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Rodrigo Constantino
PANACEIA
Edição Digital
“Muitos problemas não são resolvidos; eles são substituídos por outras
preocupações.” (Thomas Sowell)
Capítulo 1: O vírus
Capítulo 2: Preparativos
Capítulo 4: Gilgamesh
Capítulo 5: A expectativa
Capítulo 8: Ezequiel
Capítulo 9: Panaceia
– Silêncio, senhores!
A balbúrdia era tão grande que parecia uma Torre de Babel. Cada
um gritava algo diferente. O denominador comum era o desespero que as
vozes traíam. Cada membro do Conselho dos Cidadãos de Atarax tentava
falar mais alto que o outro, para vencer a cacofonia e impor seu ponto de
vista. O presidente da mesa insistiu, desta vez em tom de voz mais
elevado:
– Devemos todos nos unir em uma grande oração, isso sim! Deus
não nos abandonará. Ele saberá o que fazer para nos proteger.
– Deus? Seu Deus foi quem criou o vírus em primeiro lugar, Padre
Ramalho! Não me venha com sermões agora. Duas mãos trabalhando
fazem mais do que mil rezando!
– Está certo, digamos que não nos resta outra opção além de
Panaceia. Como faríamos para atravessar o terrível mar nórdico? Será que
você não está levando em conta a existência tanto de Kraken como do
Leviatã, Pantoja?
– Recomendo que cada uma das três bancadas envie seu líder. Dos
trabalhadores, já me prontifico para a missão.
– Você está certo, Otávio. Mas, agora que aceitou o desafio, não
pode mais recuar. Seria humilhante demais para todos nós, religiosos.
Além disso, pode ser que aquele trabalhador tenha um ponto. Do jeito que
a coisa está, dificilmente pode ficar pior.
– Desculpa, Otávio. Eu não sei o que estou dizendo. Deve ser meu
medo. Sou humana também, e confesso que sinto dificuldade em aceitar
que minha morte prematura seja parte de algum plano mirabolante de
Deus, que eu apenas não consigo compreender. Mas é fraqueza minha.
Claro que Ele sabe o que faz! E se for Seu desejo nos levar, porque somos
pecadores, então farei de tudo para enfrentar com resignação esse
destino.
– Estava refletindo, meu caro irmão. Você tem toda razão. Aqueles
infiéis pecadores mal sabem o que lhes aguarda. Não tenho mais dúvida
de que esse vírus é um sinal de Deus. Ou os homens mudam o estilo de
vida, abrindo mão desses prazeres hedonistas sem sentido, ou vão todos
arder no inferno. Mas cabe a você, Otávio, mostrar para essa gente
mesquinha que Deus sabe o que faz, e por isso mesmo te selecionou para
essa missão. Quando você retornar a Atarax com a cura, todos terão que
se curvar diante de sua fé. Será um milagre! Pense no que isso poderá
representar em termos de novos seguidores convertidos ao caminho da
retidão! Ninguém poderá nos ridicularizar mais. Todas aquelas pessoas
que acham sua igreja um desperdício de mármore serão obrigadas a
enxergar a luz!
***
– A culpa é de sua mãe, que fez lavagem cerebral quando você era
pequena, te levando para aquelas enfadonhas missas de domingo. Desde
então você ficou assim, uma maçã dividida ao meio, com um lado racional,
e outro supersticioso. Já disse que não se trata de convicção, mas de
certeza. Eu sei que Panaceia possui a cura para Atarax, e também sei que
vou consegui-la. Confie em mim.
***
– Tentativa e erro! Não era isso que você sempre dizia? Desistir
agora não é uma opção.
– Não tenho dúvida de que vai. Não seria você se fizesse diferente.
Lembre-se que eu te amo muito e estarei aqui, aguardando ansiosamente
sua volta com a cura. Agora vá dormir. Boa noite.
– Você tem certezas demais, Pantoja. Talvez esse seja seu maior
problema.
– Não venha com mitos bobos, padre! Eu não preciso roubar o fogo
de deus algum. O fogo existe na natureza, e coube aos homens apenas
descobri-lo. A mim cabe aprender como utilizá-lo melhor. Apenas isso.
– Não seja bobo, Pantoja. Eu não nasci empresário. Mas fico feliz
em ver que você entende que a força bruta não tem tanto valor sem o uso
do cérebro, este sim fundamental para extrairmos utilidade dos músculos.
– O padre está certo, Pantoja. Estou seguro de que você um dia vai
compreender que nós empresários exercemos uma tarefa crucial para o
progresso. Mas não é hora nem local de te dar lições sobre economia.
Antes do anoitecer precisamos ter construído boa parte dessa
embarcação, para amanhã mesmo finalizarmos o trabalho e
atravessarmos este mar.
– Está bem. Estou de acordo. Desde que sigamos meus planos tudo
dará certo.
– Ótimo. Então você não tem nada a perder. Vamos logo montar
esse barco!
Capítulo 5: A expectativa
– Tem que ser ou muito corajoso ou muito doido mesmo para entrar
nessas águas em cima de um tronco flutuante e desafiar dois monstros
poderosos. Que Deus esteja conosco, meus caros! Quero que saibam que,
diferenças à parte, sinto profunda admiração por sua bravura.
– Lá vem você de novo com suas rezas, padre. Estão pedindo muito
de mim. Primeiro, nem sabemos se esses monstros existem de fato. Eu
repito que são invenção das elites, com objetivos obscuros. Depois, pedem
que eu implore a outra invenção humana, dessa vez para atender a
interesses do clero, que me proteja da primeira invenção. Desculpe a
franqueza, padre, mas isso é patético demais!
– Por que você tem que ser sempre tão em cima do muro, tentando
evitar tomar partido, Edmundo? Ou acredita nessa bobagem toda, ou está
do lado da ciência, do lado dos seres racionais como eu!
– Calma, padre. São perguntas demais. Acho que ele também ficou
assustado. Vamos, beba um pouco desta água, meu senhor...
– Saiam logo daqui. O que vieram fazer aqui? Não percebem? Vão
todos morrer! Vieram em busca de Panaceia, não é mesmo? Seus idiotas!
Como foram acreditar nisso? Foram enganados! Todos vocês!
– Fique calmo, velho! Você não está falando coisa com coisa. Como
sabe sobre Panaceia? Você já esteve lá?
– Panaceia... Panaceia...
– Panaceia... Panaceia...
– Sim, há. Mas para todas estas desgraças nós acharemos a cura!
Afinal, a maior de todas as desgraças é o vírus cole, e tenho certeza que
encontraremos seu antídoto em Panaceia. Atarax vai ficar ainda melhor do
que era antes do vírus. Todos terão aprendido com essa fase sombria a
importância da paz, e viveremos todos como irmãos após extirparmos essa
epidemia de lá.
– Pantoja, até eu estou mais animado, e você deve recordar como
considerei essa aventura uma insanidade. Mas discordo também de sua
excessiva esperança. O único paraíso que podemos almejar está no Reino
dos Céus, ao lado do Senhor!
Pantoja abriu os olhos e olhou ao seu redor. Estava num lugar muito
calmo, com paredes brancas em volta. Viu algumas crianças brincando do
lado de fora, num lindo jardim. Sem entender direito onde estava, percebeu
que um velho se aproximava calmamente dele. Conseguiu reconhecer seu
rosto, apesar da ausência daquela longa barba. O velho disse numa voz
muito suave:
– Onde estou?
– Você está em Panaceia, meu filho. Não era isso que você
desejava?
– Uma coisa de cada vez. Por que você precisa fazer isso?
– Não entendo sua pergunta. Se não for eu, então quem? Eu sei o
caminho da cura. Eu sempre acreditei em Panaceia!
– Mas agora que você viu o que é Panaceia, ainda acredita que seu
destino é levar a cura para Atarax?
– Não sei, não sei... por que você está me fazendo essas
perguntas? Não vê que estou confuso?
– Eu quero!
– Eu não sei!
– E por quê?
Pantoja respirou aliviado, por não estar mais sozinho, e também por
reconhecer alguma familiaridade naquele rosto. Na verdade, nem era
muito diferente do velho de antes, mas tinha menos rugas, e um olhar bem
mudado, mais jocoso talvez. Agora Pantoja reconhecia: havia alguma
semelhança entre ele e o Sábio Hans. Ao se dar conta disso, Pantoja
imediatamente se sentiu mais confortável, mais seguro. Ele então disse ao
homem de branco:
– Pode ficar tranquilo, meu caro. Estou aqui e não vou te deixar
sozinho. Nunca abandono um amigo!
– Sim.
– Ela fica num lugar chamado Quimera. Não é muito longe daqui.
Mas também não é nada fácil chegar lá. Antes é preciso enfrentar o dragão
do deserto e depois o vale das tempestades. Mas não é uma missão
impossível, especialmente quando se tem coragem e esperança.
– Isto não me falta! Não tenho tempo a perder. Preciso partir logo
em busca de Quimera. Muito obrigado, meu senhor. Por sinal, qual o seu
nome mesmo?
– Está certo, está certo. Eu vou agora mesmo! Até logo, e muito
obrigado.
– Nada disso, padre! Você vem comigo. Nem todos vão vibrar com
nossa conquista, é verdade. Mas aquele que quer agradar a todos, não
agrada a ninguém. Além disso, devemos fazer o que é certo. A cura
imperfeita sem dúvida é preferível à destruição certa.
Após alguns segundos de reflexão, o padre disse:
– Você está certo, Edmundo. Entrei em pânico com tudo isso, mas
agora vejo que você está certo. Afinal, mitigar os estragos do vírus já é
alguma coisa, não? E talvez eu seja mesmo útil em Atarax ainda. Se o
povo não poderá mais ter a esperança de um paraíso terrestre, como
sonhava nosso colega Pantoja, que ao menos eu possa lhe fornecer uma
pitada de conforto com a noção de um paraíso celeste após nossa
passagem nesse mundo frio. Sem esse consolo, creio que muitos não
seriam capazes de suportar a travessia...
***
FIM