Você está na página 1de 2

O sacolejar monótono do trem exercia um efeito quase hipnótico em Alceu.

As memórias de sua
vida de fracassos se sucediam, embaralhando-se com as imagens borradas pela janela suja. As gotas
da chuva que caía lá fora, lhe pareciam desenhar no vidro rostos grotescos, faces zombeteiras, como
se acostumara a enfrentar desde sempre. Após algumas intermináveis horas de viagem, o homem
desvencilhou-se do torpor que o dominava e se pôs de pé. Teria cochilado?

Devia estar chegando a São Marcos, seu destino final. Procurou abrir a janela do vagão, mas esta
resistiu galhardamente, entre rangidos da madeira e o trepidar do vidro no caixilho. Aquele micro
fracasso teve o dom de amargurar a alma de Alceu além do razoável, fazendo latejar a ridícula
cicatriz que ostentava na fronte. Lembrança de um banal acidente doméstico, parecia um L irregular
a lembrá-lo permanentemente de suas derrotas. Há tempos que tudo de valor que possuira um dia -
relacionamentos, bens, alegria - vinha sendo descartado, como um náufrago que lança carga
desnecessária ao mar. Bruscamente, o irritante guinchar do aço e o cheiro da graxa queimada dos
freios, anunciou que chegara. Pegou sua surrada maleta no bagageiro superior com um sorriso
amargo nos lábios. Perguntou-se ironicamente como toda uma vida podia caber numa mala tão
pequena? Em seguida, embarafustou pelo corredor do trem em busca da saída.

Saudou-o ao descer da composição, uma plataforma deserta, um frio anormal para um mês de maio
e uma neblina soberana. Sem dificuldade, encontrou a sala de espera da estação, tão deserta quanto
a plataforma que deixara para trás. Nada de passageiros, ambulantes ou funcionários e mesmo o
guichê de venda de passagens encontrava-se imerso em trevas. Na verdade - pensou ele - nada tão
estranho assim. Quando se candidatara à vaga de bibliotecário da paróquia de São Marcos, buscara
informações sobre a localidade. Pouco obteve de útil, além de descobrir que aquele fim de mundo
era pouco mais que uma cidade fantasma.

O vilarejo estivera mesmo para ser abandonado, pois seria inundado pelas águas de uma represa a
ser construída nas imediações. Salvou-o a crise econômica que há anos era cuidadosamente
cultivada pelos governos que se sucediam no poder. Em suma, um lugar perfeito para acolher um
diplomado em Letras, cujas portas profissionais tinham se fechado atrás de si. Não era mais
possível sobreviver na Capital, de aulinhas particulares e poemas que nunca eram publicados. Essa
certeza de não ter qualquer outra opção, funcionou como um tapinha de incentivo nas costas,
lançando Alceu na rua. A estação ocupava uma pequena e árida elevação, de onde se podia
descortinar toda a "cidade". A neblina reinante, como um manto marinho, deixava entrever apenas
os telhados ardósia e o campanário barroco da igreja.

À mente do recém chegado, vieram os acordes da "Catedral Submersa" de Debussy. Como na lenda
bretã, os sons difusos dos sinos e os cânticos dos monges pareciam brotar das ondas para logo
voltarem a ser engolidos pelo mar. Alceu iniciou a caminhada rua abaixo, sem ninguém encontrar.
Uma paródia de sua própria vida. Seus passos como que tateavam as pedras do calçamento
irregular. Na alma, a contraditória sensação de medo instintivo e de estar em casa. As vetustas
construções que o ladeavam pareciam desertas, apenas as janelas escuras, à semelhança de olhos
enormes, acompanhavam seu avanço. Num tempo impossível de determinar, chegou ele a uma
praça, onde ao fundo se destacava a pequena igreja. O frio e a umidade começavam a abraçá-lo,
fazendo com que Alceu apressasse o passo em busca de abrigo no templo. Já acostumado à
esmagadora ausência de seres vivos, sobressaltou-se ao divisar a figura do que parecia ser um
monge, vestida de negro e postada no pórtico da igreja. O titubeio inicial do caminhante foi logo
afastado pela sutil movimento de mãos do sacerdote, convidando-o a se aproximar.

- Seja bem-vindo, meu filho. És nosso bibliotecário de volta, não é?


- Sim, quer dizer.. Seu novo bibliotecário. Meu nome é...
- Alceu. Estava à sua espera. Entre. Deixei um pouco de alimento no scriptorium. Estás em casa,
não é mesmo? Vou me recolher...
- Espere...
Sua demanda ficou solitária a flutuar na atmosfera fria e nebulosa. Alceu penetrou no átrio sombrio,
absorvendo o denso aroma reinante, um misto de cera, poeira e algo mais. O único testemunho de
vida era o ressoar de seus próprios passos, amplificado pelas paredes de pedra. Nestas, algumas
velas penduradas travavam uma luta desigual com a escuridão. Talvez pela falta de alternativas, o
homem encontrou com alguma facilidade, tanto sua célula, quanto o scriptorium. Após largar sua
vida - ou melhor - sua maleta, sobre o catre do quarto, dirigiu-se à sala ao lado onde seu trabalho
seria realizado. Um cubículo de pouco mais de quatro metros quadrados, dominados quase
totalmente por estantes repletas de livros e pelo pó . Uma mesa de madeira bruta, encaixada numa
nesga de espaço deixado livre pelas caóticas estantes. No tampo empoeirado, uma broa de pão de
milho de idade indefinível e uma bilha de barro, presumivelmente cheia d'água, tampada por uma
caneca. À frente, um livro in quarto, penas e um vidro de tinta negra. Alceu ignorou o repasto e
acocorou-se num banco de madeira, alto e desconfortável. Suas mãos acariciaram as folhas do
volume manuscrito, como faria com alguma amada perdida no fundo de suas memórias. Pôs-se
então a ler.
"... ao chegar na estação, nem sombra de qualquer um. Nada de passageiros, ambulantes,
funcionários, ninguém. La fora, a neblina era espessa e..."
Um sacolejar mais brusco do trem, despertou Alceu. Assustado ante a perspectiva de perder sua
parada, buscou a maleta no bagageiro superior e disparou corredor a fora. La fora, um frio anormal
para um mês de maio o aguardava...

Você também pode gostar