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DADOS DE ODINRIGHT

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Obras do autor

O amor nos tempos do cólera

A aventura de Miguel Littín clandestino no Chile

Cem anos de solidão

Cheiro de goiaba

Crônica de uma morte anunciada

Do amor e outros demônios

Doze contos peregrinos

Em agosto nos vemos

Os funerais da Mamãe Grande

O general em seu labirinto

A incrível e triste história da cândida Erêndira e sua avó desalmada

Memória de minhas putas tristes

Ninguém escreve ao coronel

Notícia de um sequestro

Olhos de cão azul

O outono do patriarca

Relato de um náufrago

A revoada (O enterro do diabo)

O veneno da madrugada (A má hora)

Viver para contar

Obra jornalística

Vol. 1 – Textos caribenhos (1948-1952)

Vol. 2 – Textos andinos (1954-1955)

Vol. 3 – Da Europa e da América (1955-1960)

Vol. 4 – Reportagens políticas (1974-1995)

Vol. 5 – Crônicas (1961-1984)

O escândalo do século

Obra infantojuvenil

A luz é como a água

María dos Prazeres

A sesta da terça-feira

Um senhor muito velho com umas asas enormes


O verão feliz da senhorita Forbes

Maria dos Prazeres e outros contos (com Carme Solé Vendrell)

Teatro

Diatribe de amor contra um homem sentado

Com Mario Vargas Llosa

Duas solidões: um diálogo sobre o romance na América Latina


CIP-Brasil. Catalogação na publicação

Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

G21a

García Márquez, Gabriel, 1927-2014

Em agosto nos vemos [recurso eletrônico] / Gabriel García Márquez; tradução Eric

Nepomuceno. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Record, 2024.

recurso digital

“Edição aos cuidados de Cristóbal Pera.”

Tradução de: En agosto nos vemos

Formato: epub

Requisitos do sistema: adobe digital editions

Modo de acesso: world wide web

ISBN 978-85-01-92149-9 (recurso eletrônico)

1. Literatura colombiana. 2. Livros eletrônicos. I. Nepomuceno, Eric. II. Pera,

Cristóbal. III. Título.

24-87993 CDD: 868.99363

CDU: 821.134.2(862)

Gabriela Faray Ferreira Lopes – Bibliotecária – CRB-7/6643

Título original:

En agosto nos vemos

Copyright © Herdeiros de GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ, 2024

Copyright da nota da edição original © Cristóbal Pera, 2024

Copyright do prefácio © Rodrigo e Gonzalo Gárcia Barcha, 2024

Reprodução fotográfica do manuscrito original: cortesia do Harry Ransom Center, Universidade

do Texas, Austin

Tradução da parte intitulada “O original”: Fabiana Camargo

Design de capa adaptado do layout de Nora Grosse para a edição original da Penguin Random

House Grupo Editorial

Ilustração da capa: © David de las Heras

Texto revisado segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990.

Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, no todo ou em parte, através de quaisquer

meios. Os direitos morais do autor foram assegurados.

Direitos exclusivos de publicação em língua portuguesa somente para o Brasil adquiridos pela

EDITORA RECORD LTDA.


Rua Argentina, 171 – Rio de Janeiro, RJ – 20921-380 – Tel.: (21) 2585-2000, que se reserva a

propriedade literária desta tradução.

Produzido no Brasil

ISBN 978-85-01-92149-9

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Sumário

Prefácio

Nota da edição original

O original

Sobre o autor
Prefácio

A perda de memória que nosso pai sofreu em seus últimos anos foi,

como é fácil de imaginar, duríssima para todos nós. Mas particularmente

a maneira como essa perda diminuiu suas possibilidades de continuar

escrevendo com o rigor de costume foi, para ele, uma fonte de frustração

desesperadora. Ele nos disse isto com a clareza e a eloquência de um

grande escritor: “A memória é, ao mesmo tempo, minha matéria-prima e

minha ferramenta. Sem ela, não existe nada.”

Este Em agosto nos vemos foi fruto de um derradeiro esforço para

continuar criando contra ventos e marés. O processo foi uma batalha

entre o perfeccionismo do artista e o declínio de suas faculdades

mentais. As longas idas e vindas das muitas versões do texto são

descritas em detalhes, de maneira muito melhor do que nós poderíamos

fazer, por nosso amigo Cristóbal Pera em sua nota para esta edição.

Àquela altura, só sabíamos do veredito de Gabo: “Este livro não presta.

Tem que ser destruído.”

Não o destruímos, mas o deixamos de lado, com a esperança de que

o tempo decidisse o que fazer com ele. E lendo o livro uma vez mais,

quase dez anos depois de sua morte, descobrimos que o texto tinha

muitíssimos méritos desfrutáveis. De fato, não está tão lapidado como

seus maiores livros. Tem alguns tropeços e pequenas contradições, mas

nada que nos impeça de apreciar o que há de mais relevante na obra de

Gabo: a capacidade de invenção, a poesia da linguagem, a narração

cativante, o entendimento acerca do ser humano e o carinho por suas

vivências e desventuras, sobretudo no amor. O amor, provavelmente o

tema principal de toda a sua obra.

Ao julgar o livro muito melhor do que lembrávamos, nos ocorreu

outra possibilidade: de que o declínio de suas faculdades mentais, que

não permitiu a Gabo terminar o livro, também o impediu de perceber

como ele estava bem-feito. Num ato de traição, decidimos colocar o


prazer de seus leitores acima de todas as outras considerações. Se os

leitores celebrarem o livro, é possível que Gabo nos perdoe. É nisso que

confiamos.

Rodrigo e Gonzalo García Barcha


EM AGOSTO NOS VEMOS
1

Voltou à ilha na sexta-feira, 16 de agosto, na barca das três da tarde.

Usava calça jeans, camisa xadrez no estilo escocês, sapatos simples de

salto baixo sem meias, carregava uma sombrinha, sua bolsa de mão e,

como única bagagem, a maleta de praia. Na fila de táxis do cais foi

direto para um modelo velho, carcomido pelo salitre. O chofer a recebeu

com um cumprimento amigável e a conduziu aos solavancos pelo

povoado miserável, com casas de pau a pique, telhados de folha de

palmeira amarga e ruas de areia ardente diante de um mar em chamas.

Precisou fazer malabarismos para desviar dos porcos impávidos e das

crianças nuas que debochavam dele com passes de toureiro. No fim do

povoado enveredou por uma avenida de palmeiras-reais onde ficavam as

praias e os hotéis turísticos, entre o mar aberto e uma lagoa interior

povoada de garças-azuis. Finalmente parou no hotel mais velho e

decadente.

O recepcionista esperava por ela com a ficha de hóspede pronta para

ser assinada e as chaves do único quarto do segundo andar que dava para

a lagoa. Subiu a escada com quatro passadas largas e entrou no quarto

pobre com cheiro de inseticida recém-aplicado e ocupado quase por

inteiro pela enorme cama de casal. Tirou da maleta um nécessaire de

couro de cabrito e um livro mal encadernado que pôs na mesinha de

cabeceira, marcado numa página com um abridor de cartas de marfim.

Tirou uma camisola de seda rosada, que pôs debaixo do travesseiro.

Também tirou uma echarpe de seda com estampa de pássaros

equatoriais, uma blusa branca de manga curta, um par de tênis bem

gasto e levou tudo para o banheiro.

Antes de se arrumar, tirou a aliança e o relógio masculino que usava

no braço direito, colocou tudo na prateleira do toucador e lavou

rapidamente o rosto para limpar a poeira da viagem e espantar o sono da

sesta. Quando acabou de secar o rosto, sopesou no espelho os seios


redondos e altivos apesar dos dois partos. Esticou as bochechas com os

cantos das mãos para se lembrar de como era quando jovem. Ignorou as

rugas do pescoço, que já não tinham remédio, e verificou os dentes

perfeitos e recém-escovados depois do almoço na barca. Esfregou

desodorante nas axilas bem depiladas e vestiu a blusa limpa de algodão

que ostentava as iniciais AMB bordadas no bolso. Escovou os cabelos

índios, compridos até os ombros, que prendeu num rabo de cavalo com a

echarpe de pássaros. Para terminar, hidratou os lábios com um batom de

vaselina simples, umedeceu os dedos indicadores na língua para pentear

as sobrancelhas unidas, aplicou um toque de Madeiras do Oriente atrás

de cada orelha e finalmente se encarou no espelho com seu rosto de mãe

outonal. A pele sem vestígio de cosmético tinha a cor e a textura do

melaço, e os olhos de topázio eram formosos com suas escuras

pálpebras portuguesas. Ela se massacrou, se julgou sem piedade, e se viu

quase tão bem quanto se sentia. Apenas quando pôs a aliança e o relógio

se deu conta de seu atraso: faltavam seis para as quatro, mas se

concedeu um minuto de nostalgia para contemplar as garças que

planavam imóveis no torpor ardente da lagoa.

O táxi esperava por ela debaixo das bananeiras do portal. Arrancou

sem esperar ordens pela avenida de palmeiras até uma área sem hotéis

onde ficava o mercado popular ao ar livre e parou numa banca de flores.

Uma mulher negra e grande, que cochilava numa cadeira de praia,

despertou, sobressaltada pela buzina, reconheceu a outra no banco de

trás do automóvel e, entre risos e conversa fiada, deu a ela o ramo de

gladíolos que havia encomendado. Alguns quarteirões mais adiante o

táxi virou numa trilha quase intransitável que subia por uma encosta de

pedras pontiagudas. Através do ar cristalizado pelo calor era possível ver

o mar aberto do Caribe, os iates alinhados no cais de turismo, a barca

das quatro que regressava para a cidade. No topo da colina ficava o

cemitério mais pobre. Empurrou sem esforço o portão enferrujado e

entrou com o ramo de flores pelo corredor de túmulos sufocados pelo

matagal. No centro havia uma paineira de galhos grandes que ajudou a

mulher a encontrar o túmulo da mãe. As pedras pontiagudas

machucavam, atravessando as solas de borracha aquecidas, e o sol

rascante se infiltrava pelo tecido da sombrinha. Uma iguana saiu do


mato, se deteve imóvel diante da mulher, olhou-a por um instante e fugiu

em disparada.

Calçou uma luva de jardineiro que levava na bolsa e teve de limpar

três lápides até reconhecer a de mármore amarelado com o nome da mãe

e a data de sua morte, oito anos antes.

Havia repetido essa viagem todo 16 de agosto, na mesma hora, com

o mesmo táxi e a mesma florista, debaixo do sol de fogo no mesmo

cemitério miserável, para pôr um ramo de gladíolos frescos no túmulo

da mãe. A partir daquele momento não tinha nada a fazer até as nove da

manhã do dia seguinte, quando saía a primeira barca de regresso.

Seu nome era Ana Magdalena Bach, tinha completado quarenta e

seis anos de vida e vinte e sete de um matrimônio bem estabelecido com

um homem que amava e que a amava, com quem se casou sem terminar

o curso de Artes e Letras, ainda virgem e sem ter namorado antes. A

mãe tinha sido uma célebre professora de escola primária montessoriana

que, apesar de seus méritos, não quis ser outra coisa até o último

suspiro. Ana Magdalena herdou dela o esplendor dos olhos dourados, a

virtude das poucas palavras e a inteligência para controlar seu

temperamento. Era uma família de músicos. O pai tinha sido professor

de piano e diretor do Conservatório Estadual durante quarenta anos. O

marido, também filho de músicos e maestro, substituiu o professor.

Tinham um filho exemplar que era o primeiro violoncelo da Orquestra

Sinfônica Nacional aos vinte e dois anos e havia sido aplaudido por

Mstislav Leopóldovich Rostropóvich numa sessão privada. Já sua filha

de dezoito anos tinha uma facilidade quase genial para aprender de

ouvido qualquer instrumento, mas só gostava disso como pretexto para

não dormir em casa. Estava de namorico com um excelente trompetista

de jazz, mas queria ingressar na ordem das Carmelitas Descalças,

contrariando os pais.

A vontade de ser enterrada na ilha tinha sido anunciada pela mãe

três dias antes de morrer. Ana Magdalena quis viajar para o enterro, mas

ninguém achou prudente, pois ela mesma não acreditou que conseguiria

sobreviver ao pesar e à dor. Foi levada até a ilha pelo pai no primeiro

aniversário, para pôr a lápide de mármore que estavam devendo ao

túmulo. Ela se assustou na travessia feita numa canoa a motor de popa

que demorou quase quatro horas, sem um instante de mar calmo.


Admirou as praias de farinha dourada na beirinha da selva virgem, o

alvoroço dos pássaros e o voo fantasmagórico das garças no remanso da

lagoa interior. E se deprimiu com a miséria da aldeia, onde precisaram

dormir na intempérie, em redes penduradas entre dois coqueiros, apesar

de ali terem nascido um poeta e um senador grandiloquente que quase

foi presidente da República. Ficou impressionada com a quantidade de

pescadores negros de braços mutilados pela explosão prematura de

tubos de dinamite. No entanto, acima de tudo, compreendeu a vontade

da mãe quando viu o esplendor do mundo do topo do cemitério. Era o

único lugar solitário onde não conseguia se sentir só. Foi então que Ana

Magdalena Bach decidiu deixá-la ali onde estava e levar todos os anos

um ramo de gladíolos ao seu túmulo.

Agosto era o mês dos calores e dos aguaceiros loucos, mas ela

entendeu aquilo como mais uma das penitências que deveria pagar sem

falta e sempre sozinha. Só fraquejou diante da insistência dos filhos em

conhecer o túmulo da avó, e a natureza lhe cobrou isso com uma

travessia pavorosa. A lancha zarpou apesar da chuva para que não

anoitecesse no caminho, e as crianças chegaram aterrorizadas e vencidas

pelo enjoo. Daquela vez, por sorte, puderam dormir no primeiro hotel

turístico que o senador construiu em seu nome e com dinheiro do

Estado.

Ana Magdalena Bach tinha visto crescerem ano após ano os

penhascos de vidro que aumentavam enquanto a aldeia empobrecia. As

lanchas motorizadas foram aposentadas pela barca. A travessia

continuou sendo de quatro horas, mas com ar-condicionado, orquestra e

moçoilas de prazer. Só ela manteve a rotina como a visitante mais

pontual da aldeia.

Voltou para o hotel, estendeu-se na cama sem outra roupa que não

uma calcinha de renda e retomou a leitura do livro na página marcada

com o abridor de cartas debaixo das pás do ventilador de teto que mal

espantavam o calor. O livro era Drácula, de Bram Stoker. Tinha lido

metade na barca com o fervor de uma obra-prima. Adormeceu com o

livro no peito e despertou duas horas depois no breu, empapada de suor

e morta de fome.

O bar do hotel ficava aberto até as dez da noite, e ela havia descido

para comer alguma coisa antes de dormir. Notou que havia mais clientes
do que de costume àquela hora, e o garçom não parecia ser o mesmo de

antes. Pediu, para não errar, o mesmo sanduíche de presunto e queijo

dos outros anos, com pão torrado e café com leite. Enquanto esperava,

percebeu que estava rodeada pelos mesmos turistas mais velhos da

época em que esse hotel era o único. Uma menina mulata cantava

boleros tristes e o próprio Agustín Romero, já idoso e cego, a

acompanhava com amor no mesmo piano decrépito da festa de

inauguração.

Ela comeu depressa, tentando superar a humilhação de fazer uma

refeição sozinha, mas sentiu-se bem com a música, que era suave e

tranquilizante, e a menina sabia cantar. Quando terminou, só restavam

três casais em mesas dispersas, e, bem na frente dela, um homem

distinto que não tinha visto entrar. Usava linho branco, os cabelos

metálicos. Tinha na mesa uma garrafa de brandy, uma taça pela metade

e parecia estar sozinho no mundo.

O piano iniciou um Clair de lune, de Debussy, num aventureiro

arranjo para bolero, e a menina cantou com amor. Comovida, Ana

Magdalena Bach pediu um gim com gelo e soda, o único álcool que

aguentava bem. O mundo mudou depois do primeiro gole. Ela se sentiu

atrevida, alegre, capaz de tudo e embelezada pela mistura sagrada da

música com o gim. Achou que o homem da mesa da frente não a tinha

visto, mas o surpreendeu observando-a quando o fitou pela segunda vez.

Ele enrubesceu. Ela sustentou o olhar enquanto ele verificava o relógio

de bolso. Meio sem jeito, ele guardou o relógio, serviu-se de outra dose,

de olho na porta e acanhado porque já sabia que ela o observava sem

misericórdia. Então a encarou. Ela sorriu, e ele a saudou com uma leve

inclinação de cabeça.

— Posso oferecer uma taça? — perguntou.

— Seria um prazer — respondeu ela.

Ele passou para a mesa dela e lhe serviu uma dose com muita

elegância.

— Saúde — disse.

Ela entrou no clima, e os dois beberam de um gole só. Ele engasgou,

tossiu sentindo espasmos pelo corpo inteiro e ficou banhado em

lágrimas. Mantiveram um longo silêncio até que ele se secou com um


lenço com perfume de lavanda e recuperou a voz. Ela se atreveu a

perguntar se ele não esperava alguém.

— Não — disse ele. — Era um assunto importante, mas já não é

mais.

Ela perguntou com uma expressão de incredulidade calculada:

— Negócios?

Ele respondeu:

— Já não dou mais para outras coisas.

E disse isso no tom típico que os homens usam quando querem que

não se acredite neles. Ela sorriu e arrematou como uma verdadeira

plebeia, em desacordo com seu modo de ser, mas na medida certa:

— Será no seu quarto.

E assim continuou rodeando o homem com seu tato fino, até enredá-

lo numa conversa banal. Brincou de adivinhar sua idade e se enganou

por um ano a mais: quarenta e seis. Brincou de adivinhar seu país de

origem pelo sotaque e deu sorte na terceira vez: gringo hispânico. Tentou

adivinhar sua profissão e, na segunda tentativa, ele se apressou em dizer

que era engenheiro civil, e ela suspeitou de que fosse uma artimanha

para impedir que tropeçasse na verdade.

Falaram da audácia de transformar em bolero uma obra de Debussy,

mas ele nem tinha reparado nisso. Sem dúvida se deu conta de que ela

entendia de música e que ele não havia passado do Danúbio azul. Ela

contou que estava lendo Drácula, de Stoker. Ele o tinha lido no colégio e

continuava impressionado com o episódio do conde que desembarcou

em Londres transformado em cachorro. Ela concordou e não entendia

por que Francis Ford Coppola tinha mudado isso em seu filme

memorável. No segundo gole ela sentiu que o brandy tinha se

encontrado com o gim em alguma parte de seu coração e precisou se

concentrar para não perder a cabeça. A música acabou às onze e a

orquestra estava só esperando que eles fossem embora para encerrar.

Àquela altura, ela o conhecia como se tivesse vivido com ele desde

sempre. Sabia que era asseado, impecável no vestir, com mãos

inexpressivas, agravadas pelo esmalte natural das unhas, e um coração

bom e covarde. Percebeu que ele estava intimidado pelos seus grandes

olhos amarelos e não os desgrudou dele. Então se sentiu forte para dar o

passo que não dera nem em sonho em toda a sua vida, e fez sem rodeios:
— Vamos subir?

Ele havia perdido o poder.

— Não estou no hotel — respondeu.

Mas ela nem esperou que ele terminasse de falar.

— Eu estou — disse e se levantou, balançando levemente a cabeça

para se recompor. — Segundo andar, número 203, à direita da escada.

Não precisa bater, é só empurrar.

Subiu para o quarto com o terror delicioso que não sentia desde sua

noite de núpcias. Ligou o ventilador, mas não a luz, despiu-se na

escuridão sem se deter e deixou um rastro de roupa no chão, da porta até

o banheiro. Quando acendeu a lâmpada do espelho, precisou fechar os

olhos e inspirar fundo para controlar a respiração e o tremor das mãos.

Lavou o sexo depressa, além das axilas e dos dedos dos pés macerados

pela borracha dos sapatos, pois, apesar dos suores da tarde, não tinha

pensado em tomar banho até o dia seguinte. Sem tempo para escovar os

dentes, pôs na língua uma pontinha de pasta de dente e voltou para o

quarto iluminado apenas pela luz diagonal do espelho do banheiro.

Não esperou que o convidado empurrasse a porta, ela mesma a abriu

quando sentiu que ele chegava. Ele se assustou, mas ela não lhe deu mais

tempo na escuridão. Tirou-lhe o paletó com puxões enérgicos, a gravata,

a camisa e foi jogando tudo no chão por cima do ombro. Conforme fazia

isso, o ar ia se impregnando de um tênue odor de lavanda. No começo o

homem tentou ajudá-la, mas ela não deu tempo. Quando ele estava

despido até a cintura, ela o sentou na cama e se ajoelhou para tirar seus

sapatos e as meias. Ele abriu ao mesmo tempo a fivela do cinto e a

braguilha, de maneira que ela só precisou puxar as calças para que

saíssem. Nenhum dos dois se preocupou com as chaves, nem com as

notas de dinheiro e as moedas nem com o canivete que rolaram pelo

chão. Por fim, ajudou-o a tirar a cueca ao longo das pernas e percebeu

que ele não era tão bem-dotado quanto seu esposo, que era o único

adulto que conhecia nu, mas estava sereno e hasteado.

Ela não deu a ele chance de ter nenhuma iniciativa. Encavalou-se

sobre ele até a alma e devorou-o só para ela e sem pensar nele, até que

os dois ficaram perplexos e exaustos em uma sopa de suor. Permaneceu

em cima, lutando contra as primeiras dúvidas da sua consciência

debaixo do ruído sufocante do ventilador, até que percebeu que ele não
respirava bem, aberto em cruz sob o peso do seu corpo, e se deitou de

barriga para cima ao seu lado. Ele permaneceu imóvel até que teve o

primeiro fôlego para perguntar:

— Por que eu?

— Foi uma inspiração — respondeu ela.

— Vindo de uma mulher como você — disse ele —, é uma honra.

— Ah — brincou ela. — Não foi um prazer?

Ele não respondeu, e ambos jazeram atentos aos ruídos de suas

almas. O quarto era belo na penumbra verde da lagoa. Ouviu-se um

bater de asas. Ele perguntou:

— O que é isso?

Ela falou dos hábitos das garças à noite. Depois de uma longa hora

de sussurros banais, começou a explorá-lo com os dedos, muito devagar,

do peito até o baixo-ventre. Continuou com o tato de seus pés ao longo

das pernas e comprovou que ele inteiro era coberto por uma penugem

espessa e suave feito musgo em abril. Depois tornou a buscar com os

dedos o animal em repouso, que encontrou desanimado, porém vivo. Ele

tornou tudo mais fácil mudando de posição. Ela o reconheceu com a

ponta dos dedos: o tamanho, a forma, o pequeno freio, a glande sedosa,

arrematada por uma dobrinha que parecia costurada com agulha de

enfardadeira. Contou os pontos tateando, e ele se apressou a esclarecer o

que ela havia imaginado:

— Fui circuncidado já adulto. — E acrescentou com um suspiro: —

Foi um prazer muito estranho.

— Até que enfim — disse ela sem clemência — algo que não foi

uma honra.

Ela se apressou em atacá-lo com beijos suaves na orelha, no pescoço,

ele a procurou com os lábios e os dois se beijaram na boca pela primeira

vez. Ela tornou a procurá-lo e o encontrou armado. Quis assaltá-lo de

novo, mas ele se revelou um amante sofisticado que a levou sem pressa

até o ponto de ebulição. Ela se surpreendeu com o fato de aquelas mãos

tão primárias serem capazes de semelhante ternura e tratou de resistir

flertando. Mas ele se impôs com firmeza, manejou-a a seu bel-prazer e a

fez feliz.

Eram duas da manhã quando um trovão sacudiu os alicerces do

hotel, e o vento forçou a tranca da janela. Ela se apressou em fechá-la, e


no meio-dia instantâneo de outro relâmpago viu a lagoa encrespada, e

através da chuva viu a lua imensa no horizonte e as garças-azuis batendo

asas sem fôlego na borrasca. Ele dormia.

De volta à cama enroscou os pés na roupa dos dois. Deixou a sua no

chão para recolher depois e pendurou o paletó dele na cadeira, pendurou

em cima a camisa e a gravata, dobrou as calças com cuidado para não

amassar e colocou em cima as chaves, o canivete e o dinheiro. O ar do

quarto tinha refrescado com a tormenta, e por isso vestiu a camisola

rosada de uma seda tão pura que fez sua pele arrepiar. O homem,

dormindo de lado e com as pernas encolhidas, pareceu a ela um órfão

enorme, o que a impediu de refrear uma rajada de compaixão. Deitou às

suas costas, abraçou-o pela cintura, e o brilho de seu corpo ensopado

acabou fazendo com que ele despertasse. Ele soltou um resmungo rouco

e se afastou dormindo. Ela cochilou um pouco e despertou na ausência

do ventilador elétrico quando a luz acabou e o quarto ficou numa

penumbra ardente. Ele roncava com um assovio contínuo. Por simples

travessura, ela começou a tocar nele com a ponta dos dedos. Ele parou

de roncar num sobressalto e começou a reviver. Ela o deixou de lado por

um instante e tirou a camisola num puxão só. Mas quando voltou a ele

foram inúteis as suas artes, pois percebeu que ele fingia estar dormindo

para não satisfazê-la uma terceira vez. Por isso tornou a vestir a camisola

e dormiu de costas para ele.

Seu horário habitual a despertou às seis. Ficou um instante

divagando com os olhos fechados, sem se atrever a admitir o latejar de

dor nas têmporas, nem a fria náusea, nem o desassossego por algo

desconhecido que sem dúvida esperava por ela na vida real. Pelo ruído

do ventilador, percebeu que a alcova já era visível na alvorada azul da

lagoa. De repente, como o raio da morte, foi fulminada pela consciência

brutal de que havia fornicado e dormido pela primeira vez na vida com

um homem que não era o seu. Assustada, voltou-se para olhá-lo por

cima do ombro, mas ele não estava. Tampouco estava no banheiro.

Acendeu as luzes e viu que a roupa dele não estava ali. Já a dela, que

tinha sido jogada no chão, agora estava dobrada e posta quase que com

amor na cadeira. Só então se deu conta de que não sabia nada dele, nem

mesmo o nome, e a única coisa que restava de sua noite louca era um

triste cheiro de lavanda no ar purificado pela borrasca. Só quando


apanhou o livro na mesinha de cabeceira para guardar na maleta foi que

percebeu que ele havia deixado entre suas páginas de terror uma nota de

vinte dólares.
2

Nunca mais voltaria a ser a mesma. Havia percebido isso na barca de

regresso, entre as hordas de turistas que sempre lhe tinham sido

indiferentes e que de repente e sem motivos claros se tornaram

abomináveis. Ela sempre foi uma boa leitora. Faltou pouco para terminar

o curso de Artes e Letras, leu com rigor o que tinha de ler e continuou

lendo aquilo de que mais gostava: romances de amor de autores

conhecidos, e, quanto mais longos e infelizes, melhor. Durante vários

anos continuou lendo romances curtos de qualquer gênero, como

Lazarilho de Tormes, O velho e o mar, O estrangeiro. Detestava os

livros da moda e sabia que não tinha tempo suficiente para se atualizar.

Nos últimos anos havia se metido a fundo nos romances sobrenaturais.

Mas naquele dia se estendeu ao sol no tombadilho e não conseguiu ler

nem uma letra, nem pensar em outra coisa que não fosse sua noite

anterior.

Os edifícios do porto, tão familiares e esbeltos desde seus anos de

colegial, pareceram-lhe estranhos e carcomidos pelo salitre. Pegou no

cais um ônibus tão decrépito quanto os de seus anos escolares,

abarrotado de pobres e com o rádio num volume de carnaval, mas o

daquele meio-dia sufocante pareceu a ela mais incômodo que nunca, e

pela primeira vez ficou incomodada com o mau humor e o fedor de

estábulo dos passageiros. As bancas tumultuadas do mercado público,

que desde menina tinha como tão suas e onde na semana anterior

estivera fazendo compras com a filha, sem o menor sobressalto, a

estremeceram como as ruas de Calcutá, onde grupos de lixeiros

golpeavam com bastões os corpos estendidos nas calçadas ao amanhecer

para saber se estavam dormindo ou se estavam mortos. No largo da

Independência viu a estátua equestre do Libertador inaugurada trinta

anos antes, e só naquele dia percebeu que o cavalo estava empinado, e a

espada, esgrimida para o céu.


Ao entrar em casa perguntou assustada a Filomena que desastre tinha

acontecido em sua ausência, pois os pássaros não cantavam nas gaiolas

e, no terraço interior, haviam desaparecido os vasos com flores

amazônicas, as samambaias penduradas, as guirlandas de trepadeiras

azuis. Filomena, a criada eterna, recordou a ela que tinha tirado tudo e

levado para o pátio, para que pegassem chuva, tal como ela mesma havia

ordenado antes de viajar. No entanto, ela precisou de vários dias para

tomar consciência de que as mudanças não eram no mundo, e sim nela

própria, que sempre andou pela vida sem enxergá-la e só naquele ano,

ao regressar da ilha, começou a vê-la com olhos de aprendiz.

Embora não estivesse ciente das razões de sua mudança, tinha algo a

ver com a nota de vinte dólares que levava na página cento e dezesseis

de seu livro. Ela tinha padecido com um sentimento insuportável de

humilhação e sem um instante de sossego. Havia chorado de raiva pela

frustração de não saber quem era o homem que ela teria de matar por ter

tornado vil a lembrança de uma aventura feliz. Durante a travessia do

mar se sentiu em paz consigo mesma por um ato sem amor que

qualificou para sua consciência como um assunto privado entre ela e seu

esposo, porém não conseguiu superar o incômodo que a nota lhe

causava, algo que sentia arder como uma brasa viva, não tanto na sua

carteira, mas no seu coração. Não sabia se emoldurava a nota como um

troféu ou se a destruía para conjurar a indignidade. A única coisa que

não lhe parecia decente era gastá-la.

O dia se estropiou por completo quando Filomena disse a ela que o

esposo ainda não havia se levantado às duas da tarde. Não recordava se

isso tinha acontecido alguma vez, a não ser nos poucos sábados em que

viravam a noite juntos e passavam domingos inteiros na cama.

Encontrou-o prostrado por uma dor de cabeça. Havia deixado as

cortinas abertas e a luz ofuscante das duas da tarde reverberava no

quarto. Ela fechou as cortinas e se preparou para animar o marido com

um cumprimento carinhoso, mas um pensamento sombrio a impediu.

Quase sem pensar, fez a ele a pergunta que mais temia:

— Posso saber onde você esteve ontem à noite?

Ele olhou assombrado para ela. Essa pergunta, a mais comum até

nos matrimônios felizes, nunca tinha sido ouvida em sua casa. Então,

mais por diversão do que por inquietação, ele perguntou:


— Onde ou com quem?

Ela levantou a guarda:

— O que você quer dizer com isso?

Mas ele driblou o desafio e contou que havia passado uma

esplêndida noite de jazz com Micaela, a filha deles. Em seguida mudou

de assunto:

— Aliás — disse —, você nem me contou como foi a viagem.

Ela pensou, alarmada, que sua pergunta imprópria poderia ter

revolvido nele as cinzas de alguma velha suspeita. A simples ideia a

aterrorizou.

— Foi a mesma coisa de sempre — afirmou.

Havia acabado a luz no hotel e de manhã não tinha água no chuveiro,

mentiu, por isso vinha sem ter tomado banho e com o suor de dois dias.

Mas o mar estava manso e fresco e tinha conseguido cochilar um pouco

na viagem.

Ele saltou da cama de cueca, como dormia sempre, e foi até o

banheiro. Era gigantesco, esportivo, e de uma beleza fácil. Ela o seguiu,

e os dois continuaram conversando lá dentro, ele no boxe do chuveiro

enevoado, e ela sentada na tampa da privada, como faziam quando

recém-casados. Retomou o tema da filha indomável, que se chamava

Micaela, como a avó enterrada na ilha, e estava empenhada em se tornar

monja, enquanto continuava de namorico com um virtuoso do jazz

pouco mais velho que ela e com quem ficava de farra até o amanhecer. A

mãe não entendia aquilo, mas naquela tarde entendeu menos ainda que a

filha se exibisse com o pai num antro de músicos drogados. O marido

soltou uma piadinha:

— Não vai me dizer que está com ciúmes da nossa própria filha.

Para ela teria sido um alívio dizer que sim, mas percebeu a tempo

que não era um bom dia para azedar uma conversa de amor. Ele

cantarolou debaixo do chuveiro os primeiros compassos do concerto de

piano de Grieg enquanto se ensaboava e, de repente, olhou para ela.

— Você não vem?

Ela teve uma só razão para titubear, e, para alguém tão escrupulosa

como ela, era uma razão de peso.

— Eu não tomo banho desde ontem — disse. — Estou cheirando a

cachorro.
— Mais uma razão — acrescentou ele. — A água está deliciosa.

Ela então tirou a camisa escocesa, a calça jeans e a calcinha rendada

com que havia regressado da ilha, pôs tudo no cesto de roupa suja e

entrou no boxe. Ele cedeu a ela seu lugar no chuveiro e a ensaboou como

sempre, dos pés à cabeça, sem interromper a conversa.

Nada de novo, pois souberam conservar certos costumes de amantes,

entre eles o de tomar banho no chuveiro juntos. No início faziam isso

porque começavam a trabalhar na mesma hora, e, em vez da eterna

disputa clássica de quem tomava banho primeiro, aprenderam a fazer

isso juntos. Um ensaboava o outro com tanto amor que muitas vezes

terminavam revirando-se no chão do banheiro, em cima de um tapete de

seda comprado por ela com o propósito de não estropiar suas costas com

os amores fulminantes.

Nos primeiros três anos foram pontuais todos os dias, de noite na

cama ou de manhã no banheiro, exceto nas tréguas sagradas das regras e

dos partos. Os dois viram a tempo as ameaças da rotina, e sem combinar

decidiram somar ao amor um grão de aventura. Numa época

costumavam ir a motéis, tanto os mais refinados como os mais

rastaqueras, até a noite em que o hotel foi assaltado à mão armada e os

dois foram deixados nus em pelo. Eram inspirações tão imprevisíveis

que ela se acostumou a levar os preservativos na bolsa para evitar

surpresas. Até que descobriram por acaso uma marca que trazia

impresso seu anúncio publicitário: Next Time Buy Lutecian. Foi assim

que inauguraram uma longa época em que cada amor feito levava o

prêmio de uma frase espirituosa, desde piadas obscenas até máximas de

Sêneca.

Com os filhos e as mudanças de horário, perderam o ritmo, mas

retomavam sempre que podiam, e toda vez era um amor alegre em que

até a loucura era admissível. Mesmo nos tempos menos propícios

inventavam um jeito de se renovar, até que deram a volta completa e

caíram de novo na rotina.

Ele se chamava Doménico Amarís, um homem de cinquenta e quatro

anos, bem-educado, bonitão e fino e diretor do Conservatório Estadual

fazia mais de vinte anos. Para além de sua excelente qualificação como

maestro, era um sedutor de salão e um caricaturista musical capaz de

salvar uma festa com um bolero de Agustín Lara no estilo Chopin ou


com um danzón cubano à Rachmaninoff. Tinha sido campeão

universitário de tudo: canto, natação, oratória, tênis de mesa. Ninguém

contava uma piada melhor que ele, nem conhecia como ele danças raras

como a contradança, o charleston e o tango apache. Era um

prestidigitador atrevido, que num jantar de gala no Conservatório

Estadual fez sair da sopeira um frango vivo batendo as asas quando o

governador a destampou para se servir. Não se sabia que ele jogava

xadrez até a noite em que foi desafiado por Paul Badura-Skoda depois de

um concerto glorioso e empataram onze partidas até as nove da manhã

seguinte. Sua carreira de piadista ferrenho esteve a ponto de culminar

em catástrofe, quando convenceu as gêmeas García a trocar de noivos, e

ambos quase se casaram com a irmã errada. Foi sua última gracinha,

porque nenhum dos noivos nem ninguém das duas famílias o perdoou

jamais. No entanto, Ana Magdalena tinha se adaptado a ele, se tornado

como ele, e os dois se conheceram tão a fundo que acabaram parecendo

um só.

Ele se sentia em seu grande momento e com ideias próprias. Sempre

havia pensado que a obra de um grande músico era inseparável de seu

destino e acreditava ter comprovado isso com o estudo sistemático da

música e da vida dos grandes mestres. Considerava que a obra mais

inspirada de Brahms era seu concerto para violino, e não entendia como

não havia composto, além dele, o concerto magistral de violoncelo que

finalmente Dvorák compôs. Havia abandonado a direção da orquestra e

deixado de escutar música gravada; preferia a música lida, a não ser para

apreciar uma versão muito rara, pois se contentava com as oficinas

experimentais que promovia em seu Conservatório Estadual.

Com esses critérios próprios, talvez indemonstráveis, estava

escrevendo um manual para um modo novo e mais humano de escutar

música e um coração diferente para interpretá-la. Tinha já bem

avançados os capítulos de três grandes exemplos: Mozart e Schubert,

gênios excepcionais, porém de vidas breves e infelizes, e Chausson, em

seu melhor momento vítima de um acidente absurdo de bicicleta.

A única preocupação familiar, na verdade, era o comportamento da

filha Micaela, uma rebelde encantadora. Continuava empenhada em

convencer os pais de que ser monja nesses tempos não era a mesma

coisa de antes e estava certa de que no alvorecer do terceiro milênio


acabariam até com o voto de castidade. O mais curioso é que a mãe se

opunha à sua vocação por motivos diferentes dos do pai. Para ele era um

assunto sem importância, pois já sobravam músicos na família. A

própria Ana Magdalena quis aprender a tocar trompete, mas não

conseguiu. A família inteira sabia cantar. Mas, no caso da filha, o

problema era que tinha adquirido o belo hábito de não dormir à noite. A

situação virou crise quando ela desapareceu um fim de semana inteiro

com seu trompetista mulato. Não recorreram à polícia porque nos meios

da boemia juvenil não havia amigo que não soubesse onde estavam. E

então: estavam na ilha. A mãe sofreu um terror tardio. Micaela tratou de

apaziguá-la com a notícia insólita de que havia levado uma rosa para o

túmulo da avó. Nunca souberam se era verdade, e a mãe não tinha a

menor vontade de averiguar. Só lhe comunicou que ela deveria tê-la

consultado por uma razão que a filha desconhecia e disse:

— Mamãe odeia rosas.

Doménico Amarís compreendia as razões da filha, mas não

desautorizava a esposa por lealdade, e, como sempre nesses casos, ficava

no limbo. Ainda bem que Micaela concordou por vários meses em não

virar a noite, a não ser nos fins de semana. Comia em família com

frequência, falava por telefone durante três horas por dia e se trancava no

quarto depois do jantar vendo filmes cujos gritos e explosões

transformavam a casa numa longa noite de terror. Para maior

desconcerto dos pais, nas conversas à mesa dava mostras de estar

ativamente informada e de exercer um critério maduro sobre a cultura

atual. E mais: por mera casualidade, a mãe ficou sabendo que os

telefonemas inesgotáveis não eram para o namorado do jazz, e sim para

uma catequista oficial das Carmelitas Descalças, e celebrou isso como

um mal menor.

Assim estavam as coisas na noite em que Ana Magdalena soltou no

jantar o temor de que a filha regressasse grávida de seus fins de semana,

e Micaela quis tranquilizá-la com a boa notícia de que um médico amigo

tinha implantado nela aos quinze anos um dispositivo infalível. A mãe,

que nunca tinha se atrevido a superar a audácia dos preservativos

ilustrados por frases, gritou para ela, fora de si e direto ao coração:

— Puta!
O silêncio que ficou depois do grito permaneceu vitrificado por

vários dias no ar da casa. Ana Magdalena chorou sem consolo trancada

no quarto, mais por vergonha de seu ímpeto do que por rancor da filha.

O marido se comportou como se não existisse enquanto a esposa

chorava, pois sabia que os motivos de suas lágrimas estavam só dentro

dela, embora ignorasse quais.

A inquietude dele assustou a mulher e consolidou o que parecia ser

uma nova atitude dos homens com relação a ela. Sempre fora assediada,

mas era tão indiferente a eles que os esquecia sem pena. Em

compensação, naquele ano, ao voltar da ilha, teve a impressão de que

trazia na testa um estigma que os homens viam e que não podia passar

despercebido para alguém que a amava tanto e a quem ela amava mais

do que ninguém. Os dois haviam sido fumantes ferozes de dois maços

diários durante muitos anos e tinham abandonado o vício juntos por um

pacto de amor. Mas ela havia reincidido na volta da ilha, e ele ficou

sabendo por causa da mudança de lugar dos cinzeiros, do cheiro do

tabaco usado, apesar da fumigação sigilosa dos purificadores de ar, e das

guimbas esquecidas por descuido.

Toda essa ordem mudou desde que ela voltou da ilha. Demorou

vários meses sem avançar na Antologia da literatura fantástica, de

Borges, Bioy Casares e Ocampo. Dormia mal, ia ao banheiro de

madrugada para fumar e dava descarga para se livrar das guimbas que

ele sabia que encontraria boiando quando despertasse às cinco. Não só

se levantava para fumar, mas ao contrário: fumava porque não tinha paz

para dormir. Às vezes acendia a luz para ler por escassos minutos,

apagava de novo, dava voltas e se revirava na cama com um cuidado

milimétrico para não despertar o marido. Até que ele se atreveu a

perguntar:

— O que é que há com você?

Ela respondeu secamente:

— Nada. Por quê?

— Perdão — disse ele —, mas é impossível, para mim, não perceber

como você voltou diferente. — E arrematou com seu tato delicado: —

Fiz alguma coisa errada?

— Não sei, porque nem eu mesma tinha percebido — respondeu ela,

com o temperamento que tanto assombrava o esposo. — Mas talvez você


tenha razão. Não será a impertinência de Micaela?

— É anterior a isso — disse ele. E se atreveu a dar o passo final: —

Você chegou da ilha assim.

Com as primeiras ondas de calor de julho, começou dentro de seu

peito um bater de asas de borboletas que não daria trégua até que

voltasse para a ilha. Foi um mês longo, e alongado ainda mais pela

incerteza. Sempre tinha sido uma viagem tão simples como um domingo

de praia, mas a daquele ano foi presidida pelo pânico de se encontrar

com o amante fugaz dos vinte dólares que já havia repudiado em seu

coração. Em vez da calça jeans e da maleta de praia dos anos passados,

vestiu um conjunto de linho cru e sandálias douradas e fez a mala com

roupa formal, sandálias de salto alto e um enfeite de falsas esmeraldas.

Sentiu-se outra: nova e capaz.


3

Ao desembarcar na ilha, viu seu táxi mais decadente do que nunca e se

decidiu por outro, novo e refrigerado. Como não conhecia hotéis além

do seu, ordenou ao motorista que a levasse até o novo Carlton, uma

montanha de vidros dourados que tinha visto crescer entre florestas de

ferro nas três viagens anteriores. Não foi possível encontrar um quarto à

sua altura no auge de agosto, mas deram a ela um bom desconto para as

suítes geladas do décimo oitavo andar, que dominavam o horizonte

circular do Caribe e a lagoa imensa até o contorno da serra. O preço era

um quarto de seu salário mensal de professora, mas o esplendor, o

silêncio e o clima primaveril do vestíbulo e a solicitude dos empregados

infundiram nela o sentimento de segurança que devia a si mesma.

Das três e meia da tarde, quando chegou, até as oito da noite, quando

desceu para jantar, não teve um instante de sossego. Os gladíolos da loja

de flores do hotel pareceram esplêndidos, mas dez vezes mais caros,

então ela se conformou com os da sua florista das vezes anteriores. Foi

ela a primeira a preveni-la acerca do novo cemitério de turistas, que se

anunciava como um jardim de flores naturais com músicas e pássaros à

beira da lagoa, mas onde enterravam os corpos em posição vertical para

ganhar espaço.

Chegou ao cemitério da ilha depois das cinco da tarde, e o sol não

estava tão forte quanto em outros anos. Alguns túmulos já tinham sido

esvaziados, e nas laterais do caminho havia escombros de ataúdes e

ossos perdidos entre montes de cal viva. Na pressa tinha esquecido as

luvas de jardinagem, e precisou limpar o túmulo com mãos

desprotegidas enquanto contava para a mãe as notícias do ano anterior.

A única notícia boa foi a do filho, que em dezembro estrearia como

solista da Orquestra Filarmônica com as Variações sobre um tema

rococó, de Tchaikovsky. Fez milagres para salvar a reputação da filha

sem falar de sua vocação religiosa, o que não teria sido uma boa
referência para a mãe. Por último, com o coração na mão, fez a

confidência de sua noite de amor livre no ano anterior, que tinha

reservado só para ela, e só para aquele momento. Contou a ela que tinha

sido com um homem sem nome nem alma. Estava tão convencida de

que ela mandaria seu sinal de aprovação que o esperou naquele instante.

Olhou a paineira florescida, cujos repetidos ramos iam com o vento; viu

o céu, o mar, o avião de Miami com mais de uma hora de atraso no céu

incessante.

Quando voltou para o hotel, sentiu vergonha do estado da sua roupa

e do cabelo sujo de poeira. Não tinha ido ao cabeleireiro desde o ano

anterior, pois seu cabelo era bom e domado e tinha se adaptado à sua

personalidade. Um estilista pedante e seboso, que merecia o nome de

Narciso mais do que o de Gastón, a recebeu com todo tipo de sugestão

tentadora sobre o que poderia fazer com seu cabelo e terminou por fazer

um penteado de grande dama que ela mesma fazia sem tanta retórica

para suas noites mais comuns. Uma manicure maternal cuidou das suas

mãos maltratadas, por ter limpado o túmulo no cemitério, com bálsamos

de toucador, e ela se sentiu tão bem que prometeu voltar no ano seguinte

na mesma data para tentar uma mudança de estilo. Gastón explicou a ela

que a conta ia para a fatura do hotel, menos os dez por cento da gorjeta.

Quanto seria?

— Vinte dólares — disse Gastón.

Ela se crispou por uma coincidência inconcebível que só podia ser o

sinal que esperava de sua mãe para cauterizar as feridas da sua aventura.

Tirou a nota que havia queimado durante um ano no fundo da sua

carteira como a chama eterna do amante desconhecido e entregou,

encantada, ao cabeleireiro.

— Bom proveito — disse feliz. — São dólares de carne e osso.

Outros mistérios daquele hotel extravagante não foram tão fáceis

para Ana Magdalena Bach. Quando acendeu um cigarro, um alarme de

som e luz disparou, e uma voz autoritária disse em três idiomas que ela

estava num quarto para não fumantes. Precisou pedir ajuda para

descobrir que com o mesmo cartão de abrir a porta se acendiam as luzes

e se ligavam a televisão, o ar-condicionado e a música ambiente.

Ensinaram-lhe digitar no teclado eletrônico da banheira redonda para

regular as funções erótica e clínica da jacuzzi. Louca de curiosidade,


tirou a roupa ensopada de suor pelo sol do cemitério, pôs a touca de

banho para proteger o penteado e se entregou ao redemoinho de espuma.

Feliz, telefonou para casa e gritou a verdade para o marido:

— Você não tem ideia da falta que você me faz.

Foram tão vivas as declarações que ele sentiu ao telefone a excitação

dela na banheira.

— Caralho — disse ele —, você me deve essa.

Quando desceu para jantar, eram oito. Pensou em pedir alguma coisa

pelo telefone para comer, para não precisar se vestir, mas o preço do

serviço de quarto fez com que decidisse comer como pobre na cafeteria.

O vestido de seda preta, tubular e longo demais para a moda, caía bem

com seu penteado. Sentiu-se meio desprotegida por causa do decote,

mas o colar, os brincos e os anéis de esmeraldas falsas elevaram seu

moral e aumentaram o fulgor dos seus olhos.

Terminou rápido o café com leite e o sanduíche de presunto e queijo

na cafeteria. Angustiada pelos gritos dos turistas e pela música

estridente, decidiu voltar para o quarto e ler O dia das trífides, de John

Wyndham, que estava na fila havia uns três meses. O remanso do

vestíbulo a reanimou, e, ao passar diante do cabaré do hotel, um casal

profissional que dançava a Valsa do Imperador com uma técnica perfeita

atraiu sua atenção. Permaneceu absorta à porta, mesmo depois de o

casal haver terminado a exibição e a pista de dança ter sido invadida pela

clientela comum. Uma voz doce e varonil, muito perto de suas costas,

tirou-a da letargia:

— Vamos dançar?

Estava tão perto que ela percebeu o tênue cheiro do medo dele sob a

loção de barbear. Então o olhou por cima do ombro e perdeu o fôlego.

— Perdão — disse atordoada —, mas não estou vestida para dançar.

A réplica dele foi imediata:

— Quem faz o vestido é você.

A frase a impressionou. Num gesto inconsciente apalpou o corpo

com as mãos, o decote profundo, os seios vivos, os braços nus, para

comprovar que seu corpo estava mesmo onde ela o sentia. Então olhou

de novo por cima do ombro, não mais para conhecer o dono da voz, mas

para se apropriar dele com os olhos mais belos que ele viu na vida.
— Você é muito gentil — disse com encanto. — Já não há homens

que digam essas coisas.

Então ele se pôs a seu lado e reiterou em silêncio o convite para

dançar com a mão lânguida. Ana Magdalena Bach, sozinha e livre em

sua ilha, agarrou aquela mão como se estivesse à beira de um precipício,

com todas as forças de seu corpo. Dançaram três valsas à moda antiga.

Ela supôs desde os primeiros passos, pelo cinismo da sua maestria, que

ele fosse um profissional contratado para animar as noites dos turistas e

se deixou levar em círculos de voo, mas o manteve firme, à distância de

seu braço. Ele disse, olhando-a nos olhos:

— Dança como uma artista.

Ela sabia que era verdade, mas também sabia que ele teria dito

aquilo a qualquer mulher que quisesse levar para a cama. Na segunda

valsa, ele tentou apertá-la junto ao corpo, mas ela o manteve em seu

devido lugar. Ele entendeu o recado e se esmerou em sua arte, levando-a

pela cintura com a ponta dos dedos, como uma flor. Ela correspondeu de

igual para igual. Na metade da terceira valsa era como se o conhecesse

desde sempre.

Nunca teria imaginado um homem tão belo numa embalagem tão

antiquada. Tinha a pele lívida, os olhos ardentes debaixo de

sobrancelhas frondosas, o cabelo de um azeviche absoluto alisado com

brilhantina e perfeitamente dividido ao meio. O smoking tropical de

seda crua apertado em seus quadris estreitos completava sua aparência

de almofadinha. Tudo nele era tão falso quanto suas maneiras, mas os

olhos febris pareciam ávidos de compaixão.

Ao fim da balada de valsas ele a conduziu para uma mesa afastada,

sem aviso nem pedido de licença. Não era necessário: ela já antecipara

tudo, e se alegrou por ele pedir champanhe. O salão na penumbra era

bonito, e cada mesa tinha o próprio ambiente de intimidade.

Descansaram durante as músicas no ritmo de salsa, observando os casais

desenfreados, e ela sabia que ele só tinha uma coisa a dizer. Foi rápido.

Tomaram meia garrafa de champanhe. A música terminou às onze, e foi

anunciada a presença especial de Elena Burke, a rainha do bolero,

apenas por uma noite em sua turnê triunfal pelo Caribe. Apareceu

assim, iluminada pelas luzes e num estrondo.


Ana Magdalena calculou que ele não devia ter mais que trinta anos,

porque mal se virava no bolero. Ela o conduziu com tato, e ele pegou o

passo. Ela o manteve a distância, desta vez não por decoro, mas para não

dar a ele o gosto de sentir em suas veias o sangue febril pelo champanhe.

Mas ele a forçou, primeiro com suavidade, depois com toda a força seu

braço na cintura. Ela então sentiu na coxa o que ele queria que sentisse

para demarcar seu território. Sentiu a fraqueza dos joelhos e se

amaldiçoou pelo latejar do sangue nas veias e pelo ardor insuportável da

respiração. No entanto, conseguiu se recompor e recusou a segunda

garrafa de champanhe. Ele deve ter percebido, pois a convidou para um

passeio pela praia. Ela dissimulou seu desgosto com uma frivolidade

compassiva:

— Sabe qual é a minha idade?

— Não consigo imaginar nenhuma idade — disse ele. — Só a que

você quiser ter.

Não tinha terminado de falar quando ela, cansada de tanta mentira,

propôs ao próprio corpo o dilema determinante: agora ou nunca.

— Sinto muito — disse, pondo-se em pé. — Preciso ir embora.

Ele deu um salto, confuso.

— O que houve?

— Tenho que ir — disse ela. — Champanhe não é o meu forte.

Ele propôs outros programas inocentes, talvez sem saber que quando

uma mulher vai embora não há ser humano nem divino que a detenha.

Finalmente se rendeu.

— Posso acompanhá-la?

— Não precisa se incomodar — disse ela. — E obrigada de verdade,

foi uma noite inesquecível.

No elevador, já estava arrependida. Sentia um ódio feroz de si

mesma. O prazer de ter feito o que devia, porém, compensava. Entrou no

quarto, tirou os sapatos, jogou-se na cama de barriga para cima e

acendeu um cigarro. Os alarmes de incêndio dispararam. Quase ao

mesmo tempo bateram à porta, e ela amaldiçoou o hotel onde a lei

perseguia os hóspedes até na intimidade da privada. Mas quem bateu à

porta não foi a lei, foi ele. Parecia uma figura de museu de cera na

penumbra do corredor. Ela constatou isso com a mão na maçaneta da


porta, sem um pingo de indulgência, e afinal lhe abriu caminho. Ele

entrou como se estivesse na própria casa.

— Ofereça-me alguma coisa — disse.

— Sirva-se você mesmo — disse ela sem a menor tensão. — Não

tenho a menor ideia de como funciona esta nave espacial.

Ele, por sua vez, sabia tudo. Modulou as luzes, pôs a música

ambiente e serviu duas taças de champanhe do frigobar com a maestria

de um diretor de teatro. Ela se entregou ao jogo, não como si mesma, e

sim como protagonista de seu próprio papel. Estavam no brinde quando

o telefone tocou. Ela atendeu. Um segurança do hotel lhe advertiu de

modo muito cortês que ninguém poderia permanecer numa suíte depois

da meia-noite sem se registrar na recepção.

— Não precisa explicar, por favor — interrompeu-o, envergonhada.

— O senhor me desculpe.

Desligou com a cara tomada pelo rubor. Ele, como se tivesse ouvido

a advertência, justificou-a com uma razão simples:

— São mórmons.

E sem mais delongas convidou-a para contemplar o eclipse total da

lua na praia dali a uma hora e quinze minutos. Era uma novidade para

ela. Tinha uma paixão infantil por eclipses, mas a noite inteira havia se

debatido entre o decoro e a tentação, e não encontrou um argumento

válido para se decidir.

— Não temos escapatória — disse ele. — É o nosso destino.

A invocação sobrenatural dispensou-a de escrúpulos. E assim foram

ver o eclipse no suntuoso furgão dele, numa pequena baía escondida por

um bosque de coqueiros sem sinal de turistas. No horizonte via-se o

resplendor da cidade ao longe, e o céu estava diáfano e cheio de estrelas,

com uma lua solitária e triste. Ele estacionou ao abrigo das palmeiras,

tirou os sapatos, afrouxou o cinto e inclinou o assento para relaxar. Só

então ela descobriu que o furgão não tinha nada mais do que os dois

bancos dianteiros, que se transformavam em camas ao apertar um botão.

O restante era um bar mínimo, um aparelho de som tocando o sax de

Fausto Papetti e um banheiro minúsculo com um bidê portátil atrás de

uma cortina carmesim. Ela entendeu tudo.

— Não vai ter eclipse — disse.

Ele lhe assegurou que tinha sido anunciado.


— Não vai ter — disse ela. — Os eclipses só podem acontecer em

lua cheia, e estamos em quarto crescente.

Ele se manteve imperturbável.

— Então será do sol — disse. — Temos mais tempo.

Não houve mais formalidades. Os dois já sabiam para onde iam, e

ela sabia que era a única coisa digna que podia esperar dele desde que

dançaram o primeiro bolero. Ficou assombrada com a destreza de

mágico com que a despiu peça por peça, com a ponta dos dedos e quase

sem tocá-la, como quem descasca uma cebola. Na primeira investida

sentiu que ia morrer de dor, com uma comoção atroz de bezerra

esquartejada. Ficou sem ar e empapada de um suor gelado, mas apelou

aos seus instintos primários para não se sentir menor, nem permitir-se

sentir menos que ele, e juntos se entregaram ao prazer inimaginável da

força bruta subjugada pela ternura. Nunca se preocupou em saber quem

ele era, nem quis, até uns três anos depois daquela noite brutal, quando

reconheceu na televisão seu retrato falado de vampiro triste procurado

pela polícia do Caribe como vigarista e gigolô de viúvas

desassossegadas e provável assassino de duas delas.


4

Ana Magdalena Bach encontrou seu homem do ano seguinte na barca

que a levava para a ilha. Havia ameaça de chuva, o mar parecia de

outubro, e ficar ao ar livre era incômodo. Uma banda de música

caribenha começou a tocar assim que a barca zarpou, e um grupo de

turistas alemães dançou sem parar até a ilha. Ela buscou refúgio no

restaurante deserto às onze da manhã para se concentrar na leitura de As

crônicas marcianas, de Ray Bradbury. Tinha quase conseguido quando

foi interrompida por um grito:

— Este é meu dia de sorte!

O doutor Aquiles Coronado, um advogado de grande prestígio,

amigo dela desde a escola e padrinho de batismo da filha, se aproximava

pelo saguão com os braços abertos e seu andar pesado de grande

primata. Levantou-a pela cintura e a sufocou de beijos. Sua simpatia um

tanto teatral despertava mais desconfiança do que o normal, mas ela

sabia que seu alvoroço era sincero. Correspondeu com a mesma alegria e

se sentou ao lado dela.

— Que barbaridade — disse ele —, só nos vemos em casamentos e

enterros.

Na verdade, não se encontravam havia três anos, e isso ficou tão

evidente que ela se horrorizou com a ideia de que ele a visse com o

mesmo espanto com que ela o via. Permaneciam nele seus ímpetos de

gladiador, mas tinha a pele enrugada, uma papada renascentista e uns

fiapos de cabelos amarelados arrepiados pela brisa do mar. Desde que se

conheceram na escola secundária ele já era um especialista em amores

fáceis cujas audácias não passavam de um cinema furtivo às seis da

tarde. No entanto, tinha contraído um matrimônio afortunado que deu a

ele mais nome e dinheiro que toda uma vida de código civil.

Seu único fracasso foi com Ana Magdalena Bach, que fechou o

caminho para ele desde a primeira tentativa aos quinze anos. Quando
ambos já estavam casados, e com filhos, ele reiniciou a ofensiva crua e

um tanto atrevida para levá-la para a cama sem argumentos

sentimentais. Ela o submeteu ao método implacável de não o levar a

sério, mas ele endureceu sua tática até que encheu a casa dela de flores e

lhe mandou duas cartas ardentes que conseguiram comovê-la. No

entanto, ela se manteve firme para não estropiar a bela amizade de uma

vida inteira.

Quando tornaram a se encontrar na barca, ele se mostrou impecável,

e ninguém era impecável como ele quando se propunha a sê-lo.

Despediu-se dele no cais, pois mal tinha tempo de fazer o que devia para

regressar na barca das quatro. Ela respirou fundo. Tinha sonhado a cada

momento com aquele novo 16 de agosto, e a lição não admitia dúvidas:

era absurdo esperar um ano inteiro para apostar o resto da vida ao acaso

de uma noite. Estabeleceu que a primeira aventura fora posta ao seu

alcance por uma casualidade afortunada, mas que ela a tinha escolhido,

enquanto na segunda a escolhida tinha sido ela. A primeira havia sido

arruinada pelo sabor ruim da nota de vinte dólares, mas o homem valia a

noite. A segunda, por sua vez, tinha sido a deflagração de um prazer

sobrenatural que deixou em seu ventre uma trilha de fogo seguida por

três dias de compressas e banhos de assento.

Com relação aos hotéis, o de sempre tinha sido o melhor, mais

administrável e mais parecido com ela, mas com o risco de já ser

conhecida. O do segundo ano era de uma modernidade opressiva que

terminava por ser de um moralismo medieval. No fim das contas, o erro

de se vestir para a noite num hotel tão pretensioso só podia levar ao risco

de que o amante casual não lhe deixasse uma nota de vinte, e sim uma

de cem. Então nessa terceira vez decidiu ser ela mesma, vestir-se como

ela mesma e reservar a liberdade de escolha para si, e não para o acaso.

Lembrou-se do primeiro homem com certa indulgência pela sua falta de

tato. Sentiu que as feridas começavam a cicatrizar e desejou com suas

entranhas encontrá-lo e levá-lo para a cama, desta vez sem susto nem

pressa, e com a confiança típica de dois amantes antigos.

Com a ajuda de um taxista diferente escolheu um hotel de cabanas

rústicas num bosque de amendoeiras, com um grande pátio de dança e

mesas de jantar ao redor e um anúncio a altos brados da apresentação

especial de Célia Cruz, a grande cantora cubana. A cabana que deram a


ela pareceu reservada e fresca, a cama confortável e larga até para três, e

sua localização entre as árvores não podia ser melhor. O agitar de asas

de borboletas dentro do peito tornou-se insuportável só de pensar em ter

o homem da sua vida até o amanhecer.

Continuava chuviscando no cemitério. Chamou sua atenção que

tivessem limpado o mato dos túmulos, aplanado os caminhos e retirado

restos de ataúdes e ossos sem donos. Contou à mãe em minúcias do bom

ano do marido no Conservatório, apesar das penúrias financeiras do

município, dos progressos do filho na orquestra e do fracasso de seus

esforços para impedir que a filha ingressasse no convento.

De volta ao hotel, viu um lindo huipil de Oaxaca numa loja para

turistas e achou que era o mais apropriado para a noite. Sentia-se dona

de si. Leu sem surpresas o terceiro conto de As crônicas marcianas,

telefonou para o esposo e se distraíram com brincadeiras de amor.

Tomou banho, viu-se no espelho tão bela e livre quanto a rainha asteca

que inspirou o huipil, a não ser pelos sapatos de verniz. Pensou que o

apropriado para seu traje de noite seriam os pés descalços, mas não se

atreveu. E assim foi para a pista de dança com aquela frustração

passageira, mas com a certeza de se antecipar ao acaso.

As amendoeiras pareciam de Natal com guirlandas de luzes

coloridas, e o pátio estava alegre com gente jovem de todas as cores,

louras com seus negros de ocasião e velhos matrimônios resignados. Ela

se sentou a uma mesa afastada, com as antenas alertas, quando alguém

atrás dela cobriu seus olhos com as mãos. Animada, ela tocou essas

mãos e reconheceu no tato um relógio maciço no pulso esquerdo e uma

aliança no anular, mas não arriscou nenhum nome.

— Eu me rendo — disse.

Era Aquiles Coronado. Tinha precisado adiar o regresso até o dia

seguinte e não achava justo que cada um jantasse em seu canto se os

dois estavam sozinhos na ilha. Não sabia em que hotel estava, mas o

marido dela lhe informou pelo telefone, encantado que os dois fossem

jantar juntos.

— Não tive um minuto de sossego desde que nos despedimos, mas

cá estou — concluiu feliz. — A noite é nossa.

Ela sentiu que o mundo afundava debaixo de seus pés, mas manteve

a serenidade.
— Na barca, você estava impecável — disse a ele com uma graça

calculada. — Dá para notar que a idade fez de você uma pessoa mais

ajuizada.

— Pois é — concordou ele —, mas não pense que me alegro com

isso.

Ela não quis champanhe. Disse que estava com dor de cabeça pelo

almoço na barca e que sentia subir à garganta uma náusea gelada. Ele

pediu um uísque duplo com gelo. Ela se conformou com uma aspirina,

que tomou como veneno.

A apresentação começou com um trio especializado em canções de

Los Panchos. Ninguém prestou atenção, e Aquiles Coronado menos

ainda. Ele se desafogou de uma paixão que havia crescido dentro dele

desde a adolescência, pois só era feliz porque pensava em Ana

Magdalena Bach quando fazia amor com a esposa no escuro. Ela

começou a ganhar tempo para que ele bebesse. Sabia que não era bom

de copo, que um uísque atrás do outro o arrastariam sem dúvida para o

precipício e deixou que ele despencasse sozinho. Ele sabia que ela

jamais faria a caridade de satisfazê-lo, mas suplicava por um minuto na

cama, só um minuto, para beijá-la vestida. Sem saber na realidade o que

dizer, ela falou:

— Entre compadres é pecado mortal.

— Estou falando sério — disse ele, ferido pelo deboche, e deu um

tapa na mesa. — Caralho!

Ela se atreveu a olhar nos olhos dele e comprovou o que já tinha

sentido em sua voz: ele chorava oceanos. Então se levantou da mesa sem

uma palavra, voltou para o quarto e se jogou na cama para chorar de

raiva.

Quando recuperou o humor, tinha passado da meia-noite. Sua cabeça

doía, e perder a noite doía ainda mais. Arrumou-se um pouco e desceu

disposta a recuperá-la. Tomou um gim com soda num tamborete no bar

do jardim abandonado pelos turistas madrugadores. Chegou uma figura

andrógina de músculos artificiais com correntes e pulseiras de ouro,

cabelos dourados e a pele avermelhada com unguentos para sol. Bebeu

no balcão uma bebida fosforescente. Ela se perguntou se seria capaz de

se insinuar para o barman, que era jovem e atraente, e respondeu a si

mesma que não. Chegou a se perguntar se seria capaz de sair à rua e


parar automóveis até encontrar alguém que alegrasse seu agosto, e a

resposta foi idêntica: não. Perder a noite era perder um ano, mas eram

três da madrugada e não havia remédio: estava perdido.

As relações com seu marido tinham experimentado variações notáveis

naqueles três anos, e ela as interpretava de acordo com o estado de

ânimo com que regressava da ilha. O homem dos vinte dólares, cuja

lembrança a amargurava, tinha aberto seus olhos para a realidade de seu

matrimônio, sustentado até então por uma felicidade convencional que

desviava das divergências para não tropeçar nelas, como a sujeira que é

escondida debaixo do tapete. Nunca antes haviam sido tão felizes. Os

dois se entendiam sem falar, morriam de rir das próprias travessuras e

faziam amor de um jeito tão atarantado que pareciam adolescentes.

O destino da filha se resolveu facilmente e sem pressa. Despediram-

se dela numa noitada íntima, que teve como convidado o músico de jazz

com sua nova namorada. Doménico e ele improvisaram uma revisão

muito pessoal dos contrastes para piano e saxofone de Béla Bartók e

todos se tornaram velhos amigos à primeira vista.

A filha foi entregue às Carmelitas Descalças na missa comum do

convento. Ana Magdalena e o esposo se vestiram para um funeral, mas

Micaela chegou com uma hora de atraso e sem ter dormido, com o

huipil da mãe, seus eternos tênis, a maleta com seus artigos de toucador

e um álbum de Van Morrison que tinha ganhado dos pais na última

hora. Um padre meio adolescente, de pele biliosa e um braço engessado,

dedicou a ela uma fala festiva com uma derradeira oportunidade para

que se arrependesse caso não estivesse certa de sua vocação. Ana

Magdalena gostaria de ter dedicado à filha o tributo de uma lágrima de

adeus, mas não conseguiu num ambiente tão convencional.

A vida havia mudado depois da terceira viagem. Ao voltar para casa,

Ana Magdalena havia tido a impressão de que o marido começava a se

fazer perguntas sobre suas noites na ilha. Pela primeira vez quis saber

quem ela tinha visto. Poderia ter contado a ele o incidente completo com

o doutor Aquiles Coronado, pois o marido sabia daqueles assédios senis,

mas se deteve a tempo, para não dar a ele outro motivo para continuar

pensando nas noites da ilha.


O amor tinha passado a ser diferente. De provocador e travesso na

cama, Doménico se tornou inapetente e perturbado. A esposa não

atribuiu isso à idade, mas a alguma suspeita que o marido pudesse ter de

suas noites na ilha. Porém uma reflexão mais razoável inverteu a

situação, e então foi ela que começou a pensar que o marido sofria um

desgaste secreto fora de casa.

Ana Magdalena havia se adaptado a ele, se tornado como ele, e ele a

conhecia tão a fundo que acabaram sendo um só. Antes de se casarem,

ela fora prevenida sobre a maneira de ser do noivo. Principalmente no

que dizia respeito a seu poder de sedução e seu charme implacável, em

especial com suas alunas de música, mas ela não deu ouvidos a rumores

nem se deixou ganhar pela dúvida. No entanto, quando firmaram o

compromisso, ela não conseguiu resistir à tentação de lhe perguntar, e

ele negou tudo. Disse, brincando, que era virgem, mas falou com tanta

convicção que ela se casou com a ilusão de que era verdade. Nada a

perturbou até pouco antes do nascimento da filha, quando uma amiga de

colégio que ela não via fazia anos perguntou num banheiro público

como ela havia conseguido que o marido rompesse com a namorada de

adolescência. Ela a cortou bruscamente, e não só a apagou de sua vida

como aumentou a distância que sempre mantivera até de suas melhores

amigas.

Suas razões para confiar no marido naquela época lhe pareciam

muito fortes. Apesar de faltar menos de dois meses para o parto, não

tinham diminuído as frequências nem os ardores do amor. De maneira

que era uma impossibilidade biológica que restasse nele energia para

outra cama depois de acalmar o desejo dela alvoroçado pela gestação.

Mas, como o rumor persistia, ela pôs a batata quente nas mãos dele com

uma fórmula mortal:

— Qualquer coisa que eu souber de você, a culpa será sua.

Não houve mais incidentes até depois da terceira viagem, quando

aplacou os ardores da própria consciência com a suspeita de que ele a

enganava. Os indícios eram fortes. Doménico demorava na rua até muito

depois do horário oficial do Conservatório, ao voltar para casa ia direto

se perfumar no banheiro antes de cumprimentar alguém, para encobrir

com suas loções conhecidas qualquer odor alheio, e dava explicações

detalhadas demais de onde estava, o que tinha feito e com quem, sem
que ninguém tivesse perguntado. Certa noite, depois de uma

apresentação de gala em que o esposo havia tido um êxito fora do

comum, ela decidiu confrontá-lo. Ele estava na cama lendo a partitura

de Così fan tutte. Ela acabou de ler O ministério do medo, que tinha

começado na ilha; apagou a luz de cabeceira ao seu lado e se virou para

a parede sem se despedir. Ele, por diversão, disse a ela:

— Boa noite, senhora.

Ela se deu conta de que havia falhado no ritual e se apressou na

correção:

— Ai, perdão, meu amor — disse, e deu o beijo rotineiro de todas as

noites. Ele solfejava aos sussurros para não a acordar.

De repente, ainda de costas, ela disse:

— Pelo menos uma vez na vida, Doménico, me diz a verdade.

Ele sabia que seu nome na boca da esposa era sinal de tempestade, e

apressou-a com sua serenidade habitual:

— O que foi?

Ela não foi menos serena:

— Quantas vezes você foi infiel?

— Infiel, nunca — disse ele. — Mas se o que você quer saber é se eu

fui para a cama com alguém, há anos me advertiu que não queria saber.

E mais: quando se casaram, tinha dito a ele que não se importaria se

ele fosse para a cama com outra, com a condição de que não fosse

sempre com a mesma, ou que fosse só uma vez. Mas na hora da verdade

voltou atrás.

— Essas coisas a gente diz por aí — falou ela —, mas não para

serem tomadas tão ao pé da letra.

— Se eu disser que não, tenho certeza de que você não vai acreditar

— falou ele —, e, se disser que sim, você não vai suportar. O que

fazemos?

Ela sabia que um homem não daria tamanha volta para dizer que

não, e seguiu em frente:

— E quem foi a afortunada?

Ele disse com uma fluidez natural:

— Uma de Nova York.

Ela começou a levantar a voz:

— Mas quem era?


— Uma chinesa — respondeu ele.

Ela sentiu que o coração se fechou feito um punho e se arrependeu

de ter provocado aquela dor inútil, mas ainda assim se empenhou em

saber de tudo. Para ele, porém, o pior tinha passado, e contou tudo com

um desinteresse calculado.

Tinha sido uns doze anos antes, no hotel de Nova York onde ele

ficou com sua orquestra num fim de semana durante o Festival de

Wagner. A chinesa era primeiro violino da orquestra de Pequim,

instalada no mesmo andar. Quando ele acabou de contar, Ana

Magdalena estava em carne viva. Desejava matar os dois, não com um

tiro de misericórdia, mas cortando os dois pouco a pouco em fatias

transparentes com uma fatiadora de presunto. Porém deixou a ferida

respirar com outra pergunta que a intrigava:

— Você pagou?

Ele respondeu que não, porque não era uma prostituta. Ela se

manteve firme:

— E, se fosse, quanto você teria pagado?

Ele levou a pergunta a sério e não soube responder.

— Não banque o bobo — disse ela, rouca de raiva. — Quer que eu

acredite que um homem não sabe quanto custa uma puta de hotel?

Ele foi sincero.

— Pois olha só, não sei — disse —, e muito menos se for chinesa.

Então ela o foi cercando com uma angústia insuportável.

— Pois bem: se tivesse sido amável e boa, e você quisesse deixar

uma lembrança, quanto teria colocado dentro de um livro?

— Livro? — questionou ele, surpreso. — As putas não leem.

— Responde alguma coisa, caralho — disse ela, se esforçando para

não perder as estribeiras. — Quanto você teria deixado para ela se

tivesse achado que era uma puta e não quisesse acordá-la antes de ir

embora?

— Não tenho a menor ideia.

— Vinte dólares?

Ele se sentiu perdido na obscuridade da pergunta.

— Não sei — respondeu. — Pode ser que sim, pelo custo de vida

daquele tempo talvez fosse o bastante.


Ela fechou os olhos para controlar a respiração e para não dar a ele o

gostinho de perceber sua raiva, e perguntou de surpresa:

— Vocês fizeram na horizontal?

Ele não conseguiu segurar o riso, e ela se juntou a ele. Mas parou de

modo brusco e precisou fechar os olhos para reprimir as lágrimas.

— Estou rindo — disse com a mão no peito —, mas não desejo a

você jamais o que estou sentindo aqui dentro. É a morte.

Ele tratou de esconjurar o mau momento com um solfejo inventado.

Ela fez um esforço para dormir, mas não conseguiu. Acabou

desabafando em tom alto para que ele ouvisse, mesmo se estivesse

dormindo.

— Que caralho! — disse. — Os homens são todos iguais: uma

merda.

Ele precisou engolir a raiva. Teria dado tudo para aniquilá-la com

uma réplica mortal, mas a vida lhe ensinara que, quando uma mulher dá

sua palavra final, todas as outras sobram. E por isso não tornaram a

tocar no assunto naquele momento nem nunca mais.


5

A noite do 16 de agosto do ano seguinte já estava prevista pelo seu

destino. Encontrou a ilha desordenada por uma convenção mundial de

turismo, sem um quarto disponível nos hotéis e as praias ocupadas por

barracas e trailers. Depois de procurar durante duas horas um lugar

qualquer para dormir, recorreu a seu esquecido Hotel do Senador,

renovado, limpo e mais caro, mas sem nenhum dos empregados de seus

primeiros tempos.

Não houve a quem apelar para encontrar um quarto. E mais: um

cliente de aspecto respeitável protestava indignado porque sua reserva

confirmada duas vezes não aparecia na lista. Tinha a parcimônia de um

magnífico reitor, uma voz pausada e mansa e um talento impressionante

para os impropérios galantes. O único funcionário na recepção tentava

conseguir por telefone um quarto em outro hotel. Ansioso por

compartilhar sua raiva, o cliente se dirigiu a Ana Magdalena:

— Esta ilha é um caos — disse, e mostrou-lhe o comprovante de sua

reserva confirmada.

Ela não conseguiu ler sem os óculos, mas entendeu sua indignação.

Finalmente o funcionário os interrompeu com a triunfante notícia de que

havia um quarto disponível num hotel duas estrelas, mas limpo e bem

localizado. Ana Magdalena se apressou:

— Será que não tem outro para mim?

O funcionário consultou por telefone e não havia. Então o cliente

pegou sua maleta com a mão esquerda e com a outra tomou o braço de

Ana Magdalena com uma familiaridade inusitada que a ela pareceu um

tanto abusiva.

— Venha comigo — disse —, chegando lá a gente vê.

Foram num automóvel novo dirigido por ele à beirinha da lagoa. Ele

disse que gostava do Hotel do Senador.


— Eu também gosto, por causa da lagoa — disse ela —, e agora vejo

que foi reformado.

— Faz dois anos — disse ele.

Ela percebeu que ele era um visitante assíduo da ilha e contou que

havia anos que ela também visitava o local, para pôr um ramo de

gladíolos no túmulo de sua mãe.

— Gladíolos? — perguntou ele surpreso, pois não tinha notícia de

que eles existissem na ilha. — Achei que só existiam na Holanda.

— Lá tem tulipas — esclareceu ela.

Explicou a ele que os gladíolos não eram muito comuns, mas que

alguém os havia levado para a ilha e eles tinham conquistado uma fama

justa no litoral e em outros povoados do interior. Para ela eram tão

importantes, concluiu, que no dia em que já não existissem daria um

jeito para que alguém os cultivasse.

Começava a chuviscar, mas não parecia que ia durar muito. Ele

achava o contrário, porque o tempo de agosto sempre lhe pareceu

errático. Examinou-a de cima a baixo, com sua roupa simples da barca,

e achou que ela ia precisar de algo mais para o cemitério. Mas ela o

tranquilizou: estava acostumada.

Para chegar ao hotel tiveram que dar a volta na lagoa até onde

começava a aldeia dos pobres. Era deplorável e sem dúvida um lugar de

passagem que não exigia identificação. Quando deram a chave a ele, o

hóspede esclareceu que eram dois quartos.

— Perdão — disse o recepcionista, desconcertado. — Não estão

juntos?

— É minha esposa — disse o cliente com sua graça natural —, mas

temos o costume higiênico de dormir separados.

Ela entrou no jogo:

— Quanto mais longe, melhor.

O recepcionista admitiu que a cama do quarto não era muito grande,

mas podia colocar outra, adicional. O cliente chegou a se atordoar, mas

ela foi adiante.

— Se o senhor ouvisse como ele ronca, não iria me propor isso —

disse ao recepcionista.

Este se desculpou, examinou as chaves penduradas no quadro

enquanto eles riam da própria travessura, e por fim disse que podia
conseguir outro quarto, mas em um andar diferente e sem vista para a

lagoa: segundo e quarto andares. Subiram no elevador sem bagageiro,

pois ambos só tinham bagagens de mão, e ela ficou no segundo andar,

muito agradecida e contente por ter conhecido um homem tão gentil.

O quarto era pequeno, com ares de cabine, mas com uma cama que

dava para três, algo que parecia ser um diferencial da ilha. Abriu a janela

para ventilar o ar estagnado e só então sentiu a falta que lhe faziam as

flores de seus agostos livres e as garças-azuis da lagoa. A chuva

continuava, mas ela confiava que haveria uma trégua para chegar ao

cemitério antes das seis.

E conseguiu, apesar de ter perdido mais de uma hora procurando

gladíolos — que encontrou numa banca em frente à igreja. O táxi que a

levara ao cemitério não conseguira subir até o topo pelo mau estado da

pista, e a única coisa que o chofer aceitou foi esperá-la numa esquina até

ela voltar. De repente ela tomou consciência de que no dia vinte e cinco

de novembro teria cinquenta anos, a idade que mais temia, não muito

menos do que tinha a mãe quando morreu. Viu-se do mesmo modo que

se tinha visto poucos anos antes, esperando que a chuva amainasse, e

chorou como tinha chorado quando levou o primeiro ramo de flores ao

túmulo. Mas seu pranto pareceu aplacar os maus humores do céu. De

repente parou de chover, e ela pôs as flores no túmulo.

Regressou ao hotel, com barro nos sapatos e de mau humor, e deu

como certo que havia perdido outro ano, pois não achava possível

conseguir um amor para aquela noite nem parando automóveis numa

orla transformada pela chuva num lodaçal horrendo. Nada havia

mudado. O cano da ducha sem bocal de chuveiro jorrava uma água

minguada e, enquanto se ensaboava debaixo do jorro esquálido, viu-se

sozinha e sem um homem caridoso, e tornou a chorar. Mas não se

rendeu: sairia do jeito que fosse para ver o que aquela noite de lobos

tinha preparado para ela. Pendurou a roupa e pôs o livro em cima da

mesa. Era o Diário do ano da peste, de Daniel Defoe, e deitou-se para

ler enquanto esperava a hora de ir para o bar. Mas tudo parecia

organizado de propósito para não a fazer feliz. O jorrinho esquálido do

banho a tinha feito se sentir mais miserável ainda, e uma rajada de ódio

contra o marido a estremeceu, tão violenta e fria que ela se assustou.


Havia se resignado ao destino sinistro de dormir sozinha naquela noite

de cão quando o telefone tocou.

— Alô — disse a voz alegre que ela reconheceu de imediato. — Sou

o amigo do quarto andar. — E acrescentou em outro tom: — Fiquei

esperando, ainda que fosse uma resposta de caridade. — E depois de

uma longa pausa perguntou: — Não recebeu as flores?

Ela não entendeu. Ia perguntar quando seus olhos tropeçaram em um

ramo de esplêndidos gladíolos que tinham sido postos de qualquer jeito

numa cadeira ao lado do toucador. O homem explicou a ela que os tinha

encontrado por acaso no hotel onde estava reunido com seus clientes e

que achou natural mandá-los para que ela levasse ao túmulo da mãe. Ela

não percebeu que as flores tinham sido entregues quando estava no

cemitério, mas não seria nada estranho que já estivessem ali antes. De

repente, ele perguntou de maneira casual:

— Onde você vai jantar?

— Não pensei nisso — respondeu ela.

— Não importa — disse ele —, espero você lá embaixo para

pensarmos.

Outra noite frustrada, pensou ela, com outro Aquiles? Não.

— Que pena — disse —, tenho um compromisso esta tarde.

— Sim, pena — disse ele, sentido de verdade.

— Fica para a próxima — falou ela.

Foi se arrumar na frente do espelho. Tinha pensado no lugar onde

esteve na noite miserável com Aquiles Coronado, mas a chuva apertava e

dava para ouvir os uivos do vento na lagoa. Mas de repente gritou para si

própria: “Santo Deus, como sou burra!”

Correu para o telefone e ligou para o homem do quarto andar com

uma pressa que mais tarde a deixaria envergonhada.

— Que sorte! — disse a ele sem preâmbulos. — Acabam de cancelar

meu compromisso por causa da chuva.

— A sorte é minha, senhora — disse ele.

Ela não duvidou um instante. E não se enganou: foi uma noite

inesquecível.

Muito menos esquecível do que Ana Magdalena Bach teria

conseguido imaginar. Havia levado mais tempo do que o necessário para

se arrumar, e o homem estava esperando por ela bem-vestido na saída do


elevador, com uma camisa guayabera de seda, calças de linho e

mocassins brancos. Ela confirmou sua primeira impressão de que ele era

atraente e com o mérito maior de se comportar como se não soubesse

disso. Ele a conduziu para um restaurante fora dos ninhos do turismo,

debaixo de grandes amendoeiras iluminadas e com uma orquestra

melhor para sonhar do que para dançar. Entrou com grande desenvoltura

e foi tão bem recebido quanto um cliente antigo, e ele se comportava

como se fosse. Seus modos tinham se refinado com o esplendor da noite.

Ele inteiro irradiava um aroma único pela água de colônia recém-

aplicada e sua conversa era fluida e agradável, mas ela se sentia um

pouco perdida, pois parecia falar não tanto para dizer, e sim para ocultar.

Ficou surpresa que ele não fosse habilidoso com as bebidas e que

tivesse esperado que ela escolhesse seu gim de costume antes de pedir

para si um uísque de qualquer marca, que não provou a noite inteira.

Não fumava, mas tinha um maço de cigarros egípcios de papel dourado

só para oferecer. Não era treinado na arte de comer e deixou que o

garçom decidisse por eles. Porém, o mais surpreendente foi que com

todos os seus limites e desacertos não perdia nem um pingo de seu

encanto, nem mesmo quando soltou duas ou três piadas tão simples e

mal contadas que ela não conseguiu entender e teve que rir por cortesia.

Quando a orquestra tocou um arranjo dançante de Aaron Copland,

ele confessou que não chamava sua atenção porque era surdo para

música, mas se atreveu a dançar quando ela o convidou. Não acertou um

passo, mas ela o ajudou tão bem que ele pôde ter ficado com a impressão

de que o mérito era seu. Na sobremesa estava tão entediada que se

xingou por sua fraqueza e mais ainda quando viu passar um homem que

ela teria escolhido de olhos fechados, enquanto seu anfitrião era tão

decente que não dava um passo em falso, a não ser na hora de dançar.

Ela se sentia bem e bem tratada, mas numa noite sem futuro.

Assim que terminaram a sobremesa, ele a levou de volta ao hotel

dirigindo em silêncio e com os olhos absortos no mar adormecido

debaixo de uma lua quimérica. Ela não o interrompeu. Eram onze e dez,

e até o bar do hotel deles já devia estar fechado. O que mais a indignava

era não ter nada a reprovar em seu anfitrião, pois sua única falha era não

ter sequer tentado seduzi-la: nem um cumprimento aos seus radiantes


olhos de leoa, nem à sua lábia fluida, nem ao seu conhecimento de

música.

Estacionou no pátio do hotel e a acompanhou no elevador num

silêncio absoluto até a porta do quarto. Ela deixou cair a chave e ele a

pegou, abriu a porta com a ponta dos dedos, entrou sem convite nem

licença, como se fosse sua casa, e desmoronou na cama de barriga para

cima com um suspiro da alma:

— Esta é a noite da minha vida!

Ana Magdalena permaneceu petrificada, sem saber o que fazer, até

que ele lhe estendeu a mão em silêncio. Ela lhe deu a sua e se deitou a

seu lado, atordoada pela batida do seu coração. Então ele deu um beijo

inocente nela que a estremeceu até a alma, e continuou beijando-a

enquanto tirava sua roupa peça por peça com uma maestria mágica nos

dedos, até que sucumbiram num abismo feliz.

Quando Ana Magdalena despertou na penumbra do amanhecer, tinha

perdido a noção de si mesma. Não sabia onde estava nem com quem, até

que viu ao seu lado o homem nu de corpo inteiro, dormindo de barriga

para cima com os braços em cruz sobre o peito e respirando feito um

bebê no berço. Acariciou com seu indicador tênue a pele curtida pela

intempérie. Não tinha um corpo jovem, mas bem-conservado, e

desfrutou das carícias sem abrir os olhos, com tanto domínio como o

que havia tido durante a noite, até que o amor o desordenou.

— Agora sim, sério — perguntou de repente. — Qual é o seu nome?

Ela improvisou no mesmo instante.

— Perpétua.

— É uma pobre santa que morreu pisoteada por uma vaca — disse

ele de imediato.

Ela, surpresa, perguntou como ele sabia disso.

— Sou bispo — respondeu ele.

A rajada da morte a estremeceu. Repassou instantaneamente o jantar,

sua conversa preciosista, seus gostos convencionais, e não encontrou

nada que permitisse qualquer dúvida sobre a verdade daquela resposta. E

mais: era a confirmação rigorosa do que ela tinha pensado dele durante o

jantar. Ele se deu conta de seu estupor, abriu os olhos e perguntou

intrigado:

— O que você tem contra nós?


— Nós quem?

— Os bispos.

Ele soltou uma gargalhada radiante pela própria brincadeira, mas foi

rápido em compreender que era um desplante de mau gosto e cobriu o

corpo dela com longos beijos de arrependimento. Talvez como

penitência, contou a ela uma versão da sua vida atual. Havia trabalhado

em coisas diferentes e não tinha um domicílio estável, porque seu ofício

de base era vender seguros marítimos de uma empresa com sede em

Curaçao, e tinha que visitar a ilha várias vezes por ano. A princípio, seu

poder de persuasão foi tão forte que ela se sentiu vencida, mas

prevaleceu a certeza de que era tarde demais para ser feliz três vezes

numa mesma noite.

— Vou perder a barca — disse.

— Não importa — rebateu ele. — Vamos juntos amanhã.

Propôs a ela um grande dia e muitos outros no futuro, pois precisava

voltar à ilha pelo menos duas vezes por ano, e uma delas poderia ser

sempre em agosto. Ela escutava ansiosa, na esperança de que pudesse ser

verdade, mas teve a força para não parecer uma mulher tão fácil quanto

ele poderia pensar. De repente percebeu que estava mesmo a ponto de

perder a barca então saltou da cama e se despediu com um beijo

apressado. Mas ele a segurou pelo pulso.

— E então — insistiu —, até quando?

— Até nunca mais — disse ela. E concluiu de bom humor: — É a lei

de Deus.

Correu para o banheiro na ponta dos pés e passou a chave sem

escutar a lista de promessas com que ele a perseguiu enquanto acabava

de se vestir. Mal teve tempo de abrir o chuveiro quando ele bateu na

porta para arrematar a despedida.

— Vou deixar uma lembrança no livro — disse ele.

Ela se sentiu fulminada por um mau presságio. Não se atreveu a

agradecer nem a perguntar o que ele deixaria por terror à resposta, mas,

assim que o ouviu sair, correu nua e ensaboada para examinar o livro na

mesinha de cabeceira. Que alívio! Era um cartão de visita com todos os

dados para ser encontrado. Não rasgou, como sem dúvida teria feito com

qualquer outro, mas deixou onde estava até que pudesse levá-lo para um

lugar seguro.
6

Era uma quarta-feira típica do agosto caribenho, com um mar

adormecido e uma brisa suave de gaivotas rasantes. Ana Magdalena

Bach levou uma cadeira de praia até o tombadilho da barca e abriu o

livro de Daniel Defoe na página marcada com o cartão, mas não

conseguiu se concentrar. Tampouco encontrou alguma coisa que

chamasse sua atenção nos dados reais do homem da noite anterior, com

nome e nacionalidade holandeses e um endereço comercial com seis

números de telefone de uma empresa de serviços técnicos com sede em

Curaçao. Leu o cartão várias vezes, tentando imaginar na vida real o

fantasma da sua noite feliz. No entanto, desde seu encontro com o

primeiro homem, havia tido a precaução de não deixar nem um mínimo

rastro que pudesse suscitar qualquer suspeita em sua casa, por isso

rasgou o cartão em pedaços minúsculos e os soltou na brisa cúmplice

das gaivotas.

Foi um retorno revelador. Assim que entrou em casa, às cinco da

tarde, descobriu até que ponto começava a sentir-se estranha entre os

seus. A filha tinha assimilado a vida do convento sem modificar seu jeito

natural de ser, e pouco a pouco se fazia menos assídua na mesa da

família. O filho quase não tinha tempo livre entre seus namoros

efêmeros e seus compromissos artísticos em meio mundo. O marido,

graças ao fato de ser um fanático de seu ofício e ao mesmo tempo um

conquistador empedernido, acabou sendo um hóspede casual em sua

cama. Para ela, por sua vez, o paradoxo mais estranho era comprovar

como ia perdendo o encanto pela ilha na falta de um homem certo entre

os muito casuais que havia provado em suas noites escassas. Sua maior

ansiedade, no entanto, não era pelas dúvidas da fidelidade do marido,

mas pelo pavor de que ele tivesse um vislumbre do que ela fazia na ilha

em suas noites contadas. Por isso fazia muito poucos comentários de

suas viagens anuais, para que ele não tivesse a ideia de acompanhá-la,
ou para não suscitar quaisquer dúvidas masculinas, que são as menos

fáceis, porém as mais certeiras.

Eram anos simples em que não havia tempo nem ocasião para

traições ou suspeitas, e ela levava com rigor as contas de seus ciclos para

os amores que faziam de rotina. Não saíam da cidade sem que ela

levasse na bolsa os preservativos para as ocasiões imprevisíveis. Daquela

vez, porém, sentiu uma pontada no coração quando ele chegou com

mostras de amor tão desaforadas que alvoroçou nela de repente não

apenas as suspeitas possíveis daquele ano, mas todas as atrasadas. Ela o

vigiava, examinava até a costura dos bolsos e pela primeira vez começou

a cheirar a roupa usada que ele deixava na cama. A partir de maio, no

entanto, um sonho com o homem do ano anterior a sacudiu até a alma e

a ansiedade se tornou insuportável. Amaldiçoou uma vez mais a hora em

que tinha rasgado o cartão de visita e não se sentiu capaz de ser feliz

sem ele, mesmo que fosse apenas na ilha. Era tão evidente seu

desassossego que o marido disse, sem preâmbulos:

— Está acontecendo alguma coisa com você.

O terror agravou a sua insônia até o amanhecer, pois ela mesma não

parecia consciente do quanto havia começado a mudar desde suas

primeiras viagens. Nunca tinha pensado no risco de se encontrar por

acaso com algum de seus cúmplices na ilha, até a maldita noite em que

seu compadre Aquiles Coronado abusou dos goles num jantar de

casamento e soltou algumas indiretas sem graça que qualquer um na

mesa teria sido capaz de entender sem muito esforço. Por sua vez, num

meio-dia em que almoçava com três amigas no restaurante de maior

prestígio da cidade, pensou que conhecia um dos homens que

conversavam sem pausa e em voz muito baixa numa mesa afastada.

Tinham uma garrafa de brandy e suas taças pela metade e pareciam

sozinhos numa vida diferente. Mas o que ela via de frente tinha um

terno de linho branco, impecável e bem alinhado, o cabelo grisalho e o

bigode romântico terminado em pontas. Desde que bateu o olho nele

pela primeira vez teve a impressão de que o conhecia. Mas apesar do seu

esforço não conseguiu recordar quem era nem onde o havia visto antes.

Mais de uma vez perdeu o fio da animada conversa das amigas, até que

uma delas não conseguiu resistir à curiosidade e lhe perguntou o que a

inquietava na mesa vizinha.


— O do bigode turco — sussurrou ela. — Não sei a razão, mas me

lembra alguém.

Todas olharam com cautela.

— Até que não é de todo ruim — disse uma delas sem interesse, e

retomaram a conversa.

Mas Ana Magdalena continuou tão inquieta que não foi fácil pegar

no sono àquela noite e acordou às três da madrugada com o coração

ouriçado. O marido acordou, mas ela havia recobrado a respiração e

contou para ele um falso pesadelo como tantos outros reais e

assustadores que a acordavam nos tempos de recém-casada. Pela

primeira vez ela se perguntou por que não se atrevia a fazer na cidade a

mesma coisa que fazia na ilha, já que ali dispunha do ano inteiro com

oportunidades diárias de manejo mais fácil. Pelo menos cinco amigas

dela haviam tido amores furtivos até onde o corpo permitiu e tinham ao

mesmo tempo mantido casamentos estáveis. No entanto, ela não

imaginava na cidade situação tão excitante e propícia como na ilha, o

que só era possível de entender como uma argúcia póstuma de sua mãe.

Durante várias semanas não conseguiu resistir à tentação de

encontrar o homem que não a deixava viver em paz. Voltava ao

restaurante nas horas mais concorridas, não perdia a oportunidade de

arrastar com ela algumas amigas aleatórias para evitar qualquer equívoco

em suas andanças solitárias, se acostumou a encarar quantos homens

atravessassem seu caminho, com a ânsia ou o pavor de encontrar o dela.

No entanto, não precisou de ajuda alguma para que a identidade de

quem buscava estalasse na sua memória como uma explosão cegante.

Era o mesmo da sua primeira noite na ilha, que havia deixado entre as

páginas do livro a ignomínia da nota de vinte dólares pela sua noite de

amor. Só então se deu conta de que talvez não tivesse conseguido

reconhecê-lo por causa do bigode de mosqueteiro que ele não usava na

ilha. Tornou-se assídua no restaurante onde havia tornado a vê-lo, com

uma nota de vinte dólares para atirar na sua cara, mas cada vez tinha

menos clareza sobre qual deveria ser a sua atitude, pois, conforme se

aprofundava em sua raiva, menos importava a má lembrança do homem

e das desgraças da ilha.

No entanto, ao chegar agosto sentiu-se com forças de sobra para

continuar sendo ela mesma. A travessia na barca pareceu eterna como


sempre, a mesma ilha com a qual tanto havia sonhado pareceu mais

ruidosa e pobre, e o táxi que a levava ao mesmo hotel do ano anterior

esteve a ponto de despencar de um desfiladeiro. Encontrou vago o quarto

onde havia sido feliz, e o mesmo recepcionista recordou de imediato o

hóspede que a acompanhava, mas não conseguiu encontrar nenhum

rastro dele nos arquivos. Revisitou ansiosa outros lugares onde estiveram

juntos e encontrou tudo que é tipo de homens solitários e sem rumo que

teriam bastado para aliviar sua noite, mas nenhum pareceu suficiente

para suplantar quem ela ansiava. Assim, registrou-se no mesmo quarto

de hotel do ano anterior e de imediato foi ao cemitério com medo de que

a chuva se adiantasse.

Com uma ansiedade quase insuportável repetiu cada passo para

cumprir logo e sem dor a rotina do ano até o encontro com sua mãe. A

mesma florista de sempre, mais velha a cada ano, a confundiu com outra

à primeira vista e armou para ela o ramo de gladíolos esplêndidos de

sempre, mas com uma enorme falta de vontade e quase pelo dobro do

preço.

Diante do túmulo de sua mãe, ficou abalada porque encontrou um

monte inusitado de flores apodrecidas pelas chuvas. Incapaz de imaginar

quem as teria posto ali, perguntou ao zelador sem a menor malícia, e ele

respondeu com a mesma inocência:

— O senhor de sempre.

Seu desconcerto foi maior quando o zelador explicou que não tinha a

mínima ideia de quem podia ser o visitante desconhecido que chegava

em qualquer dia do ano e deixava o túmulo completamente coberto por

aquelas flores esplêndidas e nunca vistas num cemitério de pobres.

Tantas e tão caras que lhe doía tirá-las do túmulo enquanto restasse nelas

um rastro mínimo de seu esplendor natural. Descreveu o visitante como

um homem de uns sessenta anos bem vividos, com cabelos brancos e

bigode de senador e uma bengala que se transformava em guarda-chuva

para poder continuar absorto diante do túmulo enquanto chovia. Nunca

lhe perguntou nada, nem havia contado a ninguém da riqueza de suas

flores e do tamanho das gorjetas, nem tinha comentado com ela em suas

visitas anteriores porque tinha certeza de que o cavalheiro do guarda-

chuva mágico era alguém da família.


Ela engoliu a inquietação e deu uma boa gorjeta ao zelador,

abrumada por uma revelação que talvez explicasse de uma só vez o

segredo das viagens frequentes de sua mãe à ilha com a desculpa de um

negócio próprio que ninguém sabia dizer qual era e que talvez nem tenha

existido.

Quando saiu do cemitério, Ana Magdalena Bach era uma mulher

diferente. Estava trêmula e o chofer precisou ajudá-la a entrar no carro

porque não conseguia dominar o tremor do seu corpo. Só então

vislumbrou o mistério das três ou até quatro visitas que sua mãe fazia à

ilha todo ano e sua determinação de que a enterrassem ali quando

percebeu que estava morrendo de uma doença grave em terra alheia. Só

então a filha vislumbrou a razão das viagens que a mãe havia feito nos

seis anos anteriores à sua morte com a mesma paixão com que ela fazia

as suas. Considerava que aquela razão da mãe poderia ser sua mesma

razão, e a analogia a surpreendeu. Não se sentiu triste, mas animada pela

revelação de que o milagre de sua vida era ter continuado a de sua mãe

morta.

Abrumada pelas emoções daquela tarde, Ana Magdalena viajou sem

rumo nem sentido por periferias pobres e se encontrou, sem saber como,

na tenda de um mago ambulante que podia adivinhar com seu saxofone

uma melodia popular conhecida que alguém do público estivesse

recordando em silêncio. Ana Magdalena não teria nunca se atrevido a

intervir, mas naquela noite perguntou brincando onde estava o homem

da sua vida, e o mago respondeu com uma imprecisão certeira:

— Nem tão perto quanto você gostaria nem tão longe quanto você

crê.

Voltou a seu hotel ainda sem se arrumar e com o ânimo no chão. O

terraço ao ar livre estava ocupado por uma clientela jovem que dançava

com vontade ao som de uma orquestra juvenil, e ela não pôde resistir à

tentação de compartilhar o júbilo de uma geração feliz. Não havia uma

mesa livre, mas o garçom a reconheceu de outros anos e conseguiu uma

para ela a toda a pressa.

Depois da primeira rodada de baile, outra orquestra mais ambiciosa

iniciou o Clair de lune, de Debussy, num arranjo para bolero, e uma

esplêndida mulata cantou com amor. Comovida, Ana Magdalena pediu


seu gim com gelo e soda, o único álcool que continuava se permitindo

aos seus cinquenta anos.

A única coisa que achou contrária ao espírito da noite foi o casal da

mesa contígua: ele, jovem e atraente, e ela talvez mais velha, mas

deslumbrante e altiva. Era evidente que estavam numa discussão surda,

trocando entre si queixas ferozes que fracassavam no estrondo da festa.

Nos vazios da música faziam uma pausa intensa para não serem ouvidos

pelas mesas vizinhas, mas retomavam o enfrentamento com ímpetos

maiores na música seguinte. Um episódio tão corriqueiro naquele

mundo de ninguém que Ana Magdalena não se interessou nem como

episódio de circo. Mas seu coração capotou quando a mulher quebrou a

taça na mesa com uma solenidade teatral e atravessou a pista de dança

em linha reta até a porta sem olhar para ninguém, altiva e formosa, no

meio da multidão de casais felizes que se afastavam à sua passagem.

Ana Magdalena compreendeu que a briga tinha terminado, mas teve a

discrição de não olhar para o homem, que permaneceu impávido em seu

lugar.

Quando a orquestra oficial terminou sua rodada juvenil, outra mais

ambiciosa iniciou a nostálgica Siboney, e Ana Magdalena se deixou

arrastar pela magia da música misturada com o gim. De repente, numa

pausa da orquestra tropeçou por acaso com o olhar do homem

abandonado na mesa vizinha. Não o evitou. Ele correspondeu com uma

leve inclinação de cabeça, e ela sentiu que estava vivendo um novo

episódio remoto de sua adolescência. Com um estremecimento raro se

atordoou — como se fosse a primeira vez —, e o resto do gim infundiu

nela um ânimo inadequado para seguir adiante. Ele se antecipou.

— Esse homem é um canalha — disse a ela.

Ela se surpreendeu:

— Que homem?!

— Esse que deixou você esperando — disse ele.

O coração dela se torceu ao pensar que ele falava com ela como se a

estivesse vendo por dentro, mas foi em frente com um ar de deboche.

— Pelo que acabo de ver, você é que foi chutado.

Ele percebeu que ela se referia ao incidente com a mulher que tinha

acabado de deixá-lo sozinho.


— Sempre terminamos assim, mas a birra não dura muito — disse.

E continuou até o arremate final: — Você, por sua vez, não tem razão

para estar sozinha.

Ela o envolveu com um olhar amargo.

— Na minha idade — disse a ele —, todas as mulheres estão

sozinhas.

— Nesse caso — disse ele com ânimo renovado —, esta é a minha

noite de sorte.

Levantou-se com a taça na mão e foi se sentar à mesa dela sem

preâmbulos, e ela se sentia tão triste e solitária que não o impediu. Ele

pediu para ela uma taça do seu gim favorito, e por um momento ela se

esqueceu de suas penas e tornou a ser a mesma de outras noites de

solidão. Amaldiçoou uma vez mais a hora em que rasgou o cartão de

visita de seu último homem, e não se sentia capaz de ser feliz sem ele

naquela noite, mesmo que fosse apenas por uma hora. Então dançou

desanimada, mas o homem dançava muito bem e fez com que se sentisse

melhor.

Quando voltaram para a mesa depois de uma rodada de valsas, ela

percebeu que não estava com a chave do quarto e a procurou na bolsa e

debaixo da mesa. Ele tirou a chave do bolso com uma imitação de

prestidigitador e cantou como na roleta o número do quarto:

— O da sorte: trezentos e trinta e três!

Nas mesas vizinhas algumas pessoas se viraram para olhá-los. Ela

não suportou a vulgaridade da piada e estendeu a mão para ele com uma

expressão severa. Ele notou seu erro e lhe devolveu a chave. Ela a

recebeu em silêncio e abandonou a mesa.

— Permita pelo menos que eu a acompanhe — suplicou ele,

perseguindo-a, confuso. — Ninguém deve ficar sozinho numa noite

como esta.

Pulou da cadeira talvez para se despedir, mas também poderia ser

para acompanhá-la. Talvez ele mesmo não soubesse, mas ela acreditou

ter adivinhado a intenção.

— Não se incomode — disse.

Ele pareceu arrasado.

— Não se preocupe — insistiu ela. — Meu filho teria feito a mesma

coisa aos sete anos de idade.


Saiu decidida, mas não tinha chegado ao elevador quando perguntou

a si mesma se não acabara de desprezar a felicidade na noite em que

mais lhe fazia falta. Havia dormido com a luz acesa enquanto discutia

consigo mesma se ficava para dormir ou se voltava para o bar decidida a

encarar seu destino. Um pesadelo recorrente de seus piores momentos

havia começado a perturbá-la quando despertou com toques furtivos na

porta. As luzes ainda estavam acesas, e ela, de bruços na cama, com a

roupa que havia deixado no corpo sem perceber. Permaneceu assim,

mordendo o travesseiro empapado de lágrimas para não perguntar quem

era, até que quem batia deixou de bater. Então ela se acomodou na cama,

sem mudar de roupa nem apagar a luz, e voltou a dormir chorando de

raiva de si mesma pela desgraça de ser mulher num mundo de homens.

Não havia dormido mais de quatro horas quando foi acordada pela

recepção para que não perdesse a barca das oito. Ela saltou da cama

como não tinha conseguido saltar a tempo em suas noites ruins na ilha,

mas teve que esperar duas horas pelo zelador do cemitério para ser

informada dos trâmites para exumar os restos de sua mãe. Só quando

teve a certeza de haver terminado, já passado o meio-dia, telefonou para

o esposo e mentiu que havia perdido a barca, mas que iria sem falta à

tarde.

O zelador e o coveiro de aluguel desenterraram o ataúde e o abriram

sem compaixão com o talento de um mágico. Ana Magdalena viu então

a si mesma no caixão aberto como num espelho de corpo inteiro, com o

sorriso gelado e os braços em cruz sobre o peito. Ela se viu idêntica e

com a mesma idade daquele dia, com o véu e a grinalda com que havia

se casado, a tiara de esmeraldas vermelhas e as alianças, como sua mãe

tinha determinado em seu último suspiro. Não só a viu como tinha sido

em vida, com a mesma tristeza inconsolável, mas também se sentiu vista

pela mãe lá da morte, amada e chorada por ela, até que o corpo se desfez

em seu próprio pó final e só restou a ossada carcomida de onde os

coveiros tiraram-lhe a poeira com uma vassoura e guardaram-na sem

misericórdia num saco de ossos.

Duas horas depois Ana Magdalena deu uma última olhada de

compaixão no próprio passado e um adeus para sempre aos seus

desconhecidos de uma só noite e às tantas e tantas horas de incertezas

que restavam dela mesma dispersas pela ilha. O mar era um remanso de

À
ouro debaixo do sol da tarde. Às seis, quando o marido a viu entrar em

casa arrastando sem mistérios o saco de ossos, não conseguiu segurar a

surpresa.

— É o que resta da minha mãe — disse ela, e se antecipou ao

espanto dele.

— Não se assuste — disse. — Ela entende. E mais, acho que ela é a

única que já tinha entendido quando decidiu que a enterrassem na ilha.


Nota da edição original

No dia 18 de março de 1999, os leitores de Gabriel García Márquez

receberam a feliz notícia de que o colombiano vencedor do Nobel

trabalhava em um novo livro composto por cinco contos independentes

com uma mesma protagonista: Ana Magdalena Bach. A autora da

matéria exclusiva, a jornalista Rosa Mora, publicou três dias depois no

jornal El País uma entrevista com o autor juntamente com o primeiro

conto do livro, “Em agosto nos vemos”. García Márquez o tinha lido

alguns dias antes na Casa da América em Madri, onde participava, junto

com o também vencedor do Nobel José Saramago, de um fórum sobre a

força da criação ibero-americana. Em vez de fazer um discurso, ele

surpreendeu o público lendo uma primeira versão do primeiro capítulo

do romance que agora o leitor tem em mãos. Rosa Mora acrescentava:

“‘Em agosto nos vemos’ fará parte de um livro que incluirá outras três

histórias de cento e cinquenta páginas, que Gabo já tem praticamente

escritas, e é provável que inclua uma quarta, porque, pelo que ele

explica, ocorreu-lhe uma ideia que o atrai. O denominador comum do

livro é que tratará de histórias de amor de gente mais velha.”

Alguns anos depois a sorte fez com que meu destino se cruzasse com

o de García Márquez, um dos meus escritores de cabeceira desde minha

adolescência. A leitura apaixonada de sua obra, junto com a de Rulfo,

Borges e Cortázar, tinha me levado a atravessar o Atlântico para fazer

um doutorado sobre a literatura da América Latina, em Austin, na

Universidade do Texas. Em agosto de 2001, já de volta a Barcelona

como editor da Random House Mondadori, Carmen Balcells me

chamou à sua agência literária, quase vazia naqueles dias de verão. Eu

deveria falar ao telefone com García Márquez, que precisava de um

editor de plantão para suas memórias. Seu editor habitual, meu querido

amigo Claudio López de Lamadrid, estava de férias. Assim começou

meu trabalho lado a lado com o escritor colombiano na edição final de


Viver para contar, revisando um manuscrito que ia me chegando a

conta-gotas por e-mail ou fax e que eu devolvia com minhas anotações,

que consistiam fundamentalmente na verificação de dados. Gabo me

agradeceu especialmente pela notícia de que A metamorfose, de Kafka,

cuja leitura mudou seu universo narrativo, na verdade não havia sido

traduzida por Borges, embora a edição argentina que ele utilizou

afirmasse isso nos créditos. Ainda que ele estivesse em Los Angeles

recuperando-se de uma doença, o trabalho editorial a distância me

permitiu ser testemunha da carpintaria do escritor, desde a reescrita do

capítulo dedicado ao “Bogotazo” até a brilhante troca de uma letra no

título, para evitar um conflito com outro autor. Embora um acaso tenha

me permitido conhecer pessoalmente Gabo e Mercedes Barcha num

restaurante de Barcelona, não retomamos nossa relação como autor e

editor até o ano de 2008. Em maio de 2003, depois de uma longa

temporada em Los Angeles, Gabriel García Márquez e Mercedes Barcha

regressaram à sua casa no México, onde foram recebidos por uma nova

secretária pessoal que tinham contratado pouco tempo antes, Mónica

Alonso. Seu depoimento é crucial para reconstruir a cronologia da

criação de Em agosto nos vemos. De acordo com Mónica Alonso, no dia

9 de junho de 2002, o escritor terminou de revisar a versão final

impressa de suas memórias, tarefa para a qual contou com a ajuda do

editor Antonio Bolívar. Depois de limpar sua mesa das versões antigas e

notas do livro entregue, recebeu a notícia de que sua mãe tinha morrido

naquele mesmo dia. Com essa enigmática coincidência fechava-se o

ciclo iniciado no começo de suas memórias: “Minha mãe pediu que

fosse com ela vender a casa.” O escritor se encontrava sem nenhum

projeto iminente quando, ao revisar as gavetas de seu escritório, Mónica

encontrou uma pasta que abrigava dois manuscritos: um intitulado

“Ela”, e outro intitulado “Em agosto nos vemos”. De agosto de 2002 até

julho de 2003, García Márquez trabalhou intensamente em “Ela”, título

que mudaria para Memória de minhas putas tristes ao publicá-lo no ano

de 2004. Esta seria sua última obra de ficção publicada em vida.

No entanto, a publicação, em maio de 2003, de outro fragmento de

Em agosto nos vemos parecia uma declaração pública de que García

Márquez também levava adiante seu último projeto narrativo. O terceiro

capítulo de Em agosto nos vemos foi publicado como conto inédito,


intitulado “A noite do eclipse”, na revista Cambio, da Colômbia, em 19

de maio de 2003, e dias depois no El País espanhol. De acordo com

Mónica Alonso, a partir de julho de 2003 o escritor retoma com

intensidade o trabalho no manuscrito do romance. E foi assim, a partir

de então e até o final de 2004, que ele acumulou até cinco versões

sucessivas, numeradas, além de uns primeiros rascunhos prévios e de

uma versão que tinha trazido de Los Angeles. Todas essas versões

datadas se encontram entre os papéis do escritor, custodiados pelo Harry

Ransom Center da Universidade do Texas, em Austin.

Depois de chegar à quinta versão, ele deixou de trabalhar no

romance e mandou um exemplar para a sua agente, Carmen Balcells.

“Às vezes, é preciso deixar os livros repousarem”, confidenciou a

Mónica. Uma efeméride importante esperava por ele, a celebração dos

quarenta anos da publicação de Cem anos de solidão, com uma edição

comemorativa da Real Academia Española, e os preparativos iriam

manter Gabo ocupado. Sua participação na sessão de abertura do

congresso, no dia 26 de março de 2007, em Cartagena, seria um de seus

últimos atos públicos multitudinários.

Em março de 2008, já instalado no México como diretor editorial da

Random House Mondadori, retomei a relação como editor, a pedido de

Carmen Balcells, para trabalhar com García Márquez num livro que

reuniria seus textos para serem lidos em público e que seria publicado

dois anos mais tarde com o título Eu não vim fazer um discurso. As

frequentes visitas ao escritório dele, pelo menos uma vez por mês, se

traduziram numa longa conversa sobre os livros, autores e temas que ele

tratava nos textos da edição.

No verão de 2010, Carmen Balcells me informou em Barcelona que

García Márquez tinha um romance inédito, mas que não encontrava um

final, e me pediu que o incentivasse a terminar o livro. Ela me adiantou

que se tratava de uma mulher madura e casada que visita a ilha onde está

enterrada sua mãe e lá encontra o amor da sua vida. No meu regresso ao

México, a primeira coisa que fiz foi perguntar a Gabo pelo romance e

contar a ele o que sua agente havia me pedido. Gabo me confessou,

divertido, que não era o amor de sua vida o que a protagonista

encontrava, mas sim um amante diferente a cada visita. E, para me

provar que tinha, sim, um final, pediu a Mónica a última versão, sempre
nas pastas alemãs Leuchtturm em que encadernava seus manuscritos, e

leu para mim o último parágrafo, que fechava a história de maneira

deslumbrante. Ele era muito ciumento com seu trabalho em andamento,

mas uns meses mais tarde me permitiu ler três capítulos em voz alta ao

seu lado. Recordo a impressão que me deixou, de maestria absoluta num

tema original que não havia abordado antes em suas obras, e a esperança

de que algum dia seus leitores pudessem compartilhar daquilo que eu

havia lido.

Sua memória já não lhe permitia encaixar todas as peças e correções

da última versão, mas a revisão do texto foi por um bom tempo a melhor

maneira de ocupar seus dias no escritório fazendo o que ele mais gostava

de fazer: propondo um adjetivo aqui ou um detalhe que podia mudar ali.

A versão número 5, datada de 5 de julho de 2004 e em cuja primeira

página escreveu “Grande OK final. Dados sobre ela CAP. 2. Atenção:

provável cap. Final/ é o melhor?”, era claramente a sua preferida e

decidiu ali incluir com Mónica algumas sugestões anotadas em versões

anteriores. Ao mesmo tempo, Mónica mantinha uma versão digital na

qual ainda conviviam fragmentos de outras opções ou cenas que o autor

tinha considerado anteriormente. Esses dois documentos são a base

desta edição.

A relação entre um autor e um editor é um pacto de confiança

baseado no respeito. O privilégio de trabalhar com Gabriel García

Márquez é um exercício constante de humildade que, no meu caso, se

assenta nas suas próprias palavras quando Carmen me passou o telefone

naquela nossa primeira conversa: “Quero que você seja o mais crítico

possível, pois uma vez que eu puser o ponto final já não volto a revisar

nada.” Minha tarefa nesta edição foi a de um restaurador diante da tela

de um grande mestre. Partindo do documento digital mantido por

Mónica Alonso e confrontando esse documento com a versão 5 — na

qual nos últimos anos foi incorporando pequenas correções de outras

versões —, que ele considerava a final, revisei cada anotação do autor,

manuscrita ou ditada a Mónica, cada palavra ou frase mudada ou

eliminada, cada opção anotada à margem, para decidir sua inclusão ou

não nesta versão final. O trabalho de um editor não consiste em mudar

um livro, mas torná-lo mais forte com o que já está na página, e foi essa

a essência do meu trabalho de editor. Isso inclui, entre outras coisas, a


confirmação e a correção de dados, desde nomes de músicos ou autores

citados até a coerência na idade da protagonista tal como ele planejou

em suas notas às margens.

Espero que os leitores de Em agosto nos vemos compartilhem do

mesmo respeito e assombro que senti nas dezenas de vezes que li este

texto, leituras nas quais sentia a presença de Gabo sobre meu ombro,

como na foto que Mónica tirou de nós quando corrigíamos juntos as

provas do seu livro de discursos.

Meu agradecimento a Rodrigo e a Gonzalo García Barcha pela

confiança que depositaram em mim no dia de agosto em que me

telefonaram para informar que haviam decidido que Em agosto nos

vemos tinha de ser publicado e que eu seria o editor. Diante do

esmagador peso da responsabilidade, seu ânimo e sua confiança foram,

ao longo de todo esse processo, a maior recompensa do trabalho

editorial de minha vida. A lembrança de Mercedes Barcha, que um dia

decidiu abrir para mim a porta de sua casa, além do escritório, sempre

esteve presente ao longo desses meses. A fidelidade e o compromisso de

Mónica Alonso com o escritor foram essenciais para que o texto

chegasse às nossas mãos, e agradeço a ela o tempo dedicado para

reconstruir a história de sua escrita. Também estamos todos em dívida

com a equipe do Harry Ransom Center, da Universidade do Texas, em

Austin, onde estão custodiados os arquivos do escritor, pelo seu trabalho

de reprodução digital dos manuscritos do romance, essencial para esta

edição chegar a um bom termo: Stephen Enniss, Jim Kuhn, Vivie

Behrens, Cassandra Chen, Elizabeth Garver e Alejandra Martínez. Ao

grande editor e amigo Gary Fisketjon agradeço uma conversa que me

ajudou a sair do bloqueio de editor. Sua experiência foi um guia, como

continua sendo nosso saudoso editor-chefe, Sonny Mehta, a quem teria

encantado publicar este livro. Um agradecimento muito especial a minha

esposa, Elizabeth, e a nossos filhos, Nicholas e Valerie, por seu apoio

em minhas longas temporadas no sótão, trancado com o romance.

Finalmente, meu agradecimento mais profundo a Gabo, por sua

humanidade, por sua simplicidade e pelo afeto que sempre ofereceu a

quem se aproximasse dele pensando que era um deus, para demonstrar

com seu sorriso que era um homem. Sua lembrança durante esses meses

foi o maior incentivo para chegar até aqui.


Cristóbal Pera

Fevereiro de 2023
O original

Quatro páginas de fac-símiles

A seguir encontram-se quatro amostras fac-similares de páginas da pasta

intitulada “Versão 5” de Em agosto nos vemos. Essas pastas foram

organizadas e classificadas pela secretária de García Márquez, Mónica

Alonso, que mantinha também um documento de Word do qual foram

saindo as diferentes versões.

Em seus últimos anos, quando já não conseguia trabalhar na visão

geral do romance, García Márquez fazia pequenas correções, sugestões e

mudanças em outras versões que foram se consolidando até chegar a

esta versão que ele destacou como “Grande OK final”.


Folha de rosto da versão 5

Primeira página da pasta destacada como “Versão 5”. Em seus últimos anos, García Márquez foi

consolidando nesta versão anotações que havia feito em versões anteriores. Embora nesta

primeira página leia-se “Grande OK final”, a versão ainda contém fragmentos que foram

corrigidos na versão digital em Word, guardada por sua secretária, Mónica Alonso.
Página 3 da versão 5

Nesta página podem-se apreciar as marcas de correção feitas por García Márquez no texto em

leituras posteriores. A referência à protagonista “às vésperas da terceira idade” aparece marcada
com um ponto de interrogação e desaparece na versão final, já que Ana Magdalena Bach tem

quarenta e seis anos. Outras pequenas variações são provenientes da versão digital em Word.
Página 10 da versão 5

Esta referência ao “bigode romântico terminado em pontas” do personagem no primeiro capítulo

desaparece na edição final. No sexto capítulo, a protagonista encontra este mesmo homem na

cidade, mas leva um tempo para identificá-lo porque o conhecera sem bigode: “Só então se deu
conta de que talvez não tivesse conseguido reconhecê-lo por causa do bigode de mosqueteiro que

ele não usava na ilha.”


Página 18 da versão 5

Nesta página, pode-se apreciar, como em muitas outras, correções feitas à mão pela secretária de

García Márquez, Mónica Alonso, quando acrescenta um adjetivo como “ardente”. Era comum

em algumas sessões que ela lesse o texto para ele e García Márquez lhe pedisse que fizesse
alguma mudança. Ao mesmo tempo, outras alterações iam passando à versão em Word, como a

dúvida sobre o adjetivo “tênue”, que acaba virando “contínuo”.


GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ

gabriel garcía márquez nasceu em 6 de março de 1927, em Aracataca,

um pequeno povoado na costa atlântica colombiana. Honrado com o

Prêmio Nobel de Literatura em 1982, publicou seu primeiro conto, “A

terceira renúncia”, aos vinte anos e, no ano seguinte, deu os primeiros

passos no jornalismo. Durante mais de meio século exerceu esses dois

ofícios, enfeitiçado pelo “encanto amargo da máquina de escrever”. Seu

talento na arte da narrativa fez com que ele fosse considerado um

escritor fascinante por milhares de leitores. Considerado o maior

expoente do realismo mágico, sempre afirmou que: “Não há nos meus

romances uma única linha que não seja baseada na realidade.” Ele foi,

definitivamente, o criador de um dos universos mais ricos de

significados em língua espanhola no século XX. Morreu na Cidade do

México em 17 de abril de 2014.


Este e-book foi desenvolvido em formato ePub pela Distribuidora Record de Serviços de

Imprensa S.A.
Em agosto nos vemos

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https://www.skoob.com.br/autor/37-gabriel-garcia-marquez#

Página do autor no Goodreads:

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