num sentido rígida, na medida em que as alterações à constituição estão
dependentes da adoção de um procedimento particularmente exigente, com a
participação de todos os Estados. Estas alterações são feitas através dos
aditamentos (amendments) que são anexados ao texto da constituição. Por outro
lado, é flexível, uma vez que as sucessivas emendas, adendas, bem como a
atividade hermenêutica dos tribunais e da jurisprudência constitucional permitem
adequar o texto da Constituição à realidade constitucional.

• Importa reconhecer a vertente de Estado de Direito no Constitucionalismo


americano, que à semelhança do Rule of Law, observa a Constituição como uma
lei superior, uma Paramount Law, que pela sua característica de superioridade,
torna nula qualquer lei inferior que a viole. O poder legislativo tem assim de ser
exercido no sentido da constituição e não pode ir contra ela.

• O poder judicial assume se como fundamental para a defesa e garantia dos direitos
dos cidadãos, pois é o guardião e defensor da Constituição, através da fiscalização
da constitucionalidade da lei pelos juízes e por qualquer tribunal (Judicial
Review).

Constitucionalismo Francês: a rutura ou o modelo individualista

• O Constitucionalismo francês forma se a partir de 1789 com a revolução. Desde


logo assiste se a uma rutura, a um rompimento com o Acién Régime,
nomeadamente com os privilégios estamentais e com o poder absoluto do

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monarca. Atente se que a França tinha este modelo de organização societária, o


absolutismo, há mais de três séculos.

• Assiste-se ao mesmo tempo ao nascimento da ideia e conceito do poder


constituinte, através de Sieyés, que é o poder de criar uma constituição, criando
assim uma nova ordem social e política. O seu titular é a Nação, no sentido de ser
o povo, sendo este quem legitima o poder constituinte originário (aquele que cria
a Constituição).

A legitimação deste novo poder político traduz a ideia de um contrato (Rosseau).

• A Constituição é escrita, para que sejam mais facilmente percetíveis as violações


da mesma, dissuadindo se, deste modo, os governantes de não observarem os
preceitos fundamentais.

• O Constitucionalismo francês é também caracterizado por uma descontinuidade


formal, pois a Revolução Francesa dura mais de uma década com várias fações
revolucionárias e contrarrevolucionárias assumindo o protagonismo. Assim são
escritas 12 Constituições.

• A Constituição atualmente em vigor é a de 1958, que incide maioritariamente


sobre o poder político e a sua organização. Mas há um carácter supraconstitucional
no que toca aos direitos e liberdades fundamentais. Estes são organizados na
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. Este documento
supraconstitucional prevê no seu artigo 16º que “A sociedade onde não esteja
garantida a separação de poderes (...) e os direitos fundamentais (...) não tem
constituição “; o que contribuiu largamente para o conceito moderno de
constituição e constitucionalismo.

• Em França, o poder legislativo assume se como pedra angular da democracia,


uma vez que embora os poderes fossem prudencialmente separados

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Direito Constitucional 12

(Montesquieu), afirma se uma prevalência dele, o legicentrismo (influencia de


Rosseau) pois parte da expressão da volunté génerale (a vontade geral que é
traduzida na formação da assembleia legislativa), e como tal afasta a possibilidade
de outro poder questionar a conformidade da lei com a Constituição.

• Este entendimento torna o Estado num Estado de mera legalidade formal. Neste
Estado afirma se, como já referido, uma hegemonia do poder legislativo, pois a
lei, acompanhada pelas suas características de generalidade, abstração e
racionalidade é necessariamente um instrumento racional e justo (visão positivista
ou moderna da lei).

• Assiste-se assim um apagamento normativo da Constituição: a supremacia do


poder legislativo desonera os órgãos políticos de tentarem apurar da conformidade
das leis com a Constituição. Formalmente há uma constituição que ocupa o topo
da pirâmide normativa, mas não há ninguém que controle se o legislador respeita
a constituição, há, pois, um fraco controlo da constitucionalidade pelos tribunais.

Poder Constituinte

Procure se agora fazer a distinção entre poder constituinte originário e derivado, bem
como compreender as suas dimensões:

Poder Constituinte Originário: É o poder de criar uma Constituição.

Poder Constituinte Derivado: É o poder de revisão dessa Constituição.

Existem quatro perguntas fundamentais a fazer, relativamente ao poder constituinte:

• O que é o poder constituinte? (1)


• Quem é o seu titular? (2)
• Qual o seu procedimento? (3)

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Direito Constitucional 13

• Existem limites ao poder constituinte? (4)

Sieyés e o "pouvoir constituant" (1)

Segundo o Abade Emmanuel Sieyés, o poder constituinte surge estreitamente ligado a


luta contra a monarquia. Existem momentos fundamentais desta teoria:
Primeiramente este poder é pertencente a nação e deve ser entendido como
originário e soberano. A nação tenho plena liberdade de criar uma Constituição, pois
ao fazer uma "obra constituinte", não está sujeita a formas, limites ou condições
preexistentes.

Esta teoria é simultaneamente desconstituinte e reconstituinte. Inicialmente e


desconstituinte pois é dirigida contra a monarquia. Uma vez absolvido O poder
monárquico impõe-se uma "reorganização", uma reconstrução da ordem jurídica
política. Aqui assume se o poder reconstituinte, com a instauração de uma nova
ordem política plasmada na Constituição. Os poderes criadores bem como os
poderes de revisão serão, pois, os poderes constituídos.

Rousseau e as "parcelas da soberania"

Rousseau considera que a soberania assenta individualmente em cada cidadão:

"Supúnhamos que o estado seja composto por 10.000 cidadãos (…) Cada membro (…)
décima milésima parte da autoridade soberana (…)".

O titular do poder constituinte (2)

O titular do poder constituinte é, portanto, o povo. Mas este é um conceito polissémico


— para Rousseau e a sua teoria de soberania popular é o conjunto das parcelas da
soberania; para Sieyés e a sua teoria da soberania nacional, o povo é um complexo
indivisível, é a nação como " Terceiro estado". Há ainda a distinção entre o povo
político, como uma grandeza pluralística e diferente de comunidade natural; e o
povo real, como uma comunidade aberta de sujeitos constituintes.

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Direito Constitucional 14

A elaboração da constituição: procedimentos constituintes (3)

Existem várias formas de poder constituinte. É mais comum é um procedimento


constituinte representativo, através de uma Assembleia Constituinte. Esta pode ser
soberana, caso elabore e aprove a Constituição (como foi o caso da Assembleia
Constituinte da Constituição da República Portuguesa de 1976) ou não soberana,
caso apenas se encargue de elaborar a Constituição, cabendo depois a sua apreciação
ao povo (procedimento constituinte misto). Ainda dentro dos procedimentos
constituintes representativos encontramos as convenções do povo, como é exemplo
a Constituição americana de 1787.
Há ainda o procedimento constituinte direto, que pode ser referendário ou plebiscitário,
como foi o caso da Constituição Portuguesa de 1933.

Por fim existem os procedimentos constituintes monárquicos, dos quais fazem parte as
cartas constitucionais ou constituições outorgadas, doadas pela vontade do monarca
(exemplo da Carta Constitucional de 1826); bem como as constituições dualistas ou
pactuadas (pacto entre o soberano e a vontade nacional).

Limites ao poder constituinte (4)

A teoria clássica do poder constituinte, de Sieyés, defendia uma omnipotência


Constituinte. Porém, a vinculação jurídica deste poder deve atender a certos valores
supraconstitucionais, tais como a dignidade da pessoa, a liberdade, a justiça e a
igualdade.
Importa também entender a vinculação interna, com a inexistência de um vazio histórico
cultural; além da vinculação internacional/cosmopolita, com os princípios do direito
internacional e as normas de ius cogens.

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Poder Constituinte Derivado- Revisão da Constituição11

Observe agora o poder constituinte derivado em Portugal. Em Portugal existe um


elaborado procedimento de revisão constitucional. Este procedimento encontrasse
previsto na IV parte da Constituição, Título II, desde o artigo 284º ao 289º, onde são
estabelecidos uma série de limites as revisões constitucionais.

Em primeiro lugar estabelece os limites temporais, logo no artigo 284º, segundo os


quais uma revisão só poderá ocorrer passados cinco anos sobre a data de publicação
da última revisão ordinária. Contudo, Assembleia da República, pode assumir poder
de revisão extraordinária, quando necessário.

Já os limites circunstanciais, previstos no artigo 289º, estabelecem que não se pode


realizar uma revisão constitucional durante a vigência de um estado de sítio ou de
emergência (remissão para os artigos 19º; 134º, d) e 138º).

Por sua vez, os limites procedimentais, preveem a situação de revisão ordinária e


extraordinária. Numa revisão ordinária, a iniciativa compete aos deputados (286º/1)
e as alterações aprovadas são reunidas numa única lei de revisão constitucional, sendo
o Presidente da República obrigado a promulgar essa mesma lei (286º/3). Caso se
trate de uma revisão extraordinária as medidas de aprovação e promulgação mantém-
se iguais às de uma revisão ordinária, alterando se apenas a iniciativa. A iniciativa
passa agora a competir uma maioria de 4/5 dos deputados em efetividade funções
(284º/2).

Existem também conjunto de limites materiais, isto é, um conjunto de matérias que


se pretende que não sejam suscetíveis de modificação no âmbito de uma revisão
constitucional. Estas matérias estão previstas no artigo 288º. Aqui se levanta a
problemática da dupla revisão, realizada aquando se procura rever uma destas
matérias. Para tal, realiza se uma primeira revisão constitucional e, em outra revisão
ou até na mesma, como se sucedeu em 1989, já é possível alterar a norma
constitucional que tinha a sua modificação antes vedada.

11 Matéria da mais alta importância, referente aos casos práticos sobre revisão constitucional

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Direito Constitucional 16

Por fim, temos os limites formais (286º/2 e 287º), sendo que a alteração tem de ser
inserida em lugar próprio, mediante substituições, superações e adiamentos
necessários, reunidas numa única lei e o texto constitucional, republicado com essa
nova lei.

12
A problemática da dupla revisão13, é defendia pelo Professor Jorge Miranda, de Lisboa,
mas rejeitada pelos Professores Vital Moreira e Gomes Canotilho, de Coimbra.
Traduz se numa primeira alteração a um limite material, o que permitirá, de seguida,
quer na mesma revisão, quer noutra, alterar uma matéria cujo o acesso de revisão se
encontrava antes vedado pelo limite material. Independentemente da nossa posição
nesta problemática, a verdade é que em 1989, aceitou-se a dupla revisão (caso único
até hoje).

Sendo aqui relevante, distinga-se ainda várias tipologias de limites materiais. 14

Os limites materiais absolutos, são aqueles que a revisão constitucional tem de respeitar
o seu regime constitucional como absoluto.

Já os limites materiais relativos, são aqueles onde pode haver alteração do seu regime
constitucional, mas com limites (não é possível a sua eliminação ou substancial
modificação).

Os limites materiais autónomos, são aqueles que resultam da interpretação literal,


sistemática ou histórica da Constituição. Dentro desta tipologia, existem os expressos
e os textualmente implícitos.

Já os limites materiais heterónomos, podem ser tácitos propriamente ditos, caso se


afiram por uma ordem jusnaturalista ou por uma ordem social justa, ou podem ser

12 A referência dos tópicos daqui para a frente são classificados com pontos extra!!!
13 A sua referência em casos práticos, mesmo que a tal não seja pedida é altamente valorizada na correção –
“(...) Dá pontos bónus (...)” - Dra. Joana Neto in aulas práticas
14 sua referência em casos práticos, mesmo que a tal não seja pedida é altamente valorizada na correção – “(...)

Dá pontos bónus (...)” - Dra. Joana Neto in aulas práticas

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Direito Constitucional 17

limites materiais heterónomos expressos, caso representem a submissão do poder


constituinte derivado ao direito internacional.

Revisões Constitucionais da Constituição de 1976

1982- Revisão ordinária: esta primeira revisão procuro reduzir a carga ideológica da
Constituição; flexibilizar o sistema económico e redefinir estruturas do exercício do
poder político, nomeadamente, com a extinção do Conselho da Revolução e a criação
do Tribunal Constitucional.

1989- Revisão ordinária: esta revisão ordinária visou dar uma maior abertura ao sistema
económico (abertura ao mercado comum); por um termo ao modelo socializante para
a economia e a superação da irreversibilidade das nacionalizações.

1992- Revisão extraordinária: esta primeira revisão extraordinária procurou adaptar o


texto constitucional aos princípios do tratado de Maastricht.

1997- Revisão ordinária: esta revisão ordinária procurou uma forma de organização do
poder político nomeadamente com a concessão de maior autonomia às regiões
autónomas.

2001- Revisão extraordinária: esta revisão extraordinária procurou a


internacionalização da Constituição Penal (ratificação para a criação do Tribunal
Penal Internacional).

2004- Revisão ordinária: esta revisão ordinária veio reforçar a autonomização política
das regiões autónomas.

2005- Revisão extraordinária: esta visão extraordinária visou a concordância da


Constituição com um referendo do tratado Constitucional europeu, embora este não
tem avançado.

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Direito Constitucional 18

Memória Constitucional Portuguesa

Características genéricas do constitucionalismo português

Descontinuidade Formal: Em quase dois séculos, a ordem jurídica portuguesa


conheceu seis diferentes textos constitucionais, e, inclusive, viveu um período de
interregno Constitucional (1828 -1834).

Vigência intermitente das constituições monárquicas: As duas primeiras


constituições portuguesas tiveram uma vigência intermitente, reflexo da instabilidade
que marcou a história política correspondente a esse período.

Via revolucionária: Com a exceção da carta constitucional, todas as constituições foram


precedidas por atos revolucionários, tem sido por eles fortemente condicionadas.

Constituições Monárquicas

Constituição de 1822, a fase de iniciação constitucional

Foi antecedida pela revolução liberal de 1820. Procurou instituição de uma monarquia
constitucional, ou seja, a partilha de poderes entre o rei e o Parlamento, apenas
cabendo ao monarca os poderes conferidos pela Constituição.

A Constituição foi elaborada e apurada pelas Cortes extraordinárias constituintes


(procedimento constituinte representativo outra vez uma assembleia soberana). O
monarca apenas aceitou e jurou.

No artigo 30º, consagra-se a separação dos poderes (legislativo, executivo e judicial).


Nota-se uma forte influência da soberania estadual e da igualdade jurídica todos os
cidadãos.

Esta Constituição teve dois períodos de vigência, entre 1822-1823 e entre 1836-1838.

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Direito Constitucional 19

Carta Constitucional de 1826, a fase de reafirmação constitucional

Em 1823 D. Miguel leva a cabo a volta da Vila-Francada, que embora dominada por
seu pai, Dom João VI, acaba com a monarquia constitucional e retoma o absolutismo.
Dom João VI por meio de uma nova Constituição, mas acaba por morrer antes que
qualquer documento desta natureza seja escrito. Então o seu filho mais velho, Dom
Pedro IV, que outorgada em 1826, a Carta Constitucional, que foi por ele elaborada e
aprovada (procedimento constituinte monárquico por Carta Constitucional).

A figura régia agora titular de um novo poder, o poder moderador (artigo 11º e 71º).
Porém D. Miguel não respeita a Carta e leva a sua abolição, restaurando o
absolutismo, dando se então a guerra civil entre 1828 e 1834.

Com a vitória liberal, a Carta é reposta, mas num curto período de vigência, voltando
a ser abolida em 1836. No total teve três períodos de vigência, entre 1826-1828; 1834-
1836 e entre 1842-1910.

Constituição de 1838, a fase de afirmação do Parlamento

A partir de 1836 manteve-se um clima de "guerra civil", entre os Setembristas


(radicais que defendiam a soberania nacional) e os Cartistas (defensores do
documento de 1826).

Na sequência da Revolução de setembro de 1836, o governo conservador é derrubado


e oposição democrática chega ao poder, com passos Manuel. Entra de novo em
vigência da Constituição de 1822 (segunda vigência).

Aprova-se uma nova Constituição, com carácter pactuado, que tentaria satisfazer
ambas as fações, mas sem resultado. Este documento foi elaborado pelas Cortes

Henrique Milheiro
Direito Constitucional 20

Gerais Extraordinárias e Constituintes, sendo depois submetido a Rainha Dona Maria


II, que aceitou e jurou.

Vigorou desde 1836 a 1842, altura em que Costa Cabral leva a cabo um golpe de
estado e retoma a Carta Constitucional de 1826 que vigoraria até 1911.

Constituições Republicanas

Constituição de 1911, a fase da República parlamentar

Com a revolução de 5 outubro 1910 dá-se a queda da monarquia e a implementação


da República. Através de um procedimento constituinte representativo, a Assembleia
Nacional Constituinte elaborou e aprovou a Constituição de 1911.

Entre as suas principais características destacam-se a consagração de um catálogo de


direitos e garantias individuais no início do texto; a instituição de um sistema
bicameral (Câmara dos deputados e senado) para o poder legislativo; eleição indireta
do presidente da República (eleito pelo Congresso), a quem era atribuído o poder
executivo, mas que não tinha poderes próprios relevantes (dependência do poder
legislativo).

Foi revista seis vezes, e vigorou em 1911 a 1926.

Constituição de 1933, a fase do Estado Novo

A primeira república mostrou-se bastante instável, com 44 governos em 15 anos. Não


tardaria a dar-se uma revolução militar a 28 de maio de 1926, que deu início à
Ditadura Militar, que se estende até 1933.

Henrique Milheiro
Direito Constitucional 21

Em 1933 foi criado o Conselho Político Nacional, que tinha o poder de apreciar
projetos de Constituição que lhe eram entregues. Um projeto, de autoria do professor
Oliveira Salazar, com participação de outros intelectuais foi aceite e submetido à
aprovação popular através de um plebiscito.

Esta Constituição previa um catálogo de direitos e garantias individuais dos cidadãos,


embora com a possibilidade de os mesmos serem restringidos por leis especiais, o que
permitia, com facilidade neutralizar essa proteção.

Constituição de 1976, a fase do constitucionalismo democrático

Com a revolução de 25 de Abril de 1974, o MFA entregou o poder à Junta da Salvação


Nacional, presidida pelo General António Spínola. A Constituição foi antecedida por
35 leis constitucionais.

Utilizado um procedimento constituinte representativo ou indireto, tendo sido eleita


uma Assembleia Constituinte com poderes soberanos para elaborar e aprovar a
Constituição (Assembleia Nacional Constituinte).

Vigora até a atualidade e já sofreu sete revisões constitucionais.

O Estado Constitucional

Constituição e seu referente, Estado ou Sociedade (?)

Atualmente é possível falar de constitucionalismo para além do Estado, daí a


expressão "constituição europeia".

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Direito Constitucional 22

Fazendo uma retrospetiva à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de


1789, no artigo 16º, considera-se que uma sociedade, onde não estejam garantidos os
direitos fundamentais, não tem Constituição. Mas repare-se que o referente aqui não
é o estado, mas antes a sociedade. Se a Constituição tiver por referente o Estado, então
deve haver uma preocupação visada aos seus órgãos, mas se a Constituição tiver como
referente a sociedade, então as preocupações multiplicam-se.

Daí ser possível pensar se num paradigma mais cosmopolita. Nas últimas décadas
tem-se vindo a evidenciar um pensamento de maior abertura internacional dos
constitucionalismos, deixando-se lentamente para trás a ideia de um
constitucionalismo estadual, internamente fechado que provinha já desde o século
XIX e vigorou durante o século XX. Porém esta nova ideologia abrandou com a atual
pandemia (Covid 19).

O estado constitucional tem de se reger por uma Constituição. Deve consagrar os


princípios do Estado de Direito e Estado Democrático. Em Portugal, a Constituição
refraz desde logo esta ideia. No artigo primeiro defende a ideia de ser uma República.
República deve ser entendida na sua plurifacetada noção como a Res Pública (a coisa
pública), defendendo-se um conjunto de valores daquilo que é público.

Já os artigos sétimo e oitavo batam abertura de Portugal ao direito internacional,


investe estar fechado assim mesmo (internamente), como esteve durante os 48 anos
de vigência do Estado Novo. Por último é ainda essencial referir a vertente social do
Estado Português.

O Estado de Direito e as suas diferentes concretizações

Noção básica: um Estado que está submetido a regras jurídicas previamente


designadas.

Henrique Milheiro
Direito Constitucional 23

Em Inglaterra esta ideia ganha expressão através da Rule of Law, que acentuou desde
o início a ideia subjacente de um processo justo, de justiça procedimental (due process
of law). Há ainda uma forte acentuação da soberania do Parlamento, que significa a
permanência da lei e a sujeição de todos os atos do executivo a soberania parlamentar.

Nos Estados Unidos, esta ideia ganhou traço inovadores com o "império do direito"-
The regin of law. O estado está desde o principio "always under the law" , uma vez
que arranca, desde logo, do direito do polo fazer uma lei superior (Higher
Lawmaking), ou seja, uma Constituição onde se estabelecem os esquemas essenciais
do governo e a respetivos limites. Os direitos e liberdades dos cidadãos surgem e
dentro destes esquemas e são, como tal, inerentes a Higher law.

Depois o estado constitucional associa a juricidade do poder à justificação do


governo. As razões do governo devem ser razões públicas, que tornem patente o
consentimento do povo de ser governado em determinadas condições. O governo
justificado é assim o que compre é obrigação jurídico constitucional de governar
segundo as leis (government under law).

Por último, também os juízes assumem um importante papel, sendo eles os garantes
dos direitos básicos, através da judicial review of legislaiton.

Na Alemanha, o Estado de Direito traduziu-se no Estado Liberal de Direito,


contrariamente ao anterior Estado de Polícia, que tudo regula e assume a função de
garante da felicidade dos seus súbitos. O Estado Liberal de Direito limita-se a defesa
da ordem e segurança, remetendo os domínios económicos e sociais para os
mecanismos da liberdade individual e da liberdade de concorrência.

Já o monarca é agora um "órgão de estado", estando submetido ao império da lei, bem


como os restantes poderes públicos. Este é o Rechtstaat.

Na França, a ideia assentou na construção de um État Légal, concebido numa ordem


jurídica e hierarquizada. No topo da hierarquia situa-se a Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão de 1789, que é de carácter supraconstitucional e pré-
constitucional. A constituição encontra-se num patamar inferior e a lei em terceiro
lugar. Porém fala se em primazia da lei, que paradoxalmente neutraliza a supermacia

Henrique Milheiro
Direito Constitucional 24

da constituição, diferente de Higher law. É, portanto, um estado legal ou da


legalidade.

Estado Democrático

A democracia significa a legitimação do poder, sendo que essa legitimação pode ser
traduzida em várias formas. Uma ideia fundamental é legitimação do poder através da
soberania do povo. Em democracia ganha quem tiver mais votos. O acesso ao poder, nos
órgãos de soberania, é feito numa cadeia ininterrupta de legitimação (o que não significa
que se tenha de eleger diretamente).

A existência do pluralismo partidário e a oposição democrática. Também é de realçar


existência de direitos políticos e de participação política (sindicatos, manifestações). Isto
manifesta-se através da democracia representativa (base do sistema português), esta
prevalência é referida no artigo 10º da Constituição, embora também haja democracia
semidirecta (referendo); democracia direta (pronunciação dos cidadãos nas autarquias) e
ainda a democracia participativa (ameaçada pela abstenção).

Direito Constitucional Português Vigente

Génese e evolução da Constituição de 1976

A Constituição de 1976 é comparada a de 1933, descontínua. Embora ambas se


apresentem através de uma manifestação do poder constituinte democrático (uma
plebiscitária e outra com uma Assembleia Constituinte soberana), distanciam-se entre
si nos seus princípios políticos estruturantes. O Estado Novo, arquitetado pela
Constituição de 1933 é materialmente distinto do Estado Democrático, desenhado
pela Constituição de 1976.

Henrique Milheiro
Direito Constitucional 25

Dada a especificidade da revolução, a Constituição assumiu contornos inovadores.


Contudo não deixam de ser observáveis algumas influências de fundos constitucionais
estrangeiras.

A lei fundamental de Bona de 1949 abrir parênteses (Grundgreset) torna-se visível no


catálogo de direitos, liberdades e garantias. Já a Constituição italiana de 1948 deixei
também a sua marca, no que se refere aos estatutos das regiões autónomas. Por sua
vez, o modelo francês de organização política tem algumas refrações na nossa
Constituição, Especialmente no que se refere aos esquemas semipresidencialistas.

Ainda é possível confirmar inspirações de outros modelos, como os dos países da ex


União Soviética, no âmbito dos direitos económicos, sociais e culturais.

Constituição de 1976 é uni textual, não existindo emendas constitucionais nem leis de
valor constitucional. É rígida, uma vez que tem um procedimento específico de
revisão e declara a inconstitucionalidade de normas infraconstitucionais que violem a
Constituição. É longa, com 296 artigos (no meio termo, entre a americana, com sete
artigos e a francesa, com 377).

É Constituição é pragmática, fazendo a distinção entre normas-fim e normas-tarefa.

Princípios fundantes e estruturantes da Constituição de 1976

Os princípios fundantes da Constituição, são o princípio da dignidade da pessoa


humana e o princípio da vontade popular.

Já os princípios estruturantes da Constituição, são o princípio do Estado de Direito;


princípio do Estado Democrático; princípio Republicano; além dos princípios da
socialidade, unidade do Estado e abertura da Constituição aos direitos europeu e
internacional.

O artigo primeiro da Constituição define Portugal como uma República soberana,


assente na dignidade da pessoa humana e na vontade popular.

Henrique Milheiro
Direito Constitucional 26

O artigo segundo da Constituição define Portugal como um Estado de Direito


Democrático.

Atente se agora a algumas dimensões básicas dos princípios fundantes:

Princípio da dignidade da pessoa humana: é uma "pré-condição" para a legitimação


material do uma ordem de domínio (princípio-limite). Estabelece uma relação com o
sistema de direitos fundamentais e a universalidade do valor da dignidade da pessoa
humana.

Princípio da vontade popular: É o poder constituinte do povo; fundamenta e legitima


o poder político; fundamenta a autoridade dos poderes públicos e é o fundamento da
participação popular.

O princípio do Estado de Direito e os seus subprincípios

Princípio do Estado de Direito: encontra-se consagrado no segundo artigo da


Constituição. O ordenamento jurídico rege se por um conjunto de regras que visam
proteger o cidadão do estado, bem como regular a atividade estadual. O nosso
ordenamento jurídico tem uma variedade de regras que organizam a atividade do
estado, bem como asseguram a proteção dos cidadãos face aos poderes judicial,
legislativo e executivo.

Subprincípios do princípio do Estado de Direito:

Subprincípio da Legalidade da Administração

Perante a administração de uma entidade pública, os administrados têm de se sentir


protegidos. Estes órgãos englobam elementos públicos e privados que exercem
atividade pública. A administração pública tem que estar sempre subordinada a lei

Henrique Milheiro
Direito Constitucional 27

(também chamado de princípio da juricidade da administração, pois tem de estar


subordinado ao direito em geral, não só à lei).

O subprincípio da Legalidade da Administração, por sua vez, divide se em três sub


subprincípios:

Sub subprincípio da precedência da lei: a administração pública não pode atuar sem
ter uma lei previamente habilitante;

Sub subprincípio da supremacia (ou prevalência) da lei: a administração pública tem


sempre de cumprir a lei e executa-la, não a podendo violar;

Sub subprincípio da reserva da lei: estipula a existência de leis específicas, com valor
diferente, e matérias que têm de ser legisladas por diferentes órgãos, assim:

-No artigo 164º, estipulam se as matérias de competência legislativa absoluta e exclusiva


da Assembleia da República;

-No artigo 165º, define se o conjunto de matérias de competência legislativa relativa da


Assembleia da República, ou seja, que o Governo pode legislar caso o Parlamento
autorize (decreto-lei autorizado);

-No artigo 198º, n.º 2 estabelecem se as matérias cuja competência legislativa é exclusiva
do Governo;

-Todas as restantes lei e decretos-lei, têm o mesmo peso.

6.2) Subprincípio da proporcionalidade ou proibição do excesso

Garante que não se verifiquem abusos (excessos) pela atuação pública, de modo aos
cidadãos se sentirem seguros. Determina-se este excesso através da avaliação de três
critérios (testes):

Henrique Milheiro
Direito Constitucional 28

1º idoneidade/adequação: verifica se a mediada em causa é apta a satisfazer o fim


pretendido.

2º necessidade: verifica de todas as medidas adequadas disponíveis e igualmente aptas


a alcançar o fim desejado, o meio que produza menos efeitos restritivos.

3º proporcionalidade: no seu sentido estrito, coloca na "balança" os dois bens ou


interesses em colisão; o público e o privado.

Subprincípio da segurança jurídica ou proteção da confiança

Garante que as pessoas se sentirem protegidas e seguras face aos poderes públicos
(judicial, executivo e legislativo). Há, portanto, uma corrente de cada um dos poderes,
pois a forma de os cidadãos se sentirem protegidos e seguros, perante cada poder é
diferente. Relativamente ao poder legislativo existem três critérios que tem de ser
cumpridos para assegurar a proteção dos cidadãos:

-Respeito pelas boas práticas na elaboração de atos normativos. O legislador tem de


legislar de uma forma clara e simples, possibilitando a fácil compreensão pelos
destinatários das ordens.

-Proibição de pré-efeitos, ou seja, um ato normativo só começa a produzir efeitos a


partir do momento em que é publicado no Diário da República (remissão para a lei
74,11 de novembro). A lei entra em vigor no dia previsto pela norma, caso não haja
um dia previsto, então a lei passa a vigorar após cinco dias.

-Problemática de normas retroativas. Importa antes de mais, fazer a distinção entre


normas prospetivas, retroativas e retrospetivas. As normas prospetivas são as que
produzem efeitos para o futuro (efeitos ex nunc); por contraposição as normas
retroativas são aquelas que produzem efeitos para o passado (efeitos ex tunc). Já as

Henrique Milheiro
Direito Constitucional 29

normas retrospetivas abrangem situações jurídicas que tiveram início no passado, mas
que perduram.

A proibição de normas retroativas não é geral, mas antes aplicável a um conjunto de


situações, onde não se admite este tipo de efeito jurídico, nomeadamente, as normas
que restringem direitos, liberdades e garantias (artigo 18º, 3, da Constituição); as
normas em matéria penal que sejam mais desfavoráveis ao individuo (artigo 29º, 1,
da Constituição); e ainda as normas em matéria fiscal que sejam mais desfavoráveis
ao individuo (artigo 103º, 3, da Constituição).

Saliente-se ainda que em qualquer outra situação que não as previstas, onde haja a
possibilidade de aplicação de uma norma retroativa, ou em quadros de aplicação de
uma norma retrospetiva, o subprincípio da proporcionalidade tem que ser cumprido.

Ainda dentro do subprincípio da segurança jurídica e proteção da confiança, na vertente


do poder judicial: as pessoas têm de se sentir seguras perante o poder judicial, se se
sentirem seguras perante uma determinada sentença. Uma sentença não é final caso se
possa pedir recurso, mas a partir do momento que uma sentença judicial não admite mais
recursos ordinários, ela transita em julgado (caso julgado). A partir daí pode se começar
a confiar nos seus efeitos. A decisão do Tribunal já não admite recurso ordinário,
admitindo sim em extraordinário.

Por fim, dentro deste subprincípio, na vertente do poder executivo: destaca se o caso
decisivo administrativo. A partir do momento em que já não se pode recorrer da decisão,
as pessoas podem confiar que não será alterada em maneira a impedir os seus planos. É o
instrumento que permite que os admistrados sintam que podem confiar no poder
executivo, podendo colocar esforços no sentido de estarem salvaguardados os interesses
pessoais (com exação dos casos extraordinários).

Direito Fundamentais, tipos e categorias

Os Direitos Fundamentais têm um capítulo próprio na Constituição (Parte I) e estão


bastante ligados ao princípio da pessoa humana, algo fundamental para a vivência em um
Estado de Direito.

Henrique Milheiro
Direito Constitucional 30

Estes direitos têm um carácter constitucional, assumindo por isso dignidade de texto
constitucional. Têm também um carácter de fundamentalização, no sentido em que
sendo direitos fundamentais não necessitam obrigatoriamente de se encontrarem na
Constituição. Isto está defendido pelo artigo 16º da Constituição, que define que
quaisquer direitos fundamentais defendidos na Constituição não excluem a existência
de outros, nomeadamente no âmbito do direito internacional (número 1, cláusula
aberta).

Os catálogos dos DLG e dos DESC

Dentro da Constituição conseguimos distinguir dois tipos de direitos fundamentais:

Direitos, Liberdades e Garantias (DLG)- desde o artigo 24º ao 57º.

Direitos Económicos, Sociais e Culturais (DESC)- desde o artigo 58º ao 79º.

A Constituição distingue estes dois tipos de direitos fundamentais. Há, pois, três critérios
de distinção:

Critério do radical subjetivo

Os DLG estão mais ligados a pessoa individualmente considerada, enquanto os DESC


que não estão necessariamente relacionados com a pessoa individualmente
considerada como pressuposto.

Critério do conteúdo determinado ou determinável

Os DLG têm o seu conteúdo determinado ou determinável no texto da Constituição. Já


os DESC não têm esse conteúdo determinado. Tome se como exemplo, o direito à
vida, previsto no artigo 24º (DLG), já está determinado por si mesmo e como tal atua
sozinho e ganha outra importância constitucional face ao, 77º (DESC), que é referente
à participação democrática no ensino, não estando determinado e sendo necessário o
legislador definir e desenvolver o seu conteúdo.

Henrique Milheiro
Direito Constitucional 31

Critério da natureza defensiva ou negativa e da natureza prestacional ou positiva

Nos DLG pretende se a defesa das pessoas contra a intromissão do Estado, logo têm uma
natureza defensiva ou negativa. Por sua vez os DESC, necessitam de intervenção do
Estado, e por isso têm uma natureza positiva ou prestacional, vindo a atividade
estadual concretizar o conteúdo dos direitos e efetivara-los.

Direitos fundamentais dispersos e direitos análogos aos DLG

Direitos fundamentais dispersos: são aqueles que estão previstos na Constituição, mas
dispersos ao longo de todo o texto constitucional. Significa que são direitos
fundamentais consagrados constitucionalmente, mas que estão fora dos catálogos dos
DLG e dos DESC.

Direitos análogos aos direitos, liberdades e garantias: a própria natureza da doutrina


considera que fora do catálogo dos DLG, encontram-se direitos com características
análogas a estes. Assim, podemos ter direitos análogos aos DLG seja dentro do
catálogo dos DESC ("falsos DESC"), como é o caso do artigo 62º; seja em direitos só
materialmente constitucionais; bem como dispersos ao longo da Constituição.
Resumidamente, encontramos direitos análogos aos DLG em todo lado, com a
exceção ao próprio catálogo dos DLG.

Regimes dos direitos fundamentais

Regime Geral dos Direitos Fundamentais

O regime geral dos direitos fundamentais divide em dois aspetos, a titularidade e a


igualdade.

Quanto a titularidade, vale a regra da universalidade. Porém esta universalidade tem


exceções.

Henrique Milheiro
Direito Constitucional 32

Desde logo exceções sobre os direitos dos estrangeiros, previsto no artigo 15º. No
número 1 deste artigo estipulasse a regra da equiparação; mas no número 2, definisse
as exceções, nomeadamente relativas aos direitos políticos e ao exercício de funções
públicas que não sejam predominantemente técnicas, entre outras.

Já no número 4 deste artigo, são referidas em que condições de reciprocidade, os


estrangeiros se podem candidatar e eleger às autarquias locais.

Ainda neste artigo, no número 5, define-se que em condições de reciprocidade, a lei


permite a cidadãos europeus se candidatarem ao Parlamento Europeu.

Já a segunda exceção da universalidade é o caso das pessoas coletivas, que também têm
direitos. Porém, as pessoas coletivas só podem invocar direitos que sejam da sua
natureza, do seu objeto, relacionados com a sua área, excluindo, pois aqueles que são
relativos à parte humana. Isto é, o chamado princípio da especialidade. Distinga-se
também os direitos de exercício coletivo face aos individuais. O direito à greve é
coletivo, pois a sua natureza engloba a coletividade; a singularidade deste direito
traduz-se num simples direito de protesto.

A vertente da igualdade afirma-se pelo princípio da igualdade, que significa que é


necessário tratar igual, o que é igual, e diferente, o que é diferente, na medida da
diferença.

O artigo 13º prevê a igualdade de todos os cidadãos perante a lei. Número dois deste
artigo são convocadas uma série de categorias suspeitas, que ao longo do tempo
tendem a ser mais violadas.

Assim, na eventualidade de um individuo acusar uma entidade por discriminação, dentro


de uma categoria suspeita, compete a essa entidade e demonstrar que cumpriu o
princípio da igualdade. Mas, caso a situação presente a tribunal seja considerada
"discriminatória", por parte do individuo, numa categoria fora das previstas no
número 2 do artigo 13º, então cabe aí ao acusador demonstrar em que medida foi
vítima da discriminação.

Henrique Milheiro
Direito Constitucional 33

Importa ainda aqui fazer referência às Afirmative Actions; um instrumento que provém
do direito americano, que privilegia pessoas de minorias para que tenham as mesmas
oportunidades que o resto da sociedade, no fundo é uma discriminação positiva.

Regime específico dos Direitos, Liberdades e Garantias

No artigo 17º da Constituição é previsto um regime específico que se aplique aos direitos
liberdades e garantias, bem como aos direitos análogos a estes.

Com isto, no artigo 18º encontramos este regime. Logo número 1, garante-se a
aplicabilidade direta deste tipo de direitos, que se traduz numa valia destes sem lei e
contra a lei. Não é, pois, necessária a existência de lei para este tipo de direitos serem
aplicáveis. Por serem diretamente aplicáveis, são self executing, executam-se
sozinhos. O segundo aspecto é a vinculação de entidades públicas e privadas. As
entidades públicas vinculam se de forma automática. O legislador tem o dever de
legislar para os privados também vincularem direitos, liberdades e garantias.

Relativamente à restrição de direitos liberdades e garantias, esta encontra-se prevista nos


números 2 e 3, do artigo 18º. Desde logo saliente se a reserva de lei; apenas uma lei
da Assembleia da República ou um decreto lei autorizado do governo pode restringir
DLG (165º,1,b). Também autorização constitucional é aqui referida, apenas podem
ser restringidos direitos liberdades e garantias, nos casos expressamente previstos na
Constituição; e sempre de acordo com o princípio da proporcionalidade, mediante a
realização dos seus três testes.

Por último, o número 3, assegura que uma lei restritiva dos DLG, tem que ser geral e
abstrata; proibindo a retroatividade e protegendo o núcleo essencial dos preceitos
constitucionais.
Fim.

“(...) Qualquer que seja o conceito e a justificação do Estado (...) o Estado só se conhece hoje como Estado
Constitucional (...)”

J.J. Gomes Canotilho

Henrique Milheiro
Direito Constitucional 34

Fontes:

§ J.J. Gomes Canhotinho – Direito Constitucional e a Teoria da Constituição –


Almedina, 7ª Edição

§ Jorge Miranda - Curso de Direito Constitucional - Vol. 1 - Estado e


constitucionalismo. Sistemas políticos. A Constituição como fenómeno jurídico.
– Universidade Católica Editora, 2ª Edição

§ Jorge Miranda - Curso de Direito Constitucional - Vol. 2 - Normas


constitucionais. Direitos fundamentais. Atividade constitucional do Estado.
Fiscalização de constitucionalidade. – Universidade Católica Editora, 2ª Edição

§ Constituição da República Portuguesa de 1976

§ PowerPoints disponibilizados no Inforestudante

Henrique Milheiro

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