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Panaceia

Rodrigo Constantino
PANACEIA

Direitos Autorais Rodrigo Constantino 2015

Edição Digital

Todos os direitos reservados

É proibida a distribuição ou cópia de qualquer parte desta obra sem o


consentimento por escrito do autor.

Capa: Camila Lacerda


Para todos aqueles que sonham encontrar A Cura.

Rodrigo Constantino, 2015


“Os maiores e mais importantes problemas na vida são todos de certa
forma insolúveis; eles não podem ser solucionados, mas apenas
superados.” (Carl Jung)

“Para cada problema complexo, há uma resposta clara, simples e errada.”


(H.L. Mencken)

“Não sou jovem o suficiente para saber tudo.” (Oscar Wilde)

“Todo o problema com o mundo é que os tolos e fanáticos estão sempre


tão certos de si mesmos, mas as pessoas mais sábias estão tão cheias de
dúvidas.” (Bertrand Russell)

“Nossa liberdade está ameaçada em muitos campos devido ao fato de que


estamos muito dispostos a deixar a decisão para o especialista ou aceitar
muito acriticamente sua opinião sobre um problema do qual ele conhece
intimamente apenas um pequeno aspecto.” (Hayek)

“Muitos problemas não são resolvidos; eles são substituídos por outras
preocupações.” (Thomas Sowell)

“Somos condenados a escolher, e cada escolha traz o risco de uma perda


irreparável.” (Isaiah Berlin)
Índice

Capítulo 1: O vírus

Capítulo 2: Preparativos

Capítulo 3: A viagem começa

Capítulo 4: Gilgamesh

Capítulo 5: A expectativa

Capítulo 6: O filho de Leviatã

Capítulo 7: Leviatã vs Kraken

Capítulo 8: Ezequiel

Capítulo 9: Panaceia

Capítulo 10: O laboratório

Capítulo 11: O delírio

Capítulo 12: A bactéria


Capítulo 1: O vírus

– Silêncio, senhores!

A balbúrdia era tão grande que parecia uma Torre de Babel. Cada
um gritava algo diferente. O denominador comum era o desespero que as
vozes traíam. Cada membro do Conselho dos Cidadãos de Atarax tentava
falar mais alto que o outro, para vencer a cacofonia e impor seu ponto de
vista. O presidente da mesa insistiu, desta vez em tom de voz mais
elevado:

– Silêncio! É preciso ter calma nessas horas. O pânico vai apenas


nos levar à inação. E, acima de tudo, precisamos agir! Conto com o bom
senso dos senhores...

– Bom senso?! Como é possível demandar bom senso em um


momento desses? Estamos perdidos! Quando o moribundo está prestes a
dar seu suspiro final, alguém lhe cobra bom senso? Tenha dó...

A intervenção do líder dos religiosos deixou o presidente ainda mais


furioso. Este era justamente o momento para se manter a calma e pensar
em um plano de ação. Atarax, até então um lugar bastante calmo e
pacífico, vivia dias de profundo caos. Um vírus novo havia se espalhado de
tal forma pela sociedade que sua própria sobrevivência estava em jogo.

O vírus, que ficou conhecido como cole, atuava no sistema límbico


das pessoas, tornando-as mais agressivas. Nas primeiras horas de
contágio, o doente já apresentava sinais de mais nervosismo e
intolerância. Após 24 horas, o sujeito contaminado ficava bastante violento.
Qualquer coisa era pretexto para despertar sua raiva. Às 48 horas, o
doente ficava irascível para além de qualquer capacidade de controle.
Precisava bater, espancar, machucar alguém. Tinha que colocar para fora
aquele ódio que surgia não se sabia de onde.

Atarax, conhecida por seus lindos jardins e ambiente pacífico,


transformara-se num reduto de violência, com arruaça e vandalismo por
toda parte. O cole virou epidemia e, em pouco tempo, mais da metade da
população já estava contaminada. A baderna era geral. Ataques violentos
ocorriam à luz do dia. Ninguém estava seguro. Muitas vezes os doentes se
uniam para extravasar sua ânsia de violência. Os ataques em conjunto
eram ainda mais graves. O senso de invencibilidade era acrescido da
completa ausência de responsabilidade individual. Para aplacar a sede de
sangue, os bárbaros não selecionavam suas vítimas; qualquer um era alvo
em potencial: crianças, mulheres, idosos; havia relatos de casos realmente
assombrosos.

– Ou fazemos alguma coisa imediatamente, ou Atarax será nada


mais que um vale destroçado, uma cidade fantasma!

O tom que a voz do presidente chegou ao momento desta fala


finalmente produziu silêncio no Conselho. Ao pronunciar a expressão
“cidade fantasma”, muitos ali presentes tiveram calafrios. Eles conheciam a
história de Castrix, uma ilha próxima que fora totalmente destruída por um
tipo de vírus semelhante ao cole.

Relatos assustadores dos últimos dias de vida na ilha tinham se


tornado verdadeiras lendas urbanas. Diziam que sair nas ruas era missão
impossível, e que mesmo dentro de suas casas ninguém se sentia seguro.
O pânico era geral. O pequeno local entrou em guerra civil. Crianças
pegavam em armas, algumas matavam seus próprios pais. Não restara
alma viva para contar a história. Os mitos se tornaram mais fortes ainda,
pois foram construídos com base em fragmentos de relatos, obtidos por
nômades que supostamente tiveram contato com os habitantes de Castrix
que escaparam da ilha antes que fosse tarde demais.

“Cidade fantasma”. Absorto em pensamentos, com o olhar fixado


num mosquito que pousara na mesa, Conrado Pantoja repentinamente
bateu forte nela, com punhos cerrados, esmagando o inseto e atraindo a
atenção dos demais membros do Conselho.

– Já chega! Tivemos tempo suficiente para chiliques e histeria! O


momento exige bravura e estratégia de ação. É preciso dar um jeito de
chegar até Panaceia e...

Não foi capaz de completar a frase. O tumulto novamente se


apoderou do recinto, dessa vez com todos gritando ao mesmo tempo.
Bem, quase todos. No canto direito da grande sala, com um olhar muito
atento direcionado a Pantoja, Edmundo Del Vale refletia em silêncio.
Aquele personagem forte e destemido, o líder da bancada dos
trabalhadores no Conselho, despertava-lhe imensa curiosidade.

– Sim, Panaceia! É a única saída. Será que vocês não enxergam?


Se ficarmos aqui parados, esse maldito vírus irá acabar com Atarax em
poucas semanas, quiçá poucos dias! Quando não nos resta qualquer outra
alternativa, a solução está dada.

– Mas Panaceia? Pantoja, será que você está esquecendo o que há


no caminho para Panaceia? Isso se o lugar realmente existir, pois ninguém
aqui tem provas disso.

O líder dos religiosos tremia ao pronunciar tais palavras. Padre


Otávio de Ramalho era conhecido por sua devoção a Deus e por sua
tranqüilidade sempre presente. Mas os acontecimentos dos últimos dias
tinham produzido um efeito estranho nele. Para alguns, ele estava
irreconhecível. Suas intervenções eram sempre para jogar um balde de
água fria naqueles que, de alguma forma, desejavam agir.

– Devemos todos nos unir em uma grande oração, isso sim! Deus
não nos abandonará. Ele saberá o que fazer para nos proteger.

– Deus? Seu Deus foi quem criou o vírus em primeiro lugar, Padre
Ramalho! Não me venha com sermões agora. Duas mãos trabalhando
fazem mais do que mil rezando!

Antes que aquilo se transformasse num ringue entre o religioso e o


líder trabalhador, o presidente pediu a palavra novamente:

– Está certo, digamos que não nos resta outra opção além de
Panaceia. Como faríamos para atravessar o terrível mar nórdico? Será que
você não está levando em conta a existência tanto de Kraken como do
Leviatã, Pantoja?

– Nada mais do que mitos! Conheço as histórias, mas não passam


disso: histórias inventadas para amedrontar os cidadãos de Atarax.
Manipulação de uma elite poderosa que sempre pretendeu manter nosso
povo acovardado, passivo, para que nunca ousasse tentar chegar a
Panaceia. Diante de outros problemas menores, o medo venceu a
esperança. Mas dessa vez a coisa é muito mais grave. Esse vírus ameaça
nossa própria sobrevivência. Nós temos que chegar até Panaceia! Os
obstáculos são pura invenção das elites.

– Isso não é verdade, Pantoja. Há relatos bastante fiéis dos ataques


desses monstros. Sim, nenhum sobrevivente está vivo. Mas todos aqui
conheceram o velho Isaías...

– Um velho gagá! Ele imaginava coisas e as tomava como


verdadeiras. Delírio de um ancião, apenas isso. Prefiro acreditar no Sábio
Hans. Esse sim, sempre defendeu a existência de Panaceia e tentou nos
convencer que ela estava ao nosso alcance.

– O sábio, Pantoja, passou a vida inteira trancado naquela enorme


torre branca como o marfim. Mas vamos supor que ele esteja certo, e que
Panaceia realmente existe e tem a cura. Eu lhe pergunto: e se os monstros
descritos por Isaías forem reais?

– Nesse caso, pensaremos em algo. Lutaremos com coragem, pois


Panaceia será nossa recompensa. Melhor morrer por essa causa do que
definhar como um morto-vivo aqui. Será que não percebem que já estamos
praticamente mortos de qualquer jeito?

– E o que você sugere? Quem iria nessa empreitada?

– Recomendo que cada uma das três bancadas envie seu líder. Dos
trabalhadores, já me prontifico para a missão.

– Isso é loucura! Insanidade total. Os homens perderam o juízo...

– Padre Ramalho, o que o senhor tem a perder? Lembre-se de que


seu projeto não é dessa vida, e sim da próxima, a eterna. Não posso
compreender tanto apego a esta vida temporária, segundo sua própria
crença. Se eu fosse crente como o senhor, seria o primeiro a pular do
precipício para chegar logo ao paraíso! No mais, eis a sua chance de
realizar um ato realmente heróico perante os olhos de Deus. Ele há de lhe
recompensar com um verdadeiro latifúndio celeste...
– Suas ironias demonstram sua imaturidade e falta de fé, meu caro.
Sua busca pelo paraíso terrestre mostra que você não conhece a
serenidade de uma certeza de paz eterna ao lado de Deus. Mas não serei
eu a impedir esse último ato de esperança, ainda que tola, dos homens. Eu
preferia o caminho da oração para nos salvar de verdade. Não tenho medo
do Kraken ou do Leviatã, bichos mundanos. É o demônio que me
assusta...

– O demônio, Padre, chama-se cole, e veio em forma de vírus


destruir nosso mundo. Sim, eu troco seu paraíso em forma fantasmagórica
pela busca da perfeição aqui e agora!

– Que seja. Eu me voluntario a embarcar nessa aventura irracional


pela bancada dos religiosos.

Todos os olhares voltaram-se então na direção do canto direito da


sala, onde o líder dos empresários, Edmundo Del Vale, mantinha uma
calma impressionante. Pantoja foi o primeiro a quebrar o silêncio:

– Será que o líder dos empresários tem a coragem necessária para


se unir a nós por essa causa?

O mal-estar era visível. Todos estavam apreensivos com a reação


de Edmundo. Um olhar de súplica estava estampado em cada um dos
rostos, à exceção do próprio Pantoja, que exibia aquilo que parecia um
leve sorriso desafiador no canto da boca. Edmundo levantou-se
lentamente, respirou fundo e disse:

– Não há a sonhada cura em Panaceia. Mas não serei eu o estraga-


prazer de vossas senhorias. Quando partimos, Pantoja?
Capítulo 2: Preparativos

A igreja de Atarax era imponente, uma linda construção medieval


que tomava um quarteirão inteiro. Aos fundos, um cômodo espartano
abrigava a cama de Padre Otávio, um pequeno banco de madeira e sua
ampla estante de livros. Eram os únicos bens materiais que ele dava valor.

– Essa viagem é uma loucura, minha irmã. A prepotência humana


não encontra limites. O homem busca ocupar o lugar que pertence
somente a Deus. Essa arrogância, nosso pecado original da hubris, ainda
vai nos destruir a todos. O vírus é apenas um sinal divino, um alerta
justamente contra essa batalha que os homens travam com seu Senhor.

– Você está certo, Otávio. Mas, agora que aceitou o desafio, não
pode mais recuar. Seria humilhante demais para todos nós, religiosos.
Além disso, pode ser que aquele trabalhador tenha um ponto. Do jeito que
a coisa está, dificilmente pode ficar pior.

– Ah, Lucélia! Não venha você também duvidar da obra de Deus.


Ele escreve certo por linhas tortas. Não somos capazes de medir seus atos
com nossa régua limitada da razão. Não! Estou certo que esse tal de cole
é um aviso, um chamado contra nossa prepotência.

– Mas Otávio... crianças também estão sendo vítimas dessa


maldição.

Ela se arrependeu no instante em que suas palavras encontraram o


caminho de saída dos lábios em movimento. Pôde ver a fúria possuindo o
rosto de seu irmão. As veias do pescoço saltando como se fossem
explodir, e o olhar... um olhar de quem seria capaz de estrangulá-la ali
mesmo.

– Desculpa, Otávio. Eu não sei o que estou dizendo. Deve ser meu
medo. Sou humana também, e confesso que sinto dificuldade em aceitar
que minha morte prematura seja parte de algum plano mirabolante de
Deus, que eu apenas não consigo compreender. Mas é fraqueza minha.
Claro que Ele sabe o que faz! E se for Seu desejo nos levar, porque somos
pecadores, então farei de tudo para enfrentar com resignação esse
destino.

Um pouco mais calmo, após respirar fundo e deixar as novas


palavras surtirem efeito em seu corpo, Padre Otávio disse:

– Reze, minha irmã. Nunca deixe esses pensamentos malignos te


dominarem. O Diabo opera por meio de nossas fraquezas. Posso aceitar
quase qualquer um duvidando Dele ou questionando suas intenções.
Menos você! Sangue do meu sangue! Não posso admitir que você seja
mais uma ovelha desgarrada do rebanho. O castigo é cruel demais, pois
não se dá nessa vida passageira, e sim na eternidade. Você quer passar
milênios ardendo no inferno, com dores absurdas e sofrimento
ininterrupto? Você quer sofrer como Prometeu?

Lucélia deu um sobressalto, e começou a se mexer, desconfortável


em qualquer posição. Ela se lembrou de quando escutara pela primeira
vez essa imagem ser descrita pelo irmão mais velho. Ele, ainda um jovem
pároco, encantado com suas descobertas sobre o mundo e agitado pelas
respostas todas que finalmente obtinha para suas angústias; ela, uma
menina de 14 anos, acuada e tímida, com uma aparência que não era
exatamente um grande convite para os machos de sua espécie nessa fase
da vida.

Ela recordou aquele momento como se fosse hoje. Era um pânico


indescritível, que a deixou três noites inteiras sem dormir. Bastava os olhos
se fecharem e lá vinha a imagem das chamas, das dores insuportáveis de
uma águia comendo seu fígado, um pesadelo sem fim que a fazia abrir de
imediato seus olhos, o suor escorrendo pela testa e a respiração ofegante.
Agora, mais velha, ela compreendia melhor que seu irmão estava apenas
preocupado com seu futuro, com sua salvação.

Mas de vez em quando ela se pegava, diante do espelho, pensando


em voz alta até que ponto aquilo tudo havia sido justo com ela. Não seria
mais fácil se Deus tivesse sido um pouco mais generoso na hora de
moldar sua forma? De qual costela ela tinha sido criada, se tantas outras
pareciam mais felizes pela simples loteria genética? Talvez o medo do
inferno perdesse importância se ela tivesse as paqueras, os galanteios, os
namoricos na praça, como as outras meninas de sua idade...
Seus pensamentos foram cortados abruptamente pela fala do irmão:

– Está no mundo da lua? Parece que ficou paralisada...

– Estava refletindo, meu caro irmão. Você tem toda razão. Aqueles
infiéis pecadores mal sabem o que lhes aguarda. Não tenho mais dúvida
de que esse vírus é um sinal de Deus. Ou os homens mudam o estilo de
vida, abrindo mão desses prazeres hedonistas sem sentido, ou vão todos
arder no inferno. Mas cabe a você, Otávio, mostrar para essa gente
mesquinha que Deus sabe o que faz, e por isso mesmo te selecionou para
essa missão. Quando você retornar a Atarax com a cura, todos terão que
se curvar diante de sua fé. Será um milagre! Pense no que isso poderá
representar em termos de novos seguidores convertidos ao caminho da
retidão! Ninguém poderá nos ridicularizar mais. Todas aquelas pessoas
que acham sua igreja um desperdício de mármore serão obrigadas a
enxergar a luz!

“Enxergar a luz”. Padre Otávio deixou essas palavras irem


lentamente ecoando em sua cabeça. “Enxergar a luz”. Todos finalmente
saberiam que Ele existe, e que Padre Otávio é seu mensageiro na Terra.

– Vamos, Lucélia, é preciso arrumar minhas coisas. Panaceia me


aguarda!

***

Nas proximidades da igreja havia uma vila humilde, com casebres


enfileirados e uma praça comum. Conrado Pantoja vivia lá, na casa de
número 13. Era visto como celebridade entre os vizinhos, pois ocupava o
importante cargo de líder dos trabalhadores no Conselho. Sua militância
política começou bem cedo, após pequeno acidente na forja em que
trabalhava. Um escorregão foi suficiente para que Pantoja quase perdesse
parte da perna, atravessada por uma viga de ferro incandescente. As más
línguas disseram que ele estava sob efeito de Baco, mas isto nunca foi
provado. Felizmente, nada mais grave aconteceu. Mas o evento fora
decisivo para mudar sua vida.

Desde então ele trocara as caldeiras da forja pelo palanque


improvisado no pátio comum, onde discursava para dezenas de
companheiros. Argumentava que as condições de trabalho eram
desumanas, e que os trabalhadores tinham que se unir contra a
exploração. Os empresários, aliados ao Estado, mantinham os
trabalhadores na ignorância para preservar o regime de escravidão velada.
Os discursos inflamados atraíram mais audiência na forja, depois
ganharam as ruas de Atarax. Pantoja era o líder inconteste dos
trabalhadores, e de passeata em passeata ele logo chegou ao Conselho
dos Cidadãos.

Agora era chegado o momento tão esperado, a oportunidade de


ouro para Pantoja mostrar todo seu valor. As conquistas trabalhistas não
eram nada perto da nova missão. Caberia a Pantoja chegar até Panaceia e
trazer a cura para o vírus que arrebentava com a pacata vida de seu povo.
Isso seria a conquista máxima de um líder popular. Pantoja já podia ver
todos o louvando, gritando seu nome como o salvador da Pátria. Seu olhar,
preso ao infinito, foi perturbado pela voz de sua mulher:

– Conrado, eu sei o quão corajoso você é, e como todos dependem


de você. Mas tem certeza de que vai embarcar nessa aventura, meu
amor? É muito arriscado.

– Marta, querida, não há o que temer. Eu sei que chegarei até


Panaceia e encontrarei a cura para o cole. Padre Otávio pode acreditar no
misticismo que quiser, mas meu caso é diferente. Eu não preciso acreditar
em Panaceia. Basta respeitar o conhecimento científico, e sei que chegarei
lá e encontrarei a cura. Entre mim e Padre Otávio, está nada menos do
que a Razão!

– Ainda assim, Conrado, dizem que o caminho é cheio de perigos.


As histórias que contam do mar nórdico e daqueles monstros...

– Não seja boba você também, Marta. Como se já não bastasse


aquele vigário covarde! Eu não te peço para ter esperanças, pois não é
disso que se trata aqui. Eu peço apenas que você confie na Razão. Eu
chegarei até Panaceia. E de lá trarei o antídoto para estas mazelas que
atormentam a paz de Atarax. Não duvide disso.

– Eu gostaria de ter um terço de sua convicção, Conrado.

– A culpa é de sua mãe, que fez lavagem cerebral quando você era
pequena, te levando para aquelas enfadonhas missas de domingo. Desde
então você ficou assim, uma maçã dividida ao meio, com um lado racional,
e outro supersticioso. Já disse que não se trata de convicção, mas de
certeza. Eu sei que Panaceia possui a cura para Atarax, e também sei que
vou consegui-la. Confie em mim.

– Está certo. Eu é que fico com essas bobagens na cabeça. De


qualquer jeito, eu já preparei suas coisas. Coloquei tudo aquilo que você
poderá precisar.

Pantoja levantou-se e deu um beijo na testa da mulher, saindo em


direção ao seu pequeno escritório, para repassar sua estratégia de
viagem. Pelo canto do olho, antes de sair, ele pensou ter visto Marta
fazendo o sinal da cruz, mas achou melhor acreditar que havia se
enganado.

***

Do outro lado da cidade ficava o bairro de classe média alta, com


simples porém belas casas, todas muito práticas. A trigésima casa
pertencia a Edmundo Del Vale, um engenheiro químico que era sócio de
um pequeno laboratório farmacêutico. Edmundo tivera uma infância
humilde, com um pai alfaiate e uma mãe funcionária pública, que
trabalhava na fábrica de lampiões de Atarax. Seus pais sempre
trabalharam duro para que Edmundo, filho único, pudesse estudar nas
melhores escolas e cursar as melhores universidades. Mas o destino
resolveu pregar peças e alterar o rumo de sua vida.
Seu pai morreu de cancro quando ele era jovem ainda, e sua mãe
se viu obrigada a sustentar ambos com seu salário reduzido. Poucos anos
depois, a estatal foi vendida pelo governo para uma empresa privada, e
sua mãe se viu obrigada a trabalhar mais para manter o emprego, agora
sob maior concorrência e sem a estabilidade do setor público. O salário,
entretanto, aumentou, e isso fez com que Edmundo tivesse a oportunidade
de aprender uma língua estrangeira num curso de férias que sua mãe lhe
deu de presente aos 17 anos.

Tudo parecia bem, quando um acidente estúpido interrompeu a vida


de sua mãe precocemente. Um colega de trabalho imprudente deixou cair
querosene no chão, e fagulhas despertaram a fúria das chamas,
alimentadas pelos móveis de madeira no local. Enormes labaredas
rapidamente tomaram conta de todo o recinto, e a asfixia da fumaça ao
menos poupou o sofrimento ainda maior da carne chamuscando. Foram
oito mortos no total, mas para Edmundo somente um deles tinha
verdadeira importância.

Edmundo se viu então forçado a trabalhar para pagar seus estudos.


Primeiro, como lavrador, depois como o responsável pelo abate na granja
local, até finalmente conseguir um cargo de assistente em um laboratório
farmacêutico. Sua vida nessa época se resumia aos livros e ao trabalho,
que ele adorava, por ter a oportunidade de realizar experiências,
colocando em prática aquilo que estudava nas teorias. Descobriu então
que era preciso ousar, arriscar novas fórmulas, pois nem tudo estava
escrito em seus livros. Com um espírito empreendedor, Edmundo foi
galgando novos postos no laboratório, cada vez com mais
responsabilidade. Até ser convidado a comprar sociedade na firma.

Mas o que ele realmente gostava era do laboratório. Seus sócios


tentaram convencê-lo a assumir cargos de chefia, para que ele
administrasse todo o pessoal da área de pesquisa. Só que ele dispensava
a parte burocrática para poder mergulhar nas experiências, como apenas
mais um engenheiro da equipe. “Tentativa e erro”, era o que Edmundo
mais repetia aos seus colegas quando batia desânimo após experimentos
fracassados. Quando os colegas coçavam a cabeça, incrédulos, pois tudo
parecia tão certo na teoria, lá vinha Edmundo para lembrar: “Tentativa e
erro”. Esse acabou se transformando no slogan da empresa.
Acontece que nem Edmundo fora capaz de antever um vírus tão
destrutivo como o cole. Sempre muito apegado ao ceticismo saudável,
mas com doses estimulantes de otimismo com o resultado final, dessa vez
Edmundo se mostrava quase apático. O desafio era grande demais.
Ninguém chegara sequer perto de uma cura para a epidemia. Ela parecia
realmente invencível. Coube à sua mulher tentar injetar certo ânimo em
Edmundo:

– Eu nunca te vi tão para baixo assim. Onde está aquele homem


que me dizia que basta nada ser feito para o triunfo do mal? Vamos,
anime-se! Vocês vão encontrar essa cura em Panaceia.

– Isabel, você não entende. Eu sempre tentei manter um equilíbrio


saudável entre o desespero do derrotismo e a empolgação do otimismo.
Durante minha vida toda, que não foi fácil, como você bem sabe, essa
postura me foi útil. Nunca me deixei ser tragado pelo imobilismo daqueles
que só reclamam das desgraças e nada fazem para reagir, e também
jamais mergulhei em esperanças infundadas, que mantêm nossa cabeça
nas nuvens por tempo demais a ponto de nos esquecermos de colocar os
pés no chão. Mas o cole é diferente. Eu nunca vi nada igual.

– Tentativa e erro! Não era isso que você sempre dizia? Desistir
agora não é uma opção.

– Acontece que já tentamos de tudo aqui, sem resultado algum.


Nem sinal da cura! E agora eles vêm com essa coisa de Panaceia... Ora,
essa cura milagrosa não existe! Não há absolutamente nenhuma evidência
concreta de que essa cura exista. Isso sem falar das dificuldades de se
chegar lá. Aquele coitado do Conrado quer acreditar que é medo o que me
segura. Antes fosse! O medo a gente enfrenta. A coragem, aliás, precisa
do medo, caso contrário não é coragem, mas suicídio inconsequente.
Aquele que pula do penhasco porque pensa que pode voar não é corajoso,
e sim maluco ou imbecil.

– Mas então me diz o que está te incomodando tanto... seu


derrotismo é contagiante e preocupante, pois tanta gente sempre te olhou
como um ícone de coragem, um exemplo a ser seguido. Inclusive eu!
– Eu não sei explicar direito, Isabel. Confesso que gostaria de
demonstrar mais esperança com Panaceia, talvez para lhe oferecer algum
conforto espiritual, ao menos. Mas algo soa muito errado nisso tudo. Ainda
não sei direito o que é, mas não gosto dessa aventura homérica envolta
em tanta expectativa. E digo mais: desconfio muito dos motivadores tanto
do Padre Otávio como principalmente de Conrado. A busca da glória pode
ser ainda mais perigosa que a busca da cura. Ela pode torná-los cegos
diante dos perigos.

– Eu entendo seus pontos, mas ainda acho que você deveria


alimentar um pouco mais de esperança. E se o que você acaba de dizer
for verdade, mais um motivo para você ir junto na viagem. Será o guardião
da responsabilidade no grupo. Sem você, aí é que eles não têm chance
mesmo! Ande, eu já preparei suas coisas, agora veja se descansa um
pouco porque amanhã vocês partem bem cedo.

– Está bem, Isabel. Eu prometo que vou me esforçar, dar o melhor


de mim para essa causa, ainda que a considere uma causa perdida.

– Não tenho dúvida de que vai. Não seria você se fizesse diferente.
Lembre-se que eu te amo muito e estarei aqui, aguardando ansiosamente
sua volta com a cura. Agora vá dormir. Boa noite.

Isabel apagou o lampião, mas Edmundo não fechou os olhos. Ficou


contemplando a escuridão, pensando em como os homens são atraídos
pela luz intensa enquanto temem o breu total. Talvez uma coisa seja
idêntica a outra. A luz solar, se em contato direto com os olhos por muito
tempo, não acaba nos cegando?
Capítulo 3: A viagem começa

O sol mal começara a raiar e os galos nem haviam terminado suas


primeiras notas quando Padre Otávio de Ramalho, Conrado Pantoja e
Edmundo Del Vale já estavam se afastando dos portões de Atarax. A
viagem seria longa, pois Panaceia, segundo os poucos relatos existentes e
não muito confiáveis, ficava a uma distância expressiva de Atarax. Mas
isso não era razão suficiente para tirar o ânimo de um Pantoja exultante:

– Vamos, camaradas! Panaceia nos espera, e tenho certeza de que


chegaremos logo lá. Apenas alguns dias de viagem e...

– Você tem certezas demais, Pantoja. Talvez esse seja seu maior
problema.

– E você confia muito pouco em si próprio e no conhecimento


científico, Edmundo, apesar de ser um cientista...

– O fato de eu ser um cientista não é sinônimo de ser prepotente, de


me achar o dono da verdade. Justamente o contrário. Conheço bem os
limites de nossa razão...

– Disse bem, Edmundo! Nosso colega aqui ignora a lição de


Prometeu...

– Não venha com mitos bobos, padre! Eu não preciso roubar o fogo
de deus algum. O fogo existe na natureza, e coube aos homens apenas
descobri-lo. A mim cabe aprender como utilizá-lo melhor. Apenas isso.

– Cuidado para não se queimar, Pantoja. Não é preciso crer no


Deus do Padre Otávio para reconhecer a importância dos mitos antigos.
Os limites da nossa razão podem ser descobertos com o próprio uso
dela...

– Fale por você, Edmundo! No mais, esse seu discurso é o típico


manual de exploração de vocês, empresários. Enaltecem a ignorância
humana, alegam que nos falta capacidade para conhecer tudo, pois assim
mantêm nós trabalhadores alienados, trabalhando feito mulas para
produzir suas riquezas!

– Esqueça a demagogia, Pantoja, estamos somente nós três aqui...

– Demagogia? Isso é ciência, meu caro! Minhas teorias não são


fruto de achismo. Elas foram erguidas em pilares sólidos. O próprio Sábio
Hans pode atestá-las. Basta pensar e chegará às mesmas conclusões!
Mas algo me diz que você já sabe disso, e apenas finge o contrário, com
esse discurso dos limites de nossa razão, para preservar esse sistema de
escravidão que temos!

O Padre Otávio percebeu que o clima estava ficando carregado, e


não fazia nem duas horas que eles tinham partido. Decidiu, então,
apaziguar os ânimos mudando o assunto:

– Escutem, vocês acham que existem realmente aqueles monstros


no mar nórdico?

– Pensei que você temesse apenas o Diabo, Padre, e não as


criaturas de Deus, por mais assustadoras que elas possam ser...

– Guarde suas ironias para si, Pantoja. Estou preocupado com


nossa travessia quando chegarmos às margens do mar nórdico. Se for
verdade que tais bichos existem, precisaremos de algum plano para
derrotá-los.

– Pensaremos em algo, Padre. Cada coisa de uma vez. A longa


jornada começa com os primeiros passos. Não acho que vale a pena nos
preocuparmos tanto assim com algo que nem sequer sabemos se existe. E
ainda temos que atravessar essas montanhas, não esqueça.

– Essas montanhas serão moleza, Edmundo. Vocês criam


obstáculos demais. Nós chegaremos a Panaceia, senhores. E vocês verão
que todos esses medos não passam de pura bobagem. Confiem em
Pantoja! Ou, se preferirem, confiem na Razão!
Eles seguiram viagem por mais dez horas, com paradas
esporádicas para descanso. Ao começo do crepúsculo, decidiram montar
as tendas para pernoitar nas montanhas. Acenderam o fogo e cozinharam
uma lebre. Pantoja estava mais confiante do que nunca:

– Eu não disse que seria fácil atravessar as montanhas? Amanhã


mesmo já chegaremos ao mar nórdico, pelos meus cálculos. E então,
senhores, vocês vão começar a me dar razão e se curvar diante da
ciência. Precisaremos de uns dois dias de trabalho para cortar madeira e
construir uma embarcação, e outros dois dias para navegar pelo mar. O
que significa que em menos de uma semana já estaremos na floresta. Dali
até Panaceia será um pulo. A cura nos aguarda.

– Deus lhe ouça, meu filho. Deus lhe ouça.

Mas era Edmundo quem escutava a ambos, refletindo sobre a


necessidade do otimismo para se seguir em frente mesmo quando os
desafios parecem gigantescos, intransponíveis. Sim, era verdade que a
travessia das montanhas fora mais fácil do que ele esperava. Mas será
que por isso eles deveriam extrapolar estes primeiros momentos e deixar a
empolgação se transformar em euforia? Desta para a negligência basta um
piscar de olhos. Pantoja, por falar nisso, já havia fechado os seus e dormia
um sono profundo, de quem está seguro daquilo que o futuro espera.
Edmundo não era capaz de desfrutar da mesma tranqüilidade. Suas
angústias vinham sem convite prévio. O máximo que ele conseguia era
conviver com elas.
Capítulo 4: Gilgamesh

A chegada até as margens do mar nórdico foi relativamente


tranquila. Descer a montanha era bem mais fácil do que subi-la. Nenhum
grande contratempo surgiu no caminho, fazendo com que a confiança de
Pantoja atingisse níveis estratosféricos. Ele se sentia invencível agora. Um
ar cada vez mais autoritário foi se apossando daquele que pensava ser o
líder natural do grupo. Pantoja começou a distribuir ordens aos outros dois
companheiros:

– Padre Otávio, pegue o machado e corte aqueles troncos de lá.


Edmundo, será que você aguenta um trabalho mais braçal? Se preferir,
pode cuidar dos cipós necessários para amarrarmos os troncos. É tarefa
mais leve para um empresário...

– Não seja bobo, Pantoja. Eu não nasci empresário. Mas fico feliz
em ver que você entende que a força bruta não tem tanto valor sem o uso
do cérebro, este sim fundamental para extrairmos utilidade dos músculos.

– Será que as moças poderiam interromper a discussão entre


cérebro e trabalho um segundo? Creio que nós precisamos de ambos por
aqui...

– Padre, quem te viu e quem te vê! Falando assim a gente nem te


reconhece.

– Ora, Pantoja, eu sei separar minhas funções. Carrego minha cruz


e minha fé sempre comigo, mas aqui somos apenas três indivíduos
sozinhos, que necessitam de trabalho duro e de inteligência. Temos muito
que fazer. Os desafios mal começaram. E vocês perdem tempo com
bobagens.

– O padre está certo, Pantoja. Estou seguro de que você um dia vai
compreender que nós empresários exercemos uma tarefa crucial para o
progresso. Mas não é hora nem local de te dar lições sobre economia.
Antes do anoitecer precisamos ter construído boa parte dessa
embarcação, para amanhã mesmo finalizarmos o trabalho e
atravessarmos este mar.
– Está bem. Estou de acordo. Desde que sigamos meus planos tudo
dará certo.

– E qual exatamente o seu plano para enfrentarmos os monstros


marítimos, caso eles existam de fato?

Pantoja pareceu confuso por alguns instantes, nitidamente


incomodado com a pergunta. Coube ao padre tomar a iniciativa:

– Se me permitem, gostaria de lhes contar uma curta história. Trata-


se da Epopeia de Gilgamesh. É um antigo poema épico da Mesopotâmia,
uma das primeiras obras escritas que se tem conhecimento.

– Padre, sinceramente, eu não acho que seja o momento para mais


mitologia. Precisamos trabalhar!

– Espere um pouco, Pantoja. Deixe-me terminar que você verá o


sentido disso tudo. Às vezes é necessário dar um passo atrás para dar
dois à frente.

– Deixe o padre contar a história, Pantoja. Não serão cinco minutos


que irão nos prejudicar. E pode ser que ele tenha algum ponto relevante
nisso.

Pantoja deu de ombros, claramente contrariado. Padre Otávio


prosseguiu:

– Então, Gilgamesh era tido como um deus-herói nos poemas


sumérios. Ele era provavelmente um monarca que comandava os cidadãos
de Uruk. Acontece que esses estavam incomodados com seu excessivo
poder dinástico, e pediram aos deuses que lhes mandassem outro ser tão
poderoso quanto Gilgamesh. Enkidu, um selvagem muito forte, foi então
criado pelos deuses como equivalente de Gilgamesh, para que o distraísse
e evitasse que ele oprimisse seu povo.
– Padre, por favor, qual seu ponto? Confesso que estou ficando
impaciente com tanta ladainha...

– Tentarei encurtar a história. A parte que nos interessa é que


Gilgamesh e Enkidu foram juntos passar por diversas missões, fora de
Uruk. Os deuses ficaram descontentes com aquilo que ambos fizeram
juntos, derrotando o monstruoso guardião das Montanhas do Cedro e
depois matando o Touro dos Céus. Mas eis o que realmente importa: Uruk
prosperou durante essa fase toda em que Gilgamesh e Enkidu disputavam
para ver quem tinha mais poder!

– E que diabos isso tem a ver com nossa missão, padre?

– Você não percebe, Pantoja? É genial, padre! Como não pensei


nisso antes?

O padre Otávio fez esforço para não demonstrar um largo sorriso de


vitória. Se não seria pela fé, então ao menos seria por sua sabedoria
histórica dos mitos que ele provaria seu valor no grupo. Edmundo estava
empolgado feito uma criança com a revelação que aquela história
estampava em sua cara. E ele nem sequer pensara nisso...

– É perfeito, padre! Conhecemos relatos de dois monstros que


habitam as profundezas do mar nórdico. Um deles é o famoso Leviatã,
uma criatura gigantesca, uma espécie de dragão marinho, pelo que dizem
aqueles que juram ter visto a fera. A outra é o Kraken, igualmente
assustador. Dizem que seu lombo tem uma milha e meia de comprimento
e que seus braços podem abraçar o maior dos navios.

– Continuo sem ver a conexão...

– Pantoja, está evidente! Leviatã e Kraken, dois gigantescos polvos,


dois igualmente poderosos dragões do mar. Gigalmesh e Enkidu!

O padre acenava com a cabeça, eufórico agora que tinha o apoio de


Emundo em sua ousada estratégia.
– Nós precisaremos de algo para criar uma competição entre
ambos, padre. Gigalmesh e Enkidu tiveram seus desafios, e por isso
partiram de Uruk.

– Confesso que isso eu deixei escapar...

Pantoja observava cada vez mais impaciente aquilo que parecia um


delírio dos demais. Se os monstros existissem mesmo, seria com a força
dos machados que eles venceriam a batalha. Seus pensamentos foram
abortados pelo grito que Edmundo soltou:

– Mas é claro! Precisamos apenas de uma isca, de algo que tanto o


Leviatã como o Kraken desejem. Nós tentaremos atrair ambos para perto
da embarcação, e então jogaremos o mais longe que for possível algum
prêmio apetitoso o suficiente para despertar neles a tentação da conquista
pela competição!

– A carne da ovelha que trouxemos nos nossos mantimentos! É


brilhante, Edmundo!

Neste momento Pantoja não mais se segurou:

– Um instante só, rapazes! Vocês estão mesmo pensando em fazer


isso que estou entendendo? Querem atrair dois monstros para perto de
nossa embarcação, e ainda por cima lhes dar de presente nosso principal
sustento alimentar? Vocês ficaram loucos?

– Nossa sorte, Pantoja, é que provavelmente existem dois monstros


igualmente poderosos no mar nórdico. Fosse somente um, eu creio que
não teríamos muita chance de sucesso. Mas se forem dois mesmo, então
podemos usar a força de um contra o outro. A vaidade fará o restante. Não
são apenas os homens que detestam perder uma competição...

– Exatamente, Edmundo. Estou certo de que esses monstros não


conhecem o ensinamento de Deus sobre compartilhar aquilo que
possuem. Um fará o possível para ter aquilo que pode ser do outro. A
disputa entre eles nos dará o tempo necessário para a travessia. Daremos
o anel para ficarmos com os dedos!
– E o que vamos comer depois, padre? Vento? Ao que me parece,
estaremos dando os dedos e os anéis, para ficarmos com nada.

– Chama a sobrevivência de nada, Pantoja? E não esqueça que


viemos em busca da cura em Panaceia. Será que ela não vale o risco?

– O padre está certo, Pantoja. Eu sou o mais cético aqui quanto às


chances de encontrarmos a cura em Panacéia. Ainda assim estou
convencido de que, se quisermos manter alguma esperança, então antes
precisamos atravessar o mar nórdico. E não conheço estratégia melhor do
que essa vislumbrada pelo padre. Os alimentos nós corremos atrás depois.
Deve ter algo comestível na floresta.

– Eu acho que vocês perderam o juízo. Mas vou respeitar o voto da


maioria. Até porque penso que esses monstros não passam de invenção
da elite. Terá sido muito barulho por nada no final das contas.

– Ótimo. Então você não tem nada a perder. Vamos logo montar
esse barco!
Capítulo 5: A expectativa

Na teoria, não existe diferença entre teoria e prática; na prática,


existe. Os primeiros grandes obstáculos foram a construção da
embarcação, se é que se pode chamar aquilo de embarcação. Não
passava de um arremedo de troncos irregulares presos por cipós, com
uma vela improvisada feita com o pano da tenda de dormir dos
aventureiros. Mas, enfim, era nessa geringonça que eles teriam que se
aventurar nas águas geladas do mar nórdico, enfrentando os possíveis
ataques de Kraken e Leviatã.

Foi padre Otávio quem rompeu o tenso silêncio:

– Tem que ser ou muito corajoso ou muito doido mesmo para entrar
nessas águas em cima de um tronco flutuante e desafiar dois monstros
poderosos. Que Deus esteja conosco, meus caros! Quero que saibam que,
diferenças à parte, sinto profunda admiração por sua bravura.

– Você também me surpreendeu, padre. Confesso que achei que


lhe faltaria cojones para encarar o desafio. Mas fique tranquilo. Eu ainda
estou seguro de que tais monstros não passam de empulhação criada
pelas elites para produzir medo nas massas. Nada temos a temer, além do
próprio medo, padre.

– Espero que você esteja certo, Pantoja.

– Bom, senhores, nós estamos prestes a descobrir. Mas o mais


importante agora é estarmos preparados para o pior. Pantoja, os
machados estão a postos?

– Sim, temos dois machados, e sugiro que cada um de nós fique


com um. O padre ficará encarregado de atrair os monstros, caso eles
sejam reais. Então, ele poderá jogar a prenda suculenta bem longe, para
que ambos queiram conquistá-la. A idéia maluca foi de vocês. Eu digo que
nada disso será necessário.

– Deus lhe ouça, Pantoja. Mas é melhor estarmos prevenidos. Se as


histórias que contam do Leviatã e do Kraken forem verdadeiras, esses
monstros não brincam em serviço. Dizem que eles engolem até os ossos
de suas vítimas!

O padre fez o sinal da cruz ao pronunciar estas palavras, que


produziram um tremelique em seu corpo. A sensação dos três era de
intenso nervosismo, de quem está prestes a fazer história e revolucionar o
mundo. Será que o Leviatã poderia mesmo ser derrotado? Será que o
religioso, o trabalhador e o empresário, unidos, teriam alguma chance
contra esse monstro terrível das águas nórdicas? Edmundo tentou acalmar
os demais:

– Escutem, sabemos que o Leviatã e o Kraken seriam capazes de


liquidar cada um de nós, isolados, com a facilidade de quem toma o doce
de uma criança. Por isso é tão importante que estejamos unidos. E por
isso temos que manter nossa estratégia inicial, nosso plano de ação.
Somente colocando um contra o outro, enquanto nós três permanecemos
juntos, poderemos vencê-los. Não chamo de derrota definitiva, pois isso
me parece além de qualquer esperança razoável. Mas poderemos enganá-
los e, durante sua desatenção, chegar até o outro lado do mar. É o que
nos basta.

– Sábias palavras, meu filho. Agora, se me permitem, gostaria de


pedir que rezemos juntos, pedindo a Deus que nos proteja e nos dê forças
para superarmos o desafio hercúleo que se apresenta.

– Lá vem você de novo com suas rezas, padre. Estão pedindo muito
de mim. Primeiro, nem sabemos se esses monstros existem de fato. Eu
repito que são invenção das elites, com objetivos obscuros. Depois, pedem
que eu implore a outra invenção humana, dessa vez para atender a
interesses do clero, que me proteja da primeira invenção. Desculpe a
franqueza, padre, mas isso é patético demais!

– Pantoja, não custa nada atender ao pedido do padre. Se você


estiver certo, então não fará mal algum perder alguns segundos, mesmo
que desnecessários. Mas se o padre estiver certo, então pode ser que uma
colaboração divina seja bem-vinda. O que temos a perder?
– Minha dignidade, Edmundo! Como ficaria a reputação de um
homem racional que se ajoelha implorando a fantasmas inexistentes que
lhe ajudem?

– Estamos apenas nós aqui, Pantoja. Prometo não contar a


ninguém. E o padre sem dúvida ficaria feliz e mais confiante se lhe
concedêssemos esse favor.

– Por que você tem que ser sempre tão em cima do muro, tentando
evitar tomar partido, Edmundo? Ou acredita nessa bobagem toda, ou está
do lado da ciência, do lado dos seres racionais como eu!

– Deixe-o, Edmundo. Rezemos nós então, e aproveitamos para


pedir pela salvação de Pantoja também.

O padre Otávio e Edmundo se puseram a rezar, o primeiro com


muito fervor, o último sem convicção. Conrado Pantoja observava a cena
com escárnio, enquanto afiava seu machado.
Capítulo 6: O filho de Leviatã

Chega de tergiversação. Era chegado o momento em que os três


lançariam sua jangada no mar para explorar o desconhecido. O Deus de
Padre Otávio parecia ter ouvido suas preces, pois sopravam ventos na
direção favorável ao destino deles. Ou, pelo menos, parte das preces.
Porque pouco depois de vinte minutos navegando, Pantoja avistou algo
que parecia uma ilha flutuante em movimento. As ondulações produzidas
pelo movimento daquela coisa pareciam ganhar força a cada instante. Foi
então que Pantoja finalmente viu do que se tratava, para sua completa
estupefação.

Uma carcaça enorme emergiu da superfície, expondo seus dentes


agudos como a espada e chifres dos dois lados. Ele tinha uma metade
animal, e outra metade peixe. Parecia um dragão avançando rapidamente
sobre a embarcação. Pantoja custou a crer naquilo que seus olhos
enxergavam. Foi só quando a besta chegava bem perto deles que Pantoja
finalmente soltou um grito:

– É ele! Vejam, o monstro!

O alerta chegou alguns segundos atrasado. Mal acabara de


pronunciar tais palavras, e sentiu um tentáculo pegajoso em sua perna.
Instantes depois ele já estava caído no chão do barco, após bater com a
cabeça na tora de madeira que fazia o papel de piso. Meio desmaiado,
conseguiu apenas reunir forças para se segurar no mastro, enquanto a
fera tentava sugá-lo para as profundezas do oceano.

Edmundo num átimo puxou o machado, e por reflexo soltou com


toda a força a lâmina em cima daquele tentáculo gosmento. Um sangue
esverdeado e oleoso jorrou no rosto de Pantoja, que fez uma careta de
nojo antes de finalmente desmaiar. Edmundo, então, gritou:

– Padre, rápido, pegue o machado do Pantoja e acerte-o no outro


tentáculo!

O padre obedeceu, descarregando toda uma fúria que parecia


reprimida há anos em seu ser. Um novo pedaço de tentáculo borrachudo
ficou solto pelo barco, mexendo-se como se ainda estivesse vivo. A gosma
esverdeada estava agora espalhada por toda a embarcação. Mas o
monstro acusou o golpe, recuando até finalmente se retirar para a
imensidão negra abaixo da superfície. A batalha estava vencida. Não a
guerra.

– Acho que conseguimos! Nós conseguimos, Edmundo!

O padre soltou uma gargalhada aliviada, correndo para abraçar


Edmundo. Este, entretanto, ainda estava preocupado. Não era hora para
celebrações. E os estragos causados pelo bicho não foram poucos.
Edmundo notou que um pedaço da embarcação se quebrou, prejudicando
a capacidade de navegação. Sem falar de Pantoja, desmaiado no chão do
barco.

– Calma, padre. Ainda não chegamos nem à metade do caminho. E


se o monstro retornar? Ou pior: e se ele não estiver sozinho? Para falar a
verdade, padre, ele me pareceu bem menor do que os relatos sobre o
Leviatã ou mesmo o Kraken. Eu não queria te dizer isso, mas não posso
faltar com a verdade agora: ele se parece muito com a descrição que já li
sobre um tal filho do Leviatã. Nossos problemas apenas começaram,
padre...

A expressão no rosto do padre era de profunda consternação, de


quem sabia ter escutado a verdade, mas desejava loucamente ignorá-la.
Ele também já tinha escutado relatos sobre o filho de Leviatã. Batiam
exatamente com aquela imagem que ele acabara de ver. O monstro que
eles afastaram era um filhote. Melhor nem pensar no tamanho do pai!
Capítulo 7: Leviatã vs Kraken

Em poucos minutos, Pantoja havia se recomposto, após o padre lhe


dar um pouco de água. O susto fora grande. O pedaço do tentáculo, agora
estático, era a prova da corajosa batalha que padre Ramalho e Edmundo
travaram com o monstro. Pantoja, um tanto embaraçado, dava explicações
em demasia:

– Eu estava pronto para lhe enfiar o machado bem no meio da testa


chifruda, quando ele me pegou de surpresa com um tentáculo que veio
sabe-se lá de onde. Não fosse isso, esse monstrengo ia saber o que
acontece quando se desafia Pantoja!

– Descanse um pouco, Pantoja. Você sofreu uma queda dura, e


precisamos de todos bem dispostos, pois como o padre lhe disse, estamos
quase certos de que esse era apenas o filho do Leviatã. O pior ainda nos
aguarda. E, agora que você viu que o bicho existe mesmo, não tem mais
motivos para duvidar do restante dos relatos. Kraken, Leviatã, tudo
aparentemente verdade. Ao que consta, outros tentaram chegar a
Panaceia antes de nós. E pelo visto fracassaram.

– Nós vamos conseguir, Edmundo! Eu confesso que fui pego de


surpresa nesse ataque, mas agora estou preparado. Agora podem vir
Leviatã e seu filho, ou também o Kraken, não importa. Vamos destroçá-los.
Vamos fazer com que eles sintam o peso de nossa vingança!

– Lembre-se de que nosso objetivo é outro, Pantoja. Não queremos


nos vingar deles, tampouco creio ser viável destroçá-los. O que desejamos
é atravessar o mar nórdico e chegar do outro lado ilesos, vivos, para
depois seguirmos até Panaceia e ver se encontramos a cura para o vírus.

– Edmundo está certo, Pantoja. Não vamos abandonar nossa


estratégia. Precisamos focar naquilo que está ao nosso alcance, dentro de
nossas possibilidades reais. Ainda vamos manter o plano de atraí-los e
jogar a isca longe. Espero que eles apareçam simultaneamente, pois
confesso que não sei se teremos condições de lutar novamente com um
desses monstros, especialmente o maior deles.
Nesse momento, apareceu entre as nuvens um vulto escamoso de
uma serpente volumosa. Sobre as ondas, lentamente elevou-se como um
recife de ouro aquela crista incendiada. Dois globos de fogo miravam na
direção deles, e Pantoja ficou paralisado de tanta admiração. Sem dúvida
se tratava da cabeça do Leviatã, com a face sulcada por listras verde e
púrpura. Pantoja ficou totalmente absorto em seus pensamentos. Ele
imaginava como seria maravilhoso ter um animal tão poderoso assim sob o
seu comando. Todos finalmente seriam obrigados a reconhecê-lo como
seu mestre, a acatar cada ordem sua. A elite iria se curvar diante de sua
presença, apavorada com qualquer sinal seu de desaprovação. As massas
de trabalhadores iriam construir estátuas gigantescas para honrar seu
salvador. Pantoja, o guerreiro empedernido que regressa com a cura e o
poder! Ele seria visto praticamente como um deus! Se ao menos ele
pudesse domar aquele monstro fantástico...

– Pantoja! Acorda! O que você está fazendo aí parado? Não


percebe que o Leviatã avança para nós com toda a fúria? É agora ou
nunca! Precisamos aguentar até o Kraken surgir também, para que o
padre Ramalho possa colocar o plano em ação.

Despertado de seu estado letárgico, Pantoja correu para se colocar


a postos, com o machado em riste. A aproximação do Leviatã acontecia
em alta velocidade, fazendo o coração dos três disparar e a respiração se
tornar ofegante. Quando o perigo se coloca de forma tão escancarada
assim, a adrenalina não permite que o corpo relaxe em hipótese alguma.
Todos os músculos deles estavam retesados. Suas mentes ficaram em
branco. Nada mais existia no mundo além daqueles tentáculos enormes e
aqueles globos em chama mirando em sua direção. Foi quando o milagre
aconteceu.

Atraído pelo barulho e pelo cheiro da carne fresca de ovelha,


emergiu bem ao lado da embarcação um enorme dragão marinho. Era o
Kraken, que não ousava invadir o território de Leviatã há décadas. A
recompensa extraordinária, pelo visto, o fez mudar de idéia. Para disputar
os mesmos peixes de sempre, o risco não compensava. Cada um parecia
viver dentro de regras tácitas naquele grande mar, respeitando o território
imaginário do outro. Talvez instigado pela curiosidade, talvez pelo desejo
de uma aventura para quebrar a rotina, o fato é que o Kraken apareceu
para reclamar seus direitos sobre as vítimas também. Não era justo o
Leviatã ficar com tudo, só porque aconteceu de a embarcação navegar
pelo seu lado do oceano, por puro acaso.

– Agora, padre! Jogue o mais longe que puder a carne da ovelha!


Vamos torcer para que a natureza desses bichos faça o restante do
trabalho.

O padre, de forma automática, lançou os nacos da carne suculenta


como um atleta olímpico lançaria seu disco numa prova final. Colocando
todas as forças que tinha e também as que não tinha – ou não sabia que
tinha, padre Ramalho jogou metros afora aquele prêmio a ser conquistado.
Agora só restava esperar e torcer para que o plano funcionasse. E
funcionou.

O Kraken foi o primeiro a abandonar os alvos da embarcação e


partir em direção àquela isca fácil. Se o Leviatã o ignorasse, cada um teria
uma farta refeição. Na verdade, o Leviatã teria um prato ainda mais farto.
Se o Leviatã fosse racional, ele claramente levaria essas coisas em conta
na sua equação. Se o Leviatã tivesse bom senso, ele deixaria o Kraken
partir com a ovelha, e avançaria para o ataque à embarcação. Mas isso só
se o Leviatã pensasse com frieza, sem paixão. Sua constituição era de
natureza distinta. Ele jamais poderia admitir que o Kraken, aquele dragão
intrometido, ficasse com a sua ovelha! Não! Isso era inadmissível.

Seu opulento corpo se virou na direção do Kraken. Sua enorme


calda bateu com força na água, e seus dentes afiados ficaram totalmente à
mostra quando suas mandíbulas se abriram. O Kraken conheceria a fúria
do Leviatã, e de uma vez por todas, saberia quem manda naquele oceano
todo. Como se pudesse pressentir estas ameaças, o Kraken partiu em
retirada acelerada. O Leviatã logo foi em seu encalço. A imagem dos dois
monstros em perseguição e fuga foi ficando cada vez menor da
embarcação, até praticamente desaparecer como pontos minúsculos no
horizonte. O caminho estava livre até a segurança em solo firme nas
margens do mar nórdico.
Capítulo 8: Ezequiel

O alívio ao colocar os pés em terra firme novamente era


indescritível. O padre estava extasiado com o sucesso de seu plano, que
via como fruto de sua fé inabalável em Deus. Aqueles monstros testaram
sua convicção religiosa, fizeram padre Otávio se sentir abandonado por
Deus por alguns segundos. Mas logo ele recobrara a fé, e graças a isso
estava salvo agora. Nunca se sentiu tão especial, tão protegido pelo Pai.

Pantoja ainda estava abalado demais com tantas emoções. Então


era verdade que tais monstros existiam? Não era tudo invenção da elite,
conforme o Sábio Hans tantas vezes dissera? Ele ainda teria que trabalhar
melhor essas novidades em sua mente. E aquele monstro, o Leviatã... que
perfeição da natureza! Claro, Pantoja estava muito feliz de estar são e
salvo, longe da ameaça marítima. Mas não podia ocultar um pouquinho de
lamento que trazia consigo, por deixar para trás aquela máquina poderosa.
Se ao menos fosse possível domá-la...

Já Edmundo estava explorando o território à sua volta. A poucos


metros de distância havia um enorme matagal, provavelmente o começo
da floresta que teriam de atravessar para chegar ao seu destino. Como
não havia tempo a perder, eles partiram mata adentro, a despeito do
cansaço corporal.

Quase chegando no final da floresta, Pantoja pensou ter visto


alguém atrás de uma árvore. Fiz sinal para Edmundo, que colocou a mão
no cabo do machado enquanto se aproximava lentamente do local
indicado. Pantoja fazia o mesmo pelo outro lado, enquanto o padre Otávio
aguardava. O barulho de folhas secas sendo pisoteadas redobrou a tensão
deles, e num salto em conjunto cercaram o bicho. Todos deram um grito
em uníssono.

Era um homem! Uma barba branca que chegava à altura do umbigo,


as costas curvadas, as pernas magras como caniços, e os dentes
totalmente podres. Após o imenso susto, Edmundo e Pantoja tentaram se
acalmar, enquanto o padre fazia uso da palavra:
– Quem é você? Fala a nossa língua? O que está fazendo aqui,
sozinho no meio desta floresta?

– Calma, padre. São perguntas demais. Acho que ele também ficou
assustado. Vamos, beba um pouco desta água, meu senhor...

O velho recusou a oferta com movimentos bruscos das mãos, e


começou a falar, muito agitado:

– Saiam logo daqui. O que vieram fazer aqui? Não percebem? Vão
todos morrer! Vieram em busca de Panaceia, não é mesmo? Seus idiotas!
Como foram acreditar nisso? Foram enganados! Todos vocês!

– Fique calmo, velho! Você não está falando coisa com coisa. Como
sabe sobre Panaceia? Você já esteve lá?

O velho parecia em transe agora, fixando seus olhos no além e


parando de mexer as mãos, enquanto repetia como um autômato:

– Panaceia... Panaceia...

– Sim, velho, Panaceia! Você mencionou o nome. Já esteve lá?


Onde fica?

– Panaceia... Panaceia...

– Já sabemos que você conheceu Panaceia. Queremos descobrir o


que você sabe sobre o lugar!

O velho de repente saiu do transe, e recuperou o agito de antes:

– Não sejam burros! Eu já disse que foram enganados! Bestas!


Como puderam acreditar em Panaceia? Como foram acreditar neles?
Querem encontrar a cura? Então parem de procurar por aí e olhem para
dentro de vocês mesmos! Olhem para seus corações!

– Qual o seu nome, velho?


– O que? Meu nome? O que isso importa? Tanto faz qual o meu
nome! Alguns me chamam de Ezequiel, outros de Jeremias. Mas já me
chamaram de Cassandra também. É verdade que muitos tentam se passar
por mim, mas não são nada mais que embusteiros! Agora esqueçam o
nome e prestem atenção no que eu digo: saiam já daqui. Desistam de
Panaceia! Essa busca eterna vai gerar apenas mais angústia e
lamentação. Fujam! Voltem para o buraco de onde vieram!

– Vamos, meus amigos. Já deu para perceber que desse pobre


velho não vamos arrancar nenhuma informação útil.

– O padre está certo. Vamos embora, Edmundo. Vamos deixar esse


velho maluco onde o encontramos. Ele não bate bem da cabeça.

Edmundo seguiu os outros dois, mas menos convencido de que não


havia sabedoria alguma naquela aparente loucura. Voltou seu olhar na
direção do velho uma vez mais, seguro de que aquele rosto era familiar.
Onde ele já tinha visto aquela fisionomia? Por um instante, veio à sua
memória o rosto do Sábio Hans. De fato, ele dava uns ares com o Sábio,
que andava sumido fazia algum tempo, recolhido sem contato com o
mundo externo em sua torre. Edmundo pensou: “Não, não é possível. Não
pode ser”. E deu com os ombros, seguindo viagem com os outros.
Capítulo 9: Panaceia

Após duas horas de caminhada, os primeiros raios de luz


sinalizaram que a floresta ficara para trás. É com uma imensa sensação de
júbilo que eles respiram o ar menos rarefeito dos campos que se abrem à
sua frente. Um alívio incrível: o pesadelo estava no passado. No futuro, a
esperança renovada. A possibilidade de chegar a Panaceia e encontrar a
cura. Pantoja era o mais eufórico de todos:

– Vamos, meus companheiros! Panaceia está a poucos passos de


distância. Eu disse que conseguiríamos! Vamos logo pegar o que é nosso
por direito!

– Recomendo mais cautela, Pantoja. Ainda não sabemos ao certo o


que nos espera em Panaceia.

– Seu pessimismo me cansa, Edmundo. Será que não percebe nem


agora o que conquistamos? Veja quantos obstáculos que pareciam
intransponíveis nós ultrapassamos. Se dependesse de sua avaliação, não
teríamos enfrentado nem o primeiro deles. Ainda estaríamos em Atarax
questionando se Panaceia existe mesmo ou não.

– Eu reconheço que sempre duvidei mais das coisas, Pantoja. Mas


creio ter bons motivos para tanto. Vi gente demais quebrar a cara por
alimentar falsas esperanças. Acho que o otimismo comedido é menos
perigoso. Ou ainda melhor, prefiro o realismo. Não chego ao extremo
daqueles que afirmam que o pessimismo é o realismo de quem conhece
os fatos. Mas aprendi a respeitar as pessoas mais céticas e desconfiadas.
Há desgraça demais nesse mundo...

– Sim, há. Mas para todas estas desgraças nós acharemos a cura!
Afinal, a maior de todas as desgraças é o vírus cole, e tenho certeza que
encontraremos seu antídoto em Panaceia. Atarax vai ficar ainda melhor do
que era antes do vírus. Todos terão aprendido com essa fase sombria a
importância da paz, e viveremos todos como irmãos após extirparmos essa
epidemia de lá.
– Pantoja, até eu estou mais animado, e você deve recordar como
considerei essa aventura uma insanidade. Mas discordo também de sua
excessiva esperança. O único paraíso que podemos almejar está no Reino
dos Céus, ao lado do Senhor!

– Padre, façamos assim então: você busca seu paraíso que eu


busco o meu. Não me interessa o Reino dos Céus, pois quando eu morrer
serão os vermes que terão direito sobre meu cadáver. Eu quero construir
um paraíso aqui e agora, nesta vida, a única que existe!

– Não entendo porque devemos buscar tanto um paraíso, de um tipo


ou do outro. Sim, posso compreender que a ideia em si nos traz conforto.
Mas ideias têm consequências e eu já vi muita atrocidade ser praticada
nesse mundo em nome de um nobre ideal. Em vez de correr atrás de um
alvo impossível, não seria mais prudente se aceitássemos com maior
resignação as imperfeições da vida?

– A prudência é para os covardes, Edmundo. O padre busca uma


perfeição mística, inexistente. Mas eu busco a construção de uma
sociedade livre, inclusive desse maldito vírus, e conto com as bases
científicas de minha ideologia para tanto.

– Seu radicalismo e suas certezas te cegam para a realidade


complexa à sua volta, Pantoja.

– Quando se sabe racionalmente qual o ponto certo de chegada, ser


radical é uma obrigação, Edmundo. O extremismo na defesa da verdade
não é vício, mas virtude!

– O problema é você realmente ter certeza quanto a essa verdade...


essa rigidez excessiva é perigosa. Veja o bambu. Ele é flexível, mas nem
por isso deixa de ser resistente. Num temporal, ele pode resistir mais que
um tronco duro, que pode ter sua raiz arrancada de uma só vez.

O padre interrompeu o debate filosófico para trazê-los de volta à


planície. Agora era o momento de achar Panaceia e buscar a cura. Depois
eles poderiam digladiar-se à vontade com suas esgrimas intelectuais.
– Rapazes, deixemos a disputa ideológica para depois. Que tal
avançarmos logo na direção de Panaceia? Confesso que estou ansioso
para ver o que vamos encontrar por lá. Se o bom Deus quiser, a cura
estará disponível bem diante de nossos olhos.

Os outros dois concordaram que o momento não era adequado para


conversas, e sim para atitudes. O estrago que o vírus causava em Atarax
aumentava de forma exponencial. Os três se puseram em marcha mais
acelerada. Após algumas horas, Pantoja avistou um portão velho,
enferrujado e entreaberto. Saiu em disparada. Ao chegar, soltou um berro
estridente:

– Panaceia! Enfim, chegamos!

As letras estavam bem gastas, mas ainda se podia ler claramente o


nome inscrito. Edmundo e padre Ramalho correram ao encontro de
Pantoja. Mas este já tinha partido como um foguete para dentro do novo
mundo desconhecido.

Qual não foi a decepção de todos ao ter os primeiros contatos


visuais com aquele lugar tão sonhado! Especialmente Pantoja parecia
muito desolado. A cada canto que seus olhos perscrutavam, uma nova
estocada em seu coração. Cenas de abandono por todo lado, um lugar
totalmente devastado, uma verdadeira cidade fantasma! Não havia sinal de
vida em canto algum, muito menos algo que se parecesse com a cura.
Pantoja estava visivelmente abalado. Edmundo, apesar da vontade de
fazê-lo, não disse o arrogante “eu avisei”. Ao contrário, partiu em consolo
de Pantoja:

– Ainda poderemos encontrar alguma coisa útil por aqui, Pantoja.


Não vimos nem a décima parte de Panaceia. Pode ser que mais para
dentro nós encontremos algo. Não é verdade, padre?

Mas o padre Ramalho também estava em estado de choque. Um


pouco menos perturbado que Pantoja, mas não em condições de refletir
sobre a caridade de sua religião no momento. Pensar nos outros era pedir
demais para alguém que chegou até aqui e foi abandonado por seu Deus
justo nesse instante. Padre Ramalho chegou a questionar porque Deus
não o levou logo de uma vez naquele mar nórdico, quando sua vida correu
mais perigo.

Por que mantê-lo vivo nessas aventuras doidas apenas para


esfregar-lhe na cara agora a falta de sentido para tudo aquilo? Era cruel
demais! Como um atleta olímpico que se prepara a vida inteira para
competir milésimos de segundo com seus adversários, apenas para torcer
o tornozelo na última volta. Não, o padre Otávio de Ramalho
definitivamente não podia compreender. Por mais que ele tentasse
resgatar todos aqueles ensinamentos bonitos ao longo de sua preparação
teológica, na hora em que ele era a vítima, e não os outros, faltava-lhe
sabedoria para oferecer consolo. Seu coração parecia esmagado. A dor
era física, e afetava o funcionamento isento de seu cérebro.

Suas angústias foram quebradas por um brado retumbante de


Pantoja. Ele avistara a alguns metros de distância algo que parecia um
laboratório. Ainda há esperança! O povo de Panaceia pode ter deixado a
cura ali, para quem tivesse a determinação e a coragem de buscá-la até o
fim. Era isso! Um último obstáculo, uma última provação para saber quem
era realmente merecedor da cura. Pantoja saiu correndo naquela direção.
Os demais foram atrás.
Capítulo 10: O laboratório

Chegando ao local avistado, de fato se tratava de um grande


laboratório. Pantoja forçou a porta, e com o auxílio de Edmundo conseguiu
abri-la. O local parecia deveras bagunçado, mas ainda apresentava sinais
de atividade recente. Havia papéis por todo lado, cadernos de anotações e
alguns tubos de ensaio ainda cheios com líquidos coloridos. Os três
começaram a chafurdar cada canto do recinto em busca de alguma
esperança.

Foi o padre Ramalho quem prendeu a atenção dos demais quando


deixou escapar um profundo “meu Deus”. Ele segurava um caderno preto
com anotações, que foi rapidamente arrancado de sua mão por Pantoja.
Este se pôs a ler seu conteúdo, extremamente agitado. Edmundo lançou
um olhar interrogativo para o padre Ramalho, mas ele estava atônito, e
apenas balançava a cabeça na horizontal. Edmundo percebeu a gravidade
da coisa imediatamente.

Pantoja não conseguiu nem sequer terminar a leitura. Já no terceiro


parágrafo ele começou a passar muito mal, sentindo forte dor no braço
direito e falta de ar. Respirava com dificuldade, ofegante. Levou
instintivamente suas duas mãos até seu peito, deixando o caderno cair no
chão. Em seguida, desabou como vítima de um nocaute, ficando
inconscientemente estirado no chão gelado do laboratório.

O padre finalmente voltou à Terra, atraído pelo barulho, e reuniu


forças para acudir Pantoja. Sentou-se e colocou a cabeça deste sobre
suas pernas, dando alguns tapinhas no rosto de Pantoja para ver se ele
despertava. Em vão. O coitado parecia morto. Padre Ramalho era incapaz
de reanimá-lo.

Enquanto isso, Edmundo rapidamente coletou o caderno do chão e


se pôs a ler com atenção cada palavra.
Capítulo 11: O delírio

Pantoja abriu os olhos e olhou ao seu redor. Estava num lugar muito
calmo, com paredes brancas em volta. Viu algumas crianças brincando do
lado de fora, num lindo jardim. Sem entender direito onde estava, percebeu
que um velho se aproximava calmamente dele. Conseguiu reconhecer seu
rosto, apesar da ausência daquela longa barba. O velho disse numa voz
muito suave:

– Olá, Pantoja. Nós estávamos aguardando você. Seja bem-vindo


aqui.

Pantoja falava com certa dificuldade:

– Onde estou?

– Você está em Panaceia, meu filho. Não era isso que você
desejava?

– Sim, mas é que... nada se parece com aquilo que imaginei. E a


cura... onde está a cura? Eu preciso regressar a Atarax e levar a cura...

– Uma coisa de cada vez. Por que você precisa fazer isso?

– Ora, como assim? Porque Atarax conta comigo, depende de mim


para sua salvação!

– E o que te faz tão seguro disso?

– Não entendo sua pergunta. Se não for eu, então quem? Eu sei o
caminho da cura. Eu sempre acreditei em Panaceia!

– Mas agora que você viu o que é Panaceia, ainda acredita que seu
destino é levar a cura para Atarax?
– Não sei, não sei... por que você está me fazendo essas
perguntas? Não vê que estou confuso?

– As perguntas podem ajudar a dissipar essas nuvens de confusão


em sua mente. Não posso garantir que você vá gostar das respostas, mas
se você realmente quer saber a verdade...

– Eu quero!

– Então responda: por que sempre acreditou com tanta veemência


que era o seu destino salvar Atarax? O que te fez tão especial assim?

– Eu não sei!

– O que você sentia quando pensava ter este destino redentor,


quando repetia para si mesmo que era o único capaz de guiar Atarax na
direção certa da cura?

– Ora, eu sentia prazer, regozijo.

– E por quê?

Já impaciente com as perguntas incômodas, Pantoja estourou aos


berros:

– Porque eu podia olhar de cima para os outros cidadãos de Atarax!


Porque isso fazia eu me sentir superior a eles! Eu tinha a certeza de ser o
detentor de uma grande Verdade, e isso me dava imenso poder. EU era
um escolhido, um ser ungido, eu sabia das coisas, e ponto final para
quaisquer angústias. Satisfeito?!

O velho balançou a cabeça em sinal de aprovação, com piedade


daquele corpulento homem que agora soluçava feito uma criança
desamparada, que acaba de descobrir que o pai não é perfeito. Mas sua
crise emocional durou pouco. Veio lá de dentro de suas entranhas uma
força incontrolável, e Pantoja gritou, enquanto tentava esticar seus longos
braços na direção do pescoço do velho:
– Saia já daqui, seu velho imbecil. Quem você pensa que é para me
fazer essas perguntas e insinuar coisas sobre mim? O que você sabe da
minha vida? Vamos, desapareça antes que eu te esgane!

O velho se retirou com um profundo olhar de tristeza, enquanto


Pantoja berrava:

– Socorro! Socorro! Alguém me ajude! Alguém me tire daqui! Estou


preso aqui e um velho maluco quer abusar de mim!

Outro homem, também vestido de branco, mas com idade um pouco


menos avançada que o antecessor, entrou correndo no quarto:

– O que foi, meu filho? O que lhe perturba?

Pantoja respirou aliviado, por não estar mais sozinho, e também por
reconhecer alguma familiaridade naquele rosto. Na verdade, nem era
muito diferente do velho de antes, mas tinha menos rugas, e um olhar bem
mudado, mais jocoso talvez. Agora Pantoja reconhecia: havia alguma
semelhança entre ele e o Sábio Hans. Ao se dar conta disso, Pantoja
imediatamente se sentiu mais confortável, mais seguro. Ele então disse ao
homem de branco:

– Aquele velho que estava aqui antes, ele era um maluco, um


aproveitador! Fico feliz que esteja aqui agora.

– Pode ficar tranquilo, meu caro. Estou aqui e não vou te deixar
sozinho. Nunca abandono um amigo!

– É verdade que estou mesmo em Panaceia?

– Sim.

– Mas... e a cura? Não era para ter a cura aqui?

O homem apenas sorriu. Depois, calmamente, disse:


– Não, meu jovem. Você deve ter se confundido. Panaceia não tem
a cura que você procura. Mas isso não quer dizer que ela não existe.

– Não? Então quer dizer que há a cura, afinal?

– Mas claro! Você realmente achou que não haveria a cura? O


mundo seria muito cruel dessa forma.

– E onde ela está? Eu preciso chegar até ela! Eu preciso salvar


Atarax!

– Ela fica num lugar chamado Quimera. Não é muito longe daqui.
Mas também não é nada fácil chegar lá. Antes é preciso enfrentar o dragão
do deserto e depois o vale das tempestades. Mas não é uma missão
impossível, especialmente quando se tem coragem e esperança.

– Isto não me falta! Não tenho tempo a perder. Preciso partir logo
em busca de Quimera. Muito obrigado, meu senhor. Por sinal, qual o seu
nome mesmo?

– O nome não é importante. Já fui chamado de muitas coisas nessa


longa vida. O que importa é você chegar até Quimera e encontrar a cura.

– Está certo, está certo. Eu vou agora mesmo! Até logo, e muito
obrigado.

O homem levantou-se e saiu caminhando pela porta. Pantoja teve a


leve impressão de ter visto uma espécie de sorriso mefistofélico no rosto
dele. Mas era óbvio que ele estava enganado.
Capítulo 12: A bactéria

O padre tentava de tudo para trazer Pantoja de volta à vida, mas


nada surtia efeito. De repente, ele viu algum sinal de movimento em seu
corpo. Mas era alarme falso. Um resquício de vida que foi capaz apenas
de alterar levemente as feições do moribundo. Se antes ele estava
contorcido, agora ele parecia apresentar um leve sorriso. E foi assim que
Pantoja deu seu suspiro final.

Padre Ramalho fez o sinal da cruz e começou a balbuciar


expressões em latim. O religioso estava claramente afetado com tudo
aquilo. Ele sentia que o fim estava perto, e que não havia mais nada que
os homens pudessem fazer para conter a fúria divina. Era chegada a hora
do acerto final. O julgamento teria início, e o padre só rezava para estar
entre os salvos. Ele viu um grande homem se aproximar, com um leão ao
seu lado. O homem usava uma mitra branca e carregava uma balança na
mão. Ele sabia que seu coração estava prestes a ser pesado. E sabia
também que o peso não era dos mais leves.

Edmundo acabara de ler as anotações. O que ele descobriu ali não


era nada animador. Os pesquisadores de Panaceia tinham realizado
inúmeros testes para conter um vírus muitíssimo parecido com o cole, mas
sem sucesso. O que as mais recentes descobertas apontavam é que uma
bactéria, chamada pragma, fora capaz de derrotar o vírus, mas não sem
um efeito colateral perverso. Na verdade, a própria bactéria se transformou
no mais letal risco para Panaceia. Seu uso sem controle foi responsável
pelo desaparecimento de seu povo. Mas Edmundo não estava convencido
de que precisava ser assim. Ele era um engenheiro químico, e tinha visto
naquelas anotações alguns indícios animadores. Era preciso agir com
rapidez.

Com a pequena amostra que levou do vírus cole, Edmundo deu


início a uma série de experimentos, ministrando com cuidado o uso da
bactéria. Ele realizou diversas tentativas, variando o tempo todo a
quantidade de bactéria que ele colocava em contato com o vírus. Após
exaustivas sete horas de experiências, oscilando entre a esperança e o
desespero, finalmente Edmundo encontrou uma mistura que parecia
produzir algum equilíbrio estável. O vírus não era eliminado, é verdade.
Mas tampouco a bactéria se tornava letal. Com doses homeopáticas e
controladas de pragma, foi possível reduzir bastante o poder de destruição
do cole. Eureca!

Não restava mais tempo para a otimização do resultado. Atarax


corria enorme perigo, e a essa altura dois terços do povo já deviam estar
contaminados. Edmundo precisava retornar urgentemente, mesmo que
sem a cura definitiva. O que ele conseguira não era o ideal, mas pelo
menos era alguma coisa. O vírus ainda ficaria espalhando a agressividade
por Atarax, mas o estrago seria menor. A vacina obtida da bactéria poderia
tornar a vida suportável. Já era uma grande conquista.

Claro que a notícia causaria decepção em muitos, principalmente


em todos aqueles que alimentaram maiores esperanças de receber a cura
definitiva. Edmundo estava ciente dos protestos que seriam feitos contra
suas descobertas. Mas esse era um preço que ele estava disposto a pagar
para impedir a completa destruição de seu povo. Popularidade nunca foi
uma meta sua. Ele faria aquilo que considerava certo, embora também
lamentando suas conquistas incompletas. Era isso ou nada.

– Vamos, padre Ramalho! Eu consegui encontrar um equilíbrio que


parece estável. Não temos a cura, mas podemos oferecer ao povo de
Atarax uma alternativa melhor que o quadro atual. Levante-se, por favor!
Temos que correr. E talvez sua ajuda seja necessária para acalmar o
povo, quando souberem que não conseguimos a cura completa, e sim uma
bactéria que produz efeitos colaterais indesejados.

Padre Otávio de Ramalho parou de fazer bolas de papel com as


folhas que arrancara de um caderno jogado no chão, e olhou bem nos
olhos de Edmundo. Suspirou e disse:

– Vá você, Edmundo. Eu não tenho mais o que fazer em Atarax.


Deus quis que eu encontrasse a morte aqui em Panaceia. Deixe-me aqui.

– Nada disso, padre! Você vem comigo. Nem todos vão vibrar com
nossa conquista, é verdade. Mas aquele que quer agradar a todos, não
agrada a ninguém. Além disso, devemos fazer o que é certo. A cura
imperfeita sem dúvida é preferível à destruição certa.
Após alguns segundos de reflexão, o padre disse:

– Você está certo, Edmundo. Entrei em pânico com tudo isso, mas
agora vejo que você está certo. Afinal, mitigar os estragos do vírus já é
alguma coisa, não? E talvez eu seja mesmo útil em Atarax ainda. Se o
povo não poderá mais ter a esperança de um paraíso terrestre, como
sonhava nosso colega Pantoja, que ao menos eu possa lhe fornecer uma
pitada de conforto com a noção de um paraíso celeste após nossa
passagem nesse mundo frio. Sem esse consolo, creio que muitos não
seriam capazes de suportar a travessia...

– Isso mesmo, padre. Assim que eu gosto de ver! Mais ânimo,


porque enfrentar a revolta popular não será tarefa fácil. Talvez faça o
Leviatã parecer brincadeira de criança! Quando as expectativas são
colocadas muito no alto, a decepção é certa. Por isso me incomoda quem
promete coisas demais, quem vende ilusões. A onipotência não nos foi
dada pela natureza. Mas, se não estamos muito incomodados com quem
fica com os créditos, então é possível fazer muita coisa boa, melhorar
bastante nossas vidas, mesmo nesse mundo tantas vezes cruel.

Edmundo conseguiu arrancar um sorriso do padre. Em seguida,


estendeu a mão para ajudá-lo a se erguer. Atarax os aguardava. Era hora
de partir para enfrentar a dura realidade pela frente.

***

FIM

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