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DESCIDA AOS INFERNOS

Prólogo – aonde o horror termina


A cortina de chuva que escorria pela vidraça era impotente para remover a película de sujeira
acumulada ha tempos na janela do quarto. Insinuando-se por um painel de vidro quebrado, a mão
gelada do vento parecia folhear um maltratado volume aberto sobre a escrivaninha em frente da
janela.  Do andar de baixo, chegavam os sons de passos de várias pessoas, acompanhado de um
doce aroma de podridão, tão intenso que quase se poderia tocar. Em alguns instantes o ranger da
escada de madeira antecipa a chegada ao umbral da porta, de um homem corpulento e de pernas
arqueadas, envolto em surrada capa de chuva. Após endereçar alguns comandos para a equipe
escada abaixo, o Inspetor Marinho Santos busca o interruptor da luz à direita da porta – não é
sempre aí que eles ficam? As decepcionantes luzes apenas acrescentam uma cansativa pátina
amarelecida aos móveis e objetos do interior do cômodo. Pouco tempo foi necessário para que o
policial checasse o guarda-roupas, uma arca e o catre desarrumado, nada encontrando de
interessante. O protagonista do ambiente estava ali, junto à janela, sobre a escrivaninha. As páginas
do volume, movidas pelo vento frio, pareciam convidar o recém-chegado a desvendar em seu
âmago a tragédia ocorrida no pardieiro. Sentando-se e tomando o livro em suas mãos, o homem
inicia a jornada que em momentos se transformaria numa verdadeira DESCIDA AOS INFERNOS.
O diário de um maldito
“A maioria das pessoas acredita no inferno, mas em termos fantasiosos demais. O resultado
definitivo e irrecorrível de um julgamento divino, pintado em cores literalmente dantescas. Ainda
no plano terreno, tais pessoas creem que uma espécie de antecipação das agonias infernais está
associada a algum imenso e aterrador drama pessoal. Grandes misérias de várias naturezas que se
conjugam para esmagar o ser humano, transformando sua existência num inferno particular. Perda
de entes queridos, pobreza, doenças e por ai afora. Permito-me a imodéstia de negar tudo isso. Se
aprendi alguma coisa no decorrer de minha longa vida, foi decifrar o que passei a chamar de
“Protocolo de Hades”.”
“Aos poucos fui percebendo o padrão de construção de um inferno em vida, o único que realmente
existe. Como o processo se inicia, como evolui e como acaba. Curiosamente tudo começa com a
felicidade. Surpreendente, não? Nem tanto, caro e eventual leitor. Afinal, todos buscamos na vida
algo que chamamos de “felicidade”. É algo intrínseco em nós, profundamente enterrado na alma.
Nossa natureza biológica vem a seguir, determinando que essa busca se confunda com a busca e
com o encontro do parceiro ideal. A famosa “alma gêmea”. Quando finalmente a encontramos (ou
acreditamos tê-la encontrado) é que as portas do inframundo se fecham, enterrando-nos
inapelavelmente. Essa é a sutileza diabólica do “protocolo””.
“Mesmo quando as ferroadas do sofrimento se iniciam, não tentamos fugir em tempo. Nosso
reflexo, ao contrário, é tentar restaurar o relacionamento que tínhamos e que nos habituamos a
considerar nossa própria felicidade. Os problemas a princípio nos parecem banais, idiotas mesmo e
os conflitos decorrentes são como um trovão em céu azul. O desejo instintivo de não ver a realidade
cega-nos a ponto de não percebermos que, por trás da máscara da pessoa amada, a face hedionda de
um monstro surge. Cada dia mais e mais, até que nosso atormentador já não se dá mais ao trabalho
de ocultar sua natureza. Com o avançar do processo, as minúsculas reclamações vão sendo
substituídas por questionamentos mais profundos, friamente calibrados para atingirem as bases do
seu ser.”

“Muitos especialistas nos dizem que isso tudo faz parte de um típico relacionamento humano e que
devemos nos esforçar para preservá-lo. Principalmente quando existem filhos, sob a alegação
surrada de que “eles não pediram para vir ao mundo”. Tudo muito bonito, muito científico, muito
evoluído, porém totalmente ilusório. Aquele ser que uma vez amáramos, não é um ser humano.
Trata-se de um demônio, cuja única missão entre nós humanos é infernizar nossa vida.
Consequentemente, a prole híbrida que surge do nosso ingênuo envolvimento com aqueles seres, é
também diabólica. Ao menos em parte. No convívio cotidiano vamos aos poucos presenciando
cenas que revelam toda a extensão do horror do nosso inferno particular em construção. Aqueles
fragmentos de conversa que ao serem percebidos eram dissimulados, com o tempo já não o são. Nos
estágios finais, o grupo de demônios – já mencionei a prole, não? - parece deixar mais e mais pistas
do que estão urdindo: nossa destruição.”
“Entretanto, o mais horrível não é a consumação de tudo, nossa destruição final, mas antes o
processo que leva até lá. Algo assim como o caminhar doloroso do condenado em direção ao
cadafalso. Esse calvário se inicia pela dor moral da perda de um ideal, envereda pelo sofrimento
físico causado pela extrema irritação, chegando ao escaldante deserto da loucura. O fim?
Infelizmente não. Talvez possamos definir esta longa fase como o princípio do fim. Um dos muitos
arabescos do “protocolo” e também seu corolário, é que nossa destruição deverá necessariamente
ser autoinfligida. Ninguém te matará, pois são demônios, atormentadores, não anjos executores.
Como nosso instinto mais forte e profundo é, sem dúvida, a autopreservação, torna-se necessária
sua destruição por meio da loucura.”
“Você, meu caríssimo e desconhecido leitor ou leitora, deve a essa altura, estar se perguntando qual
terá sido a serventia destes estudos que ora divulgo. Haveria alguma rota de fuga? Alguma chance
de vencermos esta luta? Espero que tenha conseguido transmitir a verdadeira natureza do problema
e assim, qualquer um já terá descartado as soluções mais óbvias. Por exemplo, a fuga. Obviamente
os demônios te perseguiriam sem descanso. Ademais, na fase inicial do processo, estamos ainda no
campo da “sanidade” e é praticamente insuportável a ideia da separação da prole. No final dessa
etapa ainda nos parece possível a pura e simples eliminação da antiga “alma gêmea”, sendo o
natural medo da punição legal o que nos impede. Aqui existem duas possibilidades. Na hipótese de
não tentarmos essa solução extrema, o dilema permanece. Caso superemos esse temor e
consumemos o crime – na realidade apenas um ato de defesa contra um monstro inumano  Em
seremos lançados no abismo da loucura, pois a natureza demoníaca do oponente se revelaria
claramente. Em qualquer caso permanecemos presos em nosso Inferno.”
“Para concluir esse breve apanhado sobre a real natureza do Inferno, restaria tratar da fase final do
processo: a insanidade. O termo é, como já devo ter deixado claro, impróprio. Revela apenas o nível
de compreensão dos seres que se consideram “mentalmente sãos”. Em verdade, estas criaturas
apenas não alcançaram a iluminação e medem tudo e a todos pelos padrões da “normalidade”. Bem
ao contrário, as verdadeiras experiências e insights que nos fazem enxergar a realidade das coisas,
obrigatoriamente nos leva a comportamentos “insanos”. Simples assim. É nesse terreno,
desconhecido a princípio, que travaremos a batalha final contra o Mal.”
“Basta de teoria, porém. Relatarei agora o que penso ser a única chance que temos nesse
Armaggedon particular, ilustrada pelo meu próprio plano de ação. Naturalmente, amigo leitor, já
deverás ter deduzido pelo exposto anteriormente, que essa possibilidade de sobrevivência só existe
quando abandonamos a chamada “sanidade” e entramos no verdadeiro e definitivo campo de
batalha. Toda luta pressupõe conhecimento, tanto do inimigo como do terreno. Isso nos permite um
posicionamento favorável e aumenta nossas chances de vitória. Na verdade, sem tais premissas,
estamos condenados à derrota e à aniquilação total. Em meu caso, as hostes inimigas podem ser
divididas em dois grupos: a prole semi-humana e o arquidemônio, outrora “meu amor”. Quanto às
duas pequenas criaturas, sua natureza parcialmente normal é sua fraqueza. Creio que poderão ser
eliminadas facimente por quaisquer meios letais ao seu lado humano. São muitas opções à minha
disposição, mas não devemos nos esquecer que a outra metade, a diabólica, fornece àquelas
“crianças” uma malicia e esperteza anormais. Não se trata de abatê-las a tiros ou facadas. Isso não
funcionaria de modo algum. Há que superá-las com suas mesmas habilidades, sem esquecer de
separá-las de seu líder. Definida a arma, restava escolher o local do duelo. Uma lembrança dos
tempos quando ainda não tinha compreendido tudo, trouxe-me a resposta. O poço! Aquela estrutura
abandonada nos fundos do terreno, sempre fora uma imensa preocupação para mim e, ao mesmo
tempo um irresistível atrativo para as meninas. Claro que hoje já bem sei que tudo aquilo era apenas
uma das muitas artimanhas destinadas a atormentar minha alma... Pois bem, uma proposta de
brincadeira à beira do poço, um empurrãozinho, algumas pedras por cima e voilá!”
Mais difícil me parecia vencer o inimigo principal. Completamente demoníaco, sua argúcia supera a
de nós humanos facilmente. São, por assim dizer, profissionais da destruição e enfrentá-los com
sucesso é quase impossível. Infligir uma morte física, qualquer que seja sua natureza, é inútil. Uma
vez retirada a máscara humana, inócuos tiros ou facadas seriam recebidos com sorrisos de deboche..
Que arma nos resta então? Uma inconsequente visita a um obscuro sebo das imediações, forneceu-
me a resposta. Uma dádiva divina, sem dúvida. surrado opúsculo denominado “De Diaboli” - antiga
e esquecida obra de um monge português, recluso em séculos passados no Mosteiro de São Bento
no Rio de Janeiro, encontrei o que precisava. Em resumo, ao tratar da forma de eliminação de
demônios, o clérigo do passado nos ensina que os clássicos crucifixo e água benta, apesar da repulsa
que causam aos seres das trevas, são insuficientes para destruí-los, isolada ou mesmo
conjuntamente. O recurso mais eficaz é, em suas palavras, a “atomização” do antagonista. Pelo
termo o monge quer dizer qualquer forma de extermínio que fragmente extremamente o corpo físico
do demônio, impedindo sua reanimação pela alma danada. Tanto mais eficaz será o processo se for
levado a cabo por outros seres malignos. Confesso que a “receita” deixou-me perplexo. Como
implementá-la?”
“Já à beira do desespero por ter a salvação nas mãos e não conseguir colhê-la, recebi outra
orientação divina de uma forma extremamente prosaica. Ao passar ao lado da porta de acesso ao
porão inutilizado há anos, ouvi ruídos em seu interior. Frenéticos passinhos acelerados, sons de
garras a arranhar o piso de cimento e guinchos abafados. A sinfonia macabra não deixou nenhuma
dúvida quanto à sua origem, o número de criaturas por trás da porta e mesmo seu tamanho... Ainda
nos tempos em que eu cuidava da manutenção da propriedade, enormes ratos haviam invadido o
porão e o transformado num ninho. Com o passar do tempo, seu número e corpulência aumentaram
e não foram poucos os cães, gatos e mesmo vagabundos em busca de abrigo que desapareceram ao
descer às profundezas obscuras daquele cômodo. Que melhor forma poderia eu conseguir de seguir
os preceitos do monge? A quantos minúsculos fragmentos um corpo humano seria reduzido, após
ser trancafiado naquele porão na companhia bestial daqueles...seres malignos?”
“Assim pensado, assim programado. Para evitar qualquer possibilidade de fracasso, projetei e
preparei tudo para o dia seguinte, em sequência. A brincadeira com as “crianças” junto ao poço e
logo em seguida o convite à “amada” para descer ao porão sob qualquer pretexto. Caros leitores,
deixo-vos agora. Em breve retornarei triunfante como o único mortal a vencer o Mal e escapar do
Inferno!”
A mão elegante do Inspetor Marinho Santos folheou ansiosa inúmeras páginas do diário, sem
encontrar nada após o relato do plano. Páginas e mais páginas vazias, amareladas e meio coladas
pela umidade. Testemunhas mudas de que algo não saíra como o planejado. O ar pensativo e
ausente do policial foi trazido de volta das elucubrações pelo som de passos pesados subindo as
escadas. Simultaneamente ao lamento da madeira, a voz do auxiliar que trazia novidades:
- Inspetor! O pessoal já examinou toda a propriedade. Parece abandonada há tempos, só lixo, roupas
estragadas e comida idem... De interessante mesmo, só os esqueletos no poço, cobertos de pedras!
O Dr.Pacheco diz que são duas crianças de seus dez ou onze anos.
- E no porão? Nada?
- Também encontraram os restos de uma pessoa. Segundo o legista é...
- Uma mulher?
- Não, não. Um homem. Deve ter ficado preso lá dentro, já que a porta só abre por fora e o trinco
estava batido. Não deve ter durado muito, a julgar pelos ratos lá dentro. Tem uns que mais parecem
gatos! Jeito horrível de morrer... Ah.. outra coisa! Tem uma mulher lá embaixo que quer lhe falar.
Disse que foi quem ligou para o Departamento. Parece que já morou aqui. Era mulher do dono da
casa, ou coisa parecida...
FIM
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