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AS MEIGAS DA VILA

Os Arquivos B - Prólogo
Curitiba, sexta-feira, 4 de agosto de 2017
A noite já caíra sobre a cidade e com ela o frio, característico da época. Este ano, o inverno viera
reforçado, apesar de seco e ensolarado, produzindo assim belíssimos dias muito propícios para
passeios nos inúmeros parques da capital mais fria do país. Josafá, um ex-carioca, especializara-se
em reclamar do clima, quando não estava reclamando do relevo ou de qualquer outro aspecto da
cidade. Já residia ali há alguns anos, num pequeno apartamento do Pilarzinho. A localização seria
ideal caso ele gostasse de frio, já que se tratava de um bairro alto e cercado de matas, exposto aos
ventos e sujeito a médias de temperatura sempre algo menores do que no resto da cidade. Em
realidade, reclamava mais para mexer com seu irmão mais novo Marcus do que por efetivamente
não gostar do clima de Curitiba.
Caminhou preguiçosamente até a varanda do apartamento para iniciar o ritual de fechar todas as
portas e janelas e depois afundar-se no sofá para a maratona de filmes já muitas vezes assistidos. A
imprecação contra o frio da noite trouxe automaticamente à sua mente a figura do irmão e também
de seu sobrinho, Diego. Nunca conseguira superar - e muito menos explicar - a perda dos dois.
Aquela malfadada busca pelo "Gritador" na serra gaúcha, terminara em tragédia há mais de um ano.
Jamais se poderia imaginar que um hobby aparentemente inofensivo - a compilação de lendas e
fatos inexplicados de nossa terra - pudesse levar à morte de pai e filho. De pé em frente da varanda
já semi cerrada por uma porta metálica de correr, Josafá repassou os fatos horríveis em sua mente.
Pai e filho assassinados por algo ou alguém jamais identificado pela polícia, sua visita ao local dos
crimes, o reconhecimento dos corpos, a arrumação das coisas dos dois. A sensação de desamparo
após a morte de irmão e sobrinho, o esmagou de forma equivalente à perda da mãe, Dona Daisy, há
quase quarenta anos atrás. Estava só no mundo.

Provavelmente fora a saudade aguda que o levou a trocar a TV a cabo por um vasculhar sem
propósito definido das caixas que continham o material documental de Marcus. Fotos, mapas,
esboços de viagem, relatórios de aventuras passadas nos quatro cantos do Brasil. Esquemas toscos e
quase matemáticos, já que o talento da escrita não era exatamente uma qualidade de seu irmão. Dali
seguiu absorto e pensativo, até o quarto de empregada, onde tinha guardado os quadros de Diego. A
associação de pai e filho tinha essa marca, uma assinatura em forma de quadros representativos da
aventura da vez. Da porta do quarto de empregada, Josafá contemplava os volumes embrulhados em
papel pardo e a tristeza dominou sua alma. Já de volta à sala, ignorou os lascivos acenos da amante
de vidro pendurada na parede e sentou-se na mesa, ostensivamente de costas para a televisão.
Passava por sua mente uma forma de sacudir aquela incômoda sensação de ausência: revisaria um a
um os relatos de seu irmão e os quadros do sobrinho, elaborando textos que pudessem enfeixar as
aventuras dos dois depois de uma pesquisa sobre o tema. Seria uma homenagem e uma forma de
voltar a conviver com ambos através de suas expressões características.

O título do livro, quando e se chegasse a ser completado, já tinha até título. Seriam "Os Arquivos
B", como jocosamente Diego costumava denominar as pesquisas que fazia na companhia de
Marcus. Só não se propunha a narrar a aventura do Gritador, pois não gostaria de reviver e muito
menos descrever o trágico final que mudara sua própria vida.
Por onde começar? Qual caso deveria ser o primeiro a ganhar um formato literário? Escolheria a
partir dos secos esboços do irmão ou das pinturas do sobrinho? Por fim decidiu que seria bem mais
fácil escolher um quadro aleatoriamente e depois achar o relatório correspondente. Assim o fez.
Dirigiu-se novamente ao quarto de empregada e de lá retirou um quadro comprido e estreito, quase
da altura de homem, desembrulhando-o cuidadosamente.

"Eu non creo nas Meigas, mas habelas hainas" (antigo dito galego, popularizado pela sua versão
espanhola)

Das profundezas além do papel de embrulho, surgiu a figura de uma mulher de longos cabelos
vermelho-amarelados, pálida e sorridente. Uma típica beldade celta, pele muito branca, vestida em
escarlate, num tom mais profundo que os cabelos. Sua fisionomia exprimia um misto de candura e
erotismo, intensamente estimulante para muitos homens e incômoda para a maioria das mulheres.
"O moleque tinha mesmo o dom da arte..." - pensou Josafá. O pano de fundo da pintura retratava
uma série de casas muito familiar a ele: a Vila Rui Barbosa, no centro do Rio de Janeiro. Curioso, já
que aquele conjunto de casas havia sido demolido há décadas, lá pelos idos dos anos 70, quando
Diego ainda nem era nascido. Provavelmente se valera de descrições de seu pai, mas mesmo este
ainda era jovem quando aquele casario ainda estava de pé. Sua família vivera ali desde a chegada de
Portugal dos pais, em meados dos anos cinquenta. Toda a infância dos dois irmãos transcorrera
entre os muros daquela vila, incrustada no centro da grande cidade e apenas a demolição do
conjunto - fato que nunca ficara muito claro - os afastara de lá. Era uma verdadeira reprodução de
uma aldeia do norte de Portugal, principalmente do ponto de vista comportamental. Toda a vida
social girava em torno da Igreja de Santo Antonio, edificada  lateralmente à vila propriamente dita.
Em torno de seus rituais e acontecimentos, todos os habitantes giravam. Festas em dias santos,
leilões, quermesses, etc. "Bons tempos", pensou Josafá.Voltando à pintura, Josafá verificou a data:
31 de agosto de 2012. Assim recuperou facilmente o relatório de seu irmão referente àquele caso e,
abrindo o pacote de papel pardo com a data correspondente ao quadro, passou a examiná-lo.
Realmente o formato de tais anotações jamais poderia servir como um registro literário e aqui
entraria ele. Seria o Dr.Watson de Marcus e Diego. Desdobrou um maço de papel rotulado de
"bloco 1".
"Bloco 1"
"Vamos investigar Meigas"
"Onde podemos encontrá-las?"
"No Rio, onde mais?"
"Meiga - Bruxa - Europeus - Imigrantes - Rio, Floripa, Rio Grande ou Belém”
Desta forma seca e esquemática, a investigação que pai e filho se propuseram há cerca de cinco
anos atrás se apresentava. No interior da caixa de papelão já desnudada do papel de embrulho mas
ainda agarrada ao grosso barbante, uma série de outros elementos. Cartões de embarque, recibo de
hotéis, notas fiscais de restaurantes, além de vários maços de papel dobrados e catalogados em
blocos numerados sequencialmente. Só não atinou de início com o significado do medalhão
vermelho esmaltado que se destacava no fundo da caixa. Parecia uma vedete do teatro rebolado,
contrastando com os papeis amarelados ao seu redor. Ostentava um pentagrama invertido e
naturalmente deveria ter alguma relação com as tais Meigas - termo galego equivalente à "Bruxa".
Nos blocos de papeis subsequentes a explicação forçosamente apareceria. Começava a simpatizar
com o método pós-moderno de "descrição dos fatos", tão característico de Marcus, mas rejeitou a
inicial simpatia e focou seus esforços na transformação do conjunto de memórias num texto
coerente. De posse do pacote, dirigiu-se ao escritório, buscou seu notebook e o ligou, a impaciência
com o tempo necessário à inicialização transparecendo no batucar de seus dedos sobre a
escrivaninha. Já dentro do editor de textos, digitou, com uma ponta de orgulho: "As Meigas da
Vila”
As Meigas da Vila
Marcus e Diego, devidamente assessorados por uma bela garrafa de Carcavelos, conversavam em
frente à lareira acesa naquela fria noite de julho. "O inverno este ano está profissional!" - asseverava
o pai. No fundo tinha orgulho de compartilhar com seu filho o ambiente e o clima europeus da
cidade de Curitiba. O jovem estava passando férias com seu pai e um dos programas clássicos eram
as conversas sobre fenômenos extraordinários que aconteciam nos quatro cantos do país. Nesta
noite o tema da vez eram as bruxas. As labaredas da lareira, filtradas pelo vinho ambarino,
lançavam nas paredes da sala de estar saltitantes figurinhas as quais lembravam os desenhos
diabólicos nas roupas das vítimas da Inquisição. O líquido doce e forte fora presente de um amigo
carioca há muitos anos atrás, quando Marcus ainda residia na então "Cidade Maravilhosa" e fora
reservado para uma grande ocasião. Hoje, qualquer visita de seu filho lhe parecia a própria
definição de "grande ocasião" e daí à degola do Carcavelos foi um passo.
- Rio, Florianópolis, Rio Grande ou Belém?
- O que pai?
- Se falamos de bruxas, temos que buscá-las onde existam muitos portugueses, ou galegos...
- Mas vai ser Rio. Já tá decidido, né pai?
- Por que dizes isso?
- Estava te observando... A própria escolha do vinho te levou mentalmente a pensar na terrinha. Vi
tua olhada oscilando entre a taça e a gravura do Rio antigo ali na parede... Daí...
- hehehe... Boa sacada! Nos passos do mestre Holmes, ein?
- Como ele costumava dizer: "é a simplicidade em si mesma".
- Sim, Rio. Vai ser mais fácil e ademais temos nossas experiências, digamos, de família!
Marcus levantou-se e depois de alguma luta contra a bagunça dominante na estante de livros, trouxe
triunfante um velho álbum de fotos para junto de Diego.
- Olha aqui. A velha Vila Rui Barbosa! Nasci e vivi aqui até ser demolida, lá pelos anos setenta.
Tirei essas fotos de uns blogs na Internet. Nem sabia que existia algum registro...
- Bacana... Mas e as Meigas ?
- Bom, aqui existe uma manifestação muito forte de bruxedos..
- Existiam, né?
- Não é tão simples assim... Mas vamos começar do começo.
Marcus afundou-se gostosamente na mal tratada poltrona de veludo azul, semicerrou os olhos e
começou a evocar a própria infância no centro do Rio de Janeiro. A Vila e seus moradores,
incidentes, festas. Viajava feliz no tempo, aparentemente esquecido do tema que tratavam. Diego, já
acostumado com as digressões do pai, procurava mantê-lo na trilha.
- e as Meigas?
- pois é..
- quase em frente à minha casa morava uma velha que marcou muito minha vida.
- a tal D. Elza, não é? Acho que já me falastes dela.
- essa mesma. Mas antes disso...

Seguiu-se uma verdadeira dissertação sobre mitos e lendas galaicos e como vieram a se implantar
no Brasil, trazidos na alma dos imigrantes. Muitas dessas entidades vêm da mais longínqua
mitologia e celta e foram adaptados em nossas terras nas mais variadas formas. Trasgos de uma só
perna, procissão das almas, sereias, mouras louras que nos chegam do além através de espelhos, a
Marimanta que caça crianças pondo-se num saco e, é claro, as Meigas. Vagamente assemelhadas às
clássicas Bruxas, estas são provavelmente um eco distante das antigas curandeiras druídicas. Mas
nem só de sabedoria ancestral vivem elas. Tem as que são o mal em forma pura.
- você acha que essa tal Elza era uma Meiga?
- sim, e das chuchonas... Pelo menos assim pareceu a uma criança pequena, como eu. Só não
garanto que ela já não exista...
- perai , se ela era velha naquela época, quantos anos teria? Mais de cem?
- no mínimo.
- então tá morta...
- não necessariamente meu caro.. É uma chuchona, não se esqueça.
- chuchona? Que chupa?
- isso mesmo. Gordura. De criança....
- bah!
- hehehe... Acho que devíamos dar um pulinho lá no Rio, antes que os governantes acabem com a
cidade. Venha Diego, ao site de passagens!

O avião se preparava para a deslumbrante aterrisagem no Aeroporto Santos Dumont. Apesar de


terem feito o trajeto inúmeras vezes, a aproximação rente à Baía de Guanabara, entre montanhas e
prédios históricos, era sempre encantadora e excitante . A recepção dos elementos, por sua vez, não
poderia ser melhor, pois o dia estava límpido e brilhante. Eram três da tarde de uma sexta feira, hora
estratégica para se chegar no Rio sem ficar preso no engarrafamento. Pai e filho planejavam seguir
o velho esquema de passeios anteriores pela cidade: pousar no centro, caminhar pelas antigas ruas e,
devidamente calibrados por um chopinho no centenário Bar Adolf, pegar o bonde para Santa Teresa.
Lá em cima, hospedagem na pousada de sempre e uns petiscos nalgum pitoresco barzinho das
redondezas. Ali, entre bolachas de chopp e croquetes de carne seca, repassariam o esquema para o
dia seguinte.

- amanhã é levantar cedo e mergulhar no passado, Diego!


- bem, nosso trajeto já tá bem nessa batida, né?
- hehehe.. É o que tem de melhor no Rio. A não ser que prefiras estudar a degradação urbana do
nosso país e o que os governantes fizeram nos últimos tempos...
- não, não... Então, amanhã... para a Vila! Mas eu achava que tinha sido demolida. Você mesmo me
contou, não foi?
- Há quase quarenta anos...
- uai?
- recaída de "mineirês", ein? Foi demolida sim, construíram um horrendo espigão no lugar. Mais
uma cicatriz na cara da cidade!
- mas então? O que pensas encontrar por lá?
- história comprida.. Venho juntando informações há tempos. Sobre uns desaparecimentos de
crianças, percebi um certo padrão, sabe?
- ah... Mortes?
- não dá prá saber. As crianças simplesmente somem.
- pode ser apenas um tarado, pedófilo, sei lá? Se é que é caso pra "apenas"... Mas o que tem de
sobrenatural?
- poderia ser "apenas" isso. Não fosse um detalhe: os casos vem ocorrendo há mais de meio
século... Garçom! A conta!!
A manhã do sábado chegou com uma fina capa de chuva. O suficiente para dar aos cariocas um
álibi para tirar alguma roupa do armário e saudar o dia de "inverno". Café da manhã tomado bem
cedinho - não eram nem oito horas - e a dupla se pôs a trilhar os cento e poucos metros de
paralelepípedos que os separavam do ponto do bonde. Naquele dia e horário, pai e filho tinham o
pitoresco veículo só para eles. Desceram na estação final, alcançando a larga avenida que conduz
até o local onde outrora existira a antiga vila operária. . Caminhavam sem pressa e Marcus parecia
saborear cada trecho de rua onde passara sua infância. Como era de seu feitio, parecia divertir-se em
liberar ao filho as informações sobre o caso a conta-gotas.
- mas pai, será que não é tudo coincidência?
- isso não existe Diego. Os relatos são muito precisos.
- tráfico de órgãos?
- não. Já houveram vítimas recuperadas. Órgãos íntegros... Menos por uma coisa.
-?
- Gordura subcutânea. Olha lá! A igreja de Santo Antônio dos Pobres!
A bela igreja em estilo neo-românico parecia uma maquete em contraste com o gigante de aço e
vidro que despontava na calçada oposta. Depois de muitas idas e vindas legais, a antiga vila
operária desaparecera por completo. O mundo contemporâneo e sua falta de valores não respeitara
os mais de 120 anos do empreendimento. Um resumo e também um símbolo da patética história da
República brasileira. Pai e filho permaneceram calados na esquina, contemplando as duas
construções. O espigão sem alma parecia escarnecer do sóbrio templo cristão. O reflexo da igreja na
fachada espelhada do edifício lembrava uma mosca aprisionada na teia de monstruosa aranha.
- pois é, pai. Não há nada a investigar aqui. Não sobrou nem um tijolo..
- não é o que minhas pesquisas dizem... Já te disse ontem: os desaparecimentos se sucedem há
cinquenta anos. É sempre o mesmo padrão. Crianças de rua desaparecem e seus cadáveres
recuperados depois com o mesmo tipo de mutilações... A gordura retirada das partes moles do
corpo. Abdômen, parte interna de coxas, nádegas...
- um grupo satanista, talvez?
- por que um grupo, Diego? Desconfio de um só assassino, ou melhor, assassina...
- bem, ela já deve estar bem velhinha, não? E a polícia, não faz nada?
- se tem algo que não mudou nada no Brasil foi o desprezo pela vida de um pobre. Quanto à idade
do monstro, não significa coisa alguma...
- como não, pai? Não consigo imaginar uma velhota de oitenta anos a fazer tais barbaridades com
uma criança... Não teria nem força suficiente!
- talvez ela não seja assim tão... velhinha! Tu te lembra do que falei sobre Meigas? Meigas
chuchonas?
- bruxas?
- são mais do que isso. Seres demoníacos que
se alimentam de gordura humana. Não dá para saber a idade de uma Meiga só olhando. Além disso,
seus bruxedos teriam o poder de criar portais temporais...
- bizarro! Epa.. Começou a chover!
- vamos, Diego. Vamos prá dentro da igreja.
Apesar da tarde recém iniciada, o ambiente interno no templo era sombrio, silencioso, opressivo
mesmo. Ninguém em seu interior. Sempre fora assim, pensou Marcus. Excetuadas as datas festivas,
particularmente o dia de Santo Antônio (13/6), a igreja sempre fora um verdadeiro oásis de
tranquilidade no centro da grande cidade. O homem mergulhou no santuário como se afundasse
num lago frio e escuro. Não precisava de qualquer bruxedo para sentir-se transportado no tempo.
Cada entalhe nas paredes, os nichos ocupados pelos santos, os candelabros com velas, eram parte de
sua infância, bem como o aroma predominante ali. Insenso? Não só. Bolinhos de bacalhau? Quando
criança, uma das tradições da festa de Santo Antônio era o leilão da iguaria portuguesa, elaborada
por sua mãe, Dona Daisy.
A mão de seu filho, ao pousar-lhe no ombro, transmitia urgência. As sombras na nave da igreja,
criadas pela luz da rua atravessando os vitrais, eram agora longas. Era noite!
- pai, tem uma multidão lá fora! Estão festejando alguma coisa...
- era verdade então! Venha Diego, vamos lá prá fora!
Na estreita rua dos Inválidos, uma multidão de gente feliz, quase em êxtase, a grande maioria
envergando camisas da Seleção brasileira de futebol. Gritos de "Garrincha", "Vavá", "Que venham
os tchecos!", enchiam o ar. Padres e seus ajudantes davam os últimos retoques na festa de Santo
Antônio circulando pelo tablado de madeira onde o leilão de doações iria ocorrer em instantes.
Fogos de artifício iluminavam o céu, juntando duas festas numa só.
Maravilhados, Marcus e Diego recuaram lentamente para dentro da igreja, olhares ainda presos na
cena irreal da rua. Os sons da euforia popular foram diminuindo até que a dupla se viu mergulhada
na penumbra da nave. Alguns minutos de silêncio pesado como chumbo, em instantes quebrado por
passos furtivos que vinham do fundo do altar. Uma sensação ruim, um gosto amargo vindo da
distante infância e por tanto tempo recalcado no fundo da alma, fez Marcus voltar-se na direção dos
passos, ainda a tempo de vislumbrar uma figura feminina esgueirando-se na direção da cripta.
- é ela! A velha Elza!! Venha filho, atrás dela!!

À esquerda do altar central, uma pequena escada talhada em granito levava ao pavimento inferior,
onde existia uma pequena cripta. Na mesma, nada de túmulos ou coisa parecida. Apenas uma
bagulhada inservível, deixada ali por absoluta falta de opção. Caixotes e mais caixotes, pastas de
papel mofado, sacos de conteúdo indefinível. O impulso inicial de seguir o vulto feminino que se
esgueirara escada abaixo, cedera no ânimo de Marcus e este sentou-se num banco bem defronte da
goela escura da escadaria.
- não vamos segui-la?
- tenho receio do que encontraremos, filho...
- Como assim? Não viemos aqui para isso? Mas, onde estamos, ou melhor, quando estamos?
- O que achas que encontraremos lá em baixo? Te lembras do episódio da criança morta pelo olhar
da Meiga? Acho que não...

" Eu tinha sete anos então. Estava só em casa e, como sempre, fugia do quarto sorrateiramente para
escapar do sono da tarde que me era imposto diariamente pela tua avó. Estava empoleirado no
batente da janela da frente, entretido em observar o vai e vem de pessoas na rua interna da vila.
Como acontece com frequência em vilas, não demorou e um feroz bate boca entre duas mulheres
começou. De um lado, uma velha senhora de origem galega, que todos conheciam por Elza e do
outro uma mulher bem jovem,ruiva, estatura média, recém chegada à vila com um menininho ruivo
como ela e de bochechas rosadas parecendo ter levado dois beliscões. Aparentava não mais de que
quatro anos. Não cheguei a entender bem a causa da briga - parece que o barulho das crianças
estava incomodando -, mas, uma verdadeira lenda urbana iria ser construída no imaginário dos
moradores a partir daquela briga idiota. O fato é que, uma vez serenados os ânimos, as duas
mulheres voltaram para suas casas e tudo pareceu se acalmar. Mas não foi assim, afinal..."
- Estou me lembrando, sim. Você já contou essa história antes.
"Sei que sim, mas tem algo que não contei ainda. Foi a minha parte nos fatos e que marcou minha
vida desde então. A tarde já ia caindo e apenas o loirinho ficara na rua, entretido em brincar no
chão. Subitamente a criança estacou, olhos vítreos a fitar o nada. Seu choro, a princípio bem
baixinho, foi aumentando, aumentando... e em minutos estava caído no chão, imóvel a não ser por
espasmos que percorriam seu corpo, como a vegetação movida por um vento ligeiro. Nesse exato
momento eu vi..."
- viu o que, pai?

"A velha Elza. Estava como que em um transe, de pé na porta de sua casa, a qual ficava quase
exatamente em frente da janela de onde eu tudo acompanhava. Mais parecia um espantalho naquele
longo vestido branco em mau estado, cabelos desgrenhados e olhar - se é que aquilo podia ser
descrito como um olhar - fixando as órbitas brancas e reviradas para o alto da criança caída no chão.
Era ela, sem dúvida, mas parecia muito mais envelhecida do que era de verdade. A quanto tempo
estaria ali, a fitar o menino? Não sei. Suas encarquilhadas mãos encaixavam-se uma na outra, como
que aranhas lutando entre si. O rosto contorcido num rito cheio de ódio que ganhou ainda mais
intensidade com a chegada da mãe do ruivinho. Esta ajoelhou-se no chão  abraçando a criança que
já parecia desfalecido, semblante muito vermelho e coberto de suor. Ela então se levantou e
confrontou a velha. Emitia uma espécie de assobio, fino e muito agudo, enquanto se afastava
lentamente de volta ao seu lar, sempre com o menino inerte nos braços. Um frio percorreu minha
espinha de cima para baixo quando olhei para a velha Elza. Um horrendo sorriso de escárnio se
tinha desenhado em sua face, como um traço de tinta vermelha desenhado numa máscara de pano.
Um bate-bola vivo. Um coleante movimento de suas garras, parecia chamar-me. Foi o bastante para
que meu instinto de sobrevivência me lançasse aos trambolhões para dentro da sala"

- sim, sim. Depois?


- bem, caí de cama por dias, febre alta e delírios. Imagina se atendesse ao chamado da garra... Tu
não existirias, meu caro!
- e o ruivinho?
- como dizem hoje, mo...rreu! Para toda a comunidade da vila, morrera pela ação da Meiga Elza. É
no que sempre acreditei também. Até hoje.
- E a mãe da criança? E a Polícia?
- Como acontecia naqueles tempos - e hoje também, hehehe - ninguém deu bola. Virose, disseram.
Só não se preocuparam de explicar as outras crianças desaparecidas... Da velha Elza não se ouviu
mais falar.
- Como assim? Mudou-se?
- Nunca ficou lá muito claro. E adivinhe quem se mudou para sua casa?
- A....
- Sim, a ruiva! Instalou-se lá logo após o sumiço da velha, como se aguardasse uma mudança já
programada há tempos.
- Pai, essa mulher se recuperou da perda do filho?
- Boa pergunta, filho. Sim, parecia não ter sofrido qualquer choque afinal. Essa é uma peça do
quebra-cabeças que me perseguia até recentemente. Mas, como dissestes, "viemos aqui para que?".
Vamos descer atrás daquele vulto! Creio que não é a velha Elza afinal...
Pai e filho empreenderam então a imersão nas trevas que dominavam a cripta da Igreja de Santo
Antonio dos Pobres. O silêncio completava o comando do ambiente e ninguém diria que uma
pessoa pudesse ter ali entrado. Pé ante pé a dupla desceu a escada de pedra, driblando caixas e
outros objetos abandonados. Marcus, parecendo recobrar a perfeita imagem do recanto que em sua
infância muitas vezes visitara, dirigiu-se com firmeza para o canto esquerdo da cripta, parcialmente
encoberto por um armário deteriorado.
- Veja Diego, esta porta leva à Rua do Senado! Vamos, me ajude aqui.
Mas a ajuda não foi necessária, pois a porta dava mostras de ter sido recém aberta, após muito
tempo de desuso. Uma surpreendente luz do sol os aguardava na rua. Não mais a noite chuvosa, de
comemoração e festa que haviam deixado para trás há pouco. Uma rua quase vazia, onde ao longe
despontava um antigo lotação alvi-rubro. Todo o aspecto de um domingo de manhã de outros
tempos. Na calçada oposta à igreja, a longa fachada lateral em estilo eclético. A Vila Rui Barbosa.
Nem sinal do monstro de aço e vidro azulado que os saudara ao chegarem ali. Mais ou menos na
metade daquela fachada, uma passagem negra se abria e dela emergia um sinistro som, cadenciado e
monótono: tchã...tchã...tchã.... Diego, assumindo a dianteira atravessa a estreita rua obrigando seu
pai a apressar-se atrás dele.

- esta passagem leva ao interior da Vila, Diogo. Tem um açougue aí. Do seu Argemiro.
- esse som então...?
- o açougueiro deve estar preparando alguns cortes. Domingo sempre foi dia de churrasco... O
ambiente domingueiro da Vila é inconfundível. E a rua, assim vazia...
- domingo? Chegamos ontem, quarta-feira...
- Isso não conta aqui. Era noite quando presenciamos a comemoração na frente da igreja, não era?
Festa de Santo Antonio, dia 13 de junho portanto. E pela festança, pela comemoração dos gols de
Vavá e Garrincha... de 1962! Não estás entendendo?
O conduto de ligação entre a rua e o interior da vila estendia-se por cerca de vinte metros,
terminando numa ofuscante placa de luz prateada. Além, divisavam-se árvores. Oitizeiros. À direita
no interior da passagem, o balcão do açougue e atrás dele, um atarefado homem mecanicamente
atacava uma costela bovina com um cutelo. Parecia completamente absorto no trabalho, pois não se
dignara a responder ao bom dia do rapaz. O rebrilhar da fraca lâmpada da parede, passeando na
lâmina do cutelo e sublinhado pelo som dos golpes, exercia um efeito quase hipnótico.
- que cara mal-educado!
- acho que ele nem te ouviu, Diego. Vamos logo, entremos na Vila Rui Barbosa!
Os vinte metros de passagem mal iluminada foram vencidos com sofreguidão, dessa vez com
Marcus à frente. O mergulho na luz da manhã causou espanto no rapaz e uma sensação
profundamente nostálgica em seu pai. Este tinha nítida a imagem da vila num domingo de manhã. A
grande avenida central e sua fileira de oitizeiros percorrendo-a de um extremo a outro. As três ruas
transversais, abrindo-se à esquerda e à direita do eixo central.
Àquela hora da manhã já se podiam observar algumas pessoas circulando, a maioria indo ou vindo
do armazém/padaria/bar postado na lateral esquerda do conjunto de casas. Uma peregrinação
diariamente repetida em busca de pão e leite. Algo fazia a diferença, porém. Aparentemente uma
transmissão esportiva, por meio de um rádio com volume altíssimo e som roufenho. Só com alguma
atenção se podia compreender alguma coisa, dado o forte sotaque lusitano do narrador. Uma
transmissão de futebol em ondas curtas!

- é a venda do teu avô. Todo domingo acontece isso. Nesta hora do dia era sagrada a transmissão
dos jogos do campeonato português, já no fim de tarde por lá... Veja, lá está ele! Mal atende os
clientes, ligado no jogo.
Pai e filho continuam a caminhar pela alameda central, o som do jogo predominando facilmente
sobre o cantar dos pássaros pousados nos oitizeiros. Caminham na direção da rua transversal onde
Marcus vivera e tivera lugar a morte da criança. Marcus parecia dominado pela certeza do que se
passava e do que buscava afinal. No trajeto, a mesma estranha sensação de não serem vistos ou
ouvidos pelas pessoas que circulavam em número crescente. Em poucos minutos, chegavam à
Travessa Chiquita dobrando à esquerda da avenida central. Ao entrarem ali, a forte impressão de
irrealidade que os envolvia parecia aumentar, mais e mais. Caminhavam como num sonho.
Duzentos passos dados como em câmera lenta os levaram ao epicentro do mistério. Lá estavam,
encarando uma a outra, a antiga casa da infância de Marcus e a morada das Meigas. Em mais
curioso efeito de iluminação (?), a rua parecia imersa num cinzento fim de tarde. Diego e Marcus
não conseguiam mais avançar, quedando-se paralisados a contemplar a cena: Uma velha repulsiva,
completamente trajada num imundo vestido branco estendia os braços ossudos na direção de um
menino empoleirado na janela de sua casa. Uma serpente a fitar um passarinho. Chegou aos ouvidos
de Marcus, como vindo de muito longe, o sussurro de seu filho:
- pai! é você!!
A partir daí tudo sucedeu muito rapidamente. O menino sumira pela abertura da janela e o vulto de
uma mulher vestida de escarlate, cabelos vermelhos encaracolados e portando um pentagrama no
pescoço e um camafeu na testa, aproximou-se da velha megera. As duas mulheres encaravam-se
contorcendo as mãos, olhos fixos uns nos outros. Parecia o confronto de duas imensas najas. Em
momentos, a força da mulher de vermelho pareceu prevalecer e provocou a fuga desabalada da
velha para o interior da casa, com a jovem no seu encalço. Sem aviso prévio, uma cacofônica
sucessão de gritos e ruídos como que rasgou a alma de pai e filho, emergindo do interior da casa das
Meigas. A última impressão sonora que ambos retiveram foi uma inumana gargalhada de vitória,
crescente e aterrorizante.
- É aqui. Rua do Senado. Eis a Igreja de Santo Antonio dos Pobres. Ali ficava a vila de que vocês
falaram, mas não existe mais. Construíram essa coisa aí no lugar - disse o motorista de taxi.
- Ei, que dia é hoje amigo? - indagou Diego -
- Ein? Dois de agosto, claro...
- Ano?
- Ué? 2012. Fumastes algo meu jovem? Desculpe senhor, é brincadeira...
- Amigo, toca de volta para Santa Teresa. Já não temos nada a fazer aqui. Estou vivo
definitivamente - disse Marcus, dando a certeza ao motorista que pai e filho fumavam juntos...
- Não pai. Vamos entrar no prédio. Deve ter mais alguma informação. Vamos.
- Vocês são da polícia? Aqui tem acontecido muitos desaparecimentos de crianças, mas a polícia
nunca se interessou muito. Pobres, sabem?
- Não, nada disso meu caro. Quanto deu?
Corrida paga, o taxi partiu conduzido por um motorista que se dobrava de rir da dupla de "doidões".
Marcus e Diego galgaram as largas escadas de mármore adentrando no amplo hall de entrada do
prédio. Atrás do balcão de informações, uma linda jovem ruiva, cabelos encaracolados e profundos
olhos negros. Trajava um vestido escarlate, algo inadequado para o clima do Rio. No colo, um
grosso cordão de prata terminando num pentagrama e na pálida testa um camafeu.
FIM

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