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TEORIA DA CONSTITUIÇÃO

I Introdução: Conceito e Antecedentes Doutrinais da Teoria da Constituição


1.1 Conceito
A Constituição regula normativamente a prática política e o modo da inscrição e de
organização dos seus efeitos nas instituições políticas. Podemos assim dizer que ela é o
estatuto normativo da prática política. Deste modo, ela estabelece os parâmetros que balizam
essa prática e o processo de inscrição do poder nas instituições e assume especial relevância
e significado na disciplina jurídico-política da dinâmica do processo político. É neste sentido
que podemos dizer com Gomes Canotilho que a Constituição é o estatuto jurídico do políti-
co.
Posto isto, importa recortar o conceito de Teoria da Constituição e o seu objecto,
para de seguida explicar a sua importância para a compreensão do próprio Direito
Constitucional. Antes, porém, parece-nos interessante dizer que a Teoria da Constituição
surge na Alemanha e no período entre as duas guerras e reivindica a categoria de disciplina
autónoma, que deve ser considerada como um ramo especial do direito público. De acordo
com alguns autores, essa teoria começa a ser elaborada nos anos vinte do século passado por
Carl Schmitt, com a sua Teoria da Constituição (Verfassunsglehre), publicada pela primeira
vez em 1927, e por Rudolf Smend, com a sua obra Constituição e Direito Constitucional
(Verfassung und Verfassungrecht), de 19281. Contudo, poder-se-á dizer que longa é história
da genealogia da Teoria da Constituição, pelo menos, no que diz respeito ao conceito e à
função da Constituição.
Antes de entrar nessa genealogia, importa recortar, mesmo que em traços gerais, o
conceito de Teoria da Constituição para que possamos compreender do que estamos a falar.
Nesta perpectiva poderíamos dizer com Pablo Lucas Verdú que a Teoria da Constituição
pode ser entendida como dogmática jurídica. Nesse sentido, nela se estuda os conceitos
(nomeadamente da Constituição), as fontes, as ideias, as categorias, as relações entre as forças
políticas na cena política, logo, os regimes políticos e as formas de Governo, a evolução
histórica, o direito comparado e os postulados prévios que os permitem compreender o
Direito Constitucional.
Contudo, importa revelar desde já que a Teoria da Constituição não é uma Teoria do
Estado, nem um capítulo da Ciência Política, mas sim uma disciplina autónoma que parece

1 Nesse sentido escreve Pablo Lucas Verdú que “”(...) la Teoria de Constitución (...) aparecerá em 1928 com
las obras de Schmitt, Rudolf Smend y sus discípulos” Pablo Lucas Verdú, Teoría de La Constitución Como Ciencia
Cultural, 2a. ed. corr. y aum (Madrid: Dykinson, 1998), p. 30.

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oscilar entre aquela Teoria e esta Ciência, mas, em bom rigor, é um corpus teórico ou
doutrinal autónomo e coerente2 que acaba por ter uma fundamentação axiológica
exactamenete porque se funda em valores, mesmo que os não explicite3. Esse corpus é
constituído por um conjunto de matérias tematicamente orientadas para a pré-compreensão
e a compreensão do próprio direito constitucional.
Na verdade, já Carl Schmitt reivindicava a autonomia científica da Teoria da
Constituição quando defende que “[E]s necessário, empero, afarnase por erigir uma teoria
de la Constitución como rama especial de la teoria del derecho publico”4 e que essa teoria
deve ser concebida como “un território independiente del Derecho público que requiere ser
tratado por si mismo”5 . Contudo, não sendo uma Teoria do Estado, no sentido que Heller
atribui a essa teoria, ou seja, como escreve este autor, não “se propone investigar la específica
realidad de la vida estatal. Aspira a compreender al Estado em su estrutura y función actuales,
su devenir hsistorico y las tendências de su evolución”6 ou mesmo Jellinek7 , por não ser esse
o seu objecto de estudo, embora não deixe de convocar algumas dimensões dessa Teoria
para as constituir em objecto de estudo, com vista a nos permitir pré-compreender e
compreender a objectiva ossatura material da Constituição, em especial da sua parte organi-
zatória desta. Isto é, para o estudar sempre sob ponto de vista da sua relação efeitos com a
Constituição e dos efeitos que nela produz.
Por outro lado, a Teoria da Constituição não é Ciência Política, embora também
tenha no seu objecto a análise do papel das forças políticas em luta na cena política e da sua
influência conformadora da própria ordem jurídico-constitucional8. Aqui também essa
análise é feita sempre com os olhos postos não só no modo como essas relaç~eos de ofoça
se precipitam na Constituição, como também os efeitos que a Constituição nelas produz,
disciplinado juridicamente as relações de poder entre as forças politicas no quadro das
instituições constitucionalmente consagradas e delimitadoras dessas relações.
A Teoria da Constituição revela a sua autonomia relativamente à Teoria do Estado e
à Ciência Politica também pela via da afirmação da sua fundamentação axiológica e cultural
que suporta e dá sentido à dogmática jurídica do Direito Constitucional e às regras e

2 Lucas Verdú, p. 24.


3 Lucas Verdú, p. 40.
4 Carl Schmitt, Teoría de la Constitución (Madrid: Alianza Editorial, 2011), p. 25.
5 Schmitt, p. 26.
6 Hermann Heller, Teoria del Estado (Mexico: Fondo de Cultura Economica, 1974), p. 19.
7
Georg Jellinek, Teoria General del Estado (México: Fondo de Cultura Económica, 2012).
8 Para maior desenvolvimento dessa relação entre a teoria da Constituição e a Ciência Política, veja-se, entre

outros, Juan Ferrando Badía, Estudios de Ciencia Politica y de Teoria Constitucional (Madrid: Tecnos, 1998), p. 714
e segs.

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impositivas de limites e de mecanismos de controlo do poder político. Nesse sentido, Pablo
Lucas Verdú defende que essa teoria é uma teoria cultural e deve ser concebida como cultura,
o que leva este autor a oferecer uma complexa definição da Teoria da Constituição como
“cultura, cultura euroatlántica, ideologicamente inspirada, justificada por valores, que
iluminam, fundamentan y dinamizan mediante derechos humanos, reconocidos y protegidos,
mediante delimitación de los poderes públicos, a una organización estructural normativizada
que se apoya em uma estrutura sociopolítica”9.
Talvez seria mais simples e compreensível dizer que a Teoria da Constituição oferece
os fundamentos axiológicos e gnosiológicos do Direito Constitucional. Fundamentos esses
que nos permite captar a essência e o significado da Constituição, “en el marco de umn orden
sistemático y unitário” como defende Loewenstein10. De facto, para este constitucionalista,
a Teoria da Constituição também nos permite perceber a importância da Constituição no
processo político e e a posição da ordem constitucional na dinâmica do processo político11.
Por isso mesmo toda a Teoria da Constituição, diz este autor,”muestra necessariamente los
rasgos de su época”12 e não é eternamente válida, exactamente por ser sempre epocalmente
datada.
É nesta perspectiva que Carl Schmitt, Smend e Loewenstein organizam as suas
Teorias da Constituição.
Na verdade, Carl Schmitt na sua Teoria de la Constitución (Verfassungslehre) diz que
só trata temas pertinentes a essa teoria no sentido próprio, elegendo para o efeito a Teoria
da Constituição do Estado liberal burguês e o Estado de Direito, em que analisa, entre outros,
o conceito de Estado, o conceito de Constituição, a doutrina da democracia, a doutrina da
monarquia e da aristocracia, o sistema parlamentar, os direitos fundamentais e a teoria da
federação.
Por seu lado, Rudolf Smend, na sua Constittución y Derecho Cnstitucional
(Verfassung und Verfassungsrecht), defende que dos princípios básicos de uma teoria
política derivam (...) uma teoria da constitucional bem delimitada, que é estudada com base
na metodologia que as “ciências do espírito” aplicam à teoria do Estado e com um a
fundamentação filosófica do Estado, que para Smend é parte da realidade espiritual ou
melhor é uma esfera espiritual colectiva13. Esse estudo deve limitar-se aos aspectos

9 Lucas Verdú, p. 22.


10 Karl Loewenstein, Teoria de la Constitución (Barcelona: Ariel, 2018), p. 17.
11 Loewenstein, p. 18.
12 Loewenstein, p. 18.
13 Realidade espiritual que Smend entende não ser estática, mRudolf Smend, Constitutición y Derecho Constitucional

(Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1985), p. 62/63.as sim dinâmica e que caracteriza da forma
seguinte: “El Estado no constituye em cuanto tal uma to talidad inmóvil, cuya única expresión externa consista.

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fundamentais para a compreensão da Constituição e deve ser feito com base no princípio da
integração ou da coesão social, que é um postulado da própria Constituição14. Para Smend,
essa integração consubstancia o processo que constitui o núcleo substancial da dinâmica do
Estado produz a unidade dialéctica do individuo e da colectividade e permite a realização de
valores que são a essência do Estado. Essa integração é constituída por três núcleos
dinâmicos que são: a integração pessoal, que é feita através de pessoas, diz respeitos aos
actores político (líderes políticos, caudilhos, Chefes de Estado e de Governo, etc.) e às
instituições através das quais actuam (Ministérios, Gabinetes etc,); a integração funcional ou
processual “que tienden a produzir uma síntesis social, esto es, que tienden, bien a que el
contenido espiritual se haga comunitário, o bien a reforzar la vivencia comunitaria de la vida
social, dinamizando así tanto la vida de la comunidade, como del individuo”15, como por
exemplo manifestações políticas, manifestações de massa, plebescitos, eleições; integração
material que se traduzem na participação dos indivíduos na via estatal pela via da vivenciação,
comunhão e realização de valores culturais, pois tanto indivíduos como a comunidade
dependem dos valores que os sustentam – símbolos político, como as bandeiras, cerimónias,
festas nacionais – que dão a consciência de pertença ao Estado. Podemos assim dize que a
Teoria da Constituição de Smend é a teoria do processo de integração nas suas três
dimensões acima referidas.
Finalmente, Loewenstein de acordo com a sua concepção da Teoria da Constituição
e do objecto desta, de que já demos conta, trata na sua obra com este nome os controles do
processo e do poder político no constitucionalismo democrático, o processo político e os
tipos de governo, abordando vários subtemas relacionados estes estes grandes temas.
Como pode ver-se do que acabamos de expor, a Teoria da Constituição tem como
objecto várias dimensões da dinâmica social e política, nomeadamente as relações de poder
entre as forças político-sociais, os fundamentos axiológicos e gnoseológicos do Direito
Constitucional sempre referenciados a cada concreta época histórica. É portanto, uma teoria
orientada para a pré-compreensão e a compreensão da Constituição e do Direito Constitu-
cional.

Em pedir leyes, acuerdos diplomáticos, sentencias o actos administrativos. Si el Estado existe, es unicamente
gracias a diversas manifestaciones, expresiones de um entramado espiritual, y, de um modo más decisivo, a
través de las transformaciones y renovaciones que tienen como objeto inmediato dicho entramado inteligible.
El Estado existe y se desarrolla exclusivamente em este processo de continua renovación y perma· nente
reviviscencia; por utilizar aqui la célebre caracterización de la Nación em frase de Renan, el Estado vive de um
plebescito que se renueva cada día. Para este processo, que es el núcleo sustancial de la dinâmica del Estado,
he propuesto ya em outro lugar la denominación de integración”.
14 Smend, p. 40/41.
15 Smend, p. 78.

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1.2. Antecedentes Doutrinais da Teoria da Constituição16
A Teoria da Constituição, como já tivemos a oportunidade de dizer, começa a ser pensada e
elaborada nos finais dos anos vinte do século vinte, ou seja, no entre as duas guerras mundiais
e num período em que o Estado liberal e de Direito está em crise em virtude da emergência
dos totalitarismos que, como sabemos, e as democracias liberais destroem e as suas institui-
ções e combatem a ideologia liberal. Sob o ponto de vista da doutrina jurídica, poder-se-á
dizer que ao Estado liberal corresponde, sendo dominante, a doutrina positivista de Kelsen
com todo o seu formalismo, consubstanciada na sua célebre Teoria Pura do Direito e na sua
Teoria Geral do Direito e do Estado, em que, e em síntese, o Estado é concebido como
ordem normativa ou, se se quiser, como um sistema de regras. Aqui esse formalismo, sob o
ponto de visa da teoria do Estado começa por ser posta em crise por Heller na sua Teoria
do Estado sociológico-politicamente fundamentada e que, por isso, não pretende ser uma
teoria geral “com carácter universal para todos os tiempos, porque no lo estimamos, em
absoluto, posible”17, mas sim uma teoria em que se estuda o Estado inserido na concreta
realidade social em que se formou. Numa palavra, pese embora Jellinek18, em 1911 e 1912,
tenha já elaborado, uma Teoria dualista do Estado em que este é analisado sob o ponto de
vista jurídico e sociológico, é aquela crise do Estado liberal que potencia o nascimento da
Teoria da Constituição com a obra de Carl Schmitt e de Rudolf Smend.
Mas, na genealogia dessa teoria estão presentes vários outros pensadores que trataram nas
suas obras o conceito de Constituição e a história das instituições, dos regimes políticas, e
das formas de Governo quer no domínio da Ciência Política, como Aristóteles, na sua
Constituição dos Atenienses, Marco Tulio Cicero, nas suas obras De Republica e De Legibus,
Blackstone, com os seus Comentários sobre as leis da Inglaterra, Montesquieu, no seu
L’Esprit de la Lois, Sieyes, com o seu Qu'est -ce Que le Tiers État?, Rousseau, no seu Du
Contrat Social ou Essay sur la Forme de la République, Benjamim Constant, entre outros19.
É claro que estes pensadores não constroem uma Teoria da Constituição, com o
sentido que Schmitt ou Smend atribuem a essa teoria, mas como diz Pablo lucas Verdú
oferecem “ideias constitucionales” que não formam um corpus teórico-doutrinal a que se

16 Sobre esses antecedentes e para um estudo sucinto e bem esclarecedor desta matéria veja-se José Joaquim
Gomes Canotilho, Direito constitucional e teoria da constituição, 7. ed (Coimbra: Almedina, 2003), p. 1335.
17 Heller, p. 19.
18 George Jellinek, L’État Moderne et son Droit, 2 vols (Paris: Giard & Brière, 1911).
19 Devemos também referir a Ramos Salas que, nas suas Lições de Direito Publico Constitucional, datada de

1822, trata vários temas da teoria da Constituição, com o conceito de Constituição, a Igualdade, a Liberdade
etc. Veja Ramon Salas, Lições de Direito Público Constitucional para as Escolas de Hespanha (Lisboa: Typographia
Rollandiana, 1822).

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possa denominar Teoria da Constituição. Essas ideias não deixam de ser relevantes para o
pensamento dos fundadores dessa Teoria, como por exemplo, Carl Schmitt, cuja Teoria da
Constituição reflecte a crise do Estado Liberal e começa por elaborar vários conceito de
constituição, para passar ao estudo do Estado Liberal de Direito, terminando com uma
Teoria Constitucional da Federação; por seu lado, Smend estuda, através de uma teoria da
integração, os elementos essenciais do Estado de Direito, centrando a sua atenção nas teorias
da separação dos poderes, da legalidade da administração, bem como a das leis e dos direitos
e liberdades fundamentais. Como se vê, temas que foram tratados de forma dispersa pelos
anteriores autores e que os mais recentes, como Jellinek e Carré de Malberg, trataram ora
sob o ponto de vista da Teoria do Estado, ora sob o do Direito Constitucional, mas que com
Schmitt e Smend são constituídos num corpus teórico autónomo dessas duas áreas discipli-
nares e da área da Ciência Política, e que é a Teoria da Constituição.
Em resumo, todo este discurso sobre a Teoria da Constituição revela-nos que ela
nasce com um algum grau de incerteza sobre a forma como deve ser organizado o corpus
teórico que reivindica querer ser e oscilando, como dissemos, entre a Ciência Política e a
Teoria do Estado, mas reclamando um espaço teórico autónomo. Assim, não é uma teoria
política, embora tenha por objecto temas que se precipitam na Constituição para alicerçar a
ordenação das estruturas políticas ou, se se quiser, do político, não é nem uma teoria do
Estado por não se preocupar com a organização das estruturas, nem com as funções do
Estado, mas o seu objecto constituído por temáticas metajurídicas que se precipitam no
Direito Constitucional para o conformar e enformar e para permitir uma pré-compreensão
e uma compreensão, mesmo hermenêutica, do concreto texto constitucional e eleva-o à
categoria de uma teoria crítica da Constituição e do Direito Constitucional20
A Teoria da Constituição é, portanto, uma disciplina autónoma da Ciência Política e
da Teoria do Estado que tem por objecto de estudo um conjunto articulado de temas, como
o conceito de Constituição, do poder, do regime político, forma de governo, teoria da
democracia, da separação dos poderes, dos direitos fundamentais na sua relação com a
Constituição de cada Estado em concreto, mas sempre orientada pelos valores da

20 Em sentido próximo Gomes Canotilho quando defende que a Teoria da Constituição “aspira, ainda, a ser

estatuto teórico da teoria crítica e normativa da constituição”. Para este constitucionalista de Coimbra “a Teoria
da Constituição (...) é incerta e até obscura”; é uma teoria política e uma teoria científica. Explica que é “uma
teoria política porque pretende compreender a ordenação constitucional do político, através da análise,
discussão e crítica da força normativa, possibilidades e limites do direito constitucional. É uma teoria científica
porque procura descrever, explicar e refutar os fundamentos, ideias, postulados, construção, estruturas e
métodos (dogmática) do direito constitucional”. Mas, continua este autor, a teoria da Constituição é mais do
que uma teoria política e e uma teoria científica do direito constitucional, porque “aspira a ser estatuto teórico
da teoria crítica e normativa da constituição”. Gomes Canotilho, p. 1334.

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democracia, dos direitos humanos e da dignidade da pessoa humana. Nessa medida, é uma
teoria axiologicamente fundamentada e culturalmente referenciada.

II Arqueologia Constitucional
O estudo da arqueologia constitucional pode ser feito sob um duplo ponto de vista, a
saber: o das doutrinas fundamentadoras de uma ideia e do sentido do Direito Constitucional
e o da origem e evolução das normas reconhecidas e aceites político-comunitariamente como
direito fundamentador – leis fundamentais – de uma concreta ordem jurídica, ou seja, a
evolução histórica do Direito Constitucional. São essas duas dimensões que iremos aqui
estudar começando pela primeira.

a) As doutrinas fundamentadoras de uma ideia do Direito Constitucional ou a Teoria


da Constituição
1. Poder-se-á dizer que é unanime a ideia de que foi na Grécia que surgiu a ideia de
Constituição, nomeadamente na célebre obra de Platão, A República. De acordo com Maria
Helena da Rocha Pereira, o verdadeiro título dessa obra é Politeia, “cujo sentido etimológico
é ‘constituição’ ou forma de governo de uma polis ou cidade-estado”21. Nessa obra, Platão
trata nos Livros VIII e IX a origem das formas de Governo e indica as seguintes formas: a
timocracia, a oligarquia, a democracia e a tirania; no Livro II, quando descreve a origem da
polis, elabora uma teoria em que esta surge como uma pessoa política com vida e objectivos
próprios22. Através dos argumentos de Gláucon sobre o conceito de justiça e de injustiça, na
opinião de certos autores, diz-nos Maria Helena da Rocha Pereira, Platão, com vista a evitar
injustiças, esboça uma primeira e singela protoformulação de um Contrato social23. Para além
disso, fala-nos das Constituições, mas sempre na sua relação com as formas de governo24.

21 Maria Helena da Rocha Pereira and Platão, ‘Introdução’, in A República (Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1976),

p. 500 (p. XLVII).


22 Pode ver-se esse diálogo sobre a origem da polis em Platão, A República (Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1976),

p. §§369a a 374, pa 72 e segs.


23 Eis a tese de Gláucon que, na opinião de alguns autores, diz-nos Maria Helena da Rocha Pereira, é a primeira

exposição de uma teoria do contrato social: “Dizem que uma injustiça é, por natureza, um bem, e sofrê-la, um
mal, mas que ser vítima de injustiça é um mal maior do que o bem que há, em cometê-la. De maneira que,
quando as pessoas praticam ou sofrem injustiças umas das outras, e provam de ambas, lhes parece vantajoso,
quando não podem evitar uma coisa ou alcançar a outra, chegar a um acordo mútuo, para não cometerem
injustiças nem serem vítimas delas Daí se originou o estabelecimento de leis, e convenções entre elas e a
designação de legal e justo para as prescrições da lei. Tal seria a génese e essência da justiça, que se situa a meio
caminho entre o maior bem – não pagar a pena das injustiças – e o maior mal – ser incapaz de se vingar de uma
injustiça”. Cfr. Platão, A República (Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1976), §359a, pa 55. Entendemos que ainda
não se trata de uma verdadeira teoria do contrato social, embora esta passagem revele a importância de um
“acordo mútuo” para a formação de uma “polis”, diríamos, mais justa e pacífica. Daí que tenhamos preferido
falar em proto formulação dessa teoria.
24
Cfr. Platão, p. §445d, a 206 e 544a. b,c e d, a 364 e 365.

7
2. Por seu lado, Aristóteles, na sua Constituição dos Atenienses, cuja data de
publicação tem gerado polémica entre os especialistas, mas que se aceita que terá sido entre
329 a.C. e 322 a.C. (data da morte deste filósofo)25, também trata temas meta-constitucionais
que se relacionam com a Constituição – politeia – sobredeterminando-a.
De acordo com Delfim de Leão, essa obra está dividida em duas grandes partes, uma,
a primeira parte, em que Aristóteles “segue uma linha diacrónica” com vista a “fornecer a
história da evolução da constituição ateniense desde o começo até à alteração ou metábole,
a restauração democrática de 403”; outra, a segunda parte, em que o Estagirita “descreve
uma abordagem sincrónica, o funcionamento da politeia no tempo do autor, que corresponde
ao estádio da democracia radical”26.
Assim, tendo em conta esse conteúdo da obra de Aristóteles, bem poderemos dizer
que o Estagirita na primeira parte da sua obra, onde descreve as lutas políticas e outros
conflitos que deram causa às sucessivas constituições do atenienses, com diferentes formas
de Governo, desde Cílon, Sólon, Pisístrato Clístenes, entre outros, trata temas de natureza
política e sobre os efeitos da luta política de que resultam os regimes políticos – regime de
um único governante, denominado basileia, regime dominado por um pequeno grupo de
governantes (aristocracia) ou por uma multidão, designado por politeia. Partindo dessa
tipologia, Aristóteles indica as seguintes as formas de governo: tirania, quando o governo
funciona em proveito do monarca, oligarquia, quando defende os interesses dos ricos e
democracia, quando se orienta em defesa dos interesses dos pobres. De seguida, explica a
forma como, em cada concreto momento histórico, são consagradas as ideias delas
dominantes na Constituição. Como se vê, estamos perante temas metajurídicos e que hoje
são objecto de estudo da Teoria da Constituição.
Antes de descrevermos o conteúdo a segunda parte dessa obra importa dizer que,
pondo de lado, a polissemia da expressão politeia e para o que nos interessa agora, Aristóteles
define-a como ou organização da polis e a distribuição das magistraturas, numa palavra, é a
Constituição da polis, que será objecto da segunda parte dessa sua obra.
Nessa parte, Aristóteles consagra a sua atenção no estudo das formas de governo, da
organização constitucional do poder político e da designação dos titulares dos órgãos de
Governo, lato sensu, e as respectivas competências27. Toda esta matéria é amplamente

25 Para maior desenvolvimento sobre a datação da Constituição dos Atenienses veja-se, por todos, a síntese

feita por Aristóteles, Constituição dos Atenienses (Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2003), p. 5 e 6.
26 Delfim Ferreira Leão, ‘Introdução à Constituição dos Atenienses de Aristóteles’ (Lisboa, 2003), p. 13 e 14.
27 Para maior desenvolvimento sobre as formas de Governo e sobre os três poderes em qualquer Governo

descritas por Aristóteles veja-se Aristóteles, Política.

8
desenvolvida na Política, onde define a Constituição (politeia) como “a organização que, nos
Estados, têm as magistraturas, a forma como se encontram distribuídos, bem como a
determinação do elemento soberano e do objectivo de cada comunidade”, defendendo que
as leis devem ajustar-se à Constituição e não esta às leis, atribuindo assim à Constituição um
valor superior ao das Leis.
Podemos assim dizer que já em Aristóteles o estudo da Constituição implicava antes
de mais a necessidade de conhecer previamente a realidade histórico-política sobredeter-
minadora da concreta Constituição normativa, numa palavra, a luta política de que resultam
os regimes políticos e as formas de governo; só depois passa à análise da concreta
Constituição normativa dela resultante. Ou seja, quer nessa obra, quer no seu Tratado da
Política, encontramos os primeiros sinais de uma Teoria da Constituição e do Direito Consti-
tucional ou, melhor, de uma proto teoria da Constituição.

3. O historiador Polibio, na sua Histórias, entendia a Constituição como sistema de


governo e analisava-a através da dinâmica sócio-política e das lutas políticas. Com base nessa
análise onde ressalta os conflitos políticos e as alianças entre várias cidades gregas e as
federações por estas criadas para fazer face aos problemas militares e políticos28, este
historiador grego faz o elogio da Constituição dessa polis dizendo “Que nadie podría
encontrar um sistema e ideal más perfectos de igualdad y libertad de expresión y, em suma,
de verdadeira democracia que la existente entre los áqueos”29, sistema que ele denomina por
Constituição. Políbio, no livro VI, depois de uma apurada descrição das lutas políticas e das
guerras travadas pelos romanos, fala dos sistemas de governo, para, de seguida, afirmar que,
isoladamente, nenhuma das formas da Constituição, aqui entendida como forma de governo
e não como uma lei fundamental, é boa e duradoura. A romana é boa, na opinião deste
historiador, por ser uma constituição mista, com poderes e funções bem delimitadas.

4. Em Roma, encontramos Marco Túlio Cícero (106 a.C a 43 a. C) que, dirimamos


embora fortemente influenciado por Platão e pelos diálogos de Sócrates na obra do autor da
República, não deixa de revelar independência de pensamento e ter em conta a Politeia de
Aristóteles e a obra do historiador Políbio.

28 Podemos dizer que logo no Prólogo feito por Políbio no Livro I, anuncia-nos que analisa factos políticos e -

guerras, lutas políticas, alianças, etc. – que explicam a forma de governo, que ele também designa por
constituição. Polibio, História, Livro I, (Madrid: Luna, 2017).
29 Polybius, Historias (Madrid u.a.: Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 1986), II, §§. 37, pa 68.

9
Cícero, tal como Aristóteles e Políbio, logo no Livro I da sua obra De Republica,
trata não só da origem da cidade romana, definindo a cidade como uma comunidade
politicamente constituída30– e como uma sociedade fundada no direito31 – para, de seguida,
nos falar das formas de governo – o reino, a aristocracia e o governo popular ou democracia
– descrevendo as características de cada uma delas e declarando que prefere uma quarta
forma de governo moderada e temperada com as formas acima indicadas32. Descreve ainda
a evolução sócio-política das formas de governos, demonstrando os defeitos de cada uma
delas e defendendo que podem ser alteradas pela acção ou prática política.
Pela fala de Escipião, Cícero define a República, dizendo que ele “es la cosa própria
del pueblo” para de seguida ter o cuidado de nos dizer o que é o povo – “pueblo no es toda
reunión de hombres, congregados de cualquier manera, sino uma consociación de hombres
que aceptan las mismas leyes y tienen interesses comunes”33 – e que o que motiva o
agrupamento dos homens é a inclinação para viver em comum. – ver p.ª 27.
Esclarecidas estes pressupostos de uma ideia de Constituição, podemos dizer que,
para Cícero, esta é antes de mais a ou uma forma de Governo ou, se se quiser, a expressão
da forma de Governo, mesmo sabendo nós que os romanos identificavam a Constituição
com a lex ou editum ou seja mandatos imperiais. De acordo com este seu conceito de
Constituição, Cícero, no livro II, partindo de uma afirmação de Catão, o Velho, sobre as
vantagens da Constituição de Roma sobre as das outras cidades gregas34, defende que essa
Constituição beneficiava dessa vantagem por não ser obra de um só homem, mas sim de
vários homens e por não ser fruto de uma única geração, mas foi mudando ao longo dos
séculos e de várias gerações35.

30
Marco Tulio Cicero, Sobre la Republica. Sobre las leyes (Madrid: Tecnos, 2002), Livro I, 1. 41, pa 28.
31 Cicero, Livro I, 49, pa 33.
32 Cicero, Livro I, 42 a 45, p.a 29 a 33. Dizia Escipião: “Que debe preferisse uma cuarta forma de gobierno

moderado y templado com los três géneros que antes presente”


33 Cicero, p. 27.
34 Eis a afirmação feita por Catão o Velho: “la constitución de nuestra ciudad aventjaba a las de las

otras ciudades, porque em ellas habían sido hombres aislados y cada uno de ellos había constituido
la Republica com sus proprias leyes e institucioaes, como Minos Ia de Creta, Licurgo la de
Lacedemonia, y la de Atenas había cambiado muchas veces por obra de Teseo, de Dracón, de
Solón, de Clístenes y de otros muchos, finalmente la había sustentado um varón sabio, Demetrio
Falereo, cuando ya se encontraba extenuada y moribunda” Marco Tulio Cicero, Sobre la Republica. Sobre
las leyes (Madrid: Tecnos, 2002), Livro II, 1.2, pa 49.
35 Este elogio à Constituição romana, feita na sequência da afirmação anterior, é feita nos seguintes termos que

passamos a transcrever: “Nuestra constitución, em cambio, no era fruto del ingenio de uno solo,
sino de muchos; ni se concolidó em uma generación, sino que fue mudando a lo largo de los siglos
y de las generaciones”. Cicero, Libro II, 1.2, pa 49.

10
a) Podemos concluir dizendo que para os gregos e para os romanos, que como
sabemos não diferenciavam o Direito Público do Privado, ignorando assim essa distinção, a
Constituição era ideada dominantemente como forma de Estado ou sistema político e era
analisada com base na realidade da polis, com as suas forças política, as lutas entre essas forças,
as guerras com outros povos, para imporem a sua ideia de forma de governo da polis e/ou
da civitas.

b) Idade Média.
Vejamos agora como é que nesta época histórica se concebia a Constituição.
Neste período histórico, como se sabe, não se tinha produzido a distinção entre o
direito público e o direito privado, e não havia sequer uma ideação do Direito Constitucional.
Contudo, nessa época, era muito clara a ideia de que existia uma ordem jurídica encimada
por leis fundamentais. A questão que se coloca é a de saber o que se entendia por estas leis. No
decurso desse período histórico, genericamente, podemos dizer que, se entendia por leis
fundamentais as normas (do reino) com força superior às das demais leis. Tratava--se assim
de leis que, já no início do Renascimento, Jean Bodin, o teórico da soberania e do poder
absoluto dos Reis, entendia que impunham limites ao poder soberano, mesmo o absoluto
poder soberano, e que o monarca não podia nem derrogar, nem violar. Nas palavras deste
autor são “leyes que atãnen al estado y fundación del reino, e, príncipe no las pode derrogar
por ser anejas e incorporadas a la corona, como es la ley sálica; se lo hace, el sucessor poderá
sempre anular todo lo que hubiere sido hecho em prejuicio de las leyes reales, sobre las quales
se apoya e funda la majestad soberana (....)”36. Este autor nunca fala de Constituição, mas sim
de República bem ordenada.
Tudo isto é compreensível se nos lembrarmos, como dissemos acima, que na Idade
Média não se fazia a distinção entre o Direito privado e o Direito Público, não havia, como
ensina Jellinek, uma ideia de Estado. O que dominava eram acordos entre o poder real e o
poder religioso (Papado), com a natureza de actos ou de contratos, nomeadamente os
contratos de domínio37, e os éditos reais, que se sobrepunham a qualquer lei (lato sensu).
Importa, contudo, dizer que o que nessa época se entendia por Constituição mais
não era do que a ordem natural e tradicional das coisas, ou,38 como ensina António

36 Jean Bodin, Los Seis Libros de la República (Madrid: Tecnos, 2000), p. 56.
37 De acordo com Gomes Canotilho esses contratos de domínio (Herrschäftsverträge) desenvolveram-se “na
Europa a partir do século XIII eram um complexo de normas que se destinavam fundamentalmente a regular
as relações entre as várias ordens, estamentos, forças, corporativamente organizadas num determinado
território e entre os homens activos nos espaços citadinos e urbanos”. Gomes Canotilho, p. 69.
38 António Manuel Hespanha, História das Instituições. Época Medieval e Moderna (Coimbra: Almedina, 1982), p.

312.

11
Hespanha, [A] ‘constituição’ (no sentido de lei fundamental da sociedade) é uma norma
transhistórica (é uma ‘tradição’, algo que é transmitido) e supravoluntarística (...)”. Trata-se,
portanto, de uma norma decorrente da tradição ou de um “contrato entre o rei e o povo,”
cujas cláusulas “constituem uma verdadeira lei fundamental, superior à vontade do rei e que só
com o acôrdo do povo pode ser alterada”, diz-nos Paulo Mêrea39. “Essa ordem natural da
sociedade objectivava-se na sua constituição tradicional, ou seja, na matriz de direitos e
obrigações dos diversos membros dos corpos sociais transmitida de geração em geração e
contida nos direitos, foros, liberdades, privilégios do reino” esclarece António Hespanha40.
É essa constituição natural que serve de parâmetro aferidor da legitimidade de todo o direito
estabelecido. É ela a lei fundamental. Mas, como explica Paulo Mêrea, essa lei pode ser
alterada por acordo do povo41.
Mas, como dizíamos, na Idade Média, a grande preocupação da doutrina político-
-teológica da época era a análise das formas de governo42, sem prejuízo de se entender que a
lei natural, quer seja entendido como lex aeterna, quer como produto da ratio humana,
constituía a base de toda a sociedade e que deveria ser por todos, incluindo o monarca,
respeitada43. De acordo com Jellinek, a literatura da Idade Média cristã está muito longe de
uma doutrina científica do Estado e isto porque havia uma real ausência de Estados e a
projeção do império romano nas estruturas políticas dessa época, encimadas pelo Imperador
e pelo Papa não constituíam um verdadeiro Estado44. Assim sendo, é óbvio que nessa época
histórica nenhuma teoria da Constituição foi pensada e escrita.
Podemos finalmente dizer que na Idade Média a Constituição era entendida como a
ordem natural e tradicional da sociedade consubstanciada num pactum, assumido como “lei
fundamental” do reino. Contudo, é bom relembrar com António Hespanha que, em bom
rigor, a ideia de lei fundamental só surge efectivamente “no último quarto do século XVII”

39 Paulo Merêa, Resumo das Lições de História do Direito Português (Coimbra: Coimbra Editora, 1925), p. 169.
40 Hespanha, p. 312.
41
O que. diz-nos António Hespanha, só começa a ser aceite a partir do momento em que “se começa a
entender que o pactum societatis incluía também decisões relativas à forma e ao regime político – e quando se
passa a entender que a estrutura da sociedade está na disponibilidade da vontade dos seus membros – é que
surge a ideia de que certas manifestações de vontade comunitária têm em vista alterar (ou confirmar) a estrutura
fundamental da sociedade, constituindo, nestes termos, renovações do pacto social originário”. Hespanha, p.
313.
42 Como pode ver-se em S. Tomás de Aquino – veja-se entre outras obras deste Doutor a Igreja, Tomás de

Aquino, La Monarquia (Madrid: Tecnos, 2002) e de Marsilius, El defensor de la paz (Madrid: Tecnos, 1989).
43 Sobre esta questão veja-se, entre outros, Christian Thomasius que, nas Institutiones Marsilius. jurisrudentuae

Divinae, defende que a fonte de todas as leis é a vontade divina (lex autem est voluntas legislatoris, et legum
omnium fons est voluntas divina” e que a lei divina é imutável - Christian Thomasius, Fundamentos de derecho
natural y de gentes, Colección Clásicos del Pensamiento, 106 (Madrid: Tecnos, 1994), pp. 7, 8 e 208. Importa frisar
que Thomasius e Marsilio de Pádua que também que o direito natural, enquanto dictame da recta ratio, é igual
e aceite em todas as nações – cfr. Marsilius, p. 239.
44 Cfr. Jellinek, I, p. 99 e 100.

12
pelo que “apenas uma projecção sobre o passado de conceitos posteriores autoriza a que se
considerem como de natureza ‘constitucional’, no sentido contemporâneo, certos actos
políticos ou legislativos anteriores a esta época”.
Assim na Idade Média, o que temos verdadeiramente são pacta que constituem e
organizam a sociedade (pactum societatis) e consagram formas de governo e a submissão do
povo à autoridade do príncipe (pactum subjectiones)45, do qual resulta a obrigação do monarca
de governar de forma justa e para o bem e a felicidade da comunidade.

c) Idade Moderna
Como dissemos com António Hespanha só a partir do século XVII é que se surge a
ideia lei fundamental e se começa a elaborar o seu conceito. Fazemos notar que nessa época
surgia nova forma de organização política das comunidades humanas europeias – o Estado
– “anunciado” no Il Principe de Maquiavel e, com ela, novas teorias políticas, pese embora
se continue a ter no pactum a base da criação da sociedade, da constituição de formas de
governo e na submissão dos indivíduos ao monarca, o que se vai encontrar em praticamente
toda a literatura política da época.
Nesse quadro, Hobbes, no seu Leviatã, defende que a lei fundamental é o contrato
constitutivo do Estado. Com efeito, diz-nos este autor que “ o Estado foi instituído quando
uma multidão de homens concordam e pactuam, cada um com cada um dos outros, que qualquer
homem ou assembleia de homens a quem seja atribuído pela maioria o direito de representar
a pessoa de todos eles (ou seja, de ser o seu representante), todos sem excepção, tanto os que
votaram a favor dele como os que votaram contra ele, deverão autorizar todos os actos e decisões,
a fim de viverem em paz uns com os outros e serem protegidos pelos restantes homens”46;
este é pactum que permite aos homens saírem do estado da natureza e garantir a todos
segurança, pelo que a sua destruição acarretaria necessariamente a destruição do “Estado”.
Mas, como teoriza Puffendorf, não basta sair do estado da natureza, torna-se necessário
constituir uma forma de governo e aceitar a submissão dos indivíduos ao monarca, ou seja,
a lex fundamentalis acaba por ser constituído por três pacta. É essa lei que os monarcas
europeus, nomeadamente os monarcas franceses e ingleses, ora a consideraram como
Common law, como aconteceu na Inglaterra, para designar um direito superior e com

45
Puffendorf fala-nos de três pactos (pacta), dizendo que um, cria a sociedade com vista a que a comunidade
possa obter e ver garantida a segurança e a paz; outro estabelece a forma de governo e o terceiro consagra a
submissão dos indivíduos ao seu soberano. Cfr. Samuel Puffendorf, De Iure Naturae et Gentium (London:
Claredon Press, 1934).
46 Thomas Hobbes, Leviatã: ou matéria, forma e poder de um estado eclesiático e civil, Estudos gerais. Série Universitária.

Clássicos de filosofia, 2a ed (Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1999), p. 149.

13
primazia sobre as normas emanadas pelo Rei e pelo Parlamento, ora a consideram com como
leis imutáveis que não podiam derrogar. Por vezes, é entendida como direito divino (lex
aeterna) e outras vezes como pactum. Como direito divino é uma lei não escrita, mas como
pactum tanto pode ser um direito não escrito como um direito escrito.
Na verdade, em França, onde se começa a elaborar o conceito jurídico de lei funda-
mental, entendendo-a quer como leges imperii, absolutamente invioláveis, quer como princípios
jurídicos constitutivos do reino, num e noutro caso, sempre entendida como “um cuerpo
especifico de derecho, tanto por su objeto, pues se refieren exclusivamente al ejercicio y
transmisión de la prerrogativa real, como por su carácter formal, pues, a diferencia de la
demás leys, tienen um carácter inmutable, nom podendo ser abolidas ni abrogadas por la
decisión real”47. Assim, de acordo com este entendido da doutrina francesa, trata-se de leis
constitutivas da monarquia (absoluta) e, de acordo com Bodin, de condições do próprio
exercício da soberania.
É agora que o Direito Constitucional modernos se começa a formar-se como ciência
autónoma e, de acordo com Garcia-Pelayo, os “momentos que dieron orígen a la moderna
tratadística del Derecho Constitucional, cabe señalar dos: el histórico, proporcionado por la
constitución inglesa del siglo XVIII, y el sistemático, debido al esquema racionalista. La
unidad de ambos momentos está representado por Montesquieu, que ya no trata de exponer
el funcionamento de uma constitución históricamente concreta, sino partiendo de ella (de la
inglesa), y operando del mismo modo que Newton opera com la naturaleza física, trata de
reducir todo el complejo de sus relaciones a unos cuantos principios de validez general; aqui,
el orden concreto se há transformado em sistema”48.
Qualquer que tenha sido o entendimento da lei fundamental, o certo é que as várias
teorias sobre essa leis, mas também sobre as formas de Governo estão na base do nascimento
da ideia da moderna Constituição e da Teoria da Constituição.

II. Os antecedentes históricos do moderno Direito Constitucional


2.1 O modelo Inglês
Vejamos agora a origem e evolução das normas reconhecidas político-comuni-
tariamente como um direito fundamentador – leis fundamentais – de uma concreta ordem
jurídica, ou seja, a evolução histórica do Direito Constitucional e a sua contribuição para a
constrição da Teoria da Constituição.

47 Manuel García-Pelayo, Derecho Constitucional Comparado (Madrid: Alianza Editorial, 1984), p. 24.
48 García-Pelayo, p. 27.

14
Começaremos por dizer que, na Idade Média, é na Inglaterra que surgem os primeiros
documentos que assinalam, o nascimento historicamente referenciado e contextualizado do
constitucionalismo ocidental e que lançam as bases temáticas para a ideação da Teoria da
Constituição, que são49:
- A Magna Carta Libertatum, de 1215
- The Petition of Rights, de 1628
- The Instrument of Government, de 1653
- Habeas Corpus Act, de 1679
- The Bill of Rights, de 1689
- The Act of Settlement, de 1700.

a) A Magna Carta Libertatum, que ficou conhecida por Magna Carta, publicada em
1215, é, podemos dizer, primeiro modelo histórico de consagração de liberdades (embora só
para certas categorias sociais) e de limitação do poder do Rei. Não é assim uma Constituição,
mas na arqueologia das coisas jurídico-políticas pode ser vista como o primeiro documento
protoconstitucional. Não se trata de uma Constituição com pretensão de alterar a ordem
política estabelecida, tanto mais que nessa época, como já tivemos a oportunidade de dizer,
a preservação da ordem natural da sociedade era um desígnio de todos os grupos sociais e,
com eles, de todos os teóricos das doutrinas político-jurídicas50. Contudo, pese embora esse
documento não tenha alterado essa “ordem natural”, inegociável à data, nem pretendido criar
uma nova ordem político-jurídica, o certo é que consagrou a liberdade de todos os ingleses
e a segurança da propriedade, impondo ainda como consequência da necessidade de garantir
o exercício dessas liberdades o princípio do processo justo regulado por lei (due processoo f
law).
A Magna Carta ofereceu assim, “aberturas” para a transformação dos direitos
corporativos em direitos do homem”, diz-nos Gomes Canotilho51. Mas essa abertura só
ocorre muito mais tarde, quando a ideia de “homens livres” deixa de recobrir somente a
aristocracia, o clero e algumas outras camadas sociais, como por exemplo, os ricos

49 Para maior desenvolvimento, veja-se Hilaire Barnett, Constitutional and Administrative Law, 3rd ed (London:
Cavendish, 2000) e Elizabeth Wicks, The Evolution of a Constitution: Eight Key Moments in British Constitutional
History (Oxford ; Portland, OR: Hart Publishing, 2006), obras que seguimos de perto.
50 Em sentido próximo diz Gomes Canotilho que às Magnas Chartas que “é estranha a dimensão projectante

de uma nova ordem política criada por um actor abstracto (‘povo’, ‘nação’)” e que “[I]nerente à ‘ordem natural
das coisas’ estava, pois, a indisponibilidade da ordem política, a incapacidade de querer, de construir e de
projectar uma nova ordem, bem como a rejeição de qualquer corte radical com as estruturas políticas
tradicionais” Gomes Canotilho, p. 69.
51 Gomes Canotilho, p. 382/383.

15
proprietários dos condados e os burgueses com representação parlamentar, para se alargar a
todos os ingleses. Poder-se-á dizer que a Magna Carta consagra e impõe o reconhecimento
dos direitos e liberdades corporativos, isto é, dos nobres e reconfigura as relações entre estes
o rei, consagrando, contudo, foros e privilégios.
Importa ainda dizer que é com este documento jurídico-político que se dá início à
supremacia do Parlamento relativamente ao Rei, na exacta medida em que a nobreza e o
clero impõem ao rei João Sem Terra a sua outorga e com ele aquele conjunto de direitos e
de garantias de natureza política (liberdades), de natureza económico-social (propriedade),
de natureza tributária (impostos), de natureza jurídico-processual (due process of f law) e de
natureza político-religiosa (confirmação da liberdade da Igreja da Inglaterra). Podemos assim
dizer com Hilaire Barnet que a Magna Carta “[H]istorically represented a formal settlement
between the Crown and the barons” e que “represented settlement of the grievances of
citizens and challenged the untrammelled powers of the king”52, sendo que a sua principal
importância decorre da declaração que reconhece e assegura a liberdade de que devem gozar
os homens livres do reino e a protecção jurisdicional desse direito com base num “due
proces of law”.
Posto isto, podemos concluir, dizendo com James C. Holt, que a “Magna Carta has
been preserved not as a museum piece, but as part of the common law of England, to be
defended, maintained or repealed as the needs and functions of the law required. That so
much of what survives is now concerned with individual liberty is a reflexion of the quality
of the original act of 1215”53

Vejamos agora sumariamente e por ordem cronológica os outros documentos


históricos que, conjuntamente com a Magna Carta, formam as “statury sources” do direito
Constitucional inglês.

b) The Petition of Rights, de 1628, é outra fonte do Direito Constitucional que teve
como causa o caso Darnel (Darnel’case – The Five Nights’s Case), em que cinco cavaleiros foram
acusados, condenados e presos por se terem recusado a pagar um empréstimo forçado
exigido pelo rei Charles I. Essa Petition proibiu tal empréstimo, bem como impostos ou
quaisquer outras exigências monetárias, declarando que não podiam ser feitos sem
autorização do Parlamento. Trata-se, portanto, de um texto jurídico-político que protege os

52Barnett, p. 21.
53J. C. Holt, Magna Carta, Third edition (Cambridge, United Kingdom: Cambridge University Press, 2015), p.
34.

16
direitos individuas e que reflecte a luta da sociedade contra o poder real, com vista a limitar
e a controlar esse poder.

c) The Instrument of Government, de 1653, elaborada após a ruptura do pacto entre o


rei Carlos I e a Casa dos Comuns e a proclamação por Cromwell54 da Commonwealth e
Esado Livre (República). Este documento, em síntese, é a primeira tentativa de dar à
Inglaterra uma Constituição escrita em que se divide o poder entre o Protector (que era o
próprio Cromwell) e o Parlamento, cabendo àquele exercer o poder executivo e a este o
legislativo. Para além disso, criou um órgão consultivo, o Council e consagrou que as leis
aprovadas pelo Parlamento entravam em vigor vinte dias após a sua aprovação. Contudo, o
Instrumento of Government não poderia ser alterado pelo Parlamento sem o consentimento
do Protector.
Pese embora The Instrument of Government não tenha sido aceite pelo Parlamento, o
ponto é que, após a morte de Cromwell e da restauração da monarquia em 1688, o
Parlamento reclamou a limitação dos poderes do Rei e proclamou a soberania parlamentar.
The Instrument of Government contribuiu assim para a afirmação da supremacia do
Parlamento55.

d) Habeas Corpus Act, de 1679, outro importante documento jurídico que estabelece
que ninguém pode ser preso sem mandado judicial e os presos devem ser apresentados ao
Juiz no prazo de vinte dias após a detenção; consagra ainda que ninguém pode ser preso duas
vezes pelo mesmo crime, nem transferido para prisão fora do reino.

e) The Bill of Rights, de 1689, veio substituir a Petition of Rights e é considerado por
Hilaire Barnett, tão importante quanto a Magna Carta. A aprovação e publicação desta Bill
surge do conflito entre anglicanos, apoiados por Guilherme de Orange (Willem van Orange-
-Nassau, Príncipe de Orange e Conde de Nassau), e católicos, apoiados pelo rei James II.
Como se sabe, por força de várias leis (“Acts”) – como por exemplo, Sucession Act, Act of
Supremacy e Treason Act – o anglicanismo passou a ser a religião oficial da Inglaterra e o rei
chefe da Igreja. A protecção dada pelo Rei James II aos católicos, seguida da dissolução do
Parlamento levou a que os anglicanos negociassem com o protestante Guilherme de Orange,
marido da filha de James II, para que este ocupasse o trono da Inglaterra. Após a dissolução

54 Nesse sentido diz-nos Loewenstein que “El Instrment of Government (1654) de Cromwell es, finalmente,
la primeira constitución escrita válida del Estado moderno (...)”. Loewenstein, p. 158.
55 Para maior desenvolvimento, veja-se, entre outros, Wicks, p. 9 e 10.

17
do Parlamento por James II, Guilherme de Orange em 1688, invadiu a Inglaterra e James II
foge para França. É a Glorious Revolution, no quadro da qual Guilherme de Orange convoca
uma Assembleia de nobres, de Membros do Parlamento e de vereadores de Londres que, em
1689, se reúne em Convenção para declarar vago o trono por abandono e fuga do Rei.
Posteriormente, a Casa dos Lordes acaba por entregar o trono a Guilherme.
Após várias peripécias políticas, a Convenção-Parlamento (Convention-Parliament) aprova
a Bill of Rights, nele incorporando a Declaration of Rights, para regular as relações entre a
Coroa e o Parlamento e entre a Igreja e o Estado, tendo sido reforçado os poderes do
Parlamento56.

f) The Act of Settlement, de 1700 tem como objecto clarificar as linhas de sucessão ao
trono, estabelecendo que só os protestantes podiam aceder ao trono da Inglaterra, e garantir
a estabilidade da Magistratura Judicial enquanto os Magistrados tivessem bom comporta-
mento – “during good behavior” –, o que, obviamente, permitia ao Monarca demitir os Juízes
sempre que entendesse que estes tinham um comportamento desconforme.

g) The Treaty of Union, de 1706, é outra importante fonte do constitucionalismo inglês.


Fruto de longas negociações, esta Tratado estabelece a União entre Inglaterra e a Escócia,
enquanto entidade com um estatuto de independência, com o seu próprio Parlamento e as
suas leis, ficando agora ambos os reinos submetidos a um único Parlamento. De acordo com
o artigo I deste Tratado os dois reinos, da Inglaterra e da Escócia ficam unidos num único
reino que se denomina Grã-Bretanha (Great Britain), com um único Parlamento (artigo III)
ficando a sucessão ao trono regulado pelo Act of Settlement de 1700 (artigo IV).

Este conjunto de textos jurídico-político, juntamente com o costume, os statutes e as


convenções podem ser definidas como normas constitucionais. Na verdade, embora a
Constituição inglesa seja considerada como uma Constituição não escrita, o ponto é que há
vários documentos escritos e dispersos até mesmo no tempo (como estes históricos que
acabamos de indicar) que são as fontes desse direito, que têm de ser estudados também sob
o ponto de vista constitucional57. Trata-se de documentos históricos de importância
fundamental quer para o Direito Constitucional inglês, quer para o constitucionalismo
europeu.

56 Para maior desenvolvimento, veja-se Wicks, p. 10 e segs.


57 Em sentido próximo, veja-se Barnett, p. 19.

18
Finalmente, não se pode deixar de referir o mito segundo a qual toda esta evolução
“constitucional” na Inglaterra é fruto da tradição. Na verde, não é bem assim. Ela é fruto da
tradição mas também de revoluções e de violência, posto que muitos desses instrumentos
jurídico-políticos foram fruto de guerras civis, actos de violência e de revoluções ao longo da
Idade Media e do período histórico seguinte.

2.2. O modelo Estados Unidos da América do Norte


A Constituição dos Estados Unidos da América do Norte foi aprovada pela
Convenção de Filadélfia em 1 de Setembro em 1787, Convenção que se transformou em
Assembleia Constituinte formada pelos representantes dos Estados. Trata-se da primeira
Constituição escrita58 fruto de um conjunto complexo de compromissos políticos – entre
liberais e esclavagistas, entre unionistas e confederalistas, entre conservadores e democratas
– de que resultou a consagração jurídico-política das ideias liberais, a organização da estrutura
orgânica e funcional do Estado liberal e a edificação do primeiro de Estado federal.
Essa Constituição consagra a separação de poderes, estabelece a forma Presidencia-
lista de governo, conferindo ao Presidente (logo, ao Executivo) amplos poderes de direcção
do Governo e da Administração, organiza o legislativo em duas Câmaras, o Senado formada
por representantes dos Estados, e a Câmara dos Representantes, constituída por Deputados
eleitos em cada Estado e estabelece um Poder Judicial com ampla autonomia, de que resulta,
nomeadamente, a consagração, pela via da interpretação judicial, do controlo a constitucio-
nalidade das leis59.
Ao longo da história, essa Constituição, com vista a adaptar-se à dinâmica da vida
política, económica e social norte-americana, foi revista por diversas vezes, mais concreta-
mente, vinte e seis vezes, revisão que na doutrina jurídica e na política norte-americana é
denominado por Emenda. A primeira, com dez Emendas, consagrou a Bill of Rights que
limita o poder federal, protege os Estados federados e constitui um verdadeiro catálogo de

58 Se quisermos ser, como se nos impõe a verdade histórica e científica, mais precisos devemos acompanhar
Loewenstein dizendo que as primeiras constituições escritas foram as das colonias americanas quando se
transformaram em Estados soberanos. Nesse sentido escreve Loewenstein “El triunfo dl documento
constitucional escrito, como sanción solene del constitucionalismo democrático, empezó en el Nuevo Mundo,
primero com las Constituciones de las colonias americanas que se transformaranon en Estados al rebelarse
contra la corona inglesa y después con la Constitución de la Unión em 1877”. Loewenstein, p. 159.
59 A este propósito diz-nos Loewenstein que “Pese a que ninguna expressa atribuición de competência em la

Consütución misma autoriza a los tribunales federales a declarar inaplicable y, por lo tanto, anticonstitucional,
una ley aprobada por el Congreso que está em contradición com la Constitución, la competência del control
judicial há quedado enraizada de tal manera como norma constitucional no escrita desde la hazaña del Chief
Justice Johhn Marshall a princípios del siglo xIx que en la actualidad solamente poderia ser eliminada por medio
de uma enmienda constitucional expressa y aun esto parece dudoso em virtud de la Cláusula supreme law of
the land em el artículo V de la constitución. Loewenstein, p. 168.

19
direitos fundamentais que, embora pouco desenvolvido, à época constituiu uma verdadeira
revolução na ideação da Constituição. Assim, essa Constituição é a primeira que incorpora
num texto constitucional tais direitos.
Importa dizer que a Constituição dos Estados Unidos da América do Norte é não só
fruto das tensões políticas acima referidas, mas também de um aceso debate jurídico-político
consubstanciado em decisivas intervenções escritas por Hamilton, Jay e Madison que ficaram
conhecidos por Federalistas, debate em que vários capítulos dessa Constituição – o
Legislativo, o Executivo, o Judicial – foram tratados em pormenor, com vista a recortar o
modelo que nela deveria ser ser plasmado. Para além desses Federalistas, outros políticos
intervieram noutros debates, como por exemplo Jefferson, defensor do republicanismo, que
foi Presidente dos USA, e que no discurso da sua tomada de posse – First Inaugural Adress
– marcava esse seu ideal afirmando que “All Republican, All Federalist”60. Acresce ainda a
decisiva importância do Supreme Court, em especial a partir do Chief Justice John Marshall
e da sua doutrina do judicial review, bem como a importante acção jurisprudencial desse
Supremo Tribunal sob a chefia de Roger Brooke Taney, que, de acrodo com Bernard
Schwartz, inaugura uma nova era na história constitucional norte-americana61, com a salva-
guarda dos direitos da comunidade em confronto com o direito da propriedade, agora sob
influência da doutrina política de Andrew Jackson62.
Para concluir, podemos dizer, sinteticamente, que a Constituição de 1787 preocupou-
-se com a constitucionalização das relações entre a Federação e os Estados Membros e a su-
premacia do poder federal. Nessa fase, os Estados Undos erguem-se como uma nação. A
segunda fase, após a morte do Chief Justice John Marshall, é a que se caracteriza pela
influência da jurisprudência do Supreme Court, agora presidido por Roger Brooke Taney,
que passa a dar maior relevo e importância aos direitos individuais e à proteção desses
direitos. A Constituição passa a ser um catálogo de direitos individuais que se impõe não só
à Federação como aos Estados Membros.

2.3 O modelo francês

60 Esse discurso pode ser lido em The Declaration of Independence and Other Great Documents of American History,
1775-1864, ed. by John Grafton, Dover Thrift Editions (Mineola, N.Y: Dover Publications, 2000), p. 61 e segs.
61 Bernard Schwartz, Main Currents in American Legal Thought (Durham, N.C: Carolina Academic Press, 1993), p.

1.
62 Como escreve Bernard Schwartz a este propósito “Under Taney, the Supreme Court mirrored the Jacksonian

emphasis upon public power as counterweight the property rights stressed by Marshall Court”. Bernard
Schwartz, From Confederation to Nation: The American Constitution, 1835-1877 (Baltimore: Johns Hopkins
University Press, 1973), p. x.

20
Poderíamos começar por dizer, com André Hauriou, que apesar de a independência dos
Estados Undos da América 1776 ter dado origem à primeira Constituição escrita de 1787, o
ponto é que “la Révolution française, plus agressive, en toute cas charge d’um message plus
vigoureux et plus entraint, a produit des fruis plus tôt”63. Na verdade, a influência do
constitucionalismo francês fez-se sentir por toda a Europa, a partir da primeira Constituição
escrita europeia feita pela Assembleia Nacional Constituinte francesa em 1791, mesmo tendo
em conta, como explica Bacelar Gouveia, que “a grande característica da França, quanto ao
seu sistema constitucional, a partir da Idade Contemporânea, é da respectiva turbulência, tão
numerosas que foram as reformas e as contrarreformas, num total de 16 textos
constitucionais, um verdadeiro ‘laboratório constitucional’”64. Essa turbulência, importa
dizer, é política com reflexos na instância jurídica, isto é, decorre de toda a agitação
revolucionária, nomeadamente das revoluções de 1838 e de 1848, que a França viveu ao
longo de várias décadas e de que resultaram várias vagas de Direito Constitucional, fruto da
precipitação das ideias de direito que cada período histórico produzia.
Mas, para o que nos interessa por agora, só falaremos da primeira Constituição
escrita, a de 1791, pela importância que teve na inauguração do constitucionalismo europeu
e da tradição histórica desse constitucionalismo. Mais. Ao longo do processo de discussão e
de elaboração dessa Constituição são produzidas um conjunto de teorias jurídico-políticas
que vão ser precipitadas no texto dessa Lei Fundamental e que irão influenciar o
constitucionalismo ocidental e que hoje são objecto da Teoria da Constituição.
Desde logo, poderemos apontar a ideia do poder constituinte, que começa por se
concretizar na transformação da convocatória dos Estados Gerais em Assembleia Nacional65
Constituinte por influência da teoria do Abade de Sièyes e por proposta sua. Entendia este
Abade que cabe à Nação, que existe antes de tudo, que é a origem de tudo e cuja vontade é
legal, fazer a Constituição. Esta não pode ser obra de um poder constituído, mas sim de um
poder constituinte66, único que pode produzir legitimamente a lei fundamental. Assim, sendo
a Nação o titular do poder constituinte é a ela que cabe – que tem legitimidade para – fazer
a Constituição, entendida, diríamos, como uma emanação da sua vontade67. O poder

63 André Hauriou, Jean Gicquel, and Patrice Gélard, Droit Constitutionnel et Institutions Politiques, 6. éd (Paris:

Montchrestien, 1975), p. 80.


64 Jorge Bacelar Gouveia, Manual de Direito Constitucional, 2018, I, p. 314.
65 Esta proosta de Sieyès foi feita da seguinte forma: “[L]e tiers seule, dira-t-on, ne peut pas former ls États

généraux. Eh! tant mieux! Il composera une Assemblé national”. Emmanuel Sieyès, Qu’est -ce Que le Tiers État?
(Paris: Socièté del’Histoire de la Révolution Française, 1888), p. 79.
66 Ou, como disse Sieyès, “[D]ans chaques partie, la constitution n’est pas l’ouvrage du pouvoir constitué, mais

du pouvoir constitutuant”. Sieyès, p. 67.


67 Sieyés a este propósito diz “[S]i nous manquons de constitution, il faut em faire une;la nation seule en “a le

droit”. Sieyès, p. 64.

21
constituinte aparece assim na obra de Sieyès como um poder originário e soberano, que não
pode encontrar outro limite que não seja o da própria vontade da Nação.
Sieyès também critica o voto por ordens – nobreza, clero e povo - por entender que
esse tipo de voto favorece as ordens privelegiada – a nobreza e o clero –, pelo que o terceiro
estado – o povo- deve reclamar a presença de um número igual de representantes seus nos
Estados Gerais por forma a poder ter um poder de influência igual ao das demais ordens68.
Mas, exige ainda que o voto seja tomado por cabeça e não por ordens. Só votando por
cabeça, diz-nos esse Sieyès, se poderá conhecer a verdadeira pluralidade ou, dito de outro
modo, “il est certain qu’en ne votant point par têtes, on s’expose à meconnaire la vriaie
pluralité, ce qui serait le plues grand des inconvénients”69.
Sieyès teoriza o mandato representativo, quando a propósito da distinção que faz
das três épocas históricas da formação da sociedade política, diz que “ [J]e distingue la
troisième époque de la seconde, em ce que ce n’est plus la volonté commune réelle qui agit ,
c’est une volonté commune représentative”70 –, representação essa que não é plena nem
ilimitada, ma sim uma porção da vontade comum nacional, pelo que os delegados ou
representantes não a exercem como um direito próprio mas sim como uma comissão.
Advoga ainda um poder de revisão da Constituição e a criação de um Jury Constittu-
cionnaire para o controlo político da constitucionalidade das leis, proposta esta que foi feita
na Constituição do ano VIII, por considerar a lei fundamental como parâmetro de toda a
legalidade71
Interessa assinalar que as teorias de Rousseau, nomeadamente a da vontade geral
(volonté générale), de certo modo, reflectida na teoria de Sieyés, e a teoria da separação dos
poderes de Monstesquieu, tiveram grande influência e acolhimento nessa Constituição.
Essa Constituição de 1791 consagra a hegemonia da burguesia francesa e, com ela, a
da ideologia liberal assumida por essa burguesia e inaugura um nova forma de Governo que
e a da Monarquia constitucional, em que o Rei aceitava limitar os seus poderes por um texto
constitucional aprovado pela Assembleia Nacional. Para além disso, nela se declara que a
soberania pertence à Nação e que é desta que emana todos os poderes – o legislativo, o
executivo e o judicial – cabendo à Assembleia Nacional, enquanto delegado da vontade

68 Sieyès, p. 17.
69 Sieyès, p. 50.
70 Sieyès, p. 66.
71
Ou como escreve Sieyés “[C]es lois sont dites fondamentales, non pas em ce sens qu’elles puissent devenir
indépendantes de la volontés nationale, mais parce que les corps qui existente et agissent par eles ne peuvent
point y toucher” e “[A]ucune sorte de pouvoir délégue ne peut rien changer aux conditions de sa delegation”.
Sieyès, p. 67.

22
nacional, exercer o poder legislativo, ao Rei o poder executivo e aos Juízes eleitos pelo povo
o poder judicial.
Por o Rei Luís XVI ter incumprido esta Constituição, ela teve uma curta vida, pois
só vigorou até 1792, momento a partir do qual se abre um novo período revolucionário da
história política e constitucional francesa, de que irá resultar a feitura da Constituição de 24
de Junho de 1793 e, com ela, se inaugura a era republicana – Ano I, no novo calendário
revolucionário francês – , seguida da Constituição de 22 de Agosto de 1795 – Ano III – ,
conhecida pela Constituição do Directório, a de 13 de Dezembro de 1799, após o golpe de
18 do Brumário de 9 de Novembro de 1799 (Ano VIII), em que Napoleão Bonaparte assume
o poder, e, em 1804 (Ano XII), com a Constituição de 18 de Maio de 1804 inicia-se a era do
Império72.
É claro que cada uma dessas Constituições consagra distintas ideias do direito
decorrente das relações de forças políticas e da hegemonia de uma sobre as demais, ou seja,
dos efeitos do regime político na determinação das formas de Governo consagradas em cada
uma delas.

Concluindo, podemos dizer que quer as doutrinas quer a evolução histórica do


constitucionalismo, acimas expostas, oferecem, cada um a seu modo, temas que são
constituídos em objecto da Teoria da Constituição. Esse objecto tem também uma dimensão
cultural, pelo que poderemos dizer que nesta perspectiva a Teoria da Constituição é cultura,
ideologicamente inspirada e justificada por valores, como defende Pablo Lucas Verdú.

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72Para maior desenvolvimento, nomeadamente para o estudo dos novos princípios e instituições acolhidas em
cada um dessas Constituições, veja-se, por todos, Gouveia, I, p. 314 e segs. e também García-Pelayo, p. 462 e
segs.

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