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Bella Mackie
Como matar a tua família
Prólogo
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Agradecimentos
 
 
Bella Mackie
 
 
 
 
 

Como Matar A Tua Família


 
 
 
 
Porto Editora
 
 
 
 
 
Como matar a tua família
Bella Mackie
 
Publicado por:
Porto Editora
Divisão Editorial Literária - Porto
Email: delporto@portoeditora.pt
 
Título original:
How to kill your family
Copyright © Bella Mackie 2021
Bella Mackie reivindica os direitos morais.
 
Tradução: Pedro Gaspar Serras Pereira
 
Design da capa original: Caroline Young © HarperCollinsPublishers Ltd
2021
Adaptação da capa e ilustração: André Cardoso
 
1 .a edição em papel: julho de 2022
 
Rua da Restauração, 365
4099-023 Porto
Portugal
 
www.portoeditora.pt
 
ISBN 978-972-0-67248-3
 
 
 
 
Prólogo
 
A prisão de Limehouse é, como devem imaginar, horrível. Só que talvez
não consigam imaginar como é, na verdade. Não há consolas de jogos nem
televisões de ecrã plano, como certamente já ouviram dizer nos jornais. Não
há propriamente uma onda de amizade comunitária nem nenhuma
irmandade tribal — normalmente, a atmosfera é frenética, horrivelmente
estridente, e parece que há uma luta a eclodir a qualquer momento. Desde o
primeiro momento que tento não levantar ondas. Permaneço na minha cela
o mais possível, entre refeições que poderão, com boa vontade, ser descritas
como comestíveis, e tento evitar a minha colega de quarto, como ela gosta,
exasperantemente, de ser tratada.
Kelly é uma mulher que gosta de estar «na palheta». No meu primeiro
dia aqui, há uns longínquos 14 meses, sentou-se no meu beliche, cravou-me
aquelas unhas horrivelmente compridas no joelho e disse-me que sabia o
que eu tinha feito, e que achava fantástico. Esse elogio foi uma agradável
surpresa, dado que, quando cheguei a este sítio decadente, esperava ser
objeto de ataques violentos. Ah, a inocência de quem não conhece as
prisões a não ser através de uma qualquer série dramática de baixo
orçamento na televisão... Depois desta primeira apresentação, Kelly decidiu
que eu era a sua nova melhor amiga e, pior ainda, uma espécie de troféu. Ao
pequeno-almoço, vem ter comigo numa azáfama, a cochichar, de braço
dado, como se estivéssemos a meio de uma conversa confidencial. Já a ouvi
falar com outras prisioneiras, a sussurrar suficientemente alto para se fazer
ouvir, a insinuar que lhe confessei todos os pormenores do meu crime.
Kelly quer influência e respeito por parte das outras raparigas, e se há
alguém que lho pode proporcionar, é a assassina de Morton. É
tremendamente cansativo.
Eu sei que Kelly diz saber tudo sobre o meu crime, mas talvez isso
diminua, de algum modo, as minhas ações. Para mim, a palavra «crime»
parece gasta, deselegante e banal. Os assaltantes cometem crimes. Quando
vamos a 50 km/h numa via em que é proibido circular a mais de 30 km/h
para tomarmos um caffè latte tépido antes de começar mais um dia
fastidioso de trabalho, estamos a cometer um crime. Eu fiz algo muito mais
ambicioso. Concebi e levei a cabo um plano complexo e cuidadoso, cujas
origens remontam a muito antes das desagradáveis circunstâncias que
envolveram o meu nascimento. Como tenho tão pouco para fazer nesta jaula
feia e pouco inspiradora (uma terapeuta mal-avisada sugeriu que eu
frequentasse um curso de declamação; fiquei satisfeita por ver que a minha
simples expressão bastou para garantir que ela nunca mais me voltaria a
fazer uma oferta daquelas), decidi contar a minha história. Isto não é tarefa
fácil, pois não tenho o portátil de última geração a que estava habituada.
Quando o meu advogado me mostrou uma luz trémula ao fundo deste túnel,
senti que devia marcar o tempo que aqui passei e escrever algo daquilo que
fiz. Uma ida à cantina permitiu-me adquirir um bloco de notas fino e uma
caneta já gasta — a troco de 5 libras do meu orçamento semanal de 15,50
libras. Esqueçam os artigos de revista que sugerem alegremente que
economizemos dinheiro a poupar no café; se realmente quiserem aprender a
poupar eficazmente, passem algum tempo em Limehouse. A escrita pode
ser inútil, mas tenho de fazer alguma coisa para amenizar o tédio
estupidificante deste sítio, e tenho esperança de que Kelly e o seu infindável
grupo de «senhoras», como ela insiste em lhes chamar, parem de me
perguntar se quero ver um reality show na televisão com elas na sala de
gravação sempre que estou empenhada numa tarefa qualquer. «Desculpa,
Kelly», costumo dizer, «Estou a escrever apontamentos importantes para o
meu recurso, falamos depois». Estou certa de que a mais vaga sugestão de
eu poder vir a contar-lhe um qualquer pormenor sumarento da minha
história a fará levar o dedo ao nariz como uma personagem ridícula de um
romance de Dick Francis e deixar-me continuar o que estou a fazer.
Claro que a minha história não é para Kelly. Duvido que ela tivesse a
capacidade de compreender o que é que me motivou a fazer o que fiz. A
minha história é isso mesmo — minha apesar de saber que os leitores a
devorariam se algum dia a publicasse — não que alguma vez pudesse fazê-
lo. Mas é bom saber que a leriam atentamente, mesmo assim. Seria um
bestseller, e as multidões acorreriam às livrarias, esperando saber um pouco
mais acerca da jovem trágica e atraente que fora capaz de cometer um ato
tão terrível. Há uns meses que os tabloides têm vindo a publicar artigos
sobre mim; o público parece não se cansar dos psicólogos de meia-tigela
que se dispõem a fazer-me diagnósticos à distância, ou dos ocasionais
espíritos do contra que defendem as minhas ações com grande escândalo no
Twitter. O público em geral está tão fascinado que até está disposto a ver
um documentário sobre mim no Canal 5, feito às três pancadas, com um
astrólogo barrigudo a explicar que o meu signo prenunciava o meu caso.
Enganou-se no meu signo, por sinal.
Por isso, sei que as pessoas beberiam as minhas palavras. Mesmo sem
qualquer tentativa da minha parte para dar uma explicação mais exata, o
meu caso já se tomou famoso. E isto, ironicamente, sem que ninguém saiba
dos meus verdadeiros crimes. O sistema judicial deste país é uma anedota, e
não há nada que o ilustre melhor do que esta simples frase: eu matei várias
pessoas (algumas de modo brutal, outras calmamente) e, no entanto, estou a
definhar na cadeia por um crime que não cometi.
Os crimes que orquestrei, caso fossem conhecidos, garantiriam que eu
fosse recordada durante décadas, talvez mesmo séculos — se a espécie
humana conseguir sobreviver até lá. Fred West, Ted Bundy, Lizzie Borden e
eu, Grace Bernard. Na verdade, isto não me agrada muito. Não sou
propriamente uma amadora ou uma imbecil. Sou uma daquelas pessoas que,
se me vissem na rua, vos deixaria a olhar para mim com admiração. Talvez
seja por isso que Kelly se agarra a mim, em vez de me espancar
violentamente, como eu estava à espera. Mesmo aqui, conservo uma certa
elegância e uma frieza que as pessoas mais fracas do que eu desejam
desesperadamente transpor. Apesar dos meus crimes, dizem-me que recebi
um montão de cartas, com declarações de amor, de admiração, a perguntar
onde é que comprei o vestido que usei no dia do julgamento (na Roksanda,
se estiverem interessadas. Infelizmente, aquela mulher horrorosa do
primeiro-ministro usou algo muito parecido um mês depois). Muitas vezes,
cartas de ódio. Outras vezes, coisas tresloucadas, em que os remetentes
pensam que eu lhes estive a enviar mensagens pelo ar. As pessoas parecem
mesmo querer conhecer-me, impressionar-me, imitar-me, se não nas minhas
ações, pelo menos nas minhas opções de indumentária. Nada disto
interessa, visto que nunca chego a ler nada. O meu advogado amontoa tudo
e leva a correspondência dali para fora. Na verdade, não tenho qualquer
interesse em saber o que represento para esses desconhecidos que se
mostram tristes a ponto de porem no papel e me endereçarem tais coisas.
Talvez esteja a ser demasiado simpática para com o público em geral,
atribuindo-lhe um conjunto de emoções mais complexo do que merece.
Talvez a razão para um interesse tão frenético e persistente no meu caso
resulte antes do princípio de Ockham — a teoria de que a explicação mais
simples é normalmente a explicação correta. O que, a confirmar-se,
significaria que o meu nome viverá muito depois da minha morte pela razão
mais prosaica de todas — por a ideia de um triângulo amoroso ser tão
dramática e dissoluta. Mas quando penso sobre o que realmente fiz, fico um
pouco triste por ninguém ter conhecimento da complexa operação que levei
a cabo. Conseguir escapar impune é incomparavelmente melhor, claro está,
mas talvez um dia, muito tempo depois de eu partir, alguém abra um velho
cofre e encontre esta confissão. O público ficaria boquiaberto. Afinal, quase
ninguém no mundo poderá compreender como é que alguém, com a tenra
idade de 28 anos, pode ter assassinado calmamente seis membros da própria
família, para depois prosseguir alegremente a sua vida, sem se arrepender
de nada.
 
Capítulo 1
 
Saio do avião e deparo-me com aquela esplêndida lufada de vento
quente que invariavelmente arranca uma exclamação aos britânicos que
aterram numa qualquer região quente e se lembram de como o resto do
mundo desfruta de um clima que não se limita a oscilar entre o cinzento e o
frio. Sou especialista a movimentar-me rapidamente nos aeroportos, o que
hoje não se verifica, uma vez que estou empenhada em evitar o homem ao
lado de quem tive a pouca sorte de vir sentada durante voo. Amir
apresentou-se mal eu acabara de pôr o cinto de segurança. Este fulano, que
aparentava andar na casa dos 30 anos, trazia uma camisa ridiculamente
esticada sobre os seus quase-cómicos peitorais e, a combinar, umas calças
de fato de treino lustrosas. A pior parte da indumentária, a cereja no topo
daquela grande confusão, era o par de chinelos que trazia em vez de
sapatos. Chinelos de piscina Gucci, com meias a condizer. Credo! Ainda
pensei em pedir à hospedeira para me sentar noutro sítio, mas ela não
aparecia em lado nenhum e eu já estava entalada entre o super-herói janota
e a janela quando o avião começou a rolar para a pista.
Amir estava a caminho de Puerto Banús, tal como eu, embora eu jamais
lhe tivesse dito tal coisa. Tinha 38 anos, trabalhava em qualquer coisa
relacionada com discotecas, e não se cansava de dizer que gostava de
«curtir à grande». Eu fechei os olhos enquanto ele continuava a divagar
fastidiosamente sobre o estilo de vida de Marbella, falando-me do desafio
que representava mandar vir os seus carros preferidos por barco para a
época de verão. Apesar da minha linguagem corporal, o meu companheiro
de voo não desgrudava, obrigando-me, finalmente, a responder. Ia visitar a
minha melhor amiga, disse-lhe eu. Não, não estava em Puerto Banús, mas
mais para o interior, e era pouco provável que nos aventurássemos até à
cidade para experimentar os encantos da discoteca Glitter.
— Precisam de um carro? — perguntou-me o brutamontes — Eu posso
arranjar-vos uma máquina para passearem, é só dizerem, que eu
desencanto-vos um belo Mercedes para as vossas férias. — Eu recusei, o
mais delicadamente que consegui, antes de anunciar que precisava de
terminar um trabalho antes de aterrarmos.
Quando iniciámos a descida, Amir agarrou a sua oportunidade e
advertiu-me de que eu não tinha desligado o portátil. Uma vez mais, fui
arrastada para a conversa, mantendo o cuidado de não mencionar o meu
nome ou dar qualquer informação pessoal. Fiquei furiosa com a sua
atenção, pois tinha-me vestido deliberadamente para o voo, de calças pretas
e camisa, sem maquilhagem, para atrair o mínimo de atenção possível.
Nada de joias, nada de toques pessoais, nada que pudesse sobressair na
memória de alguém em caso de interrogatório. Não é que isso devesse
acontecer, pois não passo de uma rapariga de férias em Marbella, como
tantas outras neste verão.
O voo era o máximo que Amir podia obter de mim, e mesmo isso era
tirado e não dado. Por isso, agora estou a acotovelar-me entre pessoas, a
rasgar sorrisos enquanto abro caminho até ao princípio da fila dos
passaportes e a correr diretamente para a zona de recolha de bagagem.
Posiciono-me por trás de um pilar enquanto a sala se vai enchendo e olho
para o telemóvel. Alguns minutos depois, vejo a minha mala, pego nela,
dou meia-volta e encaminho-me intencionalmente para a saída. Então, sou
acometida por um pensamento e detenho-me abruptamente.
Estou encostada ao gradeamento à saída do aeroporto quando Amir
reaparece. O rosto ilumina-se-lhe enquanto encolhe a barriga e enche o
peito de ar.
— Estava à tua procura! — diz ele, e eu reparo no relógio de ouro
reluzente enquanto ele gesticula.
— Sim, desculpa, estou cheia de pressa para apanhar a minha amiga a
tempo do almoço, mas não podia ir-me embora sem me despedir —
respondo.
— Bem, vamos fazer aquela noitada, dá-me o teu número e vamos
falando. — Nem a mais remota possibilidade, mas tinha de o manter nas
palminhas se queria conseguir o que queria.
— Tenho um telemóvel novo, Amir, não me recordo do número, pela
minha saúde. Já sei, dá-me o teu, que eu depois ligo — sorrio e toco-lhe no
braço ao de leve. Depois de guardar o número e ter declinado a boleia,
acenei-lhe, despedindo-me.
— Amir — chamei, enquanto ele se afastava — Aquela oferta de um
carro ainda está de pé?
***
Chego ao meu apartamento arrendado exatamente duas horas depois,
numa viagem razoavelmente indolor num carro alugado desde o aeroporto.
Encontrei o apartamento no Airbnb e arranjei maneira de pagar à senhoria
em dinheiro, para não ficar com um registo em meu nome. Ela aceitou uma
reserva privada sem problema quando lhe disse que pagaria o dobro. É
extremamente caro, sobretudo na época alta, mas só tenho esta semana de
férias no trabalho e estou empenhada em levar o meu plano avante, por isso
estou a resolver o problema com dinheiro. O apartamento é pequeno e
sufocante, a estética é altamente evocativa de uma clínica de cosméticos dos
anos 80, mas com bonecas chinesas acrescentadas. Estou ansiosa por ver o
mar e esticar as pernas, mas o meu tempo aqui é limitado e há trabalho a
fazer.
Fiz a minha investigação, tanto quanto me foi possível fazer sobre dois
velhos fanáticos com uma presença online mínima, e tenho uma ideia
bastante clara sobre onde é que eles irão estar esta noite. Ao que parece, do
pouco que consegui respigar da página do Facebook de Kathleen (a pobre
criatura tem uma conta pública, graças a Deus que os velhotes não
percebem nada de definições de privacidade), quando não estão a sentir-se
furiosos com a quantidade de pessoas espanholas que vivem em Espanha,
os seniores Artemis passam a maior parte do tempo a arrastar-se entre um
restaurante chamado Villa Bianca, que fica mesmo na marginal, e um casino
chamado Dinero, logo à saída da cidade. Reservei uma mesa no restaurante
para o jantar.
Deixem-me ser clara: não faço ideia do que estou a fazer. Tenho 24
anos, há anos que penso na melhor maneira de vingar a minha mãe, e este é
o maior passo que alguma vez dei. Basicamente, tenho passado a vida a
trabalhar para subir na minha carreira, a poupar dinheiro, a investigar a
família e a tentar colocar-me numa posição em que possa aproximar-me
deles. Tem sido útil, mas desinteressante. Claro que estou disposta a fazer
estes sacrifícios para ficar mais perto dos meus objetivos finais, mas, porra,
é difícil fingir que me interesso por pesquisas de clientes e participar nos
convívios opcionais (leia-se, obrigatórios) de teambuilding às sextas-feiras.
Se eu soubesse que tinha de beber jägerbombs com gente que trabalha em
marketing de livre vontade, teria dedicado mais tempo ao estudo da
trepanação. Talvez seja por isso que estou a tentar apressar este grande
passo, desesperada como estou por provar a mim mesma que consegui
ganhar terreno e que estou em condições de fazer aquilo que ando a dizer a
mim mesma que vou fazer desde os meus 14 anos. No entanto, estou
terrivelmente mal preparada. Tinha previsto, ao chegar a Marbella, ter um
plano sólido em marcha, ter delineado cuidadosamente o meu itinerário, as
horas, e ter investido num disfarce incrível. Em vez disso, estou
enclausurada num apartamento cujo cheiro é como se o hamster da família
tivesse morrido debaixo do roupeiro e a nossa mãe não soubesse de onde é
que vinha o cheiro e tivesse andado a usar lixívia à maluca durante seis
meses. Tenho um plano na cabeça, mas não faço ideia se serei capaz de o
pôr em prática. Tenho uma peruca que comprei numa loja de cosméticos em
Finsbury Park, que me pareceu convincente quanto baste à luz listrada da
loja, mas que se afigura preocupantemente inflamável sob o sol espanhol.
Apesar deste sentimento difuso de ansiedade em relação à minha falta de
preparação, a excitação alastra dentro de mim. Enquanto ajeito a peruca e
me maquilho, sinto-me como se estivesse a preparar-me para um encontro
deslumbrante — e nada como quem está a preparar-se para matar os
próprios avós.
***
Claro que isto é uma dramatização excessiva. Não vou matá-los nesta
noite, isso seria uma palermice. Preciso de os ver, de ouvir a sua conversa,
de ver se eles deixam escapar algumas pistas sobre os seus planos para esta
semana. Preciso de fazer o caminho até à moradia deles algumas vezes e,
igualmente importante, preciso de ir buscar o carro prometido por Amir.
Das duas, uma: ou o carro é um sinal de que sou estupidamente caótica e
deveria adiar os meus planos, ou então foi um pequeno presente de uma
divindade desconhecida. Veremos qual das duas está certa!
***
Decidi há muito tempo que Kathleen e Jeremy Artemis seriam os
primeiros a deixar-nos. Isto por diversas razões, a primeira das quais sendo
a de que são tão velhos que já não terá assim tanta importância. As pessoas
velhas que não fazem mais que desbaratar as pensões e estupidificarem-se
nas suas poltronas prediletas não são, em minha opinião, boa publicidade
para a Humanidade. É ótimo que tenhamos conseguido descobrir maneira
de fazer com que as pessoas vivam mais tempo com intervenção médica e
estilos de vida mais saudáveis, mas infelizmente estas vão-se tomando
empata-camas cujos espíritos se vão tornando cada vez mais vis até não
passarem de velhas bestas fanáticas a viver no quarto onde nós queríamos
fazer o nosso estúdio.
Não fiquem chocados, eu bem sei que pensam o mesmo. Aproveitem a
vida e durmam o sono eterno por volta dos 70, pois só os espíritos muito
aborrecidos quereriam viver até aos 100 — a única recompensa seria uma
carta impessoal e sucinta da rainha. Por isso, acho mesmo que estou a fazer
um favor a todos nós. São velhos e dispensáveis, e vivem vidas
incrivelmente inúteis. Vinho ao almoço, sestas, uma ida às lojas da cidade
para comprar joias horríveis e relógios espalhafatosos. Ele joga golfe, ela
passa grande parte do tempo a ser injetada com coisas na cara, o que tem o
estranho efeito de a fazer parecer uma criancinha gigante. Um desperdício
de vida, e ainda nem vos contei quão racistas eles são. Oh, que se lixe,
podem muito bem imaginar. Vivem em Marbella e nem sequer falam
espanhol, aí têm. Não é preciso ir mais longe.
Claro que estou metida nisto até ao tutano. Não sou como Harold
Shipman, que corre alegremente por aí a matar o maior número de velhos
possível. Eu quero matar apenas dois, os outros podem ficar descansados a
ver a novela e a comprar presentes horríveis para os netos que desesperam
com as suas visitas fastidiosas. Estas pessoas são tecnicamente meus avós,
apesar de eu nunca as ter visto, e nunca foram sequer capazes de me
comprar um mísero Toblerone. Mas eles sabem que eu existo.
Deixem-me explicar. Durante muitos anos não estive ciente disto,
imaginando que o meu pai, Simon, me tinha conseguido manter em
segredo, mas Helene, a amiga da minha mãe, veio visitar-me a Londres há
pouco tempo e, encorajada por uma garrafa de vinho, confessou que os
tinha visitado pouco antes de partir para Paris há todos esses anos. Sentia
que estava a dececionar a pobre Marie ao abandonar-me e queria fazer
qualquer coisa para apaziguar essa culpa. Por isso, procurou-os na Internet e
encontrou a morada deles em Londres nas listas da Company House. Eu
estava quase a trepar pela mesa acima para ouvir o que eles lhe tinham dito,
para assimilar esta nova informação. Tinha ido a casa deles muitas vezes,
claro está, antes de eles se mudarem para Espanha a tempo inteiro. Tinha
passado horas cá fora, a observar, à espera, por vezes seguindo o seu carro
com motorista quando saíam. Mas falar com eles era todo um outro plano, e
eu estava meio impressionada com Helene — e meio furiosa por ela nunca
me ter falado daquele encontro.
Ela estava claramente relutante em me contar quão mal tinha corrido o
encontro, evitando o meu olhar quando me disse que eles tinham começado
por bater com a porta quando ela lhes explicou quem era. Mas ela não se foi
embora, e por fim lá a deixaram entrar e revelaram friamente que sabiam
perfeitamente da minha existência, bem como da «minha abominável mãe».
Comecei a ouvir um zumbido nos ouvidos enquanto assimilava estas
palavras e cocei o pescoço, esperando pela protuberância que eu sabia que
iria aparecer a qualquer momento. Eles sabiam da minha existência desde o
início, explicou Helene, desde que o seu «pobre» filho aparecera
inesperadamente tarde, certa noite, e, às voltas pela sala, confessara que se
tinha metido num sarilho. De acordo com Jeremy, que falou a maior parte
do tempo, enquanto Kathleen permanecia rigidamente sentada no sofá
beberricando um grande gin tónico, Simon perguntara-lhes como é que
devia contar a Janine e dissera ao pai que seria preciso providenciar algum
dinheiro para mim.
— Por isso, de certa forma, ele queria mesmo fazer as coisas em
condições — disse Helene, quase como se estivesse a pedir desculpa,
enquanto bebia o seu vinho e enrolava o cabelo com os dedos. Eu ignorei o
comentário e disse-lhe para continuar. Não tinha qualquer interesse em
alimentar as patéticas tentativas daquele homem para salvar a sua
consciência.
Jeremy contou orgulhosamente a Helene que ele e a sua esposa tinham
passado várias horas a pôr cobro a esta ideia, fazendo-lhe ver que Marie
tinha engravidado deliberadamente por dinheiro e advertindo-o de que
Janine jamais se recomporia. «O Simon cometeu um erro infantil, como
sucede a tantos jovens», dissera ele a Helene, «e tenho pena de que esta
jovem tenha de crescer sem pais, mas há muita gente que já passou por pior,
eu próprio perdi a minha mãe quando era muito novo, e não me pus por aí à
procura de esmolas de desconhecidos.» Helene disse-me que contra-
argumentara, gritando que Marie não tivera qualquer intenção de chantagear
o seu filho e tentando explicar que ela não sabia quão rico ele era, ou sequer
que era casado, a não ser muito mais tarde. Mas eles não queriam saber de
nada. «A rapariga tentou arruinar o meu filho por dinheiro!», gritou
Kathleen, levantando-se subitamente do seu lugar. «Se acha que a filha da
sua amiga vai recomeçar agora com todo este disparte é porque é tão tola
como ela.» E tinha sido mais ou menos isto. De acordo com Helene, que
tinha acabado com o seu vinho e estava a gesticular furiosamente, Kathleen
tinha começado a soluçar e a bater no peito do marido. Este tinha-lhe
agarrado as mãos e empurrara-a vigorosamente para o sofá, antes de se
voltar para Helene, que estava de pé, algo aturdida, junto à porta. «A
senhora perturbou a minha mulher e estragou a nossa noite. Quero-a fora de
minha casa e nem sequer pense em tentar esta brincadeira com o meu filho.
Arranjaremos advogados para lhe caírem em cima tão depressa que acabará
a dormir na rua antes mesmo de vir a encontrar-nos em tribunal.»
— Eu fiquei um pouco abalada — disse Helene —, porque, de um
momento para o outro, ele parecia louco. Tinha os olhos arregalados e
aquele cabelo grisalho tão penteadinho a esvoaçar de um lado para o outro.
E o mais estranho é que o sotaque dele mudou por completo. Quando falou
comigo pela primeira vez, parecia um cavalheiro inglês como deve ser, mas
quando eu me estava a ir embora, tinha a voz dura e áspera e fez-me
lembrar um dos vendedores do mercado da minha terra. Tenho pena de ter
tentado, mas pensava que os pais dele fossem um pouco mais bondosos,
mais simpáticos. Pensei que eles quisessem conhecer a sua linda neta,
valha-me Deus! Mas não. Eles conseguiram dar-se bem na vida, Grace,
mas, no fundo, no fundo, são uns bandidos.
Portanto, são velhos, são maus e ocupam um espaço precioso neste
mundo. Tudo isto seria razão suficiente para os ajudar a chegar ao fim da
viagem de uma maneira mais desagradável do que estaria originalmente
escrito nas estrelas. Mas, para ser totalmente honesta, é sobretudo porque
eles sabiam. Sabiam da minha mãe. Sabiam de mim. E não se limitaram a
cruzar os braços sem fazer nada; não, eles pressionaram diretamente o filho,
culpando Marie, Helene, os bares, os amigos que o desviaram do caminho.
Culpavam toda a gente, menos Simon. Eu pensava que eles estavam a viver
as suas vidinhas sem saberem que o filho tinha rejeitado a própria filha e
abandonado a mãe à sua sorte. Mas eles tinham feito para que assim fosse.
No fundo, foi isso que determinou a decisão. Serão os primeiros a morrer.
Chego ao restaurante da praia às seis da tarde, partindo do princípio de
que, à semelhança da maior parte das pessoas idosas, os meus avós jantam
cedo. Pedi um lugar na esplanada, mas afinal o restaurante é muito maior do
que parecia na Internet, e eu estou com receio de ficar demasiado afastada
deles para conseguir recolher alguma informação útil. Mando vir um copo
de vinho branco (gosto de beber o meu vinho. Os Latimer sempre fizeram
questão de beber do bom e do melhor. Eu escolhi um Rioja) e obrigo-me a
abrir o livro que trouxe para não dar muito nas vistas quando estiver a ouvir
conversas alheias. Tinha escolhido O Conde de Monte Cristo, que era um
pouco óbvio demais, mas achei engraçado quando estava a fazer as malas.
Não vou ter de esperar muito até o casal Artemis chegar. Ainda mal acabei
a primeira página e já começo a ver atividade pelo canto do olho. Do outro
lado do balcão, dois empregados estão a acompanhar quatro pessoas de
idade em direção à esplanada. Eu permaneço quieta, sem me permitir olhar
para cima, mas sentindo que eles estão a aproximar-se. Oiço uma voz
feminina bastante audível:
— Não, essa mesa não, Andreas, está à chapa do sol. Sente-nos ali.
O grupo dá meia-volta e dirige-se ao outro extremo da esplanada. Raios
te partam, Kathleen.
Uma vez instalados nos seus lugares e depois de pedirem as bebidas, o
que demora uma eternidade, com queixas por causa do vento e um grande
dilema sobre o que escolher, permito-me examinar rapidamente a cena. Os
envelhecidos Artemis estão de frente para mim, com os amigos de costas.
Kathleen fez um penteado que deixaria Joan Collins furiosa. O seu cabelo é
loiro-claro e tem uma estrutura, não um estilo, tão rigidamente armada que
o vento que a preocupava nem sequer ousará tocar-lhe. O trabalho
cosmético no seu rosto é visível a uma certa distância, e os seus olhos foram
deliberadamente retocados para lhe darem uma expressão levemente
assustada, que, em minha opinião, pretende ser coquete, mas lhe dá um ar
demente. Traz uma grande túnica bege por cima de umas calças beges, com
a sua mala Chanel obscenamente grande pousada sobre a mesa. O seu
pescoço está adornado com um grande colar de... não consigo identificar as
pedras, mas posso garantir, sem margem para dúvidas, que não se trata de
zircónia cúbica. Dou-me ao luxo de olhar um pouco para eles à descarada,
visto que estão todos absortos na ementa. Pergunto-me se há alguma coisa
minha nesta mulher de ar insatisfeito quando ela cerra as mãos em cima da
mesa, dando-me a ver as unhas, pontiagudas, pintadas de um clássico
vermelho Ferrari. Cá estamos nós, Kathleen. As minhas mãos, que seguram
o meu livro esquecido, são compridas e finas, ao contrário das dela, mas as
minhas unhas... as minhas unhas também são vermelho-brilhante e
pontiagudas.
Ao fim de alguns minutos a fingir que estou mergulhada no meu livro,
chamo o empregado e peço-lhe para também me tirar do sol. E já não era
sem tempo, pois tenho uma leve suspeita de que esta peruca podia começar
a derreter a qualquer momento. A esplanada está composta, mas não
totalmente cheia, e sou conduzida a uma mesa mesmo por trás dos meus
alvos. Muito melhor. Quero ouvir o que estão a dizer. Não vou ficar a saber
nada de profundo ou interessante sobre as suas personalidades, têm o
espírito demasiado fechado para isso, mas talvez consiga ficar com uma
ideia dos seus planos para a semana. Só vou cá estar mais cinco dias, foi o
máximo de férias que consegui tirar, por isso o tempo é apertado. Peço mais
um copo de vinho e uma tábua de salgados, e volto a abrir o meu livro.
Jeremy está a olhar para mim, de uma maneira que todas as mulheres
reconhecem. O velho baboso está a tirar-me as medidas, a apreciar a minha
juventude, sem se aperceber de quão patético está a ser. Eu sorrio por um
breve instante, em parte porque me diverte ver o meu avô a fazer-se a mim,
e em parte para o levar a pensar que estou encantada. O momento é
interrompido pelos empregados que lhes vêm trazer a comida. O pedido não
chegou a ser feito, mas quando vejo os pratos, percebo porquê. Bifes com
batatas fritas para todos. Deve ser a única coisa da ementa que eles pedem.
Bife com batatas fritas, todos os dias, sem alguma vez se aventurarem em
novos territórios, sem alguma vez experimentarem algo diferente,
permanecendo pequeninos, tornando-se vis. Consegui ver isto tudo só a
partir do bife, agora imaginem o que podia ficar a saber a partir das suas
estantes... Estou a brincar, claro que eles não têm livros nenhuns em casa.
Eles continuam a falar em tom monocórdico sobre os amigos do clube
de golfe, conversando sobre um tal de Brian que tinha sido envergonhado
num recente leilão de caridade (pobre Brian, imaginem a vergonha de ser
excluído pela comunidade sénior de expatriados). Kathleen e a outra mulher
que estava a comer, que se parecia bastante com Kathleen, mas com mais
pneus e uma mala mais pequena, começaram então a cortar na casaca de
uma cabeleireira que era muito demorada e que não encaixara na agenda
uma amiga sua na passada segunda-feira. A minha atenção dispersa-se.
Quero saber o mais que puder, mas, valha-me Deus, esta gente não facilita
as coisas.
Posso pedir mais um copo de vinho, ou será que isso vai sabotar esta
missão de recolha de informação? Que se dane! Pedido o copo de vinho,
pico o resto dos meus aperitivos. Talvez o grupo que estou a observar
estivesse certo no que toca ao bife. O que pedi tem uma estranha
consistência de borracha, e parece não tanto vindo do mar, mas antes como
se tivesse sido cultivado num armazém à beira da autoestrada. O grupo que
se encontra à minha frente acabou de pedir o café, e Kathleen está muito
atarefada com uma nódoa na gravata de Jeremy, que parece ser uma gravata
de um clube. Aposto que Jeremy é maçom, assentar-lhe-ia na perfeição. O
marido da amiga gorda está a perguntar quando é que vão outra vez ao
casino, e faz referência a um evento relacionado com bebidas na próxima
quinta-feira.
— Sim, nós vamos lá estar — diz Jeremy secamente, fazendo voar o
guardanapo que Kathleen lhe estendera. — Temos jantar com os Beresford
às sete e meia, e vamos lá quando voltarmos.
Apetece-me gritar: ONDE É QUE VOCÊS VÃO JANTAR?, mas eles
não desenvolvem o tema. Em vez disso, Jeremy pede a conta, acenando
bruscamente ao empregado. O outro homem agarra no pires com a conta
mal esta chega e faz um aceno aos meus avós.
— Isto é connosco, estou certo de que é a nossa vez... não, por favor,
faço questão. — Cai um cartão de crédito dourado sobre a mesa e Jeremy
mal responde, decidindo, em vez disso, pôr-se a olhar para mim outra vez.
Desta vez desvio o olhar. Não quero que ele me marque, que fique a
conhecer a minha cara demasiado bem. Não estou preocupada, presumo que
ele passe bastante tempo a olhar para mulheres suficientemente novas para
serem suas netas; porventura, menos para aquelas que o sejam realmente,
mas tendo em conta o cadastro de Simon, quem poderá ter a certeza?
Enquanto eles se vão embora, reparo melhor na gravata de Jeremy.
Estava enganada, não é da maçonaria. A verde e amarelo estão impressas as
letras «RC». Uma pesquisa rápida no Google diz-me que é a gravata oficial
do Regency Club, um estabelecimento exclusivo para membros em
Mayfair, aberto em 1788 para que homens da família real ou muito ricos
pudessem reunir-se sem as respetivas esposas. Quase dou uma gargalhada.
Sei muito bem onde começaste a tua vida, Jeremy. Numa casa de duas
assoalhadas em Bethnal Green, com uma mãe costureira e um pai que se
pôs a andar e acabou sabe-se lá onde antes de fazeres 5 anos. Simon falou
orgulhosamente disso em entrevistas, como um sinal de quão arduamente a
sua família trabalhou para ascender no mundo. Por isso aqui estás tu, com a
tua gravata, imaginando que ela mostra a tua linhagem — a que compraste
para ti próprio. Admirável para alguns, talvez. Até para mim, visto que
estou a tentar fazer o mesmo — arrastar-me para fora da pobreza, afastar-
me da minha primeira oferta na vida. Mas eu conheço-te. Conheço o ódio
das tuas raízes, independentemente da história que tenhas inventado desde
então. Viste-o em mim, e quando te pediram para ajudares o sangue do teu
próprio sangue numa situação semelhante, fugiste. Helene tinha razão. Não
passas de um bandido, e os teus clubes privados e as tuas roupas caras
pouco ou nada podem fazer para o ocultar. Mas usa a tua gravata. Já não
falta muito para quinta-feira.
Decido regressar ao meu alojamento, apreciando, enquanto caminho, o
passeio marítimo de Puerto Banús. As lojas estão cheias de mulheres que
seguram vestidos ornamentados ao espelho enquanto tagarelam com as
amigas. Um grupo de adolescentes passa por mim envolvido numa
discussão sobre os seus bronzeados. Questiono-me se também eu teria sido
uma destas conchas ocas se tivesse crescido sob os cuidados da família
Artemis. Leio livros, sigo as notícias do mundo, tenho opiniões sobre coisas
que não apenas sapatos e clubes de golfe. Sou melhor do que esta gente,
disso não tenho dúvida. Mas, apesar da sua ignorância, eles parecem felizes.
Talvez por causa da sua ignorância. Porque é que me hei de preocupar?
Nenhum destes idiotas se preocupa com as alterações climáticas, só pensam
no que vão vestir no iate no dia seguinte, mas é fascinante observá-los, e eu
já tenho muito pouco tempo para assistir. Quando tiver concluído o meu
trabalho, não voltarei a este parque de diversões para gozar destes luxos.
Talvez devesse comprar uma recordação. Olho para as montras das lojas,
com as suas rendas demasiado caras. Não tenho dinheiro nem desejo de
comprar um kaftan forrado em pele, nem mesmo como uma brincadeira
tonta. Para além disso, penso que sei qual vai ser a minha recordação, e não
me vai custar dinheiro nenhum.
No dia seguinte, depois de uma corrida rápida pela praia, vou de carro
até casa deles. É uma grande moradia num complexo vigiado, escondido
das massas sujas e guardado por grandes portões e um segurança enfastiado
numa guarita, que eu imagino ter por função verificar a identidade dos
visitantes, mas que me deixa entrar com um simples aceno quando lhe
anuncio que venho da parte da boutique Afterdark deixar um vestido à Sra.
Lyle, no número 8. Imaginei que houvesse um fluxo bastante constante de
entregas para as senhoras que se aborreciam sozinhas nas suas residências
imaculadas, sempre a pedir um novo vestido ou a convocar uma manicura
com a maior brevidade possível. Eu não disse que ia entrar na casa dos
Artemis. Não quero que haja uma associação óbvia, no caso de, mais tarde,
virem a ser feitas perguntas.
A sua casa, o número 9, é idêntica aos números 8 e 10. Estuque branco,
degraus de tijoleira a conduzirem até à porta. Palmeiras em cada lado do
alpendre. Um relvado perfeito, mesmo com este calor abrasador. Suponho
que a proibição do uso de mangueira não se aplica quando se vive num
aldeamento fora da sociedade normal. Tiro o pé do pedal e passo devagar,
mas não há nada para ver, na verdade. Não há ninguém à vista nestas
grandes avenidas, nem uma pessoa a passear o cão ou uma mãe com um
carrinho. Todo este dinheiro, e a única coisa que se consegue comprar é o
silêncio. Eu aprecio o silêncio, por sinal; uma pessoa não cresce numa rua
principal de Londres sem sonhar com o dia em que possa viver sem estar a
ouvir os vizinhos ora a fazer sexo ora a soluçar ao som d’Os miseráveis.
Mas esta calma é artificial — parece vazia e soturna, como se fosse feita
para pessoas que quisessem criar um ambiente que negasse por completo a
realidade sonora da vida humana. A escolha da casa por parte dos Artemis
só me diz alguma coisa na medida em que não me diz nada. É uma casa que
foi construída para pessoas ricas que não se importam nada com a
arquitetura, mas valorizam a segurança e o estatuto. «A Lynn e o Brian
compraram uma casa neste aldeamento? Então vamos comprar uma ainda
maior.» É isso. Não há qualquer consideração pela personalidade, não há
atividade — apenas uma conformidade assética. Vou-me embora a sentir-
me algo deprimida. Tenho o mesmo ADN que estas pessoas, será que
também eu vou, um dia, ansiar por alcatifas bege e uma empregada que
possa tratar mal? Imagino que ter uma empregada fosse agradável, mas
acho que a sua inevitável tristeza seria um pouco opressiva. Imagino que
para Kathleen seja uma consolação: alguém que seja mais miserável do que
ela, à sua frente, para ela poder ver todos os dias.
Do aldeamento sigo diretamente para o casino, que fica a cerca de meia
hora de distância por uma estrada bastante pedregosa. Uma ribanceira de
um dos lados parece descer até um... desfiladeiro? Uma ravina? Não sei.
Como disse, cresci numa rua principal e sempre tive o que me parece ser
uma saudável desconfiança de grandes espaços abertos. O campo perturba-
me, e seja qual for o destino que me leve meia hora de carro a alcançar, não
seria sítio onde me desse ao trabalho de ir se estivesse em casa. Às vezes,
sinto a necessidade de ter um breve encontro com um homem (refiro-me a
sexo, podem baixar os olhos) ou de desperdiçar desalmadamente o meu
tempo a investigar aplicações de encontros. Folheio pretendentes que posam
em frente de BMW, como se isso fosse um sinal de êxito, em vez de uma
clara indicação de que são suficientemente estúpidos para pensarem que
fazer um leasing faz sentido do ponto de vista financeiro. Mas um carro
foleiro e uma t-shirt com decote em V não significam necessariamente um
não. Afinal, não vou passar a minha vida com estes homens. Nem sequer
me dou ao cuidado de memorizar os nomes, mas tenho um limite muito
bem traçado: se estás a mais de dois quilómetros de distância, não vai
acontecer. O meu humor está sempre a mudar e não vou ficar à espera de
que mudes de estação em King’s Cross ou que me envies um SMS a dizer
que o metro foi substituído por uma frota de autocarros por causa de obras
de reparação na linha. Por isso, o campo espanhol é um mundo estranho
para mim e, raios me partam, a colina vai dar a uma ravina. Seja como for
que lhe chamemos, é um grande precipício e a vertente da colina está
coberta de arbustos retorcidos. Para além disso, não se vê vivalma nesta
estrada. Perfeito. O sol está a brilhar, e uma brisa quente percorre o meu
braço quando o apoio na porta enquanto conduzo. Ligo o rádio e a estação
local está a passar Beach Boys. Os acordes de «God Only Knows» inundam
o pequeno carro alugado, enquanto me agarro lentamente à estrada e
prossigo em direção ao casino. Não acredito em Deus, evidentemente.
Vivemos num tempo de ciência e de Big Brother, por isso acho que estou a
salvo no lado mentalmente são das coisas. Ao mesmo tempo, nenhum Deus
com verdadeira influência me teria juntado com estas pessoas e incutido um
tal chamamento. Por isso, nada de Deus. Mas é verdade que hoje sinto que
alguém me está a sorrir lá do alto.
Já que estou a falar de Deus, há uma história na Bíblia (quero dizer, não
é na Bíblia, ouvi-a num filme e envolve alta tecnologia) que reza mais ou
menos assim: um homem vive muito feliz numa casa muito pequena
durante vários anos, até que, um dia, os serviços de emergência lhe batem à
porta e dizem: «Senhor, vem aí uma tempestade, temos de evacuar». E o
homem diz: «Obrigado, meus senhores, mas eu sou religioso, tenho fé.
Deus salvar-me-á». Os homens vão-se embora e a tempestade chega. As
águas elevam-se à volta da sua casa, e aparece um barco que vem a passar.
«Senhor!», grita o capitão, «Venha connosco, a água vai continuar a subir».
Mas o homem diz: «Obrigado, meus senhores, mas eu sou religioso, tenho
fé. Deus há de me salvar». Mais tarde, o homem tem de trepar para o sótão
enquanto a casa é inundada. Aparece então um helicóptero a sobrevoar o
telhado. «Senhor, suba por esta escada, podemos pô-lo em segurança». O
homem acena-lhes, mandando-os embora. «Obrigado, meus senhores, mas
eu sou religioso. Deus há de me salvar». Mais tarde, o homem afoga-se.
Quando chega ao Céu, encontra Deus e diz: «Pai, eu tive fé, acreditei em Ti,
mantive-me fiel. Porque é que me deixaste afogar?» Deus mostra-se
exasperado (e como é que não havia de estar... este homem era um idiota) e
diz: «David, eu enviei-te os serviços de emergência, um barco e um
helicóptero. Porque é que estás aqui?!».
Alguém me enviou um grande e estúpido Amir com os seus carros
potentes, um par perfeito para a noite em que os meus avós ficarão
acordados até tarde e uma estrada ventosa e perigosa. Ao contrário do
homem estúpido da lenda, estou firmemente decidida a tirar o máximo
proveito de tudo isto.
***
Tenho pouco mais de 36 horas até levar a cabo os meus planos. Podia
passar este tempo a seguir o casal de um lado para o outro para saber mais
coisas sobre eles, mas, honestamente, eles não são suficientemente
interessantes para que isso valha a pena. Por isso, vou até à praia durante o
resto da tarde, espojar-me numa espreguiçadeira numa praia privada e beber
um rosé enquanto leio um livro sobre uma mulher que mata o marido
depois de anos de manipulação e ofensas emocionais. Não consegui
continuar O Conde de Monte Cristo — demasiado incisivo, parece-me. Mas
não resisti a dar uma espreitadela ao final. Um hábito terrível, sem dúvida,
mas a minha natureza prevaricadora foi, ainda assim, recompensada com a
seguinte tirada: «Toda a sabedoria humana residirá nestas palavras: esperar
e ter esperança».
Esperar e ter esperança. Tenho vivido destas palavras desde a
adolescência e agora, finalmente, a parte da espera está a chegar ao fim.
Levo as mãos ao peito quente e procuro sentir se o meu coração está a bater
mais depressa do que o normal. Mas não, estou a respirar normalmente,
como se hoje fosse apenas mais um dia igual aos outros e não estivesse
prestes a cometer um crime terrível. Que estranho. A minha cabeça anda às
voltas com o plano, e o sentimento de antecipação está a subir como vapor
prestes a espirrar-me pelos ouvidos, no entanto, aqui estou eu, estendida,
escudada nos meus óculos escuros, com o meu fiel coração a recusar-se a
explodir-me para fora do peito. O meu corpo está pronto, apesar de a minha
cabeça estar a comportar-se como um adolescente a preparar-se para o
primeiro encontro.
Nessa noite, antes de ir para a cama, envio a Amir uma mensagem do
meu recém-adquirido telemóvel descartável. Foi esse o nome que Edward
Snowden deu a um telemóvel que compramos para tentar permanecer
indetetáveis. O que parece ser um pouco excessivo no meu caso, visto que
não estou ao corrente de quaisquer segredos de Estado. Uma boa dica, no
entanto, e bastou uma viagem de 20 minutos a uma zona menos salubre de
Londres, mais 60 libras em dinheiro, para conseguir este velho telefone de
abrir, algo pitoresco, que carreguei com algum dinheiro para poder enviar
mensagens. Não vai regressar comigo a Inglaterra, mas está a cumprir uma
função útil. Pergunto a Amir se ele vai estar por cá amanhã e se poderá
desenrascar-me um carro por dois ou três dias. Disse-lhe que vou viajar
mais para o interior da ilha e que me sentiria mais segura se tivesse um
carro maior, o que até é mais ou menos verdade, suponho eu. As melhores
mentiras têm sempre um fundo de verdade, o que faz com que seja mais
fácil atermo-nos à nossa história e menos provável sermos apanhados em
falso com versões diferentes. O meu amigo Jimmy tem uma cara de
mentiroso terrível, com os cantos da boca a retorcerem-se-lhe num sorriso
afetado quando diz uma patranha. É quase enternecedor, mas faz com que
seja impossível confiar-lhe o que quer que seja, dada a sua tendência para
ser apanhado quando confrontado.
Quando acordo, vou ver o telefone imediatamente. Tal como eu
suspeitara, Amir respondeu nas primeiras horas da madrugada. Uma grande
noitada no Glitter, imagino. Respondo imediatamente, agradecendo-lhe o
convite para sair, mas explicando mais uma vez que irei sair nessa tarde. Sei
que não vou conseguir safar-me com uma simples chave na mão, por isso
sugiro um encontro no salão de uma gelataria na Calle Ribera às duas da
tarde. Sei que não vou ter notícias dele até meio do dia, dada a quantidade
de champanhe que imagino que ele tenha ingerido na noite passada, por isso
salto para o pequeno chuveiro e enfio um vestido de verão que espero que
me faça parecer algo deselegante aos olhos de Amir. Pelo menos, é
destituído de qualquer brilho ou corte, por isso deverá ser, na prática, um
macacão comparado com o que a maior parte das mulheres escolhem para
vestir neste sítio. Na minha curta estadia aqui, começo a sentir que há uma
combinação de lantejoulas, botões de ouro e padrões tigresse que parece
formar uma espécie de uniforme não-oficial nesta terra. Isso e os lábios
arredondados e carnudos que fazem com que estas mulheres pareçam estar
a meio de uma terrível reação alérgica ao café gelado que beberricam
enquanto se bronzeiam.
Não planeio voltar a este apartamento, apesar de o ter reservado até
sábado. Talvez esteja a ser demasiado otimista, mas não quero deixar que a
dúvida se instale neste momento tão crucial. Arrumo tudo, atiro os lençóis
para dentro da máquina de lavar e limpo as superfícies. Faço a minha
pequena mala, e organizo tudo o que irei precisar para o resto do dia, na
minha mala de tiracolo (é Gucci, uma das primeiras coisas que comprei
quando comecei o meu novo trabalho, e até as senhoras de Marbella
ficariam impressionadas). Telefone descartável, peruca, euros, ténis
enfiados, uma lanterna, luvas de látex, um frasquinho de perfume de viagem
cheio de álcool e uma caixa de fósforos. Tudo o resto vai na mala grande,
incluindo o telefone verdadeiro, passaporte e cartões de crédito.
Tranco o apartamento e levo a chave — só por precaução. Num acesso
de paranoia, limpo a maçaneta da porta com a manga e dou-me conta de
que tenho de ser melhor nisto. Se quero levar a cabo o meu plano sem ser
apanhada, não vou lá com esfregadelas rápidas em pequenas superfícies ao
acaso. Ora. Este é o balão de ensaio. O carro está estacionado a uma boa
meia hora de distância a pé, longe da confusão da rua principal. Eu não
queria que ficasse gravado num parque de estacionamento, e isto foi o mais
próximo que consegui ficar do apartamento sem arriscar que fosse
imediatamente rebocado.
Já está um calor abrasador, tenho o suor a escorrer-me pelo peito e a
acumular-se por baixo do sutiã. Largo a mala grande debaixo do banco do
condutor e verifico se não está visível de nenhum ângulo. Depois, caminho
de volta para a cidade, tomando um caminho diferente por engano e
acabando junto ao mar. Ao fim de algumas horas a fazer tempo numa
cafetaria onde um café parece custar cinco euros, Amir finalmente
responde. «Oi, gira, estou a destilar a noite passada, perdeste uma cena em
grande! Vou estar no clube Oceania depois das três pra voltar a entrar na
onda, vem tomar 1 copo comigo e eu desenrasco-te! :)»
A sua resposta quase me fez repensar tudo. Não me posso envolver com
um adulto que parece não ter a capacidade de usar um inglês adequado,
mesmo para mensagens de telemóvel. São simplesmente más maneiras e
que, ainda por cima, revelam um nível de ignorância que se pode perdoar a
um adolescente, mas que é horrível num adulto. Só uma educação
deficiente pode justificar tal coisa. O meu secundário não foi propriamente
o colégio de Hogwarts, mas dei-me ao trabalho de aprender a diferença
entre «ouço» e «osso». Duvido que Amir saiba isso, sequer. Pergunto-me,
uma vez mais, o que é que ele faz para ganhar tanto dinheiro, duvido que o
faça de modo inteiramente legítimo, mas quem sou eu para dar lições de
moral? Pondero utilizar o meu pequeno carro de aluguer, mas decido-me
pela oferta de Amir. Terei apenas de ser austera, recusar quaisquer ofertas
de álcool e ir-me embora mal tenha as chaves. Agh. Lamento depender de
um homem (e, pior, um homem que usa óculos de sol de desporto) para me
ajudar num assunto que, na verdade, devia ser tratado apenas por mim, mas
tenho de ser realista. E Amir não vai lucrar nada com esta interação. Se tudo
correr como planeado, vai ficar apalermado. Se falhar por completo, vai
estar metido num sarilho dos grandes. Isto alegra-me um pouco, e acabo de
sorver o meu café.
Chego ao clube Oceania pouco antes das três da tarde. É um sítio
enorme, um palácio de frivolidade vácua. Presumo que seja essencialmente
um grande bar, mas intensificado com esteroides. A entrada está
literalmente pejada de carros desportivos de cores lúgubres, cada qual nas
mãos de arrumadores de ar desconfortável nos seus casacos brancos. Um
Rolls-Royce mal-estacionado em frente à entrada ostenta o número de
matrícula «BO55 BO1». Eu aguardo na receção enquanto uma rapariga com
um bronzeado que o sol rejeitaria imediatamente como estando para além
dos seus poderes fala ao telefone em inglês reles. Por fim, lá se volta para
mim. Imagino que esteja pouco impressionada com o meu cabelo castanho,
sem extensões, e com as minhas sandálias rasas. Trago um batom vermelho,
que uso sempre que preciso de uma espécie de escudo, mas, tirando isso,
estou bastante simples. A minha cara tem uma certa beleza, e não me sinto
arrogante em dizê-lo. As mulheres recuam sempre quando se distraem e
admitem que se acham atraentes, fruto de uma vida inteira a ouvir os
homens dizerem-lhes que não sejam «convencidas». Sê o mais bela
possível, mas certifica-te de que ninguém sabe que te esforças para o ser e,
acima de tudo, nunca o reconheças. Foge de qualquer homem que te diga
que és bonita sem o saber. Esses são os homens que querem que estejas
constantemente disponível para o sexo, mas nunca se encarregam do teu
próprio prazer. Eu sou bastante bem-parecida. Não sou alta, mas sou magra
e bem proporcionada. Cabelos escuros, feições simétricas, uma boca bonita
e cheia, sem ser demasiado sapuda. Gosto de me ver ao espelho, mas não
vivo obcecada com isso. Sei que a minha aparência me ajuda um pouco na
vida, mas não sou como a minha mãe, demasiado dependente da beleza e
abandonada à sua sorte quando ela não é suficiente. É possível que a minha
imagem seja incrivelmente dececionante para os homens de Marbella
comparada com as pavoas que se veem por aqui. Coco Chanel terá dito que
devíamos tirar sempre um acessório antes de sairmos de casa. Estas
raparigas prefeririam arrancar os olhos de Coco com as suas unhas de
acrílico a fazer tal coisa. Eu digo à Senhora Bronze que venho encontrar-me
com Amir, e a sua expressão modifica-se. Trata-se, claramente, de um
cliente estimado, visto que sou rapidamente escoltada por corredores de
mármore, passando pelo bar de uma biblioteca repleto de livros a fingir e
objetos que parecem velhos, mas que eu estaria disposta a apostar que é
tralha comprada a um fornecedor que produz esta quinquilharia para os
clientes que querem parecer autênticos, mas não se importam minimamente
com a verdadeira proveniência dos artigos.
Chegamos cá fora e deparamos com o sol ofuscante e com o que parece
ser um parque temático para adultos. Há várias piscinas intercomunicantes,
cada qual com um bar ao centro, para onde as pessoas nadam e desfrutam
de cocktails à sombra de chapéus-de-sol de palha. Ouve-se música house a
bramir e os empregados caminham apressadamente entre os clientes
esparramados, acabando de encher os copos. Algumas pessoas têm camas
completas, armadas debaixo de dosséis, onde várias pessoas se encontram
estendidas a fumar e a conversar. Ninguém está a usar nada para além do
fato de banho, tirando eu, mas não faço a menor intenção de lhes seguir o
exemplo. A minha atenção foca-se numa corrente de barriga, mais do que
em qualquer outra coisa. Joias para a cintura, para quando uma pessoa já
não tem mais onde ostentar os diamantes. Coco Chanel morreria de
desgosto.
«O Sr. Amir ainda não chegou, por favor, relaxe e tome uma bebida».
Sou praticamente empurrada para uma grande espreguiçadeira branca, onde
só dou nas vistas por estar sozinha. Mando vir uma água tónica, na
esperança de que Amir pense que eu «já estou a entrar na onda», e espero.
O meu novo amigo está apenas três quartos de hora atrasado, tempo esse
que passo a observar as raparigas bronzeadas a enrolarem os seus biquínis
para baixo, para apanharem mais sol, e a olhar, estarrecida, para os homens
com os peitos depilados e bolsas minúsculas à cintura, aprumando-se e
exibindo-se — especialmente, ao que parece, uns para os outros.
Deteto Amir quando ele entra por entre as espreguiçadeiras. Seria difícil
não reparar nele, vestido como está, de calções cor de laranja fluorescentes
e rodeado por um pelotão de rapazes — parecendo todos eles dar a entender
que o seu principal propósito na vida é assemelharem-se tanto quanto
possível ao seu líder. Os empregados aparecem vindos de todos os lados,
trazendo toalhas, copos, baldes de gelo e, bizarramente, um coco.
Amir abeira-se da espreguiçadeira onde estou sentada e espreita-me por
cima dos seus óculos escuros.
— Olá, beleza! Este é o Stevie, o JJ, o Badocha, o Cooper e o Nige. —
Faz um gesto ao pelotão, cujos membros acenam desinteressadamente,
olhando já para as raparigas em biquíni ao nosso lado. Pergunto-me porque
é que o «Badocha» recebeu uma alcunha tão dura, visto que a percentagem
de gordura do seu corpo parece ficar abaixo dos dois dígitos. Vejo apenas
músculos, mais do que uma pessoa devia ter, a menos que tenha um
trabalho físico, e duvido que o Badocha tenha qualquer espécie de trabalho.
Amir agarra no coco e atira-o ao cavalheiro a quem chamou Nige, que
bate com ele vigorosamente na cabeça, para grande clamor de entusiasmo
dos circunstantes. Não satisfeito, Nige tenta mais uma vez, e o fruto abre-se
em dois. Em seguida, sobe para a espreguiçadeira e segura as metades no ar,
enquanto as raparigas de biquíni e os rapazes musculados urram de
excitação.
— É o melhor número dele — diz Amir orgulhosamente. — Treinou
este número durante seis verões consecutivos até conseguir. Estamos a
tentar levá-lo àquele programa de talentos onde os cães fazem habilidades
mágicas. — Eu sinto uma leve onda de pânico alastrar pelas minhas veias,
ao perspetivar uma tarde inteira a ver estas pessoas praticar os seus rituais
de acasalamento à volta de uma pequena piscina, presumivelmente
contaminada com creme, falso bronzeador e cinza de cigarros. Tenho de ser
mais assertiva na minha missão e não permitir que Amir determine o meu
dia.
Com esta nova resolução, inclino-me para ele e seguro-lhe o pulso até
ele focar toda a sua atenção em mim.
— Lamento muito, mas vocês chegaram um pouco atrasados e eu só
tenho mais uma hora antes da próxima parte da minha viagem. Trouxeste o
carro para aqui? É que não tenho assim tanto tempo.
Ele fica a olhar para mim durante um bom bocado, até que atira a
cabeça para trás a rir. O pelotão musculoso atrás dele secunda as suas
risadas, apesar de não se encontrar suficientemente perto para ouvir o que
eu disse. Suponho que quem paga as bebidas comanda uma audiência
arrebatada a tempo inteiro.
— Beleza, eu nem sequer sei como te chamas! Relaxa, apressadinha.
Tenho um carro para ti aqui, mas vamo-nos deixar ficar por um bocado,
entrar na onda, conviver um bocado, sim? — Suprimo o estremecimento
que sinto ao ouvir semelhantes disparates e permito-me encolher
ligeiramente os ombros.
— Chamo-me Amy — digo eu, sorridente —, e é claro que estou
disposta a conviver um pouco.
Acabo por passar perto de duas horas com Amir e o seu crescente
grupo. Tento integrar-me, mas não é fácil. É borrifado champanhe, as
raparigas são seduzidas, a música aumenta de volume a pedido de alguém.
A atenção de Amir é limitada, o que é dizer pouco, e eu tenho de esperar
pacientemente enquanto ele desata aos pulos, por vezes gritando apenas
«Oooooonda» a ninguém em particular.
Digo-lhe que sou produtora de eventos numa empresa e sublinho que
acabei de me separar do meu namorado, por isso, não estou à procura de
nada romântico. Felizmente, Amir parece estar genuinamente
desinteressado deste género de coisa. É claramente um tipo que gosta de
juntar os amigos e passar um bom bocado. Talvez não haja nada mais do
que isso. Faz alguma diferença. Verifico o relógio várias vezes, e quando já
não aguento mais, digo-lhe que não tenho mais tempo e que tenho mesmo
de ir andando. E verdade, já não tenho muito tempo para me pôr a postos no
Dinero.
Ele revira os olhos, mas levanta-se e faz sinal a JJ, que aparece a correr,
quase fazendo cair uma rapariga de biquíni na piscina na sua precipitação.
— Vai buscar o Hummer, companheiro — ordena Amir, e beberrica um
golinho de champanhe. — Tens piada, Amy. Não me pareceu que estivesses
a fim na nossa conversa no avião, julgava que não voltava a ter notícias
tuas. Mas no fim ninguém resiste ao velho Amir, eh, eh. — Põe-me o braço
nas costas e encaminha-me para o edifício, que percorremos enquanto os
empregados recuam contra as paredes. — Este carro é uma joia de
condução, querida, mas é poderoso. É um animal; achas que te vais dar bem
com ele, consegues aguentar-lhe a potência?
Eu asseguro-lhe que tenho montes de experiência com carros potentes, o
que é uma completa mentira, e não lhe pergunto o que é um Hummer, o que
é uma decisão sensata. Esperamos lá fora que tragam o carro, e Amir diz-
me que desfrute dele, e que não me preocupe em devolvê-lo até domingo.
Eu voltarei muito antes disso, mas limito-me a sorrir e a agradecer.
Aparece então um tanque no momento certo. O barulho é surpreendente,
e eu recuo momentaneamente. Amir ri-se e bate na palma da mão de JJ
enquanto este lhe entrega as chaves. O carro é enorme. Janelas com vidros
fumados e metais negros foscos. Ele obriga-me a dar algumas voltas com
ele na entrada para praticar, chamando a minha atenção para o acabamento
cromado e a tripla suspensão, ou qualquer coisa assim. Agarro o volante e
piso o pedal do travão cautelosamente, perguntando-me se, afinal, será boa
ideia. Mas quando me atrevo a pisar o pedal, dou-me conta de que a
potência desta máquina irá servir-me na perfeição. Digo a Amir que vai ser
bestial para a minha pequena viagem, e acrescento, de rajada, que a minha
amiga vai adorar o passeio.
— As raparigas adoram carros grandes, n’é? Ficam sexy a valer, lá
dentro. Só não me estragues o meu menino, quero levá-lo para o Sul de
França para a semana. — Sinto-me momentaneamente culpada por ter
quase a certeza de que vou estragar um pouco, ou mesmo completamente, o
seu menino, ou pelo menos infligir-lhe alguns danos cosméticos. Ainda
assim, nada que uma pipa de massa não possa remediar, e a julgar pelo que
me foi dado ver hoje, Amir não tem problemas nesse departamento.
Ele manda-me deixar o carro no clube assim que estiver despachada e,
com isto, pisca-me o olho, dá-me um abraço de urso e volta para dentro. Eu
deixo-me ficar sentada no carro durante um minuto, envolvida pelo cheiro
persistente e amadeirado da sua loção para a barba, mal acreditando na
minha sorte. Um homem que não sabe nada sobre mim acabou de me dar
um carro sem implicar com o seguro, comprovativo de identidade, ou
sequer uma garantia de que sei conduzir. O meu pequeno carro de aluguer
está prudentemente escondido numa rua secundária e eu estou livre para
levar o meu plano avante, deixando ainda menos rasto do que imaginava.
Pergunto a mim mesma se não será uma armadilha, mas ninguém conhece
os meus planos, por isso descarto essa ideia.
São seis e meia da tarde. O tempo voa quando levamos um banho
completo de álcool borrifado em cima. Eu sei que Jeremy disse que iriam
rumar ao casino depois de jantar, por isso calculo que lá cheguem por volta
das nove e meia. Não vou andar atrás deles a tarde inteira — desde logo,
porque não quero que ninguém registe o carro —, por isso conduzo muito
lentamente até Marbella, esperando conseguir encontrar alguma coisa que
se coma que não seja goujons de frango ou batatas fritas ensopadas.
Enquanto sorvo uma tigela de sopa, respiro lentamente e obrigo o meu
pé a parar de bater no chão. Marie costumava pedir-me para escolher os
cinco momentos do dia, «Para nos lembrarmos da sorte que temos». Já não
faço isto desde que ela morreu, mas hoje parece ser uma boa altura para
fazer um balanço. Hoje, como as pessoas irremediavelmente sinceras
gostam de dizer, é o primeiro dia do resto da minha vida. Talvez seja o dia
em que a minha vida efetivamente começa. Tanto dela que dediquei a
preparar este momento. A minha infância foi breve, os meus anos de
adolescência foram uma sala de espera de frustração a caminho da idade
adulta. Os meus vintes foram funcionais — um meio para atingir um fim.
Não senti que tivesse assim tanta sorte, desculpa, Marie. Deixaste-me
demasiado cedo e, em virtude disso, a sorte nunca me sorriu por aí além.
Por isso, talvez não seja capaz de escolher os cinco melhores momentos.
Talvez um seja suficiente por agora... Comecemos por baixar a fasquia e
vejamos o que acontece.
Às nove menos um quarto pago e encaminho-me para o enorme trator
estacionado do outro lado da rua em frente ao restaurante. Pergunto-me se
existirá uma correlação inversa entre o dinheiro e o bom gosto — a
predileção de Amir por cromados sugere que poderá existir. Tal como a casa
de Jeremy e Kathleen, aliás. Mas esta gente é dinheiro novo, ou «nouveau
riche», como a mãe de Jimmy tanto gostava de dizer com um prazer
secretamente culpado. Se calhar, quanto mais velho é o dinheiro, melhor é o
nosso olho. Se eu conseguir ser bem-sucedida nisto, serei mais rica do que
Creso, mas completamente nova. Talvez venha a desenvolver um olho
especial para o bronze, tecidos e joalharia, mas duvido. Isto significa que
provavelmente o gosto tem mais a ver com sermos horríveis ou não. A
família Artemis corroboraria certamente este ponto de vista.
Não ponho o meu destino no sistema de navegação por satélite, não vá
Amir ver ou a polícia encontrar o carro. Em vez disso, vou usar um pequeno
mapa que comprei no aeroporto por seis euros. Já verifiquei a estrada várias
vezes, e tenho bastante tempo, caso me perca. Tiro a peruca da mala e
estremeço ao ver quão desgrenhada ficou com uma única uma utilização.
«O barato sai caro», como dizia a minha mãe. Da próxima vez, hei de
investir uma quantia decente num disfarce. Conduzo por estradas sinuosas e
sombrias em silêncio, nunca ultrapassando os 50 km/h. Mal se veem outros
carros na estrada, mas pergunto-me se os clientes do casino não irão alterar
esse panorama quando me aproximar. Só terei uma oportunidade para fazer
isto, e se houver algum sinal de outro carro, não posso arriscar. Porra. Isto
tem de resultar. Tem de resultar.
O casino fica no meio do nada, mas está rodeado por um estranho
aglomerado de restaurantes e bares, o que significa que poderei estacionar
no parque de estacionamento sem receio de dar nas vistas. Faço uma
caminhada rápida em redor para me certificar de que o Mercedes ainda cá
não está, após o que me dirijo para a entrada. Não vou entrar — desde logo,
porque não sou um membro, e, por outro lado, não quero ser apanhada pelas
câmaras do casino. Em vez disso, fico a cirandar na escuridão entre o clube
e um bar chamado Rays. Este local parece um centro comercial na periferia
da cidade e não estranharia ver um Homebase1 ali ao lado. Não tem nada de
glamoroso — estou surpreendida por os meus avós se darem ao trabalho de
vir aqui. Mas, uma vez mais, eles preferem passar a velhice numa
comunidade fechada em Marbella, um local que faz com que a Florida
pareça a Itália do Renascimento em termos de cultura.
Estou zangada por ter dado a mim mesma tanto tempo. Era capaz de
apostar que os meus avós são o tipo de pessoas que se preocupam em
chegar a casa antes das onze, mas, e se eles forem criaturas secretamente
noctívagas? Tenho dificuldade em andar pelo parque de estacionamento
sem mais do que meia dúzia de moitas dispersas para me camuflar. Perco a
calma e volto para o carro para me recompor e conseguir terminar a missão.
Enquanto caminho, uma limusina prateada avulta junto à entrada, a ocupar
o meio da estrada com os faróis ligados nos máximos. Sustenho a
respiração, semicerrando os olhos para distinguir a matrícula, mas não é
necessário. Vejo a Sra. Artemis, com a sua expressão miserável e a sua
esplendorosa permanente que a emoldura na janela. Oiço uma pequena
gargalhada, e escondo-me rapidamente entre os dois carros, até que me dou
conta de que o som veio de mim própria. Estou claramente mais excitada do
que pensava. Pelo menos parte de mim está disposta a avançar com isto.
O casal de velhotes sai do carro lentamente, Jeremy a atirar as chaves ao
arrumador e mal olhando para a mulher, que está a descer cautelosamente
para o pavimento segurando a sua Chanel como uma criança segura um
ursinho de peluche. Encaminham-se para o casino sem dirigirem uma
palavra ao arrumador ou ao porteiro, que não passam de estátuas silenciosas
que estão ali para mostrar respeito pelos grandes e pelos bons, suponho eu.
Ainda assim, uma estátua não consegue limpar o traseiro aos estofos de pele
da limusina como um arrumador (e esperemos que o faça).
Durante as duas horas e meia seguintes permaneço sentada no meu
carro, como um cheeseburger repugnante e resolvo deixar de comer carne
quando chegar a casa. Fumo três cigarros e prometo deixar de fumar
quando voltar a Londres. Oiço um pouco de uma terrível rádio espanhola e
alterno entre bater freneticamente com os pés no chão e verificar
obsessivamente os espelhos retrovisores para ver se os Artemis já saíram.
Começa a formar-se um grupo de jovens e é claro que o casino se está a
tornar mais animado à medida que a noite avança. Imagino que isto
significa provavelmente que os mais velhos desamparam a loja mais cedo, e
tenho razão. Os degraus não tardam a ficar cheios de mulheres enfaixadas
com cachecóis Hermès e homens a acenar com os bilhetes dos carros.
Todos têm expressões que manifestam uma mistura de riqueza e uma
furiosa reivindicação de privilégios. Zás, cá estão eles. Kathleen com um
pequeno saco de presentes, um tudo-nada cambaleante. Jeremy a fumar um
charuto. Deve ter sido uma noite divertida. Fico satisfeita. Não sou nenhum
monstro. É bom que eles abandonem este mundo com boa-disposição. É
mais do que aquilo a que Marie teve direito, mas eu tenho a obrigação de
ser uma pessoa melhor. Vou dizimar a sua família inteira, o mínimo que
posso conceder-lhes é um saco de lembranças e uma jogada na roleta.
Eles descem os degraus e Jeremy entrega o bilhete ao arrumador. Esta é
a minha deixa. Ligo o motor e dirijo-me para fora do parque de
estacionamento. Já vos disse que não planeei nada disto, e não digo isto por
falsa modéstia. Tenho uma ideia vaga, que parecia bastante sólida quando
estava em Londres, mas agora, que estou aqui, não estou de modo nenhum
confiante de que me seja sequer dada a oportunidade de tentar fazer o que
quero fazer. Mas aqui estou eu, a conduzir velozmente pelas estradas
ventosas que descem do casino, fazendo o percurso que, espero eu, os
velhos Artemis irão tomar a caminho da sua vivenda. Ao fim de dez
minutos, meto pela estrada das colinas, agora mais escura e irregular.
Calculo que estou cerca de dez minutos adiantada em relação ao velho
casal, se eles conduzirem cautelosamente, e preciso de encontrar o sítio
certo — assinalei-o no outro dia, mas, na escuridão, a estrada parece querer
ocultá-lo.
Vou a conduzir rápido, e sinto o caroço no pescoço a assumir a sua
posição habitual, ameaçando subjugar-me. ONDE É QUE FICA ESTE
MALDITO SÍTIO? Respiro pelo nariz, e falo comigo mesma em voz alta,
«Vais encontrá-lo, tens tempo, Grace. Está tudo bem».
Passo por ele e travo, tal como nos ensinam nas aulas de condução,
como se alguém pudesse fazer uma paragem de emergência perfeita na vida
real sem provocar um engarrafamento. Mas a estrada está vazia, e a única
coisa que oiço são cigarras. Faço inversão de marcha, o que me obriga a
vários avanços e recuos neste veículo ridículo, e estaciono na berma,
deixando a minha respiração voltar ao normal, esperando que o caroço
desapareça. Daqui, consigo ver claramente a estrada, e se tivesse deixado
escapar este sítio, não teria tido tempo de encontrar outro antes de eles
chegarem a casa. Fico à espera, respirando o silêncio à minha volta.
Faróis. Um carro a aparecer e a desaparecer da minha vista enquanto
serpenteia pela estrada em direção a mim. Tenho dois minutos. Embalo o
motor, como se este tanque precisasse de qualquer persuasão adicional, e
arranco, segurando o volante com força. O carro surge no meu campo de
visão — aproximam-se lentos, cautelosos, sem pressas. Quando guino
subitamente o volante e acelero em direção a eles, vejo a boca de Kathleen
formar um «O» perfeito, antes de cobrir a cabeça e as luzes me
encandearem. O impacto da minha guinada atira-me de volta para o meu
lugar e travo rapidamente. O carro quase resiste ao meu comando, como
que contrariado por ser interrompido. Enquanto esfrego a cabeça e olho
para cima, a única coisa que vejo é o pó da estrada e uma falha
satisfatoriamente grande nos arbustos cerrados na encosta da colina.
Paro o carro, enfio-o do outro lado da estrada e desligo as luzes. Ainda
tenho algum tempo antes de regressar, deixar o carro de Amir no clube
antes de recuperar o meu carro de aluguer e voltar para o aeroporto. Pego na
minha lanterna e, com as mãos a tremer, enfio as luvas de látex, rasgando
um bocado do polegar da mão esquerda. Os fósforos e o frasquinho de
perfume vão para o meu bolso. Atravesso a estrada e detenho-me à beira do
precipício. Os meus ténis não estão preparados para grandes escaladas e só
consigo ver a distância a que o carro foi parar quando ligo a lanterna e ela
mo revela, uns 15 metros mais abaixo, virado de rodas para o ar, amparado
por um arbusto.
Devia mesmo voltar para trás, seguir para o aeroporto, deixar o local do
crime limpo. Aconteça o que acontecer agora, posso escapar. Mas qual seria
a piada de os meus avós morrerem sem jamais saberem do meu papel nisto
tudo? É de vaidade que se trata, na verdade, e eu sou inexperiente na arte do
homicídio — da próxima vez, não me permitirei semelhante
autocondescendência. Mas desta vez desço a colina, agarrando-me a caules
de plantas rasteiras e rastejando para não cair no meio da escuridão.
Alcanço o carro. É difícil dizer o que é que está a acontecer lá dentro, visto
que os ramos parecem atravessar-se sobre as portas. Arrasto-me até ao carro
do lado do condutor e viro a cabeça para cima, apontando a minha lanterna
para o vidro. Jeremy encontra-se pendurado, a cabeça suspensa sobre o
cinto. Parece ileso, tirando estar certamente inconsciente e de cabeça para
baixo. Kathleen está claramente morta, pois qualquer pessoa precisa de ter a
cabeça pegada ao corpo para permanecer viva, requisito esse que foi
atenciosamente eliminado por um ramo de uma árvore.
Dou um safanão na porta de Jeremy, mas nada acontece. Por isso, tento
a porta por trás do seu banco, e esta abre-se o suficiente para me permitir
enfiar a cabeça lá dentro — mesmo por trás do seu apoio para a cabeça.
Dou uma chapada naquela cara arrogante, agora magra e ensanguentada, e
oiço a sua respiração irregular. Aproximo-me o mais que posso, o que é
difícil, visto que ele está de cabeça para baixo e eu estou contorcida como
um biscoito, e sussurro o seu nome. Os seus olhos abrem uma fresta e ele
choraminga quando começo a falar.
— A Kathleen está morta, Jeremy, desculpa. Também não me parece
que vás ter melhor sorte, mas não estás sozinho. Reconheces-me? Sou a
Grace, a tua neta. A filha do Simon. — Ele estremece levemente. — Sim, a
filha da Marie. Tenho tanta pena que nunca tenha sido possível
encontrarmo-nos antes deste, digamos, dia tão triste. Mas a verdade é que
foste tu quem quis que assim fosse, não foi? Não me querias nem perto da
tua família. Não faz mal, Jeremy, na verdade, também não me parece que
nos tivéssemos dado bem. Mas não foi muito simpático, pois não? Por isso,
receio que agora tenhas de te ir embora. Não é por mim, bem vês, mas pela
minha mãe. A família em primeiro lugar; eu sei que compreendes. Ah, e
não és só tu e a tua mulher, Jeremy. Essa é a melhor parte de tudo isto.
Sacando do meu frasquinho de perfume, viro-lhe a cabeça para mim tão
gentilmente quanto possível e olho para um único olho cinzento.
— Vou matar a tua família toda.
Enquanto o digo, dou-lhe um puxão na gravata até mim, e ele cai
bruscamente. Puxo-lha do colarinho, enrolo-a cuidadosamente e enfío-a no
meu bolso. A minha pequena recordação de Espanha. Depois, abro o frasco
e risco um fósforo.
 
 
1 Grande loja de produtos de construção, bricolagem e decoração. (N. do
T.)
 
Capítulo 2
 
As guardas martelam nas nossas celas às oito da manhã, entregam-nos o
pequeno-almoço num tabuleiro e vão-se embora. Claro que não são ovos
escalfados e café acabado de fazer. Dão-nos saquetas de chá, leite e duas
fatias de pão de trigo fabricado de maneira tão económica que guardei uma
fatia no mês passado só para ver o que é que lhe acontecia. Nada, como se
veio a comprovar. Os cantos ficaram ligeiramente arredondados, mas, para
além disso, a fatia de pão permaneceu preocupantemente na mesma. Fez-me
lembrar uma história que nos contavam na escola sobre como, no século
XIX, se vendia aos pobres um pão que era feito com giz e outras
substâncias inacreditáveis para lhe dar consistência. É provável que as
prisões, hoje geridas, na maior parte, por empresas privadas com nomes
ridículos inventados com o intuito de transmitir uma ideia de comando,
admirem semelhantes métodos e lamentem o dia em que foram introduzidos
padrões alimentares. A verdade é que tenho muito pouco apetite aqui
dentro. A dieta da prisão podia muito bem ser vendida a esses fanfarrões
que promovem supressores de apetite e vitaminas duvidosas no Instagram.
Experimentem comer papas insípidas três vezes ao dia, trocando o que
sobrar por cigarros, e verão que o vosso velho fato de treino não tardará a
ficar-vos apropriadamente largo mais depressa do que julgam.
Kelly pergunta-me se quero falar de algum assunto, inclinando a cabeça
no que imagino que pense ser um gesto de simpatia. Ela sabe que o
resultado do meu último recurso deverá chegar mais dia menos dia, e as
suas recentes incursões na terapia de grupo parecem tê-la convencido de
que tem um futuro brilhante como conselheira. Tenho de refrear a vontade
que sinto de lhe dizer que nem a melhor terapia disponível em Harley Street
me poderia ajudar por aí além e que, por isso, duvido que a sua
disponibilidade para tentar contactar com a minha criança interior vá
subitamente remediar seja o que for que ela imagine ser o meu problema.
Para além de Kelly ser indiscutivelmente uma imbecil, penso que se dá
demasiada importância a essa coisa de falar. Como a minha mãe costumava
dizer «nunca te queixes, nunca te expliques» — apesar de ter morrido
desavisadamente cedo e de me ter deixado o ónus de corrigir os males de
que foi vítima, que é a razão por que aqui estou. Um pouco mais de
queixume talvez não tivesse sido assim tão mau, bem vistas as coisas.
Depois de Kelly ter percebido a minha dica e se ter afastado para ir
aconselhar outra pessoa qualquer, instalo-me no meu beliche para começar
a escrever a minha história. Não tenho muito tempo se quiser expô-la em
toda a sua extensão — o resultado do meu recurso chegar-me-á brevemente,
de acordo com o advogado de cara comprida que contratei, que veste fatos
muitíssimo bem-talhados quando me vem visitar, mas estraga tudo com uns
mocassins de tom berrante. Imagino que ele pense que estes lhe
acrescentam um toque de personalidade, mas a mim dizem-me que é
justamente por falta personalidade que os usa. Talvez tenha sido uma
mulher mais nova de um segundo casamento a comprar-lhos, na esperança
de o fazer parecer mais jovem. Oxalá que não. A vaidade levada ao absurdo
não é um traço que deseje particularmente ver num advogado com a missão
de me livrar de uma pena de prisão perpétua, especialmente se os meus
onerosos pagamentos o encorajarem a comprar mais coisas horríveis deste
género.
Nasci há 28 anos, no Hospital de Whittington, filha única de Marie
Bemard, uma jovem francesa que estava a viver em Londres há três anos
quando ficou grávida de mim. Depois de ter dado à luz sozinha, levou-me
de volta para o seu estúdio em Holloway, onde eu experimentei pela
primeira vez o tédio e a claustrofobia dos espaços fechados e todas as
alegrias limitadas de ter uma casa de banho no quarto. A palavra «estúdio»
é uma descrição enganadora quando aplicada a um imóvel, convocando
imagens de uma sala grande e arejada onde uma pessoa teria todas as
condições para exercer a sua criatividade e talvez promover encontros
chiques de pessoas maravilhosas debruçadas à varanda a fumar. O nosso
apartamento ficava num quinto andar de um edifício com uma casa de
frangos no rés do chão. O senhorio, quem sabe se no âmbito de uma
experiência para ver quantas pessoas conseguia alojar num edifício
vitoriano originalmente concebido para quatro famílias, tinha dividido os
quatro andares em três apartamentos por cada um. A minha mãe e eu
vivíamos numa única sala, com uma pequena claraboia que não abria (fosse
por causa da incrível acumulação de caca de pombo, fosse porque o
senhorio não queria que incorrêssemos na tentação de gritar por socorro aos
transeuntes, nunca chegámos a perceber porquê). Isto parece tudo
singularmente dickensiano, não? Mas não era. Não se esqueçam da loja de
frangos. A minha mãe dormia num sofá-cama, e eu tinha uma cama
individual. Ainda hoje tenho acessos de culpabilidade quando penso no
quanto ela trabalhava, em quão cansada estava, e em como, no entanto,
insistia sempre em dizer que preferia dormir naquele sofá desengonçado.
Sendo eu uma ainda criança egoísta, não pensei em oferecer-lhe a minha
cama. Já adulta, tive possibilidade de me espojar numa cama de casal com
colchão de espuma da John Lewis, mas nunca deixei de adormecer a pensar
nela deitada naquele sofá, o que até acabou por estragar a minha
extravagância, para ser sincera.
Marie tinha vindo para Inglaterra porque lhe tinham dito que era
suficientemente bonita para ser modelo, e era. A minha mãe era
extraordinariamente bela, com uma pele morena e cabelo castanho
desgrenhado que usava sempre apanhado em cima, por muito que eu lhe
implorasse que o soltasse. Tinha aquela onda natural das raparigas francesas
que todas as influencers da moda hoje tentam copiar, com graus de sucesso
variáveis. Sutiã, nunca. Calças largas e um fio de ouro comprido, de onde
pendia um retrato em miniatura de um homem de idade cuja identidade se
perdeu com o tempo. Antes de eu aparecer, tinha feito algumas pequenas
campanhas, posando como modelo para algumas lojas da moda que há
muito tinham desaparecido quando eu nasci. A Kookai, insistia ela, era a
loja mais cool da altura, e guardava um póster enrolado em que ela
aparecia, que estivera pendurado na montra da loja para uma campanha de
outono. Nele, Marie aparece acocorada no chão, um casaco de malha
castanho disposto sobre os joelhos, cobrindo um vestido curto e uns ténis de
plataforma, que tenho visto, lamentavelmente, regressar às lojas da moda.
A minha mãe era demasiado baixa para desfilar na passerelle, e a sua
carreira nunca teve o impulso com que ela sonhava quando veio para
Londres partilhar um apartamento com duas outras raparigas atrás do
sucesso. Mas sem dúvida que se divertiu durante uns tempos. A vida
noturna de Londres no início dos anos 90 foi, para usar as palavras de
Marie, uma época de ouro. As noites no Tramp, um clube privado que abriu
em 1969, eram quase tão glamorosas como quando Liza Minnelli as
frequentava. À noite, quando eu não conseguia dormir, ela deitava-se ao
meu lado na minha pequena cama e contava-me como o champanhe era
servido com velas sparklers, e falava-me das banquetas em pele dos
restaurantes onde ela jantava com atores e estrelas do desporto com quem
dançava até de madrugada. Podia-se fumar lá dentro, contava ela, e as
mulheres mais ricas usavam peles descomplexadamente. A sua vida antes
de eu aparecer parecia ser uma longa sucessão de festas e castings. Sempre
achei que uma mulher abençoada com uma beleza tão inata não tem de se
esforçar por aí além, e Marie nunca se preocupou muito com o dinheiro ou
o futuro. Haveria sempre alguém para olhar pela rapariga francesa que
nunca usava sutiã e só queria divertir-se. Há sempre alguém para focar a sua
atenção na rapariga que desconhece o seu próprio valor.
Para além disso, a minha mãe já tinha conhecido o homem a quem viria
a entregar o seu coração. O homem que se tomaria meu pai. O homem que
lhe iria prometer o mundo e cobri-la de presentes. O homem que, em
criança, jurei que iria destruir.
 
Capítulo 3
 
Ainda hoje fico tensa só de pensar nesse homem. Obrigo-me a respirar
bem fundo. Sou uma mestre do autocontrolo, mas não foi algo que tivesse
aprendido naturalmente. Em criança, costumava ter tremendos ataques de
cólera e atirava-me para o chão quando alguma coisa me desagradava,
enquanto a minha mãe ficava a olhar para mim com uma expressão
divertida e pedia desculpa às pessoas que estavam connosco. Esse sentido
dramático ainda persiste dentro de mim, mas há muito que aprendi a contê-
lo. Se queremos executar bem um plano, executar um conjunto de pessoas,
não podemos deixar as nossas emoções em roda livre. Isso tornaria tudo
muito atabalhoado, e nada podia ser pior do que sermos apanhados por
termos sido demasiado autocomplacentes no que diz respeito ao nosso
autocontrolo. Tal como quando era criança, acabei por sofrer a indignidade
de ter de usar uma casa de banho a um metro da cama, mas pelo menos não
foi por me ter denunciado graças a uma vocação insensata para o drama.
Um minuto depois, volto a respirar normalmente. Sabiam que Hillary
Clinton praticou respiração alternada quando perdeu a eleição de 2016 para
Donald Trump? E também recorreu ao vinho, claro está, mas perder para
um tamanho ignorante exigia mais. A respiração alternada consiste em
inspirar longamente por uma narina, expelindo o ar profundamente pela
mesma cavidade nasal. Podem rir-se, mas ajuda-me a acalmar rapidamente,
e ajuda muito conhecer técnicas destas na prisão, onde não podemos
recorrer a fármacos ou a um bom copo de Merlot ao fim da noite. À noite,
quando não consigo dormir e os meus pensamentos se voltam
invariavelmente para a obra da minha vida, penso muitas vezes na Senhora
Clinton, a concorrer contra aquele ruivo imbecil e extravagante. Quaisquer
que sejam as suas políticas, ela fez frente a um fanfarrão que se recusava a
reger-se por qualquer tipo de convenções ou decência. Uma pessoa assim
pode levar-nos à loucura sem qualquer esforço, ao passo que nós
empregamos todas as nossas forças só para não ceder e preservarmos um
pouco da nossa humanidade. Hillary tinha uma vantagem em relação a
mim. O seu opositor era um homem de quem ela se podia libertar na hora
da derrota. O meu era o meu pai. OK, talvez a vantagem fosse minha.
Clinton não podia matar Trump, por muito que o desejasse. Quem me dera
que ela tivesse essa oportunidade, acho que nos relaxa muito mais do que a
velha técnica da respiração alternada.
***
Marie conheceu o meu pai em 1991. Antes de eu nascer, já ele a tinha
abandonado. Ela certificou-se de que eu crescia rodeada de amor, mas
quando entrei para a escola primária, tornou-se claro que este amor, por
muito abundante que fosse, provinha de uma única direção. As outras
crianças tinham papás, dizia-lhe eu, enquanto ela tratava do meu jantar ou
me lavava o cabelo com água morna no lavatório. Ao princípio, a minha
mãe tentou distrair-me, mas, quando eu tinha 9 anos, percebeu que a minha
natureza obstinada estava a tornar-se mais forte e, um dia, depois da escola,
pediu-me para me sentar e falou-me do meu pai. A maior parte do que sei
hoje descobri através das minhas próprias investigações mais tarde, pois é
óbvio que Marie me queria dar uma versão disneyficada do homem que
renunciou voluntariamente à sua semente na minha conceção, sem
considerar minimamente as consequências que daí lhe podiam advir.
Marie conheceu-o — onde mais poderia ser? — numa discoteca. Ele era
um bocadinho mais velho, disse ela (mais tarde, descobri que era 22 anos
mais velho. Como as jovens se têm em pouca conta...), e tinha-lhe enviado
champanhe do outro lado da pista de dança. Marie tinha mandado o
empregado embora, que ficara um pouco confuso, pois estava demasiado
divertida a dançar, sem necessidade de um balde de Veuve Clicquot. Eu já
fui a discotecas deste género e já vi homens como o meu pai, noite após
noite, confortavelmente sentados em recantos obscuros, observando as
jovens a darem um espetáculo a quem quer que elas imaginem que as esteja
a ver, esperando ser convidadas para uma mesa onde alguém lhes irá
oferecer bebidas proibitivamente caras. Se a minha mãe fosse como todas as
outras raparigas, teria havido alguns passos de dança, uma troca de palavras
ao ouvido, talvez mesmo a promessa de um jantar. E era aí que tudo teria
acabado, mais uma bela rapariga, mais um homem rico com os seus
privilégios. Acontece que a minha mãe mandou o champanhe para trás, e
nunca ninguém tinha feito isso a este homem em particular. De vez em
quando, evoco este momento no meu espírito. Gosto de imaginar que ele
não suportou vê-la dançar com tanta alegria, repudiando as suas tentativas
fáceis de a impressionar. Parece que o estou a ver — a reavaliar a situação,
obrigando o seu cérebro reptiliano a um esforço maior do que o habitual
para se sair com um novo plano, uma maneira de comandar a atenção dela;
de a vergar à sua vontade.
Duas semanas depois, ela esbarrou contra ele à porta de outra discoteca.
Estava a chover e ela estava a tentar ocupar o seu lugar na fila, segurando o
seu casaco por cima da cabeça enquanto andava aos encontrões com os
outros candidatos, esperançados de conseguir entrar naquele sítio exclusivo,
todos ansiosos por experimentar a decadência que ali lhes era prometida,
ou, pelo menos, encontrar abrigo para a chuva. Enquanto estávamos
sentadas no sofá-cama, a minha mãe olhou para longe e a sua voz tomou-se
suave, enquanto me descrevia como um carro desportivo de luzes apagadas
estacionou à porta, arredando a patética multidão enquanto chiava ao travar.
Quando me falou do meu pai, já ele a tinha tratado com uma crueldade que
me faz arder o estômago; no entanto, ela falava dele num tom afetuoso,
talvez mesmo pesaroso.
— Ele saiu do carro e atirou a chave ao arrumador que estava ali à
espera. Só reparei nele por causa do barulho horrível do carro. E quando o
vi atirar as chaves... bah... achei aquilo um gesto horrivelmente arrogante,
estacionar um carro no meio da ma daquela maneira.
Ela desviara o olhar, insistiu ela, enquanto os seguranças destrancavam
as cordas de veludo vermelhas para o fazer entrar, e a multidão arremeteu
para a frente, todos furiosos por continuarem ao frio. Foi então que uma
mão lhe fez sinal, chamando-a à corda. Uma mulher de olhar severo, com
uma prancheta na mão, acenou rapidamente com a cabeça, como quem diz
«sim, tu», e Marie serpenteou através da multidão e apresentou-se aos
porteiros. Fora encaminhada para dentro, explicou ela, e não estava nada
inclinada a questionar a decisão, apesar de as pessoas atrás dela estarem a
resmungar e a apupá-la. Quando estava a chegar à entrada das escadas,
apareceu ele ao seu encontro, encostado à parede, braços cruzados, com um
sorriso desdenhoso. Eu já vi aquele sorriso muitas vezes nos jornais. É
quase a sua imagem de marca. Uma poderosa combinação de arrogância e
charme. Uma combinação igualmente revoltante, pois não tardamos a
perceber que, com homens destes, a arrogância leva sempre a melhor sobre
o charme e, no entanto, quando nos apercebemos disso, já é tarde demais,
pois a combinação inicial é altamente inebriante e difícil de esquecer.
— Então, não queres o meu champanhe, mas aceitas a minha
hospitalidade? — constatou ele, olhando-a de alto a baixo.
Para ser sincera, ainda hoje a censuro por não lhe ter virado as costas e
ido embora logo ali. Mesmo quando tinha 9 anos e ela me reportou o
primeiro encontro, lembro-me de pensar que aquilo era um começo
verdadeiramente patético. Se eu alguma vez tinha imaginado que o meu pai
pudesse ser uma espécie de figura mítica que tivéssemos perdido por um ato
heroico, este foi o momento em que essa esperança inconfessada morreu. O
meu pai era um reles charlatão com roupas caras, e a minha mãe engoliu
tudo.
Imagino que tenha começado por jogar à defesa, repelindo-o com uma
qualquer fórmula de humilhação e recusa à francesa, mas mesmo que o
tenha feito, não valeu de nada. No dia seguinte, já ele tinha descoberto a sua
morada e apareceu num descapotável cheio de flores. As suas companheiras
de apartamento acordaram-na com gritos e gargalhadas, achincalhando-a
por causa do inglês de boina que estava lá fora a buzinar e a parar o trânsito.
Uma semana depois, levou-a para Veneza num jato privado, até à Praça de
São Marcos para beber cocktails e lhe dizer que a amava. As manifestações
extravagantes de afeto continuaram durante os meses seguintes, com saídas
a dois para jantar, passar as noites nos seus clubes noturnos prediletos, fazer
caminhadas ao sol em Hyde Park às segundas-feiras de manhã. As barreiras
dela tinham sido demolidas, e já não era cautelosa e desdenhosa dos
homens londrinos e das suas intenções. Marie também deixou de ir a
castings, preferindo estar disponível no caso de ele telefonar — e ele
telefonava-lhe amiúde. Mas só de segunda a sexta-feira, e raramente ficava
a dormir com ela, queixando-se do trabalho ou justificando-se com a sua
mãe já idosa, que precisava que ele ficasse com ela muitas vezes.
É impressão minha ou os vossos olhos acabaram de se revirar com tanta
força dentro da vossa cabeça que vos fizeram pestanejar? Pois é. Podemos
deter-nos na estúpida decisão da minha mãe de depositar a sua confiança
num homem que usava grandes cintos de fivela e gostava dos Dire Straits,
ou podemos prosseguir. Aqui onde estou, não tenho tempo suficiente para
analisar a manipulação dele e a ingenuidade dela. Como é evidente, o meu
pai já era comprometido. Não apenas comprometido, mas casado e com um
bebé, e vivia numa casa no alto de uma colina no Norte de Londres que
tinha vários empregados internos, dois cães de raça, uma adega, uma
piscina e vários hectares de terreno. Ele não era apenas comprometido,
estava aparafusado.
Esta parte da história foi omitida quando me falaram sobre ele pela
primeira vez. Não censuro Marie por ter disfarçado alguns pormenores mais
delicados, que, em qualquer caso, eu provavelmente nunca teria
compreendido. Em vez disso, a minha mãe tentou explicar-me porque é que
o meu pai nunca me vinha ver, nunca me mandava um presente de Natal,
nunca aparecia nas Noites dos Pais da escola. Dando-me palmadinhas no
braço, Marie explicava-me que ele estava envolvido em grandes e
importantes negócios que afetavam as vidas de milhares de pessoas, e que
era por isso que não nos podia vir ver. Estava sempre a viajar pelo mundo,
dizia ela. Ele amava-nos muito às duas, e quando chegasse a altura certa,
iríamos estar finalmente juntos, mas agora, tínhamos de o deixar trabalhar e
preparar-nos para o dia em que pudéssemos viver como uma família. Será
que ela própria acreditava nisto? Penso nisso muitas vezes. Seria a minha
inteligente e doce mãe assim tão — digamo-lo sem rodeios — estúpida?
Talvez. As pessoas do meu sexo são muitas vezes dececionantes. Recordo-
me de uma vez ter lido algo sobre um homem casado que convenceu a
mulher de que era um espião. Convenceu-a a pôr todas as suas poupanças
em seu nome, até a fabulosa quantia de 130 mil libras, dizendo-lhe que
estava incógnito e que precisava do dinheiro para se aguentar até os seus
colaboradores poderem contactá-lo em segurança. Ela nunca lhe tinha
pedido provas das suas supostas atividades, de tão desejosa que estava que
esta charada disfarçada de história de amor fosse real. Para agravar a sua
humilhação, tinha posado voluntariamente para uma revista semanal e
contara a sua história, parecendo subjugada e triste. Deveria eu ter pena
desta pessoa, uma mulher adulta que sonhara com um conto de fadas, e que
nem por um momento se questionara porque é que aquele homem a
despojara — uma mulher na casa dos 50 (e que não parecia nem um
bocadinho mais nova) — de tudo o que era seu? Marie estava um furo
acima desta mulher e de outras como ela, mas era evidente que tinha uma
idêntica capacidade para se deixar enganar.
Apesar de todas as promessas ridículas que Marie me fez sobre o meu
pai e a nossa eventual vida juntos, foi suficientemente sensata para só me
dar informação seletiva sobre ele. Suficiente para estancar as minhas
perguntas, sem me dar nada de muito concreto. Mas cometeu o erro de me
mostrar a casa dele após um passeio a Hampstead Heath alguns meses
depois. Perdemo-nos numa zona arborizada, e começou a chover. A minha
mãe segurou-me pela mão e caminhou comigo por uma colina acima,
tentando encontrar um caminho para a estrada principal onde talvez
conseguíssemos apanhar um autocarro. Mas quando finalmente chegámos à
paragem do autocarro, ela continuou a andar muito depressa, enquanto eu
resmungava e enrolava o anoraque à minha volta.
Apesar da chuva torrencial, caminhámos mais dez minutos por uma
estrada particular, até que ela abrandou e finalmente se deteve.
Estávamos diante de uma casa e Marie olhou para ela em silêncio
durante um momento, até eu puxar a sua mão impacientemente. Digo que
estávamos a olhar para a casa, mas os enormes portões de ferro
apetrechados com câmaras obstruíam deliberadamente a visão da
propriedade. Nós vivíamos no quarto de um sótão numa estrada principal.
Eu nunca imaginara que uma casa pudesse ser tão importante a ponto de ter
de ser escondida das pessoas. Sem olhar para mim, a minha mãe fez um
gesto quase reverenciai na direção dos portões.
— Esta é a casa do teu pai — disse, ainda sem olhar para mim. Eu não
sabia o que dizer. Sentia-me desconfortável ali especada em frente daquele
casarão, encharcada até aos ossos. Marie deve ter reparado que eu estava a
retroceder lentamente, tentando encorajá-la a regressar à segurança da
paragem do autocarro e da nossa casa, por isso sorriu luminosamente. —
Que pena o teu pai não estar em casa hoje, mas não é um encanto, Grace?
Um dia vais ter o teu próprio quarto ali dentro!
Eu aquiesci, sem saber o que fazer. Ela pegou-me na mão, demos meia-
volta e fomo-nos embora, descendo a colina em direção a casa. Nunca mais
voltámos a falar naquele passeio, mas enquanto crescia eu pensei muitas
vezes naquele quarto que ela prometeu que um dia seria meu. Imaginei-o
com um papel de parede cor-de-rosa e uma grande cama de casal, e talvez
um armário cheio de roupas novas, mas quando comecei a aprofundar este
assunto, percebi que Marie tinha mentido, e que jamais haveria quarto
algum para mim por detrás daqueles grandes portões. E mesmo então,
recordo-me de ter percebido muito bem que algo de muito errado tinha sido
feito a Marie e a mim.
E é isto o meu pai. Não é o que eu teria escolhido se tivesse sido
consultada, mas é o que é. Algumas pessoas têm pais que lhes batem, outras
têm pais que usam Crocs. Todos temos de carregar as nossas cruzes. Ainda
não vos contei quase nada sobre a sua personalidade ou as suas raízes, pois
não? Lá chegaremos. Mas se querem realmente perceber porque é que fiz o
que fiz, tenho de começar por voltar à minha própria infância. Espero que
não vos pareça demasiado autocomplacente, mas, mesmo que pareça, bem,
a história é minha. E neste momento estou deitada num beliche numa cela
impregnada de uma potente combinação de tristeza e urina, por isso,
qualquer desculpa serve para me refugiar nas minhas memórias.
Eis algumas memórias antigas: Marie, sem dinheiro para comprar
comida, pagar a luz, e, numa ocasião particularmente deprimente, nem
mesmo para produtos de higiene. Levantar-me às seis da manhã para que
Marie pudesse chegar a horas ao emprego, onde eu ficava sentada nas
traseiras do café a fazer os trabalhos de casa. Ver a minha mãe tão cansada
que parecia cada vez mais amarela e exaurida de dia para dia. Passar frio no
inverno porque só usávamos o aquecimento no princípio do mês, quando
Marie recebia o ordenado. Passar frio inspira-me um temor genuíno até
hoje. Já adulta, paguei para ter radiadores extra instalados no meu
apartamento, para grande perplexidade do meu senhorio, e despendi uma
quantia obscena por uma colcha de pelo para a minha cama — que, olhando
para trás, era mesmo horrível —, porque tinha de ter a certeza de que não
iria voltar a acordar a tremer, como tantas vezes me acontecera em criança.
O pelo pode ser pouco ético, mas, na verdade, é maravilhoso senti-lo contra
o nosso corpo nu.
Marie lidou com a nossa falta de dinheiro e apoio o melhor que pôde.
Os seus pais, críticos das suas escolhas na vida, como eles diziam, não lhe
davam nada. Hortense veio almoçar connosco uma vez, numa das suas
viagens a Londres, em que só posso assumir que aterrorizou as raparigas
das lojas e fez chorar os empregados dos cafés por diversão. A minha mãe
vestiu-me com a minha melhor roupa, que consistia num pulôver áspero que
me tinha comprado na M&S num Natal (que eu detestava, mas de que ela se
orgulhava, porque era de lã verdadeira e tinha uma gola alta aos folhos), e
umas calças de bombazina, que me beliscavam a barriga e tinham
pertencido a outra criança que tinha andado comigo na escola primária. A
minha avó disse-me olá, após o que se voltou imediatamente para a minha
mãe e falou com ela em francês durante o resto do encontro. Marie
respondia sempre em inglês, o que só parecia tomar Hortense ainda mais
determinada. Enquanto saíamos do restaurante, Hortense baixou-se, levou a
manga da minha camisola à cara e fungou. Disse qualquer coisa à minha
mãe enquanto me dirigia um último gesto, e os olhos da minha mãe
encheram-se de lágrimas. Foi a última vez que vi a velha bruxa. Quando
Marie morreu, ela enviou-me uma carta, que eu não abri, optando antes por
a rasgar aos bocados e mandá-la pela retrete abaixo em casa de Helene. Ela
já deve ter morrido, mas espero que veja as notícias sobre mim. Espero que
ela e o velho marido reprimido tenham sido assediados por um bando de
jornalistas sem escrúpulos durante o meu julgamento, e rezo para que os
seus vizinhos olhem para eles com desconfiança, ou pior: falsa simpatia.
Então, nós éramos pobres, e Marie não tinha ninguém, para além de
Helene. Bea, a sua única verdadeira amiga, tinha apanhado um voo de volta
para França depois de um caso amoroso malogrado e de uma agente de
modelos que lhe dissera, por estas mesmas palavras, que devia tentar
desenvolver um distúrbio alimentar se queria ganhar algum dinheiro. De
vez em quando, a minha mãe escrevia longas cartas durante a noite,
enquanto eu fingia estar a dormir. Sentava-se à mesa da cozinha, rasgando
folhas de papel, e recomeçando tudo uma e outra vez. De manhã, as cartas
estavam arrumadas sobre a mesa, prontas para ir para o correio. Eu não
reconheci o nome até ser mais velha, quando descobri uma tentativa falhada
no caixote do lixo e a repesquei.
 
Meu querido, sei que não podemos voltar a encontrar-nos, e sempre
respeitei a tua decisão. Sabes o quanto eu te amo, e que eu nunca faria
nada para te magoar ou comprometer a tua família. Mas a Grace está a
crescer, e quero tanto que a conheças — só um pouco. Não te peço
dinheiro, nem espero que alguma vez voltemos a experimentar a
proximidade em que outrora nos comprazemos. Mas ela precisa de um pai!
As vezes, inclina a cabeça e faz-me um sorriso distante, e é igualzinha a ti,
o que me inflige um misto de orgulho e dor que não imaginas. Será que
podias vir ter connosco ao parque em Highgate num domingo, nem que
fosse só uma hora? Por favor, responde-me, nunca sei se chegas a ler estas
cartas.
 
A partir desta carta, fiquei a saber três coisas muito importantes.
Primeiro, que bisbilhotar compensa quase sempre. Segundo, que o meu pai
era casado e não queria ter nada a ver comigo, apesar das tentativas de
Marie para me contar uma história diferente. E terceiro, e mais importante
ainda, descobri o nome do galanteador que partiu o coração da minha mãe e
nos deixou a viver na miséria. Eu já sabia o nome dele, aliás. A maior parte
das pessoas sabe quem ele é. O meu pai é Simon Artemis. E é um dos
homens mais ricos do mundo. Devia dizer era, quando ainda era vivo.
Isto é a campainha. Tenho de ir pôr a roupa a lavar... infindáveis lençóis
enegrecidos para lavar e dobrar. O glamour, por vezes, é demasiado para
que o consigamos suportar.
 
Capítulo 4
 
Os meus primeiros anos não foram nada como o que se vê naqueles
livros terríveis que se encontram nas livrarias dos aeroportos, que
normalmente têm títulos do género «Não, pai», o que até pode ser uma
história de sofrimento inimaginável, mas que só se vendem porque as
pessoas gostam de ler sobre a desgraça dos outros para depois se sentirem
melhor consigo mesmas, e tudo para conseguirem sentir o mais ínfimo
lampejo de simpatia ou horror. «Li isto e chorei rios de lágrimas, que
história tão triste :(» é o tipo de comentário que normalmente se encontra
num qualquer clube de leitura de mães online. «Oh, estiveste a ler sobre
violência infantil e traumas persistentes e ficaste incomodada, não foi, Kate
1982? [Kate parece mesmo o tipo de nome de alguém que frequenta um
sítio desses.] Tão grata por nos teres contado como isso te afetou».
Seja como for, a minha infância (pelo menos, na altura em que Marie
era viva) teve alguns bons momentos. Eu era muito amada, e sabia-o —
ainda que viesse tudo da mesma pessoa. As mães são propensas a
providenciar amor de todos os ângulos, de tal maneira que muitas vezes só
nos apercebemos de que nos falta o amor das outras pessoas muito mais
tarde. Marie assumiu o peso das dificuldades e escondeu-o bem longe de
mim. Claro que eu sabia que ela estava a lutar, as crianças sabem sempre,
não é? Mas as crianças também são extraordinariamente egoístas, e
enquanto ela fosse capaz de ir disfarçando as brechas, eu estava mais do que
feliz a deixar-me levar. A minha mãe poupava os salários — do seu trabalho
como empregada de um café no Angel, onde as bebidas quentes custavam
pelo menos 3 libras e o bolo era feito sem farinha para as mulheres que
tinham acabado de descobrir a sua intolerância ao glúten, bem como de
mulher a dias em algumas casas de senhoras de Highgate que
provavelmente nem sequer comiam bolo nenhum. De três em três meses,
conseguia juntar o suficiente para me levar numa «viagem mistério
mágica», que consistia apenas num passeio para ver o Cutty Sark, ou numa
viagem de metro até Selfridges para ver as luzes de Natal. Uma vez, levou-
me à feira em Hampstead Heath, onde comi algodão-doce pela primeira vez
e ganhei um peixe num jogo do aro. Pusemos o peixe numa jarra na cozinha
e chamámos-lhe RIP2, o que me pareceu bastante engraçado porque os
peixes da feira nunca vivem muito tempo. Marie achou a piada cruel e
alimentou o peixe, limpando a sua casa todas as semanas e acrescentando-
lhe algumas plantas e uma pedra escolhida ao acaso. Eu não tardei a perder
o interesse no peixe, mas sob os cuidados de Marie, RIP acabou por viver
durante mais dez anos. Sobreviveu à minha mãe.
Marie e eu lutámos. Eu fui para uma bela escola primária, à entrada de
Seven Sisters, onde fiz nada mais nada menos do que um amigo, um rapaz
chamado Jimmy, cuja família vivia numa grande casa com uma quantidade
excessiva de tapetes e almofadões e livros empilhados até ao teto em todas
as divisões. A sua mãe era terapeuta e o pai era médico de clínica geral, e
podiam muito bem ter mandado o filho para uma escola que não ficasse em
frente de uma loja de penhores que fazia um bom negócio paralelo de venda
de drogas duras. Mas eles tinham um grande cartaz do Partido Trabalhista à
janela e carregavam uma grande dose de má consciência liberal em virtude
da sua boa fortuna, e a educação de Jimmy era uma das maneiras que eles
tinham de ajustar contas com ela. Jimmy continua presente na minha vida.
Na verdade, a nossa relação como que amadureceu nos últimos tempos, se
assim se pode dizer.
Podíamos ter continuado assim, Marie e eu. Eu fui para a escola
secundária ao fundo da rua (inicialmente com Jimmy, que foi
impiedosamente molestado por ser caloiro no sétimo ano e, por isso, foi
mandado para uma escola privada que tinha cabras e onde se dedicava
muito às artes — outro compromisso amarguradamente assumido pelos seus
pais), e fiz mais alguns amigos. Tivéssemos nós tido mais tempo, e talvez
Marie tivesse arranjado um emprego melhor, e quem sabe se não teria
encontrado um homem decente para a aliviar de alguns dos seus fardos. Eu
poderia ter ido para a universidade, e mais tarde ter começado a ganhar
dinheiro suficiente para cuidar da minha mãe, comprar-lhe um apartamento,
oferecer-lhe um carro. Mas se tivesse sido esse o nosso destino, não estaria
aqui a escrever isto, à espera que Kelly irrompa pela nossa cela para me
tentar convencer a envolver-me numa conversa sobre as suas extravagantes
proezas de autorreparação de trazer por casa. Em vez disso, Marie foi-se
tomando mais lenta, mais soturna, e passou a dormir mais, a ponto de eu me
levantar e ir para a escola, deixando-a na cama. Perdeu um trabalho de
limpezas porque não se levantava antes das onze da manhã, e uma qualquer
bruxa com cara de fécula de batata numa casa com seis casas de banho e
sem alma despediu-a por SMS às onze e meia da manhã. Doíam-lhe as
costas, disse ela uma noite, em conversa com Helene no sofá enquanto eu
dormitava na cama. Helene instou-a a ir ao médico, mas ela descartou a
possibilidade.
— Quando é que eu não tive dores e achaques desde que cheguei a este
país frio e húmido? — respondeu, a rir.
Quem sabe quão mal é que ela realmente se sentia? Eu certamente que
não. As crianças são muito autocentradas e tendem a considerar os pais
invencíveis. É assim que as coisas funcionam. Mas Marie quebrou o pacto.
Dois meses depois, levou-me de férias pela primeira vez, para a Comualha.
Ficámos num parque de caravanas numa falésia com vista para o mar e
percorremos caminhos costeiros e eu comi imensos gelados. Marie bebia
vinho à entrada da nossa caravana enquanto eu ficava estendida na relva a
fazer-lhe perguntas sobre a sua infância em França, e como é que me podia
tornar fotógrafa quando fosse grande, e se alguma vez gostaria de rapazes
da maneira que os crescidos gostam quando eles pareciam ser todos tão
imaturos como os da minha turma. Ela riu-se com esta. Riu-se bastante
nessas férias.
Eu tinha acabado de fazer 13 anos quando se tornou óbvio que as suas
dores não eram apenas um sintoma de excesso de trabalho e de
preocupações constantes. Um dia, Helene foi buscar-me à escola mais cedo
e levou-me até ao hospital. Marie tinha desmaiado no trabalho, e antes de
eu a poder visitar, a única amiga da minha mãe mandou-me sentar numa
sala de visitas e disse-me que a minha mãe tinha cancro. Tinha evitado ir ao
médico e, tal como tantas outras mulheres que se preocupam muito com os
outros, tinha descurado por completo as suas próprias necessidades. Não
queria que eu soubesse, explicou-me Helene, mas eu merecia saber. Eu
olhei para as lâmpadas cilíndricas de halogéneo por cima de mim e senti um
zumbido nos ouvidos enquanto Helene me perguntava se eu seria capaz de
me manter calma e valente à frente da minha mãe. Eu senti algo desligar-se
no meu cérebro nesse momento, como se tivesse ficado subitamente em
standby, sem conseguir funcionar em plena capacidade. Mais tarde, vim a
saber que se chama a isto dissociação, quando o nosso cérebro se desliga
para nos proteger do stress ou de um trauma. É um sentimento horrível, mas
deu-me bastante jeito em alturas em que... bem... em que tive de fazer
algumas coisas bastante desagradáveis. Francamente, quando estamos
rodeados de sangue e da voz de alguém a gritar pela vida, é um grande
alívio desligar o botão.
Marie não chegou a voltar para casa, e, seis semanas mais tarde, a
minha adorada e esgotada mãe tinha morrido. No breve período que mediou
entre o diagnóstico e a morte, a minha mãe e Helene concordaram que eu
devia ir viver com ela daí em diante — como se houvesse mais algum sítio
para onde eu pudesse ir... Os meus avós nem sequer vieram ao funeral, que
foi um encontro modesto de várias ex-modelos dos primeiros anos da minha
mãe em Londres, com alguns dos seus colegas de trabalho e dos pais de
Jimmy, John e Sophie. Fizemos-lhe um brinde no café do bairro onde
costumávamos ir beber chocolate quente aos sábados de manhã quando
precisávamos de fugir do frio e da humidade do nosso apartamento. E com
isto, a história da minha infância está praticamente contada. Mudei-me para
o apartamento de Helene em Kensal Rise, onde tive, pela primeira vez, o
meu próprio quarto — uma pequena divisão que costumava servir para
guardar as suas roupas e equipamento desportivo antigo, há muito
abandonado. O peixe veio comigo e ficou esquecido na jarra em cima de
uma cómoda. Helene nunca pensou vir a ter uma adolescente na sua vida,
mas, em sua justiça, direi que fez o melhor que pôde comigo. Havia sempre
comida, e dava-me dinheiro para passear e comprar roupa. Nunca o disse
em
voz alta, não fosse eu ser fulminada por uma qualquer divindade
vingativa, mas ganhei uma qualidade de vida muito superior à que tinha
quando vivíamos no nosso quarto deprimente. Mudei-me para uma escola
perto do seu apartamento, e tomei-me bastante independente quase de um
dia para o outro. Helene trabalhava numa agência de modelos, e estava
muitas vezes fora, por isso eu caminhava pelo parque da zona durante horas
depois da escola para passar o tempo, ou então ia sentar-me na esplanada do
bairro a beberricar um chá. Tudo menos voltar para aquele apartamento
vazio e pensar em tudo o que tinha perdido.
Helene tinha limpado o apartamento da minha mãe e, apesar de não
haver lá nada de grande valor, fez questão de me dar o anel de opala, que
era o preferido da minha mãe, que encaixava perfeitamente no meu dedo e
que eu passava o dia a esfregar constantemente. Também me deu uma caixa
com cartas, documentos e fotografias dos tempos de juventude de Marie,
incluindo o seu prezado póster da Kookai. Nunca os abri. Para além do anel,
não sou uma grande fã de relíquias sentimentais (claro que nunca consegui
resistir a guardar algumas recordações dos meus crimes, mas isso
dificilmente pode ser considerado um gesto sentimental). Mas um dia, ao
espreitar debaixo da cama de Helene enquanto corria o apartamento à
procura dos seus alisadores de cabelo, encontrei outra caixa. Esta era
diferente da que eu tinha no meu quarto, que era enfeitada com flores e
corações. Esta era parecida com as que eu costumava ver no gabinete do
diretor da escola — formal e resistente. E tinha qualquer coisa
cuidadosamente escrita de lado a tinta vermelha: «Grace/Simon».
Era evidente que eu ia ver o que estava lá dentro. Nem sequer hesitei.
Ainda hoje não dou importância nenhuma à suposta privacidade dos outros
— se deixarem alguma coisa ao pé de mim, eu espreito-a, assimilo-a,
guardo-a na memória. Suponho que ter crescido só podendo contar com
uma única pessoa fez com que precise de mais informação do que uma
pessoa normal para confiar em alguém — ou talvez eu queira apenas entrar
na vossa cabeça e ficar em vantagem. Nem sempre resulta, já ando de volta
do diário de Kelly desde que aterrei nesta prisão, mas é difícil penetrar nos
pensamentos mais íntimos de uma pessoa quando ela é tão completamente
destituída de quaisquer pensamentos originais.
Esgueirei-me até à porta do quarto de Helen e deixei-me ali ficar, não
fosse ela chegar a casa entretanto. A amiga da minha mãe testemunhou toda
a breve relação entre os meus pais, mas nunca me deu nenhuma informação
sobre ela, nem mesmo quando Marie morreu. Sei que ela achou que isso
não iria ajudar-me em nada, e que me estava a proteger, por isso não forcei
as coisas. Mas esta caixa podia dizer-me mais ainda do que ela. Helene era
gentil, mas não se pode dizer que fosse de uma inteligência por aí além, e
tinha um nível de compreensão bastante básico. Os seus programas de
televisão preferidos davam todos na ITV, se é que isso vos diz alguma coisa.
Lá dentro estava um monte de papéis sem qualquer ordem discernível.
Vi vários recortes de jornais, cartas e fotografias, tudo misturado, e comecei
a selecioná-los em montes distintos. Feito isto, comecei a olhar para as
fotografias com a devida atenção. Algumas delas eram da minha mãe e das
suas amigas em noites de diversão ou em discotecas sombrias pela cidade
de Londres. Marie e Helene de minissaia, ambas a fumar, ou enquanto
dançavam. Raparigas que eu não conhecia com garrafas de champanhe, a
borrifá-lo à sua volta. Enquanto percorria as fotografias, as raparigas
começaram a desaparecer a pouco e pouco, aparecendo cada vez mais
desfocadas e relegadas para os cantos das fotografias à medida que Simon
assumia o protagonismo. Havia fotografias de Simon com outros homens,
todos de camisa branca e com calças de ganga dispendiosamente gastas,
com grandes fivelas de ouro nos cintos. Apareciam com os braços nos
ombros uns dos outros, como se fossem colegas da escola, mas trincando
grandes charutos, empunhando copinhos de álcool, olhando lascivamente
para a objetiva. Depois, havia fotografias da minha mãe e de Simon, com
ele a fazê-la rodopiar, ela com uma saia às bolinhas meio desfocada, mas
com uma expressão perfeitamente nítida. Ela parecia arrebatada, torcendo a
cabeça em diferentes posições para manter os olhos fixos no meu pai. Mas
ele não olhava para ela, sorria afetadamente para a câmara. Não estava a
olhar para ela em nenhuma das fotografias; em vez disso, aparecia a sorrir
para os seus companheiros, que pareciam todos ansiosos por olhar para ele
como Marie, ou então a fazer caretas para a câmara, a bater com os copos
no balcão, a dançar em cima de uma mesa enquanto as pessoas aplaudiam,
ou a prender galhofeiramente a cabeça de um empregado com um ar
acossado enquanto os convivas em redor faziam caretas e aplaudiam.
É estranho percebermos que abominamos o nosso pai antes mesmo de
nos ser dada a oportunidade de o conhecermos. Claro que eu sabia que ele
tinha tratado mal a minha mãe, mas havia algo mais do que isso. A partir de
um pequeno número de fotografias, comecei a ficar com a pele arrepiada só
de o ver. A sua cara bronzeada e reluzente dava mostras de uma vaidade
como eu nunca encontrara. A sua evidente necessidade de captar todas as
atenções à sua volta era patética. Ocupava o espaço das outras pessoas — as
mulheres eram relegadas para as margens, figurando apenas como belas
apoiantes de Simon Artemis. O seu bando de velhos amigos parecia do mais
matreiro que se pode imaginar — certamente o tipo de homens que seriam
suficientemente espertos para se manterem discretos nestes tempos pós-
#MeToo. Tudo o que ali vi me fez sentir um pouco maldisposta. Este
homem, com aquelas roupas vistosas horríveis e a sua evidente necessidade
de promover os seus níveis de testosterona a cada nova pose... este homem
partilha e contribuiu para o meu ADN, o meu carácter, a minha existência.
Uma vez mais, questionei-me se Marie teria conseguido esconder de mim
um qualquer defeito de carácter profundo — que mais poderia explicar este
homem, esta escolha? Como é que ela podia ter cometido um erro tão
grande?
Tinha 13 anos quando vi estas fotografias pela primeira vez. Não sei
muito sobre as relações entre homens e mulheres, o conceito de patriarcado,
a ideia de manipulação emocional ou sequer sobre os factos básicos da
atração sexual. Simplesmente, vi este homem nojento exibindo abertamente
as suas piores qualidades para a câmara, enquanto a minha adorada mãe não
lhe tirava os olhos de cima. Nesse momento, detestei-a a ela também.
Enquanto voltava a enfiar as fotografias na caixa, reparei que o meu
punho estava cerrado e que os músculos do meu pescoço estavam a
começar a arder ligeiramente, o que era sempre sinal de uma dor de cabeça,
mas eu sabia que, se não continuasse a vasculhar, poderia não voltar a ter
outra oportunidade de o fazer durante uns tempos. Quem sabe o que é que
Helene planeava fazer com aqueles documentos?
A seguir vinham os recortes de jornais, húmidos e desvanecidos. As
parangonas eram uma mistura de negócios e notícias pessoais. «Simon
Artemis compra cadeia de moda juvenil Sassy Girl», «Artemis criticado por
condições de trabalho “exploratórias”», «Simon e Janine apresentam a sua
filha perfeita», «Sir Simon? Rumores de uma possível condecoração para o
CEO da Artemis Holdings». O último era de uma revista cor-de-rosa e tinha
fotografias de Simon e da sua mulher (que eu agora sabia tratar-se de
Janine), rodeados por cães felpudos, tapetes felpudos e ao lado de uma
enorme árvore de Natal, que chegava até ao teto. Nos seus braços, estava a
filha, que eu reparei chamar-se Bryony. Parecia ter cerca de 3 anos. Procurei
a data do artigo. Os músculos do pescoço estavam cada vez mais quentes.
Eu era 13 meses mais nova do que ela. A minha irmã era bebé quando
Simon andava naqueles clubes, a galantear a minha mãe, prometendo-lhe
sabe Deus o quê. As fotografias mostravam a mesma casa diante da qual a
minha mãe tinha passado comigo naquele dia chuvoso em Hampstead, que
parecia, mesmo aos meus olhos infantis, uma coisa hedionda. Janine
(presumo que fosse Janine, dado que os homens continuam a partir do
princípio de que cabe às mulheres cuidar da casa) tinha claramente uma
paixão irresistível pelo cinzento e pela prata. Alguma vez viram uma lareira
em prata? Não estou a falar de metal nem de tinta, mas sim de prata
verdadeira. Importada de Viena, vim a saber anos mais tarde, quando fui
autorizada a entrar por breves momentos em sua casa para uma festa do
pessoal. Janine era uma anfitriã graciosa, conversando um pouco com toda
a gente como se fosse a rainha, e eu fiz-lhe muitas perguntas sobre a sua,
digamos, singular conceção da decoração de interiores. É provável que ela
não tivesse sido tão simpática comigo se soubesse dos meus planos para ela
e para os seus entes mais queridos e próximos, mas tinha tanto orgulho
naquela pavorosa lareira que é difícil ter a certeza.
Os recortes mostraram-me um pouco do que Simon fazia. Era dono,
entre outras coisas, da Sassy Girl, da companhia aérea de baixo custo
Sportus e de cerca de 1800 propriedades no Sudeste, cujo estado lhe valeu a
alcunha de «O senhor do esterco». Também possuía alguns hotéis e meia
dúzia de iates que podiam ser alugados à semana por qualquer pessoa que
achasse que um hotel de cinco estrelas era uma despesa demasiado modesta
para as suas férias. Naquilo que pode ser visto como a definição de um
projeto de vaidade, em 1998, Simon e Janine também tiveram uma vinha, e
produziram um vinho que eu presumo que terá sido comprado apenas pelos
seus amigos e comparsas. Foi engarrafado sob o nome de Chic Chablis.
Como se alguma coisa pudesse dizer-nos mais sobre uma pessoa.
A última coisa da caixa era um envelope creme grosso. Lá dentro
estavam duas folhas dobradas. A primeira que abri era uma carta do próprio
Simon. Estava escrevinhada à pressa, em tinta preta, com as palavras
praticamente a romper o papel.
 
Marie, obrigado pela tua carta. Lamento saber que estás doente, mas o
que sugeres é impossível. Como já te disse muitas vezes, a tua decisão de
teres tido a tua filha foi apenas tua. Não tinhas o direito de imaginar que eu
iria pôr a minha família e reputação em risco pelo fruto de uma aventura
de seis semanas. Ainda assim, decidiste ter a bebé (que eu nem sequer
tenho prova de que seja minha, aliás), e depois tentaste aliciar-me a vê-la.
Esta ilusão tem de acabar. A tua filha não é, nem nunca será, parte da
minha família. Eu tenho uma mulher, Marie! Tenho uma filha. É possível
que venha a ser promovido ao pariato na lista de condecorações do ano
que vem. Tens de parar de tentar impor-te na minha vida. Junto segue um
cheque de cinco mil libras, o que é bastante generoso, mas visto que estás
com problemas de saúde, parece ser a coisa certa a fazer. Em troca, exijo
que cesses todo e qualquer contacto. Simon.
 
A outra carta no envelope era a carta que a minha mãe tinha enviado e
que provocara esta arenga medonha. Eu não queria ler as suas súplicas, ver
a vulnerabilidade e a tristeza escritas pela sua própria mão. Era demasiado
embaraçoso ver quão fraca era a minha mãe perante este homem. Ela era
fraca, mas eu era forte, por isso, ia lê-la e reavivar a raiva no meu estômago,
reforçá-la com aço e conservá-la comigo. Abri a carta.
 
Meu querido Simon,
 
 
Sei que me pediste para não escrever, e eu tentei respeitar a tua decisão,
apesar de me entristecer. Mas tenho de te dizer que não estou bem. Não irei
viver muito tempo, de acordo com os bons médicos do Hospital de
Whittington (não fica muito longe de ti). Estou resignada, não porque
deseje morrer, mas porque estou cansada. Estou cansada e já há muitos
anos que não me tenho sentido bem, e a vida desde que tive a Grace tem
sido difícil e não parece estar a melhorar. Mas não penses nem por um
segundo que eu ponho as culpas na Grace. Ela tem sido uma luz no meio
disto tudo. Gostava tanto que a tivesses conhecido quando era bebé,
quando começou a andar, quando tinha 6 anos e insistia em que lhe
chamassem «Crystal». Adorava que tivesses assistido à sua fase de rã, em
que andou a palrar durante uma semana, em vez de falar, ou que a tivesses
visto quando ganhou o prémio de desenho na escola. Perdeste tanta coisa,
mas não tens de perder o resto. Eu, sim. Eu vou perder tudo o resto, e isso
deixa-me tão ansiosa que nem consigo dormir, embora o barulho do
monitor e da enfermaria também não ajudem muito, para ser sincera.
Simon, tu tens de ficar com ela. Tens de contar à tua mulher que ela existe
— ela não deixará de te perdoar por uma coisa que já aconteceu há tantos
anos. Como mãe que é, como poderia permitir que uma criança vivesse sem
os pais? O dinheiro que tenho não chega para assegurar que os anos de
adolescência que aí vêm sejam brandos, e os meus pais nunca deixaram de
estar zangados comigo por causa das minhas escolhas — não posso deixar
que o seu espírito em formação seja esmagado por eles. A minha amiga
Helene ofereceu-se para a acolher, mas nada seria tão maravilhoso como
estar rodeada da própria família. Não quero implorar, mas faço-o, em
nome da tua filha. Por favor, faz o que está certo, sabes bem que és um
homem bom e que não serias capaz de deixar a tua filha sozinha no mundo.
Já não irei para casa, por isso escreve-me para o hospital, Piso 4,
Enfermaria Beija-flor.
Com todo o meu amor e carinho,
Marie
 
Fechei a caixa, voltei a empurrá-la para debaixo da cama e verifiquei se
não tinha ficado nenhum papel esquecido no chão que me pudesse
denunciar a Helene. Depois disso, devo ter caminhado diretamente para fora
do apartamento, porque dei por mim no parque do bairro, onde me sentei
num banco e tentei desacelerar o coração. Bati na palma da mão com a
outra mão e arrepanhei a parte de baixo do pescoço, tentando soltar o
caroço que subitamente ali se tinha instalado. Sabia mais sobre o meu pai
do que alguma vez soubera. Sabia que ele era rico para além do que era
concebível. Sabia que tinha uma família, uma casa, uma lareira horrível.
Era dono de empresas de que eu já tinha ouvido falar — Sassy Girl era uma
marca de roupa que as raparigas da escola usavam. Era uma figura pública.
A minha mãe tinha-lhe pedido ajuda quando estava a morrer (humilhando-
me ao fazê-lo), e ele tinha-a rejeitado, repreendido e destroçado. Apetecia-
me correr para casa dele e saltar-lhe em cima, bater-lhe, enfiar-lhe os dedos
nos olhos e martelar-lhe a cabeça contra aquele chão de mármore
horripilante. Respirei lentamente, tentando focar a minha atenção no
baloiço do parque infantil. Mas a raiva persistia. Eu sabia que já não iria
desaparecer, por muito calma que me conseguisse mostrar exteriormente.
Ao longo da minha vida, a minha mãe protegera-me da rejeição, do
afastamento frio e insensível deste homem. E eu tinha-me sentido segura
com todo o calor em que ela me envolvera. Mas, na hora da morte, a minha
mãe já não podia continuar a absorver esta dor por mim. Eu sabia que não
podia ir até à casa dele, tocar à campainha e pedir-lhe que me pagasse um
qualquer preço vago por aquilo que tinha feito. Chegaria até aos portões de
bronze e seria obrigada a voltar para trás. A família Artemis estava
claramente habituada a erguer barreiras e a afastar quem quer que os viesse
incomodar — devedores, fãs, pedintes e crianças indesejadas. Percebi que
teria de esperar, sentar-me e arquitetar um plano para quando fosse mais
velha e mais capaz de estabelecer contacto com eles. Este pensamento
reconfortou-me. Tinha cinco anos pela frente até fazer 18. Cinco anos para
pensar numa maneira de fazer a família Artemis sofrer. Ainda me recordo
deste momento com grande vividez, e já pensei nele muitas vezes desde
então, sempre com um sorriso. Porque mesmo aos 13 anos (e apesar de eu
ser demasiado boazinha nessa altura para me permitir pensar nisso
explicitamente), já me reconfortava pensar que um dia, quando fosse
crescida, iria fazer com que eles soubessem, soubessem mesmo, o
sofrimento por que nós tínhamos passado.
 
 
21 Acrónimo de «rest in peace», isto é «que descanse em paz» ou «paz à
sua alma», em inglês. [A. do Z]
 
Capítulo 5
 
Eu não queria assim tanto matar Andrew Artemis. Era algo que tinha de
ser feito, claro está, eu sabia disso e nunca vacilei, mas não estava
preparada para que um deles fosse tão, digamos, simpático. A investigação
que eu tinha feito sobre os seus parentes tinha sido exaustiva e meticulosa,
mesmo obsessiva, poder-se-á dizer. A partir daí, ficara a saber exatamente
quão moralmente corrompida era aquela família, o que tornava muito mais
fácil focar-me na tarefa que tinha pela frente, sabendo que não estava a tirar
nada de decente ao mundo. Suponho que, na minha cabeça, tinha começado
a justificar toda a minha demanda pessoal como uma causa pública. A
família Artemis era a personificação do capitalismo tóxico, um vazio moral,
um ícone de ganância. Meu Deus, eu era insuportavelmente jovem.
A facilidade com que despachei Jeremy e Kathleen encorajou-me. Foi
uma sorte, na verdade — uma guinada súbita no volante e eles sumiram-se
por um desfiladeiro abaixo, sem um único arranhão no carro de Amir para
levantar suspeitas. Tantas coisas que podiam ter corrido mal, tantas coisas
que me fazem estremecer quando olho para trás. E se alguma coisa tivesse
corrido de maneira diferente, talvez eu tivesse perdido a calma, reavaliado
os meus planos, ou pior — talvez tivesse sido apanhada. Mas não fui. Tive
um póquer de ases nessa noite. Francamente, a maneira quase obsequiosa
como os meus avós morreram rapidamente nessa noite fez-me continuar.
Pelo menos, sempre tenho alguma coisa por que lhes agradecer.
Andrew era filho de Lee, o irmão de Simon, e era provavelmente o
membro da família sobre o qual era mais difícil recolher alguma
informação. Não estava presente em nenhuma das grotescas festas de
família, onde empregadas vestidas como pavoas (agradeço às colunas de
mexericos por esta imagem) e linhas de cocaína dispostas em bandejas de
prata eram oferecidas aos convidados por anões com chapéus de coco. Não
estava no iate da família quando chegava o verão, besuntado e estendido no
convés com Bryony e os seus amigos magros e bronzeados. Nem sequer
tinha um emprego de fachada no quartel-general dos Artemis, o edifício que
avultava ao largo de Grey Portland Street, onde um Bentley cinzento
imaculado repousava cá fora sempre que Simon estava no escritório, no que
parecia ser uma nova versão do hastear da bandeira sempre que a rainha
está em casa. Nem mesmo Tina, a minha informadora sobre os Artemis —
uma pessoa de quem me tomei amiga a contragosto quando lá trabalhei (lá
chegarei) —, me conseguiu ajudar por aí além quando andei a procurar
obter informações sobre ele, limitando-se a dizer-me que achava que
Andrew «talvez tivesse seguido o seu próprio caminho» quando eu lhe
enviei uma mensagem a perguntar porque é que ele não vinha mencionado
na cobertura que uma revista tinha feito sobre o baile de caridade anual dos
Artemis. Como de costume, não pude pressioná-la demasiado sobre estes
assuntos. Tinha de deixar que fosse ela a conduzir as conversas, para não
levantar suspeitas, e o meu primo não lhe despertava interesse nenhum.
Soube que alguma coisa se passava quando Andrew não apareceu no
funeral dos avós (um evento que foi deliciosamente estranho testemunhar a
uma distância respeitosa). Eu não desisti. Quando vi que não o conseguia
localizar pelo Facebook, instalei um alerta Google para o meu primo mais
novo e aguardei pacientemente. Por fim, encontrei uma referência a Andrew
num jornal online gratuito, no perfil de trabalho que um qualquer velho
excêntrico estava a fazer sobre as rãs dos pântanos na região dos pauis de
Londres Oriental. Depois de ter percebido exatamente o que eram pauis,
constatei que Andrew, talvez ainda mais do que eu, se tinha desviado para
bem longe da família Artemis. O que é dizer muito, tendo em conta que a
minha existência tinha sido negada logo à nascença.
Andrew não estava a tentar destruir os pauis para construir uma fábrica
e empregar crianças para fazer roupas de poliéster inflamável, nem tinha
por objetivo apanhar as rãs dos pântanos para usar as suas peles para fazer
malas, como teriam sugerido os outros membros da sua família se as
margens de lucro fossem boas. Não, ele estava a fazer voluntariado,
ajudando a observar os hábitos de acasalamento, garantindo que estas
criaturas repugnantes tivessem um sítio para viver e prosperar. E sem
receber dinheiro quase nenhum. Sinceramente, se não tivesse mandado os
seus avós para fora daquela estrada poeirenta em Marbella, acho que eles
próprios o teriam feito se soubessem o rumo que o neto estava a dar à sua
vida.
Rapidamente se tomou claro que o trabalho que eu tinha arranjado no
grupo Artemis de nada valeria se quisesse tentar aproximar-me de Andrew.
Na verdade, desconfiava que jogaria ativamente contra mim. Com base nas
perguntas casuais que fiz quando trabalhei na sede da Artemis (o que
contou muito pouco, dado o meu estatuto desoladoramente baixo), parecia
que o meu primo se tinha demarcado da família há alguns anos, mal falando
com os pais de ano para ano. É irónico, na verdade, de acordo com a
definição de Alanis Morissette (quem sabe o que é a ironia, afinal?), que
tenha passado tanto tempo a tentar infiltrar-me no círculo íntimo dos
Artemis quando o meu primo se empenhou em fazer exatamente o
contrário. Mas apesar das suas evidentes intenções de viver uma vida
diferente, continuava a ser um deles. Continuava a poder ser recebido de
braços abertos se um dia se cansasse de ajudar as repelentes rãs a gentrificar
Londres Oriental — o que, admitamo-lo, se afigurava bastante provável. E,
o que era crucial: continuava a ser um potencial beneficiário quando toda a
família morresse (e, como sabem, eu estava a fazer o que podia para
acelerar a chegada desse dia). Por isso, fiz o que tinha de fazer. Investiguei
rãs, comprei um blusão impermeável horrível e inscrevi-me numa atividade
de voluntários no projeto do paul de Walthamstow.
Uma vez vi um daqueles filmes «baseados em histórias verídicas» que
passou fora de horas num domingo à noite no Canal 5. Era sobre uma
mulher citadina de altos voos que decidiu parar com tudo para ir viver uma
vida simples de cuidadora de cabras nas montanhas. Renunciou às suas
malas de marca (o olhar obviamente masculino do realizador teve aqui o
seu peso) e à sua vida monótona. Viu a pureza na terra, na natureza, em
voltar para a terra. As imagens eram aliciantes, a personagem principal
usava sobretudos imaculados e o Sol brilhava — e por breves momentos
fiquei seduzida (antes de me lembrar dos meus prementes objetivos de
extermínio familiar). A única coisa que quero sublinhar é que o projeto do
paul de Walthamstow nunca será o cenário de algo remotamente parecido.
Ninguém voltará deste local natural em particular com uma história
inspiradora para contar. Ninguém irá perceber que o nosso maior amor na
vida é amarmo-nos a nós mesmos com uma touca na cabeça e luvas de
borracha nas mãos para não contaminarmos a zona sagrada das rãs.
A receção aos voluntários teve lugar num l.° de Maio pegajoso, e eu fui
para lá de comboio desde Kings Cross, com óculos de lentes claras, sapatos
confortáveis, uma parca e um chapéu de balde. Sentia-me completamente
invisível, o que era desconcertante e, ao mesmo tempo, interessante.
Ninguém me olhou de relance, nenhum homem me sorriu. Até levei um
farnel, coisa que sempre considerei um sinal de alerta em qualquer pessoa
com mais de 8 anos. De acordo com o Google Maps, os pântanos não
ficavam perto de nenhum café conhecido, e eu não ia arriscar ingerir
comida que pudesse ter sido contaminada com qualquer coisa que fosse
remotamente selvagem e da Zona 4.
O centro de visitantes era uma coisa soturna. E isto já é uma descrição
lisonjeira — não imaginem um complexo bem iluminado com sinalética
bem desenhada ou uma casa de banho de serviço. Era uma cabana com uma
chapa ondulada de ferro a fazer de teto, com um conjunto de pósteres
infantis de ervas daninhas rabiscadas e um ou outro pássaro. Roger, o
homem que geria o projeto dos pauis, estava lá para dar as boas-vindas às
duas pessoas que tinham vindo. Eu estava ligeiramente chocada por haver
alguém que tinha vindo voluntariamente trabalhar num pântano sem que
isso lhe desse a menor oportunidade de eliminar um membro da família.
Mas aqui estávamos nós. Lucy, como se apresentou a Roger e a mim, era
uma mulher de 30 anos que trabalhava em tecnologias de informação, mas
sempre desejara passar mais tempo em contacto com a natureza. Tinha ar de
quem não estava regularmente exposto à vitamina D, pálida e com o rosto
consumido. Esforcei-me para manter uma expressão neutra, vendo os olhos
de Roger iluminarem-se enquanto acenava entusiasticamente com a cabeça
em concordância com cada palavra que ela proferia.
— Vieste para o sítio certo, Lucy! — disse ele. — Podemos não ser
património mundial da UNESCO mas, como eu costumo dizer, estes pauis
são mesmo a oitava maravilha do mundo! — Os seus olhos desapareceram
na pele encarquilhada que os envolvia quando se riu. Imagino que repetisse
aquela tirada pelo menos uma vez por dia e cismei se ele não teria uma
mulher que desejasse que eu me visse livre dele também.
O meu colete com capuz era perfeito. Lucy trazia um parecido, ao passo
que Roger parecia estar um passo à nossa frente e apresentava-se
engalanado naquilo que só consigo descrever como um macacão à prova de
água. Foi-nos oferecido um termo com chá, enquanto Roger se inclinava
contra a mesa da receção e descrevia o que seriam os nossos deveres.
Apesar de repetidas garantias de que iríamos entrar no extraordinário
mundo da conservação, os nossos deveres pareciam resumir-se, em grande
medida, à extração de ervas daninhas. Isto era muito importante, de acordo
com Roger, para manter o delicado equilíbrio ecológico do local. Da
receção, fomos encaminhados para uma pequena excursão pelos pauis, que
nos tomou um total de 25 minutos. Talvez dizer «paul», no singular, tivesse
sido mais apropriado.
Era uma coisa deplorável, que devia muito pouco à beleza. Havia uma
garça-real abandonada, especada a uma certa distância, e um turbilhão de
moscas a zumbir à volta dos juncos, mas, para além disso, não era um sítio
vibrante de vida selvagem — e também não era especialmente concorrido
por visitantes. A certa altura, Roger murmurou qualquer coisa sobre o
centro de lazer local e como o seu financiamento fora tremendamente
valorizado a certa altura, e o seu rosto ensombrou-se. Imaginem que a vossa
némesis era um centro de lazer.
Lucy parecia genuinamente interessada nas atividades, fazendo
perguntas detalhadas sobre a utilização das redes e a compostagem. Eu
permaneci calada, acenando com a cabeça, e sempre à procura do homem
que pudesse ser Andrew. A julgar pelas poucas fotografias que o mostravam
numa fase mais jovem, era um tipo alto, magro, com cabelo loiro-claro e
dentes enervantemente simétricos. Moderadamente bem-parecido, talvez
merecesse um segundo olhar num bar, bonito para os padrões habituais de
Londres. Mas, para além de Roger e de uma velha senhora, que me fazia
lembrar vagamente a senhora da furgoneta de Alan Bennett e que estava a
roçar algumas plantas inidentifícáveis, não havia mais ninguém em redor.
Ironicamente, Roger não nos deixou fazer nada de prático nesse dia,
dizendo-nos que o trabalho era muito sensível e insistindo em que
passássemos, em vez disso, uma hora na cabana a estudar os requisitos de
saúde e segurança. Isto consistia essencialmente em repetidos alertas sobre
as charcas, meia dúzia de poças minúsculas, pensara eu, mas Roger
informou-nos, num tom grave, que eram muito mais profundas do que
poderíamos imaginar, e que a sua real dimensão era ocultada pelos juncos.
Temos de ter muito cuidado quando trabalharmos perto deles, pois um
passo em falso pode ser um grande problema, mas nem Lucy parecia muito
convencida disto.
À medida que a iniciação se aproximava do final, Roger fez uma pausa
reverente, olhando para o céu, como que pedindo autorização para falar.
— E agora, o momento de que estou certo todos estão à espera —
arreganhou um sorriso. — AS RÃS! Existem apenas — disse Roger com
um sorriso — duas espécies nativas de rãs neste país: a rã vulgar e a rã
verde. Encontram-se geralmente em águas chãs e nos jardins. Mas aqui
temos um freguês mais exótico. Oh, sim, aqui temos a RÃ DOS
PÂNTANOS. — Aguardou um burburinho de aprovação, ao que Lucy
correspondeu, e prosseguiu. — A rã dos pântanos é um freguês muito
especial. Um companheiro nosso chamado Edward Percy Smith trouxe 12
da Hungria em 1935, e elas escaparam dos confins do seu jardim e
multiplicaram-se. Espertalhonas — disse ele, acenando com a cabeça, como
se as rãs tivessem um qualquer plano para colonizar as
Ilhas Britânicas.
Fomos guiados até às margens do lago principal e instruídos para
permanecermos quietos. Roger devia pesar pelo menos 100 quilos, no
entanto, movia-se com a destreza de um gatuno experimentado.
— Não podemos assustá-las — murmurou, enquanto estudava a cena.
Enquanto ali estávamos, perguntei-me se esta seria realmente a melhor
abordagem para encontrar Andrew. Comecei a antever fins de semana
passados com Roger à espera destas criaturas, com a lama a introduzir-se-
me nas botas e a chuva a arrefecer-me os ossos, e senti-me algo derrotada.
Mas não tinha alternativas melhores. Andrew era a próxima pessoa na
minha lista e, quando tenho um plano, não gosto de me desviar dos meus
objetivos, pois isso desestabiliza tudo.
Após uns 13 minutos de um silêncio desconfortável, com Roger a andar
de um lado para o outro em busca das rãs e Lucy imóvel como uma estátua,
o seu corpo quase sussurrante de expectativa, houve um movimento. O
velhote fez-nos sinal com uma mão e dobrou um dedo para nos chamar. Nós
avançámos em bicos dos pés por entre os juncos, esforçando-nos por
conseguir avistar o prometido animal. A julgar pelas descrições, estava
meio à espera de ver uma criatura gigante e multicolor, com uma pele
reluzente, pulando à volta com alegria e abandono. Em vez disso, curvámo-
nos e vimos uma partícula verde e lodosa, cujo único ornamento eram
algumas linhas verde-claras no dorso. Era a coisa mais inflacionada que
alguma vez vi, e Sophie já uma vez me obrigara, a mim e a Jimmy, a ver A
vida é bela.
Assim que nos aproximámos, a rã correu (uma rã consegue correr?) de
volta para os juncos, e Roger lançou-nos um olhar de reprovação, como se
tivéssemos tentado trespassá-la com flechas.
— Pois é, ainda não aprenderam como elas se comportam. Talvez
consigam ver um acasalamento para a semana! Estamos na época própria.
— Resolvendo jamais saber como era o comportamento de uma rã de
aspeto banal, segui Roger e Lucy de regresso ao centro de visitantes para
recolher as minhas coisas. Quando estávamos para ir embora, espreitei um
quadro de avisos onde estavam penduradas fotografias do pessoal e dos
voluntários, com notas impressas na fonte Comic Sans a explicar quem era
quem. Sem me importar com o que Roger ou Lucy pudessem pensar,
aproximei-me imediatamente. E lá estava ele. Levei um minuto a encontrá-
lo, deixando os meus olhos a procurar o príncipe bem-parecido que vira nas
fotografias. Mas, na fotografia, ele tinha um rabo de cavalo e... um grande
brinco feito a partir de uma concha. Já nem no mercado de Camden se
encontram bugigangas hippies como aquela. Que terrível desgraça se teria
abatido sobre Andrew, para que ele fizesse semelhantes escolhas na vida?
Mas ele tinha ido mais longe, com um alargador de orelha no outro lado e
um colar em madeira que sugeria que tinha tirado e desperdiçado
convictamente um ano sabático.
Olhei para a fotografia por mais tempo do que era provavelmente
aceitável, antes de, como quem não quer a coisa, tentar fazer perguntas a
Roger acerca dos seus colegas.
— Há a Linda, que provavelmente já viste lá fora a arrancar ervas
daninhas. — Baixou o tom de voz. — Sente-se só, pobrezinha, preocupada
com o marido, que sofre de demência.
Interroguei-me se arrancar ervas daninhas do habitat de uma rã seria
realmente preferível, e cheguei à conclusão de que talvez fosse. Antes isso
do que ajudar o homem com que um dia sonháramos a ir à casa de banho.
— Depois há a Phyllis; Phil, como nós lhe chamamos. Tem a língua um
bocadinho afiada, mas tem muito jeito para receber as visitas de estudo. E
depois temos o jovem Andrew. Faz investigação sobre vida selvagem e sabe
muito de conservação. Temos muita sorte de o ter aqui; formou-se em
Ecologia em Brighton e ganhou uma bolsa para fazer identificação de
espécies não-documentadas na Austrália no ano que vem. Já lá têm 240
tipos conhecidos — disse ele melancolicamente.
— Ele está por aqui? — perguntei eu, fingindo desinteresse.
— Hoje não; está num seminário sobre os fungos na população em
geral. — Devo ter parecido alarmada, porque ele apressou-se a acrescentar:
— Nas RÃS, claro! —, e riu-se ruidosamente.
Finalmente liberta do dia de experiência, juntei as minhas coisas,
alegando um compromisso e dizendo que tinha de me despachar. Receava
que Lucy quisesse regressar comigo, e estava horrorizada com a ideia de
passar três quartos de hora num comboio a recapitular os acontecimentos do
dia com alguém que tinha colocado uma fasquia tão baixa para o seu novo
hobby. Mas estranhamente ela ficou, e Roger parecia entusiasmadíssimo
com isso, oferecendo-lhe outra chávena de chá e perguntando-lhe o que é
que sabia sobre tritões. Eu tive esperança de que aquilo não fosse a sua
ideia de uma linha de conversa romântica e fugi.
E foi assim. Todos os sábados ia servir Roger no seu pequeno reino do
tédio. Todos os sábados arrancava ervas daninhas, limpava trilhos e tentava
não me sentir insultada por Lucy estar a trabalhar tão estreitamente com
Roger na manutenção das rãs enquanto eu fazia o trabalho manual. Das suas
cabeças muito juntas, chegavam-me palavras entrecortadas e risos
ocasionais enquanto ele lhe mostrava como armadilhar e marcar as rãs, para
quê nunca chegarei a saber. Soube depois que a rã dos pântanos não é uma
espécie rara ou valiosa, nem está, de modo algum, ameaçada. Não havia
anfíbios que precisassem dos cuidados desvelados de Roger, estas criaturas
do pântano ter-se-iam saído perfeitamente bem sem o olho vigilante de um
homem de 50 anos calçado com o que eu suspeitava serem umas pantufas
Hush Puppies.
A única coisa que me deteve de matar deliberadamente alguns destes
animais à paulada e abandonar o centro de uma vez por todas foi Andrew.
No meu primeiro turno a sério, localizei-o imediatamente, limpando o trilho
que levava aos charcos, trauteando uma música qualquer (de que género
não consegui perceber, visto que os seus enormes auscultadores a abafavam
por completo, mas suponho que seria algo tipo UB40). Esperei pelas
inevitáveis apresentações e, entenda-se, à hora da pausa, Roger trouxe-o
para nos vir conhecer. Enquanto nos cumprimentávamos e Lucy
papagueava sobre quão interessante era o nosso trabalho, eu assimilei-o. O
cabelo comprido, quase até aos ombros, era desmazelado e bastante
espigado. Trazia umas calças caqui e um colete cinzento antigo, e tinha as
unhas incrustadas de terra e sujidade. Mas era espadaúdo e fisicamente rijo,
com os músculos claramente desenhados pelo trabalho manual e não num
qualquer ginásio da moda. Se se tivesse lavado, seria fácil de ver como é
que o meu primo se encaixava na família Artemis. Tinha uma cara
simpática, mas os seus olhos tinham o mesmo matiz cinzento que os do meu
pai, e quando ele se voltou para o lado, vi que tinha o mesmo perfil de
Jeremy. Teria também a mesma arrogância? Era difícil de dizer.
Contei-lhe a mesma história vaga que tinha contado a Roger e a Lucy.
Eu era Lara, uma agente imobiliária do Norte de Londres, tinha acabado de
me separar do meu namorado de longa data, estava à procura de um novo
desafio e tinha um fascínio pela conservação e pela renaturalização desde a
universidade. Tinha dado a mim mesma o nome da mãe dele para ver se
isso o desestabilizava mas ele nem pestanejou. Em vez disso, acenou a
cabeça entusiasticamente e disse-me que também tinha começado a
desenvolver este interesse em particular na universidade. Pelo menos era
um bom começo.
Nesse primeiro dia, Andrew estava ocupado a reparar a vedação que
tinha caído, enquanto o estranho casal formado por Lucy e Roger estava
ocupado com rãs e eu limpava o centro de visitantes. Quero apenas
sublinhar que ainda não tinha visto um único visitante, mas Roger estava
cheio de expectativa com uma visita de estudo na segunda-feira.
— Exatamente aquilo de que os nossos jovens precisam, a grandeza do
ar livre... nada dessa monotonia do centro de lazer.
Eu observei Andrew a trabalhar, reconstruindo a vedação sem esforço,
absorto no seu trabalho. Se não fosse tão parecido com o avô, ter-me-ia
convencido de que encontrara a pessoa errada. Este homem era
despreocupado, simples, trabalhador. Eu era capaz de apostar que ninguém
na família Artemis tinha feito um dia de trabalho físico para aí desde 1963,
a menos que pisar as outras pessoas para obtermos o que queremos possa
ser considerado trabalho árduo.
Tive de pensar num pretexto para ir falar com ele, e como pedir
conselhos sobre a melhor maneira de limpar a cozinha minúscula não iria
funcionar, esperei até que todos viessem almoçar e levei as minhas
sanduíches para o sítio onde ele estava sentado, de olhos fechados, a
assimilar o sol da primavera.
— Está-se tão bem aqui fora — arrisquei. — Estou tão cansada de
trabalhar num escritório atrás de lucros e a aldrabar cinicamente os meus
clientes.
Certo, foi um bocadinho óbvio demais, mas obtive a reação certa.
Muitas vezes, as pessoas só querem que coloquemos à sua frente um
espelho das suas próprias opiniões. Isto verifica-se especialmente no caso
dos homens, e por muito que Andrew se apresentasse como um
ecocombatente de esquerda, a verdade é que não fugia à regra.
— Meu Deus, isso é TÃO verdade! — disse ele, voltando-se para mim,
a sorrir. — Este sítio é o meu santuário. Não consigo suportar a maneira
como nós, enquanto sociedade, fomos aliciados por aqueles que têm tudo,
atrás de ganhos impossíveis, tudo para que as grandes corporações possam
lucrar ainda mais com o nosso trabalho.
Ok, afinal isto ia ser ainda mais fácil do que eu pensava. Ao fim de 13
minutos de conversa sobre o capitalismo e os males do império, falei-lhe
um pouco da «minha» família, os Latimer. Claro que não utilizei os seus
verdadeiros nomes nem expliquei que Sophie e John não eram os meus pais
biológicos, mas contornei isso, falando-lhe da minha família liberal que se
manifestava contra as alterações climáticas e votava no Partido Trabalhista,
na esperança de assim o levar a abrir-se sobre os seus próprios parentes.
— Imagino que com a tua família tenha sido a mesma coisa, enquanto
crescias... — disse eu, enquanto me servia da sua taça de azeitonas
Waitrose. A posição do seu corpo alterou-se um pouco, enquanto coçava o
pescoço com o dedo mindinho.
— Não, na verdade. Eu descobri estas coisas todas por mim próprio.
Não recebi grande coisa dos meus pais no que toca a orientação ideológica.
Demasiado ocupados a divertirem-se, a fazer dinheiro... quer dizer, a gastar
dinheiro, suponho eu. Fui educado nos melhores colégios privados, tive
amas, uma boa casa, e, durante uns tempos, acho que me deixei levar por
essa via. Aos 16 anos, era interno de uma fundação e usufruía de todas as
coisas boas que a minha família tinha para me oferecer. Mas a universidade
transformou-me, fez-me ver a verdadeira desigualdade pela primeira vez na
vida. As pessoas pensam que Brighton é uma cidade rica, estás a ver? Mas
tem verdadeiras bolsas de pobreza, e os outros alunos... bem, eram todos tão
envolvidos e ligados ao mundo real, estás a ver? Fez-me sentir vergonha de
mim mesmo, estás a ver?
Assumi caridosamente que os constantes «estás a ver» eram um tique
nervoso e esforcei-me por ver para além disso.
— Ainda bem para ti — disse eu, apertando-lhe o braço. — É preciso
coragem para abrir realmente os olhos. — O que, na verdade, não é bem
assim, pois há sempre um fundo fiduciário de muitos milhões de libras para
nos respaldar quando nos cansamos de viver como as pessoas comuns, mas
ele pareceu apreciar as minhas palavras, esfregando distraidamente o sítio
onde eu lhe tocara.
A partir daqui, estava no caminho certo. Ainda foram precisas mais
algumas semanas a arrancar ervas daninhas até lhe propor tomar um copo
depois do trabalho, mas ele aceitou com entusiasmo. Infelizmente, Lucy
também. E, pior ainda, Roger também quis vir. Acabámos todos num pub
soturno perto do centro que eu até acho que seria simpático, se não tivesse
sido cercado por uma rotunda recentemente (e, sejamos honestos, se a
clientela fosse completamente diferente e a lista de vinhos tivesse mais para
oferecer do que um chardonnay australiano momo). A conversa foi
sobretudo sobre as malditas rãs, e Andrew fez questão de nos falar da sua
coleção particular.
Roger revirou os olhos.
— Este rapaz acha que as espécies locais não são suficientemente
interessantes, não é, companheiro? Sempre à procura de algo um pouco
mais... exótico.
Disse isto como se uma rã estrangeira fosse algo de perigoso que
pudesse aliciar Andrew a afastar-se das variedades decentes e trabalhadoras
que se encontravam nos nossos pântanos. Roger era resolutamente a favor
da saída da UE. Eu fingi-me interessada, e encorajei o meu primo a dizer
algo mais, enquanto Roger se voltava para Lucy e tentava iniciar uma
conversa sobre o húmus. Andrew baixou a voz e inclinou ligeiramente a
cabeça para mim.
— O centro é um sítio encantador, e o Roger é muito bem-intencionado.
Mas ele tem razão, estou mesmo interessado nas espécies mais exóticas, tal
como ele diz. Pode parecer loucura... — baixou a voz enquanto eu o olhava
com interesse —, mas andei a estudar o que as rãs podem fazer pela
depressão. Já ouviste falar do Kambo?
Não, Andrew, claro que não, raios te partam. As pessoas normais não
pensam em rãs e depressão. As pessoas normais não passam os dias em
pântanos sombrios à beira de uma autoestrada à espera de visitantes que
nunca aparecem. Mas, por outro lado, também é verdade que as pessoas
normais não tentam assassinar as suas famílias inteiras, por isso devia
mesmo aprender a julgar menos os outros e a ouvir mais. Abri muito os
olhos.
— É uma secreção de um tipo de rã e há montes de investigações sobre
a forma como ela ajuda a curar a depressão e a adição. Estamos todos tão
dependentes da medicina ocidental que nos é impingida pela grande
indústria farmacêutica, mas está-se a tornar muito claro que a natureza nos
oferece melhores formas de atacar as nossas lutas humanas. Kambo,
caramba... — voltou a baixar a voz. — Tem resultado miraculosamente com
tantas pessoas. — Olhou de relance para Roger, para se certificar de que ele
não estava a ouvir, e voltou-se novamente para mim. — É por isso que
tenho estas rãs em casa. Estou a tentar aperfeiçoar a dosagem. Um
bocadinho a mais e uma pessoa começa a vomitar descontroladamente. É
um processo delicado. E eu estou a criá-las para aumentar a minha
produção e poder ajudar mais pessoas.
Por esta altura, já não precisava de me fingir interessada. Mas que
caminho tão estranho que Andrew tinha decidido seguir, drogar-se com
sumo de rã... Decerto que haveria um terapeuta simpático em Harley Street
capaz de lidar com os seus problemas de uma maneira menos tresloucada...
Mas, mais uma vez, os miúdos ricos sempre tentaram trilhar o seu próprio
caminho, inibidos por uma falta de iniciativa e níveis de conforto que fazem
o trabalho árduo parecer desnecessário. Alguns tomam-se promotores de
clubes. Outros, artistas que fumam erva. Porque não um traficante de rãs?
Bombardeei-o de perguntas e disse-lhe que o achava corajoso. Não me
envergonho de dizer que me abri sobre a minha luta pessoal contra a
depressão e me mostrei vulnerável diante dele. Não importava que fossem
só disparates e que, apesar de ter muito boas razões para experimentar
sentimentos de tristeza, sempre tive a sorte de conseguir fintá-los. Os
homens gostam que as mulheres se sintam vulneráveis. Gostam de sentir
que podemos precisar de ajuda, apesar da confiança que apresentamos a um
nível superficial.
Quando saímos do pub, senti que o tinha conquistado. No entanto, tinha
os ombros tensos e os punhos cerrados enquanto me encaminhava para a
estação. Ele era um homem simpático, pensei eu, embora bastante ingénuo.
Não sentia o ácido a arder-me na garganta quando pensava nele como
acontecera quando o conjurara como uma imagem do seu pai ou avô. E esse
sentimento, essa raiva constantemente alimentada que me fazia arder as
orelhas como se estivessem em chamas, tinha sido isso que tornara fácil
matar Jeremy e Kathleen. Era isso que tinha tornado a coisa divertida.
Deixei de ter essa sensação corrosiva no meu aparelho respiratório durante
várias semanas. Como é que podia gozar deste novo desafio se não
conseguia segregar o ácido?
No turno seguinte, já tínhamos trocado números de telefone (um dos
perigos de um telefone descartável é nunca sabermos o nosso próprio
número de cor) e mandámos mensagens uns aos outros durante a semana
com hiperligações para artigos de investigação que achássemos que os
outros poderiam gostar. Eu não li nada do que ele sugeriu, mas era fácil
reagir apropriadamente passando uma vista de olhos pela conclusão. Deus
abençoe estes académicos absurdos que passam anos a fazer uma pesquisa
de fazer anestesiar o cérebro que ninguém jamais irá ler, mas que se
lembram de lhe juntar uma nota de rodapé que resume tudo em dois
minutos. A troca de mensagens poderá dar a impressão de que havia algum
envolvimento romântico entre nós, mas felizmente acho que Andrew
gostava apenas de ter alguém que estivesse disposto a tomar parte no seu
interesse minoritário por anfíbios e alucinogénios. A alternativa anterior
teria acrescentado uma dimensão horrenda àquilo que eu esperava que
pudesse vir a ser um processo de captura e morte bastante simples e direto.
Passadas quatro semanas, já éramos bons amigos. Eu sabia onde ele
morava (em Tottenham, numa casa partilhada com outros quatro colegas,
todos a fazer doutoramento), qual era o seu romance preferido (uma coisa
qualquer de William Boyd, mas já me esqueci), e que era estritamente
vegano. Aos sábados, depois do trabalho, começámos a ir ao nosso pub
sombrio, onde bebíamos até ficarmos bastante embriagados e eu me punha
a contar piadas sobre Roger até ele me mandar calar. Por esta altura, já sabia
como o iria matar. Tal como com os meus avós, o plano era vago e
potencialmente falível, mas eu estava confiante depois do sucesso da minha
primeira razia, e Andrew era completamente confiável. Um belo sábado,
depois do pub, sugeri voltarmos ao centro e levarmos uma garrafa de vinho
connosco. Estava uma noite amena, e viam-se as estrelas no céu, uma
raridade nesta cidade envolta em poluição atmosférica. Ele estava a fim,
embora um pouco nervoso.
— O Roger matava-nos — riu-se. — Mas acho que não faz mal
nenhum. — Não era um grande violador de regras, o meu primo, apesar das
suas muito alardeadas convicções radicais. Suponho que é isso que 14 anos
de educação em colégios privados fazem muito bem. Os pais não arrotam
perto de 250 mil libras na esperança de que o filho venha a subverter as
regras tácitas da sociedade britânica.
A segurança no centro dos pauis era... nula. Não havia segurança. Não
havia circuito fechado de televisão (que havia lá para roubar? Meia dúzia de
vairões?), não havia arame farpado. Andrew usou a sua chave e já
estávamos lá dentro. Fomos até ao charco principal e sentámo-nos numa
pequena secção de passadiços que Roger tinha instalado para poder
observar as rãs mais facilmente. Eu abri a garrafa de vinho e beberriquei da
garrafa. Enquanto a passávamos um ao outro, ventilei o tema que me
andava às voltas na cabeça.
— Posso experimentar a droga de rã, Andrew? Falaste tanto nisso que
parece ser uma aventura que eu não perdoaria a mim própria falhar. — Fez-
se um silêncio. Depois ouvi-o respirar fundo e expelir o ar rapidamente.
— Acho que não, Lara. Ainda não sou perito e estou a tentar aperfeiçoar
a dosagem. Na semana passada, tomei demasiado e desfaleci a frio durante
um quarto de hora. É tão impreciso. Não te quero usar como cobaia.
Eu assenti com a cabeça e emiti alguns sons tranquilizadores.
— Compreendo perfeitamente. Não quero pressionar-te de maneira
nenhuma. Pensei que pudesse ajudar-me de alguma maneira com os meus
ataques de pânico... — Calei-me, esperando tirar algum partido da sua
inépcia inata para falar inglês. Ele voltou a suspirar.
— Não sabia que tinhas ataques de pânico. Eu também tenho, desde
miúdo. Costumava dizer à minha mãe que não conseguia respirar, mas não
conseguia explicar-me em condições. E voltaram em força recentemente. —
Olhou para mim com um ar compreensivo e afagou-me o polegar
desajeitadamente.
— O que é que aconteceu? — perguntei, olhando para ele com uma
dose adequada de preocupação. Descobri que os homens gostam que
olhemos para eles intensamente. Mostra-lhes que estamos realmente
absorvidas pelo que estão a dizer.
— Os meus avós tiveram um acidente... — Baixou o olhar e largou-me
a mão. Eu não insisti; em vez disso, bebi mais bocadinho de vinho e
mergulhei os dedos no charco.
— Ei! Será que esta água é muito profunda? O Roger comporta-se
sempre como se o monstro de Loch Ness pudesse estar aqui escondido.
Ele riu-se e puxou o cabelo do rosto, fazendo tinir o horrível brinco de
concha. A tensão dissipou-se.
— Este sítio é a vida dele. Ele gosta de imaginar que tudo aqui é maior
e mais vigoroso do que é na realidade. Os charcos são todos bastante
baixos, apesar de eu já ter atravessado este e ter ficado surpreendido ao ver
como era fundo lá no meio; provavelmente, dava-te pela cintura. E tu não
queres que o Roger te apanhe. Pensa nas rãs, Lara — disse ele num tom
falsamente alarmado.
Acabámos a garrafa e eu disse que era melhor chamar um táxi. Andrew
ajudou-me — eu estava mais embriagada do que pensava —, e fomos a
cambalear até ao portão da entrada, por entre risadinhas e interjeições para
nos mandarmos calar um ao outro. Ofereci-me para o deixar em casa, mas
ele disse que queria apanhar ar, e eu deixei-me cair dentro de um Honda
Prius conduzido por um homem que ia a ouvir um estranho medley de
músicas acústicas. Alguns minutos antes de chegarmos à porta do meu
apartamento, ouvi o telemóvel tinir no meu bolso. Desajeitadamente,
desbloqueei o ecrã e espreitei.
«OK, vamos a isso. No próximo sábado, depois do trabalho. Traz o
vinho, acho que um rosé iria muito bem. Mas é SEGREDO ABSOLUTO.
Ninguém sabe que eu faço isto.»
Apesar da terrível interpretação de «All that Jazz» que estava a tocar
quando chegámos ao nosso destino, consegui sorrir. Apanhei-te.
***
A semana seguinte é difícil. Tenho dificuldade em dormir, trabalhar,
fazer seja o que for, exceto pensar no que vai acontecer no sábado.
Recordo-me de um momento, quando tinha 17 anos, em que Jimmy e eu
tínhamos sido convidados para a festa de aniversário de um miúdo da escola
numa discoteca em Finsbury Park. Ah, o glamour! Passámos semanas a
arranjar bilhetes de identidade falsos e a consultarmo-nos uns aos outros
sobre o que é que iríamos vestir. Inventámos uma mentira eloquente para
contar a Sophie e ensaiámo-la ao pormenor para não sermos apanhados nos
preparativos, como sucede a tantos adolescentes patéticos. A
responsabilidade recaiu toda sobre mim, aliás, pois Jim teria sido apanhado
num instante. Era péssimo a mentir. Na segunda-feira anterior, estávamos
tão excitados de expectativa que nem consegui dormir. O meu estômago
dava voltas e a adrenalina infíltrava-se-me nos membros, e eu dava voltas e
mais voltas na cama, a cismar se o nosso plano iria resultar — se
conseguiríamos entrar na discoteca e ter a noite que tínhamos planeado. Foi
terrível. Por fim, conseguimos e tudo correu na perfeição, mas a festa foi
uma enorme desilusão e ficámos pendurados à espera do autocarro da uma
da manhã debaixo de uma chuva de granizo, com Jimmy a tentar não ficar
maldisposto e eu a tentar não me aproximar dele caso ele ficasse. Tanta
preocupação e ansiedade para quase nada. Esta sensação é semelhante,
simplesmente, o que está em jogo é muito mais importante, e eu recuso-me
a voltar a ficar à espera de autocarros noturnos.
Os preparativos para sábado têm menos a ver com o que vestir e mais
com garantir que o vinho que eu comprar seja uma garrafa com tampa de
rosca e que eu tenha umas luvas discretas — o que irei comprar na segunda-
feira. Depois, terei de aguentar cinco dias com os pés irrequietos,
pensamentos cavalgantes e uma imagem de um Andrew sorridente a
infíltrar-se no meu cérebro nos momentos mais inoportunos. Honestamente,
não me lembro de Patrick Bateman alguma vez ter tido assomos de culpa
momentânea ou um sentimento corrosivo de transgressão moral. É muito
mais difícil levar a cabo este plano com um espírito genuinamente jovial do
que eu pensava.
Não obstante, o sábado chega, e em vez de apanhar o comboio para o
centro, como costumo fazer, faço o caminho todo a pé, esperando acalmar
os nervos com o ritmo dos meus passos. O que até resulta bastante bem, na
verdade, e chego com um sorriso, pronta para começar a trabalhar na
pintura da porta de acesso especial à casa de banho, conforme Roger me
instruíra. Andrew chega atrasado, e, durante uma meia hora de grande
stress, temo que ele não apareça. Mas depois lá aparece, com o cabelo atado
com uma tira de uma t-shirt velha e vestido com um par de calções feitos de
retalhos que parecem, suspeitosamente, consistir em flanelas antigas. O seu
pai deve ter uma conta num alfaiate em Jermyn Street, penso eu,
estremecendo. Que desperdício trágico. Aceno-lhe, mas não paro de pintar.
Não é preciso mostrar-me demasiado ansiosa sobre o que vai acontecer
mais tarde. À medida que o dia se arrasta, vai ficando mais calor. Roger,
Lucy e a senhora de idade que está a fugir do seu marido decrépito estão
sentados nos bancos igualmente decrépitos à entrada do centro de visitantes
a escreverem nomes de plantas em paus para espetar na terra, como se
estivéssemos numa propriedade de uma Reserva Nacional. Dou graças a
Deus pelo Sol. A chuva ter-nos-ia retido no interior do centro, e o plano que
tenho em mente iria por água abaixo.
Acho que nunca trabalhei tão arduamente como hoje. Duas camadas de
tinta à prova de água e ainda uma boa raspagem das paredes interiores.
Nada como a promessa de um crime para impulsionar a nossa
produtividade, ao que parece. Às cinco da tarde, Roger prepara um chá, e
todos pousamos as nossas ferramentas para o tomar no alpendre, o que sabe
bastante bem, na verdade. Como se eu fizesse parte de algo. Algo de
mundano e completamente absurdo, mas que não o é tanto assim quando
realmente o experimentamos. Houve poucos momentos como esse na minha
viagem — alturas em que me perguntei se Deus me estaria a dizer para
abandonar esta via e abraçar uma vida diferente. Mas depois lembro-me de
que não acredito em Deus e de que se Ele realmente existir, então, foi Ele
quem me deu esta vida, para começar. O que é que Ele podia saber?
Encaminhamo-nos para o pub às seis da tarde, com Roger e Lucy
colados a nós. Lucy passou por uma verdadeira revelação de si mesma
durante o tempo que passámos no centro. A sua onda de herbívoro sempre
ligeiramente nervoso desapareceu. Agora anda de bandana e macacão, com
o rosto bronzeado pelo trabalho ao ar livre. Será Roger uma figura paternal
para ela? Não consigo compreender muito bem. Tendo em conta a hipótese
alternativa, espero ardentemente que sim.
O pub está razoavelmente calmo, apenas algumas mesas de marginais, e
um jovem a beberricar uma caneca de cerveja com um livro à frente,
parecendo vagamente deslocado. Este não é o tipo de estabelecimento
próprio para uma pessoa vir ler e refletir. Andrew e eu bebemos uma garrafa
de branco rançoso, ao passo que Lucy e Roger vão bebendo dois panachés.
A conversa é um pouco forçada. Não somos um grupo espontâneo nos
melhores momentos, muito menos agora, que estamos em contagem
decrescente como dois amantes desejosos de ir para casa fazer amor.
Ansiosa por pôr as coisas em marcha, mando vir mais uma garrafa e
anuncio espaventosamente que preciso de mais um copo para ganhar
coragem para um encontro que vou ter mais tarde. Roger fica interessado,
aconselhando-me a «deixar o tipo pagar» e fazendo sugestões sobre formas
de encetar conversa, uma das quais, e não estou a brincar, seria perguntar-
lhe qual é o seu jogo de mesa preferido.
— O meu favorito é... e isto é controverso... o Monopólio! — Ninguém
lhe pergunta porque é que é controverso, e a sua expressão de desilusão diz
tudo.
Andrew começa a bater com os pés no chão e eu começo a recear que
ele se retire se nos demorarmos muito por aqui, por isso decido ser corajosa.
Esvaziando o meu copo, levanto-me e sorrio vivamente.
— Bem, desejem-me sorte. Tenho de estar no Angel às oito e meia,
esperemos que ele valha a pena. — Atiro a mala para cima do ombro e dou
uma palmada nas costas de Andrew com entusiasmo. Roger ergue-me o
copo e Lucy acena-me sem grande entusiasmo. Encaminho-me para fora do
pub, viro na rua principal e volto em direção ao centro. Decido não lhe
enviar mensagem, dando-lhe a oportunidade de assumir as rédeas da
situação. Em vez disso, sento-me na curva, a beber de uma garrafinha de
vinho que trouxe comigo.
Não costumo beber de um recipiente que me grita ao ouvido de maneira
tão óbvia «pede ajuda», mas tenho de trazer o meu vinho à parte. Aquilo
que escolhi para Andrew está intensamente fortificado com vodca e eu
preciso de manter as ideias claras. Agora percebem porque é que preciso da
garrafa com tampa de rosca: impossível adulterar as bebidas com rolhas de
confiança. Um terço da garrafa foi para a minha garrafinha, e atestei o resto
com a melhor bebida espirituosa que consegui encontrar. Não é que ele vá
acordar de ressaca amanhã, mas parece ser mais respeitoso não lhe dar a
variedade decapante. A sua última refeição e essas cenas. Apesar de
aparentemente a América já não dar últimas refeições aos condenados.
Houve um tipo que mandou vir dezenas de quilos de comida e depois
recusou-se a comer o que quer que fosse. Os guardas ficaram tão furiosos
com esta manifestação de independência que agora já ninguém tem direito a
gozar desse prazer. Os seus colegas de prisão irão amaldiçoar o seu nome,
mas eu admiro a determinação desse homem em mandar toda a gente
passear até à última.
Após o que estimo ter sido meio copo, vejo uma figura vacilar ao fundo
da rua em direção a mim. Há homens que andam com um ar tão
desengonçado que parecem ter sido arrastados por um menino de colo.
Andrew é um deles. E se restassem quaisquer dúvidas, a silhueta do cabelo
diz-me que é ele. Ele vir a cambalear ligeiramente sugere que terá acabado
com a segunda garrafa de vinho. Levanto-me e rio-me, acenando-lhe com a
minha mão livre.
— Vai-te lixar por me teres deixado ali — diz ele, socando-me
levemente no ombro. — O Roger não se calava com os horários do centro
de reciclagem e a Lucy não fez nada para o deter. Ela quase parece achar
aquilo encantador...
Deixa cair a mochila no chão e vasculha os bolsos à procura das chaves.
Quando entramos, larga o saco em cima da mesa principal e eu vou à
cozinha procurar duas canecas. Afinal, não posso deixar que ele veja que
estamos a beber coisas diferentes. Quando as encontro, já ele está lá fora a
começar a preparar-se. É com um assomo de divertimento que noto que ele
parece estar a usar luvas de vinil. Ambos iremos tomar as nossas
precauções para esta noite, ao que parece.
— Vou-te passar o líquido com um conta-gotas, OK? Não me pareceu
que estivesses com vontade de lamber uma rã. — Ele ri-se, mas eu bem
vejo que continua ansioso.
— Não te preocupes com isso agora; prepara tudo e depois vamos beber
mais um copo. Podemos tomar isso mais tarde — digo eu com um sorriso,
estendendo-lhe uma caneca com a palavra «rã...tástico» gravada num dos
lados. Ele aceita-a com gratidão e dá um grande trago. Fico tensa,
desconfiando que ele dê pelo teor alcoólico pouco habitual da bebida, mas
ele limita-se a dar mais um trago e pousa-a no banco que está ao seu lado.
Enquanto ele decanta a pasta de rã, falamos sobre o seu trabalho de
campo e os sítios onde ele quer ir depois da Austrália. Apercebendo-me de
que não tenho nada a perder, pergunto-lhe se os pais apoiam as suas
ambições.
— Nós não nos falamos — diz ele abruptamente. — Já há alguns anos
que não nos falamos. É melhor assim. A minha família é tóxica. — E não é
que é verdade?, penso eu, e passo-lhe a mão pelo braço.
O que é que aconteceu?
— Ah, nada. Tudo. Eu é que nasci das pessoas erradas. Costumava
brincar e dizer que tinha sido trocado à nascença e que o verdadeiro filho
dos meus pais estava numa praia qualquer ao volante de um Bentley. Eles
não são más pessoas... quer dizer, a mãe não é. Ela até é encantadora. Mas
as expectativas que eles tinham para mim giravam todas à volta do dinheiro
e do negócio do meu tio, e isso era simplesmente terrível e vicioso. Ainda
me mantive em contacto com eles algum tempo depois de lhes anunciar que
não iria trabalhar para a família, mas tornou-se demasiado difícil. Eles
faziam pressão, dizendo-me que eu estava a tomar uma decisão estúpida e
que me estava a comportar como uma criança mimada. — Emborcou mais
vinho. Toda a gente devia beber vinho de uma caneca. Faz mesmo com que
exageremos.
Andrew é daqueles que se abre mesmo quando descontrai. Enquanto eu
atesto o seu vinho imbuído de vodca, ele explica-me como o pai vivia
consumido por ciúmes do seu irmão mais velho, como a mãe era
emocionalmente negligenciada e como a irmã tinha morrido aos 9 meses,
fazendo com que ele se sentisse como se tivesse de viver por ambos. Eu
faço o papel de amiga silenciosa, mas solidária, ao mesmo tempo que, por
dentro, agradeço ao universo por só ter de tratar de um primo. Por esta
altura, já passei a beber água, mas Andrew está tão bêbedo que seria
impossível reparar. Está demasiado mergulhado no modo confessional,
pensando que me pode confiar os seus pensamentos mais profundos e
complexos. Os terapeutas merecem cada tostão que ganham. Não o quero
apressar, mas a conversa sobre a família não é suficientemente detalhada
para me ajudar e quaisquer perguntas que eu faça esbarram em respostas
vagas e distorcidas. Chegou a hora do visco de rã, antes que ele esteja
demasiado embriagado para funcionar e eu tenha de esperar mais uma
semana. Sinceramente, não consigo aguentar mais uma noite no pub com
Roger.
Graças a Deus, a educação do colégio privado que lhe foi inculcada à
força parece não esmorecer com o álcool, e quando eu relembro Andrew do
plano original, ele mostra-se muito solícito. Os conta-gotas previamente
preparados são postos em cima da mesa, e Andrew explica-me que terá de
me fazer uma pequena queimadura na pele para permitir que o soro entre no
corpo mais facilmente.
— Onde é que queres ficar marcada? — pergunta ele. — A maior parte
das pessoas escolhe um sítio fácil de tapar.
Eu decido-me pelo pé, pois não quero ter de me lembrar de encobrir ou
justificar uma marca no meu corpo. Descalço-me e enrolo as meias,
enfiando-as dentro dos ténis. Espreito à minha volta, certificando-me de que
não deixei nada meu esquecido no chão. Não vou ter muito tempo para me
demorar por aqui depois de acabarmos. Depois de ele acabar. A garrafa de
rosé está vazia, e eu coloco-a junto da minha mala, enfiando a caneca numa
bolsa lateral para a levar de volta para a cozinha.
— Tens de o fazer comigo, Andrew — relembro. — Sou demasiado
cobardolas para o fazer sozinha. Fá-lo ao mesmo tempo. Saltamos juntos.
Ele abana um dedo em frente à minha cara e sorri, empurrando uma
trança solta para trás da orelha.
— Não te preocupes, Lara, eu estou habituado a isto. Eu oriento-te na
tua viagem. — Uf. Viagem... Viagem é quando uma pessoa passa de um
lugar físico A para um lugar físico B. Que é o que lhe vai acontecer, de
certa maneira.
Ele opta por usar um sítio no braço, debaixo de uma tatuagem daquilo
que aparenta ser um caça-sonhos índio, mas talvez seja caso para dar graças
a Deus por não ser um símbolo chinês. Andrew saca dos fósforos, acende
dois, segurando-os junto à planta do meu pé esquerdo. A sensação é de
calor, mas não é dolorosa — um sinal claro de que estou necessitada de uma
pedicura como deve ser. Depois, aplica o líquido.
— Deita-te — ordena ele. — Espera uns minutos e respira.
Eu fico a olhar para o céu noturno, vendo-o queimar a sua própria pele
pelo canto do olho. Oiço-o expirar e sinto-o deitar-se junto a mim.
— Se precisares de vomitar, diz-me, que eu viro-te de lado. Ainda bem
que temos um lago.
Depois ri-se durante o que me parece ser uma eternidade, antes de ficar
em silêncio. Ficamos os dois ali no escuro, e esperamos. Não sei quanto
tempo é que estamos ali estendidos. Sinto o calor perpassar sobre mim, uma
sensação de conforto percorrer-me o corpo, como se estivesse a ser
abraçada por tudo o que me rodeia, suspensa pelo vento.
— Estou a sentir — sussurro, e volto-me para ele.
Andrew tem os olhos fechados e está a gemer suavemente. Eu decido
que não me quero mexer. Não quero quebrar a ligação que sinto com tudo à
minha volta. A palração constante na minha cabeça mergulha em silêncio e
agora oiço apenas os batimentos do meu coração. Pergunto-me se Andrew
também os está a ouvir. Lentos e constantes, pulsando através da minha
pele. Sinto um animal a passar-me por cima dos dedos e olho para baixo. É
a mão dele, ligando-se com a minha. Solidariedade. Uma espécie de
afinidade. E sabe bem.
NÃO.
Viro-me e uso a força das nossas mãos entrelaçadas para o empurrar
para a água. O corpo dele está flácido por causa do relaxamento e eu mal
tenho de aplicar força, o que calha bem, porque também me estou a sentir
bastante tonta. Enquanto ele é projetado pelo ar, com o corpo a desenrolar-
se, os nossos olhos fixam-se por instantes e ele desperta do seu delírio por
um momento. O seu rosto contrai-se, surpreendido, a sua boca abre-se como
se estivesse prestes a gritar qualquer coisa. Mas não sai. O vinho e o sumo
de rã fizeram o seu trabalho e ele cai de cabeça no charco. Eu levanto-me
no alpendre e atiro o pé para dentro de água, empurrando a sua cabeça para
baixo enquanto me apoio na esquina de madeira para aplicar maior pressão.
Consigo ver as minhas unhas dos pés a brilhar ao luar. Apesar de ele ainda
sacudir os pés por breves instantes, há um mínimo de agitação e salpicos até
a água ficar calma de novo. Não sei quanto tempo é que demora, mas estou
com a sensação de estar a observar tudo à distância, por isso agacho-me
para olhar para o corpo na água, procurando um qualquer sinal de vida.
Provavelmente não é aconselhável cometer um homicídio sob a influência
de uma droga de anfíbio não-testada. Negligente, na verdade. Mas uma
pessoa trabalha com aquilo que tem nesta vida.
Quando estou segura de que ele não irá ressurgir inesperadamente de
dentro de água, como é da praxe em quase todos os filmes de terror, inclino-
me para o charco e passo-lhe a mão pelo pescoço. Molho a cara na água e
levanto-me, volto a calçar os ténis, tiro uma toalha do meu saco e limpo o
alpendre, deixando a garrafa e uma ampola de soro. O resto dos detritos vai
para um saco de plástico. Pego no seu telefone, que o tinha visto
desbloquear utilizando a data do seu aniversário como código (até os
hippies têm iPhones), e apago as nossas mensagens mais recentes. Tinha
tido o cuidado de não mencionar especifícamente os nossos planos nas
mensagens, mas ele tinha-se referido ao nosso encontro e eu não quero
perguntas. Observo a cena, usando a lanterna do meu telemóvel, enquanto
Andrew flutua atrás de mim, e estou satisfeita porque parece estar tudo
bem. Parece acidental. Parece trágico, mas não suspeito, um equilíbrio
perfeito.
Levo a minha caneca de volta para a cozinha, lavo-a desajeitadamente,
seco-a e volto a colocá-la no escorredor. Depois, abandono o centro, puxo o
meu capuz sobre a cabeça e caminho resolutamente em direção à estrada
principal, onde tenho um Uber à minha espera. Detenho-me por um instante
na estrada e olho em redor, com uma estranha sensação de que tenho
alguém atrás de mim. Mas as drogas estão a fazer-me sentir coisas que
provavelmente não existem, e espanto essa sensação do meu espírito. O
carro serpenteia pelas tranquilas ruas secundárias antes de chegar às ruas
principais, onde os foliões de sábado à noite saíram em força, as suas
figuras a desandar e a confundirem-se umas nas outras enquanto
avançamos. Durante toda a viagem de regresso, respiro profundamente pela
janela aberta para me acalmar, e aperto as contas do colar que retirei do
pescoço de Andrew enquanto ele estava na água. Mais uma lembrança,
suponho eu. Era uma mania, na verdade, uma coisa retirada dos filmes
sobre assassinos em série. Mas eles eram homens essencialmente solitários
que o faziam por impulsos sexuais, e eu estou a fazer isto com um objetivo
em vista. E não será um daqueles casos que acabam com uma fotografia do
meu rosto a ser exibida num programa do Canal 5 sobre assassinos
sedutores.
Saio do Uber uns bons dez minutos antes do meu apartamento e atiro o
saco com as toalhas e as luvas para um caixote do lixo. Faço uma pausa e
sustenho a respiração por momentos, sentindo-me como se não conseguisse
fazer chegar ar suficiente aos pulmões, até decidir que iria permitir-me
sentir-me triste durante a caminhada até casa. Durante exatamente nove
minutos deixo as lágrimas correrem-me pelas faces, e suporto o
arrependimento que inunda os meus pensamentos. Enquanto rodo a chave
da porta, esfrego os olhos com a manga do casaco e abano a cabeça. Basta.
Um copo de vinho e dois episódios de Golden Girls mais tarde, sinto-me
como se o efeito da droga tivesse diminuído o suficiente para eu conseguir
adormecer. O arrependimento que tinha sentido no caminho para casa
atravessou o meu sistema de uma maneira consideravelmente rápida, e o
meu último pensamento antes de adormecer não foi sobre o meu doce
primo, agora de cabeça enterrada num charco lamacento. Enquanto entalo a
parte de baixo do edredão debaixo dos pés e enfio uma almofada debaixo da
coxa num ângulo específico para me sentir confortável, o meu penúltimo
pensamento é que irei experimentar um bom brunch no dia seguinte. E
desligo, a pensar se a seguir irei à pedicura, só para me ver livre de
quaisquer restos de pasta de rã. Os cuidados pessoais são a última tendência
consumista impingida às mulheres sob as roupagens do empoderamento.
Mas isso não significa que não seja uma coisa boa. Afinal de contas, é
importante olharmos por nós próprias depois de uma semana difícil no
trabalho.
 
Capítulo 6
 
A pior coisa numa prisão não são as horas de espera na nossa cela, nem
a comida, nem os cortes da austeridade e da privatização que levaram a que
tivéssemos palermas incompetentes vestidos com fardas baratas incumbidos
de tratar de verdadeiros criminosos. Não são os edifícios velhos e gelados
onde as ratazanas são tão prevalecentes como na antiga prisão de
Marshalsea. Sinceramente, era capaz de aguentar estas coisas até ao fim, na
esperança de um dia ser libertada e nunca mais ter de voltar a dormir
debaixo de uma mulher que escreve com corações nos pontos dos iis. A pior
coisa na prisão é que, de tempos a tempos, um governante ou um político
decide que nós, cativos, precisamos de alguma coisa para enriquecer as
nossas almas, para nos tornarmos melhores, para deixarmos de ser tão rudes
e aterrorizadores. A partir desse pensamento repentino, surge um plano. Isto
envolve normalmente um qualquer pateta de esquerda (nunca temos um
conservador a querer mostrar-nos que a cerâmica pode aplacar os nossos
sentimentos de revolta), oferecendo-se como voluntário para dar uma aula
(que é sempre obrigatória) em que somos encorajados a pintar os nossos
sentimentos ou qualquer outro disparate do género.
Eles vêm invariavelmente a uma única aula, após o que ou ficam
demasiado impressionados para voltar ou então convencem-se de que já
fizeram o suficiente para sinalizar a sua virtude a esse respeito durante o
resto do ano. Se forem realmente empreendedores, escrevem um artigo para
o Guardian sobre a necessidade que os prisioneiros têm de respeito e
educação, como se já trabalhassem nas prisões há quatro anos e não há
apenas uma hora num período de trabalho tipicamente calmo.
Hoje fomos todas em fila para a ala da sala de aula, onde fomos
submetidas a uma hora de sofrimento numa lição sobre fabrico de colheres.
Honestamente, nem um homicídio deveria fazer merecer tal castigo. O
único ponto alto foi pôr as mãos numa faca como deve ser pela primeira vez
em muito tempo. É uma pena que eles tenham tanto cuidado a contá-las
quando as devolvemos. Kelly está com imensa inveja por eu ter feito parte
do grupo que foi obrigado a participar neste disparate, e faz um grande
alarido com a colher de pau que eu fabriquei. Teria adorado a aula de hoje,
diz, quando me cruzo com ela depois, e «Que presente fabuloso que essa
colher de pau dava para a tua mãe». Eu olho para ela sem expressão,
perguntando-me de quanto tempo é que ela vai precisar até se lembrar de
que a minha mãe já morreu, mas ela não chega a tirar essa conclusão.
Assim, em vez disso, atiro-lhe a colher para a mão e digo-lhe que finja que
foi ela que a fez e a ofereça à sua própria mãe. Ela fica encantada, e eu
interrogo-me, e já não pela primeira vez, que tipo de mulher será a mãe de
Kelly. Para que alguém fique maravilhado com uma colher de pau tosca
feita na prisão pela sua filha, é preciso ter expectativas muito baixas. A mãe
pode juntá-la ao pássaro bordado em ponto de cruz que recebeu no Natal, e
ao açucareiro deprimente feito com algo parecido com plasticina com que
foi presenteada no aniversário. A única diferença para a colher é que esta
tem algumas marcas especiais na madeira. Assemelham-se um pouco a
hieróglifos, mas, na verdade, são as iniciais de todas as pessoas que eu
assassinei, apesar de ninguém se dar ao trabalho de as observar tão de perto.
Não foi um gesto particularmente sofisticado, mas já tinha acabado de a
talhar muito antes das outras idiotas da turma, e não queria desperdiçar o
tempo que tinha para trabalhar com a lâmina. Pergunto-me se a mãe de
Kelly irá apreciá-las.
De volta à minha cela, tiro o papel e a caneta de dentro de um par de
meias enroladas. Não há privacidade nenhuma, especialmente com uma
colega de cela como a minha. Aqui, toda a gente tenta apoderar-se dos
pertences dos outros, toda a gente tenta descobrir os nossos segredos para
poder tirar proveito disso, todos querem conhecer as nossas histórias. Kelly
nem sequer se dá ao trabalho de esconder o diário — aquela mulher contar-
nos-ia tudo sobre a sua vida se fôssemos suficientemente estúpidos ou
estivéssemos entediados a ponto de lhe perguntar. Se fizermos uma
pergunta a Kelly, é provável que nunca mais voltemos a cair no erro de o
fazer outra vez. Já vos contei porque é que ela aqui está? Não é por
violência ou por roubo, como a maior parte de nós. Kelly era uma
chantagista. Tinha um bom método de fazer com que homens casados lhe
enviassem fotografias, fotografias essas que as suas mulheres
provavelmente não gostariam muito de ver. Começou modestamente, em
aplicações de encontros, e tornou-se mais arrojada quando descobriu o
Twitter e começou a tomar por alvo homens com perfis mais proeminentes.
Ela é atraente, a Kelly. Com uns grandes lábios carnudos, que desconfio que
são fruto de um qualquer enchimento barato, mas que até parecem bem à
distância, e uma farta cabeleira ruiva. Infelizmente, a sua inteligência
limitada fez com que fosse fácil de encontrar quando um homem finalmente
ganhou coragem de parar de lhe enviar dinheiro e contactou a polícia. Ela
tinha transferido o dinheiro para a conta do namorado, a imbecil, e,
consequentemente, acabou a cumprir uma pena de 18 meses. Não é um
crime elegante, garanto-vos, mas também não tenho simpatia nenhuma
pelas suas vítimas. Quando uma pessoa se deixa iludir ao ponto de acreditar
que alguém quer ver uma fotografia de iPhone granulosa do seu amiguinho
flácido, é porque merece sofrer os piores castigos.
Desenrolando o meu papel, preparo-me para escrever um pouco antes
do jantar. Eu não sabia se iria gostar de revisitar o meu passado, mas
acontece que estou bastante contente por recordar tudo isto. Quanto mais
não seja porque escrevê-lo me faz sentir orgulhosa. Recordo-me da urgência
das minhas emoções de juventude, e da forte necessidade de retificar um
mal. Nos anos que mediaram desde então, não senti grande coisa, na
verdade, pois a tarefa que tinha em mãos requeria demasiada disciplina.
Para um observador casual, não terá acontecido muito entre a morte da
minha mãe e o momento em que pus o meu plano em marcha. Uma pessoa
que se cruzasse comigo durante esses dez anos, mais coisa menos coisa, ter-
se-ia ido embora a pensar que eu era uma millennial bastante banal. De
certa maneira, até era. Continuei a viver com Helene durante cerca de um
ano, o que foi bom, porque ela estava muitas vezes fora e eu tinha montes
de tempo para mim. Ela pensar que não havia problema em deixar uma
adolescente de luto sozinha durante tanto tempo era um atestado da sua
incapacidade básica para me ter à sua guarda, mas nunca me queixei. Gosto
de estar sozinha. Muitas vezes, as outras pessoas irritam-me ou incomodam-
me com a sua insensata conversa de circunstância e tentativas falhadas de
estabelecer uma ligação com sentido. Quando tinha 14 anos, Helene disse-
me que lhe tinha sido oferecido um trabalho em Paris e que sentia que
chegara a hora de voltar para França. Segurou-me na mão e insistiu que
podia ficar, se eu quisesse, mas que os pais de Jimmy me tinham oferecido
um quarto e ficariam encantados por me receber. Parecia genuinamente
preocupada, e eu senti que seria inadequado agarrar-me de unhas e dentes
àquela oportunidade e começar a fazer imediatamente as malas, por isso,
verti uma lágrima e olhei para o chão enquanto lhe dizia que ela devia
aceitar o trabalho. Ia ter saudades dela, disse eu, mas não conseguiria viver
com a culpa se a impedisse de aproveitar aquela nova oportunidade. Na
verdade, Helene era uma pessoa bastante simpática, e eu estimava a ligação
que ela me dava com a minha mãe, mas estava ansiosa por seguir com a
minha vida e começar a trabalhar no meu plano, e Helene, com as suas
relações e recursos limitados, não me poderia ajudar de nenhuma maneira
significativa. Já os pais de Jimmy, apesar de todo o desconforto que sentiam
em relação à sua própria condição de privilegiados, viviam num mundo
onde as portas se podiam abrir se conhecêssemos as pessoas certas. Eu
sentia-me confiante de que eles me podiam ajudar de alguma maneira. Pelo
menos não tinha nada a perder, visto que não conhecia ninguém importante
e não tinha quaisquer trunfos na mão.
Um mês depois e tinha as malas feitas. O peixe e eu apanhámos um táxi
para casa de Jimmy. Helene estava a meio dos preparativos para se mudar
de volta para França e numa grande excitação, por isso aproveitei a
oportunidade para pegar na caixa que ela tinha escondida debaixo da cama.
Parti do princípio de que ela não daria por falta dela, mas também não
estava muito preocupada com a possibilidade de ela dar por isso. Os
documentos eram sobre mim e a minha família, e eu duvidava que ela
quisesse fazer uma cena — quando se apercebesse, já estaria do outro lado
do Canal da Mancha mergulhada na sua nova vida. Jimmy e Sophie vieram
à porta dar-me as boas-vindas, e o seu cão, Angus, quase fez cair o peixe
das minhas mãos ao saltar para me lamber a cara.
— Fizemos-te um jantar de boas-vindas, Grace. Lasanha de vegetais, e a
Annabelle fez uma sobremesa. — Jimmy revirou os olhos para a mãe.
— Ela pode ao menos ver o quarto dela antes de ser obrigada a sentar-se
e a comer esse bolo todo escangalhado?
Pegou nas minhas malas e galgou as escadas de dois em dois degraus,
enquanto eu agradecia a Sophie e acenava a Annabelle, que estava ocupada
na cozinha com um saco de pasteleiro. A sua irmã mais nova era uma
criança longilínea e nervosa de 11 anos. Já não a via há algum tempo, mas
Jimmy tinha-me contado que ela já estava a fazer psicanálise. Sophie era
uma entusiasta da terapia juvenil, o que não admira. Eu só esperava,
sinceramente, que ela não se lembrasse de mo sugerir a mim, e tomei uma
nota para não me esquecer de fingir que a escola já facultava um
conselheiro, não fosse ela lembrar-se disso.
O meu quarto ficava no andar de cima, sob as vigas do telhado e ao lado
do de Annabelle. Jimmy ficava no andar de baixo (este era o primeiro sítio
onde eu vivia com pisos diferentes, e a subida da cozinha para o quarto já
me parecia bastante cansativa), o que, explicou ele, não era por acaso.
Annabelle e ele tinham trocado de quartos na semana anterior, depois de
Sophie e John terem entrado em pânico com a possibilidade de eu e Jimmy
dormirmos no mesmo piso. Apesar de nada ter sido dito explicitamente,
imaginava-os muito inquietos enquanto bebiam uma garrafa de vinho tinto,
discutindo coisas como o consentimento e as hormonas e se a casa deles
seria um ambiente confortável para uma rapariga vulnerável. Não
precisavam de se preocupar, pois, apesar de eu achar que Jimmy era um
rapaz simpático e estimasse imenso a sua amizade, sempre achara que, de
certos ângulos, ele se parecia um pouco com uma batata (felizmente, a
semelhança com o tubérculo acabou por praticamente se desvanecer). De
qualquer maneira, as distrações normais dos adolescentes como o sexo e o
álcool não me seduziam. Não ia ser uma daquelas mandrionas que fumam
erva, que hesitam em ir para universidade e se põem a viajar de mochila às
costas para adiar as decisões da vida adulta. Eu queria andar com tudo para
a frente.
Depois de ter largado as minhas malas e falar um pouco com Jimmy,
descemos para jantar. John tinha acabado de chegar a casa, e estava a
encher um copo de vinho tinto com uma mão e a puxar distraidamente a
gravata com a outra. Voltou-se para me saudar, dando-me um beijo na testa
e afagando-me o ombro antes de Sophie lhe estender um conjunto de pratos
para a mesa. Aquela manifestação de afeto fez-me sentir um pouco
estranha. Na família de Jimmy eram todos tão afetivos uns com os outros —
a mãe e o pai estavam constantemente a abraçar-se, ou de mãos dadas, e
ninguém parecia achar isso invasivo ou incómodo. Havia sempre alguém
por perto nesta casa, alguém a cozinhar, o barulho constante da vida
quotidiana. Eu não me importei com o beijo de John, na verdade, até foi
uma sensação agradável, calorosa, gentil. Mas perturbou-me, talvez por me
ter apercebido de que me faltara este tipo de coisa na vida. Esse pensamento
enraiveceu-me. Era normal — e eu não estava habituada ao que era normal,
por muito que Marie me tivesse tentado dar algo que se aproximasse disso.
Eu perguntava-me se esta abordagem de família era algo de que eu
aprenderia a gostar, se também eu os abraçaria e beijaria sem pensar duas
vezes, se me esqueceria do tempo que passei com a minha mãe e me
inclinaria para esta nova vida. A ideia era sedutora, mas teria de me
precaver para não amolecer. Os Latimer são pessoas adoráveis, e eu estava
contente por estar ali a viver, mas se abraçasse o seu modo de vida de uma
maneira demasiado entusiástica, arriscava-me a acabar a ler o Guardian, a
trabalhar em artes e a oferecer vinho biológico inglês às pessoas no Natal.
Um banho de vida adorável e caloroso — tirando a culpa incrustada e a
hipocrisia flagrante que Sophie tão bem personifica mas completamente
sem sentido.
Apesar do meu receio em me deixar relaxar demasiado, assentei
rapidamente na minha vida com os Latimer. Sophie passava a vida a tentar
fazer-me sentir à vontade.
— Senta-te onde quiseres, minha pequena. Por favor, come tudo o que
te apeteça.
A insistência constante em fazer com que eu me sentisse parte da
família só servia para me mostrar que não o era, mas eu percebia que esta
era única maneira que Sophie conhecia de se esforçar por Ser Uma Boa
Pessoa. Voltei para a minha antiga escola e estudei para as provas de
aferição, acabando por obter Muito Bom a tudo e por receber uma menção
honrosa da diretora da escola pelo meu sucesso «em face de especiais
dificuldades». A simpatia condescendente que mostrou para comigo
enquanto me presenteava com um pedaço de papel miserável com o meu
nome escrito numa caligrafia foleira serviu apenas para agravar
ligeiramente o meu descontentamento. E não deixei de atirar o certificado
para o lixo no caminho da escola para casa.
Jimmy e eu passávamos quase todo o tempo livre juntos. Eu dava-me
com as outras crianças da escola, mas não estava preocupada em ter um
grupinho e passar a vida atrelada a raparigas que gostavam de passar horas
a fazer análises forenses do que é que a saudação de um rapaz realmente
queria dizer. Jimmy sempre tivera um grupo de rapazes com quem andava
desde a escola primária — jogavam futebol no parque local e faziam noites
de jogos aos fins de semana —, mas quando eu me juntava a eles, estes
companheiros ficavam reduzidos à condição de atores secundários. Eu
percebia que Sophie se preocupava com isto. Por vezes, sugeria uma partida
de ténis, ou então oferecia-se para organizar uma noite de pizza para «todos
os nossos amigos», o que, na realidade, significava apenas os amigos de
Jimmy. Mas ele limitava-se a revirar os olhos e a responder-lhe que talvez
sim, mas noutra altura. Eu não conseguia partilhar da sua inquietação. Os
amigos de Jimmy eram monossilábicos, a menos que estivessem a fazer
troça uns dos outros, e nenhum deles me olhava nos olhos quando eu falava
com eles, como se o contacto visual com uma pessoa do sexo oposto
significasse uma qualquer forma de compromisso sério e eles fossem
obrigados a entregar a sua Xbox na inevitável rutura que se seguiria. Para
além disso, eu e Jimmy entendíamo-nos bem — não precisávamos de mais
ninguém. Gostávamos de falar durante horas, preguiçando em silêncio, e até
fazendo os trabalhos de casa juntos. Jimmy nunca me pressionou sobre a
minha dor, mas eu sabia que ele a compreendia quando olhava para mim.
Não era necessário inclinar condescendentemente a cabeça.
Entrei numa rotina com os Latimer. Sophie e John conseguiam tratar-me
quase como a uma filha, tirando o facto de por vezes me exibirem diante
dos amigos triunfalmente, como se eu fosse uma refugiada que tivessem
acolhido heroicamente — apesar de o ser, de certa maneira. Era este o
acordo, como se veio a tornar claro. Eu era alegre, prestável e fazia Jimmy
feliz, ao passo que os Latimer me alimentavam, vestiam e se mostravam
gentis para comigo, e ambas as partes concordavam em ignorar quaisquer
questões incómodas que pudessem surgir sobre a duração desejável da
minha permanência com a família. Apesar dos meus protestos, insistiram
em pagar para eu consultar uma terapeuta sua amiga chamada Elsa, uma
mulher atarracada que usava uns óculos muito grandes de aros pretos e
colares de contas de madeira que pouco ou nada falava. Disse-lhe
repetidamente que estava entusiasmada com o futuro e ela dispensou-me ao
fim de seis semanas.
Foi um ou dois anos depois que realmente me apercebi da riqueza dos
Latimer. Não era a fortuna exuberante do meu pai, era uma coisa discreta,
mas por demais evidente. A comida chegava-nos em grandes entregas de
iguarias sofisticadas. Havia sempre flores em cima de todas as mesas da
casa, grandes conjuntos de caules cuidadosamente arranjados como nunca
veríamos no supermercado local. Sophie era capaz de gastar centenas de
libras em almofadas decorativas das lojas iranianas em Crouch End e dizer
que eram uma pechincha sem uma ponta de sarcasmo. Falavam da
importância de viver na «Londres real», mas estavam isolados de tudo o
que fosse remotamente real. Eu nem sequer sei o que é que eles queriam
dizer quando diziam «real». Penso que nem eles sabiam. A mansão Artemis
era protegida por portões gigantes. Os Latimer teriam achado essa ideia
horrível, mas, no fundo, não eram diferentes. Eu reconhecia quão absurda
era a vida deles, mas, ao mesmo tempo, era difícil não desfrutar dela. Aos
15 anos, dei por mim a usar os cremes faciais caros de Sophie e a considerar
utilizar três matizes de verde de tinta Farrow & Ball para as minhas
paredes. Nunca pensei que pudesse ter gostos caros. Nunca tinha tido
oportunidade de o saber, mas estava a descobri-los depressa.
No verão antes do início do 10.° ano, Jimmy e eu fomos autorizados a
passar umas férias sozinhos pela primeira vez. Fomos à Grécia com o seu
amigo Alex e a sua namorada Lucy, que frequentava uma escola privada em
Londres Ocidental e adorava exclamar «em choque» sempre que eu admitia
nunca ter experimentado uma coisa qualquer. Era um CRIME que nunca
tivesse ido à Grécia, como é que eu nunca tinha tomado um macchiato na
minha VIDA INTEIRA, oh, francamente, era DEMASIADO
ENGRAÇADO eu nunca ter tomado banho no mar. Foi um grande alívio
quando ela caiu de cama com uma intoxicação alimentar no segundo dia da
nossa viagem e não voltou a incomodar-nos até ao sexto dia, imediatamente
antes de voltarmos para casa. Quer dizer, eu digo intoxicação alimentar,
mas não foi, na verdade, tão acidental quanto isso. O que provocou a coisa
foram algumas doses de xarope de ipeca administradas ao pequeno-almoço
(que eu insisti em preparar por esta mesma razão). Acho que ninguém me
censuraria, pois o tempo é demasiado precioso para o passarmos com
alguém que vai praticar tiro aos fins de semana e que trata a mãe por
«mamã» sem pestanejar. Alex também pareceu mais animado na sua
ausência, e as férias foram brilhantes. Lucy estava muito acabrunhada na
viagem de regresso a casa, e limitou-se a estremecer quando lhe passei a
mão por cima da perna para apanhar a minha mala. Mais ninguém reparou.
Eles acabaram algumas semanas depois, o que parecia ser o melhor para
todos, dadas as circunstâncias.
De volta a Londres, tinha escolhido as minhas disciplinas, decidindo-me
por Inglês, Francês e Estudos Comerciais. Jimmy passou muito tempo a
analisar prospetos da faculdade com os pais e a discutir os méritos das
diferentes faculdades de Oxbridge3 ao jantar enquanto Annabelle e eu
fazíamos questão de revirar os olhos de fastio e bocejar em voz alta. Eu não
ia para a universidade, para grande desgosto de John e Sophie, que
pareciam não compreender que havia outras opções. Para eles, acabar os
estudos aos 18 anos era condenarmo-nos rapidamente a um emprego a
empacotar caixas em armazéns, grávidas, toxicodependentes ou, pior ainda,
poderia significar que tínhamos de sair de Londres e viver a quilómetros de
distância da loja do queijo artesanal. Mas eu não ia desperdiçar mais três
anos.
 
 
3Amálgama de «Oxford» e «Cambridge», as duas mais antigas
universidades inglesas. [TV. do Z]
 
Capítulo 7
 
Como seria de esperar, a maior parte das atividades na prisão são
obrigatórias. Há coisas que são apresentadas como se tivéssemos
alternativa, «Vai haver noite de quiz hoje na sala da televisão, vamos
precisar que as senhoras se organizem em pares!», mas quando uma pessoa
delicadamente se coloca de fora, aparece uma guarda com um daqueles
sorrisos forçados a dizer «Seis da tarde, Grace, espero encontrar-te lá com
uma parceira». É então que Kelly me agarra na mão e anuncia alto e bom
som que iremos jogar juntas, e eu esforço-me, em vão, por me dissociar do
meu próprio corpo. Hoje há uma palestra não-opcional sobre como ser-se
líder. Kelly passou a manhã a cantar «Who runs the world? GIRLS!» a
plenos pulmões, como se o seminário fosse o primeiro passo para gerir uma
empresa FTSE 500 e não um exercício banal concebido para preencher um
formulário de um qualquer plano governamental. «Empoderar estas
mulheres», terá dito um jovem carola com uma camisa de manga curta,
«precisamos de as incentivar a canalizarem as suas aptidões específicas para
mais oportunidades de emprego no mercado dominante!» Como se Kelly e
todas as outras mulheres na minha ala pudessem ser instruídas sobre como
fazer funcionar a chantagem, o furto, a fraude e outros crimes de uma
maneira mais respeitável. Para sermos justos com algumas destas raparigas,
temos de reconhecer que teriam dado excelentes banqueiras noutra vida.
Mas, mesmo para banqueiras, a prática de homicídios talvez não fosse
muito bem aceite. Tenho algumas horas antes da temível palestra, por isso
vou voltar à escrita.
Quando saí da escola e me recusei a ir para a universidade, para grande
desilusão de John e Sophie, arranjei trabalho na loja da Sassy Girl em
Camden. Uma sequência óbvia na trama da nossa heroina, oiço-vos dizer,
mas eu tinha 18 anos, tinha de começar por algum lado e imaginei
ingenuamente que trabalhar numa das empresas de Simon me traria alguma
vantagem. Comecei no armazém, a desembalar entregas e a fixar etiquetas
de preços, e pouco depois fui promovida à caixa registadora. Os dias eram
longos e frenéticos. Os artigos voavam das prateleiras. A marca sabia
exatamente como apelar às adolescentes de então, vendendo o que quer que
fosse que as celebridades do momento tivessem usado dias antes. Este
processo era para mim um mistério — lembro-me de imaginar que os
designers da casa deviam ter a mão tão sintonizada nas novidades que as
suas roupas condiziam completamente com a mais recente alta-costura.
Mais tarde percebi a realidade: a Artemis Holdings tinha mulheres com cara
de poucos amigos a fazer alterações subtis nos últimos modelos de alta-
costura e a fazer passar as emendas no departamento legal. Depois de
receberem luz verde, as roupas eram confecionadas em qualquer espécie de
tecido sintético que tivessem disponível. As adolescentes não se
importavam nada. Calções de ganga brilhantes iguais aos do seu cantor
preferido por 15 libras? Quem é que quer saber se cheiram ligeiramente a
borracha?
Surpreendentemente, dei por mim a desfrutar do tempo que passava na
loja. Não tinha um minuto para parar e pensar, trabalhava arduamente e
fazia tudo o que me pediam. Dobrar poliéster manchado e amarrotado que
tinha sido descartado nos provadores fez-me odiar roupas baratas para o
resto da vida, mas a minha diligência chamou a atenção da minha chefe,
uma mulher algo escanzelada que eu achava ser já velha, mas que
provavelmente tinha menos de 30 anos. Ela integrou-me no esquema de
gerentes estagiários da Artemis, um grande título que significava que eu
podia ser responsável por receber e registar os lucros do dia. Aos 19 anos,
era uma empregada encartada com um crachá e um cordão ao pescoço, com
poder para disciplinar o pessoal do armazém.
Jimmy tinha ido para a universidade, com grande parte do grupo do
nosso ano. Houve alguns que conseguiram entrar em Oxbridge, mas a maior
parte rumou para Sussex, onde se dizia que as drogas e as festas eram mais
abundantes, e para Manchester, que dava aos miúdos do Norte de Londres a
ilusão de que eram muito duros. Sophie, abençoada seja, conseguiu
converter a rejeição de Jimmy por Oxford numa vitória moral.
— Ora, Oxbridge é demasiado sufocante, na verdade, e Sussex tem um
campus tão vibrante e progressivo. Os miúdos aprendem muito mais sobre
o mundo do que nós aprendíamos em St Hilda. Sorte a do Jim!
Eu permaneci na casa dos Latimer por mais oito meses, o que foi uma
experiência completamente estranha para todos, exceto para Annabelle, que
desconfio que gostava de ter alguém em casa que não fosse um Latimer.
Com Jimmy ausente e Sophie a começar a dar-se conta de que só faltava
uma criança para ficar com o ninho vazio, a sua necessidade de tentar
cuidar de nós tornou-se cada vez mais insuportável. Todos os dias fazia a
Annabelle um batido de linhaça para o pequeno-almoço («Querida filha, ela
quase nem se vê, ainda nem precisa de um sutiã!») e tornou-se obstinada em
tentar que a filha meditasse com ela a toda a hora. Para terapeuta, era
assinalavelmente insensível à raiz dos problemas neuróticos da sua filha.
Mas é possível que os filhos de outros terapeutas achassem o seu
comportamento perfeitamente normal.
Era claro para todos nós que o frágil entendimento a que tínhamos
chegado quando a família me acolheu estava perto do fim. Eu tinha vindo
para a casa deles já tarde para ser um deles, e Jimmy era o elo que nos
mantinha juntos. Sem ele, as nossas interações diminuíram rapidamente, e
eu comecei a passar mais tempo fora de casa ou sozinha no meu quarto.
Ganhar o meu próprio dinheiro pela primeira vez fazia-me sentir menos
inclinada a seguir à letra as regras tácitas de Sophie. Ia ao McDonald’s,
evitava a comida feita em casa e fiz um corte à Chanel muito marcado, que
até eu admito que foi um erro. Não tenho queixo para isso. Quando não
jantava com a família, Sophie dizia-me que estava preocupada comigo.
Nunca se mostrava zangada, emoção esta que devia considerar demasiado
básica. Exprimia apenas apreensão até ao infinito. Sobre o meu cabelo,
sobre a minha ambição, sobre a minha falta de amigos. Tinha razão quanto
à falta de amigos. Também aí, Jimmy era o elo que faltava. Nunca foi fácil
para mim forjar novas relações. Em parte, porque parecia ser uma aptidão
que me faltava, mas sobretudo porque tinha decidido desde cedo que os
adolescentes eram horríveis. Queria saltar rapidamente para a idade adulta,
onde pudesse estar sozinha o tempo todo de que precisasse. Gosto de estar
sozinha, e nunca compreendi que fraqueza existe nas pessoas que anseiam
pela companhia dos outros a toda a hora. Talvez fosse, em parte, por isso
que Sophie e eu nunca criámos uma verdadeira ligação. John era como eu,
era capaz de se esconder no seu estúdio ou trabalhar até altas horas da noite
todos os dias da semana. Mas ela queria toda a gente à sua volta, pois isso
mostraria que era uma pessoa bem-sucedida, com uma família que a via
como o seu eixo vital.
Por isso saí de casa. Eles protestaram, o que foi entendido por ambas as
partes como a coisa simpática a fazer, e depois John deu-me dinheiro para
alugar uma carrinha e comprar um colchão. Também subsidiaram uma parte
da minha renda, o que começou por me causar um certo desconforto, mas
que acabei por aceitar. Afinal, pessoas como John e Sophie têm necessidade
de deslocar a sua culpa. Patrocinar uma criança que jamais se irá conhecer
num país estrangeiro é o nível básico. Patrocinar uma (semi) órfã é jogar em
grande. Eu tinha desempenhado o meu papel, por isso, porque não deixá-los
ajudarem-me a longo prazo? Encontrei um apartamento com um quarto em
Homsey, a uns escassos 15 minutos a pé do quarto no sótão que partilhara
com Marie, e suportei uma última refeição com os Latimer. Jimmy veio da
universidade para se juntar a nós, por insistência de Sophie, e depois de
uma refeição desconexa de moussaka (a mulher não era capaz de cozinhar
nada se não achasse a sua proveniência exótica, de alguma maneira), veio
comigo até ao meu novo apartamento e apresentou-me uma garrafa de
vinho surripiada de casa. Dormimos juntos nessa noite, o que foi um
acontecimento estranho, mas inevitável. O sexo era uma forma de
intimidade sobre a qual nos vínhamos tornando cada vez mais curiosos à
medida que íamos ficando mais velhos e mais próximos. Era uma forma de
nos ligarmos ainda mais — coisa que não podia ser reclamada por mais
ninguém. Talvez houvesse também um elemento de controlo da minha
parte, abrindo uma outra parte de mim para ele e só para ele, na certeza de
que ele valorizaria a nossa relação de modo ainda mais veemente. Não foi
apenas um ato calculado da minha parte. Já passei anos a oscilar entre
gostar de Jimmy como de um irmão e desejá-lo como parceiro. Às vezes, é
só uma espécie de reconforto que dou por adquirido, mas também é a única
pessoa que conheço que me poderia partir o coração. Acho tudo isto
bastante confuso, na verdade, estar sempre a empurrá-lo para longe e a
atraí-lo para junto de mim. Não é de admirar que não o tenha deixado ficar
a dormir em minha casa nessa noite. Não queria encontrá-lo ali quando
acordasse na manhã seguinte. Queria que o apartamento fosse meu e só
meu. Mas ainda abri os olhos nessa manhã à espera de o ver deitado ao meu
lado.
Eu passava a vida a trabalhar e a correr, e às vezes encontrava um ou
outro colega de escola de regresso da universidade para passar uns dias em
casa. Cozinhava bastante, algo que nunca tinha feito. Estudava livros sobre
como ser bem-sucedido como vendedor, com algumas das frases mais
entediantes que uma pessoa pode ter o azar de ter de ler na vida. Mas foram
úteis, quanto mais não seja porque o jargão de treta que utilizava me dotou
de uma linguagem que me ajudou até hoje. Se uma pessoa incluir algumas
frases escolhidas no seu repertório, é tida como competente. «O centro de
lucros vai adorar este negócio», por exemplo, mostra ao gerente de vendas
que percebemos o que é o cliente consciente do preço ao mesmo tempo que
nos faz querer bater com a cabeça numa porta.
Eu ia a pé até casa dos Artemis quase todas as semanas, por nenhuma
outra razão que não fosse relembrar a mim própria o meu objetivo último.
Esse objetivo pareceu um pouco mais próximo quando fui convidada pela
direção para me candidatar a um lugar na equipa de marketing. Estava a
trabalhar na Sassy Girl há quase um ano, e não tinha verdadeiro interesse
em trabalhar na direção, mas andava a azucrinar a minha gerente quase
constantemente para me avisar se aparecesse alguma coisa fora da loja, e
ela deve ter-se compadecido de mim. Recomendou-me pela minha
dedicação ao trabalho e interesse em aprender mais sobre a marca, e elogiou
as minhas montras, o que deve ter feito balançar as coisas a meu favor.
Quem diria que combinar uma parca em pele de imitação com uma bolsa
fluorescente de trazer à cintura contaria como experiência? Era um emprego
no degrau mais baixo da escada, mas era um degrau da maldita escada. E
significaria trabalhar no mesmo edifício que Simon. Cinco pisos e um
mundo de mármore de distância, mas, ainda assim, uma ligação que tinha
algum significado para mim na altura.
Durei precisamente 13 meses. O trabalho era simultaneamente
estupidificante e embaraçoso. Eu não tinha interesse nenhum em «pôr o fio
da criatividade a girar» em reuniões em que discutíamos a disposição das
montras e ouvir falar em «merchandising que faça com que os clientes se
belisquem de excitação» fazia-me sentir como se estivesse a viver numa má
simulação da realidade. Retirei três coisas boas dessa experiência. A
primeira foi ter feito bom dinheiro para uma jovem de 20 anos, dinheiro
esse que poupava obsessivamente. A segunda foi ter conseguido uma visita
a casa de Simon quando ele deu a sua festa anual para o pessoal da direção.
Eu teria dado tudo o que tinha para conseguir um vislumbre dessa mansão
na colina, e agora aqui estava ele, a dar-me as boas-vindas a sua casa. Eu
era a víbora, penetrando no coração da família.
Recebemos os convites aleatoriamente. Dizia-se que eles convidavam as
pessoas retirando os nomes de um chapéu todos os anos para que o sistema
não favorecesse ninguém ou alguém em especial. Por isso devia ser
coincidência que a festa estivesse cheia de gestores seniores e de raparigas
que trabalhavam a um nível muito mais juvenil. Gary, o web designer que
se sentava a três secretárias de mim, nunca tinha sido um dos felizes
contemplados. Mas, uma vez mais, a sua aparência e a sua vaga aura de
homem «vencido pela vida» também não era coisa que eu quisesse ver
numa festa. O homem comia sopa instantânea com a mesma colher de
plástico todos os dias durante o ano inteiro. Havia muitas colheres
disponíveis na cozinha comum. Assustador.
A festa do pessoal da família Artemis era um evento bastante insípido
que se realizava no jardim durante duas horas com canapés e espumante
servido por estudantes com um ar entediado. Havia uma máquina de
algodão-doce montada ao lado de um minilabirinto, e algumas pessoas
tinham cometido o erro de aceitar as coroas florais que estavam a ser
tecidas por uma mulher de aspeto rude que parecia completamente
deslocada neste monumento à ganância. Na verdade, um homem
ligeiramente suado com um fato cinzento e uma coroa de flores na cabeça é
a personificação exata da perda de dignidade. Mesmo com as penosas
atividades que eram oferecidas, era evidente que o evento era um exercício
completamente forçado — manter o moral do pessoal elevado, fingindo
valorizá-los o suficiente para os autorizar a entrar na casa do patrão.
Todavia, não éramos suficientemente valorizados para nos ser autorizado o
acesso às casas de banho interiores, pelo que havia um caseiro de ar austero
especado na escadaria, não fora alguém pensar em subir as escadas para
meter o nariz onde não era chamado. Para mim, era completamente
fascinante. Esta casa onde a minha mãe me levara, onde ficáramos à porta,
sabendo eu, no meu íntimo, que jamais seria convidada a entrar. Aqui
estava eu. Fui convidada a entrar com um copo e um sorriso indiferente.
Passei uns bons 20 minutos a observar uma empregada que seguia
discretamente as pessoas e ia desinfetando tudo o que elas tocassem. Era
fascinante.
Bryony era claramente demasiado sensata para se misturar com os
empregados e não apareceu em lado nenhum. Simon permaneceu num
canto com os membros masculinos da alta administração, com o fumo dos
charutos a formar uma nuvem esférica em volta das suas cabeças. Não
interagiu com a mulher uma única vez, que eu tivesse visto.
Ocasionalmente, surgia um aceno a um funcionário do sexo feminino e
ouvia-se um clamor de risos ecoar no pátio. Era difícil adivinhar quantos
atentados aos direitos humanos estavam a ser cometidos em semelhante
espírito de «zombaria» por aquele bando de homens de mocassins castanho-
claros e camisas abertas no pescoço. Eu vagueei por ali, de copo na mão,
como se estivesse vagamente à procura de alguém, e atravessei as portas
francesas da sala de estar. Janine apareceu a cirandar à entrada segundos
depois, com o cabelo moldado em forma de capacete, as suas joias de ouro
a tinir como uma armadura. Presumo que estivesse em alerta máximo, pois
a ideia de haver alguém a surripiar a sua panóplia de bugigangas de alta
qualidade era algo que os seus nervos não conseguiriam suportar.
Eu voltei costas e fingi estar a observar um quadro berrante de uma
dança de flamenco e ela passou por mim em grandes passadas, entrando na
cozinha seguida por uma mulher de ar ansioso de avental e luvas brancas.
Claro que ela não me viu, pessoas como Janine não têm uma visão normal.
São cegas às pessoas que consideram irrelevantes. Eu não a censuro, é um
talento que admiro. Porquê gastar tempo com pessoas que mostram não ter
valor? O corredor estava vazio, por isso continuei a andar, alcançando uma
ampla escadaria em caracol que nos levava ao piso seguinte e ao seu espaço
mais privado. Fiquei em suspenso, a pensar no que me poderia acontecer se
fosse apanhada a revolver o quarto do casal. Seria posta na rua e despedida?
Levaria a que investigassem as minhas origens? Provavelmente não valia a
pena o risco, por muito tentada que estivesse.
Em vez disso, tentei espontaneamente a porta à direita das escadas e
entrei no que era claramente um estúdio. Prateleiras de livros alinhadas nas
paredes, recheadas de volumes encadernados em pele claramente
comprados para serem exibidos. Eu duvidava que alguém nesta família
tivesse lido as obras completas de Dickens, quanto mais um livro sobre
Derrida. Oh, meu Deus, por ordem alfabética. Na secretária de mogno
repousava uma caneta de tinta permanente, com uma resma de papel bege
grosso e um grande ornamento de prata em forma de coração que reconheci
como um Tiffany clássico. Havia duas molduras douradas, ambas mostrando
o trio Artemis: numa delas via-se Bryony no seu batizado; a outra era mais
recente, e ao estudá-la mais de perto, percebi que mostrava a família no
jardim do Palácio de Buckingham. O enorme chapéu de Janine não
chegava, ainda assim, para obscurecer por completo o edifício atrás deles.
Devem ter espremido este momento ao máximo, como se fosse um encontro
privado de colegas e não uma aglomeração de milhares de pessoas que a
Família Real devia achar pavorosas se pudesse falar francamente e
desembaraçar-se das suas obrigações. Peguei na fotografia e deixei-a cair no
chão. A carpete espessa amorteceu a queda, claro está. Por isso espezinhei-a
com o calcanhar até ouvir o vidro estalar silenciosamente, após o que o
voltei a pôr em cima da mesa. O vidro quebrado soltara-se e eu usei um
caco para riscar levemente o rosto de Simon. Depois, esgueirei-me
cautelosamente de volta para o corredor.
Eu não queria voltar a correr lá para fora, por isso demorei-me na sala
de estar principal, enquanto ia bebendo a minha bebida. Janine voltou da
cozinha e eu senti-me pronta para a encarar nos olhos. A sua cara tinha uma
expressão amarga — a insatisfação permanente de senhora rica colada à
pele. Mas ela sentiu-se claramente obrigada a vir ao pé de mim, ou talvez
quisesse apenas certificar-se de que eu não estava a tentar roubar-lhe as
pratas. Enquanto ela se aproximava, tive um momento de pânico. Sophie
comentava muitas vezes que a minha cara nunca trai as minhas emoções.
Por vezes, parece quase ofender-se por eu não querer revelar os meus
pensamentos mais profundos com um olhar. Mas, naquela fração de
segundo, imaginei que Janine pudesse ver as minhas intenções todas
estampadas no meu rosto. Comecei a falar sobre a casa dela, utilizando
adjetivos para descrever o seu estilo de uma maneira que, na verdade, não
deixava transparecer que fosse algo de que eu gostasse. Tivemos uma
conversa rápida sobre a lareira, que foi a única coisa de que me consegui
lembrar para me concentrar. A sua postura descontraiu-se um pouco quando
comecei a fazer perguntas sobre a vasta gama de mármores diferentes que
tinham sido utilizados no salão, mas o seu sorriso permaneceu rígido.
Talvez isso se devesse ao imenso trabalho que ela tinha tido, endurecendo-
lhe o semblante a ponto de dificultar a expressão espontânea, mas era difícil
dizer. Falou de como era difícil dar um estilo a uma casa daquele tamanho,
e disse-me que a maior parte dos seus adorados objetos decorativos estavam
guardados na sua casa do Mónaco, como se eu compreendesse como era
terrível perder o rasto aos meus melhores castiçais dourados.
— Sempre viveu aqui? — perguntei, enquanto passava a mão pela
cornija da lareira, deixando deliberadamente uma dedada vagamente
borratada. A mão dela estremeceu, e eu percebi que ela estava a usar toda a
sua força de vontade e educação para não afastar o meu braço com uma
palmada.
— Sim, mudámo-nos pouco antes de a Bryony nascer, pois sabíamos
que iríamos precisar de um espaço maior para as crianças.
Era estranho ouvi-la falar de crianças no plural. Partindo do princípio de
que não se estava a referir aos filhos ilegítimos, que podiam ser muitos,
aquilo sugeria que eles esperavam ter mais filhos. Hesitei entre perguntar-
lhe isso e a perspetiva de ser posta na rua por um dos muitos seguranças
espalhados pela casa, e optei por refrear o meu impulso.
— Bom, foi muito agradável conhecê-la. Sem dúvida que os filhos do
Simon têm muita sorte em ter um pai que lhes pode valer — disse eu,
enquanto passava por ela em direção ao jardim. Ainda não tinha chegado às
portas e já ela estava a chamar pela govemanta.
Abandonei aquela festa sentindo que estava finalmente a chegar a algum
lado. Tinha estado no meio deles. Já não era só um sonho distante. Até
agora, as minhas interações com Simon tinham sido nada mais do que zero,
a menos que contássemos com as patéticas excursões que eu fazia de vez
em quando diante dos seus portões e aquela vez em que o vi à entrada do
gabinete. Nem mesmo eu, que estava tão ansiosa por apressar as coisas,
podia chamar a isto encontros.
A terceira vantagem de trabalhar na Artemis Holdings foi ter conhecido
Tina, a minha adorada informadora. Adorada não é exatamente a palavra
certa, visto que eu nunca lhe teria dado um segundo da minha atenção se ela
não tivesse nada para me oferecer para além da amizade, mas estimava-a
pelas suas informações, e isso era mais valioso para mim do que qualquer
companhia. Tina era a assistente pessoal do vice-presidente executivo,
Graham Linton, um amigo próximo e comparsa de Simon. Um homem que
usava fatos cinzentos com um ligeiro brilho, daqueles que se veem nas lojas
de roupa quando anunciam que estão a fazer uma liquidação total. Dei por
mim a conversar acidentalmente com ela numa pausa para fumar, vários
meses depois de ter sido contratada pela direção. O chefe de gabinete era
muito severo em relação às pessoas que fumassem nas proximidades da
porta do escritório. Havia uma varanda para fumadores das altas patentes no
quarto andar, e o fumo dos charutos percorria os escritórios durante horas
quando Graham, Simon ou o seu irmão Lee decidiam permitir-se esse
prazer, mas todas as outras pessoas tinham de ir à volta para a entrada das
mercadorias. Um dia, Tina comentou que gostava do meu cachecol e eu fiz-
lhe um sorriso condescendente, o que foi mais do que suficiente para que
ela viesse sentar-se ao pé de mim. Era a mulher mais amigável que eu
alguma vez tinha conhecido, e isso era, só por si, razão suficiente para eu
deixar de fumar e passar a evitar aquela zona. Era o que teria feito, não
fosse ela referir com quem trabalhava no preciso momento em que eu
estava a apagar o cigarro. É horrível ter de fazer marcha-atrás quando nos
damos conta de que podemos obter alguma coisa de alguém, não é? Ter, de
um momento para o outro, de lisonjear um potencial doador que esteve a
noite toda a lançar-nos olhares lascivos, ou rirmo-nos das piadas de um tipo
que irá pagar todas as rodadas? Sentimo-nos ligeiramente conspurcados.
Mas, no fundo, tudo na vida é uma troca. E eu pensei que Tina podia contar-
me coisas sobre a família que eu não seria capaz de descobrir por mim
mesma, por isso cerrei os dentes e fiz-me simpática. Supersimpática.
Levando-lhe o café, enviando-lhe mensagens com «olás» divertidos no
nosso sistema de chat do escritório, a almoçar com ela e fingir que ela
estava a perder peso quando ela perguntava. Era uma boa troca, no entanto.
Tina era uma empregada leal no que toca a Graham (que muitas mulheres
do escritório diziam ser um homem arrepiante e não apenas por usar uma
peruca muito pouco convincente), mas cantava como um canário quando se
tratava da família Artemis. Nada do que ela me contou chegou a ser a bala
de prata do meu arsenal, mas saber mais acerca destas pessoas que eu
observava à distância há tanto tempo era infinitamente fascinante. E como
nada do que ela me contava os pintava a outra luz que não fosse
perfeitamente terrível, era também uma forma de me lembrar de que não
tinha sido eu a construí-los como monstros na minha cabeça sem nada que o
sustentasse. Sim, Tina foi uma dádiva, apesar de eu ter de dar ainda mais
cabo dos pulmões para passar mais algum tempo com ela.
Mas trabalhar na Artemis Holdings não estava a contribuir para me
fazer chegar perto do meu pai, apesar de todas as minhas ingénuas
expectativas. Eu tinha, de algum modo, antecipado que subiria através do
meu trabalho até me tomar a sua assistente mais próxima no espaço de
alguns anos, conquistando a sua confiança, penetrando sub-repticiamente na
sua vida até fazer uma revelação dramática e o matar com ele ainda em
estado de choque face à minha traição. Mas o homem empregava milhares
de pessoas e era tão certo que não me iria convidar para o seu círculo íntimo
como a certeza de que não iria ler um único livro que não fosse sobre como
ser bem-sucedido nos negócios. Por isso, quando fui abordada por outra
empresa de moda para o departamento de relações públicas e marketing,
fui-me embora. A minha resolução permanecia tão firme como sempre, mas
iria ganhar quase o dobro e, mais importante ainda, tinha chegado à
conclusão de que matar uma família inteira enquanto trabalhava para a sua
firma talvez não fosse uma estratégia muito inteligente. Concedo o erro
inicial porque ainda era muito nova.
Foi nesta altura que o nevoeiro que eu sempre sentira envolver-me
começou a dissipar-se e a minha vida se tornou mais clara. Cheguei a um
lugar em que me sentia segura e no controlo das operações, e podia agora
concentrar-me melhor no futuro. Em certo sentido, isto significava aguentar
os cavalos e reconciliar-me com a arte da paciência. Desde então que
trabalhei sempre na mesma empresa. Permaneci no mesmo apartamento,
que ainda arrendo ao velho senhor turco que vive por cima de mim e ainda
não me aumentou a renda desde que eu cheguei, para grande desgosto do
seu filho. Poupei dinheiro, mantive um comportamento discreto e vivi em
pequena escala, sempre à espera do momento em que daria início ao meu
plano e começaria um novo capítulo. Não foi um período suscetível de
inspirar grandes obras literárias, mas há tanta gente a viver assim todos os
dias sem procurar qualquer capítulo seguinte. Contentam-se em viver as
suas vidas pequenas e banais, satisfazendo as suas necessidades básicas e
exclamando: «ooh, que bela garrafa de prosecco\» de vez em quando, para
terem um momento especial. Por isso, não foi especialmente estranho ou
dececionante viver aqueles anos de forma enfadonha. Dizem que os
melhores anos da nossa vida são aqueles que atravessamos a correr aos 20 e
poucos anos quando podemos beber, festejar e viver espontaneamente. Os
meus não foram assim. Em vez disso, esses anos deram lugar a uma corrida
empolgante através do tempo enquanto eu levava a cabo o meu plano, e
agora antevejo muitos anos por vir que serão tão plenos e excitantes quanto
eu espero que sejam.
Não quero com isto dizer que vivesse como uma puritana. Havia
pequenos luxos de vez em quando. Ao que parece, sou daquelas pessoas
que apreciam as coisas um pouco mais agradáveis da vida, predileção esta
que imagino ter herdado quer da minha mãe quer do meu pai, de certa
maneira, e que terá sido desencadeada pelo tempo que passei com os
Latimer com a sua inclinação para vinhos biológicos e interiores
exorbitantes. É por isso que o meu pequeno apartamento tem uma parede
dedicada a sapatos, a droga de iniciação mais básica quando as mulheres
querem cuidar de si mesmas. Quando já era um pouco mais velha, comecei
a tirar férias maravilhosas em lugares que eu mal poderia imaginar quando
estava a crescer com Marie. E cada vez que me sentava e bebia um copo de
vinho numa esplanada qualquer, rejeitava a ideia de que talvez a minha vida
tivesse acabado por se tomar melhor do que teria acontecido se Marie fosse
viva. Claro que sofri um grande trauma com a perda da minha mãe, e é
certo que os Latimer nunca foram da minha família, mas aceder
instantaneamente à alta classe média próspera e acolher um ressentimento
tão vil e duradouro tinha, de algum modo, jogado a meu favor. Eu repudiava
a ideia a maior parte do tempo.
O alarme disparou outra vez. Provavelmente é só a rapariga esquisita
três celas mais abaixo que se recusa a parar de gritar, mas tenho de me ir
apresentar. Continuarei mais tarde.
 
Capítulo 8
 
Sentia-me palpitante quando fui para o trabalho nessa sexta-feira de
manhã. Uma semana enfadonha de discussões intensas sobre slogans tinha
retardado a passagem do tempo até ao torpor, e eu tinha andado a fazer
corridas noturnas pela cidade só para queimar algum tédio acumulado. Mas
nesse fim de semana tinha a agenda livre, e certificara-me de que tinha bom
vinho e boas velas em casa. Tinha marcado uma massagem para sábado
com o meu massagista preferido disfarçado de masoquista e iria a uma festa
de sexo nessa noite. Poupem-me a qualquer espécie de choque. Não fiquem
aterrorizados, ou pior, excitados. Isto não é um desvio para falar das minhas
propensões particulares. Fui em pesquisa.
***
Tinham passado nove meses desde que eu vira Andrew Artemis
desvanecer-se para ir ter com as suas adoradas rãs e vinha-me mantendo
bastante discreta, trabalhando arduamente e resistindo a todos os meus
anseios de voltar a pôr o meu plano em prática. Sabia de antemão que a
cadência dos crimes tinha de ser estritamente respeitada, apesar do meu
desejo constante de me ver livre deles todos numa semana e arcar com as
consequências. Os crimes iniciais e, convenhamos, mais irrelevantes,
tinham de ser bem espaçados no tempo, para não levantar suspeitas logo de
início. «Acidentes trágicos» era o que eu queria que as pessoas pensassem.
Isto poderia então evoluir para um «período de infelicidade para a família»,
até se atingir uma «maldição do clã Artemis». Com sorte, o último
homicídio poderia levar algumas pessoas a murmurar algo relacionado com
jogo sujo, mas por essa altura já toda a família estaria morta e enterrada e
haveria muitos outros para tirar partido disso. Estava confiante de que
ninguém teria pressa em vingá-los.
Por isso iria deixar a poeira assentar depois de Andrew. E eu não tinha
sentido grande alegria ao olhar para o que tinha acontecido, ao contrário da
euforia que experimentara quando Kathleen e Jeremy rebolaram por aquela
ribanceira abaixo, por isso ficaria contente por me retirar durante algum
tempo. Sabia que o funeral de Andrew tinha sido bastante concorrido, por
pessoas sisudas de impermeável, bem como de colegas de escolas privadas
com faces ruborescentes. Tinha lido que a mãe, Lara, tinha ficado
completamente devastada pela morte do seu único filho, não fazendo
comentários públicos, mas renunciando ao seu trabalho como vice-
presidente da Artemis Holdings, e fundado uma associação de caridade para
a preservação da vida selvagem em nome de Andrew. Eu perguntava-me se
o incidente a teria levado a afastar-se não só da marca como da própria
família. Lee continuava a figurar plenamente nas colunas sociais, mas Lara
parecia ter-se retirado de Londres, permanecendo sobretudo na casa de
campo em Oxfordshire. Já vi a propriedade no Rightmove. O edifício
principal é inteiramente pintado em tons de cinzento esbatido, e há uma
grande variedade de tapetes persas por todo o lado, mas também há espaço
para jogar golfe na propriedade e tem a maior banheira de água quente que
alguma vez vi, com vista para o jardim. Não é difícil adivinhar quem
escolheu o quê ali. Se vos ajudar, Lee usa botas de cowboy e diz que são «a
sua imagem de marca».
A julgar pelo que li, Lara parecia ser totalmente inadaptada ao estilo de
vida Artemis. Talvez seja por isso que comecei por pensar que Lee pudesse
não ser tão hediondo como aparentava ser, apesar de todos os indícios que
apontavam no sentido de ele ser exatamente isso. Ela era inteligente, com
média de Bom em Cambridge e mestre em Administração de Empresas de
uma universidade da Ivy League4. Ele era um oportunista, versado em
privilégios e ganância. A família Artemis podia ser sagaz, mas eu estava
convicta de que Lara raramente tinha o estímulo de uma conversa
inteligente à mesa do jantar com a família. De acordo com Tina, que
continuava a desmultiplicar-se em mexericos quando estava comigo,
mesmo muito depois de eu ter abandonado o escritório, ainda havia grande
perplexidade em relação à escolha conjugal de Lara.
— Ele era bonito, toda a gente achava que sim. Não revires os olhos! E
importante quando se é novo. E era bom a adaptar o seu comportamento
para espelhar as pessoas à sua volta. Punha uns olhos muito grandes e
inspirados quando ela falava, e comentava com toda a gente como ela era
inteligente. Ela era tímida, mas dava para ver que ficava lisonjeada com as
suas atenções. Esta jovem de aspeto adorável, esquisita como tudo, mas tão,
tão inteligente. Não estava preparada para um homem como Lee, e quando
percebeu quem ele era, já era demasiado tarde. Claro que os pais dele não
gostaram de saber que ela era mestiça. Não o disseram explicitamente, mas
era óbvio. E ele fê-los calarem-se por completo. Ele amava-a mesmo, acho
eu. À sua maneira.
Era uma explicação fraca e não parecia ser suficiente para Lara. Aos 18
anos, podemos ser enganadas por um homem daqueles, mas aprendemos.
Aprendemos depressa ou acabamos encurraladas.
Quando conheci o marido de Lara, a lógica de Tina parecia ainda mais
frágil. Lee era o irmão mais novo de Simon, com três anos de diferença. A
fazer fé nas edições antigas da revista Hello! (e eu tinha comprado os
números dos seis últimos anos no eBay para procurar referências ao nome
Artemis, o que também me serviu para me pôr a par dos vários escândalos
dos nomes menores das casas reais europeias), então Simon terá sido o
exemplo extremo do playboy nos seus tempos áureos, nos anos 90, mas Lee
era a sua sombra entusiástica. Era igualmente bem-parecido para a época
(com a aparência de um sociopata impiedoso — porque é que isso seria
considerado atraente na altura?), com um rosto constantemente bronzeado,
cabelo negro-azeviche, acachapado. O que até parecia jogar a seu favor,
quando ainda era magro e sem rugas. As fotografias mostram-no rodeado de
mulheres, por vezes, com uma garrafa de litro e meio de champanhe na
mão. Mas, 20 anos mais tarde, este mesmo visual estava um pouco
estragado pelos pequenos círculos brancos à volta dos seus olhos que
mostravam que o bronzeado era feito num solário dos subúrbios, e o
colarinho ligeiramente borratado em redor do pescoço que aparecia quando
ele transpirava, revelando que talvez não tivesse dado uma gorjeta
suficiente à sua colorista.
Lee nunca foi uma ovelha negra completa. Nunca teve problemas de
adição graves, apesar de ser indubitavelmente reincidente. Nada de
bancarrotas, apesar de ter sido CEO de nada menos do que 27 empresas
diferentes, as quais fecharam todas ao fim de alguns meses. Uma dessas
empresas, a GoGoGirl Pictures, foi encerrada ao fim de 63 dias. O nome
não dava propriamente a entender que ele estivesse a contar fazer cinema de
autor. Talvez a sua mãe colecionadora de pérolas tenha ouvido falar nisto e
tenha posto termo à coisa.
Kathleen e Jeremy tinham Simon para segurar o nome da família. Ele
era uma história de sucesso, o tipo que comprou a sua entrada nos jantares
da realeza e apertava a mão ao mayor, ao primeiro-ministro e a qualquer
pessoa que fosse facilmente influenciada pelo seu dinheiro, o que
significava a maior parte. Até as pessoas decentes ficam doidas quando se
deparam com os muito ricos. Podem ter opiniões firmes sobre as
desigualdades de riqueza, e pensar que os ricos gerem injustamente um
sistema em que enriquecem ainda mais em detrimento de todos os outros
membros da sociedade, mas deem-lhes uma taça de champanhe e peçam-
lhes para posar com um milionário que lhes possa arranjar um emprego ou
passar um cheque à sua organização e é vê-las sorrir afetadamente como os
melhores.
Antes dos vários escândalos que envolveram o grupo Artemis, chegou
mesmo a falar-se na possibilidade de Simon ser ordenado cavaleiro, o que
era uma loucura, visto que o máximo que ele fez por alguém foi comparecer
em meia dúzia de jantares anuais de caridade e licitar prémios estúpidos
oferecidos por outras pessoas ricas. Uma vez fez as parangonas dos jornais
por comprar uma pintura de um cavalo de um artista controverso, mas
popular, que vendia o seu lixo por milhões. Mas não podia ser
simplesmente uma bela pintura realista, nada tão simples como uma pintura
de George Stubbs que requeresse prática e técnica. O cavalo tinha
de ter o focinho do comprador. Foi vendido por 300 mil paus. E agora,
algures na mansão Artemis, pende orgulhosamente um centauro gigante.
Era uma parte da herança a que eu delicadamente renunciaria.
Seja como for, a ideia da condecoração foi discretamente abandonada,
mas Simon permaneceu respeitável — tido como um ícone dos negócios
britânicos. E, por causa disso, Lee ficou com o estereótipo do irmão mais
novo, irresponsável e inconsequente. Era salvo quando fazia disparates
(uma vez subindo até à plataforma de observação da Catedral de São Paulo
embriagado, depois de um jogo de futebol, ao mesmo tempo que fazia um
vídeo dos seus colegas a cantar e a mostrar o rabo por cima do corrimão.
Alguém fez uma chamada, e depois de um veemente pedido de desculpas à
Igreja de Inglaterra, o assunto foi dado como encerrado) e, quando as suas
próprias tentativas de fazer carreira descarrilavam, recebia empregos da
família, aos quais pouco se dedicava. Com efeito, imagino que fosse
bastante incentivado a não levar o seu papel na empresa demasiado a sério,
por receio de que fizesse asneira.
Aos 29 anos, conheceu Lara através do seu trabalho na Artemis
Holdings, tendo casado com ela oito meses depois com uma festa
extravagante de três dias numa ilha grega. Um dos Bee Gees foi lá tocar, e
um tabloide enviou um repórter que se infiltrou na festa disfarçado de
empregado. A peça comprazia-se em comentar o comportamento idiota de
vários convidados famosos, incluindo uma modelo que ficou tão
embriagada que caiu na piscina com um vestido com pérolas incrustadas
que tinha alugado para a ocasião. De acordo com Tina, que não esteve lá,
mas que fazia sempre o trabalho de casa, Lara estava com dúvidas antes do
casamento, mas tinha-lhe sido garantido que a grande ocasião era uma vez
sem exemplo, apenas para a família e os amigos antes de eles assentarem.
Lee prometeu-lhe que os dias de boémia tinham acabado, e propôs-se criar
um futuro em que ela pudesse ser a chefe da família. Tão pouco que os
homens prometem — e tanto que nós nos agarramos a isso.
A família tinha-lhes comprado uma grande casa com estuques em
Chelsea, mesmo à saída de Kings Road, e tiveram Andrew pouco depois de
se mudarem para lá. Lara progrediu na carreira e parecia passar o resto do
tempo ou a organizar almoços de caridade para grupos meritórios ou a fazer
pressão sobre o governo em nome das crianças vulneráveis. A família deve
ter tolerado a natureza caridosa de Lara, reconhecendo que lhes emprestava
um ar de respeitabilidade, mas imagino que o marido tenha traçado uma
linha clara para que estes praticantes do bem jamais pusessem os pés em
sua casa. Na sua própria vida, Lee continuou a incorrer nos excessos dos
seus 20 anos, aparecendo frequentemente nas colunas sociais fotografado
em clubes noturnos, atravessando Kings Road no seu novo bólide, sendo
ocasionalmente nomeado sócio em novos bares e restaurantes que
acabavam por fechar seis meses depois, quando o verdadeiro dono se
apercebia de que as margens estreitas e as longas horas de expediente não
eram tão glamorosas como a noite de abertura talvez tivesse dado a
entender.
Desconfio que Lee gostava de mais do que beber uns copos e cortejar
mulheres quando saía. A sua cara, outrora firme e aguda, estava inchada, e
os olhos pareciam sempre ligeiramente esgazeados nas fotografias dos
paparazzi.
As mais das vezes, quando saía à noite era conduzido pela cidade num
sinistro Bentley verde. Isto, depois de uma multa por embriaguez logo pela
manhã (retirada depois de um bom advogado argumentar que a sua
medicação para a constipação tinha interferido com outra medicação mais
privada — os jornais divertiram-se bastante com este fraseado subtil) o ter
persuadido de que contratar um motorista permanente era um investimento
sensato. Isto significava que era fácil descobrir onde é que ele estava se por
acaso estivéssemos na cidade nessa noite, pois o carro estacionava sempre
em segunda fila, mesmo nas ruas mais estreitas de Londres, começando a
noite nos bares mais sofisticados que Mayfair tinha para oferecer, passando
aos clubes privados, e, pelas três da manhã, quando a maior parte dos
notívagos começava a dispersar, serpenteando até ao bairro chinês, com
destino aos locais mais sórdidos que não faziam questão de anunciar
claramente o que lá se passava ao certo.
Eu sabia disto porque costumava seguir o Bentley por diversas vezes
pela cidade. Era a maneira mais fácil de investigar Lee. Ele não estava nas
redes sociais, tirando uma conta do Facebook que mal chegou a utilizar e
que parecia morrer algures em 2010, mas que começou por me dar algum
gozo ao ver a sua inclinação por jogos para ver que animal ele seria e que
superpoder estaria mais vocacionado para possuir (suricata, olhos-laser).
Raramente saía de casa antes das três da tarde para fazer um pouco de
exercício, depois ia sempre tomar um café a Knightsbridge, onde se
encontrava com outros homens de mocassins Gucci para pôr a conversa em
dia num café que servia bebidas em chávenas douradas. Punham todos os
telemóveis em cima da mesa, como se estivessem a gerir o país e pudessem
ter de se retirar a qualquer momento. Eu sentei-me junto à sua mesa uma ou
duas vezes, e ouvi-os falar nas ações em que se devia investir, nas viagens a
Las Vegas que iriam fazer, ao mesmo tempo que faziam um ou outro
comentário misógino só para manter a conversa leve. Homens de estado não
eram.
A melhor hora para encontrar o meu irreverente tio era de noite. Quanto
mais eu via este mundo crepuscular, mais me perguntava se ele alguma vez
teria levado Andrew com ele numa dessas excursões. Isso explicaria muita
coisa sobre o porquê de o meu primo se ter refugiado nas rãs. Ao fim de
algumas noites a seguir o carro, mas sem nunca entrar nos estabelecimentos
que Lee frequentava, dei o salto. Nunca tinha tentado entrar nas secções
VIP dos clubes que ele visitava, pois parecia ser demasiado degradante ter
de me embonecar para tentar seduzir um porteiro. Mas os bares eram mais
fáceis, e as espeluncas do bairro chinês eram canja. Podia acabar a noite a
beber um copo mesmo ao lado do seu bando, a observar, a escutar.
O seu principal objetivo era apenas ser visto, tanto quanto me era dado a
entender. O champanhe era servido à garrafa, atiravam-se mil beijos pelo ar
às jovens presentes, os homens davam apertos de mão agarrando-se uns aos
outros pelos pulsos, os relógios semipreciosos projetavam reflexos no teto.
Meia hora depois, com novas pessoas no grupo, e outras descartadas, Lee e
o seu séquito saíam e passavam à capela seguinte. Por volta da meia-noite,
as idas à casa de banho tornavam-se mais frequentes e Lee começava a ficar
mais animado, insistindo em voz alta em que as pessoas «fizessem a festa»,
e agarrando os seus companheiros corpulentos pelo pescoço. Por volta das
três da manhã, já eu estava morta de tédio e a beber água. Nenhum deles
reparou em mim, eu não era rapariga que os fizesse olhar para trás. Não era
suficientemente jovem. E não exibia os meus atributos. Andava sempre com
umas calças de fato pretas e uma t-shirt, um pouco de batom pelo esforço e
uns saltos altos. Os sapatos eram a minha única concessão. Se eu tentasse
usar sapatos rasos e flexíveis em bares como aqueles que Lee frequentava,
eles partiriam do princípio de que eu era uma espécie de agente policial
disfarçada e olhar-me-iam com suspeição.
Na minha terceira missão de observação falei pela primeira vez com
Lee. Não tinha planeado fazê-lo — nada dependia de eu o vir a conhecer
melhor —, mas achei que seria mais divertido do que vê-lo beber shots e
tentar dançar tão mal que uma rapariga tipo modelo chegou ao ponto de se
retrair e de sacudir a mão dele do seu ombro.
Lee e o seu grupo tinham ido a um clube privado perto de Berkeley
Square, em Mayfair, e eu dirigi-me ao bar em frente, sabendo que não valia
a pena gastar o meu latim a tentar entrar num estabelecimento com cordas
vermelhas à volta e um velhote de cartola como segurança. Sentei-me à
janela a beberricar um copo de rosé, à espera do momento em que o Bentley
aparecesse, o que sinalizaria o próximo movimento. O clube devia estar
calmo nessa noite, porque o carro estacionou à porta à uma da manhã. Eu
saí do bar à pressa e mandei parar um táxi, dizendo ao motorista que
seguisse os meus amigos que iam ali à nossa à frente. A explicação pareceu-
me fraca, e eu senti-me desconfortável por dentro, mas ele nem sequer
pestanejou. Tal como previsto, fomos direitos ao bairro chinês,
estacionando à porta de um sítio que eu nunca tinha visto. Em boa verdade,
não era bem um bar. Não era bem coisa nenhuma. Era uma pequena porta
sem qualquer sinal ou cardápio, ensanduichada entre dois restaurantes de
dim sum, um sítio pelo qual poderíamos passar milhares de vezes sem
reparar que estava ali. Vi Lee e dois comparsas encorpados tocar num
intercomunicador e empurrar uma porta antiga. Uma fração de segundo
antes de a porta se fechar, meti o pé na ombreira da porta e esgueirei-me.
Deixei os passos deles esvanecerem-se antes de os seguir, para evitar dar de
caras com eles nas escadas estreitas. O local era sombrio, com papel de
parede vermelho-escuro e uma alcatifa desbotada. Tudo ali me parecia
gritar «bordel», exceto a música house muito alta que se ouvia vinda do
andar de cima. Isso deu-me confiança para pelo menos tentar aceder ao
local. Estivesse aquilo em silêncio e ter-me-ia ido embora imediatamente.
Esperei alguns minutos no vão das escadas e subi. A porta que se me
deparou era uma grande porta corta-fogo preta, e eu empurrei-a
hesitantemente. Atrás dela estava uma pequena sala, presumivelmente uma
antiga zona de receção de um escritório, com persianas pretas sobre as
janelas. Duas mulheres atraentes mais ou menos da minha idade estavam
sentadas em bancos altos atrás de uma pequena mesa onde repousavam
copos de champanhe e uma pequena taça com preservativos. Estavam a
sorrir para mim.
— Olá — disse a que tinha um corte de cabelo bob e um risco com uma
asa até às sobrancelhas. — Bem-vinda à Parada do Prazer. Traz o seu
convite?
Eu sempre fui capaz de pensar depressa, sem gaguejar ou evitar o
contacto visual. O truque é sorrir e não dar demasiadas explicações. Isto era
claramente uma festa de sexo. Nunca tinha ido a nenhuma, mas já tinha lido
artigos suficientes em revistas femininas sobre o surto de festas privadas
onde pessoas bonitas se encontram e copulam para perceber o que se estava
a passar aqui. A Vogue tinha referido esses encontros. Porquê acanhar-me?
— Desculpe — disse eu, pondo a mão em cima da mesa. — Estive no
Soho e só me lembrei que isto ia acontecer esta noite, mas estupidamente
esqueci-me de o trazer. Espero que não faça diferença. A Flick disse que
não havia problema.
A outra, que trazia uma bandolete feita de seda verde e umas argolas
douradas, olhou-me de alto a baixo e dirigiu um olhar de relance à do
penteado bob.
— Bem, como sabe, estes eventos assentam na exclusividade e... na
discrição — levou um dedo aos lábios. — Mas se a Flick confirmou, não
deve haver problema. Pode só assinar este formulário e pôr o número de
telefone nesta caixa?
Agradeci a Deus pela palavra mágica. Flick, o nome fino de rapariga
branca capaz de nos abrir as portas em certas ocasiões. Há sempre uma
Flick — talvez fosse uma relações-públicas da festa, ou uma galerista ou
apenas uma amiga de uma amiga. Basta referi-la para dar o sinal de que
somos gente boa, de que estamos por dentro, provavelmente até
conhecemos Floss e India...
Assinei o formulário, que me dizia, basicamente, que eu não devia falar
da Parada do Prazer a outras pessoas nem referir os nomes de nenhum dos
convidados mais distintos. Não devo tirar fotografias ou gravar o que quer
que seja. Tenho de me comprometer a manter as coisas «seguras e
divertidas» em todas as ocasiões, e respeitar as fronteiras dos outros.
Entreguei o telemóvel e a rapariga da bandolete deu-me um preservativo
com uma piscadela de olho.
— Lembre-se de que a sala azul é para jogos desviantes. Se alguém a
incomodar, o Marco está no bar.
— Oh, sim, estou mais que pronta — disse eu, enquanto lhe estendia o
casaco e entrava pela porta por trás delas com mais confiança do que
realmente sentia.
Eu gosto de sexo. Não sou uma pessoa afetada ou reprimida em relação
a isso. É uma atividade divertida de alívio do stress, mesmo quando é
praticado de forma insatisfatória, que é o que acontece grande parte das
vezes quando se está a copular com um homem educado pela pornografia
que pensa que as mulheres precisam de um mínimo de preliminares e
desejam muitas posições flexíveis. Os orgasmos são uma coisa maravilhosa,
especialmente se os tivermos sozinhas e forem seguidos de silêncio, e não
da necessidade desesperada de pôr um homem desconhecido fora da nossa
casa imediatamente. Mas não morro de amores pela positividade exuberante
em relação ao sexo com que somos bombardeados hoje em dia. Mulheres
que nos querem contar tudo sobre o seu percurso sexual, como se desfrutar
do sexo fosse um traço de carácter. Casais que publicam fotografias de si
próprios enroscados nos lençóis nas redes sociais, fingindo que a sua
gabarolice pós-coital é arte. Péssimos ensaios e poesia amadora sobre
fornicação. O sexo é para se fazer, não para dissertarmos sobre ele.
As festas de sexo sempre me pareceram uma maneira de pessoas
aborrecidas mostrarem aos outros haver nelas um lado mais interessante. E
talvez houvesse, se uma pessoa iniciasse subitamente uma orgia num
supermercado da baixa da cidade, mas um convite sofisticado dirigido
apenas ao West End, onde as raparigas usam lindas bandoletes, não me
parece uma coisa nada alternativa. É como um ginásio de luxo onde os
batidos custam 9 libras e o dispensador de gel de banho é feito por um
designer famoso e toda a gente vem exibir o seu corpo em leggings das
lojas da moda, mal prestando atenção ao exercício físico propriamente dito.
É tudo uma atuação.
Entrar naquela festa nessa noite não contribuiu em nada para me
desenganar desse preconceito. A primeira sala era o bar, onde havia pessoas
completamente vestidas a conversar e a beber de copos de cristal. A luz era
difusa, mas eu consegui distinguir uma mala Gucci, o brilho de um anel de
diamantes, a mistura inebriante de demasiados perfumes Tom Ford
confundindo-se uns com os outros. Era tudo rico e banal, e haver trocas de
fluidos corporais nas salas contíguas não tornava nada diferente.
A música estava muito alta, talvez para disfarçar os sons de êxtase que
vinham das outras divisões, e eu encaminhei-me para o bar, tentando
localizar Lee na escuridão e esperando que ele não tivesse ido já para a sala
de sexo, sobretudo porque, se assim fosse, tudo isto seria em vão, mas
também porque não queria ter de ver o meu tio nu. Eu era ambiciosa nos
meus planos de vingança, mas tinha de estabelecer limites, e acontece que o
limite era ter de ver um parente meu a esfalfar-se em cima de uma mulher
que eu presumia que fosse pelo menos 20 anos mais nova do que ele. Não
era aí que eu esperava que estivesse o meu nível de melindre depois de
matar três pessoas, mas é o que é.
Enquanto o empregado do bar me preparava um Martini (detesto
cocktails, mas apetecia-me desempenhar um papel), estudei as pessoas à
minha volta. Um casal com bom aspeto na casa dos trintas — ele de camisa
azul e calças chino, ela com um vestido de seda verde com uns saltos altos
cor-de-rosa e uma expressão ligeiramente apreensiva — encontrava-se ao
meu lado no balcão. Ele estava a segurar a mão dela e a olhar para trás,
sorrindo-me. Devolvi o sorriso, mas desviei o olhar abruptamente. Não
queria enredar-me em conversas. A julgar pela frequência com que ela lhe
sussurrava coisas ao ouvido, e pela maneira como ele a reconfortava,
afagando-lhe as costas, era óbvio que ela só ali estava para lhe fazer a
vontade. Esperava que eles não me elegessem como escolha ideal para a sua
primeira e infeliz ménage à trois.
No outro extremo da sala, consegui distinguir duas mulheres, ambas
magras como galgos e igualmente elegantes e nervosas, sentadas juntas
num sofá de veludo de peluche enquanto um homem algo atarracado se
agachava aos seus pés a falar com elas. A julgar pela maneira como as suas
mãos gesticulavam, estava claramente a tentar ser agradável, mas os
sorrisos polidos e os olhares inconstantes delas eram um sinal inequívoco
de fastio. Não parecia que estivessem propriamente desesperadas para
trepar por ele acima como a uma árvore. Na verdade, havia muito pouca
energia sexual a vibrar nas pessoas que estavam à minha volta. A sala
parecia silenciada e com uma atmosfera algo desconfortável, como se toda a
gente estivesse à espera de que alguém tomasse a iniciativa de pôr as coisas
a mexer. Talvez ainda ninguém tivesse ingerido álcool suficiente.
Senti uma cotovelada brusca no braço que me retirou o apoio do balcão
e me entornou a bebida do copo.
Olhei à volta e vi que um dos amigos de Lee se tinha acotovelado até ao
balcão, sem se dar ao trabalho de ver que o espaço que agora ocupava tinha
sido ocupado por outra pessoa alguns segundos antes. Os homens fazem
muitas vezes isto, estendendo as pernas no metro como se tivessem uma
necessidade inata de preencher qualquer espaço que não esteja ocupado, ou
então caminhando no meio de um passeio estreito e ficando quase
surpreendidos quando vão de encontro a nós, ou então quando tentam
ganhar posição numa fila como se uma pessoa fosse autorizá-los a passar à
frente. Nem sequer reparam no que estão a fazer. Eles são importantes, as
suas necessidades são importantes. Nós não somos assim tão importantes.
Nós não somos nada importantes. A não ser que sejamos atraentes para eles.
Aí, sim, o nosso espaço é ocupado de outras formas. Os homens metem-se à
nossa frente e bloqueiam-nos o caminho para captar a nossa atenção.
Abrandam o carro para nos fazerem sentir desconfortáveis enquanto
atravessamos a rua. Pairam sobre nós nos bares, tocando-nos no braço,
segurando-nos a mão. Se tivermos sorte, apenas a nossa mão.
Eu não me afastei nem mais um milímetro. Em vez disso, cravei os
olhos no perfil suado do homem enquanto ele tentava chamar o empregado.
Se alguém nos fitar por tempo suficiente, acabamos por ser obrigados a
retribuir o olhar. O tipo levou um minuto, mas finalmente lá olhou para
mim.
— Acabou de entornar a minha bebida — disse eu, sem mexer a cara
nem qualquer outra parte do corpo. Sem pestanejar.
— Estou a tentar pedir uma bebida, querida, dê-me um segundo — disse
ele, e virou costas outra vez. Eu senti a raiva a crescer, e a minha cara
começou a ficar quente.
— Entornou a minha bebida. O que é que vai fazer em relação a isso?
— O homem vira-se novamente para mim, cerrando o punho em cima do
balcão.
— Não pense que me vai convencer a oferecer-lhe bebidas. Não sou
nenhum idiota. — Fez um gesto a um amigo e um encolher de ombros de
indiferença. No preciso momento em que eu estava prestes a explodir de
cólera, Lee intrometeu-se. Tapou a visão do seu amiguinho corpulento e
juntou as mãos como se estivesse a rezar.
— Peço desculpa pelo meu amigo, querida, ele não é um bom
cavalheiro, mas vi que ele te fez perder um bom copo de vinho e gostaria
muito de pagar um para te compensar. — Arreganhou-me um sorriso,
envolvendo as minhas mãos nas dele e fazendo-as repousar no balcão, antes
de fazer sinal ao empregado para me trazer uma nova bebida.
E foi assim que dei por mim a conversar com o meu tio. Ele era
encantador, daquela maneira que a minha mãe costumava descrever a
respeito de Simon. Todo ele conversa e sorrisos. A confiança para assumir o
controlo e tomar liberdades sem incorrer em verdadeiras ofensas. Eu
permiti que ele me pedisse o vinho. Não lhe disse que estava a beber um
Martini. Não objetei por ele ter escolhido um de que eu não gostava por aí
além, e não recuei quando ele tocou nas minhas mãos sem pedir
autorização. Não havia nada de apreciável ou interessante no seu
comportamento, era mais uma questão de ele estar plenamente confiante de
que era um homem todo-poderoso e agir como se toda gente também o
soubesse. Homens destes conseguem muita coisa. Mesmo que uma pessoa
deteste este tipo de atitude, por vezes, é difícil contrariá-la. E depois, mais
tarde, acaba por se odiar a si mesma por tê-la permitido.
Lee obrigou o amigo, a quem chamava «Scotty, o cão escocês», a pedir-
me desculpa, antes de o deixar voltar para o balcão onde este se dirigiu
imediatamente para uma porta que ficava à esquerda do bar.
— Não perde tempo, o Scott — pestanejou Lee. — Então o que é que
traz uma rapariga como tu a um sítio destes, afinal?
Eu disse-lhe que a minha amiga me tinha recomendado estes convívios
como um bom ponto de partida para quem estiver interessado em se
envolver na cena. Lee abanou a cabeça.
— É um grupo convencional, não acontece nada de muito ousado por
aqui, algumas quecas, algumas cenas giras de rapariga com rapariga. Não é
suficientemente hardcore para o meu gosto, mas numa quinta-feira de
chuva até pode servir.
— Então do que é que tu gostas? — perguntei eu, sentindo-me cada vez
mais ciente de que isto poderia dar a ideia de que o estava a cortejar e tendo
de reprimir a leve náusea que começava a sentir crescer dentro de mim. No
entanto, é difícil não parecer que estamos a cortejar o próximo numa festa
de sexo, até mesmo uma conversa sobre impostos municipais pode acabar
por se revelar sugestiva se estivermos a cinco metros de pessoas a fazer
sexo com estranhos.
Ele inclinou a cabeça e sorriu-me. Percebi que só agora é que ele estava
a olhar para a minha cara como deve ser, fazendo mesmo uma pausa para
me prestar atenção. Estava a avaliar-me, talvez para me fazer uma proposta,
ou talvez por simples excentricidade. Dei um golinho no meu vinho e tentei
não parecer coquete. Se ele quisesse contar-me as suas inclinações sexuais,
era uma coisa, mas eu não iria tentar aliciá-lo para que o fizesse.
— Isso é uma pergunta ousada, tendo em conta que ainda estamos
vestidos, senhorita. — Lee sorriu desdenhosamente e olhou para o relógio,
um grande Rolex de prata pintalgado de diamantes que lançavam reflexos
cintilantes sobre o tampo do balcão. — Não é nada que uma boa rapariga
como tu esteja interessada em saber, acredita. Experimenta este sítio para
principiantes, depois falamos.
A abordagem de menina ingénua e inocente não estava a funcionar. Já o
estava a deixar entediado.
— Então, gostas de ser humilhado, é essa a tua cena? O ricalhaço, a
quem nunca ninguém diz não, é tratado como um príncipe, mas o que
realmente quer é que alguém lhe devolva o seu próprio sentimento de
fracasso? Ou talvez gostes que te batam. Esmurrado em todo o lado. Ou
será que queres ser comido? Tu não és gay, oh, não, Deus te livre, mas
queres que alguém te empurre e te domine? Não é assim tão interessante,
para te ser franca. Achas que os teus fetiches são únicos ou diferentes? Não
são, companheiro, isso garanto-te eu.
Isto fê-lo rir. Os homens riem-se muitas vezes com surpresa quando
acham uma mulher engraçada, como se isso fosse uma qualidade que não
era suposto elas possuírem. Lee estava novamente envolvido, tinha-o
reconquistado. A minha dignidade sofreu grandes rombos enquanto tentava
ver-me livre desta família horrível. O resultado valeria a pena, disso não
tenho dúvidas, mas andar a passear por Marbella, a arrancar ervas num
centro de conservação da natureza, e agora conversar sobre sexo com o meu
tio... era, sem dúvida, uma provação. De certa maneira, fez-me lembrar uma
passagem de Sensibilidade e bom senso: «A renda aqui pode ser baixa, mas
creio que se nos coloca em termos muito difíceis».
— Não te deixas impressionar facilmente, pois não? — Olhou em volta,
como se estivesse a preparar-se para divulgar segredos de Estado. — OK,
Senhora Já-Viu-Tudo, gosto de um bocadinho de asfixia. Cintos, lenços,
seja o que for que funcione. Perder o fôlego enquanto nos aproximamos do
momento de glória. É muito louco, digo-te eu. Sempre gostei disso.
Suponho que um psiquiatra com uma grande cabeça diria que é porque um
dia quase me afoguei na piscina lá de casa quando tinha 10 anos ou outro
disparate qualquer, mas vá-se lá saber...
Olhei para a mão dele de modo incisivo.
— A tua mulher alinha? — perguntei, sorrindo e olhando para a aliança.
— Imagino que ela gostasse de te apertar o pescoço de vez em quando.
Em seu duvidoso benefício, devo dizer que Lee nem sequer se esforçou
por parecer envergonhado.
— A minha mulher é... tem classe. Ignora alguns dos meus passatempos
e eu deixo-a continuar a redecorar a nossa cozinha pela 18.a vez. Agora,
metade do tempo, comporta-se como uma senhora de idade. Eu percebo, ela
tem uma vida boa graças a mim, o objetivo do casamento é esse. Mas os
homens e as mulheres são espécies diferentes, sabes? Eu ainda tenho
desejos. Se ela não me quer ajudar a realizá-los, não pode ficar muito
surpreendida por eu ir procurar resolvê-los noutro lado.
Nesse momento, o outro amigo de Lee correu em direção a nós,
entornando a bebida e chocando com um grupo de pessoas que se
encontravam por perto.
— Oh, valha-me Deus, é o Benj, a noite para ele acabou aqui — disse
Lee. — Gostei de te conhecer, querida, não faças nada que eu não fizesse.
Eu reprimi a necessidade de fazer uma careta e acenei-lhe com uma
mão, enquanto ele se encarregava do seu amigo e o encaminhava para fora
do bar.
Esperei mais cinco minutos para ter a certeza de que eles se tinham ido
embora, acabei de beber aquele vinho horrível e saí, dando bastante espaço
ao casal nervoso que agora discutia à porta, com a maquilhagem a diluir-se
debaixo dos olhos dela. As raparigas da receção acenaram-me alegremente
enquanto eu saía, nada surpreendidas pela curta duração da minha estadia.
Talvez haja muitas pessoas a fazer visitas-relâmpago a festas de sexo...
Fiz a minha viagem de táxi para casa com toda a espécie de ideias
interessantes a formarem-se na minha cabeça. Que homem generoso que era
o meu tio. Em apenas 20 minutos, tinha-me oferecido uma bebida e uma
dica sobre como o matar. Quem é que disse que os ultrarricos não ajudam
os necessitados?
***
Adormeci durante a massagem, apesar da forte pressão que o massagista
aplicou, e depois tomei um banho demorado, relendo a minha velha edição
maltratada de O segundo sexo antes de depilar as pernas e fazer um bom
tratamento ao cabelo. Comecei a ler literatura feminista aos 16 anos,
quando a mãe de Jimmy começou a ficar preocupada com o tempo que eu
passava com Jimmy e os seus colegas. Acho que ela pensava que a ausência
de modelos de conduta femininos poderia levar-me por um caminho que me
tornaria completamente mal preparada para lidar com as desvantagens que o
meu sexo acarretava. Isto era tipicamente bem-intencionado por parte de
Sophie, mas também mostrava até que ponto ela era privilegiada. Uma
mulher branca e rica, isolada da discriminação de todas as maneiras
possíveis, mas muito empenhada em falar no assunto em termos gerais de
indignação. Os Latimer e os seus amigos eram mestres nisto — abanando a
cabeça em relação ao fecho da mercearia da esquina, quando todos os dias
passavam por ela para ir ao minimercado de luxo mais próximo, falando
alto sobre as horas de baixa que pagavam à sua empregada para depois se
verem livres dela quando ela deixou de poder trabalhar às quartas-feiras. «É
um grande desgosto, ela já estava connosco há dez anos, mas as terças-
feiras não nos dão jeito nenhum.»
Terá pensado que eu não tinha conhecimento da forma como o mundo
tratava as mulheres? Eu sabia como o sistema estava montado contra as
mulheres muito antes de sequer saber as palavras certas para descrever a
maneira como somos marginalizadas, dispensadas, desconsideradas. Eu via
como isso corroía a minha mãe de dia para dia. Educada por pais severos
que tinham opiniões rígidas sobre a forma como as raparigas se deviam
comportar (e que a rejeitaram quando ela decidiu viver a vida dela de uma
maneira diferente), estimada pela sua beleza até ao dia em que a perdeu,
usada por um homem por divertimento até este se aborrecer. Trabalhando
arduamente numa série de empregos mal pagos onde nunca foi devidamente
valorizada. Educando uma criança sozinha sem que isso contasse para nada.
Mas a introdução à literatura feminista foi uma revelação, e eu estarei
sempre grata a Sophie por isso. Talvez eu estivesse a passar demasiado
tempo com rapazes, adaptando o meu comportamento para me conciliar
com eles. Sem um curso intensivo sobre as obras de Wollstonecraft, De
Beauvoir e Plath, talvez tivesse suprimido as primeiras centelhas de revolta
que senti, tentado viver humildemente, como as mulheres são tacitamente
ensinadas a fazer desde o dia em que nascem. Mas ler acerca de outras
mulheres revoltadas tornou-me mais corajosa, permitiu-me alimentar a
minha raiva, vê-la como uma coisa justa e digna. Claro que não pretendo
tornar estas mulheres responsáveis pela mais pequena parte dos meus atos
ulteriores, apesar de ter a certeza de que os tabloides salivariam face à
possibilidade de construir uma narrativa de uma «vil feminista» se a minha
história alguma vez se tomar pública.
Houve um livro que me fez ver a vingança maligna a uma luz mais
favorável: A câmara sangrenta, de Angela Carter. Este não me foi oferecido
por Sophie, foi um livro que eu encontrei numa livraria no Soho numa tarde
chuvosa de outono logo após o meu 17.° aniversário, num dia que passara
sozinha na cidade. A capa chamou-me a atenção do alto de uma pilha de
livros, o remoinho de linhas vermelhas e pretas parecia complementar
aquilo que se passava na minha cabeça de adolescente. Dei uma vista de
olhos rápida à sinopse, levei-o até à caixa registadora e li-o de enfiada num
café de turistas sombrio à saída de Tottenham Court Road. Os seus contos
de fadas negros, onde as mulheres urdem intrigas e enganos, abriram uma
porta no meu espírito. Eu via que, da mesma maneira que não temos de ser
humildes e caladas e fracas, as mulheres também não tinham de ser boas ou
fortes, virtuosas, mas sempre sacrificadas. Podíamos ser dissimuladas,
pensar apenas em nós mesmas, movidas por desejos a que não ousamos dar
voz. Acabei o livro e caminhei pela rua com um sentimento de que se me
haviam aberto novas possibilidades. Dei um exemplar a Annabelle no Natal
seguinte, pensando que aquela criança nervosa podia beneficiar daquele
estímulo, mas Sophie mordeu os lábios enquanto via a filha desembrulhar o
livro. Depois do almoço, chamou-me à parte para me dizer que Annabelle
era demasiado sensível para ler semelhantes histórias de terror.
— Sinceramente, Grace, eu sei que és uma rapariga forte, mas a Belle
sofre terrivelmente com as suas preocupações, e acho mesmo que devias ter
pensado nisso. Ela admira-te e agora é evidente que está ansiosa por ler
aquele livro. Vou ter de ser eu a proibi-lo até ela ser um pouco mais velha.
Podes trocá-lo pelo Primo Levi? Ela vai estudar a Segunda Guerra Mundial
no próximo período.
Eu limitei-me a olhar para ela até ela se levantar e ir a correr mexer o
molho de carne. Substituí um livro de fadas por um grito de dor da vida real
sobre a pior coisa que a Humanidade alguma vez fez. Annabelle teve
pesadelos durante três dias depois de ler Se isto é um homem. Sophie ficou
muito orgulhosa por ver quão sensível era a filha.
Quando a água ficou fria, sequei cuidadosamente o cabelo,
encaracolando-o levemente para que me caísse sobre as costas em tranças
suaves. Pintei as unhas de cor de laranja brilhante e enfiei uns collants
novos devagarinho, para não os desfiar logo ao estreá-los. O vestido que
escolhi usar nessa noite era um vestido preto curto, com mangas compridas
e uma gola alta com pregas. Dava-me um ar austero, mas de uma maneira
que me agradava. Depois de me aventurar pela primeira vez no mundo dos
clubes de sexo, onde o meu tio tão generosamente me instilara a ideia para
este homicídio, fui à Internet fazer a minha pesquisa. Existem dezenas deles
na capital, numa escala deslizante que vai de «um baile de máscaras cheio
de modelos» a «conte com uma ponta de tristeza e traga toalhetes
antibacterianos adequados». Mas era fácil perceber quais deles evitar — «o
local fica a três minutos a pé do drive-thru do McDonald’s» ou «traga a sua
própria bebida, nada de latas» foram imediatamente postos de lado. Lee
dificilmente frequentaria uma festa de sexo numa circular algures perto de
Wembley. Eu estava contente por estar a fazer a minha pesquisa, mas não
queria nada que ficasse perto de uma zona industrial. Já tive tristezas
suficientes na vida.
Depois de procurar numa série de sites genéricos de festas de sexo, onde
a palavra «divertimento» é repetidamente utilizada como se estivéssemos a
planear ir a um parque temático, encontrei três clubes de maior gabarito que
encorajavam a asfixia, o BDSM e jogos de dominação, e assinei as listas de
e-mail. Não eram tão descontraídos como o clube do bairro chinês. Era-nos
pedida uma fotografia e um pequeno parágrafo sobre nós antes de
tomarmos parte nos eventos. Enviei uma fotografia de uma instagrammer
mais ou menos famosa que era suficientemente parecida comigo para não
levantar questões à porta e três linhas de tretas a dizer que era uma jovem
relações-públicas à procura de novas experiências com desconhecidos
atraentes. Não é difícil entrar nestes sítios se se for uma mulher
razoavelmente atraente, os organizadores são muito mais rigorosos com
homens sozinhos capazes de andar de um lado para o outro a assustar as
pessoas.
Na altura, e apesar de isto ser ridículo em retrospetiva, também tirei um
curso de primeiros socorros. De algum modo, decidi que se ia estrangular
alguém até à morte, talvez fosse bom saber o que é que os peritos
procuravam fazer quando estavam a tentar salvar alguém de tal destino.
Queria saber qual era o ponto de não-retorno, quando os olhos injetados de
sangue e a perda de consciência se tornam irreversíveis. Infelizmente, isto
significava suportar duas horas num centro comunitário em Peckham numa
noite chuvosa de terça-feira, enquanto uma senhora muito ocupada chamada
Deidre andava entre nós a mostrar-nos como executar uma reanimação
cardiorrespiratória em bonecos que pareciam tão velhos como ela. Não é
fácil fazer perguntas sobre estrangulamento como quem não quer a coisa,
mas eu percebi que, apesar de as pessoas normalmente perderem a
consciência em poucos segundos, pode levar quatro minutos até
efetivamente morrerem, apesar de parecer que a pessoa já bateu a bota. Bem
vistas as coisas, não valeu a pena andar a enrolar curativos à volta da mão
de um homem algo suado chamado Anthony que não tirava os olhos de
mim o tempo todo para aprender este fragmento de informação quando
podia simplesmente ter feito uma pesquisa no Google, mas enfim. Agora já
sei que a película aderente pode ser útil para queimaduras ligeiras;
obrigadinha, Deidre.
Quando já estava totalmente pronta, bebi um copo de vinho encostada
ao lavatório da cozinha. Este tipo de festa começa bastante tarde, e eu não
achava que estar completamente sóbria fosse muito confortável. O clube a
que eu ia é gerido pelo filho de um par do reino. Já apareceu nos jornais
muitas vezes, a promover os seus clubes noturnos debochados, mas é muito
mais discreto em relação a esta parte do seu trabalho. Só soube que ele
estava envolvido porque o clube fica no mesmo sítio onde está registada a
sua empresa, um edifício entalado por trás de Regent Street. Faz sentido.
Entreter os ricos e maravilhosos nas nossas festas, e observá-los. Descobrir
aqueles que procuram mais, que arregalam os olhos na pista de dança com o
champanhe à discrição. Têm tudo o que querem, mas querem mais. Um
discreto cartão de visita preto, com um endereço eletrónico gravado em
relevo, entregue juntamente com uma conta monstruosa. «Exclusivo»,
assinala o cartão. Para aqueles que desejem algo mais. É um bom
subproduto do Hon Felix Forth. Ele conhece aqueles clientes. Ele é um
deles. Eu tinha submetido o meu formulário e esperei por uma resposta
durante três semanas.
Quando fínalmente a recebi, era um mero convite com o local e a data.
Nada mais, nem boas-vindas nem instruções. Eu achei que não era suposto
responder ao e-mail a perguntar se devia levar a minha própria mordaça de
bola, por isso fiz o que qualquer millennial faria e «googlei» avaliações a
este clube em particular na Internet. Dos três sítios que tinha espreitado,
este era o mais exclusivo. Os comentários de um site chamado
«sleeksexexperts» falavam presunçosamente de como era difícil conseguir
um convite (acho que provei que estavam enganados), de quão sumptuoso
era o local e de quão pesadas as coisas podiam ficar. Tudo era vago e
revoltante, mas era claro que se eu estava à procura de um sítio onde as
perversões sexuais a sério eram encorajadas, então estava no caminho certo.
Mais do que uma pessoa dizia que nunca tinha sido capaz de alinhar numa
depravação tão completa, o que dava uma ideia estranhamente mundana
num site de comentários concebido para se assemelhar a uma imitação
barata do TripAdvisor.
Eu não tinha maneira de saber se Lee iria lá estar, mas não importava
muito. Ia sobretudo ver quais eram os limites neste género de convívios. Ele
gostava de asfixia, dito pelo próprio. Mas isso era uma fanfarronice,
destinada a fazê-lo parecer mais aventureiro do que realmente era, ou será
que realmente se dispunha a seguir essa linha precária entre a vida e a
morte? E se assim fosse, será que estas festas lhe permitiam fazê-lo, ou teria
de levar a cabo as suas práticas em quartos de hotel discretos onde ninguém
pudesse interrompê-lo ou censurá-lo?
Apanhei o metro para Tottenham Court Road e fiz o resto do caminho a
pé. Sempre gostei de caminhar pela cidade. Quando era mais nova e a casa
dos Latimer se tornava demasiado para mim, palmilhava Hampstead Heath
durante horas com o seu velho cão, Angus, deixando os meus pensamentos
flutuar à minha volta, entrando e saindo da minha própria cabeça a cada
passo. Nada se me pode colar à cabeça quando estou em movimento. É por
isso que adoro correr. Consigo afastar-me dos meus pensamentos
obsessivos, desligar-me dos planos que fiz, aplacar a ânsia de me apressar e
levar tudo por diante. Se não tivesse esse tempo, acho que teria sido
subjugada até à inércia pela atividade do meu cérebro.
Cheguei ao clube às onze e quarenta e cinco. Suficientemente tarde para
não parecer demasiado ansiosa e presa fácil para os depravados
impacientes, suficientemente cedo para não entrar e me confrontar
imediatamente com o sexo. Se o bar do bairro chinês era o bilhete de última
hora para um voo económico até às festas de sexo, então isto era um jato
privado — complementado com bebidas grátis. E frutos secos, claro está.
As grandes portas duplas foram abertas a partir de dentro por uma mulher
com um vestido que parecia misteriosamente parecido com qualquer coisa
que a Chanel tinha lançado na passarela na última estação. Eu avancei para
o chão de mármore e, à minha frente, uma grande escadaria de ferro
dividia-se ao meio, conduzindo-nos a uma sala de entrada palaciana onde
um homem de fato e máscara preta sobre os olhos servia silenciosamente
taças de champanhe de uma bandeja. Estendeu-me uma idêntica máscara
feita de seda preta muito fina, que eu presumi ser obrigatória. Depois de a
pôr, alisei o cabelo e entrei na sala principal, que já estava repleta de corpos,
com as grandes janelas atrás deles a oferecer uma vista sobre as luzes das
lojas de Regent Street. Eu perguntei-me por momentos quão sexy seria
poder ver a loja da Apple enquanto se atingia o orgasmo, até me dar conta
de que isso é exatamente o tipo de coisa que as pessoas ricas acham erótica.
Esvaziei o copo e tirei outro de uma mulher vestida como se fosse a um
baile de caridade de gala, caminhando pelo perímetro da sala. Havia três
pessoas a esfregar os braços umas das outras à minha esquerda. Vi uma
mulher a beijar outra mulher enquanto um homem de laçarote se
aproximava das suas caras, ansioso por se juntar a elas. A carpete é tão
espessa que os meus saltos se afundavam nela a cada passo. Os beijos e as
festas nos braços eram uma seca. As máscaras não eram de muito boa
qualidade. Se ia ficar acordada até tão tarde, mais valia ver alguma ação a
sério.
Dirigi-me a uma porta coberta por um tecido negro, o que me levou a
um corredor com várias outras portas ao longo das paredes. Os quartos
tinham nomes, que eu mal conseguia ler na luz pardacenta. Deviam ter sido,
algures no passado, escritórios de vitorianos virtuosos. Agora tinham sinais
a dizer-nos que estávamos a entrar na «Sala dos jogos». Ainda assim, já não
temos tuberculose, por isso o progresso é isto mesmo, suponho eu.
Eu tinha demasiado respeito por mim própria para entrar naquela sala,
por isso continuei a andar e detive-me à porta da «Sala escura». Tinha
ouvido falar nas salas escuras na minha pesquisa. Tinham surgido em bares
gay nos anos 70, mas agora eram comuns neste tipo de festas. Podia ser
uma coisa tão inócua como uma sala com pouca luz, mas também podia ser
um local destinado àqueles que procuravam atividades um pouco mais
transgressivas. Abri a porta lentamente, tendo o cuidado de me lembrar que
a sala podia estar a ser usada e que os visitantes nem sempre eram bem-
vindos.
Lá dentro, havia uma luz azul que serpenteava à volta dos rodapés. A
porta fechou-se silenciosamente atrás de mim e eu detive-me de costas para
ela, deixando os meus olhos adaptarem-se à luz. Ouvia alguém a
estremecer, arquejando profundamente, aspirando o ar enquanto outro som
se sobrepunha — o som de correntes. Lentamente, os meus olhos
assimilaram a cena que estava diante de mim. Uma mulher estava suspensa
numa parede, numa aproximação grosseira ao Homem de Vitrúvio. Ao lado
dela, um homem de calças justas e máscara segurava uma pesada corrente e
preparava-se para lhe bater com ela. Eu sustive a respiração, esperando para
ver o que acontecia.
O homem chegou o braço atrás, e depois ergueu-o rapidamente. A
corrente saiu disparada da sua mão e apanhou-a no abdómen. Ela gritou por
um breve instante, após o que cerrou os dentes e fechou os olhos. Ele
acercou-se dela e beijou-a no ombro, enquanto eu a via gerir a respiração.
Mesmo na escuridão, consegui ver uma ferida formar-se na sua barriga.
Suponho que a regra aqui fosse marcar apenas zonas do corpo que
pudessem ser facilmente ocultadas quando as pessoas voltassem ao
escritório na segunda-feira. Apesar das coisas que tenho feito ultimamente,
não fico excitada com atos de violência, nem mesmo os que são praticados
com consentimento. É quase um pré-requisito para os assassinos em série
terem passado a infância a torturar animais antes de passarem a outras
pessoas, explorando a pulsão que sentem quando veem os outros em
sofrimento.
Este tipo de atos absurdos deixa-me confusa. Esta mulher com a barriga
ensanguentada deixa-me confusa. A violência e a punição são necessárias
em certas situações, mas eu não consigo compreender a ideia de se infligir
dor ou medo porque se obtém prazer imediato nessa prática. Uma pessoa
obtém prazer na retribuição, na correção de um mal ou em punir alguém
que realmente o merece. Eu sinto-me revigorada pelo que faço. Mas não o
faço por me excitar ver alguém a sofrer. Sim, ver o meu velho avô grisalho
a enfraquecer a cada segundo enquanto a sua mulher morta e decapitada
jazia ao seu lado representou uma pequena recompensa para mim, a qual foi
diminuída, no entanto, pela sequência de acontecimentos que eu estava a
desencadear. Estava a eliminar um grupo tóxico da sociedade. Uma família
que não tinha feito nada a não ser tirar tudo aquilo que podiam para si
próprios, e tratar as outras pessoas com desdém.
O meu espírito tinha vagueado para tão longe desta sala escura que tive
um sobressalto quando voltei a ouvir o estalar da corrente. Desta vez, a
mulher deixou escapar a palavra «poderoso!», e o homem deixou cair a
corrente e pegou numa garrafa de água, levando-a aos lábios dela enquanto
lhe afagava o cabelo. Bela palavra de segurança, pensei eu, enquanto me
retirava. O casal mal tinha olhado para mim enquanto eu ali estivera
especada a vê-los atuar. Havia ternura e confiança entre eles. Um
entendimento de que, acontecesse o que acontecesse, era feito como uma
parceria. Estava a começar a perceber que a comunidade das festas de sexo
se regia por estas linhas de comportamento tácitas. Que uma pessoa podia
transgredir, e descartar o sentimento de vergonha que normalmente
acompanha tais atos. Uma pessoa podia infligir danos a outra e consolá-la
imediatamente a seguir. E podia sair porta fora cinco minutos depois, sem
sequer chegar a saber o nome da sua vítima. E, é claro, a vergonha ficava
suspensa nas quatro paredes deste edifício palaciano. Mas, e lá fora? Estaria
lá fora à nossa espera. Se Lee viesse a morrer num sítio destes, eu sabia que
a família Artemis faria tudo o que estivesse ao seu alcance para esconder e
ofuscar o sucedido. Ninguém tentaria compreender o que é que Lee
procurava nestas salas escuras. Ninguém procuraria respostas.
Espreitei para algumas outras salas — um casal a fazer experiências
com um fato de borracha e um grupo de pessoas a tentar desajeitadamente
fazer uma orgia, mas ligeiramente embaraçadas pelos aspetos logísticos da
operação —, mas não estava minimamente entusiasmada. Nem eles, a
julgar pelo ar da coisa. Se Lee ali estivesse, era pouco provável que eu o
conseguisse localizar naquelas salas sombrias, e também não queria
esforçar-me demais para ter um vislumbre do meu tio mascarado e
possivelmente nu.
De volta ao bar, meti conversa com outra mulher que estava sozinha.
Fui levada até ela porque gostei do seu fato, um smoking preto bonito que
eu própria sofrera para não comprar escassos dias antes. Especada numa
festa de sexo cheia de gente, mas interessada apenas na indumentária. Essa
era a minha transgressão. Perguntei-lhe como estava a correr a noite, e ela
voltou os seus olhos mascarados para mim, antes de encolher os ombros.
— Se eu quisesse foder com um banqueiro cheio de cocaína ia dar uma
volta pela estação de Liverpool numa quinta-feira à noite — disse ela.
Aquilo fez-me rir e, enquanto chamava o empregado, fiz-lhe um gesto
para pedir uma bebida.
— Então onde é que ias? — perguntei eu. — Quero dizer... para algo
mais do que isto. Parece que toda a gente se gaba de ser muito radical, mas
estas festas parecem todas uma promoção de uma marca de gin ou algo do
género.
Ela abanou a cabeça em sinal de concordância, fez uma pequena pausa e
depois olhou para o bar, que se estava a esvaziar enquanto as pessoas se
dirigiam às salas privadas.
— Sinceramente, este sítio só é bom porque é central e porque o vinho
não nos deixa com uma ressaca de que nos arrependamos no dia seguinte.
Mas é tudo tão seguro. Eles prometem depravação, mas para a maior parte
destes homens isso significa apenas dizer-lhes que são uns falhados que eles
vêm-se logo. É isso que conta como pesado para eles. Mas do que é que tu
andas à procura, afinal?
Era uma mulher verdadeiramente bonita, mesmo com uma máscara a
cobrir-lhe metade da cara, com maçãs do rosto que não desapareciam
quando desfazia o sorriso. Covinhas que lhe davam um ar um tudo-nada
menos ameaçador do que um tal rosto seria normalmente. Uma boca que
era agradavelmente rechonchuda, mas sem ser insuflada de implantes como
metade das mulheres que eu vira naquela noite. Perguntava-me qual seria a
sua onda, se vinha a estas noites para conhecer homens ricos ou se estava
realmente à procura de gratificação sexual de uma maneira que eu não
entendia.
— Quero atar alguém e deixá-lo completamente indefeso. Depois quero
asfixiá-lo com tanta força que o faça desmaiar. Sexy para ele, parte do
processo de cura para mim. Conheces algum sítio que possa acolher uma
situação destas?
No caminho para casa, abri o motor de busca do telemóvel e procurei o
nome do clube que ela referira.
— Bem, então o sítio que procuras é só um, querida, estás a perder
tempo com tudo isto — e fez um gesto indicando o palácio à nossa volta. —
Mas tenho de te dizer uma coisa: se estás aqui, é porque és uma amadora, e
eu estou a falar-te de um sítio onde os teus sinais de limite de velocidade
não te vão valer de nada. Não vás a menos que o queiras mesmo.
Ela não sabia o quanto eu o queria, e não insistiu mais, retirando-se
furtivamente com a sua bebida para a sala de jogos. Tal como ela dissera,
havia muito pouca coisa online sobre o local recomendado, apenas um
mapa com a localização — Mile End — e um número de telemóvel. Talvez
agora eu estivesse finalmente na pista certa. Precisava apenas que Lee
viesse comigo. Convencê-lo a concordar em ser asfixiado por uma
desconhecida não parecia ser o mais difícil. Estava mais preocupada em
pedir-lhe para ir até ao East End.
***
Finalmente, tive sorte. Numa terça-feira à noite, fui encurralada para os
copos com os meus colegas, apesar de não ter sido essa a parte em que a
sorte me sorriu, entenda-se. Trinta minutos no pub foi o máximo que acabei
por conseguir aguentar. A mesa era formada por sete mulheres e por Gavin,
o tipo simpático do digital que usava casacos de lã mais vezes do que devia,
e isto para ser simpática, porque a resposta correta é sempre. Os
guinchinhos eram audíveis a partir do balcão, onde pedi um grande copo de
Brunello, pois não havia hipótese de esta gente ter escolhido outra coisa que
não uma garrafa de branco da casa. Quando voltei à mesa onde estavam
sentados, vi que o meu instinto não me enganara. O meu único erro tinha
sido imaginar que tinham pedido apenas uma garrafa. Havia três sobre a
mesa, e só uma ainda tinha algum líquido dentro. Foram proferidas
exclamações de boas-vindas e foi-me oferecida uma cadeira.
— Estamos a discutir qual dos irmãos Hemsworth é mais jeitoso, Grace
— balbuciou Jenny, que nunca falava comigo no escritório, mas que me
sorria bastante quando eu por acaso olhava para ela.
— Oh, desculpem — disse eu, enquanto tirava o cachecol não sei quem
são. — Claro que sabia, e acho que a ignorância deliberada da cultura pop é
uma coisa patética, mas não queria que elas pensassem que eu era o tipo de
pessoa que apreciava este tipo de conversa. Seria um terreno escorregadio
onde se esperaria que eu voltasse mais vezes no trabalho. Não é que eu
estivesse a planear fazer uma longa carreira naquela empresa. Assim que o
meu plano estivesse concluído, pôr-me-ia a andar dali para fora sem sequer
me dar ao trabalho de enviar um e-mail de cortesia.
A conversa continuou à minha volta, e foi-me apresentado um telefone
para me mostrar as importantes diferenças chave entre os irmãos
Hemsworth. Eu fui ouvindo, rejeitando quaisquer tentativas de encetar
conversas a dois, e aproveitei a oportunidade para sair quando Christie foi à
casa de banho e Gavin foi buscar mais uma rodada. Tentei manter-me
sorridente face às súplicas para que ficasse, mas receio ter ido um pouco
longe demais quando Jenny me agarrou pela mão e tentou tirar-me o
cachecol. Eu retribuí a pressão que ela me estava a fazer na palma da mão e
cravei-lhe as unhas com toda a força nos dedos ao mesmo tempo que me
libertava algo violentamente da sua mão. Ela estremeceu e olhou para a
mão, esfregando-a enquanto eu dava as boas-noites ao grupo. Enquanto me
dirigia para a porta, olhei de novo para mesa. Estava toda a gente a ouvir
Magda contar uma história que envolvia a imitação de um ato de felação
com uma garrafa de vinho vazia. Toda a gente, menos Jenny, que ainda
estava a fitar-me com um ar perfeitamente chocado, com a mão enfiada na
axila, como se estivesse a tentar regenerar-se a si própria. Tive de me
esforçar com todas as minhas forças para não lhe piscar o olho enquanto
virava costas em direção à porta.
Ainda não estava pronta para ir para casa, por isso fiz uma pausa para
um cigarro, tendo sido incomodada apenas uma vez por alguém que me
veio pedir lume — que seca. O homem até era giro em termos genéricos, e
estava obviamente interessado em meter conversa, mas eu vi logo que ele já
estava na viragem. O cabelo vai ser a primeira coisa a desaparecer, imagino
eu, depois vem o duplo queixo. Eu não tinha nem um minuto para investir
naquela trajetória. Caminhei pelo Soho durante um bocado, espreitando as
montras das lojas e ponderando se deveria jantar qualquer coisa. Ainda
eram oito da noite, por isso dirigi-me ao meu italiano preferido, que tem
lugares ao balcão e onde uma pessoa não se sente desconfortável por estar a
comer sozinha. É um dos grandes prazeres da vida, comer sem ninguém por
perto para falar connosco. O que é que pode ser pior do que ter boa comida
em má companhia? Como é que uma pessoa pode apreciar uma refeição
com alguém a dizer-nos que não consegue perceber o prazer da leitura? Ou,
pior, alguém a dizer-nos que o seu filme preferido é Tudo bons rapazes.
Quando um homem nos diz que Tudo bons rapazes é o melhor de entre
todos os filmes, significa que esse homem nunca se deu ao trabalho de
cultivar a sua própria personalidade.
Depois de um prato de cacio e pepe, mais um copo de vinho e um
macchiato, olhei para o relógio e vi que já passava das dez. É engraçado
como 30 minutos com os nossos colegas podem parecer uma eternidade e
duas horas felizes a sós com os nossos pensamentos podem passar num
ápice. Acho que soube, durante todo o tempo em que estive sentada a jantar,
que podia ir ao clube do bairro chinês que Lee frequentava. Talvez fosse por
isso que ali me deixara ficar tanto tempo. Não tinha pensado nisso
conscientemente, mas enquanto pagava e saía, soube que a ideia tinha
estado a insinuar-se no meu espírito. Ainda era um pouco cedo para o meu
tio, e eu nem sequer sabia se o bar estava aberto à terça-feira. Mas o sexo
não existe apenas aos sábados à noite, e Lee não parecia ficar muito por
casa — se é que alguma vez ficava, por isso decidi arriscar. Para além disso,
estava resolvida a pôr a próxima parte do plano em marcha, e tinha de ser
mais assertiva a partir de agora. Tinha de persuadir Lee a vir comigo até
Mile End. Isto poderia parecer um plano impraticável, dado que mal nos
conhecíamos, mas eu desconfiava que a sua necessidade de procurar correr
riscos e a sua baixa tolerância ao tédio o levariam a aceitar. Homens como
Lee não requerem os níveis de confiança normais das outras pessoas. Simon
jamais aceitaria uma oferta como a que eu ia fazer a Lee, mas Lee tinha
aquela combinação perfeita de não ser nada esperto e estar bastante
convencido de o ser. É uma combinação inebriante, que me deixava
bastante confiante de que ele iria aceitar. Só precisava de o apanhar.
Entrei no bar. Não ia vestida para uma festa de sexo, trazia a roupa do
trabalho, um cachecol de lã e um chapéu, mas era quinta-feira à noite, e as
pessoas deste estabelecimento dificilmente podiam exigir excelência na
indumentária quando pareciam imaginar que uma grande abundância de
alcatifa vermelha lhe conferia um aspeto sumptuoso.
O bar estava bastante vazio, o que não era de admirar. Alguns casais
sentados a beber em cadeiras baixas de veludo, ao passo que um homem
demasiado tocado com um casaco de cabedal estava encostado ao balcão e
animou-se quando pôs os olhos em mim.
— Posso... — perguntou enquanto eu tirava o meu cachecol.
— Não, de modo nenhum, não — respondi eu, e olhei fixamente para a
frente. Nunca devemos cair no erro de sermos simpáticas com um homem
que tenta meter conversa connosco. Até uma rejeição educada pode ser
tomada como um desafio. Especialmente num clube de sexo.
Dei a mim própria uma hora. Se Lee não estivesse ali até às onze, ia
para casa. Sou bem capaz de subscrever a velha máxima de que nada de
bom acontece depois das duas da manhã, e, num sítio destes, era prudente
abater algumas horas à regra. Ansiosa por não dar ao homem ao meu lado
quaisquer oportunidades de falar comigo, peguei na minha bebida e fui dar
uma volta. Numa sala que ficava mesmo ao lado das casas de banho dos
deficientes (será que o Conselho de Westminster instituiu estas regras de
modo tão rigoroso nos clubes de sexo como fez no Starbucks?), encontrei
dois homens e uma mulher a fazerem uma ménage à trois. Este número de
pessoas a tentarem proporcionar prazer umas às outras sempre me pareceu
ser de mais. Como é que uma pessoa se pode concentrar no seu próprio
orgasmo quando, ao mesmo tempo, tem de estar a pensar se alguém está a
ser negligenciado? Nesta situação em particular, havia uma clara diferença
nos níveis de atratividade dos dois homens, o que eu imagino que todos
soubessem, mas fossem incapazes de aceitar. Um deles tinha um corpo
aprimorado pelo ginásio, daquela maneira vã que sugere que passou
bastante tempo a criar uma aparência de força, mas que significa que
provavelmente tem muito pouca. Tinha o ar de ser capaz de rachar lenha
com as próprias mãos, mas os seus dedos tratados pela manicura davam a
entender que a simples ideia de cortar lenha o deixaria aterrado. O outro
tipo tinha uma barriga considerável, e pelos nas costas, o que me recuso a
acreditar que possa ser atraente para quem quer que seja nos dias que
correm. Uma pessoa não ganha pontos por se conseguir aquecer sozinha. A
pior coisa nele era o traseiro, que tinha um caso sério de acne. Nem mesmo
aquela luz perdulária o conseguia disfarçar. Deem-me a confiança de um
homem que consegue ir a um clube de sexo com um traseiro pintalgado. A
sério, era a positividade corporal num corpo indecoroso.
Não é que a mulher parecesse importar-se muito com isso. Pelo menos,
ele estava a esforçar-se, com a cabeça entre as pernas dela, enquanto esta se
inclinava para trás e fazia um servicinho ao belo homem fraco. O efeito era
um pouco de dominó, e as contorções estavam certamente a provocar-lhe
dores na zona lombar. O jeitoso estava, sem dúvida, a adorar o aspeto
performativo de tudo aquilo, e eu quase conseguia vê-lo a contrair os
músculos abdominais enquanto olhava para mim e me instava a juntar-me a
eles. Soltei uma pequena risada, o que levou a mulher a levantar a cabeça e
franzir o sobrolho, e senti-me algo desleal por interromper o seu êxtase.
Certamente que esta gente não achava que queria juntar-me a isto. Absurdo.
Mas na verdade era eu que estava ali com o meu casaco de inverno a
observar três estranhos a entregarem-se uns aos outros, por isso talvez o
meu riso tenha sido inapropriado.
Abandonei a sala e voltei para o bar, onde o homem do casaco de
cabedal tinha encontrado outra mulher para aborrecer, e pedi mais uma
bebida. Enquanto esperava, a porta abriu-se e entrou uma mulher muito
bonita. Atrás dela vinha Lee, botas de cowboy e tudo. O meu coração
sobressaltou-se para logo a seguir se acalmar. Como ele lhe pôs a mão na
curva das costas, percebi que ia ser difícil ficar sozinha com ele quando esta
mulher, que decididamente não era a sua esposa, estava a concentrar toda a
sua atenção. Até eu estava com dificuldade em desviar o olhar dela. Lee
tinha 54 anos. Talvez estivesse a tentar desembaraçar-se de alguns desses
anos com o cabelo pintado e as sessões regulares de ginásio, mas o facto era
incontornável. E afigurava-se inexorável quando ele se apresentava ao lado
desta mulher, que na verdade não passava de uma rapariga. Uma rapariga
com mais 15 centímetros do que eu e lábios que pareciam ter sido
esculpidos por Deus em pessoa, mas uma rapariga, ainda assim. Sempre me
espantou os homens mais velhos sentirem-se confortáveis com o seu visual
quando as pessoas os veem com mulheres tão jovens como esta. Será que
não veem como as pessoas se riem, levando os amigos a questionar-se se
eles estão com a filha ou com a amante? Ou pior, levando-nos a crer que
estão a exercer algum tipo de coação sobre a rapariga, seja através do poder
económico, seja pela experiência emocional. Mas eu sou mulher. Talvez
outros homens de uma idade semelhante o vejam com um misto de
admiração e inveja. Sinto muitas vezes que é bom não saber o que se passa
na mente masculina. Se soubéssemos, desconfio que passaríamos grande
parte das nossas vidas num estado temerário de desespero.
A rapariga que eu sabia não ser sua filha disse-lhe alguma coisa e
dirigiu-se a uma porta lateral. Lee ficou com a sua pequena mala Chanel na
mão e aproximou-se do bar, amachucando-a com a sua mão carnuda como
se esta fosse feita de papel e não custasse perto de três mil paus. Estava
claramente embriagado, com os olhos ligeiramente vidrados, a testa a
brilhar de suor. Sorriu quando me viu, reconhecendo a minha cara. Gostava
de cumprimentar as pessoas como se fossem velhos amigos, um vigarista
encartado que nunca sabia o nosso nome, mas que nos fazia sentir bem
recebidos durante os calorosos 15 segundos que passava connosco antes de
passar à pessoa seguinte.
— Olá, outra vez — disse ele, enquanto se abeirava de mim e beijava o
espaço aéreo ao lado da minha cabeça.
— Pensei que andasses à procura de algo um pouco mais radical do que
isto...
— E já encontrei — disse eu. — Vim aqui para te convidar. Mas já vi
que esta noite estás ocupado.
Ele pareceu ligeiramente confuso e depois olhou para a mala que estava
a segurar.
— Ah, ela. Está de serviço, se é que me entendes.
Eu assenti com a cabeça, sem querer entrar em pormenores sobre o seu
hábito de contratar profissionais do sexo 30 anos mais novas do que ele,
mas ele deve ter pensado que eu ainda não tinha percebido, porque se
inclinou para a frente, com as mãos a escorregarem no balcão, e aproximou-
se da minha cara.
— A Virginie é uma rameira — sussurrou ele, suficientemente alto para
toda a gente ouvir, exalando vapores de whiskey para a minha cara. — Uma
rameira que é como... uma roseira! — Riu-se da sua própria rima, estalou os
dedos ao empregado, que semicerrou os olhos e o ignorou.
— Então vais experimentar este sítio novo comigo ou vais continuar a
gabar-te de todas as coisas obscuras e perversas de que gostas sem nunca
experimentares algo de diferente? A Virginie fará exatamente aquilo que tu
queres, penso eu. Mas isso não me parece ser muito excitante. Ela não está
a ter prazer nenhum nisso. Está a ganhar o salário dela.
Ele riu-se novamente, mas estava demasiado bêbedo, e eu não estava a
ver como é que o ia conseguir caçar antes que a sua amiga viesse ter com
ele.
— Vocês, raparigas, são todas iguais. Mostram-se todas muito
aventureiras, mas nunca fazem o que eu preciso. Pagar é fácil. Não vou ter
de a convencer a fazer nada, ela vai fazer tudo bem-feito pelo preço certo.
Uma ave emproada, é o que ela é.
— Bem, não vou desperdiçar o meu tempo. Descobri um sítio onde nos
dão tudo o que precisamos, sem fazerem quaisquer perguntas. Ao pé
daquilo, este sítio parece uma aula de ioga para donas de casa entediadas.
Não quero ir para lá sozinha, que piada é que isso tinha? Acho que
podíamos passar um bom bocado juntos. Se te cansares de pagar à hora e
quiseres divertir-te com alguém capaz de dar tudo, dá-me uma apitadela. —
Sorri para o empregado, que veio ter comigo imediatamente. — Desculpe
este senhor por ter sido tão malcriado. Creio que ele gostaria de lhe pedir
desculpa. Ele vai tomar um whiskey com gelo e o que tiver a sair. E seria
possível emprestar-me uma caneta? — O empregado entregou-me uma
esferográfica e eu anotei o meu número num guardanapo de cocktail e
enfiei-o no bolso do casaco de Lee. — Não te esqueças de o guardar antes
de a empregada o encontrar. Ou pior, a tua mulher. Apesar de eu imaginar
que descobrir um número de telemóvel de uma mulher não fosse algo de
muito surpreendente para ela.
Ele olhou para mim e franziu o sobrolho.
— És uma cabra, sabias? — constatou ele, exagerando a entoação,
como fazem todos os bêbedos.
— Sim, sei muito bem — disse eu, enquanto me voltava para ir embora.
— Mas isso é o que tu realmente queres, não é, Lee?
Abandonei o bar e chamei um táxi. Ele ia-me ligar. Agora só tinha de
fazer os preparativos finais.
***
O trabalho preparatório para matar alguém é uma coisa estranha. Quem
me dera que houvesse um grupo online onde as pessoas pudessem partilhar
dicas e dar conselhos aos recém-chegados, dizendo-nos quais são as luvas
mais práticas e opinando sobre se uma pazada pelas escadas abaixo é uma
forma eficaz de tirar a vida a alguém. Um fórum tipo Mumsnet, mas para
homicídios. Na verdade, suponho que deve haver algo deste género algures
na darkweb, mas não vou procurar. É uma atividade solitária, que envolve
longas esperas e muitas tentativas/erro.
Para Lee, havia duas coisas a fazer. A primeira já eu tinha assinalado —
uma visita ao estabelecimento de Mile End onde ele iria dizer adeus a este
mundo. Tendo visto o lugar, quase aposto que a sua família ficaria mais
envergonhada por ele morrer em Mile End do que se tivesse morrido de
autoasfixia. O clube ficava à saída da estrada principal, debaixo de uma
ponte, com a porta praticamente escondida entre os arcos. Não havia
nenhuma rapariga glamorosa com uma prancheta, apenas dois homens um
pouco mal-encarados atrás de uma cortina, que me pediram 20 paus,
ficaram com o meu telemóvel e apontaram para uma escadaria que
conduzia a uma zona subterrânea. Mas, meu Deus, era perfeito. O lugar era
escuro, com um chão pegajoso e sem janelas. Corpos amontoados, música
alta e retumbante quase abafando os gemidos que me chegavam aos
ouvidos de todas as direções. Não havia nenhuma zona simpática de
bebidas onde uma pessoa pudesse aproximar-se cautelosamente da
depravação, este sítio estava repleto de pessoas em vários estados de nudez.
E estavam empenhadas no que estavam a fazer com um abandono
verdadeiramente jubiloso. Era realmente magnífico. Pessoas de toda a
espécie e feitio contorcendo-se por todo o lado, como se aquilo fosse um
grandioso bacanal ou orgia e não tivesse lugar num antigo armazém dos
caminhos de ferro. Eu escolhi o meu caminho através da multidão, sempre à
espera de uma mão ou de um abraço extraviado, mas fiquei agradavelmente
surpreendida ao ver como as regras de consentimento eram bem aplicadas.
Não que eu estivesse interessada, mas é sempre bom sermos consultados
antes dos factos.
Tal como noutros clubes onde já estivera, havia várias portas a partir da
sala principal, e eu tinha verificado todas elas para avaliar a sua adequação.
Eram quase todas pequenas e bafientas, com mobílias rudimentares e temas
distintos. Uma das salas era forrada a borracha preta. Outra tinha um grande
baloiço no meio, cuja resistência estava a ser testada por quatro corpos
enérgicos. Mas estas salas eram brandas, e isso não me era útil. Continuei
por ali fora. Mais longe da área principal, as pessoas começavam a minguar.
Foi então que descobri o sítio certo. Uma porta pintada de um preto lustroso
levou-me a uma sala que parecia um velho armazém cheio de armários.
Havia grandes ganchos prateados presos à parede de tijolo, com cordas
atadas a cada um deles.
Olhando diretamente para eles, consegui ver mais claramente que
estavam dispostos na forma de uma pessoa, com mais um gancho pendendo
promissoriamente do teto. Um banco alto de metal estava encostado a uma
parede. Eu sentei-me e olhei para a sala durante algum tempo. Como não
eram permitidas câmaras, tive de memorizar o cenário para mais tarde. O
banco era parte do plano, e restava-me esperar que ninguém o retirasse dali.
Ter de sair à procura de outro certamente que interferiria com o estado de
espírito de Lee.
Alguém empurrou um tudo-nada a porta, e eu declarei com uma voz
grave:
— Isto é uma sessão privada.
A porta fechou-se. As pessoas eram tão maravilhosamente delicadas
neste tudo-ao-monte. Um respeito tipicamente britânico pelas regras. Não
importava muito se fôssemos interrompidos, pois tudo se assemelharia a
uma típica sessão de perversão, mas eu esperava que tivéssemos sorte.
A segunda coisa que tinha de fazer era praticar. Afinal, a prática leva à
perfeição.
A partir da leitura cuidadosa de um velho tomo intitulado 25 nós que
temos de conhecer — que encontrei, por uma feliz coincidência, enquanto
fazia uma pesquisa numa livraria em segunda mão —, fiquei a saber que
quanto mais nós se fazem numa corda, mais fraca ela fica. Por isso é preciso
fazer um nó forte. Valha-me Deus, achei isto fascinante. Decidi que o nó
mais adequado para mim seria o nó de cadafalso. Creio que não preciso de
me alongar sobre a origem deste nome. Parecia ser um laço bastante
complicado, e a minha explicação será certamente insuficiente, mas,
reconstituído de memória, era mais ou menos assim: faz-se um laço com a
corda, enrolando uma das pontas entre o laço várias vezes antes de a juntar
à outra ponta. O nó envolvia três voltas, enlaçadas de modo solto e depois
puxadas e retesadas no final. Tive de praticar isto várias vezes até
aperfeiçoar a técnica, porque o nó tinha de ser feito depois de ter sido
amarrado ao gancho. Passei um domingo inteiro a treinar até conseguir
fazer isto bem, e foram precisas horas de frustração até finalmente
conseguir fazê-lo corretamente de uma assentada. Mesmo assim, precisei de
mais de três minutos de concentração. Mas não teria três minutos quando
chegasse o dia, pois isso pareceria demasiado sinistro, mesmo para um
homem que estivesse a participar de livre vontade. Uma hora depois, tinha
reduzido o tempo para 45 segundos, o que já me parecia aceitável.
A outra informação crucial que retirei de 25 nós que temos de conhecer
foi que uma corda, ao deter um objeto em queda, pode ser submetida a uma
carga muitas vezes superior ao peso do objeto. Com isto em mente, decidi-
me por uma corda de nylon, com 10 mm de espessura. Era um pouco mais
cara, mas não há preço que não se pague pela nossa paz de espírito, não é?
Quando as mulheres se preparam para dar à luz, fazem uma mala para
deixar à porta de casa. Eu fiz algo semelhante enquanto esperava que Lee
me contactasse. Tinha uma sacola amorosa castanho-chocolate que parecia
perfeita para a tarefa, dado que era espaçosa e não muito vistosa. Uma
Céline clássica. Lá dentro ia a minha corda, algumas luvas, que eu esperava
que tivessem um aspeto menos criminoso e mais da moda numa viela
sombria, um chapéu de aba de lã que me fazia parecer um pouco como se
estivesse a tentar um disfarce de detetive, bem como alguns toalhetes
desinfetantes. Era desnecessariamente organizado da minha parte ter uma
mala feita sem ter ainda uma data marcada, mas eu estava quase a chegar ao
palco, como acontecia de cada vez que um crime se aproximava, em que
ficava sempre impaciente e ansiosa.
Passei dez dias a fazer corridas sem destino pelas ruas de Londres,
atravessando pontes e arrastando-me por colinas acima numa tentativa de
me libertar de alguma tensão nervosa. Passei uma noite com Jimmy no pub,
onde ele repetidamente se riu de mim por eu estar distraída a olhar para o
vazio. Disse-lhe que estava à espera de que um tipo me telefonasse, o que
até não era bem mentira. Comecei a pôr o telemóvel em modo de avião
durante horas a fio, para não ter de estar a verificar constantemente se havia
novas mensagens. Estava a começar a ser excruciante. Até que, numa sexta-
feira de manhã, acordei com uma mensagem do meu tio. Tinha sido enviada
às 3:48 da manhã e dizia simplesmente: «OK, dona convencida, estou
aborrecido. Vamos sair».
Sentei-me na cama e reli-a. Depois pousei o telefone e tomei um duche
demorado, fiz 100 agachamentos e pus café a fazer. Só depois é que voltei
ao telefone para redigir uma resposta. Presumi que Lee ainda estaria a
dormir e não quis parecer demasiado ansiosa. Só à hora de almoço é que fui
verificar a minha resposta e premir «enviar».
«Prometo que o que tenho em mente não vai ser aborrecido. Vem ter
comigo no sábado à noite à estação do metro. Mile End, meia-noite. Envia-
me mensagem quando lá estiveres. Não te atrases.»
Duas horas depois, recebi uma mensagem a dizer: «Tive de ir procurar
no mapa. É bom que isto valha a pena. Vemo-nos lá.»
Eu tinha um encontro marcado para sexta-feira à noite, mas desmarquei-
o. Talvez me tivesse tirado alguma tensão, mas eu precisava de tensão.
Queria sentir-me enérgica. Estava tão aborrecida de esperar que esta gente
se alinhasse com os meus planos. Os últimos preparativos eram a parte mais
deliciosa, ciente como estava de que em breve tombaria mais um membro
da família, via a lista ficar cada vez mais pequena, e procurava qualquer
reação da família que conseguisse encontrar. Isso deixava-me eufórica
durante dias. Claro que isto se confundia com uma pontinha de medo de que
o plano não resultasse, que tivesse de recomeçar tudo de novo. Mas era isso
que o tomava tão inebriante. Se as coisas corressem bem, podia voltar a
combinar o meu encontro. Mas ele parecia um pouco piegas, ao ter enviado
uma mensagem a dizer que estava desiludido por não me ver e
acrescentando um emoji de tristeza, por isso era pouco provável.
No sábado, corri de Shadwell até Battersea e depois de volta a St Paul’s,
com a minha aplicação a dizer-me que tinha acabado de fazer o meu melhor
tempo numa corrida de 15 km. Sentindo que estava a precisar de descansar
um pouco, sentei-me nos degraus da catedral durante um bocado, olhando
para os turistas que desfilavam por ali. Um outro corredor estava a fazer o
mesmo, sentado a alguns degraus de distância e a esticar as pernas. Sorriu-
me, e eu sorri-lhe de volta sem querer. Ele era bem-parecido, com alguma
vermelhidão à mistura, mas havia algo mais nos seus olhos do que o seu
comportamento elegante inicialmente deixara entender. Percebi que ele se
estava a demorar, e senti-me incomodada quando me dei conta de que se
preparava para me dizer qualquer coisa, por isso levantei-me e dirigi-me
para o metro. Uma pena, na verdade. Ele não era potencialmente terrível,
mas eu não tinha tempo ou energia para me sentar e brincar aos romances
nas escadas de uma catedral à chapa do sol. Hoje não era o dia. Na verdade,
dia nenhum era um dia desses para mim. No máximo, teríamos fornicado
uma ou duas vezes até que, a certa altura, ele me teria convidado para ir a
Putney conhecer os seus amigos depois do râguebi e eu teria tido de apagar
o seu número de telefone. É melhor fugir a tempo deste tipo de pesadelo
antes que seja tarde.
***
Quando falta um quarto para a meia-noite, aconchego o meu casaco
bem apertado à volta do corpo e pesco o chapéu da minha mala de
provisões. Felizmente, tenho uma boa cabeça para chapéus. É uma coisa
que ou se tem ou não se tem, se uma pessoa fica mal com um chapéu, então,
é porque fica mal com qualquer chapéu. Há muitas mulheres que acham que
ficam giras de gorro. Não ficam. Não há ninguém que ande de gorro na
cabeça que transmita outra ideia que não seja um desejo desesperado de
parecer giro de gorro na cabeça. Abominações destas à parte, os chapéus
ficam-me bastante bem, o que me dá uma camada extra de um muito
necessário anonimato. A confiável loja de perucas em Finsbury Park
deixou-me orgulhosa, esta noite sou uma maravilhosa sereia de cabelo
negro-azeviche. Estou confiante de que ninguém vai passar demasiado
tempo à procura de alguém relacionado com a morte de Lee, mas também
não quero entrar de mão dada com ele no sítio onde ele vai morrer. Um
chapéu e uma peruca são uma boa precaução.
Espero pela mensagem dele num pub das imediações (genuinamente o
primeiro e último pub que alguma vez vi em Londres Oriental
completamente intocado pela gentrificação — era refrescante não ter de ver
uma cabeça de veado na parede ou uma pilha de velhos jogos de salão a um
canto), já meio à espera de que ele se esqueça ou arranje um programa
melhor. Mas ele envia-me mensagem às cinco para a meia-noite, dizendo
que está à saída da estação.
«Ótimo. Vem ter comigo a Bushell Street,» respondo. Dois minutos
depois, um Mercedes preto de tração às quatro rodas estaciona. Eu
estremeço ligeiramente, não há maneira de esconder a sua chegada num
monstro daqueles.
O motorista abre-lhe a porta, e ele aparece no ar da noite. Lee está
embrulhado num enorme casaco de pele de carneiro com um grande dragão
cosido nas costas. As suas botas de cowboy pretas têm um efeito de pele de
cobra, é evidente que escolheu o par mais extravagante para esta noite. Olha
em volta à minha procura, e eu deixo-o vacilar um pouco, ficando a
observá-lo da ombreira de uma porta a poucos metros de distância. Está
longe do seu território habitual e está vulnerável. Eu quero que ele o saiba,
para compreender que aqui sou eu quem comanda as operações. Sou eu
quem escolhe o caminho. Por isso, deixo-me ficar mais alguns segundos
enquanto ele parece cada vez mais preocupado, perguntando-se se o terão
deixado pendurado, ou pior — talvez tivesse caído numa armadilha. Eu
vejo-o a ponderar se há de retirar-se em segurança para o seu carro e trancar
as portas. Quando vejo que está prestes a fugir, dou um passo em frente e
assobio suavemente, como se estivesse a chamar um cão vadio.
Lee olha para mim e sorri de alívio. Dirigindo-se a mim, estende o
braço, pega-me na mão e beija-a.
— Graças a Deus, este sítio é uma lixeira dos diabos e eu já estava a
pensar que tinha feito uma viagem em vão. — Eu retiro a mão tão
gentilmente quanto possível e devolvo-lhe o sorriso, obrigando a minha
boca a virar-se para cima. — Bela cabeleira, fica-te bem. Pareces mais
nova. Salta para o carro, não queremos andar por aqui às voltas, querida,
trago um Patek Philippe que dava para comprar uma casa neste bairro.
Eu digo-lhe que o caminho são apenas alguns minutos e arrelio-o um
pouco por estar a ser cobarde. O seu sobrolho diz-me que isso não lhe
agrada, mas faz sinal ao motorista e o carro estaciona.
— Como é que funciona? — pergunto eu quando começamos a andar.
— Ele fica à tua espera onde quer que tu vás ou pagas-lhe à hora e tens de
apanhar o autocarro da noite de vez em quando com o resto do povo?
Isto fá-lo atirar a cabeça para trás e rir ruidosamente. É sempre fácil
fazer Lee rir. Basicamente, requer apenas dizer qualquer coisa que dê a
entender quão rico ele é. Imagino que a ideia de um autocarro noturno devia
ser engraçada para alguém que nunca tinha apanhado um.
— O meu amigo Ke trabalha para mim 24 horas por dia. Sou um
homem ocupado e tempo é dinheiro, como se costuma dizer. Não há sítio
nenhum onde ele não possa ir buscar-me em 20 minutos, e com o que lhe
pago, ele não se importava nada de esperar no carro durante vários dias.
Dou-te uma boleia para casa mais tarde, se te portares como uma boa
rapariga.
Felizmente, não estou a pensar ser propriamente uma boa rapariga, por
isso a boleia para casa ficará por reclamar. Viramos uma esquina e
alcançamos o arco onde fica a entrada do nosso destino final. Isto é, do seu
destino final.
— Tcharã! — digo eu, atirando os braços ao ar. Lee parece ligeiramente
apavorado e detém-se na rua.
— Não estou a brincar, querida, mas o que é que é isto? Um túnel ou
quê? — Eu reviro os olhos e faço-lhe sinal para se despachar.
— Sei que não estás habituado a ir clubes sem empregados, mas
também estás, segundo dizes, aborrecido. Este lugar vai-te dar a volta à
cabeça, mas garanto-te que no fim vais gostar. Tenta, o teu fiel motorista
está ali mesmo ao virar da esquina, se quiseres voltar a correr para Chelsea.
— É bom que tenhas a certeza de que é tão atrevido como dizes —
murmura ele enquanto me segue pelas escadas até ao clube.
Para meu alívio, está apinhado de gente, a área do bar tem uma fila com
três fileiras e já há pessoas a começar a despir-se enquanto nós esperamos
por uma bebida. Tiro o chapéu e ponho subtilmente um dedo na parte da
frente da peruca, para ver se continua tudo no sítio. Em poucos segundos,
Lee mostra-se consideravelmente mais animado, observando as pessoas.
Pode não ser aquilo a que está habituado, mas ele sabe reconhecer o
verdadeiro deboche quando o vê. Tem o casaco debaixo do braço (recusara-
se a entregá-lo, dizendo meio a brincar à enfastiada assistente do vestiário
que era uma peça única da Gucci e que jamais lha confiaria) e está de pé,
muito direito, a encolher um pouco a barriga. Por mais que os homens
acima dos 50 vão ao ginásio, há sempre um ligeiro engrossamento à volta
da barriga. Um pequeno lembrete de cada vez que olham para as suas gaitas
de que estão a perder a juventude. Eu vejo os olhos dele arregalarem-se à
medida que vai inspecionando a sala, já à procura dos corpos que quer
explorar. Se eu o deixasse agora, ele mal teria dado por isso. Pego nos
nossos vodcas duplos e conduzo-o mais para o interior da sala. Já tinha
decidido que ia deixá-lo divertir-se durante um bocado.
— A sala principal está a abarrotar — digo eu e faço um gesto para uma
porta lateral. — Vamos tentar as zonas privadas. — O homem não podia
estar mais disposto a isso, quase me acotovelando pelo caminho. A primeira
sala onde entramos tem uma parede de cheia de glory holes e Lee faz uma
careta, instando-me a voltar para trás. — Não me entusiasmo a ver mulheres
a chupar a pila dos outros, estás a ver?
Refreando a minha vontade de o insultar violentamente, prosseguimos.
A sala seguinte faz um pouco mais de sucesso. Havia uma cela a fingir com
três mulheres lá dentro a fazerem um grande alarido, e francamente
exagerado, como se estivessem a tentar sair, ao passo que um homem nu
estava de pé cá fora, a atiçá-las. Eu grito a Lee que tenho de ir procurar a
casa de banho e deixo-o ali à solta. Ele mal olha para trás quando me retiro,
avançando já para a cela e dizendo qualquer coisa a uma das mulheres. Eu
dou-lhe 15 minutos, tempo suficiente para que ele faça pelo menos uma
coisa nojenta, mas preparo-me para me confrontar com o pior quando
regresso. Quando chego à cela, Lee já lá não está e há novas pessoas na sala
a brincar aos prisioneiros sexuais. Repudiando um leve sentimento de
pânico, precipito-me na sala seguinte e encontro-o estendido de barriga para
baixo numa mesa onde uma mulher com uma balaclava está a chicoteá-lo
com força. Ele tem as calças pelos tornozelos, imagino que por não ter
querido tirar as botas, e a sua camisa preta tem as mangas enroladas até aos
sovacos. O efeito global é tão absurdo que quase tenho pena dele e tenho de
conter uma gargalhada. Lee tem a cabeça virada para mim, mas os seus
olhos estão fechados num estado de total beatitude, por isso não interrompo.
Limito-me a ficar ali, algo desligada da cena à minha frente, vendo o meu
tio a ser espancado por uma mulher com ar de quem acabou de assaltar um
banco num filme pornográfico de baixo orçamento. Oh, mãe, se me
pudesses ver agora!
Pouco depois, algumas outras pessoas entram na sala e começa a gerar-
se uma tensão subtil. Torna-se claro que há uma fila em formação para o
banco, e um dos homens dá um pequeno tossido para alertar Lee para o
facto. Este olha para cima com um grunhido quando se dá conta de que as
chicotadas pararam, e rebola-se relutantemente para o lado e puxa as calças
para cima. O homem que está impacientemente à espera da sua vez salta
para cima da cama e fica ali, expectante. Não há limpeza nenhuma por parte
do pessoal da casa, reparo eu.
— E agora? — pergunta-me Lee, arranjando a camisa e tirando-me o
copo da mão. — Este sítio é louco, tinhas razão. Vou ter de esconder estas
malditas marcas da minha mulher durante semanas. Não é que ela dê muita
importância. Tudo o que não seja tecido para cortinas ou angariar dinheiro
para sacanas não é coisa que lhe interesse muito ultimamente.
Seria aquilo uma referência indireta à morte do filho? Eu não o referira
a Lee, claro está, e verdade seja dita, ainda não tinha conseguido estabelecer
qualquer associação entre Andrew e este homem, desde que começara a
segui-lo. Se Lara tinha sentido a perda do filho de modo profundo e
pungente, Lee parecia não ter notado. As pessoas fazem o seu luto de
formas diferentes, claro está, e eu via que estas escapadelas noturnas
podiam ser uma maneira como ele tentava lidar com tudo isso, mas,
olhando para ele agora, parece-me pouco provável. De repente, sinto-me
acometida de raiva pela maneira como Andrew parece ter sido
completamente apagado da vida do pai. O que era completamente
irracional, visto que era eu a pessoa que o tinha feito acontecer. Mas não era
eu a pessoa que o tinha criado, e mesmo no breve período em que estive
com o meu primo, consegui ver os danos que a família lhe tinha infligido.
— Tens filhos? — pergunto eu, enquanto entramos numa sala onde uma
mulher está a pisar as costas de um homem com uns saltos altos
perigosamente pontiagudos (aparentemente, muitas das salas estavam
cheias de mulheres a rebaixar os seus companheiros do sexo masculino).
— Jogo privado! — vocifera ela, continuando a trabalhar com o seu
sapato no traseiro do homem. Nós saímos, a rir, e continuamos a andar em
direção à sala que eu marcara como nossa.
— Não — diz Lee, sem olhar para mim. — Uma morreu ainda em bebé,
pobre criatura, e o outro foi não há muito tempo. Mas ele não queria ter
nada a ver connosco. Pensava que nós éramos maus por termos dinheiro.
Não o impediu de o aproveitar, até ao dia em que deixou de o fazer. A
minha mulher não aceitou a coisa muito bem, mas o que é que uma pessoa
pode fazer além de continuar, por mais destroçada que fique? Ela serviu-se
disso como desculpa para se afastar, e eu continuei com a minha vida.
Alcançamos a entrada da «nossa» sala e eu detenho-me, sem saber o
que dizer a um homem que descartava o filho em três frases. Lee e Simon
eram mesmo irmãos, em todos os sentidos.
— Mas o que é que vem a ser isto? É aqui que vamos brincar a sério?
— Arreganha um sorriso e empurra a porta.
Foi um grande risco que eu corri. Fosse ele menos 5% do monstro que
era e talvez tivesse ficado demasiado aborrecido com a pergunta para
desfrutar da ocasião, e então eu teria perdido a minha oportunidade,
provavelmente para sempre. Sorte a minha, por estar a lidar com um
homem que era capaz de falar do falecido filho e continuar imediatamente
em busca do seu próprio prazer. A sala estava vazia, provavelmente porque
era a que ficava mais longe do bar. Lee entra para acender a luz, e eu vejo
que o banco ainda está no lugar. Respiro fundo pelo nariz e pouso a minha
mala no chão. Calço as luvas, de uma maneira que sei conferir-me um tom
de comando, e digo:
— Esta é a minha sala. Vais fazer exatamente o que eu quiser, não vais?
— Ele volta a sorrir. — Na verdade, não era uma pergunta. Vais fazer
exatamente o que eu quero. AGORA!
Lee faz uma saudação zombeteira e eu fito-o nos olhos, sem pestanejar,
até ele baixar o braço.
— Tira a roupa! — ordeno, enquanto tiro a corda da mala e começo a
fazer o nó. Ele faz o que eu digo, tendo alguma dificuldade com as botas, tal
como previsto. Enquanto se esforça por tirá-las, eu termino o nó e verifico-o
por uma questão de segurança. Com uma corda mais pequena, ato as suas
mãos de forma solta, para que ele tenha uma falsa sensação de segurança e
pense que os nós podem ser facilmente relaxados. — Senta-te no banco e
deixa-me olhar bem para ti. — Ele já assumiu o papel que quer
desempenhar e torna-se imediatamente obediente. Eu enfio-lhe a corda com
o nó na boca e caminho à volta dele, reparando numa grande teia de aranha
tatuada que ele tem no braço, e vendo as iniciais num dos lados do braço —
KA. A sua mãe. Se a minha mãe ficaria horrorizada por me ver agora, então
imagino como se sentiria Kathleen. As suas nádegas são
surpreendentemente firmes, reparo eu, com marcas de bronzeado que só
podia ter conseguido em idas frequentes ao solário. Obrigo-me a olhar para
o seu pénis, erguido como está por antecipação. Evitá-lo pareceria uma
fraqueza. Tiro-lhe a corda da boca e enfío-lha nas mãos. — Palavra de
segurança?
Ele volta a sorrir, e diz-me que gosta de dizer «Barbados», o que para
mim está muito bem, visto que não irei respeitar nenhuma palavra que ele
tenha escolhido.
— Podias cobrar por isto. Ainda não estás em pleno como modelo, mas
és minuciosa — diz ele, olhando para mim. Ignoro-o e enfío-lhe o laço pela
cabeça.
— Vou-te atar a este gancho, e tu vais-te vir à medida que ele for
ficando mais apertado. Eu vou controlar o nível, e vou-te ver chegar cada
vez mais perto. Vais-te torcer e contorcer, mas vais continuar. Não me faças
perder tempo com nada menos do que o espetáculo completo. E quando
tiveres acabado, é a minha vez.
Enrolo a ponta da corda ao gancho e faço outro nó, permitindo-me um
momento de orgulho pela minha perícia. Seguro as pontas das cordas na
minha mão e começo a apertar o laço, puxando-as gentilmente. Lee começa
a debater-se, fechando os olhos e respirando profundamente. Eu puxo com
mais força, e os olhos dele abrem-se abruptamente, mas eu encorajo-o com
um urro gutural. Mantenho a minha mão firme e deixo-o acostumar-se à
pressão, enquanto o pescoço dele incha ligeiramente e a sua cara se torna
cada vez mais vermelha sob o seu bronzeado permanente. Ao fim de 30
segundos, já está a berrar e eu digo-lhe que vá com mais força. E depois, ao
aproximar-me da sua cara afogueada, dou um pontapé no banco debaixo
dos seus pés. Ele cai subitamente, e eu largo a corda. O meu nó aguenta-se,
e Lee desata aos pontapés no ar, torcendo-se e contorcendo-se de tal
maneira que eu sou obrigada a afastar-me rapidamente. As suas mãos
tentam agarrar o pescoço, unhar a corda, mas eu vou por trás dele e puxo-as
para baixo com força. É importante não deixar marcas. Não leva muito
tempo, sabem? Rápido, mas agonizante — para ele, mas também para mim,
que tenho de ir constantemente verificar a porta. Os seus olhos parecem
prestes a rebentar-lhe para fora da cabeça, e a língua pende, inchada, entre
os lábios, enquanto ele tenta desesperadamente inspirar. Ainda me passa
pela cabeça dizer-lhe quem sou, mas não me dou ao trabalho. Nunca me
interessei por Lee. Matá-lo é apenas um meio para um fim maior, e ele não
justifica explicação nenhuma. Quarenta segundos depois, já ele está
inconsciente e depois morto. Olhando para o meu relógio, vejo que tudo
levou menos de quatro minutos, tal como Deidre, a socorrista de Peckham
tão amavelmente revelara. Tcharã! Homem assaz nojento morre de forma
assaz nojenta. Coisa de somenos. Exceto para ele, suponho eu.
Quando tenho a certeza de que ele está morto, ajo depressa. Se alguém
tivesse entrado durante o nosso pequeno jogo, teria dito que era uma sala de
casal e as pessoas ter-se-iam ido embora sem problema. Mas isto seria mais
difícil de explicar. Limpo-lhe as mãos com toalhetes antibacterianos e solto-
as. Ponho o banco um pouco mais perto dele para dar a ideia de que teria
sido ele próprio a derrubá-lo e arrumo as minhas coisas cautelosamente,
deixando apenas a corda à volta do seu pescoço. Só a tinha manuseado com
as mãos e ele tinha-a agarrado por um minuto, e eu esperava que isso fosse
suficiente. Ponho a minha mala por cima do ombro e olho pela última vez
para a figura atrás de mim, agora pendendo, imóvel. Uma pena que não
deixassem uma pessoa trazer os telemóveis, uma última fotografia do tio
Lee teria sido agradável. Mas não para emoldurar, pois está com um ar
bastante grotesco. Fecho a porta atrás de mim e caminho pelo corredor,
onde as pessoas estão reunidas, beijando-se, cortejando-se. Um homem alto
com uma máscara de animal inclina-se contra a parede e olha-me de alto a
baixo enquanto eu passo por ele, tentando alcançar a minha mão e tocando
os meus dedos ao de leve. Eu não paro, perguntando-me quem será o
fervoroso desconhecido que o irá encontrar. Será aquela rapariga de calças
sem rabo, ou quem sabe aquele casal com máscaras de carnaval baratas que
bem podiam ter passado mais algumas horas no ginásio antes de usarem um
látex tão inclemente? Agora é com os deuses, mas eu espero
veementemente que quem quer que seja tenha a previdência de ir falar com
os tabloides. De chapéu firme na cabeça, volto para o bengaleiro onde
recupero o meu telemóvel e saio para o ar da noite.
***
Apesar de ter achado que matar Lee foi o crime mais laborioso de todos,
o rescaldo foi delicioso. Se as longas horas de espera em bares finos e o ter
de suportar a visão de desconhecidos nus em comportamentos degradantes
foi um suplício, a cobertura noticiosa da sua morte foi mais do que
compensadora. As notícias eclodiram na segunda-feira de manhã, ia eu a
caminho do trabalho. «Irmão de magnata morre em jogo sexual que correu
mal», bombardeava o Daily Mail. «Artemis pervertido encontrado morto
em covil de sexo» era o ângulo privilegiado pelo Daily Mirror. Nem mesmo
o Guardian resistiu, apesar de o título precisar de ser mais trabalhado.
«Irmão de homem de negócios morre em acidente» passava um pouco ao
lado do essencial, em minha opinião. Ainda assim, apreciei a palavra
«acidente», que todos os jornais pareciam enfatizar. Trabalho lesto do
relações-públicas da família Artemis neste ponto, qualificando o caso como
um acidente trágico e tentando, em vão, lançar um véu de obscuridade sobre
o porquê de o irmão do bilionário ter sido encontrado morto num clube de
sexo em Mile End. «É tão inexplicável», declarou um amigo da família não
identificado, «O Lee era um homem casado e feliz e não havia nada de que
gostasse mais do que de passar fins de semana no campo com os amigos
chegados. Só posso imaginar que ainda estivesse a carpir a morte
devastadora do seu filho Andrew. Nunca se sabe que efeitos é que uma
perda dessas pode ter sobre uma pessoa». Excelente trabalho, pensei eu.
Nunca se pode dizer nada de muito crítico quando alguém invoca a morte
de um jovem.
A cobertura dos media prolongou-se por alguns dias, mas a máquina da
família estava em ação, isolando quem quer que parecesse predisposto a
falar, e o relatório do médico legista também não lhes dava muito por onde
continuar. Eu sentia uma ponta de arrependimento por não ter fantasiado um
pouco mais a cena. Uma laranja na boca ou um par de saltos altos de
primeira teriam dado à imprensa mais alguns centímetros de cobertura, mas,
bem vistas as coisas, eu tinha deixado prevalecer a sensatez. Não tinha
necessidade nenhuma de ficar envaidecida. Queria-o morto, e queria-o
morto de uma maneira que fosse rapidamente apagada com uma esponja.
Dei por mim a pensar bastante em Lara durante as semanas seguintes.
Perguntava-me se ela não estaria secretamente — ou talvez não tão
secretamente assim — aliviada. A perda do filho teria sido enorme, mas a
perda de um homem infantil e mulherengo que a tratava mal há décadas
talvez tivesse sido uma dádiva. Talvez agora pudesse afastar-se por
completo da família Artemis e concretizar todo o potencial que tinha antes
de entrar em contacto com todos eles. Ia imaginando um futuro para ela, o
que era bastante estranho para mim, dado que ela também estava na minha
lista. Mas quanto mais ela ocupava o meu espírito, mais eu perdia a
coragem para avançar. Por várias razões, ela apresentava-se-me como uma
vítima, tanto quanto a minha mãe, tendo a sua vida sido engolida por um
homem egoísta e irrefletido para quem a felicidade dela pouco importava se
não envolvesse também a dele. E, no plano prático, haveria sem dúvida um
acordo pré-nupcial inflexível, excluindo-a de qualquer pretensão à fortuna
de Simon, o que significava que não teria de me preocupar muito com a
possibilidade de vir a perder algum direito ao meu bónus final.
A minha decisão foi tomada no dia do funeral, uma cerimónia privada
que acabou por se transformar numa autêntica roda-viva, com pequenas
celebridades, algumas caras da moda e um bando de homens de negócios
corpulentos, todos a chegarem à Igreja de St Peter, em Kensington, para
serem vistos a prestar as suas homenagens. Não sei quanta devoção havia
na congregação, mas não era isso que importava para esta gente. Eu tinha
sabido da cerimónia pelo jornal da manhã. Tirei uma pausa de almoço
prolongada — dizendo que tinha uma consulta no dentista — e apanhei o
metro para ver se seria capaz de entrar. Na verdade, foi bastante fácil, os
homens silenciosos de camisola de gola alta preta e auriculares que estavam
cá fora não iam questionar uma jovem mulher vestida de preto que entrou
decidida atrás de uma mulher vestida com um casaco de peles e diamantes
que até Joan Collins teria achado extravagante.
Sentei-me na parte de trás, claro está, e estudei o programa com a
cabeça inclinada enquanto os convidados iam chegando. De vez em quando,
olhava à minha volta, localizando Janine e Bryony na parte da frente.
Bryony estava a olhar para o telemóvel o mais sub-repticiamente possível,
ao passo que Janine estava a conversar com um homem grisalho de fato
azul listrado à sua esquerda. Quando se voltou e viu o que a filha estava a
fazer, arrancou-lhe o telemóvel da mão e guardou-o na sua mala, dizendo
algo a Bryony, com a boca rigidamente contraída. Janine estava
esplendorosa. Tinha um penteado tão perfeito que mal se mexia enquanto
ela virava a cabeça, com as lustrosas madeixas cor de caramelo enfiadas por
trás das orelhas que albergavam enormes berlindes de esmeralda. Trazia
uma blusa de seda bege, que eu não conseguia ver suficientemente bem
para qualificar, e as suas unhas estavam pintadas de um vermelho intenso.
O dinheiro que ela gastara estava bem à vista de todos, de uma maneira que
ela achava subtil, mas inequívoca. Mas as suas roupas apenas contavam
uma parte da história. Mesmo da parte de trás da igreja, eu conseguia ver o
trabalho do bisturi do cirurgião estampado em toda a sua cara. A rinoplastia
estava bem, um procedimento feito há muitos anos quando a regra de ouro
era eliminar qualquer traço de personalidade e deixar apenas a sugestão de
jovem rapariga. Mas não havia nada de subtil aqui, a sua pele tinha sido
puxada e retesada sobre as maçãs do rosto, o que tornava os seus olhos
pequenos e zangados. A sua boca tinha sido tão insuflada que estava sempre
ligeiramente entreaberta, e a pele tinha um brilho de cera, como se estivesse
a usar uma máscara da própria cara. O efeito geral dava-lhe um ar grotesco.
Uma cara que só pareceria normal se todos os nossos conhecidos tivessem
um aspeto semelhante. Por isso suponho que viver no Mónaco resultasse
bastante bem para Janine, mas, sob a luz que jorrava através das janelas
antigas da igreja, parecia um tudo-nada assustadora.
A cerimónia começou bastante tarde, de forma porventura apropriada
para um homem que nunca precisava de estar a horas em lado nenhum. As
últimas pessoas a entrar foram Lara, Simon e um homem que não
reconheci, que pegou no braço de Lara quando ela entrou na igreja e lhe
afagou o ombro de modo consolador. Simon franziu ligeiramente o
sobrolho, e caminhou atrás deles enquanto eles se dirigiam para a frente,
onde um pároco surpreendentemente jovem os aguardava.
Lara não se parecia em nada com a mulher destroçada que Lee tinha
feito crer que ela era. Caminhava com as costas direitas, num fato de calças
cor de vinho e sapatos cor-de-rosa vivo que, em qualquer outro dia, eu teria
sido tentada a perguntar onde os encontrara. O homem que a acompanhou
ao altar era quase o oposto do seu marido. Alto, magro, com um fato
cinzento bem-talhado, mas ligeiramente amarrotado, e bons sapatos. Tinha
o cabelo castanho salpicado de cinzento e usava uns óculos pequenos com
armação. Não se teria destacado em mais lado nenhum, mas aqui o
contraste era flagrante. Parecia um mestre-escola numa sala cheia de
negociantes.
A cerimónia foi aborrecida, tradicional, com cânticos e leituras, blá-blá-
blá. O caixão repousava em frente, coberto com um lenço de seda dourado,
e as pessoas apresentavam-se ao seu lado a falar de Lee, de como ele era
uma personalidade genuína, a vida e a alma de qualquer festa. Só
banalidades, nada do que foi dito revelava as suas verdadeiras qualidades
como pessoa. Quando terminou o último cântico, o pároco levantou-se para
proferir uma última mensagem, mas hesitou e eu estiquei o pescoço para
ver o que se estava a passar. Lara tinha-se levantado, havia-lhe dito alguma
coisa e encaminhara-se para o caixão. O pároco voltou a sentar-se e seguiu-
se um momento de silêncio enquanto os presentes aguardavam que Lara
falasse. Ela permaneceu em silêncio por instantes, alisou as calças com as
mãos, parecendo não se sentir muito à vontade. Eu comecei a perceber que
isto não fora planeado, e verifiquei o programa outra vez à procura de
qualquer referência ao discurso de pesar da viúva. Nada. Ai, meu Deus!
— Obrigada a todos por terem vindo — disse ela em voz baixa. — O
meu marido haveria de ter gostado de saber quão fantástico era para tanta
gente. — Ouviu-se um riso abafado. — Mas ele não era assim tão
fantástico, pois não? Claro que estava sempre pronto para uma noitada.
Muitas noitadas, na verdade. Sempre. Mas não era um ser humano decente
pelo critério de ninguém. Vocês gostavam dele porque ele pagava as contas
ao final da noite, ou porque investia nas vossas empresas, vos levava de
férias, talvez mesmo por poder vir a fazer alguma destas coisas. Mas eu
vivia com ele, e tive de suportar o seu egoísmo e desrespeito. Diariamente.
Foi assim diariamente. Durante anos. — Olhou para o caixão ao seu lado.
— Eu era nova quando nos conhecemos, demasiado nova, na verdade. E ele
era encantador, mas todos vocês sabem quão encantador ele podia ser, não
é? Quando a nossa filha morreu, a reação do Lee foi lançar-se numa farra de
três dias, acabando por voltar para casa, pedrado, com uma rapariga lituana
de 19 anos com umas calças provocantes e a pedir à nossa govemanta para
lhes preparar o pequeno-almoço. Eu atribuí aquilo ao desgosto, por estúpido
que pareça. Mas quando o nosso filho morreu, anos mais tarde, ele fez algo
do género. Uma pessoa tem de reconhecer que ele foi consistente. Acontece
que ele era uma pessoa cruel e sem coração, com uma aparência de
bondade. Mas eu fui ainda pior, de certa maneira. Porque fiquei com ele e
permiti o seu comportamento. E agora ele está morto, pela sua própria mão.
Morto, apesar da perseguição constante do seu próprio prazer. E eu não
posso ficar aqui a ouvir a sua vida a ser completamente reescrita. Já
ninguém pode obter dele o que quer que seja, por isso parem. É só pararem.
Lara estremeceu ligeiramente, de adrenalina, pensei eu, não de tristeza.
As pessoas estavam de cabeça baixa e a morder levemente os lábios. O
constrangimento era geral. Foi maravilhoso. O homem alto de óculos
levantou-se, pegou na mão dela e, juntos, desceram da nave lateral e saíram
da igreja. Eu teria batido palmas se pudesse. Em vez disso, segui-os
enquanto o pároco se levantava e tentava desesperadamente reagrupar as
pessoas. Lá fora, Lara e o homem com estilo de professor estavam
enlaçados num abraço apertado. Eu ouvi-o cobri-la de elogios, dando-lhe
palmadinhas na cabeça e beijando-a na face. Ela levantou os olhos e fez-lhe
um sorriso lacrimejante, antes de descerem os degraus juntos e entrarem
num Mercedes que estava à sua espera. Soube então, enquanto via o carro
arrancar e afastar-se, que a deixaria estar. Já lhe tinha sido tirado o
suficiente, por Lee, por mim. As mulheres que se haviam deixado seduzir
por esta família não eram o meu principal alvo. Afinal, a minha própria mãe
também era uma delas. Lara talvez nunca viesse a sabê-lo, mas salvou a sua
própria vida nesse dia.
 
 
4 Conjunto de universidades norte-americanas de elevado prestígio
académico e social onde se incluem Harvard, Yale, Princeton e Columbia.
(N. do T.)
 
Capítulo 9
 
Oscar Wilde escreveu De profundis nos últimos três meses do seu
confmamento de dois anos na prisão. É uma carta de amor (singular) muito
elogiada a Lorde Alfred Douglas, em que ele ora invetiva ora abraça o seu
tema. Trata-se de Oscar Wilde, por isso atrevo-me a dizer que tem os seus
méritos (a sua suposta tirada no leito de morte «Este papel de parede e eu
estamos a travar um combate de morte. Ou vai ele ou eu» é inegavelmente
boa), mas ele também era um homem branco educado, por isso a fasquia
para o génio não está num nível impossivelmente elevado.
Wilde dormia numa pequena cela sem colchão. Todos os dias lhe era
concedida uma hora fora da cela para se exercitar e estava constantemente
com fome. Segundo todos os relatos, a prisão quase deu cabo dele. Morreu
três anos depois da sua libertação.
Eu sei que é fácil imaginarem-me estendida num beliche confortável, a
jogar numa consola que, de acordo com os tabloides, todos os prisioneiros
recebem imediatamente após entrarem na prisão. Pintarem-me com uma
camisola confortável, a ver uma série da Netflix numa televisão de ecrã
plano, a comer um Mars comprado na loja de doces com a minha
semanada. Muitas pessoas imaginam-se, por isso, liberais, de espírito
aberto, progressistas. O tipo de pessoas capazes de defender, à mesa do
jantar, os méritos de não punir os prisioneiros, mas sim de os educar para
abandonarem a senda do crime, fazendo referências vagas ao modelo
nórdico sem saber o que realmente significa. Mas lá dentro, naquela parte
do cérebro que não admitem ter, continuam a pensar que aqueles que
acabam atrás das grades são escumalha, apesar de essa palavra os fazer
estremecer quando a dizem em voz alta. Mas é assim que pensam. É a
mesma parte da pessoa que sente uma secreta compaixão pelas mulheres
que têm de usar hijabes ao mesmo tempo que as faz desviarem-se quando
veem um pit bull no parque. Pessoas que fazem donativos à Amnistia sem
nunca confessarem a ninguém como se sentem contentes por os muros da
prisão serem tão altos e sólidos, ou como fazem um impercetível aceno de
aprovação quando leem no jornal que o governo conservador votou para
prolongar as penas dos delinquentes sem cadastro.
A pior parte disto tudo é que não estão completamente errados. Os
prisioneiros são mesmo uma escumalha. Quer dizer, a julgar pela minha
experiência deste lugar, são. Faltam a estas mulheres algumas camadas do
verniz da civilização. Têm maus dentes, olhares tresloucados, o hábito de
berrar agressivamente, independentemente da pena. Se tivessem
oportunidade, ignorariam todas as estruturas postas em prática pelas classes
dirigentes e viveriam segundo regras inconfessadas que ninguém conhece.
É um espetáculo fascinante, mas eu vou reforçar a segurança em minha casa
quando sair daqui.
Agora que admiti isto, deixem-me voltar aos jogos de consola e ao
conforto. Aqui o liberal hipócrita estaria enganado. A cela de Oscar Wilde,
apesar de não ter colchão, era, passados todos estes anos, bastante idêntica à
minha. Sim, é certo que tenho um rolo fino e irregular de poliéster para me
estender, mas não há televisão, não há máquina de venda automática, e
ainda tenho de suportar o horror das tardes de quarta-feira. Pontual como
um relógio, três horas depois de ter devorado o chili com carne que é
servido à hora de almoço às quartas-feiras (todas as semanas nos é servida a
mesma lista de refeições, tal como na escola, mas sem os talheres
apropriados desde o incidente de agressão com um garfo que ocorreu em
1996 e que ainda é bastante falado), Kelly pode ser encontrada na retrete da
nossa minúscula cela, a gemer e a arfar durante meia hora. Ela não
considera a hipótese de que talvez o chili e ela não sejam compatíveis. E
não considera a hipótese de esta sua manifestação traumática não ser
compatível comigo.
Tal como Wilde, também nós temos, oficialmente, uma hora de
exercício por dia. A maior parte das mulheres não quer saber. Eu uso-a.
Preciso dela. Programo todo o meu dia em função dela. Na minha vida
normal, isto é, naquela em que eu vivia num apartamento cheio de luz
natural, recheado de bom vinho que não se encontra no supermercado e
repleto de livros que não são recomendados pelas revistas femininas, eu
corria todos os dias. Corria para me libertar da raiva, para espantar os meus
pensamentos constantes, para repudiar quaisquer estados de espírito
sombrios e, sejamos honestos, para me manter magra. As mulheres aqui não
são especialmente ciosas deste último aspeto, como o prova a sua avidez
por chili com carne, e parecem achar que a sua raiva lhes confere carácter,
como se pode ver pelas regulares contendas das cinco da tarde. Todos os
dias parece ser exatamente a essa hora que as minhas comadres se dão conta
de que estão encarceradas. Como se tivessem um emprego normal das nove
às cinco e estivessem a preparar-se para ir para casa espojar-se em frente à
televisão quando, de repente, se dão conta de que não há casa nenhuma.
Esse momento Feitiço do tempo acontece todos os dias, sem que ninguém
alguma vez aprenda com a experiência. É quando os muros realmente se
encerram aqui.
Eu não posso correr, visto que me recuso a dar umas voltinhas no pátio
da ginástica como um ratinho patético, por isso faço burpees,
agachamentos, jumping jacks, levantamento de pesos — qualquer coisa que
me ponha o coração a bater com força. Qualquer coisa que me deixe
suficientemente exausta para dormir sem dar pelo ressonar de Kelly. Uma
hora de exercício por dia não é suficiente para mim aqui. Tenho de fazer
mais duas para conseguir manter-me sã. Continuo o meu regime na minha
cela quando Kelly sai para ter uma das suas aulas. Oscar Wilde não me
parece ser o tipo de homem que passasse muito tempo a pensar como obter
uns abdominais firmes, mas eu não me envergonho da minha avidez de
exercício aqui na prisão. Os meus braços, outrora bem desenhados e
levemente tonificados pelo ioga que eu fazia para complementar as
corridas, estão a ganhar massa. As minhas pernas, outrora magras da
corrida, mas sem muita força, agora são pesadas e consistentes — já não há
dúvidas. A brandura feminina está a desfazer-se. E eu gosto disso. Não tem
nada a ver com aqueles disparates do Instagram que anunciam «forte, mas
não magro», que mais não fazem do que disfarçar um distúrbio alimentar
num regime de exercício obsessivo — autênticas bonecas russas de
neuroses. Tenho uma sensação crescente de dureza, de uma armadura no
corpo, de ser capaz de magoar alguém fisicamente com o meu corpo e não
apenas com a minha astúcia. Os homens devem sentir isto desde a nascença.
Se eu soubesse como usar o meu físico para eliminar a minha família, teria
optado por uma via diferente? Teria sido mais fácil ou mais gratificante?
Para além disso, vou às sessões de terapia obrigatórias. Suporto Kelly e
o seu bando o melhor que posso. E nestes últimos dias, tenho escrito.
Podemos não ser espancadas pelas guardas ou deixadas a morrer à fome
(embora eu considere que as ofertas da cantina fazem com que morrer
deliberadamente à fome seja uma opção válida), mas duvido que Oscar
Wilde tenha sofrido mais do que terá sofrido se aqui estivesse agora tendo
Kelly por colega de cela, sendo obrigado a frequentar workshops de olaria,
a falar sobre traumas com um grupo de mulheres chorosas com sandálias de
borracha e a ficar encerrado nestas celas durante horas, todos os dias,
enquanto as pessoas à nossa volta gritam e gemem porque os cortes
governamentais significam que não há guardas suficientes para nos
vigiarem.
No essencial, apesar da popularidade dos programas de televisão dos
últimos anos que parecem sugerir que cada minuto aqui é pleno de ação, a
minha estadia tem sido fastidiosa. Há encontros lésbicos, claro está, há
ocasionais lutas provocadas por explosões de raiva, mas há sobretudo horas
e horas em que permanecemos deitadas sozinhas, a contar o tempo em
blocos de dez minutos, arrastando-nos para mais uma semana, mais um mês
ou, uma vez por outra, mais um ano. Imagino que, a certa altura, fosse
possível parar de contar. Mas eu não consigo. Parar de marcar o tempo seria
admitir a possibilidade de aqui ficar ainda durante mais tempo.
Apesar de tudo isto, ninguém irá comparar o meu trabalho a De
profundis. Para começar, não sou um homem, e também não sou lunática ao
ponto de me achar uma intelectual. Não escrevo cartas de amor patéticas a
partir da minha cela. Não aprendo grandes verdades por estar aqui
enclausurada. Mas também não vou sair daqui meio destroçada. Continuarei
a viver, a prosperar, e este período da minha vida não me irá deixar marcas.
Mais do que tudo isto, acredito que tenho ainda outra vantagem sobre
Wilde. Apesar da escrita de Wilde sobre a prisão ser considerada um dos
exemplos mais profundos do género, ele passa grande parte do tempo a
lamentar-se, desesperado, por causa de um homem que o enganou. Consta
que Lorde Douglas era mimado, presunçoso, indiferente aos sentimentos
dos outros. Deixou as cartas de amor de Wilde nos bolsos de peças de roupa
que ofereceu a prostitutos do sexo masculino. Rejeitou a relação entre eles,
e censurou Wilde depois da morte deste. Douglas parece ser exatamente
como o meu pai. Encantador, arrogante, o centro do universo. Homens que
nos ofuscam com a sua luz durante alguns segundos e nos deixam à procura
desse calor artificial durante o resto da vida, experiência essa que nos
destrói, ao passo que neles não deixa marca alguma. Mas eu aprendi isso
muito cedo. Wilde nunca aprendeu. Talvez pudesse, então, ter aprendido
alguma coisa comigo. Nunca devemos ansiar pela luz que alguns homens
lançaram sobre nós por breves momentos. Em vez disso, há que extingui-la.
***
Hoje tomei o pequeno-almoço, limpei as cozinhas e fui encontrar-me
com Kelly e a sua amiga Nico. Eu não queria, mas Kelly tinha prometido
comprar-me cigarros do serviço semanal da cantina, e fumar é a melhor
coisa que uma pessoa pode fazer aqui. No mundo lá fora, é uma coisa
completamente censurável, mas aqui os cigarros são uma forma eficaz de
fazer amizades, obter favores e atalhar o tédio da prisão. Por isso sentei-me
com elas enquanto bebíamos o nosso chá tépido. Nico ofereceu qualquer
coisa que nos asseverou ser bolo. Tudo aqui é massudo, massudo, massudo,
com um bocado de doce num dos lados. Tudo é castanho. É estranho sentir
o meu cérebro a desligar-se dos grandes temas e a focar-se obsessivamente
em refeições que gostaria de fazer, roupas que desejaria vestir. Quero uma
taça de pasta de La Bandita e quero usar um tecido que deixe a pele respirar
e que se molde ao meu corpo, em vez de me deixar preocupada de cada vez
que me aproximo de uma chama devido ao seu carácter potencialmente
inflamável. Penso em banhos de imersão pelo menos dez vezes por dia e
sinto o pânico a crescer — com os meus dedos a arranhar as minhas
clavículas —, mesmo quando tento não me deixar submergir por este tipo
de coisas. Isso seria conformar-me com elas, e eu não posso permitir-me
fazer tal coisa. Não posso sair daqui e pestanejar quando enfrentar a luz.
Não posso gastar o meu tempo a readaptar-me. Quero aproveitar tudo logo
que possa, e não perder tempo a tentar fazer com que o meu cérebro acelere.
Nico é mais fácil de ouvir do que Kelly, com uma voz que não resvala
para o nasal. Está aqui por algo igualmente interessante — no ano passado,
matou o companheiro violento da sua mãe com um martelo. Nunca lhe
perguntei nada diretamente sobre isso, pois sei muito bem que não se deve
suscitar o crime de alguém antes de o próprio o fazer, mas ela refere-o
frequentemente. Fala com orgulho da mãe e como ela está a ter
aconselhamento e a estudar para ser, também, conselheira. Gosto de Nico.
Não me aproximaria dela lá fora, perturbada como é, com o seu olhar
tresloucado, mas respeito aquilo que fez pela mãe. Não foi tão bem
executado como o meu plano de vingança, mas o impulso deve ter
reclamado mais rapidez do que planeamento. Infelizmente, a falta de
discernimento que permeou as suas ações levou a que ela estivesse ao lado
do padrasto quando a polícia apareceu dez minutos depois. Nico não tinha a
mais pequena esperança de ter um álibi credível, e irá ficar aqui durante
mais 12 anos. A mãe tem 60. Quando Nico sair daqui, a mulher terá 72.
Renunciou à sua juventude por uma pensionista. É amor, mas também é
uma manifesta estupidez.
Hoje, Nico e Kelly estão a discutir as suas mamas. Kelly tem planos
ambiciosos para uma reconversão corporal quando sair da prisão, e andou a
ler sobre o aumento do peito com a concentração de um investigador
científico a trabalhar para o seu primeiro prémio Nobel. Aparentemente, a
Turquia é o melhor sítio para isso, faz-se a operação por metade do preço e
ainda se tem direito a uns dias de férias. Clint pagará. Ou talvez tenha mais
sucesso a chantagear um pobre diabo da próxima vez e o obrigue a pagar.
Nico está preocupada com a anestesia geral e ouviu falar num tratamento
em que uma pessoa pode conseguir um aumento do tamanho de uma caneca
cheia através de simples injeções. Kelly parece desdenhar desta ideia.
— Injetáveis são para a cara, querida, as mamas requerem um pouco
mais de trabalho.
Ambas se voltam para mim.
— O que é que tu farias, Grace? — pergunta-me Nico, enquanto ambas
avaliam a minha cara antes de baixarem os olhos para o meu peito.
Eu nunca me interessei pela ideia da cirurgia. Não quero fazer parte do
moderno fenómeno das caras de plástico insufladas, mas, de um modo
geral, uma ou outra pequena esticadela não me escandalizam. Não acho que
seja mutilação, ou qualquer tipo de afronta ao feminismo. Se uma pessoa
odeia alguma coisa com que tem de viver todos os dias, então que a mude.
Na verdade, até gosto das minhas mamas. São pequenas, o que significa que
posso usar o que quiser sem parecer uma matrona da escola dos anos 50.
Gosto de quase tudo em mim. Não daquela maneira tipicamente
desesperada das millennials, em que as estrias são rebatizadas como
«marcas de guerra» e a celulite é referida como «massa adiposa», mas eu
sei que sou gira. Um dia serei tão rude e rugosa como todas as outras, mas
agora tenho uma vantagem cosmética. E uso-a com pleno efeito. As pessoas
tratam-me de modo mais favorável do que a outros, porque é que eu não
haveria de reconhecer tal coisa? Se gastasse energias a examinar as minhas
inadaptações diárias, isso, sim, seria uma grande perda de tempo.
No entanto, dito isto, detesto o meu nariz. É um bom nariz pelos
padrões normais. Já fui elogiada por outras mulheres pela sua linha fina e
direita. Mas é um nariz Artemis, e isso é a única coisa que consigo ver no
espelho. Marie costumava esfregar-mo com o polegar quando eu me
portava mal e dizer-me que eu tinha o feitio do meu pai. O resto da minha
cara é toda dela. Às vezes, não muito depois de ela ter morrido, costumava
sentar-me em frente do espelho da casa de banho no apartamento de Helene,
mantendo-me numa posição em que só conseguia ver os meus próprios
olhos a devolverem-me o olhar. Nesses momentos, sentia que conseguia ver
a minha mãe. Olhava para eles, recordando todas as vezes que tinha olhado
para ela com um sentimento de segurança. Quando as minhas pernas
começavam a vacilar por estar agachada numa posição precária, tinha de me
pôr direita e o resto da minha cara ressurgia no espelho. O pequeno
sentimento de reconforto desaparecia de repente.
Bryony tinha o nariz da mãe. Giro, pequeno, um pouco ajustado por um
cirurgião. Um rosto vulgar. Como eu não via Simon no espelho, sentia-me
grata pelo meu perfil forte, orgulhosa de ter um nariz que não obedecia tão
estritamente a padrões de beleza rígidos. Mas a verdade é que o teria
alterado imediatamente, se pudesse. Já consultei cirurgiões de alto nível, já
vi como poderia ficar com uma pequena ajuda de uma lâmina, eliminando
os Artemis por completo. A única razão por que ainda não o fiz foi porque
quis que o meu pai me reconhecesse no dia em que avançasse sobre ele e
lhe dissesse quem sou.
Levanto os olhos da chávena de chá diante de mim, Kelly e Nico já
concluíram a sua avaliação da minha cara e do meu corpo e estão à espera
de ver como a minha resposta se coaduna com as suas sugestões.
— Nada — digo eu, dando um golinho na água tépida. — Na verdade,
não concordo com a cirurgia.
O meu advogado vem visitar-me esta tarde, o que é uma oportunidade
rara de ver alguém que não Kelly ou as guardas corpulentas e carrancudas
que eu, sinceramente, fico contente por trabalharem aqui e não como
cuidadoras. Imagino que algumas destas mulheres tenham encontrado
obstáculos no caminho que as levaria a tornarem-se enfermeiras,
professoras ou terapeutas. Dada a sua reação quando são confrontadas com
doenças mentais, problemas físicos ou mesmo não mais do que jovens
assustadas procurando um momento de reconforto, só posso dizer que
fizeram bem em evitar essas áreas de especialização. Às onze da manhã,
sou levada à sala das visitas onde George Thorpe já se encontra à minha
espera. Hoje, o seu fato é tipicamente bonito. Um fato leve de fazenda azul-
marinho, apropriado para o tempo menos frio dos últimos dias, e um mero
vislumbre do forro terracota-mate quando se levanta. Não olho para os seus
sapatos. Pela minha parte, em claro contraste com ele, estou a usar um fato
de treino cinzento. Pergunto-me se um desconhecido que entrasse nesta sala
me identificaria como diferente, se o meu comportamento ou postura
poderia dar testemunho de uma vida tão diferente da das outras mulheres
que aqui estão. Sempre reconheci a riqueza nos outros, a educação nos
desconhecidos, o refinamento na forma de estar. É uma coisa
particularmente britânica saber exatamente qual o lugar de uma pessoa no
sistema de classes sem que se pronuncie uma palavra sobre o assunto, não
é? Algumas pessoas afirmam não reparar, mas essas são as mesmas pessoas
cansativas que afirmam também não reparar na raça, o que se deve quase
sempre a serem brancas e não terem razões para isso. Mas o fato de treino
cinzento é um excelente nivelador. É difícil dar a entender que não somos
iguais às outras pessoas que usam este tipo de roupa feita com material
inflamável que acabará por apodrecer num aterro durante 100 anos. Nem a
própria terra a quer.
Apesar de George Thorpe estar perfeitamente a par das minhas origens,
e apesar da avultada quantia que lhe pago à hora, ainda sinto o desejo
ridículo de lhe mostrar que não sou como as outras prisioneiras. Que sou
melhor. E que aprendi a fazê-lo facilmente enquanto subia na escada social
dos Artemis. A única maneira de o fazer é tratá-lo abaixo de cão.
Ele levanta-se para me cumprimentar e estende-me a mão. Eu ignoro-a e
sento-me.
— Eu sei que já está na hora, George, por isso, porque é que não me põe
a par do que se está a passar?
As boas maneiras são rigidamente inculcadas em homens como George
Thorpe. Escola pública, Oxbridge, as amas que os criam e deixam com
complexos maternais que eles descarregam nas suas mulheres — todas estas
estruturas aprofundam a necessidade de simpatia, etiqueta e a maneira certa
de fazer as coisas. Eu perturbei a ordem. Ele tropeça ligeiramente quando se
senta, e eu faço questão de me mostrar impaciente enquanto ele abre a pasta
e tira alguns apontamentos.
— Bem, certo, hmm, então... — fica em silêncio enquanto põe os óculos
e eu pergunto-me, não pela primeira vez, se este homem é um tubarão.
Quero um tubarão. Preciso de um tubarão. Quando este espetáculo
miserável começou a desenrolar-se, procurei advogados de forma obsessiva
e foi-me dito por quase toda a gente a quem me dei ao trabalho de perguntar
que ele era o melhor de todos, com a vantagem adicional de ter uma
aparência que dava a entender que vários membros da sua família haviam
governado o Império Britânico. Os casos que ganhou já não têm conta,
conseguiu libertar pessoas interpondo recursos (pessoas más, pessoas que
deviam mesmo ficar presas o resto da vida e que hoje só se passeiam em
liberdade porque ele explora todos os aspetos legais, todas as debilidades
das declarações de agentes policiais exaustos, todas as hesitações dos
membros do júri que têm medo de viver com a culpa de meter alguém na
cadeia). Por isso ele é o melhor. Mas esta sua faceta predatória... bem, ele
tem conseguido escondê-la muito bem, e eu preciso que ele experimente o
sabor do sangue.
George Thorpe analisa o processo de recurso comigo uma vez mais,
asseverando-me que estamos a caminho de ter uma decisão final na semana
que vem. Há uma razão para que aqueles documentários sobre crimes reais
façam render as partes relativas aos crimes e sejam mais vagos quando se
trata dos respetivos processos legais — é que são complexos, aborrecidos,
desmoralizantes e consistem, no essencial, em meses e meses de espera.
Nós interpusemos um recurso no terceiro dia da minha pena. Solicitámos
uma libertação sob fiança pendente de recurso, o que não deu em nada,
talvez por causa da publicidade à volta do meu caso, desconfio eu. Por isso,
agora estou aqui há mais de um ano, a aguardar e a apodrecer. Não haveria
grande tensão dramática se o leitor continuasse a imaginar-me deitada nesta
cama, tentando desesperadamente evitar mais aulas de terapia de grupo
onde uma pessoa fala dolorosamente de horríveis abusos sexuais para logo
ser acusada por três outras mulheres de reclamar para si todas as atenções.
Ainda não vos contei quase nada sobre a razão por que aqui estou, pois
não? É porque me repugna fazê-lo. Não é a injustiça do caso que me detém
— seria bastante palerma passar o tempo a queixar-me da injustiça de tudo
isto quando aquilo de que poderia ter sido acusada é bem pior não, é a
completa banalidade de tudo isto. O motivo que me foi atribuído é patético.
O ato que eu alegadamente teria cometido é uma coisa que eu só poderia ter
feito num acesso de raiva, com uma falta de preparação que teria detestado.
Não sou como Nico. Mas uma pessoa não pode usar isso em sua defesa,
pois não? «Desculpe, meritíssimo, mas quando mato alguém, faço-o com
um pouco mais de precisão, compreende?» Em vez disso, tive de cerrar os
dentes e submeter-me a todo um processo legal, que se arrastou durante
meses e meses — com grande sacrifício. Como é que diz o ditado? Uma
pessoa faz planos e Deus ri-se. Eu fiz planos para matar sete pessoas e
acabei presa pela morte de alguém em quem nem sequer toquei. Deus teria
tido um ataque.
 
Capítulo 10
 
Quando tínhamos 26 anos, Jimmy conheceu uma rapariga. Ele já tinha
tido namoradas, simpáticas, discretas, com sacos de juta com logótipos de
livrarias independentes, membros de associações de caridade, ONG,
pequenas editoras — estão a ver o tipo de rapariga a que me refiro, com
óculos, pequenos brincos de prata em forma de argola, que deliram com
uma chávena de chá. Eram todas ótimas. Ótimas, ótimas, ótimas. Mas Jim é
tão descontraído, tão simpático e bem-intencionado, que estas relações não
tinham uma verdadeira motivação para elas. Havia Louise, que mantinha
obsessivamente uma horta, mas nunca manifestou idêntica paixão por
qualquer outra coisa e acabou por desaparecer ao fim de um ano. Havia
Harriet, que fez mais progressos, partilhando uma casa com Jim e alguns
colegas da universidade em Balham durante uns tempos. A separação foi
tão indolor que quase não se deu por ela (falo por mim). Estava a trabalhar a
tempo inteiro quando ela se foi embora, e quando nos voltámos a encontrar
para tomar um copo ele parecia ter ultrapassado completamente a coisa, e
eu fiquei aliviada ao ver que não ia ter de desperdiçar a minha preciosa
noite de folga a consolá-lo por causa de uma mulher de cuja carajá nem
sequer me lembro muito bem.
A namorada que se seguiu foi Simone, e eu pensava que ela poderia ter
sido a tal. Era curadora de uma galeria e usava joias e sapatos estilo brogue
interessantes (interessantes significa angulosos) de cores diversas. Era uma
pessoa séria, como eram todas. Mas gostava do meu sentido de humor, e era
bastante descontraída em relação à minha longa e por vezes ambígua
amizade com o seu namorado. O que era mais importante é que ela parecia
gostar mesmo de Jimmy e falava do seu futuro juntos sem nenhum dos
constrangimentos que algumas mulheres usam para não assustar o parceiro.
Iam passar fins de semana a Norfolk e adotaram um gato. Falavam em
comprar um apartamento juntos. E eu habituei-me a Simone, partilhar
Jimmy com ela não constituía uma cedência. Talvez até os viesse a ver
envelhecer juntos com um sentimento de satisfação. Mas Simone era mais
ambiciosa do que eu imaginava e, quando recebeu uma oferta de emprego
como curadora numa galeria que abrira recentemente em Nova Iorque no
preciso momento em que tinham começado a ver apartamentos, creio que
partiu do princípio de que Jimmy iria fazer as malas e mudar a sua vida para
Brooklyn sem a menor reserva, mas ele hesitou. Tinha acabado de entrar no
Guardian e não suportava a ideia de desistir de um precioso emprego no
quadro de um jornal onde sempre quisera trabalhar. Não seria capaz de
encontrar um emprego ao mesmo nível, protestara ele. Teria de se debater
como freelancer numa cidade cheia deles. Simone escutava-o
pacientemente, contestava as suas preocupações com as suas opções de
trabalho e sublinhava o quanto esta mudança significaria para ela, mas ele
tomou-se cada vez mais obstinado. Uma semana depois, já mal comunicava
com ela. Prosseguiram numa imitação silenciosa das suas vidas prévias
enquanto ela tratava do visto, vendia os móveis e deu uma festa de
despedida. Jimmy ainda não lhe tinha dado um não firme, e eu imagino que
ela pensasse que ele estava a hesitar, esperando apenas que a sua ausência
se tornasse uma coisa real e firme no seu espírito até ele ceder e ir atrás dela
para Nova Iorque. Em vez disso, ela apanhou o avião num sábado e ele
enviou-lhe um e-mail sucinto na terça-feira seguinte dizendo que não
conseguia fazê-lo, que a amava, que tinha tanta pena. Sei disto porque ele
mo enviou minutos depois, com o assunto intitulado «odeio-me a mim
mesmo».
O problema de Jimmy é viver com demasiado conforto, o que o tomou
um cobarde. Tem uns pais simpáticos, a sua vida familiar é estável, afetuosa
e segura. Cresceu rodeado de pessoas inteligentes, pessoas influentes que o
fizeram sentir que seria capaz de fazer o que quer que fosse que desejasse
fazer neste mundo. Tinha férias maravilhosas, fala alemão fluentemente e
toca dois instrumentos. Tudo isto o apetrechava para se aventurar e ser rei
de qualquer mundo que desejasse, mas também o fazia ter medo de se
aventurar onde quer
que fosse, pois onde mais poderia sentir-se tão confiante e estabelecido?
Tantas vantagens e privilégios, e tudo o que Jimmy quer é viver a dois
quarteirões da mãe e do pai e viver exatamente como eles. No entanto,
estou ligada a ele. A sua familiaridade, o seu cheiro, os seus braços que têm
exatamente a força necessária para eu me sentir segura. É ridículo, é um
cliché e eu odeio senti-lo. Mas sinto. Não conheço ninguém há tanto tempo
como Jim. Nunca tolerei ninguém como o tolerei a ele. E como ele é gentil
e paciente, permiti-me confiar nele, deixá-lo conhecer-me (a maior parte de
mim), e contar com esse velho laço que se manteve sempre constante.
Nunca lhe contei quem o meu pai realmente é, preferindo manter as duas
partes da minha vida completamente separadas. Mas, tirando isso, conhece-
me de uma maneira que mais ninguém conheceu ou virá a conhecer. E se
ele não quiser ser uma espécie de rei do mundo, então, eu própria avançarei
e aprenderei a contentar-me em deixá-lo ficar simplesmente ao meu lado no
meu caminho. Costumava afagar-me o braço quando eu adormecia, sabendo
que eu ficava ansiosa quando o dia chegava ao fim. Ficava deitado ao meu
lado a investigar as sardas no meu braço.
— És tão macia, Gray. Tão maaaaaaciiiaaa! — Cantava ele, com a
melodia de uma canção que adorávamos. Depois eu já conseguia dormir.
Hoje, Simone tem a sua própria galeria. Casou com um dramaturgo
famoso e têm um dobermann, o que parece ser o cúmulo da arrogância
numa cidade que só tem espaço para chihuahuas. Sei disto porque, sempre
que se embriaga, Jimmy vai ao Instagram dela e atira-me o telefone à cara,
tentando mostrar-me que está contente por ela e perguntando-me, ao mesmo
tempo, se a t-shirt com decote em V que o marido dela está a usar não o faz
parecer mesmo um imbecil.
Seis meses depois de Simone partir para Nova Iorque e de Jimmy se ter
mudado de casa dos pais para o virar da esquina, conheceu outra pessoa.
Gostava de poder dizer que ele se livrou de alguma da sua cobardia depois
da separação e que a conheceu numa qualquer festa num canto do Sul de
Londres, mas não, porque ele raramente sai do Norte de Londres, exceto
para um eventual lançamento de um qualquer livro esquisito. Conheceu-a
num jantar na casa do seu padrinho em Notting Hill. Horace é um advogado
conselheiro da rainha ou algo do género (foi ele quem me pôs em contacto
com Thorpe, por isso suponho que sou tão culpada de beneficiar dos
contactos de classe média que os pais de Jimmy nos deram quanto ele
próprio) e organiza jantares mensais para os quais convida «pessoas
interessantes» para virem falar de acontecimentos mundiais. Eu nunca fui
convidada para esses serões aparentemente hediondos. Conformei-me com
isto, recordando a mim mesma que Horace é um velho snobe aborrecido e
tirando-lhe 50 libras da carteira da última vez que o vi com os Latimer.
Não vi Jimmy durante algumas semanas depois do jantar, porque tinha
coisas mais importantes em que pensar nessa altura. Tinha acabado de
mandar Bryony à vida — sobre isto falarei mais adiante — e estava a
vacilar entre a exaltação com os meus progressos e a frustração de não
conseguir chegar a uma forma exequível de apanhar Simon. A operação
toda tinha feito com que eu não tivesse muito tempo para Jimmy. Era
demasiado difícil falar com o meu melhor amigo enquanto estava a meio
daquilo tudo sem ser capaz de falar sequer no mais pequeno aspeto das
minhas atividades. Mesmo assim, eu devia ter adivinhado que algo se
estava a passar, porque as suas mensagens vinham rareando até redundarem
num período de silêncio de oito dias. Até que, num belo sábado de manhã,
apareceu no meu apartamento com café e croissants. Não há nada que nos
grite aos ouvidos «tenho novidades!» como tocar à campainha de alguém
sem enviar mensagem primeiro. É uma coisa tão egocêntrica que a única
desculpa que alguém poderia ter para isso seria vir informar-nos de um
acidente terrível ou anunciar-nos um novo caso amoroso. Como percebi
pela cara dele que a mãe dele não tinha morrido num acidente terrível numa
mota de água, a única alternativa possível era uma nova mulher. Assim
sendo, resolvi torturá-lo um pouco, não fazendo perguntas e falando
ininterruptamente, em vez disso, sobre os planos que tinha para remodelar a
minha cozinha. Eu não tinha planos nenhuns para remodelar a cozinha.
Vivia neste apartamento precisamente por ele ser completamente funcional,
e ainda bem, porque as pessoas que falam sobre planos de remodelação são
insuportáveis.
Passado um bocado, enquanto eu começava a desenvolver um solilóquio
particularmente monótono sobre puxadores de gavetas, ele rebentou e
contou-me tudo sobre Caro. Caro Morton era uma jovem advogada que
trabalhava nos escritórios de Horace. Tinham-se sentado ao lado um do
outro no jantar sobre temas preocupantes e Jimmy ficou, insistiu ele,
vidrado nela em poucos minutos. Desde então, já tinham tido vários
encontros e já estavam a falar em viver juntos. Tornava-se evidente que
Caro não era uma mulher que estivesse a fazer-se rogada e a fingir que não
estava à procura de um compromisso.
— Quero que a conheças, Gray — disse ele. — Ela já conheceu o John
e a Sophie, mas precisa de passar pela tua fasquia.
Eu fiquei abalada com isto. Já tinha conhecido os pais dele? Simone
demorou meses até atingir esse marco. Mas a verdade é que Caro fazia parte
do mesmo círculo, não é verdade? Associada de Horace, era uma advogada
que terá, sem dúvida, passado por Oxbridge, e pelo menos um dos seus
progenitores era conhecido dos Latimer, a acreditar no que eles diziam.
Simone, por muito querida que fosse, não era. Nascida em Londres
Oriental, filha de uma enfermeira e de um funcionário da junta, nunca
encaixou na família de Jimmy com a mesma facilidade de uma mulher da
sua tribo. Sophie e John enchiam-na de elogios. Uma vez, Sophie levou-a
para a casa de campo que arrendaram em Oxfordshire para um fim de
semana de confraternização em que os obrigou a fazer compotas o dia todo,
mas ela nunca estava verdadeiramente à vontade. Eu devia saber. Ser
acolhido por aquela família não é o mesmo do que ser verdadeiramente
aceite. Ter alguém que se sente reconfortado por nos ajudar não é o mesmo
do que ter alguém que nos ama.
Caro. Não vou perder mais tempo. Detestei-a desde o primeiro
momento em que a vi. Imagino que estejam a pensar se isto não é por a sua
presença ameaçar privar-me do meu melhor amigo, o homem em que eu
confiara desde que era criança. Ao que eu respondo: esforcem-se um pouco
mais. Não vamos perder tempo com psicologia barata. Um mês depois de
eu ter ouvido falar na namorada nova pela primeira vez, estávamos prestes a
encontrar-nos. Mandámos preparar umas bebidas num bar em Maida Vale
numa quarta-feira à noite, coisa que me deixou secretamente enraivecida
porque ainda não tinha feito quaisquer progressos em relação ao meu
grande final, mas era claramente um convite de comparência obrigatória, e
eu não consegui encontrar uma razão suficientemente boa para voltar a
adiar o encontro. Jimmy e eu bebemos uma garrafa de vinho enquanto
esperávamos por ela. Ela andava tão ocupada com o trabalho, explicou ele,
enquanto verificava o telefone para tentar apurar o seu paradeiro. Dez
minutos depois, ela entrou. Não precisei que mo dissessem — soube logo.
Caro avançou por entre um grupo de pessoas que estava à espera de lugar
sem ter de dizer uma palavra. De telefone colado ao ouvido, tinha cabelos
ruivos compridos (que pareciam intensamente naturais, mas que vim a saber
depois serem pintados. Nunca se deve confiar numa ruiva artificial — a sua
necessidade de ser diferente e interessante faz com que não seja uma coisa
nem outra) e trazia uma camisa de seda bege e calças largas. A única
maquilhagem que consegui discernir era um laivo de batom vermelho. E
escusado será dizer que era maravilhosa, etérea, cativante, blá-blá-blá. E
sabia-o. As mulheres sabem sempre. E Jimmy devia achar que tinha
descoberto uma beldade inexplorada porque ela não usava roupas justas
nem se dava ao trabalho de pintar as unhas. Os homens acham sempre que
um nível superficial de falta de vaidade é uma vantagem, como se o grau de
esforço que mulheres como Caro põem na sua aparência fosse diferente das
raparigas embonecadas que se veem em qualquer rua inglesa numa tarde de
sábado. É apenas uma abordagem diferente. E a beleza continua a ser óbvia,
mas os homens acham que é mais refinada, como se a beleza das mulheres
só fosse pura quando estas fingem não a possuir.
Oh, esperem, acabei mesmo por perder tempo com ela. Mas vale a pena
ficar com uma ideia sobre ela — nem que seja só para eu me poder
congratular com o meu próprio autodomínio quando recordar o que
aconteceu a seguir. Caro era nova — mais nova do que Jimmy e eu, mas era
notavelmente contida. Uma advogada, como já expliquei, que se
especializara em complexas operações de aquisição de grandes empresas.
Ela explicou o seu trabalho como «a organizadora se a Nike quisesse
comprar a Adidas». Eu não pedira que explicasse melhor. Creio que esta
descrição particularmente condescendente foi no preciso momento em que
me dei conta de que a detestava. Ela não me tentou conquistar nem sufocou
Jimmy para me mostrar que ele era seu. Era calma com ele, o que o tornava,
claro está, ainda mais entusiasmado na sua paixão, e comigo foi bastante
factual. Passámos algumas horas às voltas uns com os outros, mas eu não
dei o meu melhor porque a única coisa em que realmente me conseguia
concentrar era em ver quão arrebatado Jimmy estava. Quanta energia
nervosa ele emitia. Quão ansioso estava por que nós nos ligássemos, que
nos tomássemos amigas, que criássemos laços em torno dele. Eu sentia uma
ansiedade crescente, sentindo os meus próprios dedos a subirem-me pelo
pescoço acima, ansiosos por me coçar. Às onze da noite, a meio de uma
história que Jimmy estava a contar sobre umas férias de família em que
acabámos por subir uma montanha por engano, Caro pôs a sua mão sobre a
dele, massajou-lhe a pele entre o polegar e o indicador e disse que tinha de
se ir deitar. E assim, sem mais nem menos, acabou a noite. Foi pedida a
conta, chamou-se um Uber, e eu fui despachada com um abraço de Jimmy e
um beijo à distância de Caro que a dispensou de me tocar. O táxi deles
chegou primeiro, e desapareceram, com Caro a olhar para o telemóvel sem
sequer se dignar a olhar para trás. Nenhum deles havia sugerido um novo
encontro.
Eu sabia que não havia maneira de vencer este jogo. Jimmy estava
completamente enfeitiçado por esta mulher, e qualquer sinal de relutância
da minha parte tê-lo-ia atirado para os braços dela ainda mais depressa.
Sempre me perguntei porque é que as pessoas se tornam tão defensivas
quando confrontadas com a crítica sobre os seus parceiros. Se a nossa mãe,
ou qualquer outra pessoa que nos conheça desde o tempo em que éramos
uma criatura de palmo e meio e fraldas, achar que a pessoa com quem
estamos é um pouco insatisfatória, por que diabo não haveríamos nós de
levar isso em consideração? Se a pessoa por quem me apaixonei for um
monstro, quero que mo digam. Expliquem-me porquê. Quero saber tudo.
Mas mais ninguém parece querer saber. E Jimmy não era exceção. A única
coisa que podia fazer era ser simpática e esperar que Caro se aborrecesse. A
sua atitude para com ele não era propriamente de devoção, e eu agarrei-me
a isso durante algum tempo.
Mas uma noite, em casa dos Latimer, não tardei a ver fugir essa boia de
salvação. Há já muito que me tinha afastado nessa altura, claro, mas o
castigo que recebi por me ausentar (em Londres, os miúdos da classe média
ficam em casa dos pais até aos 30. Às vezes arrendam um apartamento
noutro lado durante uns tempos, mas mesmo assim vivem parcialmente em
casa dos pais até estes darem um sinal para uma hipoteca e eles poderem ter
a sua própria casa a sério) foi agora dar por mim a prometer a Sophie que
viria jantar pelo menos duas vezes por mês. Era uma promessa que não
fazia tenção de cumprir — a vida moderna é 75% de cancelamento de
planos com ambas as partes a ficarem aliviadas mas subestimei a
necessidade de Sophie permanecer envolvida, de se sentir sempre como se
desempenhasse um papel vital nas vidas das pessoas que conhecia. A
princípio tentei desmarcar — queixava-me de dores de cabeça e de ter de
ficar a trabalhar até tarde. Mas sempre que eu apresentava uma desculpa
plausível que nos pouparia a ambas ao transtorno, ela compadecia-se de
mim e prontificava-se a propor uma nova data. E se eu voltasse a desmarcar
essa data, ela propunha logo outra. Não é que me quisesse mesmo lá,
percebem? Mas ficava bem manter a órfã que ela tão altruisticamente
acolhera em sua casa. Era sempre uma receita de Ottolenghi que requeria
especiarias que nem mesmo Sophie, que percorria as mercearias locais de
uma maneira só comparável à de alguém salivando ao ver uma montra de
uma loja cheia de diamantes, conseguia encontrar. Consequentemente, todas
as refeições sabiam predominantemente a manjericão, já que ela não
conseguia encontrar isso em nenhum minimercado de luxo.
O dia em que percebi que Caro tinha ido mais longe do que eu até então
me dera conta foi um domingo invulgar, em que nem John nem Annabelle
(nem Jimmy, entenda-se) estavam connosco. Normalmente, as nossas
refeições faziam-se na companhia dos outros, e envolvíamo-nos em
conversas absurdas sobre como era horrível que a biblioteca local estivesse
fechada, e se a austeridade não estaria finalmente a revelar as suas
verdadeiras vítimas. O tipo de conversa política que não serve para nada,
mas em que certo tipo de pessoas insistem porque as faz sentir que estão a
fazer alguma coisa pelas pessoas pelo mero facto de as mencionarem. Deus
sabe que nenhum dos Latimer alguma vez foi à biblioteca local durante os
anos que passei com eles.
Sophie estava completamente empenhada na conversa concentrada que
iríamos ter uma com a outra. Sophie nunca se sente desconfortável a
conversar. Na sua maneira de ver, tem sempre qualquer coisa de
interessante para dizer, e, estando ela munida dessa convicção, nada neste
mundo a poderia fazer sentir pouco à vontade.
Enquanto me servia um copo de vinho e enxotava o velho gato do sofá,
começou a falar efusivamente de Caro.
— Que rapariga maravilhosa. O Jimmy disse-me que já a conheceste.
Sabes que ela é filha da Anne Morton, estás a ver, a última ministra dos
Negócios Estrangeiros, e do Lionel Ferguson. Ele escreve livros fabulosos
sobre o Império Britânico. Nós conhecíamo-los razoavelmente bem de um
curso de preparação pré-natal quando eu estava grávida da Annabelle —
ambas tínhamos umas barrigas enormes e ligámo-nos em tomo daquela
figura ridícula e altiva que era a nossa líder de grupo. Continuámos a vê-los
em festas ao longo dos anos, claro, mas a Anne tinha um emprego exigente
e, por essa altura, já eles se tinham mudado para Richmond. É
extraordinário que o nosso rapaz tenha acabado por namorar com a pequena
Caro.
Oh, meu Deus. Claro. Aquela espécie de autoconfiança que Caro tinha
não vinha do nada. O pai chamava-se LIONEL, que diabo! A mãe era uma
figura política. A juntar a todos os privilégios com que tinha nascido, era
surpreendente e esperta. Eu costumava folhear as colunas sociais da revista
Tatler no escritório, de vez em quando, normalmente para ver se Bryony
aparecia, e as mulheres das fotografias eram quase sempre filhas de condes
ou duques. Mas o que me incomodava é que eram igualmente etéreas,
elegantes, maravilhosas. Como é que as pessoas com mais sorte de toda a
sociedade podiam ser também fisicamente superiores? Eu pensava que o
caldo genético para este tipo de pessoas fosse tão limitado que asseguraria
algum tipo de debilidade genética, mas aqui estavam elas todas — as Caros
que cirandavam por aí com um ar completamente natural e perfeito,
deslizando pela vida com a confiança de que lhes tinha saído a lotaria do
caldo genético.
Sophie continuou a falar ininterruptamente. Caro tinha-lhe enviado uma
edição limitada dos ensaios de Toni Morrison na semana anterior. Caro
tinha cozinhado para a família em casa de Jimmy. O frango estava perfeito.
Caro tinha sugerido um fim de semana em França na primavera. Eu passei
os dedos pelas marcas que o malvado gato velho tinha feito no braço do
sofá e assenti com a cabeça. Sophie não estava muito interessada no meu
contributo. De qualquer maneira, eu também não tinha nenhum contributo a
dar que ela quisesse ouvir.
— Sim, ainda é cedo, mas o John e eu também só estávamos juntos há
alguns meses quando nos instalámos naquele pequeno apartamento no
Angel — ouvia-a dizer.
Levantei os olhos e rebobinei a conversa na minha cabeça. Eles iam
viver juntos! Tinham passado... recuei mentalmente... pouco mais de dois
meses desde que se tinham conhecido. Que espécie de louco carente é que
vai viver com alguém quando nenhum dos dois ainda sequer admitiu que o
seu filme favorito é Die Hard e não, como eles haviam dito no segundo
encontro, O carteiro de Pablo Neruda? Quer dizer, eu nem sequer acredito
que Jimmy tenha visto O carteiro de Pablo Neruda. Talvez ele escolhesse
um filme dos mais óbvios de Tarantino.
Caro não me parecia nada carente. Não emanava aquela onda
desesperada que tantas mulheres de sucesso que realmente anseiam por um
bom homem e uma por uma oportunidade de estudar amostras de pintura
para o armário antigo que acabaram de comprar tantas vezes libertam.
Porque é que ela estaria a apressar as coisas?
Jimmy podia estar loucamente apaixonado, mas nunca teria sugerido
que fossem viver juntos — ele não tinha nenhum entusiasmo do tipo
«vamos lá, vamos a isso!». Para Jim, o estado ideal das coisas era viver
calmamente em câmara lenta.
— Claro que ele ir viver com ela é um grande abalo para mim. Clapham
fica a quilómetros de distância; mas o apartamento dela é divino e muito
mais perto do emprego dela, por isso compreendo. — Sophie levantou os
olhos do risotto que estava a mexer e sorriu-me. — Também vais ficar um
pouquinho abalada por já não o teres tantas vezes por perto, creio eu.
Vamos ter de te encontrar o teu próprio Caro.
Eu estava abalada. Não o quis admitir a Sophie, a quem a minha
proximidade com o filho deixava sempre um pouco nervosa. Suponho que
achava simplesmente estranho que o filho pudesse passar todos os anos de
adolescência a conviver com uma rapariga sem jamais se apaixonar por ela.
Ou, pelo menos, sem nunca o dizer abertamente. Sophie e John não têm
verdadeiros amigos do sexo oposto — quando dão os seus jantares,
convidam sempre casais, ou então um amigo solteirão que andaram a tentar
juntar com alguém, geralmente em vão. Ainda desconfio que ela passou os
nossos anos de adolescência a rondar a porta do covil, à espera do momento
certo para abrir a porta de surpresa e nos apanhar nus. Nunca o fez. Acho
que isso era ainda mais desconcertante para ela do que se o tivesse feito.
Pelo menos assim, teria percebido a dinâmica.
O que se passa é que Jimmy provavelmente sempre gostou de mim. Oh,
ele nunca o disse. Provavelmente nem sequer tem noção disso a um nível
consciente. Jimmy não é muito dado à introspeção profunda. Mas eu
sempre soube. Uma pessoa sabe, simplesmente, não é? E em condições
normais, isso seria um obstáculo à nossa amizade — a certa altura, alguém
confessa, ou arremete, ou começa a fingir. Mas Jimmy não. Ele gosta de
mim ardentemente. Faço parte dele. Mas isso nunca deu lugar a nada digno
de nota. Bem, hesitámos daquela única vez, quando estávamos à beira da
idade adulta, e eu não queria que ele se afastasse completamente. Mas a
maior parte das vezes era eu quem refreava os ânimos — nunca lhe dando a
menor sugestão de algo mais, nunca o encorajando a explorar tal
possibilidade. Nada de olhares demorados, nada de abraços embriagados
que nos parecessem demasiado intensos. Eu joguei bem e preservei o meu
amigo. Sabia que qualquer potencial exploração de sentimentos mais
profundos acabaria por nos separar de maneira irreparável. E porque é que
eu haveria de estragar tudo por causa de uma tentativa idiota de relação
durante a nossa adolescência, quando isso não tinha significado nenhum?
Eu sempre guardara essa recordação à distância, pensando que seria uma
coisa a revisitar quando fôssemos mais velhos, quando a missão que tinha
conduzido a minha vida tivesse terminado. Um laço que eu criara ao longo
de anos e anos recompensar-me-ia com um futuro simples e livre de
complicações. Mas eu ainda não conseguia pensar em nada disso, não
enquanto tivesse uma empreitada daquelas para levar por diante. Eu nem
sequer tinha considerado isso como deve ser, nunca imaginei as
especificidades dessa vida. Era apenas uma sensação vaga, mas que era
forte, e estava sempre presente. E agora via que Caro ia fazer descarrilar
isso tudo. Uma pessoa não pode explicar as Caros deste mundo, por muito
estritamente que se esforce por controlar as coisas. Pessoas como ela têm
prazer em entrar no nosso mundo e em tirar-nos aquilo que querem. Nem
sequer fazem de propósito, o bónus da nossa perda é apenas um pequeno
prazer adicional. Eu talvez fosse capaz de executar um plano épico de
vingança implacável, mas não sabia como travar o amor. Era algo que
parecia transcender-me por completo e fazia-me sentir como se me
estivesse a afogar.
***
Descarrilei um pouco. A minha mãe costumava deixar que isto lhe
acontecesse e isso deixava-me sempre furiosa. Uma simples ida ao
supermercado acabava por se transformar numa qualquer triste história de
uma dona de um café local e dos seus problemas de coluna, e eu ficava ali a
arranhar o braço da minha mãe com vontade de lhe berrar que se
despachasse. «Ninguém quer saber da estúpida da dona do café», apetecia-
me dizer. «Para de te preocupar tanto com desconhecidos que nem sequer
sabem como te chamas e arranja uma maneira de voltar a pôr o
aquecimento a funcionar.» Isto tudo para dizer que podia escrever um livro
inteiro sobre as minhas provações com Caro, mas não é essa a história mais
interessante que tenho para contar. Para além disso, ela já morreu. Por isso,
quem ganhou fui eu. Só que não ganhei. Caro nunca me deixaria ganhar
facilmente, não é verdade?
Os factos são estes. Jimmy mudou-se para o apartamento imaculado de
Caro em Clapham. A sua comunicação comigo esboroou-se quase de
imediato. As longas conversas ao telefone pela noite dentro foram a
primeira coisa a desaparecer. Depois, foram os cafés ou encontros
espontâneos no pub que frequentávamos desde que tínhamos idade para lá
entrar — afinal, Clapham é outro país quando se vive a norte do rio. A troca
de mensagens não foi completamente anulada, mas era eu quem as iniciava
a maior parte das vezes, o que me fazia sentir patética e furiosa. Pior,
sempre que via Jim, normalmente ela imiscuía-se nos nossos planos. Copos
(com os amigos dela), jantar em casa dos Latimer (onde ela me vinha
receber à porta), uma ou outra festa no apartamento deles, onde ela fazia
grande questão de me apresentar a homens incrivelmente aborrecidos, de
rosto afogueado e calças chino, para logo me abandonar e se retirar com um
ar satisfeito.
Aguentei tudo. Não me envolvi no jogo. Tinha coisas mais importantes
para fazer — estava a preparar-me para o meu assalto final à família
Artemis e já estava frustrada quanto baste pela minha falta de um plano
adequado. Não ia comprometer isso para me envolver com uma rapariga
fina e enfastiada que queria que eu me preocupasse a ponto de fazer com
que Jimmy parecesse uma espécie de um prémio. Em vez disso, observei-a.
E fiquei a saber quatro coisas:
 
Caro tinha um distúrbio alimentar tremendo.
Caro tinha uma dependência de drogas não despicienda.
Caro tinha acessos de raiva para com Jimmy que por vezes se tomavam
um tanto físicos (da parte dela).
Caro era desesperadamente infeliz.
 
Que merda de cliché.
Ele pediu-a em casamento no dia de aniversário dela. Não quero com
isto dizer que Jimmy seja destituído de espontaneidade, mas as pessoas que
fazem pedidos de casamento em datas importantes têm uma certa falta de
imaginação. Não consigo imaginar dia pior para uma pessoa se ajoelhar do
que um Natal em família, em que o nosso pai começou a beber champanhe
com sumo de laranja às onze da manhã. Sophie estava fora de si de
contente. Até John estava todo sorridente no almoço de celebração. A
família Morton foi convidada, e as antigas ligações interfamiliares foram
rapidamente reavivadas sobre um prato de couscous e um bom sortido de
vinhos brancos italianos que Lionel trouxe da sua cave. Caro, calma como
de costume, envergando um macacão de seda e mostrando o anel apenas
quando lho pediam, unhas curtas e sem verniz. Jimmy sorria-lhe bastante,
mas permanecia calado, seguindo-a pela casa, falando apenas quando ela
lhe fazia uma pergunta.
Só houve um pequeno momento engraçado no almoço, quando a mãe de
Caro começou a falar do choque que tinha sido a morte de Bryony Artemis.
O grupo inclinou-se coletivamente para a frente, tagarelando como velhas
alcoviteiras acerca de alguém que não tinham conhecido, apresentando
teorias sobre o seu falecimento e comentando quão nefasta era a sua
família.
— Ouvi dizer que deu 50 mil libras ao governo para tentar ser
condecorado lorde. Como se precisássemos de mais fura-vidas na câmara.
Homens como esse transformam o sistema todo numa anedota.
Eu deixei-me ficar em silêncio, beberricando o meu vinho e apreciando
a hipocrisia daquelas pessoas que pretendiam estar acima destas histórias
obscenas, mas que, de um momento para o outro, davam por si mais
entusiasmadas do que haviam estado o dia todo. A conversa seguinte,
acerca do último romance de lan McEwan, não foi, de longe, tão animada,
isso garanto-vos. Dois dias depois do almoço, estourei. Tinha perdido o
foco, tão consumida de pânico que estava com o meu grande plano e a
crescente impotência que sentia para aceder a Simon. Parti estupidamente
do princípio de que teria mais tempo para lidar com este problema menor,
mas estava tremendamente enganada. Pedi a Jim que se encontrasse comigo
em Southbank, onde lhe ofereci um café, e caminhámos ao longo do rio. Ele
assinalou as sardas no meu braço distraidamente, como costumava fazer
quando éramos adolescentes e nos víamos como uma dupla. Não estávamos
infundidos da vertigem da antecipação, mas sim do calor da familiaridade.
Chamou-me «Gray», como sempre fizera, e arreliou-me por causa dos meus
sapatos novos.
— Tão extravagante, Gray, o teu calçado não tem de parecer arte
moderna.
Eu retorqui que o seu lenço de seda novo lhe dava um ar de velho conde
italiano, e ele teve o bom senso de mostrar algum embaraço. Ambos
sabíamos que tinha sido Caro a escolhê-lo. Passado um bocado, perguntei-
lhe pelos seus planos para o casamento, introduzindo o tema com uma
leveza demasiado óbvia. Ele mostrou-se vago, falando do desejo de Caro de
fazer um jantar num clube privado a que o pai dela pertencia. Jim não
parecia entusiasmado por aí além, e mantinha os olhos postos na água que
corria ao nosso lado. Uma pausa na conversa deu-me o ensejo de chegar ao
cerne da questão.
Disse-lhe que os ataques dela estavam relacionados comigo, que eu
tinha visto as arranhadelas no seu pescoço durante o almoço. Disse-lhe que
Caro o tinha monopolizado, que o tinha despojado de todas as coisas que o
faziam ser ele, e que achava que o casamento deles seria uma má ideia. Eu
tinha metido na cabeça que isto era uma atitude corajosa, e que,
independentemente do que pudesse acontecer, ele quereria que eu o
dissesse. Ele desviou o olhar enquanto eu o dizia, enfiou o copo num
caixote do lixo, caminhou até ao gradeamento do rio e respirou fundo.
— Eu compreendo que isto seja estranho para ti. A nossa amizade é
intensa, maravilhosamente intensa. És da minha família, a minha melhor
amiga, a minha namorada suplente, imagino eu. Durante boa parte da nossa
vida, acho que pensei que estávamos destinados a ficar juntos, mas tu nunca
deixaste isso acontecer, pois não? — Eu devo ter vacilado, porque ele
continuou em força. — Tu não deixaste, Grace! Mantiveste-nos num nível
em que te sentias segura. As pessoas querem amar-te e tu sentes
repugnância por isso. — Passou uma mão pelo cabelo e suspirou. — De
qualquer maneira, tudo bem, tomaste tudo muito claro e eu aceitei, porque
sei que dás o que podes. Mas a Caro quer mais. Eu amo a Caro, e ela ama-
me a mim. E eu não posso aceitar isto, Grace. Não posso mesmo. Eu sabia
que não ias ser capaz de ficar contente por nós, a minha mãe avisou-me, a
Caro avisou-me. Eu compreendo. Mas isso não quer dizer que possas voltar
a fazer isto.
Depois olhou para mim com um sorriso terno e afagou-me a mão.
— Nós não vamos mudar, mas não podes voltar a falar dela dessa
maneira. Tens de ver as coisas como elas são. Eu não te estou a abandonar.
Não sou o teu pai; isto é apenas o que é normal acontecer na vida.
Deu-me um pequeno abraço e afastou-se, caminhando em direção a
Waterloo. Eu não disse uma palavra. Odiei-me por ter sido tão fraca. Odiei
que ele tivesse razão. Odiei ter-me vergado. Odiava-os a todos.
Caro e Jimmy deram a sua festa de noivado um mês depois.
Não tínhamos falado muito nas semanas anteriores, mas eu fui porque
fui convidada e porque se não fosse isso daria origem a um caso. E pior, ela
iria pensar que eu estava destroçada e regozijar-se-ia com isso. Levei um
fato verde-garrafa escuro com uma t-shirt de seda branca e ignorei a leve
náusea que senti ao ver quanto custava o conjunto. Usei batom vermelho.
Nós vestimo-nos para as outras mulheres. É um cliché, mas é verdade. Ela
iria perceber a mensagem. E isso valia bem o débito no cartão de crédito.
Cheguei às dez da noite, tendo tomado uma bebida ao virar da esquina
num bar da zona quando julguei ter chegado demasiado cedo. As festas de
Caro não costumavam começar antes das nove e meia, e eu não ia
desperdiçar o meu tempo com os seus amigos de riso extravagante quando
toda a gente ainda estava sóbria. O apartamento deles ficava no quarto
andar de um grande quarteirão com vista sobre o parque. O edifício era
fabuloso, com escadas de mármore e um elevador antigo com grades
metálicas. Nunca vi ninguém no átrio ou nos corredores. Estes apartamentos
eram propriedade de pessoas ricas. Pessoas ricas com diversas casas
espalhadas pelo mundo a que chamam «bases». Nenhuma delas com
gavetas a abarrotar de bugigangas ou bicicletas velhas a atravancar a
entrada.
A festa estava a descomprimir quando eu entrei. Um pequeno grupo de
colegas de Jimmy estava reunido na cozinha — alguns amigos da escola de
que eu até gostava, e alguns tipos chatos da universidade que ele se
recusava a despachar por completo. Mas, sobretudo, o apartamento estava
cheio de amigas de Caro. Raparigas magras até ao osso, com vestidos de
seda esmaecidos. Todas tinham um cabelo de menina bem — estão a ver,
aquele estilo grosso, brilhante e comprido que parece descuidado, mas cuja
coloração custa 500 libras sem direito a mais nada. Os homens traziam
todos calças chino e camisas azuis muito idênticas. Aqui e ali via-se um
sapato em exposição, mas vinham quase todos de ténis, numa tentativa de
se mostrarem mais descontraídos do que realmente eram. Quase toda a
gente era branca. A música estava muito alta, mas não estava ninguém a
dançar.
Acenei a algumas caras que reconheci, mas continuei a andar em
direção à mesa das bebidas, peguei num copo de vinho e encaminhei-me
para a varanda. Nunca fui uma grande apreciadora de festas. A quantidade
de conversa de circunstância que é feita esgota-me a energia e deixa-me o
corpo muito tenso. Não é por ser tímida, mas sim porque é tão chato que me
dá vontade de cortar os pulsos. A vida é curta, e nós passamos tanto tempo
a falar com pessoas terríveis sobre as minudências das suas vidas nulas. Eu
não o consigo fazer com qualquer espécie de entusiasmo. E sabem que na
prisão não é melhor. Talvez pensem que aí haverá menos conversa de
chacha. Uma pessoa está na prisão, não precisa de falar sobre o tempo, ou
do caminho para o trabalho, ou do projeto de artes visuais do filho. Mas a
prisão torna as pessoas ainda mais pequenas do que o habitual, ansiosas por
se agarrarem a uma normalidade reconfortante. Isto significa que há muita
conversa sobre as opções do pequeno-almoço e debate sobre o que irá dar
na televisão nessa noite. E, ao contrário do que acontece na vida real, não
consigo escapar.
***
Acendo um cigarro na varanda, introduzindo-me entre dois grupos de
pessoas que não conhecia, e volto-lhes as costas para tomar claro que não
estou a tentar meter-me na conversa. Fumo o meu cigarro (um por semana,
como faz Gwyneth Paltrow — e é esse o limite da nossa experiência
partilhada) e escuto a conversa que tem lugar à minha volta. Alguém
chamado Archie vai fazer esqui na Páscoa com a namorada nova e uma tal
Laura está a fingir que acha magnífico, mas os seus arrulhos cada vez mais
estridentes dão a entender que espera que a dita namorada caia pela
montanha abaixo. Alguém à minha direita está a contar como um dia
conheceu o nosso pavoroso primeiro-ministro num bar perto de King’s
Road, e como achou que ele era «um tipo genuinamente engraçado». As
conversas detêm-se quando Caro surge na varanda. O seu corpo minúsculo
está embainhado num vestido de alças verde-esmeralda, que não requer
sutiã (as raparigas finas não precisam de sutiãs), traz o cabelo solto e está
descalça. Isto sugere uma espécie de nível superior de descontração, não?
Como se uma pessoa estivesse acostumada a passar férias em vivendas
onde as empregadas varrem constantemente o chão e onde alguém nos vem
fazer tratamentos regulares aos pés. Toda a gente a saúda quando ela entra e
se junta ao grupo, apressando-se a oferecer vinho e cigarros. Ela localiza-
me e arrasta-me para junto dela com um pulso fino.
— Olá, querida, que bom teres vindo. Vejo que já tens uma bebida. O
Jimmy está lá dentro a entrar em pânico por causa dos copos, mas tenho a
certeza de que vai ficar radiante de te ver; vai ter com ele. Sei que ele vai
ficar tão aliviado por saber que está tudo... bem. — Olha-me erguendo
ligeiramente uma sobrancelha, com a sugestão de um sorriso. Ele contou-
lhe. Claro.
Vou para dentro, sem desejar falar com Jim, mas ansiosa por me escapar
de Archie e Laura e de um tipo chamado Phillip que está a sugerir, alto e
bom som, que alguém devia desencantar a branca. Não estamos em 1989,
Phil, seu cromo de merda.
Encontro Jimmy no sofá com uma rapariga simpática chamada íris com
quem ele trabalha. Recebo um abraço apertado, daqueles que só um homem
consegue dar, e sei que ele está decidido a esquecer a nossa conversa e está
a tentar dizer-me fisicamente que faça o mesmo. E é o que faço. Hoje dá-me
palmadinhas nas costas e sorri de alívio por estar tudo bem entre nós. O
apartamento enche-se, as bebidas são consumidas até restar apenas aquele
tipo de chardonnays que se encontram no supermercado, por isso decido
passar ao vodca. À uma da manhã, é evidente que quase toda a gente que
ainda está aqui está pedrada. Eu nunca consumi drogas — uma necessidade
clássica de não perder o controlo — e nunca ninguém mas oferece. Mas
reconheço os sinais, as pupilas vidradas, as bocas secas, as conversas
completamente absurdas (embora, francamente, isso pudesse dever-se
apenas à companhia). Caro está a cambalear no meio da sala, a esfregar o
próprio braço. Jim vai ter com ela e pega-lhe na mão. Ela solta-se
abruptamente, diz-lhe qualquer coisa e vai-se embora. Ele tenta de novo e
ela empurra-o. Não com força, mas de forma descuidada, visivelmente.
— Vamos lá acordar, meus amigos, estão todos a ficar com sono — diz
ela, e dirige-se para a cozinha. Olho para Jimmy e faço uma careta, tentando
dar-lhe a entender que estou aqui e que a noiva dele é um pesadelo, mas ele
olha-me com um ar a raiar o desprezo e senta-se. Caro aparece vinda da
cozinha com uma bandeja de prata cheia de shots de álcool e as pessoas
juntam-se à sua volta.
— Ao meu noivo! — diz ela, antes de virar o copo e pôr um braço à
volta de uma morena ao seu lado. Não oferece nenhum copo a Jimmy. Eu
sinto a raiva a crescer novamente, dela por ser uma cabra, e de Jimmy por a
deixar comportar-se desta maneira. Alguém trouxe um bolo, coberto com
ganache de chocolate e com as letras C e J em glacé cor-de-rosa. Ficou
esquecido junto ao forno pelo desejo frenético da embriaguez. Pego numa
faca e começo a cortá-lo em fatias grossas. Ponho uma num guardanapo e
ergo-a no ar.
— Caro, come uma fatia de bolo. Eu sei que não faz parte da tua dieta
habitual, mas estás a precisar de manter as forças, não estás? Não queres
perder esse teu famoso gancho de direita.
O grupo aglomerado no vestíbulo casquinou baixinho. Caro olha para
mim, com a boca petrificada de raiva, e retira-se, furiosa. Jimmy, que estava
demasiado longe para ouvir o que eu estava a dizer, avança deliberadamente
em direção a mim e puxa-me para a casa de banho.
— O que é que estás a fazer? — sussurra ele, inclinando-se sobre a
retrete e fazendo-me sentar no tampo da sanita. — Estás a tentar arranjar
uma briga com ela na nossa festa de noivado? Pensei que tínhamos
concordado que ias pelo menos tentar ficar feliz por nós.
— Como é que eu posso fazer isso quando tu concordaste em casar-te
com uma narcisista que parece não gostar ativamente de ti? — questionei,
levantando-me. — Quero respeitar-te, não quero agradar-te a qualquer
preço. Porque é que esperas que eu seja gentil, quando não és capaz de
pedir o mesmo à Caro? — Passo por ele de rompante e depois por uma fila
de pessoas à espera de que a casa de banho esteja livre.
A noite acelerou agora, parecendo frenética e pungente. Não é um
espetáculo feliz de amor, não estamos a celebrar uma união, estamos aqui
para fazer a vontade a Caro. Mas em quê? Quero ir-me embora, mas não
posso abandonar Jimmy aqui com uma noiva embriagada e um grupo de
pessoas que nem sequer devem saber o seu nome completo. Sento-me num
canto do quarto e finjo estar na ponta do grupo que está mais perto. Finjo
verificar os e-mails, quebro os meus limites rígidos e fumo mais cigarros. A
festa começa a dispersar, as pessoas tropeçam umas nas outras para ir ao
quarto buscar os seus casacos, afastando-se de Caro enquanto esta lhes
suplica que fiquem. Ela não acompanha o ritmo de ninguém a não ser de si
própria, com o seu pequeno corpo incapaz de ficar parado. Jimmy nem
sequer tentou conversar com ela de novo, mas não quer olhar para mim. Por
fim, às três da manhã, somos só nós os três e uma outra mulher no
apartamento, que está a falar com um ar sério com Jimmy, e por cima da
música (que Caro pôs a tocar aos berros) consigo apanhar algumas palavras:
«Preocupado...», «Comeu?», «Outra vez...». Imagino que ambos já terão
visto esta versão de Caro e estão à espera de intervir para a meter na cama.
Mas Caro está no seu próprio mundo, mudando de canção a cada minuto,
servindo-se de mais um copo, anestesiando-se a si mesma. Eu sento-me e
observo, ponderando chamar um táxi, deixando-os a tratar dela, mas, de
repente, ela para de dançar e olha para mim.
— Tens tabaco? Preciso de um cigarro, está tanto calor aqui dentro.
Jimmy levanta-se para sugerir que demos a noite por terminada, mas ela
interrompe-o e eu saco dos meus cigarros e digo-lhe que vou com ela.
Jimmy olha finalmente para mim.
— Está tudo bem. Fica aqui. Eu trato disto — digo eu enquanto a
encaminho pelo corredor em direção à varanda.
Caro vai a cambalear até à varanda e encosta-se à balaustrada. Eu puxo
dos meus cigarros e acendo-lhe um. Fico por cima dela, sentindo quão
pequena ela parece.
— Estás a comportar-te como uma louca — digo eu, tirando uma passa
do meu cigarro. Ela não olha para mim. — Fizeste desta noite um pesadelo.
Só posso presumir que estejas desesperadamente infeliz para te comportares
assim. Porque é que te vais casar com o Jim? Acaba com ele e encontra
alguém que tenha uma boa propriedade familiar e que te deixe morrer à
fome a teu bel-prazer, desde que fiquem bem de braço dado. Vai ser fácil.
Vais ser mais feliz, o Jim não vai acabar por ficar destruído a pouco e
pouco. Eu não vou ter de fingir que te tolero. Vai, Caro, bem sabes que eu
tenho razão.
Ela trepa para cima da varanda, ficando sentada com uma perna de cada
lado, e atira a cabeça para trás. Está a rir-se. É o mais espontâneo que ela foi
a noite toda. Caro começa a tossir, senta-se direita e apanha o cabelo atrás
da orelha.
— És tão estúpida — soletra ela. — És TÃO ESTÚPIDA. Não me
quero casar com nenhum cabeça oca com um fundo milionário. Claro que
isso era o que devia fazer, mas acabaria por morrer de tédio. Quero casar-
me com o Jimmy, ele é bom e adora-me, não é como um banqueiro bafiento
qualquer que me trataria com desdém para fomicar a secretária à primeira
oportunidade. Eu quero o Jimmy.
Eu não consigo deixar de revirar os olhos.
— Que cliché, Caro. Fazer terapia não ficaria mais barato? Pelo menos
podia ajudar com alguns dos teus outros problemas. Eles não vão
desaparecer, por muito que o Jim se esforce por ajudar. Porquê fazer
também dele um farrapo?
Isto não faz qualquer sentido, creio eu. Ela odeia-me, estamos a tentar
magoar-nos mutuamente com palavras e nenhuma de nós parece capaz de
desferir um golpe fatal. As pupilas de Caro estão enormes, negras,
parecendo perfurar-me os olhos.
— Oh, para com isso. Tu não tens voto na matéria aqui, sua maldita
mulher branca solteira. Vestida de verde para me ofuscar na minha própria
festa de noivado. Meu Deus, eu nem sequer devia tolerar os teus ciúmes e
ilusões. Toda a gente é um farrapo, Grace, devias perceber isso. Mas nós
somos adultos. Vamos conseguir criar um bom entendimento. Eu vou
ganhar o dinheiro e ele vai ser um tipo íntegro e a nossa vida vai ser boa.
Simples. Normal. Eu quero o normal. Ele não vai ser como o Lionel, que
nunca está lá, que nunca é caloroso, que está sempre ansioso pelo próximo
acontecimento. — Ela tira uma passa do cigarro. — Vai ser tudo bestial.
Mas para que isso aconteça, está-se a tomar cada vez mais evidente que é
preciso que tu não sejas UM ASSUNTO. — Ela acentuou estas últimas
duas palavras, olhando para mim, mas já não a rir.
— O Jimmy adora-te, és uma espécie de mulher-irmã, não és? Sempre
por perto, mas não inteiramente dele. Fazes parte da família, mas não fazes,
não de verdade. A Sophie é obcecada por uma boa ação. Foste apenas uma
delas. Porque é que não aproveitaste quando fizeste 18 anos para te pores a
andar? Uma mulher adulta com um emprego entediante não é bem o prémio
que era uma criança sem mãe. Tu não vales a pena.
Ela está quase a gritar, gesticulando com o cigarro no ar. As minhas
mãos estão cerradas em pequenas bolas petrificadas, e sinto a necessidade
de segurar o meu pescoço, que está a começar a inchar. Dou um passo em
direção a ela e ela inclina-se para trás, arregalando um pouco os olhos.
Tenho a cabeça a ferver, e respiro fundo uma última vez, tentando em vão
dissipar a adrenalina que sinto invadir-me todo o corpo.
***
O que poderia eu ter feito de diferente naquele momento? Poderia tê-la
empurrado violentamente, em cheio no peito, forçando-a a cair para trás de
cima da varanda? Poderia tê-la agarrado por um pé quando ela ia a cair,
dando-me conta da minha raiva impulsiva e tentando retificá-la — tudo no
espaço de um segundo? Ou poderia ter-me insinuado sobre ela, dizendo-lhe
algo igualmente devastador na esperança de conseguir, de algum modo,
ganhar mais um ou dois valiosos pontos sobre ela? É algo que tenho
ponderado inúmeras vezes, um interessante jogo de «escolha a sua própria
aventura», em que o caminho que seguimos nos conduz a cenários finais
dramaticamente diferentes. Em todos os cenários revistos por mim, lido
com a situação de maneira menos impulsiva, com um pouco mais de estilo.
Mas para vocês isto não passa de um exercício retrospetivo. Na realidade,
não fiz nada. Caro caiu daquela varanda sozinha, tendo o seu pequeno corpo
sido incapaz de amortecer a queda. Morreu em poucos segundos. Eu disse-
vos que ganhei. Até ao dia em que vi que não, claro.
 
Capítulo 11
 
George Thorpe acompanha todos os desenvolvimentos que têm a ver
com o meu recurso. É meticuloso, tenho de reconhecer isso. Tão meticuloso
que estou a assentir silenciosamente com a cabeça, desejando que ele se
despache e me dê as ideias gerais. O homem parece pensar que tem de
recapitular todas as partes do caso antes de podermos chegar à parte em que
ele me consiga, espero eu, tirar daqui para fora. Estarei impaciente por a
minha própria convicção estar errada? Aí está uma questão.
Quando ele se vai embora, interrompido pelo sinal sonoro que assinala o
fim do tempo de visita aqui em Limehouse, sou escoltada de volta para a
cela em silêncio. Eu quero anotar aquilo que ele disse e assimilar tudo com
tempo, mas a prisão não reconhece a necessidade de estarmos sozinhos.
Claro que uma pessoa se pode sentir incrivelmente só aqui, mas nunca nos
dão tempo para estarmos simplesmente por nossa conta. E, para mim, isto
significa geralmente que Kelly anda a pairar por perto. Neste caso, está
sentada no meu beliche quando regresso.
Não acredito em Deus, mas às vezes juro que penso que Kelly foi
enviada por um qualquer anjo vingador para me dar cabo do juízo. Se uma
divindade omnisciente realmente viver debaixo do mesmo céu que nós,
então, bravo por ter conjurado um castigo tão adequado para as minhas
ações sob a forma de Kelly McIntosh como colega de cela. Kelly está
debruçada sobre o seu pé, a cortar as unhas dos pés no meu colchão. A
minha cama está cheia de unhas cortadas.
— Cuidado! — diz ela, sem levantar os olhos. — Como é que foi a
reunião? — Tanto quanto sei, Kelly nunca tentou recorrer da sua sentença,
nem encontrar-se com um advogado, nem protestar a sua inocência como
tantas outras mulheres aqui na prisão. Como se alguém se importasse com a
nossa situação quando tem o seu próprio caso para resolver. É como ouvir
as outras pessoas falar dos seus filhos ou, pior, ouvir falar dos fastidiosos
problemas mentais dos outros. Ela já cá tinha estado, sempre com a mesma
acusação. Agora é por chantagear homens com fotografias lascivas, quando
era mais nova foi por roubar pessoas em Caledonian Road. Gosta de dizer
que a taxa de crime na N1 caiu 80 por cento quando ela foi presa. Kelly é
uma mulher que não gosta de mudança. Os seus crimes resultam, diz ela,
ignorando alegremente os seus repetidos encarceramentos, porquê alterar o
seu modus operandi? Só não utiliza o termo modus operandi porque Kelly
pensaria logo que isso era uma telenovela latino-americana.
— Oh, como de costume — digo eu, posicionando-me sobre ela e
olhando ostensivamente para os restos de unhas com o que espero seja uma
dose suficiente de nojo humilhatório. Mas nada atinge Kelly. Não se
consegue envergonhá-la, aborrecê-la, embaraçá-la. O que seria fascinante,
se ela não fosse uma caixa oca. Um psicólogo podia passar horas com ela
até chegar relutantemente à conclusão de que nem sempre existe algo
escondido nas profundezas da psique. Há pessoas que vivem em águas mais
rasas. Kelly passava a maior parte do tempo na modalidade de
chapinhamento.
— Então, sempre vais sair ou quê? O teu amigo já descobriu aquilo que
procurava? Deves precisar de uma testemunha, n’é? O teu amigo já fala
contigo?
Incomoda-me todo este interesse de Kelly. Tenho a certeza de que ela já
espreitou o meu processo, porque eu mal lhe falo no que quer que seja e, no
entanto, ela faz-me perguntas que tomam evidente que sabe mais do que
devia. A história está aí, o Daily Mail tem um repórter praticamente em
exclusivo para o meu caso, não posso esperar que outras pessoas não
queiram saber mais. Mas não quero aqui ninguém a respigar qualquer tipo
de informação para depois a enfeitarem e darem a um jornalista quando eu
sair. Quero desaparecer na minha antiga vida. Ou melhor, não tanto na
minha antiga vida, mas sim na vida que eu planeei começar antes deste
contratempo.
Faço-lhe um leve apanhado da minha reunião, de como estamos à
espera de que haja uma decisão em breve, de como estou confiante no meu
recurso. Ela sai da minha cama e senta-se no chão de pernas cruzadas como
uma menina pequena enquanto eu sacudo o meu lençol e afago a almofada,
esperando sinceramente que ela não lhe tenha posto os pés em cima.
— Não é uma loucura? — pergunta ela enquanto começa a pintar as
unhas dos pés de um tom de coral sinistro. — Já fiz tanta porcaria e
ninguém sabe o meu nome, e tu acabaste por te tornar uma espécie de
celebridade por uma coisa que nem sequer fizeste?
Kelly está obviamente aborrecida por eu ter deixado tanta gente
fascinada, como se eu não merecesse a atenção dúbia que recebi. Como se
aquilo fosse servir-me de trampolim para chegar a um reality show e
granjear-me um contrato de cuidados capilares e uma sessão fotográfica
para a revista OK para falar dramaticamente do meu calvário. Após meses a
viver como uma sardinha em lata com ela, tenho a certeza de que é
exatamente este o sonho de Kelly.
Não sei como lhe explicar que mulheres como ela há aos pontapés. Não
vai acabar na primeira página dos tabloides porque não há nada de
verdadeiramente devasso na sua história. Claro que ela é atraente até certo
ponto, e há uma perspetiva sexual nos seus crimes (o que ajuda sempre),
mas não há nada de único em alguém defraudar alguém por dinheiro depois
de um mau começo de vida. Nell Gwyn fê-lo há séculos, e fê-lo com muito
mais estilo do que Kelly alguma vez pode aspirar a ter.
— Devo ter tido sorte — digo eu, revirando os olhos.
— Mas alguma vez fizeste alguma coisa má antes? Nem um pequeno
gamanço? Nós éramos doidas por isso lá na Sassy Girl do nosso bairro. Eu
costumava enfiar toneladas de coisas nas minhas calças de fato de treino e
depois vendia-as na feira aos sábados. A minha mãe ficava deslumbrada
com a maneira como eu poupava a minha semanada. Mas depois aquela loja
começou a tomar-se um bocado finória, começaram a colar etiquetas nas
coisas e tivemos de seguir caminho. — Kelly sorri com esta recordação,
como se fosse uma coisa tão íntegra como as aventuras inventadas por Enid
Blyton. Eu também sorrio, bem treinada que estou em fazê-lo parecer
verdadeiro. Um sorriso simulado dá trabalho, não chega bem aos olhos, e os
nossos músculos faciais parecem sentir que só estão a executar os
movimentos, por isso uma pessoa sente que os está a arrastar enquanto o
faz. No entanto, não pode parecer sarcástico, como tantas vezes sucede com
os sorrisos hesitantes.
— Não — digo eu. — Nada de especial. Tive uma vida bastante
enfadonha.
Eu sei que é apenas uma coincidência. Sei que ela está só a falar da loja
da Sassy Girl porque havia uma em cada esquina. Estou certa de que ela
não sabe que Simon Artemis é meu pai. Nem sequer deve saber quem era
Simon Artemis. Não sabe quem é o dono daquela loja, de quem eram as
coisas que ela andava a enfiar nas calças para vender aos sábados de manhã.
Volto a olhar para Kelly, mas ela perdeu o interesse, imersa que está na
aplicação de uma camada final sobre as suas unhas dos pés recém-pintadas.
Pego no meu bloco de notas e encaminho-me para a sala dos computadores
para rever a minha reunião com Thorpe. Mas dou-me conta de que os meus
dedos já estão a arrepanhar levemente a pele do meu pescoço. Não gosto de
coincidências.
***
Encontro um espaço na chamada sala dos computadores tão longe das
outras pessoas quanto possível e sento-me. A sala tem três monitores
robustos que parecem ter sido doados pela Amstrad no início dos anos 80.
Supostamente, os computadores estão a ser progressivamente autorizados
nas celas em alguns lugares, mas Limehouse parece estar bem para trás na
lista de prisões a receber tais privilégios. Há cursos de literacia informática
disponíveis aqui na prisão, como se alguém quisesse aprender a enviar e-
mails e a escrever em documentos Word, quando, na verdade, a maior parte
só vem aqui para ver o Facebook e procurar aquele ex-namorado que nos
trocou por uma rapariga que trabalhava nos recursos humanos, para ver se
estão felizes.
Tomo nota de tudo o que o meu advogado disse por tópicos e revejo-os
uma e outra vez, até achar que tenho tudo. Não é absurdo? Tudo o que fiz
nos últimos anos, todos os planos e todas as mortes. A ambição
monotemática que eu acalentei, alimentada e alcançada com êxito, até que
depois... isto.
Ela caiu e eu fui presa, acusada e julgada por homicídio. Caiu como
coisa desprezível, embriagada e macilenta que era, e eu acabei aqui de fato
de treino, a pagar a um homem com óculos de aro de tartaruga centenas de
libras por hora para tentar encontrar e provar a minha inocência. Como é
que uma pessoa pode provar que uma coisa não aconteceu quando a única
testemunha somos nós? Caro jamais poderá contar a verdade sobre o que
aconteceu naquela noite, e eu desconfio que não o faria, mesmo que
pudesse. Iria achar isto divertido.
Tenho estado em contacto próximo com a morte, perdoem-me esta
imodéstia perversa. Descobri que ver a morte acontecer em tempo real faz
as pessoas entrar em pânico, fá-las perder o tino — gritando, desmaiando ou
correndo em círculos. Graças a Deus, nunca teve esse efeito sobre mim.
Soube sempre que ela ia acontecer; será essa diferença? Mas com Caro, não
fazia ideia. É certo que ela estava a vacilar, mas a ideia de que pudesse
mesmo cair nunca me passou pela cabeça. Talvez tenha parecido demasiado
óbvio — as pessoas caem embriagadas das varandas em Magaluf, não em
Clapham. E foi tudo incrivelmente súbito — e tão silencioso. Ela não
guinchou nem gemeu. Não havia nenhuma mão a que se agarrar como nos
filmes. Num minuto estava ali, no minuto seguinte já não estava. Se eu não
estivesse a vê-la, a escassos centímetros da sua cara, não teria acreditado.
Por isso entrei em pânico. A minha atitude habitualmente descontraída
enquanto testemunha do fim de uma vida abandonou-me e a minha visão
ficou turva. Caí de joelhos, agarrada aos balaústres de pedra, olhando por
entre eles para ver se a conseguia localizar. Mas tudo o que vi foi a sebe
bem aparada que rodeava os apartamentos. Não gritei nem corri a chamar
ninguém. Nem sequer reparei no telefone que tinha na mão. Ninguém sabe
ao certo quanto tempo é que eu ali fiquei, mas não pode ter sido mais do
que alguns minutos. Jimmy disse à polícia que veio ver porque é que ainda
estávamos cá fora tanto tempo depois do tempo necessário para fumar um
cigarro. Disse-lhes que eu a odiava. Jimmy disse à polícia uma série de
coisas.
***
Ouvi passos e voltei-me para as janelas francesas. Ele estava ali de pé e
eu olhei para cima, subitamente ciente da realidade.
— Onde é que está a Caro, Grace? — Não esperou pela resposta. Eu
apontei (acho que apontei) para a varanda e ele passou por cima de mim e
olhou lá para baixo. Eu não vi o que ele viu. Eu não olhei. E quando fomos
finalmente autorizados a abandonar o apartamento mais tarde, nessa manhã,
ela já lá não estava. Mas Jimmy viu-a. E não berrou nem chorou ou soltou
nenhum gemido gutural como seria de imaginar. Voltou-se simplesmente
para mim, agachou-se e agarrou-me as mãos como se quisesse arrancar-me
os braços das articulações.
— O que é que tu fizeste? — sussurrou ele, com a cara transtornada da
confusão e do choque. — Que raio é que tu FIZESTE?
Eu limitei-me a olhar para ele. Ele voltou a endireitar-se, disparou a
correr através das portas francesas e depois só ouvi a porta bater com
estrondo. A rapariga que estava lá dentro e de cuja cara me esqueci por
completo deve ter chamado a polícia. Eu ainda estava na varanda quando
eles chegaram, com as sirenes a uivar e três agentes fardados. Seguiu-se
rapidamente a chegada de uma ambulância, o que me pareceu
estranhamente engraçado, um verdadeiro triunfo da esperança sobre a
experiência. Ela estava morta, não estava? Que representação
extraordinária.
Foi-me dado um cobertor, ajudaram-me a levantar-me, fui encaminhada
para a sala e fiquei com uma mulher-polícia, que insistiu que eu bebesse
água. Disse-me que se chamava Asha e explicou que eu estava em estado de
choque. Aquilo pareceu-me ridículo na altura. Eu não gostava de Caro, a
sua queda tinha-me resolvido um grande problema e, para além disso, eu
nem sequer tinha visto nada. Mas, olhando para trás, talvez ela tivesse
razão. Sentia-me transida de frio, não conseguia parar de tremer e precisava
de urinar de 15 em 15 minutos. Jimmy não voltou lá acima, e eu não parava
de perguntar onde é que ele estava. Por esta altura, a outra rapariga tinha
desaparecido, e eu sentia-me demasiado cansada para protestar quando
Asha me disse que eu não poderia ir lá abaixo procurá-los. Na minha
cabeça, reproduzi o momento em que Caro caíra o mais calmamente
possível. A que distância estava eu? Ela parecia assustada? Teria eu feito
alguma coisa?
Enquanto revivia tudo aquilo, o meu corpo começou a relaxar e senti a
ansiedade a dissipar-se. Estava a debater-me por recuperar o controlo
rememorando a sequência dos acontecimentos. Ter um momento de pânico
era aceitável — não é todos os dias que uma mulher que uma pessoa
gostava mais ou menos de ver morta morre mesmo à nossa frente —, mas
mais do que um momento seria autocomplacência e, pior do que isso,
prejudicial. Apesar de se ter tratado obviamente de um acidente, eu iria ter
de responder a perguntas. Iria ser submetida ao escrutínio policial, coisa que
podia ser potencialmente catastrófica. Se não me controlasse, poderia tornar
esta situação pior para mim própria.
Quando um inspetor foi lá acima, eu já me sentia mais quente, mais
sóbria, e consolidara a minha história. O homem apresentou-se como Greg
Barker, mas não precisou de me perguntar como me chamava, tratando-me
por Grace assim que se sentou no sofá de veludo azul e puxou as calças
para cima de maneira a deixar-me ver as suas meias amarelas. Tinham
pequenos cachorros-quentes desenhados. Espero que tenham sido os filhos
a oferecê-las no Dia do Pai. Espero que ele as tenha calçado às escuras
quando se estava a preparar para sair. Um homem crescido que usa meias
com bonecos não tem desculpa. Especialmente se estiver a investigar uma
morte trágica às cinco da manhã.
O inspetor Barker era bastante brusco, mas não de uma maneira
antipática, o que até agradeci; estava farta do tom sussurrante de Asha e das
suas pancadinhas no braço. Às vezes, gostava de poder usar uma medalha
como alguns cães de salvamento que tiveram uma vida difícil: «agressivo,
não fazer festas».
— Lamento informá-la que Caroline Morton foi declarada morta pelos
meus colegas paramédicos ao princípio desta manhã. É evidente que teve
um choque terrível, Ms Bernard, mas é imperioso que tenhamos uma ideia
clara do que se passou aqui esta noite e, para que isso seja possível,
gostaríamos de a interrogar com a maior brevidade possível.
Fixou-me com os seus olhos cinzentos, e eu ponderei recuar, pedir para
ir para casa, tomar um duche e tirar aquela roupa que parecia absurdamente
frágil à luz da manhã. Queria enfiar uma camisola de lã e umas calças de
cintura subida. Queria um blusão que ocultasse o meu corpo antes de falar
com a polícia. Mas Greg Barker continuava a fítar-me. E eu perguntei-me
se a polícia tiraria alguma conclusão por as testemunhas ficarem num
impasse. A polícia não é propriamente conhecida pela sua abertura de
espírito e recusa intransigente em fazer suposições, por isso imagino que
qualquer relutância da minha parte em seguir o protocolo poderia significar
um grande labéu a ser usado contra mim.
— Isto é tudo tão horrível — disse eu, a puxar o sobrolho esquerdo com
a palma da mão. — Tão desnecessário. Pobre Caro. Pobre Jim. Posso vê-lo
antes de falarmos?
Ao ouvir isto, Barker desviou milimetricamente o olhar.
— Temo que hoje isso não seja possível. Mas a família do Mr Latimer
foi chamada e ele está em boas mãos, por isso não se preocupe muito.
Eu faço parte da família dele, que diabo. A mãe dele deve estar num
farrapo, a choramingar, a queixar-se repetidamente de quão terrível tudo
isto é. A sua irmã irá ficar cada vez mais ansiosa e fechar-se-á em si mesma.
E John irá tentar ser prático. Ajudar a tratar das coisas. Os amigos de
família irão aparecer como se fossem precisos e não estivessem ali apenas
para exibir a sua bondade através da sua presença precoce. O género de
pessoas que chegam cedo aos funerais para poderem sentar-se nas filas da
frente e dar a entender que são importantes às pessoas que ficam sentadas
mais atrás. Mas Jimmy precisa de alguém com quem gritar. Ou com quem
ficar em silêncio. Ou com quem ficar no seu antigo quarto a ver episódios
antigos d’Os Sopranos, porque às vezes isso é a única coisa que ajuda.
Uma vez mais, forçar ou ceder? Desta vez, pensei que insistir me fizesse
parecer carinhosa.
— Sir (os homens gostam sempre que os tratemos por Sir), quero ter a
certeza de que o meu amigo está bem. Ele acabou de perder a noiva,
certamente que o posso ver, nem que seja por cinco minutos; se a família
dele ainda não tiver chegado, acho que ele irá precisar de mim.
Uma vez mais, Barker fixou o seu olhar algures por baixo da minha
orelha e soltou um pequeno grunhido.
— Temo que hoje isso não seja possível. Asseguro-lhe que os meus
agentes irão olhar por ele.
Muito bem. Quereria isto dizer que Jimmy já se tinha ido embora? Ou
será que queria dizer que a polícia não queria que nós falássemos antes de
eles recolherem os nossos depoimentos separadamente? Ou pior. Muito
pior. Quereria dizer que Jimmy não queria falar comigo?
«Que raio é que tu FIZESTE?» foi a última coisa que ele me tinha dito.
Eu partira do princípio de que aquilo tinha sido dito em estado de pânico, de
incredulidade. Naquela loucura momentânea particular que o cérebro nos
impinge quando acontece alguma coisa que não conseguimos processar
normalmente. Mas e se não fosse apenas o momento? Poderia esse
pensamento ter singrado? Poderia ter lançado raízes no cérebro crédulo de
Jimmy, penetrando tão fundo que, passado o choque inicial, quando ele
tivesse conseguido dormir alguma coisa, tivesse acordado e continuado a
acreditar nele?
Jimmy não era pessoa para não confiar nos seus próprios pensamentos.
Já eu estava sempre a ter pensamentos que descartava, sabendo que eram
deformados, derrotistas, traiçoeiros. Pensamentos intrusivos que parecem
ser nossos, mas que na realidade não são. Conseguiram abrir caminho até ao
nosso cérebro e disfarçaram-se como pensamentos nossos. «A tua mãe era
uma rameira», «queres fornicar aquele velho até lhe dar uma coisa», estão a
ver? Este tipo de coisas. Jimmy não saberá como não confiar nos seus
pensamentos porque nunca teve um pensamento tão assustador ou perverso
que o tenha feito perceber que o seu cérebro nem sempre é um bom aliado,
pois não? Se ele considerava a hipótese de eu ter participado, de algum
modo, na morte de Caro, então porquê pôr isso em questão? O seu cérebro
tinha engendrado a semente, seria isso suficiente para ele a deixar florescer?
Eu esperava não me trair a mim própria em frente do polícia. Ele
continuava a olhar para mim, aguardando uma resposta. Lá fora, o Sol
estava cada vez mais alto no céu.
— OK — disse eu. — Em que é que eu posso ajudar?
***
Fui levada para a esquadra da polícia em Battersea, e anotei
mentalmente que não voltaria a atravessar o rio nos tempos mais próximos.
Homens de calças chino bêbedos a tropeçar pelos cantos, mulheres
embriagadas a cair das varandas. Nada de bom acontece ali.
Apesar do ambiente acolhedor cuidadosamente mantido — com ofertas
constantes de chá, uma mulher jovial sentada à secretária oferecendo-se
para me ir buscar uma camisola — de um momento para o outro, tudo
parecia ser uma armadilha. Porque é que Jimmy, eu e a aquela amiga
insossa de Caro não tínhamos sido reunidos, partilhando o nosso choque,
explicando o que se passara naquela noite, para depois sermos libertados e
podermos recuperar juntos? Eu fui levada para uma sala de interrogatório
que tinha exatamente o aspeto que se poderia esperar de uma série policial
medíocre da ITV, e aí fui deixada à espera durante um quarto de hora.
Procurei à minha volta por uma parede espelhada por onde alguém me
pudesse estar a observar, ou por um óbvio microfone destinado a apanhar
criminosos de baixo gabarito propensos a falar sozinhos dos seus feitos
quando lhes são concedidos cinco minutos a sós, mas não havia nada. Só eu
e o chá aguado que praticamente fui obrigada a aceitar. Porquê oferecerem-
nos chá quando estamos prestes a enfrentar a prisão? Deem-me vodca, que
assim pelo menos posso divertir-me um pouco quando começarem as
perguntas.
Quando a porta finalmente se abriu, não era o inspetor Barker, mas sim
uma mulher jovem com uma camisola de gola alta e uma saia de seda.
Tanto o seu género como a sua indumentária expunham uma misoginia
interiorizada que eu normalmente desculparia, pois como é que alguém
pode crescer sem a assimilar um pouco? Mas confesso que estremeço
quando vejo uma mulher piloto. Não sei se alguma vez conseguirei perdoar-
me isto.
Examinada mais de perto, a inspetora não parecia ser assim tão nova,
mas também não era exatamente do tipo Jane Tennant. Não tinha aliança.
Belas unhas. Perguntava-me que vermelho era aquele, maré carmesim?
Estava sempre alerta para o vermelho perfeito.
— Olá, Grace. Desculpe tê-la feito esperar, temos estado todos um
pouco ocupados esta manhã, os domingos não costumam ser tão ocupados
como hoje. Todas as nossas celas estão cheias e estamos a tentar aguentar o
barco. Eu sou a Gemma Adebayo e a minha colega que se nos vai juntar é a
Sandra Chisholm. — Enquanto ela falava, uma mulher loira atarracada
fardada de polícia convencional esgueirou-se sala dentro e sentou-se ao lado
de Adebayo. Sorriu, hermeticamente.
— Estamos aqui para ter uma pequena conversa sobre os tristes
acontecimentos desta manhã. Não é um depoimento nem nada disso, Grace,
queremos apenas uma declaração que nos ajude a compreender a sequência
dos acontecimentos e, assim esperamos, conseguir tranquilizar um pouco a
família da Caroline. — Gemma ergueu o sobrolho no que me pareceu ser
um gesto de encorajamento e ligou o gravador, declarando a data, a hora e
as pessoas presentes.
Eu falei lentamente, explicando tudo o que tinha acontecido na festa.
Disse às agentes que Caro estivera a beber copiosamente, a consumir
drogas, e que parecia tensa, transtornada e nervosa. Não lhes contei nada do
que estivéramos a falar, em vez disso, disse que tivemos uma conversa ébria
sobre casamentos e vestidos, como se fôssemos companheiras a consolidar
laços de amizade no seu grande dia. Pensei que isto seria uma coisa que
uma noiva normalmente faria na sua festa de noivado com a melhor amiga
do noivo. Isto é, se a noiva fosse uma rapariga básica normal entusiasmada
por mandar fazer convites com dois pombinhos e letras douradas em relevo
e não uma desgraça em forma de gente que decidiu casar-se com o meu
melhor amigo apenas porque precisava de alguém que a amasse que não
fosse o seu pai. Meu Deus, o que é que se passa com as mulheres para
serem tão pouco exigentes? «Que não fosse o seu pai» parecia uma fasquia
muito baixa. Há alguém que tenha um pai que não a dececione a um nível
mais básico, mas, em última análise, incrivelmente prejudicial? Oscar
Wilde (ele outra vez) certa vez disse: «Todas as mulheres acabam por ficar
iguais às próprias mães. Essa é a sua tragédia. A nenhum homem isto
acontece. Essa é a tragédia deles». Há demasiadas coisas erradas para
analisar aqui, mas isto serve para dizer que ele teria feito melhor em
procurar os homens que acabam como os seus pais. Estaríamos mais perto
de retificar os problemas da sociedade se focássemos a nossa atenção nesse
aspeto.
Expressei o meu perfeito (e genuíno) choque por Caro ter caído a meio
da nossa amena conversa.
— Só tinha ido a casa deles duas vezes e nunca tinha reparado na
varanda. Como tenho medo das alturas, não tinha bem a noção da altura da
queda nem da precariedade da posição em que estava, mas não me recordo
de pensar que ela estivesse minimamente em perigo. É tudo... tão horrível.
Agora era a vez de elas dizerem alguma coisa. Cobri a cara com as
mãos e respirei pelo nariz, estremecendo ligeiramente quando expirava.
Convenientemente traumatizada, imagino eu, mesmo para estas duas
mulheres que já viram de tudo. A loira mais velha acenou com a cabeça,
numa atitude claramente calorosa para comigo. Eu era uma figura simpática
aqui, uma rapariga abalada, cansada e preocupada com o seu amigo,
achando tudo aquilo esmagador. E em parte isso era verdade. Adebayo
sorriu rapidamente, mas não se apressou a reconfortar-me.
— Obrigada, Grace, deve estar cansada. Vou só rever consigo algumas
perguntas e depois deixamo-la ir. Deve estar ansiosa por voltar para casa.
 
Capítulo 12
 
Bryony morreu antes do acidente de Caro. Eu suspeitava (e bem) que a
morte de Bryony seria um grande abalo para Simon. As pessoas podem
sempre voltar a casar, e um homem como o meu pai, bem... não demoraria
muito tempo. Uma nova namorada com metade da sua idade acabaria por
aparecer antes de haver tempo para escrever o epitáfio na lápide da mulher,
tinha a certeza disso. Mas Bryony era a sua única filha e, ao contrário da
mulher, que passava a vida entre gabinetes de cirurgia plástica e
restaurantes abafados no Mónaco, Bryony tinha decidido viver com Simon.
Eu achava que a morte dela poderia levá-lo a tomar algum tipo de
providências. Por isso, Janine iria primeiro.
Tinha decidido como matar Janine antes de ter sequer pensado em
qualquer outra pessoa da família. Isto parece ridículo, na verdade, mas lá
está. Grande parte destes planos acabaram por depender da sorte, apesar das
congeminações constantes a que eu me entregava na adolescência,
engendrando formas meticulosas e engenhosas de matar aquelas pessoas.
Acontece que, como tudo na vida, a realidade é sempre um pouco mais
atreita ao acaso, ou a uma ideia que surge na nossa cabeça às três da manhã.
O homicídio de Janine foi um pouco das duas coisas. Li um artigo num
suplemento de domingo há três anos sobre o crescimento da «Internet das
Coisas», um termo que é bastante badalado por carolas excitados, mas que,
basicamente, significa um conjunto de dispositivos conectados à Internet
que podem comunicar uns com os outros. Têm sistemas automatizados e
podem reunir informação e executar tarefas — coligir uma lista de compras
quando ficamos sem produtos de limpeza, por exemplo, ou ligar o
aquecimento quando nos preparamos para regressar de férias. Não é nada
que se pareça com a visão que tínhamos do futuro próximo, não são os
Jetsons e ainda não temos pranchas de skate voadoras — mas já podemos
esperar que as nossas casas façam algum do nosso trabalho. Não precisamos
de chaves para a porta de entrada, pois só é precisa uma impressão digital,
não precisamos de aspirar, pois um robô pode fazê-lo enquanto estamos na
rua. Por enquanto, o mais perto que as pessoas normais chegam de ter uma
casa inteligente é comprarem uma Alexa ou algo do género, que programam
presunçosamente para tocar música ou pesquisar qualquer coisa no Google,
normalmente à frente de amigos entediados cheios de medo de os virem
visitar. Mas, para os muitíssimo ricos, pode significar ter a casa e tudo o que
lá está dentro conectado.
Adivinhem o que é que Janine tinha feito no seu apartamento no
Mónaco... É a isto que eu me refiro quando falo de sorte. Li aquele artigo
com uma ligeira ressaca e um vago interesse numa bela manhã e, três
semanas depois, Janine apareceu na revista Lifestyle!, uma publicação
mensal e superficial que consistia quase inteiramente em entrevistas com
mulheres muito ricas fotografadas em sofás roliços, deixando-as falar sobre
o que lhes desse na cabeça. Normalmente era um almoço de caridade ou um
projeto de renovação da casa envolvendo muito vidro e mármore e uso
excessivo da palavra «autêntico». Acho que as únicas pessoas que
realmente compravam esta revista eram as outras mulheres ricas que
queriam odiar as peças escritas acerca das suas rivais na sociedade, mas eles
punham muitos anúncios de empresas e peritos de decoração de interiores,
por isso a pescada mordia o rabo e a revista permanecia em circulação.
O artigo sobre Janine focava-se no seu novo terraço, uma coisa que ela
tinha acrescentado num capricho quando se deu conta de que queria um
sítio para fazer ioga ao sol da manhã. O jardim no telhado tinha uma ligeira
inclinação, explicou ela, e estava muito mais adaptado à luz da noite. Eu
perguntei-me como é que a entrevistadora reagira a isto, presumivelmente
com genuína simpatia por um fardo tão terrível. Mas ela não se ficou pelo
terraço, que parecia ter sido inspirado numa espécie de visão grega, com
grandes vasos terracota e, acredite-se ou não, uma fonte de mármore branco
com o dobro do tamanho de qualquer outra coisa naquele espaço. Tinha
sido feita uma visita ao resto do apartamento, que abrangia três andares e
albergava nove quartos, seis casas de banho e, esperem só, uma «sala de
serenidade» que parecia serena apenas por não ter nenhuma mobília para
além de um sofá creme e um espelho do chão ao teto. Janine explicou que
costumava recolher-se ali quando «a vida se toma sufocante e eu preciso de
me recentrar», o que não explicava o espelho, mas talvez às vezes seja
melhor não perguntar. A razão por que se tinha mudado para o Mónaco,
explicou ela, foi por questões de saúde. Um susto com o coração fê-la
«reavaliar a maneira como vivia». Deve haver muitos benefícios para a
saúde no principado. As lacunas fiscais? Não foram referidas.
Como a entrevista se alongou por mais de 5 mil palavras, a
entrevistadora estava claramente ansiosa por algo novo e original e instou
Janine a falar do seu roupeiro. «Fale-nos do seu armário de sonho, tem
algumas características especiais que imagino que todas as mulheres que
estão a ler este artigo estarão ansiosas por conhecer». Acompanhada de uma
fotografia de um enorme armário dentro do qual se podia andar, Janine
explicava que todos os artigos nos seus armários estavam inventariados,
fotografados de todos os ângulos e armazenados numa base de dados a que
se podia aceder com um tablet. O que fazia com que vestir-se de manhã
fosse um sonho, contou ela à revista, porque o sistema era capaz de lhe
dizer o que vestir para combinar com quê. «Lembra-me de roupa de que já
me tinha esquecido. Ainda na semana passada comprei um casaco de bouclé
azul-real para depois me dar conta, ao adicioná-lo à base de dados, de que já
tinha dois exatamente iguais!» Aqueles casacos vendem-se a 5 mil libras. O
que nós nos rimos com isto. Mas a tecnologia não se ficava pelos roupeiros.
Isto era apenas o princípio. Tudo naquela casa tinha sido ligado à Internet,
explicava Janine. As luzes já não eram ligadas por interruptores, o forno
não tinha botões («não é que eu tenha cozinhado muito nos últimos
tempos», chilreou) e a temperatura da sua sauna matinal era controlada pela
Nuvem. Todos os quartos podiam ser trancados remotamente, no caso de
uma falha de segurança, e dava-lhe tanto conforto sabê-lo, confidenciava,
«Na verdade, ainda não percebo bem como é que tudo funciona, mas a
nossa querida govemanta já domina completamente o programa, e eu não
tenho de fazer praticamente nada». Este era, na verdade, o lema da vida de
Janine.
Foi a sua referência à sauna que realmente despertou o meu interesse.
Parecia o cenário do crime de um romance policial e eu imaginei-me a
infíltrar-me na sua casa, talvez como empregada, até a fechar na sauna e vê-
la implorar misericórdia. Talvez isto não fosse propriamente exequível. Mas
o sistema de controlo remoto era apelativo, e parecia-me que uma casa
conectada à Internet mereceria pelo menos uma pequena investigação. Seria
possível usar esta tecnologia para fins nefastos? Seria completamente
segura ou poderia ser pirateada com um mínimo de esforço?
A rede estava cheia de histórias sobre dispositivos inteligentes que se
avariavam, que funcionavam mal ou armavam confusão. Casais que se
separavam quando os seus engenhos de IA reportavam o nome de uma
amante, de crianças expostas a palavras obscenas, chaleiras a ferver durante
horas a fio e a aquecer sistemas que era impossível pôr novamente a
trabalhar. Mas o que era realmente interessante neste tipo de sistemas
inteligentes era o elemento de segurança. Havia uma série de histórias
assustadoras online sobre pessoas que acediam às transmissões de
monitorização de crianças e de pais que ouviam desconhecidos a falar com
os seus filhos a meio da noite através dos sistemas. Havia relatos de alarmes
antirroubo que eram facilmente pirateados e silenciados antes de os intrusos
sequer entrarem nas casas. Famílias esgotadas declaravam que os seus
sistemas inteligentes tinham sido tomados por criminosos que exigiam
resgates para parar de adulterar as temperaturas ou de pôr música a tocar a
toda a hora do dia e da noite. Na maior parte dos casos, isto devia-se ao
facto de o sistema em que estes dispositivos funcionavam não estar
encriptado ou atualizado. Claro que algumas destas empresas levavam as
coisas um pouco mais a sério, mas a maior parte limitava-se a vender o
equipamento e aconselhavam os clientes a arranjar uma boa palavra-passe.
Eu tinha de descobrir se seria possível piratear o sistema de Janine, mas
por onde começar? Não podia simplesmente escrever «como encontrar um
hacker» no Google e arriscar a minha sorte (na verdade, foi o que comecei
por fazer, e senti-me incrivelmente palerma durante os dias que se
seguiram). Seguindo em frente, procurei académicos que estivessem a fazer
investigação em dispositivos inteligentes, e encontrei uma mulher que tinha
escrito um artigo sobre as futuras implicações para a segurança doméstica
na era das casas inteligentes. Trabalhava no University College de Londres
e Deus abençoe o nosso sistema de ensino superior, pois o endereço de e-
mail vinha mesmo por baixo do seu nome no website da universidade para
quem quisesse entrar em contacto com ela. Enviei um e-mail a Kiran Singh
a partir da caixa do correio sarah.summers@journo.com e perguntei-lhe se
ela teria disponibilidade para uma entrevista. Disse-lhe que estava a tentar
publicar um artigo no Evening Standard sobre os perigos de incorporar este
tipo de tecnologia nas nossas casas. Toda a gente gosta de ver o seu nome
impresso no jornal. Apesar de a imprensa de papel estar pelas ruas da
amargura, as pessoas ainda ficam excitadas por se verem referenciadas. Na
imprensa online, desaparecemos quase sempre em poucos minutos. Mas a
nossa avó pode rasgar a página do jornal e mostrar às amigas. Talvez até
emoldurar a nossa proeza na casa de banho da cave, onde veremos o papel
cada vez mais enrolado e amarelecido cada vez que lá formos fazer chichi.
Os académicos não são diferentes de nós. Kiran enviou-me um e-mail de
resposta uma hora depois para dizer que teria todo o gosto em falar comigo
e perguntando se poderia ser na sexta-feira.
Encontrámo-nos num café no Museu Britânico. Ideia dela, e uma
agradável mudança da habitual banalidade de ir almoçar a um de oito
milhões de restaurantes de pronto a comer desta cidade. Fui munida do meu
bloco de notas e de um gravador de cassetes, comprado nessa manhã numa
loja de aparelhos tecnológicos em Tottenham Court Road, na esperança de
que me desse um certo ar de jornalista. O gravador era garantidamente fácil
de usar, asseverou-me o homem ligeiramente desesperado que mo vendeu
na sua loja vazia, entalada entre duas megalojas de mobílias que exibiam
sofás de imitação de veludo cor-de-rosa claro na montra. Carreguei no
botão e torci para que corresse tudo bem.
Kiran era uma mulher simpática, ainda que um pouco séria, que
encontrei sentada a uma mesa a beberricar um chá verde quando lá cheguei,
mas facilmente identificável como uma académica. As pessoas normais não
usam calças de bombazina. Podem pensar nisso, talvez até tentem comprar
algumas a metade do preço numa loja da Gap. Mas, no fim de contas,
acabam por se aperceber de que elas se agarram a nós, acumulam cotão
como nenhum outro tecido neste mundo e, pior ainda, fazem-nos parecer
um académico. Depois de alguma conversa, ela ficou satisfeita por passar
ao tópico em apreço, e deu-me uma tonelada de informação útil sobre se era
possível usar esta tecnologia para fazer mal a alguém. Kiran achava que
havia uma maneira óbvia de um hacker poder usar estes dispositivos da
casa inteligente malevolamente. Se se conseguisse aceder ao hub do
proprietário, então, tudo podia acontecer.
O hub, explicou ela pacientemente depois de eu lhe ter pedido para
voltar atrás e explicar outra vez, era a caixa central que comandava todos os
aparelhos numa casa inteligente. Envia ordens e eles obedecem. O hub pode
mandar o termostato aumentar a temperatura numa casa ou dizer à televisão
para fazer a atualização dos canais. Quando um dispositivo é assinalado
como «confiável» pelo hub, está na rede e pode comunicar com todos os
outros aparelhos. Alguns destes dispositivos inteligentes funcionam com
encriptação total.
— A Amazon é geralmente bastante boa no que toca à segurança da
Nuvem, mas eu não tocava nos dispositivos da Ergos nem com uma bengala
— disse ela, passando um dedo pelo pescoço. No entanto, muitos deles
careciam de encriptação, dado que os fabricantes são mais pequenos e os
seus recursos limitados. Havia maneiras fáceis de aceder ao hub, disse-me
Kiran; se uma pessoa obtivesse o número de série do proprietário, então, era
canja.
— Estou sempre a ver publicações na Internet sobre isso — continuou,
revirando os olhos. — Mesmo que ele não nos seja dado de bandeja, há
sempre maneiras de o obter à força se uma pessoa tiver as competências
básicas de pirata informático.
Quando um hacker obtém o controlo do hub inteligente e dos
dispositivos que lhes estão ligados, a casa inteligente pode tomar-se uma
arma para a pessoa em questão.
— Uma pessoa pode usar as câmaras do dono da casa para os espiar —
disse ela — ou transtornar alguém ligando a música a certas horas do dia,
abrir portas, correr persianas. — Eu reprimi um sorriso, ela não podia saber
quão maravilhosa era a sua hipótese. — Mas, de uma maneira geral, ainda
não chegámos a esse ponto. A maior parte das pessoas compra um
dispositivo Alexa ou Google e utiliza-o para encomendar o leite. Claro que
esses dispositivos são pirateáveis, mas o verdadeiro perigo é quando temos
tudo conectado em casa, e ainda não chegámos aí. Essa tecnologia ainda
está nos primórdios, é o reduto dos muito ricos.
Perguntei-lhe quem é que fazia este género de pirataria e ela olhou
rapidamente em volta, como se pudéssemos estar rodeadas por pessoas
ansiosas por saber por onde começar. Na verdade, estávamos sentadas entre
uma mulher de idade com um casaco às flores a comer um bolo de mirtilos
de um lado, e um casal japonês ocupado a tirar selfies, do outro. A única
outra pessoa no café era um jovem bem-parecido de cabelo escuro e casaco
elegante embrenhado num livro que estava sentado três mesas à nossa
frente.
— As coisas maiores são feitas por estados-nação, China, Rússia,
Estados Unidos, embora eles o neguem. A pirataria de segunda ordem tende
a ser feita por grupos que têm como objetivo a extorsão, utilizando
câmaras-web para chantagear pessoas LGBT no Médio Oriente, por
exemplo. Depois, temos adolescentes isolados nos seus quartos que são
totalmente autodidatas e que o fazem para se divertirem, ou por tédio, quem
sabe? Têm tempo para se meterem com uma pessoa, interferindo na sua
campainha da porta ou desligando-lhe o aquecimento central, depois vão-se
vangloriar das suas proezas no Reddit ou no 4Chan ou na Babel...
Após mais algumas perguntas e a promessa de entrar em contacto com
ela quando o artigo estivesse pronto, fiz a minha saída, com cuidado para
evitar o casal que ainda parecia determinado a obter a selfie perfeita, e
voltei para o trabalho. Caminhei energicamente, avançando pelas ruas
secundárias por trás de Oxford Street, cismando se deveria ou não arriscar
recrutar um cúmplice para me ajudar a piratear a casa de Janine. Eu tinha
sido avessa a delegar qualquer parte do meu plano desde o início, pois não
queria acrescentar quaisquer fios armadilhados quando já havia tantos
outros. Mas tinha a certeza de que não poderia fazer isto sozinha — a minha
compreensão da tecnologia começava e acabava quando tinha de atualizar o
software do telemóvel — e já estava completamente apaixonada pela ideia
de a casa de Janine se virar contra ela. Conseguiria encontrar alguém em
quem confiasse o suficiente para me ajudar a fazê-lo?
***
Nesse fim de semana, passei 28 horas online, a esfregar os olhos a cada
cinco minutos, alternando entre café e vinho consoante os meus níveis
energéticos. Vi os sites que Kiran tinha referido, lendo milhares de
publicações de piratas amadores que se gabavam dos seus êxitos,
vangloriando-se por terem conseguido infiltrar-se em nuvens, hubs,
telefones e câmaras numa linguagem que era quase alienígena para mim.
Seria ocioso imaginar que eram todos trinca-espinhas de 16 anos que não
viam a luz do dia há semanas? Talvez, mas não duvido de que era
exatamente isso que se passava. Havia tantas publicações de pessoas a pedir
aos piratas que os ajudassem, sobretudo para espiar os parceiros suspeitos
de fraude. «Rapariga (22) precisa de ajuda para provar que BF (28) está a
portar-se mal com colega de trabalho. Ajudem-me!» era um exemplo típico
daquele tipo de apelos. Normalmente as respostas propunham desenvolver a
conversa em privado, por isso não me foi dado ver qualquer o resultado, ou
se algum pirata informático prestimoso aceitou o trabalho.
Mas eu estava exausta e intoxicada de cafeína, por isso publiquei uma
mensagem. Não importava se não conseguisse atrair ninguém, mas valia a
pena tentar. Era uma mensagem vaga e curta, explicando que era do sexo
feminino (16, achei que podia apelar a um carola qualquer armado em
cavaleiro andante), e que precisava de ajuda para me meter com a minha
horrível madrasta. Não irei entrar em pormenores sobre algumas das
mensagens que recebi nos dias que se seguiram. Bastará dizer que o meu
apelo caiu como mel para uma abelha, sendo o mel uma jovem rapariga
vulnerável e a abelha um enxame de velhos grosseirões. Respondi às
mensagens menos nojentas e bloqueei todos os outros. Passei a semana
seguinte a fornecer mais detalhes a conta-gotas a três utilizadores, vendo
como reagiam, o que é que sabiam sobre pirataria informática e o que
queriam em troca. Aquele em que depositava menos esperança era
ColdStonerl7, que parecia não saber usar palavras apropriadas e respondia
às horas mais aleatórias do dia, por vezes com mensagens ilustradas com
GIF que eu não conseguia compreender. Estava prestes a bloqueá-lo quando
um dia ele me enviou uma mensagem às sete da manhã enquanto eu me
arranjava para ir para o trabalho.
«lô», escreveu ele, «então, quando é que vamos dar cabo da cabeça da
velhota? Eu também odeio a cabra da minha madrasta. Isto pode ser uma
espécie de terapia que o meu pai não vai ter de pagar.»
A linguagem era simples, mas as frases completas eram surpreendentes.
Descobri que ele tinha 17 anos (daí o nome de utilizador), que vivia no
lowa com o pai e a supramencionada vil madrasta, e que passava muito
tempo às voltas na Internet quando devia estar a fazer os trabalhos de casa.
Eu disse-lhe sem rodeios que me parecia pouco provável que ele fosse um
hacker de primeira categoria, mas aparentemente era eu que não percebia
muito bem como eram os adolescentes de 17 anos. Ele passou a manhã
inteira a bombardear-me com todas as maneiras que tinha de se infiltrar em
câmaras de computador, interferir com monitores de crianças e desligar o
aquecimento das casas. Tudo coisas ligeiras, mas mesmo assim parecia
mais impressionante do que qualquer coisa que eu pudesse tentar sozinha,
por isso, em vez de o bloquear, entrei em diálogo com ele.
Falávamos muito durante a noite por um canal encriptado de mensagens
instantâneas, onde ele me contou como se sentia sozinho e eu inventava
histórias sobre o ódio que tinha aos meus pais. Quanto mais falávamos,
mais descontraído ele ficava e passou a usar uma ortografia mais correta.
Contou-me que adorava ler, e congratulámo-nos por uma paixão comum
por Jack Kerouac (eu nunca li nada de Kerouac, mas o Google ia-me
mantendo mais ou menos a par do desenvolvimento da conversa). Abstive-
me deliberadamente de fornecer quaisquer pormenores sobre o meu plano,
contentando-me em estabelecer primeiro uma relação com ele, ainda que
baseada em mentiras e em motivos sexistas sobre as madrastas dos contos
de fadas.
Isto prolongou-se por algumas semanas, durante as quais fui tentando
comportar-me como a rapariga fictícia de 16 anos que ele julgava que eu
era, ao mesmo tempo que lhe ia dando um impulso de confiança que
calculei que poderia ajudar a fazê-lo sentir-se em dívida para comigo. Ele
confidenciou-me que tinha sido vítima de bullying quando era mais novo
por os seus pais se terem divorciado (suponho que o Iowa não fosse uma
região especialmente progressista) e falou-me do seu receio de nunca
conseguir arranjar uma namorada. Apesar das minhas tentativas de manter
as coisas inteiramente castas, às vezes acordava com mensagens de voz em
que ele me cantava pequenas canções sobre a maneira como eu o alegrava,
e eu despachava-as com emojis sorridentes. Ele estava a ficar enfeitiçado. Já
me tinha esquecido de como era fácil manipular rapazes adolescentes, mas
rapidamente reavivei a memória. Sentia que estava no bom caminho com
Pete (revelou-me o seu verdadeiro nome ao quarto dia, e eu disse-lhe que
me chamava Eve) e decidi avançar e falar-lhe um pouco mais daquilo que
queria fazer a Janine, a minha terrível madrasta.
Expliquei-lhe que ela vivia no Mónaco (tipo França, sim) e que tinha
virado o meu pai contra mim ao longo dos anos, de modo que agora
estávamos quase inteiramente desafeiçoados (o que não era totalmente
mentira). Queria dar-lhe cabo da cabeça e ensinar-lhe uma lição. Saberia ele
alguma coisa sobre casas inteligentes? Ele sabia um pouco, mas um dia
mais tarde voltou completamente informado sobre os diferentes métodos
utilizados pelas empresas que ofereciam tecnologia inteligente. O miúdo
deve ter ficado acordado a noite toda a ler sobre todas as formas de uma
pessoa se infiltrar numa casa como a de Janine, e estava confiante de que
poderíamos entrar no seu hub.
«A melhor maneira era conseguirmos meter um dispositivo novo na
casa, se conseguirmos acrescentar um novo elemento no sistema, podemos
controlar tudo. Estás a pensar fazer alguma visita nos próximos tempos?»
Isto deixou-me desconcertada. Estava à espera de que fôssemos capazes
de aceder ao hub da casa sem ter de meter os pés na propriedade, e eu não
fazia ideia de como é que poderia entrar no apartamento de Janine sem pôr
tudo em risco. Não era uma assaltante e não tinha ilusões sobre o seu alto
nível de segurança. Mas, ao mesmo tempo, nunca tinha ido ao Mónaco ver
como Janine vivia com os meus próprios olhos. Tinha umas férias para tirar,
não havia problema em ir dar uma vista de olhos ao local, mesmo que isso
significasse ter a certeza de que não havia maneira de levar a cabo este
plano em particular.
Disse a Pete que ia estar fora durante algumas semanas, mas que não
tinha a certeza se seria convidada. «Ela detesta-me, LOL», escrevi, «e
normalmente fico num hotel com a minha mãe e vejo o meu pai quando ela
não está por perto.» Era fraco, mas se Pete achava que isto era uma situação
familiar bizarra, não mo disse. Apesar de ser quase adulto, a família
obrigava-o a ir à igreja duas vezes por semana e todos os dias durante as
férias, por isso acho que ele não tinha uma grande bitola para saber o que é
que era saudável.
Marquei uma semana de férias e arranjei um hotel no Mónaco, o que foi
um rombo considerável nas minhas finanças. Este projeto tinha dissipado
uma grande quantidade das poupanças que eu tinha diligentemente
acumulado, e doía-me ver as minhas economias tão arduamente auferidas
serem desbaratadas desta maneira. Tinha andado a pôr um pouco de parte
todos os meses desde que começara a receber uma mesada de Sophie e John
(eles achavam que tinham de me tratar como um dos seus nesta questão.
Sentia-me desconfortável com isso, mas aceitei o dinheiro na mesma) e isso
dava-me um sentimento de segurança que não conseguia retirar de qualquer
outra coisa. Sempre que verificava a minha conta-poupança, assaltava-me
um sentimento de pura raiva face ao desequilíbrio entre a situação
financeira dos Artemis e a minha. Admito que é ridículo, dado que andava a
gastar o meu dinheiro com o intuito de os matar, mas nem todas as emoções
são racionais.
Ainda assim, uma semana ao sol não era caso para deixar ninguém
inteiramente desesperado, e o Mónaco era pequeno, aproximadamente do
tamanho de Central Park, por isso tropeçar deliberadamente em Janine não
seria um problema, desde que ela estivesse na cidade. Infelizmente, não
havia garantias disto, dada a propensão dos muito ricos para decidir apanhar
um voo para outro sítio de um momento para o outro. O seu Instagram era
privado, mas ela aceitara um pedido para a seguir a partir do pseudónimo
«Monaco deluxe», que era uma conta que eu tinha aberto com fotografias
roubadas de sites da alta sociedade. Nelas mostrava os ricos e poderosos em
festas e eventos de caridade — era fácil republicá-las com homenagens
efusivas a «Sra. Daphne Baptiste, a doar generosamente um casaco de vison
ao Fundo de Apoio às Crianças» ou a «Sra. Loma Gold, que foi anfitriã de
um magnífico serão no seu maravilhoso apartamento para a Sociedade
Protetora dos Cães de Rua». Se estas mulheres alguma vez sequer olharam
para a minha página, terão aceitado os elogios pelo seu valor nominal. Eram
pilares da sociedade do Mónaco, claro que as pessoas queriam mostrar
algum reconhecimento. A partir da página, consegui ver um pouco do que
andava a fazer, mas Janine não publicava assiduamente nem era uma
fotografa de mão-cheia. Para além de algumas fotografias em pose tiradas
por profissionais, as imagens na sua conta eram maioritariamente
fotografias embaciadas de pores do sol tiradas das janelas de jatos privados
ou um instantâneo esquisito de uma mesa de almoço com um título como
«Bons momentos a pôr a escrita em dia com o Bob e a Lily no Cafe Flore»,
e algumas fotografias de eventos familiares. Bryony vivia a sua vida em
tempo real no Instagram, o que, para mim, era de um valor incalculável.
Janine era da velha guarda. A sua última fotografia era de há três dias, e era
um plano aproximado das suas mãos ligeiramente roliças cheias de joias,
ostentando umas unhas recém-pintadas de vermelho-escuro. A legenda
dizia «Obrigada, mais uma vez, a @MonacoManis por um ótimo trabalho»,
por isso, pelo menos por enquanto, ainda ali estava.
Apanhei o voo numa segunda-feira, e assim que acabei de tomar um
duche para lavar a tristeza de um voo económico e do autocarro do
aeroporto, saí em exploração. É claro que sabia onde era o apartamento de
Janine. É extraordinariamente fácil descobrir onde as pessoas vivem.
Mesmo que não estejam recenseadas nos cadernos eleitorais, há tanta gente
a identificar a sua posição geográfica ou a seguir contas nas redes sociais da
sua zona... Se uma pessoa seguir oito contas com «Islington» no seu nome,
ninguém recebe um prémio por descobrir onde é que ela compra o jornal da
manhã. Pior ainda, as pessoas são tão crédulas que publicam fotografias da
vista dos seus quartos ou das suas próprias portas da frente. Com as
celebridades, ainda é mais fácil. Muitas vezes, os media referem a
localização exata da casa da pessoa. Se ela estiver envolvida em algo
verdadeiramente escandaloso, podem até pilotar um helicóptero sobre a sua
residência, ou forjar uma planta da casa. Janine deu-me a sua morada
diretamente. Deu-a a todos os leitores da Hello! há dois anos, quando abriu
as portas a uma receção em honra de uma empresária turca que estava a
receber muitos louvores por ter inventado uma possível cura para o eczema.
O artigo abria literalmente assim: «Janine Artemis recebe-nos no seu
belíssimo apartamento no edifício Exodora, no recreio dourado do
Mónaco». Empresária esta, por sinal, que foi mais tarde condenada a oito
anos de prisão por se apropriar de perto de 100 milhões de libras em fundos
e falsificações de investigação. O combate para erradicar o eczema
continua.
Estava um dia quente e encantador e eu usei o mapa do meu telefone
para me levar ao edifício Exodora, passando por cafés apinhados de
mulheres de cara felina e homens atarracados com camisas de colarinho
contrastante, que não teriam perdido nada em ter usado um fator 50 mais
cedo nas suas vidas. O edifício ficava a apenas dez minutos do meu hotel, o
que era um alívio porque o calor estava a aumentar e a perspetiva de uma
boa caminhada foi algo prejudicada pelos supercarros que deixavam um
rasto fétido de fumo de gasolina na sua esteira de cada vez que passavam a
assobiar por mim. Diz-se que uma em cada três pessoas que vive no
Mónaco é milionária. Eu compreendo que as pessoas ricas vivem, acima de
tudo, para manter o controlo sobre o seu dinheiro, e um paraíso fiscal como
este ajuda-as a fazer isso, mas aquilo parecia uma grande comunidade
encarcerada onde não havia necessidade de espaço aberto ou de ar fresco
porque o nosso helicóptero podia descolar em 20 minutos e levar-nos para a
Suíça ou para a Provença, se por acaso sentíssemos necessidade disso.
O edifício em que Janine vivia era impressionante no seu estilo
apalaçado e espampanante. Era uma casa de estuque creme, apesar de o
termo «casa» poder induzir em erro. Eu perguntara-me muitas vezes porque
é que os Artemis tinham escolhido um apartamento em vez de uma moradia
isolada algures, mas, agora que vira o apartamento, já percebia. O edifício
era imenso, com um comprimento equivalente a pelo menos seis casas, e à
medida que subia, apareciam varandas, cada vez maiores. Havia rosas a
florescer de ambos os lados, pendendo para baixo como se lhes fosse
permitido crescer livremente, mas conservando uma aparência muito
simétrica, cuidadosamente arranjadas para parecerem casuais. As janelas
iam do chão ao teto, mas eram todas tapadas por persianas, e o topo do
edifício tinha uma grande haste com uma bandeira ostentando as cores do
principado. Eu fiquei especada a contar os andares. Eram oito ao todo, e eu
sabia pela revista de decoração que a propriedade dos Artemis consistia em
três. Esticando o pescoço, conseguia ver a varanda de vidro lá no topo onde
Janine gostava de fazer ioga ao sol da manhã. Fui dar a volta até às traseiras
da propriedade, mas o espaço estava obstruído por um muro alto e
imponente e um portão que eu presumi que iria dar ao parque de
estacionamento. Havia uma grande porta de entrada metálica de um lado, o
que parecia indicar a existência de um elevador de carga.
Naturalmente que havia câmaras de circuito fechado de televisão
disseminadas por todo o lado, consegui detetá-las em pelo menos cinco
sítios. Apesar de tudo isso, a porta principal era de acesso
extraordinariamente fácil, com um simples portão de ferro forjado e uma
grande maçaneta dourada interpostos entre mim e o intercomunicador. Ah, e
um homem de guarda junto à porta. Mas eu seria doida se pensasse que
poderia simplesmente lá entrar. A escolha deste sítio devera-se certamente a
questões de segurança. Era uma casa fortificada e devia ter porteiros de
plantão em alerta máximo 24 horas por dia e sete dias por semana.
Desanimada, caminhei pela rua e encontrei um café onde mandei vir um
café creme e enviei uma mensagem a Pete. «Tive uma grande discussão
com o meu pai e não posso ficar aqui, não tenho como entrar em casa da
minha maldita madrasta. Penso que é melhor desistir de tudo». Acrescentei
um emoji de choro para aumentar o efeito e acendi um cigarro. Ele pingou
imediatamente: «Oh, não, isso é muito mau. Podes dar alguma coisa ao teu
pai para ele levar para casa?».
Agora havia uma ideia. Talvez eu não pudesse entrar no apartamento,
mas devia haver pessoal a entrar e a sair o dia todo. Há décadas que Janine
não mexia claramente uma palha para além de apontar e chamar os seus
ajudantes contratados com uma campainha. Devia haver alguém disposto a
levar um pequeno dispositivo para a propriedade a troco de uma
compensação adequada.
Passei os dois dias seguintes a ver as pessoas que entravam no edifício
através da entrada lateral. A princípio, foi difícil perceber a que
apartamentos é que iam, mas eu criei um perfil de todos eles, usando os
meus olhos de lince e a minha perceção arguta para descobrir quem é que lá
trabalhava. Mas claro que não consegui. Acontece que o pessoal que
trabalhava para Janine tinha de usar fardas brancas com o nome «Artemis»
cosido a itálico na lapela. Se há coisa que nos diz que perdemos a nossa
humanidade é obrigarmos trabalhadores migrantes usar o nosso nome junto
ao coração, mas isto era muito típico desta família. Viam-se mulheres de ar
ligeiramente nervoso aparecer com sacos de roupa, entregando-os a
motoristas de carrinhas de limpeza a seco, ou então vinham assinar a
receção de embrulhos de homens de entregas e voltavam rapidamente para
dentro, como se estivessem a ser cronometradas. Eu nunca tive a
oportunidade de falar com nenhuma delas, tal era a pressa que tinham. Mas
também havia uma senhora que aparecia todos os dias às oito da manhã, às
duas da tarde e às seis da tarde em ponto com um pequeno bichon frisé
lanudo, e descia a rua até à promenade. Detesto cães lanudos. São sempre
tão altivos e predispostos a desatar a ladrar. Presumo que são assim por
culpa dos donos. Nunca se vê uma pessoa calma com um bichon frisé. São
sempre mulheres de meia-idade descontentes que exprimem os seus
descontentamentos através do cão. «A Betty não se pode sentar aqui, está
muito calor e ela está a ficar ansiosa». A Betty está ótima. Elas, pelo
contrário, talvez fizessem bem em contactar um terapeuta.
Ao segundo dia de vigilância, fui buscar um café e encaminhei-me para
a promenade preparada para o passeio do cão das seis da tarde. Claro está
que a senhora com a farda da falta de humanidade não tardou a aparecer,
arrastando uma bola de pelo contrariada. Eu esperei que ela passasse por
mim e segui-a durante alguns minutos antes de aparecer a caminhar ao lado
dela.
— Que cão tão giro — disse eu, sorrindo. Ela era uma mulher
minúscula, de cabelo preto apanhado num coque baixo. Ela mal reagiu, e
teria continuado a falar se o cão não tivesse saltado para cima de mim,
deixando leves marcas de terra nas minhas calças claras.
— Não, Henry! — gritou ela, baixando-se para admoestar o cão, que
parecia notavelmente impenitente. Eu assegurei-lhe que não havia
problema, mas ela parou junto a uma parede, tirou um lenço do bolso e
tentou esfregar a minha canela vigorosamente.
— O cão é seu? — perguntei, apesar de ser óbvio pela sua expressão
que não tinha a menor afeição pelo animal. Ela disse-me que o passeava a
mando da patroa, e eu expressei a minha simpatia, dizendo-lhe que era
aborrecido ter de passear um cão todos os dias, especialmente um cão tão
bruto. Ela sorriu, antes de olhar rapidamente em volta, como se Janine
pudesse surgir de repente à nossa frente a censurá-la por não elogiar o
pequeno camarada.
Eu mantive-me ao seu lado enquanto ela continuava a caminhar,
perguntando-lhe o que é que ela achava do Mónaco e dizendo-lhe que tinha
acabado de chegar e estava a achar tudo um pouco avassalador.
— As pessoas são rudes — disse ela abruptamente. — Toda a gente
pensa que o dinheiro é tudo e ninguém é gentil.
— Bem, então e a sua patroa? — perguntei eu. — Não é gentil consigo?
E então saiu tudo cá para fora. Como Janine a admoestava por tudo e
por nada, como trabalhava seis dias por semana e apenas tinha as quintas-
feiras livres, e que até nesses dias a chamava quando era preciso.
— Reduziu-me o ordenado na semana passada por uma camisa ter
encolhido nas máquinas de limpeza a seco! — exclamou ela, abanando a
cabeça. Lacey, pois era assim que ela se chamava, enviava dinheiro para
casa e sustentava três crianças adolescentes. Há três anos que trabalhava
aqui, e antes disso tinha estado no Dubai com outra família. Esses não a
tinham tratado muito melhor, mas pelo menos lá tinha os seus próprios
aposentos. Caminhámos ao longo de toda a promenade até ela se voltar para
trás, com o cão a ganir de protesto.
Eu exprimi a minha simpatia e disse-lhe que Janine parecia ser um
verdadeiro monstro, tendo tido o cuidado de não dizer o seu nome ou dar a
mais pequena pista de que a conhecia. E assim, de um momento para o
outro, senti que tinha uma palavra a dizer.
— Trabalho para um jornal no Reino Unido. Estou a pensar que
mulheres ricas como essa explorarem o trabalho árduo das suas mulheres a
dias pode dar uma boa história. Podíamos expor estas pessoas e
envergonhá-las para se passarem a comportar como deve ser.
Ela abanou a cabeça.
— Não, preciso deste trabalho. Não posso falar mais consigo.
— Eu jamais utilizaria o seu nome ou diria para quem trabalha. Mas
podíamos dar a conhecer este tipo de comportamento. O jornal é famoso e
estas mulheres iriam lê-lo. Se todas soubessem que a sociedade o considera
inaceitável, iriam melhorar; se não por si, pelo menos para que as pessoas
achassem que elas eram boas patroas.
Isto era uma treta pegada, claro está. Já se tinham escrito centenas de
artigos sobre a maneira como os muitíssimo ricos tratam os empregados e
nada alguma vez mudara. Se alguma coisa mudou, foi para pior, com
notícias a sair constantemente de empregadas que haviam escapado de
condições terríveis e desumanas, ao passo que os antigos patrões não
sofriam quaisquer consequências. Eu também estava a explorá-la, bem sei,
mas não tinha outro remédio, e ao menos podia oferecer-lhe qualquer coisa
a troco da sua colaboração.
Ela voltou a abanar a cabeça, agora mais veementemente.
— Não posso fazer isso. Preciso deste trabalho. — Estávamos quase de
volta à casa.
— OK, eu respeito isso. Mas não ia precisar de quase nada de si, e é
claro que lhe pagaríamos alguma coisa pelo incómodo. Seria dinheiro na
mão para a sua família, Lacey. — Ela abrandou, mas não olhou para mim.
— Vai pensar nisso? — perguntei. — Se estiver interessada, estarei aqui
outra vez amanhã às duas da tarde. Iria ajudar tanta gente na mesma
situação...
Com um último puxão na trela, ela e Henry voltaram para o
apartamento. Ela ia aceitar, pensei eu, enquanto a via olhar para trás. Se
Janine a tivesse tratado com um mínimo de decência, eu não teria maneira
de conseguir isto. Felizmente para mim, ela não tinha nenhuma.
Fui jantar fora nessa noite, e vesti-me especialmente para a ocasião.
Mesmo com o meu vestido preto pelo joelho e os meus saltos altos cor-de-
rosa fluorescente, continuava a parecer bastante casual no meio dos meus
comensais no Mónaco. Apesar do calor, não faltavam agasalhos em pele.
Claramente, a PeTA5 não tinha conseguido entrar no principado
ultimamente. Havia diamantes do tamanho de ovos de codorniz presos às
orelhas e aos dedos das mãos a cada esquina e relógios que eu não
conseguia identificar, mas que sabia valerem mais do que suficiente para
dar uma entrada para um apartamento. Iria eu ser assim quando tivesse
dinheiro? Era difícil pensar numa pessoa muito rica que tivesse tomado um
rumo diferente. Bill Gates, talvez, mas quem é que quer usar ténis feios com
calças chino e ser assim tão sério? Nenhuma destas pessoas parecia feliz. É
um cliché dizer que o dinheiro não compra a felicidade — experimentem
dizer isso a alguém a tentar viver com o salário mínimo mas é claramente
verdade que também gera muitas vezes uma grande insatisfação. Talvez a
diferença para mim fosse o facto de o dinheiro ser realmente meu. Havia ali
tantas mulheres que deviam a sua riqueza aos maridos, o que deve gerar
uma insegurança para toda a vida. Porque os homens ricos não costumam
ser fiéis às mulheres, pois não? Vão trocando e melhorando, e só muito
raramente os ouvimos dizer: «Obrigado por estares do meu lado, querida.
Obrigado por criares os nossos filhos e tratares da nossa casa e assumires
toda a carga emocional que me permite trabalhar sem distrações. É altura de
fazer algo de novo, mas aqui tens 50 por cento de tudo o que construímos
juntos». Não. Arranjam um advogado e tentam aldrabar-nos, escondendo o
dinheiro em paraísos fiscais, declarando-se pobres, argumentando que nós
nunca contribuímos em coisa nenhuma, protestando que os miúdos não
precisam de tanto assim. Ou então fazem o que o meu pai fez, e renunciam
a toda a responsabilidade o mais rapidamente possível.
A caminho do Mónaco, vi duas mulheres a olhar para uma montra de
anéis numa free shop. Ouvi uma dizer à outra: «Gostava de poder comprar
uma coisas destas sem ter de pedir autorização ao meu marido». Eu nunca
teria esse problema. Jamais ficaria dependente, intimidada ou presa a
alguém dessa maneira. E se acabasse por ter um parceiro, seria sempre
magnânima em relação ao dinheiro. Estaríamos em pé de igualdade a esse
respeito, e gozaríamos do que ele nos pudesse proporcionar. Não com anéis
de diamantes que nos fizessem ter medo de sermos assaltados no meio da
rua, mas sim com experiências e conforto. Uma vida com possibilidades
infinitas. Talvez eu não soubesse como é que isso me iria afetar até a ter
realmente, mas, ao olhar para as pessoas à minha volta no restaurante, tinha
a certeza de que tentaria recordar-me de como não fazer as coisas. Ter a
família Artemis presente no meu espírito iria ajudar. De vez em quando, iria
desbaratar grandes quantidades do seu dinheiro em ações de caridade que
sabia detestarem. Não iria melhorar a sua marca no mundo, mas seria um
pequeno prazer começar um fundo associado ao seu nome para ajudar os
ocupas e combater as ordens de despejo.
De volta ao hotel, enviei uma mensagem a Pete para lhe dizer que
achava que conseguiria fazer com que o meu pai levasse qualquer coisa
para casa, e perguntei-lhe o que é que resultaria melhor, desligando depois o
telefone e caindo num sono profundo.
Na manhã seguinte, acordei cedo. Pete tinha respondido com um
chorrilho de mensagens sobre hubs, dispositivos desencriptados e routers,
que vinham todas escritas numa linguagem técnica que eu não conseguia
decifrar. Respondi de forma bastante concisa, pedindo-lhe que fosse mais
claro, e fui dar uma corrida. Uma hora depois, peguei num livro, fui até à
promenade e sentei-me num café à espera de Lacey. Era agradável não fazer
nada durante toda a manhã, e eu sentia-me quase como se estivesse de férias
— tirando a sensação de efervescência no meu estômago que me dizia que
estava ligeiramente nervosa. Li alguns capítulos de Israel Rank: The
Autobiography of a Criminal, que tinha encontrado anos antes, quando
ainda estava a pensar no que fazer em relação à família Artemis. Tinha-o na
prateleira há bastante tempo, mas tinha voltado a reparar nele quando estava
a fazer as malas para o Mónaco, e enfiara-o na mala. É um livro acerca de
um homem na Inglaterra eduardiana que mata a sua família por vingança.
Pergunto-me se conseguirão descortinar o apelo que exerceu sobre mim... À
uma e quarenta e cinco da tarde, paguei as minhas três chávenas de café e
uma miniatura de donut, tentando não pontapear a empregada quando vi
que tinha sido espoliada em 26 euros, e encaminhei-me para o apartamento
de Janine.
Imediatamente a seguir às duas em ponto, vi Lacey e Henry surgirem ao
longe. Quando ela se aproximou, acenei-lhe, fui ao seu encontro e caminhei
a seu lado. Trocámos breves saudações e eu falei casualmente do calor por
uns minutos até o cão nos obrigar a parar para se poder aliviar.
— O que é que quer de mim? — perguntou Lacey ansiosamente,
enquanto remexia no bolso à procura de um saco de plástico.
Apetecia-me abraçá-la, e não sou propriamente uma pessoa de contacto
físico espontâneo.
— Acho que a maneira mais fácil seria pôr um pequeno microfone no
apartamento e gravar a maneira como ela fala consigo. Dessa maneira,
ficamos com uma prova palpável da nossa história, mas isso não significa
que vamos usar o seu nome ou implicá-la de alguma maneira. Depois disso,
podíamos ter uma simples conversa sobre o ofício e o que é preciso mudar.
O que é que lhe parece?
Lacey agachou-se para apanhar o cocó do cão e disse algo que não
consegui ouvir bem.
— Perguntei quanto — repetiu ela quando lhe pedi que repetisse.
Pensei rapidamente. Tinha de manter o valor baixo por razões
financeiras, mas de quanto é que ela estaria realmente à espera? Se subisse
demasiado a parada, talvez ela se convencesse de que eu teria mais para lhe
dar.
— Mil — disse eu. — Pode receber na moeda que quiser, terá o
dinheiro na mão. Mas o meu editor não me autoriza a dar mais. Acha que
isso poderia ajudar a sua família, Lacey? — Eu não conseguia dizer, pela
sua expressão, se era ou não uma quantia decente aos seus olhos;
continuámos a andar.
— OK — disse ela, por fim. — Mas o dinheiro primeiro e promete-me
não usar o meu nome ou o nome da Senhora ou referir qualquer coisa sobre
o Henry.
Fiquei espantada, e isso via-se claramente na minha cara.
— É um cão malcriado, mas eu adoro-o — disse ela, simplesmente.
— OK, nada sobre o Henry — prometi eu, tentando não parecer
incrédula. Ela ia deixar uma desconhecida pôr um dispositivo de gravação
na casa da sua terrível patroa e estava preocupada com o cão irascível que
claramente a detestava. As pessoas são mesmo um mistério.
Expliquei-lhe que me encontraria com ela no dia seguinte à mesma hora
para lhe dar um pequeno aparelho, que ela devia tentar ligar ao hub
principal — perguntei-lhe se sabia fazer isso e ela disse que sim. Veio a
saber-se que afinal era ela a pessoa que tinha tido de aprender a usar a
tecnologia inteligente da casa.
— A Senhora não compreende, mas agora já sabe usar os comandos de
voz.
— Ótimo, muito bem.
Quando estivesse ligado, não precisava de fazer mais nada, o dispositivo
iria apanhar os diálogos e transmitir-mos para eu escrever o artigo.
Teríamos uma conversa no seu dia de folga e seria tudo. Lacey assentiu com
a cabeça e fez menção de se ir embora para casa.
— Traga o dinheiro amanhã, em euros. Não faço nada sem ter o
dinheiro primeiro. — Esperta. Eu respeitei isso.
— Claro — respondi, e desejei-lhe uma boa tarde. Henry arreganhou-
me os seus pequenos dentes por instantes e foram-se os dois embora.
Passei a hora seguinte a enviar mensagens a Pete, que tinha fmalmente
acordado, procurando saber que dispositivo funcionaria melhor. Tinha-lhe
dito que tinha de ser uma coisa que eu pudesse plausivelmente oferecer ao
meu pai como prenda, e ponderámos várias coisas que nos pareciam
apropriadas. Eu sublinhei que tinha de ser pequena, para que aquela
madrasta horrível não desse por ela e começasse a perguntar o que era. Na
verdade, só queria que fosse fácil para Lacey introduzi-la em casa sem
preocupações. O aspirador sem fios era demasiado grande, uma lâmpada era
demasiado aleatória. Depois, Pete desapareceu por alguns minutos e voltou
com uma hiperligação para um multiplicador de tomadas controlado por
WiFi. Tratava-se simplesmente de uma ficha dupla que caberia facilmente
no bolso.
— És um génio! — disse-lhe eu, ao mesmo tempo que começava a
pesquisar no Google onde raio poderia encontrar uma coisa daquelas no
Mónaco. Pete queria falar mais, tinha um teste em breve e estava ansioso,
mas eu esquivei-me, dizendo que estava a ficar sem bateria, e encerrei a
sessão. Não admirava que não conseguisse arranjar namorada, se era aquele
o tipo de conversa que tinha para propor.
Acontece que no Mónaco não se encontra uma única loja onde se
arranje este género de coisas, por isso, tive de encomendar o multiplicador
de tomadas para entrega no dia seguinte com um custo considerável.
Depois, verifiquei o Instagram de Janine, que tinha uma nova publicação.
Era uma fotografia de dois vestidos pendurados um ao lado do outro. Um
era uma peça toda em dourado-claro com as mangas cobertas de lantejoulas
e o outro era de forma semelhante, mas em vermelho-escuro, e, em vez de
lantejoulas, tinha um fino remate de pelo à volta do peito. Era evidente que
Janine nunca tinha encontrado um enfeite de que não gostasse. A legenda
dizia «a preparar-me para o jantar, qual destas belezas escolher?». Os
comentários jorravam, exclamando que era difícil escolher entre os dois, e
garantindo que ela ficaria maravilhosa com qualquer um deles. Dolly Parton
teria concordado. Como ela disse numa frase que ficou célebre: «É preciso
muito dinheiro para parecer assim tão vulgar».
Decidi arriscar. Enfiei um fato preto com uma t-shirt branca e
acrescentei os saltos-altos fluorescentes da noite anterior. Às sete e meia,
apanhei um táxi até casa de Janine e pedi ao motorista que esperasse do
outro lado da rua pela minha amiga. Às oito menos um quarto, Janine saiu
pela porta da frente (tinha-se decidido pelo vestido dourado), acompanhada
por um homem vistoso com um blazer prateado, e desceu as escadas em
direção ao Mercedes que estava à espera. O carro arrancou. Eu suspirei
teatralmente e disse ao motorista que a minha amiga se devia ter esquecido
de que eu a vinha buscar. Seguimos o carro durante cerca de oito minutos,
estacionando à porta de um restaurante com um grande toldo vermelho e
ramos de flores em suportes à volta da porta. Janine foi ajudada a sair do
carro pelo seu jovem amigo, e os dois encaminharam-se para o restaurante,
com o porteiro a curvar-se ligeiramente quando passaram por ele sem lhe
prestarem atenção. Eu deixei passar um minuto e segui-os. Uma mulher
com uma camisola de gola alta cumprimentou-me sem sorrir. Quando
pessoas como esta tentam intimidar-nos, a única coisa a fazer é retribuir a
atitude. Sem dizer olá, pedi uma mesa.
Fez reserva? — perguntou ela, olhando-me de alto a baixo.
— Não. Não quero acreditar que seja preciso, só para uma pessoa —
retorqui, verificando ostensivamente o meu telemóvel.
Ela fungou e foi falar com o maitre d’hotel. Alguns minutos depois, foi-
me concedido um lugar ao balcão e deixaram-me sozinha. Janine estava
sentada num sofá de veludo vermelho, cuja cor e tecido conspiravam com o
seu vestido para lhe dar um aspeto desairosamente festivo. O seu
extravagante companheiro sentou-se ao lado dela, e duas outras mulheres
completavam o quadro. Eu estava demasiado longe para ouvir a maior parte
da conversa, mas contentava-me em vê-los. Era pouco provável que
estivessem a falar de alguma coisa interessante, mas era bom observá-la
bem de perto. Teria sido uma incúria não ver aquela boneca de cera ao vivo
antes de a matar; assim, senti que lhe tinha dado uma ordem de despacho
como deve ser.
Comi um prato de frango meio repugnante e bebi dois copos de vinho,
vendo, aqui e ali, o jovem a ajustar o cabelo de Janine ou a oferecer-lhe um
bocado do seu prato. Era estranhamente galanteador, apesar de ser
obviamente homossexual e pelo menos 20 anos mais novo do que ela.
Talvez o acordo fosse ele acompanhá-la pela cidade e dar-lhe a atenção que
Simon claramente não dava. Em troca, ela pagava-lhe o jantar e talvez lhe
comprasse pequenos presentes. Que retrógrado. De vez em quando,
desatavam a chilrear de riso e Janine esticava a cara num sorriso. Quando a
vi acenar para pedir a conta, fiz o mesmo, e segui-os pelo ar da noite. Ele
acendeu um cigarro enquanto elas tagarelavam, uma delas dizendo a Janine
que iria aparecer na quinta-feira para um café. Janine abanou a cabeça.
— Não, vem amanhã. A empregada está de folga às quintas e eu vou
dormir o dia todo. Vou para Marrocos na sexta-feira e preciso de relaxar
antes do voo da manhã.
Caminhei de volta para o meu hotel. Conseguiria Pete montar tudo para
quinta-feira? Talvez fosse trabalhar em cima do joelho, e eu sabia que fazer
as coisas a correr podia levar-nos a cometer erros. Mas a ideia de estar aqui
quando ela morresse seduzia-me, e dar-me-ia uma sensação de controlo que
me estava a faltar com este plano. E não fazia ideia de quanto tempo ela iria
estar fora, o que podia significar semanas de espera até à próxima
oportunidade — quem sabe se Lacey não mudaria de ideias entretanto? No
multibanco da porta a seguir ao hotel, levantei 500 euros, o máximo que o
meu banco me autorizava a levantar de uma só vez. Os residentes no
Mónaco ficariam chocados com semelhante regra — com efeito, as opções
iniciais para levantamentos começavam em 500, o género de ninharia que
era preciso para dar de gorjeta aos empregados dos iates, imagino eu.
Pete estava aborrecido por eu ter estado desconectada a noite toda, e
tive de suportar 20 minutos com ele a queixar-se por o pai não o deixar pôr
um cadeado na porta do quarto antes de o fazer voltar à ordem de trabalhos.
Os adolescentes são extraordinariamente egocêntricos, e são-no ao longo da
fase menos interessante das suas vidas. Precisei de usar toda a minha
capacidade de autocontrolo para não lhe dizer que a liberdade para nos
masturbarmos a qualquer hora dia não era um dos direitos humanos
essenciais e que ele não ser autorizado a pôr uma tranca na porta não era
violação de privacidade, por muito que ele invocasse a 14.a Emenda.
Contei-lhe da ficha que tinha comprado, e disse-lhe que seria introduzida
em casa no dia seguinte. Depois expliquei-lhe que queria dar cabo da
cabeça à minha madrasta antes de me ir embora no sábado. Pensei que um
pouco de psicologia inversa poderia funcionar bem com Pete, e assegurei-
lhe que se ele não estivesse à altura do desafio tecnológico em causa, não
havia problema nenhum.
«É bom ter feito um amigo em ti», escrevi «talvez agora possa arranjar
outra pessoa para me ajudar».
Isto fê-lo voltar com a cabeça ao jogo. Era demasiado previsível, na
verdade. Respondeu com um emoji de um coração partido, dizendo-me que
estava definitivamente à altura, e que iria ficar acordado a noite toda para
trabalhar no nosso plano. Eu tinha-lhe dito o que é que queria fazer — até
certo ponto. Ele sabia que eu planeava trancar Janine na sauna e aumentar a
temperatura, mas não sabia que eu queria mantê-la lá dentro até ela ser
subjugada por ela. E não sabia que ela tinha problemas cardíacos que
poderiam acelerar esse processo. Apesar de toda a sua bravata de
adolescente, eu não estava plenamente convencida de que ele fosse
realmente ao encontro das minhas intenções, por muito que me quisesse
impressionar. Achei que era melhor fingir apenas que tinha ido longe
demais, para depois o poder responsabilizar a ele se ele por acaso entrasse
em pânico.
«Precisamos de aceder ao circuito fechado de televisão para sabermos
onde ela se encontra», disse ele, entrando em ação. «Deve ser na mesma
rede, mas só teremos a certeza quando a ficha for ligada. Depois, podemos
controlar o local a partir dos nossos auscultadores; podes dizer-me o que
queres fazer que eu faço acontecer. Até podes falar com ela, se quiseres,
isso é que lhe dava mesmo cabo do juízo, não era?»
Andámos para trás e para a frente até às primeiras horas da madrugada,
com Pete a dizer-me como é que as coisas iam funcionar, e eu a pedir-lhe
repetidamente para falar em inglês claro. Às três da manhã, começou a
tentar desviar a conversa para um tom mais pessoal, enviando aquelas
malditas mensagens de voz, por isso desliguei o WiFi e fui-me deitar sem
me despedir.
Acordei com o sol a entrar pela janela e deixei-me estar na cama por um
momento, sentindo-me satisfeita com os meus progressos. Janine seria um
grande troféu de caça. Simon poderia não ser um marido fiel ou dedicado,
mas estavam casados há décadas e, de certa forma, ela era o seu guardião.
Os pais teriam sido uma perda, o irmão talvez não tanto. Duvido que ele
tivesse sentido a morte do sobrinho de forma minimamente profunda, mas
perder a mulher iria deixá-lo abalado. Começaria ele a ver um padrão, a
questionar a sequência de mortes? Não me parecia ser o género de pessoa
que acreditasse na ideia de uma maldição, mas iria pensar que tinha um
inimigo algures por aí, liquidando a sua família sem nunca se dar a
conhecer? Eu esperava que estas ideias começassem a florescer no seu
espírito. Não tanto que o levassem a tomar qualquer tipo de medidas, mas o
suficiente para se insinuarem no seu cérebro, fazendo com que lhe fosse
difícil pensar em qualquer outra coisa. Ele tinha feito inimigos nos
negócios, pessoas com quem fizera contratos ruinosos, empresas que tinha
comprado e reestruturado — uma maneira simpática de dizer que tinha
despedido muita gente. Tinha tido amantes desde a minha mãe, os jornais
assim o sugeriam. Seria levado a olhar para trás e a interrogar-se se algum
deles o odiava a ponto de levar a cabo uma vingança tão drástica? As
pessoas ricas são muitas vezes paranoicas, com todos os seus sistemas de
segurança e carros blindados. Talvez ele aumentasse a segurança,
contratasse um detetive privado e procurasse possíveis inimigos. Talvez até
fosse à polícia. Tudo estratégias sensatas, mas, em última análise,
inconsequentes. Jeremy e Kathleen há muito que estavam enterrados, e o
seu acidente de carro nunca seria atribuído a outra coisa que não à sua
própria incúria. Andrew era um jovem lunático e perturbado aos olhos da
família, a sua morte tinha sido uma tragédia, mas dificilmente levantaria
suspeitas. Lee, bem, quanto menos as autoridades viessem a remexer nas
circunstâncias do seu fim conturbado, melhor. Janine, essa, há muito tinha
problemas de coração bem identificados, nem sequer devia estar na sauna.
Uma questão que deve continuar presente no espírito das pessoas. «Mas não
era ela que devia...?» É sempre bom dar espaço a um pouco de
culpabilização da vítima.
Verifiquei o telemóvel. Uma mensagem de Jimmy, a perguntar se eu
queria tomar um copo à noite, uma do meu vizinho, a dizer que estava um
embrulho para mim no apartamento dele; dois e-mails do trabalho que
ignorei. Depois, liguei o WiFi do meu outro telefone, aquele que utilizava
para as questões relacionadas com os Artemis, e recebi uma sequência de
toques de alerta para novas mensagens. Nove mensagens de Pete. Voltando
atrás, vi uma em que me dizia que tinha de saber em que sistema é que o
hub estava ligado. Podia pedir a Lacey que obtivesse essa informação. As
mensagens seguintes eram hiperligações para artigos sobre campainhas
inteligentes que tinham sido pirateadas e depois havia uma mensagem a
perguntar-me onde é que eu tinha ido e uma fotografia em que, quando
cliquei, se via Pete em frente a um espelho. A cabeça estava cortada, mas as
calças de fato de treino estavam puxadas para baixo e eu conseguia ver o
seu pénis, erguido para a câmara como uma oferta especial a um membro da
nobreza. Porque é que os homens gostam de enviar fotografias não
solicitadas das suas gaitas? Eu não tenho muitas amigas, mas estou
plenamente confiante de que posso falar em nome da maior parte das
pessoas do meu sexo quando vos digo que ninguém gosta de acordar com
uma coisa destas. Especialmente vinda de um adolescente no limiar da
legalidade com excesso de pelos púbicos e um caso preocupante de acne no
peito. Senti-me ao mesmo tempo deprimida por ter de o ver e com pena de
Pete, que achava, evidentemente, que aquilo era um rito de passagem
obrigatório quando estava a falar com uma rapariga. Guardei a fotografia e
enviei-a para o meu verdadeiro telefone. Não seria má ideia guardá-la, não
fosse Pete ter um rebate de consciência. Enviei-lhe uma mensagem a
perguntar gentilmente se podíamos levar as coisas um pouco mais devagar.
Espero ter tocado num ponto sensível que o tenha feito sentir-se um pouco
mais autoconsciente, sem lhe retirar completamente a esperança de que
pudesse haver alguma espécie de reciprocidade mais tarde. É claro que
nunca conseguiria obter nada de mim em troca, mas eu não iria ficar a
sentir-me mal pelo pobre adolescente solitário. Se uma pessoa inicia uma
amizade com base na pirataria, é porque merece ser espoliada. Na verdade,
até devia estar à espera de o ser.
***
Assim que a minha encomenda chegou, levei-a para o meu quarto,
desempacotei-a e li as instruções. Escrevi­as sob forma resumida numa
pequena folha de papel, depois enrolei a ficha e pu-la num pequeno saco de
higiene
com o dinheiro. Estava bastante compacto, e caberia no bolso de Lacey
sem causar qualquer preocupação se Janine a encontrasse no regresso do
passeio. Ali ao lado, levantei mais 500 euros, acrescentei-os ao saco e
caminhei pela promenade, vendo Lacey aparecer ao longe. Hoje estava
mais bem-disposta. Era evidente que tinha passado algum tempo a planear
como é que iria usar o dinheiro. Ou talvez Janine tivesse sido
excecionalmente vil nessa manhã e Lacey quisesse apenas recuperar algum
domínio da situação. Provavelmente era um pouco das duas.
Dei-lhe o dinheiro e disse-lhe o que é que ela tinha de fazer.
— Estão instruções no saco, se precisar. E o meu número de telefone,
por isso diga-me quando estiver instalada e envie-me a marca do hub e o
número de série que está de lado. São 16 dígitos.
Ela assentiu com a cabeça e disse-me que Janine se ia embora na sexta-
feira. Eu asseverei-lhe que iríamos desligar o modo de audição enquanto ela
estivesse ausente e que apenas o voltaríamos a ligar quando ela regressasse.
Perguntei a mim mesma se Lacey se divertiria quando Janine se ausentava,
se pintaria as unhas dos pés esparramada nos almofadões da sala de estar, se
fumaria na cozinha, se tomaria grandes banhos de imersão na banheira de
Janine. Esperava que sim, mas na realidade ela devia ter demasiado medo
para isso.
— Só precisamos mais ou menos de uma semana de áudio, isso deve
dar-nos exemplos suficientes deste tipo de comportamento medíocre.
Depois pode retirar a ficha e mandá-la para o lixo, OK?
Ela voltou a assentir com a cabeça e curvou-se para afagar Henry
debaixo da orelha.
— Faço isto pela minha família, e para que outras mulheres não sofram
como eu com um mau patrão. Sinto-me bem por estar a ajudar alguém.
Henry estava ocupado a tentar morder-lhe os dedos, e de repente senti
uma pequena pontada de culpa. Ela não estava a ajudar ninguém a não ser a
mim. E também não iria tardar a ficar sem emprego.
— Qual é o seu apelido, Lacey? — perguntei subitamente. Ela levantou
os olhos, profundamente desconfiada. Henry também parecia desconfiado,
mas isso era normal naquele pequeno patife. — Prometo que é apenas para
meu registo pessoal, não o vou usar em lado nenhum. — Ela continuava a
parecer pouco à vontade. — Se a história for vendida globalmente, poderia
ter direito a uma quota-parte — disse eu, tentando reagir rapidamente. E
funcionou, como é habitual quando se trata de dinheiro.
— É Phan — disse-me ela, soletrando.
Agradeci-lhe e fi-la prometer-me outra vez enviar-me uma mensagem
mais tarde, nesse dia, quando tivesse instalado a ficha. Ela fez um ar solene
e disse-me que o faria. Despedimo-nos, e eu encaminhei-me novamente
para o hotel para ficar à espera.
Quatro horas mais tarde, depois de ter concluído uma aula de ginástica
online, ter tomado um banho e passado uma hora a ver o catálogo de vídeos
de Bryony no Instagram, o meu telefone tilintou. «Tudo feito», dizia a
mensagem. «Está instalado, luz azul a piscar. Ligação da box é Henbarg. O
código é 1365448449412564».
Rolei sobre a cama, esmurrando as almofadas durante 30 segundos,
antes de me sentar e respirar profundamente. Enviei uma mensagem a Pete,
que tinha estado calado o dia todo. Mesmo com a diferença horária, era algo
pouco habitual nele. Normalmente, ficava acordado metade da noite, a
divertir-se no seu recreio privado, a Internet. Os traços azuis na minha
última mensagem indicavam que ele a tinha lido. Possivelmente ficara
embaraçado, ou magoado, ou zangado. Nada como uma rejeição educada
para deixar um homem ofendido. Escrevi-lhe que a ficha estava instalada e
dei-lhe a informação do hub. Terminei dizendo, «Podemos armar alguma
confusão amanhã? Vai ser tãaaaao engraçado vê-la a entrar em pânico,
LOL».
Eram quase sete da tarde, e eu estava cheia de adrenalina, apesar do
esgotante exercício de saltos que já tinha feito, por isso voltei a vestir o fato
de treino e fui dar mais uma corrida. Consegui fazer 10 km, correndo
através das ruas limpas, com as suas calçadas bem alinhadas e plantas bem
cuidadas. Parecia uma cidade de brincar, na verdade, um sítio onde uma
pessoa se sentia como se o resto do mundo ficasse muito longe e não nos
pudesse conspurcar. Comprei um gelado e caminhei de regresso ao hotel,
apreciando o choque do açúcar enquanto relaxava.
Ainda não havia notícia de Pete, mas ele tinha visto a última mensagem.
Os dois traços azuis voltaram a aparecer no ecrã. Será que o pai lhe teria
confiscado o telefone? Estaria apenas ocupado a tentar piratear o sistema?
Ou haveria uma razão mais obscura para o seu silêncio? Teria utilizado o
número de série para descobrir quem era Janine? Se assim fosse, teria feito
a sua pesquisa e com certeza teria descoberto que eu estava a mentir sobre a
minha identidade e o que pretendia dele.
Eu sabia que isso seria sempre uma possibilidade. Era ele quem tinha a
perícia tecnológica, se é que um adolescente de 17 anos pode ser perito
nalguma coisa que não seja em excreções corporais nojentas. Isto queria
dizer que eu estava a abdicar do controlo aqui, sem saber exatamente até
que ponto ele iria investigar aquilo que estávamos a fazer. Eu esperava que
ele me ajudasse a piratear a casa de Janine, que ficasse chocado quando ela
morresse e que depois renunciasse a tudo. Este era o melhor cenário. Mas
eu não era ingénua, e sabia que era perfeitamente possível que ele
descobrisse que eu estava a forçar mais do que «um pequeno choque» e que
ele viesse a querer obter respostas de mim. Ou pior, que quisesse ir falar
com as autoridades.
Este era o problema de pedir ajuda a outra pessoa. Tudo ponderado,
continuava a achar que era melhor pedir ajuda a um miúdo idiota, usando
alguma leve manipulação para conseguir o que queria e declarar a minha
ignorância sobre o eventual desfecho do que seria contratar um
«profissional» que teria um ascendente sobre mim para sempre. Uma
pessoa desse tipo iria investigar tudo o que pudesse sobre mim, e usá-lo
contra mim para sempre. Provavelmente para me exigir uma quantia
exorbitante. Se Pete era o adolescente entediado e ligeiramente deprimido
que eu julgava ser, não seria muito difícil mantê-lo de bico calado.
Mas onde raio estava ele? Eram nove da noite quando acabei de tomar
um duche e de me preparar para sair para jantar, e nada ainda. Enviei-lhe
nova mensagem, perguntando-lhe se tinha ficado aborrecido comigo.
«Responde à mensagem, estou tãaao aborrecida aqui e preciso de ti,
beijinhos».
Jantei num bar turístico com fotografias da comida no cardápio. Um
erro que é sempre fatal, mas estava distraída e ansiosa por despachar aquela
noite. Uma salada ressequida e dois copos de vinho depois, paguei a conta e
voltei para o hotel. Pelo caminho, enviei uma mensagem a Lacey a
perguntar-lhe quem é que estaria em casa na manhã seguinte, explicando
que seria bom identificar quem é que estava a falar para podermos
compreender o áudio que tínhamos. Ela respondeu rapidamente, dizendo
que estaria fora entre as nove da manhã e as seis da tarde, altura em que
voltaria ao apartamento. Quando ela estivesse fora, viria uma rapariga de
manhã preparar o pequeno-almoço de Janine e dar uma arrumação rápida à
casa, mas não deveria lá estar mais ninguém até à hora de jantar.
«A Senhora gosta de passar as quintas-feiras em casa a relaxar. Diz que
é bom ter a casa só para ela. Às vezes chama alguém para lhe arranjar as
unhas ou o cabelo. Eu volto a arrumar tudo outra vez quando volto.»
Não me parecia que Janine precisasse de designar um dia por semana
para relaxar quando toda a sua vida girava à volta desse único propósito,
mas isso faria com que ela se mantivesse em casa, onde eu a queria, por isso
fiquei satisfeita por ela privilegiar o seu bem-estar de modo tão rigoroso.
Fui para a cama às onze horas, o que era ridiculamente cedo para mim.
As pessoas matutinas há muito que venceram a batalha, mas eu continuava
a resistir ao seu apelo, deitando-me normalmente às duas da manhã e nunca
me levantando antes das onze, sempre que possível. Mas estava ansiosa por
despachar aquela noite, como uma criança que estivesse à espera do Pai
Natal e se obrigasse a ir para cama dormir para poder acordar com os
presentes. Mas não conseguia dormir. Pete não me enviava uma mensagem
há 16 horas, e eu estava na cama a tomar consciência de que, caso ele não
me contactasse em breve, não teria qualquer hipótese de matar Janine no dia
seguinte. Depois de amanhã, este plano em particular seria inexequível e eu
teria de começar tudo do princípio. Tentei ouvir uma banda sonora relaxante
de ondas a rebentar numa praia, mas a única coisa que consegui foi ficar
com vontade de fazer chichi. Fiz uns exercícios respiratórios que tinha
aprendido alguns anos antes, mas não serviram para aplacar as borboletas
que andavam de um lado para o outro algures abaixo da minha caixa
torácica. Às duas da manhã, levantei-me e gravei uma mensagem de voz a
Pete. Subi uma oitava, a fim de parecer mais nova do que era, e adotei um
tom convenientemente trémulo.
«Não sei onde é que estás ou se estás bem. Estou a chorar há horas,
preocupada por te ter magoado ou ter feito asneira. Tenho receio dos meus
sentimentos por ti, bebé, e isso levou-me a rejeitar-te, mas não queria que
ficasses triste. Por favor, diz qualquer coisa. Não me interessam os nossos
planos para a minha terrível madrasta, só quero que estejas bem. Estou aqui
sempre que precisares; por favor, responde.»
Cinco minutos depois, ele respondeu. «Fiquei lixado quando me
disseste para tomar um duche, LOL. Pensei que estavas com nojo de mim e
senti-me exposto. Fiquei zangado — caí numa fossa de incel6, tipo que se
lixem as miúdas, que se lixe ser um gajo simpático. As pessoas são falsas,
sabes? Pensei que eras falsa e queria que te sentisses castigada. LOL, estou
tão baralhado. Também me preocupo contigo, bebé. Desculpa ter ido tão
longe, quando ouvi a tua voz apercebi-me do idiota que sou. Mas estou a
fazer por te compensar.»
Genuinamente perturbadora, esta incursão na sua mente. A sua
predisposição para castigar uma rapariga por não abraçar imediatamente
uma fotografia do seu pénis era arrepiante, e digo isto como alguém que já
matou cinco pessoas. Ficaria muito contente quando tudo isto acabasse e eu
pudesse desaparecer da sua vida, conservando a fotografia patética da sua
gaita como garantia adicional.
Falámos durante uma hora, eu a desempenhar o papel de uma
adolescente magoada e tímida, ele todo inchado com a minha demonstração
de afeto e ansioso por voltar a ser o meu protetor. Deixei Pete retomar o
tema da pirataria, ansiosa para que ele voltasse a sentir-se no controlo da
situação. À medida que falávamos, ele foi-me dizendo que estava a
trabalhar no sistema inteligente, utilizando sempre uma linguagem que eu
só compreendia parcialmente. Devo-me ter desconcentrado a certa altura.
Ele tinha deixado grandes hiatos na conversa à medida que ia descobrindo
como aceder ao sistema que controlava a casa de Janine e, apesar da
importância da tarefa, a espera tornou-se fastidiosa.
Acordei às nove da manhã com um sobressalto, com o cérebro a andar
às voltas para se lembrar do que havia de tão importante naquele dia.
Alcancei o meu telefone de ação e vi 22 novas mensagens de Pete. Seriam
acerca do plano ou seriam pénis? A primeira mensagem era uma fotografia
de uma figura de desenhos animados nua, com uns abdominais muito bem
definidos, segurando uma taça dourada. Típico de um adolescente, Pete
optava por comunicar através de memes, em vez de palavras. Eu esperava
que a imagem significasse sucesso e não uma forma incompreensível de
expor ainda mais as suas tendências de incel. A mensagem seguinte era um
vídeo, uma imagem desfocada em miniatura. Preparei-me para o pior e
carreguei no play. O vídeo era escuro e difícil de discernir. Semicerrei os
olhos, tentando descortinar a forma clara no meio do ecrã. Houve um
movimento, um repelão sobre o objeto e depois um pequeno ruído. Era isso.
Pu-lo outra vez. Era... sim, era isso. Era uma cama. E aquele movimento era
uma pessoa. Foi mais fácil ver o contorno do colchão desta vez, e o
movimento tinha sido um braço... ou seria uma perna? Estaria Pete a enviar-
me vídeos de si próprio a dormir? Meu Deus, isto não era propriamente
bom.
Ligeiramente alarmada, abri a terceira mensagem, que era um ficheiro
de áudio. «Se vais embora, faz a cama primeiro, por favor. Não quero ter de
ver lençóis amarrotados o dia todo. Oh, e telefona à manicura e diz-lhe para
não vir antes do meio da tarde. Não, não sei com quem é que marquei,
provavelmente foi com a Manicures Monaco — vê se descobres, não é
difícil, Lacey! Vou tomar um duche, diz ao porteiro para tocar à campainha
quando chegar a encomenda.»
Eu sentei-me completamente imóvel, com aquela voz imperiosa ainda a
ecoar nos meus ouvidos. Era Janine. Não havia dúvida. Voltei atrás e vi o
vídeo outra vez. Aquilo deve ser ela a dormir; verifiquei a hora a que Pete
mo enviou — seis da manhã. E a gravação de voz às oito da manhã. Há
apenas uma hora. As mensagens seguintes eram fotografias do apartamento
tiradas de um filme do circuito fechado de televisão. O sofá bege com os
seus insensatos detalhes dourados, como uma versão DFS de Versalhes, os
corredores, com as suas pinturas em molduras douradas de coisas que as
pessoas que não se interessam por arte compram na tentativa de parecerem
cultivadas. Paisagens, cavalos, alguns esboços piegas de bailarinas. A
cozinha era o único espaço liso do apartamento, com armários brancos e um
chão de mármore. Parecia que nunca tinha sido usada. A sala de jantar era
um susto para a vista — paredes vermelho-escuras, um tapete felpudo
debaixo de uma enorme mesa de mogno que estava posta com um conjunto
de jantar completo. Há alguma coisa mais trágica do que achar que uma
mesa permanentemente posta é o cúmulo da sofisticação? Como se um
aristocrata qualquer pudesse aparecer a qualquer momento e ficar
desapontado com a falta de pratos na mesa.
A fotografia do chuveiro foi a cereja no topo do bolo para mim.
Mostrava uma grande sala de mármore, quase do tamanho do meu
apartamento, com uma enorme cabeça de chuveiro redonda, uma banheira
com pés e dois lavatórios sob um espelho ornamentado. Por detrás do
espelho ficava uma parede que tinha sido forrada com azulejos com
imagens de ninfas banhando-se num lago de água doce. Uma porta de vidro
que saía do chuveiro levava até à sauna, que era tradicionalmente forrada a
madeira.
Pete tinha enviado mais algumas mensagens, onde exprimia um grande
orgulho no seu trabalho por meio de GIF e depois um comentário final,
onde se lia: «E quanto à minha obra-prima...».
Cliquei no último vídeo. Era uma nova imagem do quarto, desta vez
com as cortinas abertas, Lacey tinha feito a cama. Eu observei o ecrã
enquanto as portas se abriam, fechavam e voltavam a abrir-se. Pete estava a
demonstrar aquilo que podia fazer. Ele tinha o controlo da casa. E eu tinha o
controlo da vida de Janine.
Respondi a Pete da forma mais grata possível. Enviei-lhe um GIF de
uma líder de claque sensual a atirar os pompons ao ar. Ele pôs-se
imediatamente online e disse-me que não tinha dormido.
«É de doidos, Eve, posso fazer literalmente o que quiser nesta casa. O
sistema não tem encriptação de ponta a ponta. Fiz algum trabalho de sapa
na empresa e vi logo que isto estava no papo. A empresa é gerida por um
velhote qualquer na Alemanha que só vende a pessoas ricas malucas, mas
não se dá ao trabalho de fazer atualizações na tecnologia ou em
salvaguardar os dados. Estes palermas estão a pagar 100 mil paus por uma
coisa com menos segurança do que um mísero fitbit.»
Perguntei-lhe se era possível falar com Janine através do sistema e ele
escarneceu da minha terrível compreensão da situação.
«“Através do sistema”, LOL, pareces a minha mãe. Mas sim, podes
atazaná-la um pouco quando ela estiver no chuveiro; por falar nisso, viste
bem aquele mural? Ninfas muito sensuais, sem dúvida. A tua madrasta vai
estar nua no nosso plano?»
Eu ignorei a pergunta, e conversámos mais sobre a forma como também
eu poderia aceder ao sistema através do meu telefone. Ele enviou-me uma
hiperligação para um ficheiro e disse-me para o descarregar. O pequeno
ícone tomou-se verde, eu cliquei e este abriu uma página da Internet
mostrando-me uma gravação ao vivo do hall de entrada da casa de Janine.
Pete percorreu comigo o que eu podia ver e como poderia aceder às
câmaras nas diferentes divisões.
«Vou controlar as outras coisas a partir daqui e tu podes falar através do
telefone, que eu faço a ligação à casa sempre que quiseres.»
«Ela está em casa agora?», perguntei, clicando por todo o apartamento,
na dúvida.
«Nãaa, foi-se embora há uns dez minutos. Não me tinhas dito quão
podre de rico é o teu pai. Esta casa é de loucos.»
«O dinheiro é dela», respondi, ansiosa por dissuadi-lo da ideia de que eu
fosse herdeira de alguma coisa.
«Bem, sorte a do teu pai, então. Queres ver alguns truques engraçados
enquanto a casa está vazia?»
Eu fiquei a ver os estores da sala de estar a desandar para baixo e para
cima, ao mesmo tempo que a música ressoava estridentemente de um
altifalante escondido. Ele conseguia mesmo fazer isto, não era apenas um
fanfarronice de adolescente. Pedi-lhe que parasse, pois não queria que os
vizinhos reparassem e pudessem alertar Janine quando ela chegasse a casa.
Tinha a impressão de que Janine raramente punha música house em altos
berros logo de manhã. Na verdade, ninguém devia pôr música house alto,
ponto.
Pedi a Pete que continuasse a explorar e que me enviasse uma
mensagem assim que Janine voltasse ao apartamento. Tomei um duche e
vesti-me em menos de cinco minutos, peguei no telemóvel, num carregador
e nuns auscultadores e fui até à praia, onde escolhi o café com melhor
aspeto e me sentei cá fora debaixo de um guarda-sol, a ver as ondas
enrolarem-se à beira-mar. Voltei a dirigir a minha atenção para a filmagem
do apartamento de Janine e procurei pelas salas para ver se voltara a haver
algum sinal dela. Ainda nada. Pete também ainda não tinha enviado
mensagem, por isso mandei vir um café e um croissant e sentei-me a olhar
para a praia, obrigando-me a não ir verificar o telefone de dez em dez
segundos. Mas não fui obrigada a manter esta disciplina por muito tempo. O
meu telefone tilintou exatamente enquanto eu acabava as últimas migalhas
do croissant, e limpei rapidamente as minhas mãos gordurosas de manteiga
num guardanapo antes de abrir a mensagem.
«Ela voltooooou», escrevera Pete.
***
Ligo novamente a visualização da câmara e vejo Janine a andar pelo
quarto. Pousa uma grande mala Hermès em cima da cama, ao lado de um
pequeno saco de compras de papel, e tira uma vela com um rebordo
dourado que coloca na mesa ao lado da cama. Caminha pelo quarto por
alguns minutos, sacudindo um travesseiro com borlas douradas, passando o
dedo pelo parapeito da janela e inspecionando-o à procura de pó. Está
aborrecida, penso eu. Aborrecida não por ser um dos raros dias livres em
que uma pessoa sente que está a desperdiçar o seu tempo. Isto são anos de
tédio acumulado, uma vida cheia de almoços e de organização de pessoal e
demasiado tempo passado em manutenção física. Comprar uma vela,
arranjar o cabelo, fazer uma aula de ioga, viajar para a outra casa e repetir a
rotina vezes sem conta. Ela preenchia as suas horas com inúmeras
atividades, mas nenhuma delas era realmente importante. Era apenas um
carrossel de banalidades. E agora aqui está ela, num dia sem empregados
nem amigos por perto, a cirandar pelo apartamento e a tentar arranjar coisas
para implicar com Lacey mais tarde. Se tivesse alguma perceção da
realidade deprimente da sua vida, talvez se tivesse atirado do seu terraço de
ioga.
Pete envia-me uma mensagem: «A chegar: mulher com mala ao ombro
— consigo ver na câmara da porta».
Janine entra pelo corredor, Henry aparece subitamente atrás dela,
latindo ferozmente. Ela enxota o cão com uma palmada e abre a porta. Uma
jovem com uma t-shirt preta e calças de ganga entra e segue atrás dela em
silêncio até à sala de estar. Enquanto ela tira as coisas do saco, percebo que
é a manicura, que veio para preencher uma hora do dia de Janine.
Enquanto ela arranja as unhas, Pete e eu conversamos um pouco,
escarnecendo da decoração da sala e trocando opiniões sobre qual a pior
coisa que lá havia. Eu decido-me pelo pequeno néon na parede que diz
«Love» em itálico, uma imitação de uma peça de Tracey Emin de há alguns
anos e a única concessão à modernidade em todo o espaço. Pensando bem,
talvez fosse mesmo uma Tracey Emin, mas nem por isso menos horrível.
Pete mostra-se intransigente quanto à sua escolha da mesa de apoio em
vidro, dizendo-me para ampliar as pernas, onde se veem pequenos
querubins em esforço para suportar a carga que pesa sobre eles. Peço outro
café, e ficamos os dois à espera e a observar, dois desconhecidos a invadir
uma casa sem ter de mexer um dedo.
Passado um bocado, a manicura termina o trabalho e vai-se embora,
mas não sem que antes Henry arremeta contra ela, derrubando um frasco de
verniz vermelho que deixa alguns pingos de verniz na t-shirt da mulher.
Janine ralha com a rapariga por se ter encolhido quando o cão saltou e diz-
lhe que não volte se tem medo de cães.
— Devia ser mais profissional, o verniz podia-me ter manchado o tapete
— diz ela enquanto encaminha a rapariga para a saída.
Ao fechar a porta à pobre manicura, Janine solta um suspiro e dirige-se
para a casa de banho. Põe a água a correr para o banho e prende
cuidadosamente o cabelo com ganchos diante do espelho.
«Podes ligar-me a sauna, sem a alertar com as luzes?», escrevo eu a
Pete. Volto a ligar-me à câmara. Janine está a aplicar um creme pegajoso no
rosto.
«Feito e feito», responde Pete.
«Boa. Quando ela acabar o banho, liga as luzes na sauna, ela deve
levantar-se para ir desligá-las e nessa altura fechamos-lhe a porta.» Ele
envia-me uma mensagem de volta com os polegares voltados para cima.
Decido não ver Janine tomar banho, sentindo que ela teria direito a um
pouco de privacidade nos seus últimos momentos. Mas Pete não tem
semelhantes escrúpulos, descrevendo-me as suas abluções e rindo-se da
maneira como ela canta canções de Céline Dion enquanto se reclina e
enxagua. Há pessoas que adoram demorar-se no banho, afirmando que se
trata de cuidados individuais e pretendendo que isso nada tem a ver com
quererem escapar às suas famílias por uma preciosa hora ou assim. Janine é
uma dessas pessoas, apesar de não ter ninguém de quem fugir, a menos que
contemos com o estúpido do cão. Passa quase uma hora na casa de banho, a
encher a banheira de água quente até cima e acrescentando-lhe vários óleos.
Enquanto espero, dou-me conta de que estou a ficar ansiosa por causa do
café, por isso mando vir um copo de rosé para dissipar a cafeína.
Passado um bocado, Pete avisa-me que ela está a sair do banho, e faz
uma piada de mau gosto sobre as suas mamas que quase me leva a retorquir
com um comentário grosseiro sobre a fotografia da sua gaita, mas abstenho-
me. Pete faz-me ter vontade de defender Janine, um sinal claro de que
preciso de eliminar ambos da minha vida rapidamente.
A sauna deve estar a ferver por esta altura. Respiro fundo e peço a Pete
para ligar as luzes. Observo o filme da câmara e vejo a sauna subitamente
vazia na imagem. Janine não reparou. Enrolou-se numa toalha e está a
limpar a cara com um pano.
«Fá-las acender e apagar», escrevo. As luzes acendem-se e apagam-se
numa sucessão rápida. Janine para de se limpar e franze o sobrolho. Dirige-
se para a sauna com um ar aborrecido.
«Prepara-te para fechar a porta, Pete, por favor, prepara-te.»
«Estou pronto, caramba, eu sou o rei desta casa, filha!»
Ela entra na sauna, e eu sustenho a respiração e coço o pescoço. A porta
fecha-se atrás dela silenciosamente. A princípio, parece não reparar.
Consigo ver o cimo da cabeça dela enquanto ela se estica para desligar as
luzes, abanando a mão ao aperceber-se de que o aquecimento está na
potência máxima. Observo-a enquanto ela puxa a porta, com o vidro a
oscilar um pouco, mas sem ceder.
«LOL, ela está a perceber que está presa», escreve Pete, mas eu ignoro-
o, petrificada por uma Janine cada vez mais em pânico, que está a premir
um botão repetidamente. «É o alarme, eh, eh», diz Pete. «Desativei-o,
evidentemente. Ninguém a consegue ouvir a gritar, minha senhora.»
Janine acaba de se sentar e coloca-se num ângulo em que deixo de a
conseguir ver, mas está a bater no vidro, e Henry corre para a casa de
banho, alertado pelo barulho. Ela ouve-o e levanta-se, espreitando pela
faixa de vidro fosco na porta. Ela diz-lhe para ir pedir ajuda, uma ordem
absurda que revela que está a entrar em pânico. Henry olha para ela, com as
orelhas espetadas para trás e o seu pequeno corpo a estremecer de
excitação. Depois, inclina a cabeça, dá meia-volta e afasta-se da casa de
banho. Eu faço desandar as imagens e vejo-o deitar-se na sua pequena cama
no corredor e adormecer prontamente. Talvez Henry seja melhor juiz de
carácter do que eu pensava.
Verifico as horas no telefone. Ela está na sauna há 15 minutos.
«Qual é a temperatura lá dentro?», pergunto a Pete.
«Deixa-me cá ver.» Volta dois minutos depois. «Desculpa, tive de fazer
a conversão. Estão 110 fahrenheit, isto é, 43 graus celsius. Queres mais
alto? Pode-lhe dar um badagaio.»
Eu pondero. Não temos horas para a deixar estar ali a cozer até morrer,
mas estou relutante em deixar as coisas chegarem a um ponto em que ela
fique muito queimada — um sinal que poderia dar a entender que ela não
tinha sido capaz de sair. «Dá-lhe só mais um bocado de gás, não me importo
que a cabra desmaie. Até lhe fazia bem.»
Dou um golinho do meu vinho e saboreio a brisa de novo, sabendo que
todo o corpo de Janine irá chorar por ela. Distraio Pete de observar o
circuito fechado de televisão com demasiada atenção, falando-lhe de uma
potencial viagem ao lowa, e ele morde o isco imediatamente, dizendo-me
como seria fixe estarmos juntos na vida real. Falamos profusamente de tudo
o que faríamos juntos, com ele a tornar-se cada vez mais galanteador e eu a
sugerir atividades salutares que o líder da sua igreja teria aprovado.
Durante todo esse tempo, mantenho um olho em Janine, presa naquele
pequeno tabuleiro quente. Não há movimento que se veja, e eu dou-me
conta de que, se quero falar com ela, teria de o fazer agora. Peço a Pete que
me ponha em linha, ciente de que aquilo que estou prestes a dizer iria
suscitar algumas perguntas depois.
Há uma breve pausa e depois Pete diz-me que posso falar. Eu dou um
golinho no meu vinho e olho em redor para me certificar de que ninguém
está no meu raio de audição. Levo o telefone ao queixo e falo baixo, mas
claramente.
— Provavelmente não estás com disposição para grandes conversas
íntimas neste momento. — Ela estica a cabeça para cima diante do vidro
fosco e limpa o vapor com a outra mão. — Mas só quero que saibas porque
é que isto te está a acontecer. Não é um acidente. Provavelmente já te deste
conta disso por esta altura, mas eu não sou um cérebro do crime que queira
roubar os teus diamantes. Não há nada que me possas dar que ponha termo
a isto.
Ela desata a gritar qualquer coisa, batendo freneticamente na porta de
vidro.
— Está quieta. Não tens energia para tanto alvoroço. O teu marido
abandonou a minha mãe com uma bebé. Abandonou-a. E rejeitou-me. E a
tua família viveu uma vida de inteiro prazer e conforto desde então. Achas
isso justo? A mim não me pareceu... ver a minha mãe assumir uma série de
empregos miseráveis e enfraquecer a cada novo dia de trabalho. É justo que
a tua filha tenha tido tudo o que alguma vez desejou e que eu tenha sido
criada por pessoas que só o faziam para se poderem sentir bem consigo
mesmas?
Ela está com um ar transtornado, com uma mão a segurar o pescoço.
— É cada vez mais difícil respirar, não é? Pois bem, não vai ser um
problema por muito mais tempo, por isso tenta manter-te calma, deve ser
pior se entrares em pânico, imagino eu. Vou ser sincera, pensei em nem
sequer te contar nada, mas queria que soubesses a história por trás disto
mais por uma questão de cortesia do que qualquer outra coisa. O meu pai. O
teu marido. É por isso que estás aqui. É bom saber de quem é a culpa, não
é?
Pete envia-me uma mensagem. «Super engraçado, mas já passou uma
eternidade. Acho que ela está mesmo aflita, bebé, vamos deixá-la sair? Não
me importo se ela se passar, mas a bola é tua.»
«Só um minuto. Ela está bem. Aumenta um niquinho e dá-lhe um
bocado mais de tempo», respondo eu, fitando Janine, que está a traçar
qualquer coisa com o dedo no vidro. Eu esforço os olhos, tentando
descortinar o que é. Ela faz um barulho, mas o som é abafado.
— Querias dizer alguma coisa? — pergunto. Ela sussurra de novo. Eu
sinto a irritação a crescer. — Mais alto, por favor, provavelmente já não tens
muito tempo, por isso, se queres dizer alguma coisa, FALA!
Mas ela não está a ouvir, compenetrada que está em levar novamente o
dedo pelo vidro acima. Ela mal é capaz de desenhar mais do que um
milímetro até parar. Nós observamos em silêncio, até que a primeira forma
se torna mais clara. Uma letra G, pequena e tremida, mas clara quanto
baste. Eu sinto-me subitamente nauseada. Pete está completamente absorto.
«O que é que ela está a fazer? Uma mensagem de SOS?» A letra seguinte
começa a tomar forma, uma linha comprida, e depois, enquanto ela tenta
apoiar-se na porta, um semicírculo sobre ela. Acabou de desenhar um R.
Oiço as ondas quebrarem-se na areia e a minha visão fica um pouco turva.
Ela vai escrever Grace. Ela sabe. Ela sabe de tudo. Provavelmente sempre
soube — sobre mim, sobre a minha mãe, sempre feliz por nos deixar a viver
na pobreza enquanto a sua filha tinha direito a tudo. E agora vai denunciar-
me. Quando Simon encontrar a mensagem, vai perceber. Talvez não
imediatamente, mas vai juntar dois mais dois, refletir sobre as outras mortes
e perceber o que aconteceu. Ele e Bryony ficariam em segurança e eu
ficaria na cadeia o resto da minha vida.
«AUMENTA-LHE O CALOR», escrevo eu a Pete. «Até ao máximo, a
cabra merece.»
«Credo, odeia-la mesmo, hem? Essa história era de loucos, faz com que
a minha madrasta pareça um anjo. A aumentar agora.»
Janine está a tentar acabar o R. O seu cabelo perfeitamente penteado
está preso ao rosto, que está mosqueado, com algumas partes a tomarem-se
de um azul-arroxeado. Eu fico ali sentada ao sol, com uma mão fincada no
telemóvel e a outra a segurar o pescoço com tanta força que sinto os olhos
esbugalharem-se-me. Depois, enquanto observo, o dedo dela desliza pelo
vidro abaixo, a sua cabeça desaparece de vista e ouve-se um ruidoso baque.
Silêncio. Viro um copo de água. Não há movimento.
O meu telefone buzina. «Isto foi DRAMÁTICO! Acho que ela
desmaiou. Queres que eu abra as portas?»
Eu faço sinal ao empregado para me trazer outro copo de vinho.
«Vamos a isso.» Aquele barulho não foi só o corpo dela a cair no chão. Foi
demasiado ruidoso. Ela tinha batido com a cabeça. Verifico o relógio, Lacey
só deve chegar daqui a duas horas. Tempo suficiente para que ela sofra
danos irreversíveis, se não estiver já morta. A porta da sauna abre-se, e o
vapor começa a sair, obscurecendo a visão por um minuto. Enquanto o
empregado me traz um novo copo, começo a ver a casa de banho a focar
novamente. Os pés de Janine estão estendidos junto à porta da sauna, o seu
corpo ligeiramente fora do campo de visão, pequeno e inerte. O G trémulo
já estava a desvanecer-se até desaparecer.
Henry esteve a dormir o tempo todo. Sinceramente, não merecemos os
cães que temos.
***
Bem, ela morreu. O calor e o choque e as queimaduras teriam dado
conta dela, mesmo que não tivesse ligeiras complicações cardíacas.
Suponho que nenhuma complicação cardíaca é ligeira quando uma pessoa
está prisioneira numa fornalha. Deus abençoe Lacey, que não me fez uma
única pergunta quando foi ter comigo à promenade no dia seguinte.
Desconfiaria de alguma coisa? É difícil dizer. Eu fíngi-me chocada e
mostrei-me simpática quando ela me deu a notícia. Mas Lacey parecia
completamente imperturbada pela cena de horror com que tinha sido
presenteada. Quando muito, caminhava mais direita, já não trazia farda, mas
sim umas calças de ganga e uma t-shirt, com umas sandálias de dedo
douradas, deixando ver umas unhas dos pés notavelmente coloridas,
pintadas de cor de laranja. Ela pegou em Henry e afagou-lhe as pequenas
orelhas sedosas.
— Vou dar-lhe algum dinheiro, Lacey, é o mínimo que posso fazer
durante este tempo difícil — disse eu, pondo um ar preocupado. — Vai
voltar para casa ou a família vai mantê-la?
— O Senhor Artemis deu-me um mês de ordenado e disse-me que eu
podia ficar durante uma semana, mas está tudo bem. A Susan, a melhor
amiga da Dona Janine, telefonou ontem à noite a pedir-me para ir trabalhar
para ela. Tem uma casa muito maior nas colinas e paga-me mais. Disse-me
que já há algum tempo que planeava pedir-me para deixar a Dona Janine.
— Sorriu radiosamente. — E não é uma cabra como a senhora defunta. E
vou levar o Henry. Ninguém me vai deter.
Eu despedi-me com um aceno, maravilhada com o extraordinário
atrevimento de Susan, uma mulher que contratara a empregada da sua
melhor amiga menos de 24 horas depois de ela morrer. Noutra vida, talvez
pudéssemos ter sido amigas.
***
Pete foi um caso um pouco mais complicado. Não ficou destroçado nem
entrou em pânico com aquilo que tínhamos feito como eu receara que
pudesse acontecer. Em vez disso, ficou eufórico, querendo saber de todos os
detalhes dos acontecimentos do dia, enviando-me memes de churrascos e
perguntando-me quem é que seria o nosso próximo alvo.
«Isto pode tornar-se um negócio, bebé», escreveu ele uma semana
depois, enquanto eu bebia um copo de vinho e considerava de que cor pintar
as unhas dos pés. As hormonas de um adolescente têm de ser tratadas com
algum cuidado, por isso não atirei o telefone ao rio nem me desconectei
dele por completo. O rapaz estava enfeitiçado e eu não queria testar os seus
limites tecnológicos, por isso lidei delicadamente com a situação, sobretudo
através do encontro com Deus. Uma súbita sucessão de passagens bíblicas
de cada vez que ele me enviava mensagens galanteadoras teve o condão de
reduzir a frequência dos seus contactos. Nada como um pouco de fustigação
para nos livrarmos da ereção espontânea de um adolescente excitado. Mas,
três meses depois, ele ainda não tinha desistido por completo. Ainda se
sentia um pouco excitado com as emanações da nossa aventura juntos e não
me deixava completamente em paz, por isso, optei por uma via mais dura.
Fingi tê-lo aliciado com um perfil falso. Quer dizer, eu tinha-o aliciado com
um perfil falso, mas dobrei a parada. Ciente de que uma busca inversa de
imagens seria fácil para ele, juntei-me a um fórum de conversação online
onde uma pessoa podia conversar por videochamada com qualquer pessoa
do planeta e cliquei até encontrar o tipo mais deformado que soubesse falar
inglês. Suportei cinco minutos na sua companhia, que consistiu
essencialmente nele a fazer-me gestos para mostrar as minhas mamas. Eu
pedi-lhe uma selfie primeiro, guardei-a no meu telefone e depois apaguei a
minha conta. Com a resultante fotografia, que mostrava um mastodonte
careca a sorrir e acenar, esperei pela próxima mensagem sugestiva (leia-se,
vídeo de masturbação) de Pete. Tão certo como o sol nascer, lá chegou,
passado um bocado, mais um vídeo de masturbação. Eu enviei-lhe
imediatamente a fotografia.
«Somos um coletivo. Temos os teus vídeos patéticos e temos provas do
que fizeste. A menos que queiras que estes ficheiros sejam enviados para a
tua família, irás cessar todos estes contactos e voltar à tua vida normal. E dá
graças a Deus por nós permitirmos isto.» Ele telefonou 22 vezes nessa
noite, mas eu não atendi, reenviando a mensagem com uma adenda de
ÚLTIMA ADVERTÊNCIA. Ele respondeu dizendo que jamais contaria a
ninguém e implorando-me que não enviasse os vídeos ao pai. Suponho que,
apesar de toda a sua fanfarronice, o miúdo não suportava a ideia de o pai
pensar que ele tinha enviado vídeos de masturbação a um homem de meia-
idade com mais de 130 quilos. Talvez tivesse ajudado a matar uma
desconhecida, mas há coisas que nunca mudam. A ideia de um dos nossos
pais descobrir que temos vida sexual continuava a ser muito pior. E essa foi
a última vez que tive notícias de ColdStonerl7. É assim que as relações
entre adolescentes devem ser. Ardem depressa, mas, caramba, com que
chama!
 
 
5 Pessoas pelo Tratamento Ético dos Animais [TV. do T.].
 
6 Abreviatura de «Involuntary Celibates» ou «Celibatários
involuntários»: subcultura virtual composta maioritariamente por homens
heterossexuais que se declaram incapazes de encontrar um desejado
parceiro romântico ou sexual. [TV. do T]
 
Capítulo 13
 
Kelly tem um telemóvel. Anda a exultar com isto há semanas, mas
apenas comigo; deve ser a primeira vez que foi capaz de guardar um
segredo em toda a sua vida, imagino eu. E bem, porque se as outras
soubessem fariam qualquer coisa para lhe deitarem a mão. Kelly guarda-o
ferozmente, como um cão a um osso. Debruça-se sobre ele e está
constantemente a escrever, com as suas longas unhas a estalarem no teclado
e o pequeno ecrã luminoso quase impercetível debaixo das mantas. Eu não
lhe perguntei onde ou como o conseguiu. Imagino que o palerma do Clint
lho tenha conseguido dar de alguma maneira, mas não consigo imaginar o
que é que poderão ter para dizer um ao outro que requeira tanto vaivém.
Espero ardentemente que não seja nada de sexual. Não tenho estômago para
partilhar um espaço exíguo com alguém a ter sexo por mensagens com um
homem que ponha tanto gel na franja. Normalmente, Kelly é bastante
generosa com as suas coisas, mas não se ofereceu uma única vez para me
emprestar a sua nova valiosa aquisição. Eu não lho pediria, mesmo que
tivesse alguém a quem telefonar. Ela pode ser uma tonta de primeira, mas
não hesitaria em cobrar-me um favor. Tento abafar o som com uma
almofada sobre a cabeça, desejando ardentemente que pudesse fazer-lhe o
mesmo a ela.
***
Querem saber uma coisa engraçada? A primeira vez que encontrei a
minha irmã foi num salão de unhas. Não foi nada planeado, não houve
nenhum esquema orquestrado congeminado para que eu pudesse encontrá-
la de modo insuspeito. Foi um encontro completamente aleatório, se é que
existe tal coisa. Eu não acredito no destino, não acho que seja estranho que
duas mulheres mais ou menos da mesma idade cruzem os seus caminhos no
centro de Londres. Os encontros fortuitos não significam rigorosamente
nada — não têm nada de intrinsecamente interessante, por muito que insista
a nossa companheira Sarah, que se interessa muito por horóscopos e cartas
de tarot. Mas foi engraçado. Foi agradável não ter de ser eu a fazer o
trabalho, para variar. Ela pertencia a uma família que viajava em carros com
ar condicionado e jatos privados, que tinha portões de segurança e cães de
guarda e um corpo de segurança pessoal. Viviam dez furos acima de todos
nós. Incapazes que são, por enquanto, de colonizar outro planeta, os
muitíssimo ricos podem ser obrigados a habitar nas circunvizinhanças de
todas as outras pessoas, mas nunca estão verdadeiramente ao nosso alcance.
Podem estar na mesma rua que nós (mas só se essa rua for Kings Road),
mas não a experienciam da mesma maneira. As portas das lojas abrem-se
silenciosamente para eles em nanossegundos, os pavimentos são uma mera
passadeira para os carros que os aguardam, os restaurantes revelam salas
privadas, os museus abrem a horas. A maneira como vemos os sítios não é
igual à deles. Enquanto nós ainda estamos a sacudir a água do guarda-chuva
e a pedir ao empregado para nos arranjar uma mesa, já eles estão a fazer
outra coisa. Não lhes podemos tocar. No entanto, aqui estava ela, sentada ao
meu lado, a pedir uma manicura de gel. Sem pedir «por favor».
Bryony Artemis tem uma daquelas caras que uma pessoa acha que já
viu em algum lado. Não quero com isto dizer que ela se pareça com uma
rapariga que nós conhecemos — não é, de todo, verdade —, mas tem um
visual que as redes sociais tomaram omnipresente. Lábios almofadados,
uma madeixa de cabelo ondulado e brilhante, um corpo envolto em roupa
desportiva de lazer — demasiado magra, mas que o dono se esforçaria por
fazer parecer forte, realçando os bíceps, os glúteos. O tipo de pessoa magra
com que algumas mulheres dizem não se importar, como se não passassem
a vida a pensar nisso. Mulheres como Bryony parecem incrivelmente belas
nas fotografias, mas um pouco «vale da estranheza» na vida real. Adoro
essa descrição — o especialista em robótica Masahiro Mori cunhou-a em
1970 para descrever a nossa repulsa diante de robôs ou imagens geradas por
computador que são muito semelhantes a seres humanos... mas não
completamente. As Bryonies deste mundo são imaculadas, as suas feições
redondas, insufladas e amaciadas. Em fotografias, resulta. Ao vivo, nem por
isso. Faz-me ter saudades dos tempos dos implantes mamários
desengonçados e dos terríveis facelifts quando pelo menos as inseguranças
que faziam com que as mulheres se automutilassem eram visíveis na sua
aparência. Uma pessoa podia rir-se da Noiva de Wildenstein ou ficar triste
por ela fazer aquilo a si mesma. Mas esta nova tribo não nos consegue
transmitir nada com as suas caras, nada que nos leve a sentir empatia, pena
ou mesmo irrisão.
Estava a usar um tipo de ténis caros que nunca foram vistos dentro de
um ginásio, umas leggings apertadas com riscas azuis fluorescentes de lado
e a sua pequena parte de cima estava enfaixada num enorme casaco
acolchoado que não estava fechado, mas sim a embrulhá-la, preso por um
grande saco a tiracolo. Era igual a todas as outras raparigas do Instagram, a
não ser o saco ser Chanel e ela estar ornamentada com anéis de ouro, botões
de diamantes e um pequeno Rolex. Os sinais que nos mostram que nunca
seremos capazes de lhe «comprar o visual» porque o visual custa mais do
que o que nós ganhamos num ano. O visual custa mais do que os nossos
pais pagaram pela casa. O visual custa mais do que alguma vez seremos
capazes de juntar para comprar a nossa própria casa. Estou a brincar, vocês
nunca serão capazes de comprar uma casa.
Demorei segundos a perceber que era ela. Não passei anos a vê-la
crescer na Internet para não saber naturalmente como ela é de todos os
ângulos. Que desperdício de espaço cerebral. «O que é que costumavas
fazer quando tinhas 20 e tal anos, Grace?» «Bem, costumava ver uma ruiva
palerma publicar vlogues sobre bálsamos para os lábios e fiquei a saber tudo
sobre os seus formatos de óculos de sol preferidos». Talvez me devesse
matar também.
Ela estava a olhar para baixo e compenetrada a escrever no telemóvel,
com uma mão estendida diante da manicura como se lhe estivesse a dar um
presente. Às vezes, pergunto-me o que é que as mulheres que trabalham em
salões deste género dizem acerca das clientes ao fim do dia. Será que se
queixam das clientes mal-educadas que nem sequer as olham nos olhos?
Será que se riem delas? Ou ficam tão indiferentes que nem sequer falam
nisso?
Inclinei-me e pedi para me passar a roda de cores de verniz, e ela
estendeu-ma sem levantar os olhos. Com um dos headphones suspenso da
orelha, assinalando que não estava disponível para conversar, uma tática
que não irei julgar, visto que a costumo usar. Deus abençoe o homem (estou
a tentar adivinhar) que concebeu os headphones sem imaginar que as
mulheres de todo o mundo os iriam usar para dar a entender que estão
indisponíveis para os homens que as tentam abordar. O salão estava
barulhento como só os sítios exclusivos para mulheres estão, mas eu
abstraí-me por completo e concentrei-me inteiramente nela. Observar
Bryony era fácil, ela era como um daqueles cães que se detêm cada vez que
se cruzam com um desconhecido, na esperança de que algum deles queira
fazer-lhes festas. Estava habituada a que as pessoas a olhassem com
admiração, esperava-o, apreciava-o. Ser ignorada seria mais desconcertante,
imagino eu. Isto não quer dizer que ela estivesse a olhar para trás, claro
está. Queria apenas dizer que eu tinha carta-branca para a observar sem ser
notada. A adrenalina sibilava-me pelo corpo face a esta oportunidade.
Sentia-me como se estivesse a desperdiçar cada segundo que passava, tinha
de fazer alguma coisa. Ela não tardaria a abandonar o salão e a saltar
diretamente para dentro de um carro aquecido, enquanto eu ficava ali à
espera que as minhas unhas secassem.
Aquela era a minha meia-irmã! Como é que é suposto ser um encontro
com a nossa irmã perdida? Imagino que talvez nos examinássemos uma à
outra nervosamente, que disséssemos uma piada parva, que procurássemos
hesitantemente a mão uma da outra. Tudo preâmbulos para que finalmente
caíssemos nos braços uma da outra — permitindo-nos assim reconhecer que
a existência desta pessoa era a última peça que faltava para compor o puzzle
das nossas vidas.
— ÁUUU! — Bryony puxou furiosamente a mão da manicura, olhando
para a sua cutícula e esfregando-a. —
Cortou-me, com mil raios! Não podia ter mais cuidado?
A senhora baixou a cabeça e pediu desculpa, apesar de eu não conseguir
ver qualquer indício de sangue. Bryony suspirou e estendeu a mão outra
vez, enquanto outra senhora se precipitava em direção a ela vinda da
secretária da receção. Esta mulher, que eu presumi que fosse a gerente do
salão, curvou-se e observou-lhe os dedos, examinando a lesão.
— Desculpe, Menina, lamento muito. Vou-lhe buscar um pouco de
água, sim?
A minha irmã não voltou a olhar para cima, mas assentiu com a cabeça.
Estava a percorrer o feed do Instagram, fazendo «gosto» em várias
fotografias de raparigas loiras sentadas em cadeiras de pele em discotecas
sombrias. Depois abriu a aplicação da câmara, ergueu-a em direção à cara e
compôs as suas feições numa expressão de desdém. Eu fiquei a vê-la tirar
fotografia atrás de fotografia, até parecer finalmente decidir-se por uma,
com os seus dedos finos a deslizar e a bater no ecrã. Bryony voltou a
suspirar e pousou o telefone. Não parou, no entanto, utilizando a sua mão
livre para atualizar repetidamente a aplicação. Eu saquei do meu telemóvel
e abri a minha conta do Instagram, onde utilizo um pseudónimo, com uma
fotografia genérica de uma jovem mãe com dois miúdos pequenos. Na
minha biografia lê-se: «Mulher de um matulão e de dois pequenos terrores,
vive em Hertfordshire e está sempre pronta para uma (aqui inseri um emoji
banal de uma garrafa de vinho)». Estava bastante orgulhosa do nível básico
que tinha conseguido aqui. Ninguém alguma vez irá dar por Jane Field a
visionar os seus vídeos em direto mais do que uma vez. Ninguém irá querer
segui-la. Clico nas histórias do Instagram de Bryony e estas revelam a
fotografia que eu acabei de a ver a tirar — sobrolho franzido de desdém,
lábio arrepanhado, muito filtrada para fazer a sua pele parecer quase
cintilante. Na mensagem escrita por cima da imagem lia-se: «quando uma
pessoa vai fazer uma manicura necessária para relaxar e a desajeitada da
mulher quase nos amputa um dedo. #mauserviço #anormab>.
Conto-vos isto só para que se tome mais evidente que o cenário de
encontro nos braços uma da outra seria altamente improvável. Eu não nutria
quaisquer sentimentos em relação a ela para além de um completo, mas
distante, fascínio. Seria eu como ela se tivesse crescido no seio
endinheirado da sua família? É provável que sim. Quantas pessoas
fabulosamente ricas é que conhecem que admiram? Quer dizer, refiro-me
àqueles que nascem em berço de ouro, não a Oprah Winfrey. Não me iludo
a pensar que teria feito alguma coisa de maneira diferente. O primo dela
tinha tentado, Deus o guarde, mas não estava a moldar a sua própria vida
com aquelas rãs. Estava apenas a rejeitar a vida que lhe tinha sido dada,
uma vida que era poderosa e abrangente — uma vida que ele teria tido de
batalhar para protelar o resto da sua vida. E essa luta teria sido esgotante.
Um dia, cansado de viver numa lúgubre sucessão de apartamentos
partilhados e de ajudar animais que não lhe manifestavam qualquer
gratidão, o seu pai tê-lo-ia convidado para jantar. E ele, exaurido, revelaria
um ponto fraco na armadura que tinha desenvolvido para o proteger dos
males da sua vida anterior. Ser-lhe-ia oferecida uma pequena ajuda — nada
de excessivo, estão a perceber a família saberia exatamente até onde poderia
ir. Talvez apenas o suficiente para pagar a renda desse mês, por exemplo. E
ele teria aceitado, debatendo-se com isso, mas necessitando de uma trégua.
A partir daí, a porta estaria aberta. A família Artemis tê-lo-ia resgatado
novamente para o seu seio — afinal, o caminho que ele tinha escolhido era
uma afronta para eles — e ele abdicaria da sua resistência. Talvez não
tivesse maltratado os empregados e namorado com uma série de modelos
cada vez mais novas — pois já teria desenvolvido alguma orientação moral,
apesar da sua educação —, mas teria acabado a gerir um ramo da empresa,
talvez organizando ações regulares de angariação de fundos para obras de
caridade para tornar o processo menos penoso.
Andrew não conseguia escapar-lhes por completo e Bryony tinha-os
abraçado por completo. Estou certa de que eu teria acabado algures entre os
dois.
A manicura pintou-me as unhas de um vermelho intenso, a mesma cor
que a minha irmã estava a mandar aplicar. Não há nada de frívolo nestes
pequenos rituais a que se entregam as mulheres de todo o mundo — são
uma pequena fuga ao trabalho que fazemos. Uma pequena trégua de uma
sociedade que nos obriga a suportar o trabalho emocional e a desbravar uma
senda profissional e a dar a entender, ao mesmo tempo, que não somos
demasiado emotivas. O verniz das unhas não é uma coisa insípida. É uma
laca, uma camada protetora.
Eu estava a ser inútil. Não estava a tirar qualquer proveito deste
encontro fortuito. Estava ali sentada como uma incapaz, a observar
ociosamente Bryony concentrada no telefone, a bocejar de vez em quando e
a alisar constantemente o cabelo. Mas depois apercebi-me de que talvez o
problema não fosse meu, que talvez não houvesse mesmo nada para
descobrir sobre esta rapariga. Talvez fosse como quando as mulheres
entram em parafuso a cismar porque é que o homem com quem iam sair não
telefonou, imputando-lhe uma série de razões até se decidirem por uma
coisa completamente labiríntica como: «Ele gosta tanto de ti, mas depois de
perder o pai, quando ainda era muito novo, tem problemas complexos com
a intimidade emocional e não telefonar é um sinal de que está finalmente a
apaixonar-se por ti e provavelmente só precisa de algum espaço, mas não
demasiado — devias enviar-lhe um presente do teu próprio cabelo»,
quando, na verdade, ele já se esqueceu completamente delas.
Acho que já não precisava de saber nada sobre ela. Houve uma parte da
família que procurei compreender melhor, a fim de me aproximar deles o
suficiente para os matar. Mas Bryony passa a vida online. Consigo ver tudo,
não há grande coisa a dizer sobre ela. Normalmente, as pessoas mais ricas
não querem, segundo ouvi dizer, constar em quaisquer listas das grandes
fortunas do ano. Não querem viver na ribalta onde as pessoas normais
podem saber o que é que têm e onde vão. Se o clã Artemis fosse assim, o
meu trabalho teria sido infinitamente mais difícil. Vem-nos logo à cabeça
aquela horrível frase que diz «o dinheiro fala, a riqueza murmura».
Felizmente, Bryony não quer falar, quer gritar. Nomeadamente, no
Instagram, o tempo todo. Estão a ver aquelas previsões horríveis que toda a
gente faz como se fosse uma coisa muito original e não um mero episódio
distópico de uma série da Netflix sobre um futuro árido em que todos nos
limitamos a existir apenas através dos nossos telefones? Pois bem, isso é a
vida de Bryony.
Enquanto a manicura esfregava o óleo nas suas mãos e lhe anunciava
que estava pronta, Bryony levantou a cabeça como se isso fosse um
tremendo esforço e inspecionou as unhas. Demorou imenso tempo a
verificar cada dedo individualmente antes de se endireitar na cadeira e
começar a rir. Não era um riso alegre, mas sim uma manifestação destinada
a assinalar o mais completo desdém. Semicerrou os olhos e olhou fixamente
para a mulher sentada à sua frente.
— Cortou as minhas cutículas. Todas. Você está qualificada para fazer
isto? Não, a sério, como é que conseguiu danificar todas as minhas
cutículas? Usou um pé de cabra?
A manicura gesticulou freneticamente à sua chefe, talvez emudecida por
se encontrar atordoada, talvez privada do vocabulário certo para responder
de forma educada. O salão mergulhara em silêncio em poucos segundos,
sem que ninguém olhasse deliberadamente para Bryony, mas com toda a
gente imóvel para poder ouvir o que se estava a passar. Normalmente este
tipo de atenção poderia levar uma pessoa a recuar, mas Bryony tinha
claramente um sentimento de pudor muito diminuto. Há uma teoria sobre o
colégio de Eton que diz que esta escola não produz os rapazes mais
inteligentes, mas sim os mais confiantes. É por isso que todos esses
bonequinhos medíocres dotados de sistema nervoso se sentem mais do que
capazes de se aventurarem a ser primeiro-ministro. É para isso que se paga.
Bryony tinha esse tipo de confiança. Podia comportar-se terrivelmente e
estar-se completamente nas tintas.
A gerente veio ver o que se passava e encaminhou Bryony para a
receção, claramente ciente de que era uma cliente disposta a fazer uma cena
e ansiosa por afastá-la das outras clientes. Mas não adiantava. Bryony tinha
uma voz que entrava no ouvido e fazia questão de a usar em pleno fulgor.
— Isto é simplesmente humilhante; está a querer dizer-me que se
orgulha de deixar as clientes sair do seu salão com as unhas despedaçadas?
Disseram-me que este sítio era bom, mas a minha amiga devia estar
embriagada quanto baste, porque eu nunca fiz uma manicura tão terrível.
Tenho um vídeo para gravar mais logo. Alguém está à espera de que eu
exponha as minhas mãos à câmara neste estado? — A gerente estava a
emitir sons calmantes, fazendo ofertas e apresentando pedidos de desculpa,
imagino eu. Não preciso de vos dizer que não havia nada de errado com as
unhas dela, pois não? Pareciam perfeitamente bem, ótimas, mesmo. Isto era
apenas uma jovem enfastiada a usar o seu poder porque a insatisfação é
uma moeda de troca mais forte do que a delicadeza. — Escusado será dizer
que não vou pagar por isto. — Bryony nem sequer estava a olhar para a
mulher, estava a estudar os vernizes para as unhas que estavam em
exposição. — E vou levar esta cor comigo para quando as minhas unhas
inevitavelmente se lascarem daqui a poucas horas. Têm muita sorte de eu
não pôr tudo isto nas minhas redes sociais — e, com isto, arrebatou um
frasco de verniz e saiu porta fora, batendo com a porta atrás de si.
Caro leitor, ela pôs tudo nas redes sociais.
***
Já vos disse que não havia muito para saber sobre Bryony. E é verdade.
Com ela, as águas não eram muito profundas. Tanto quanto posso dizer, não
era exatamente estúpida, só nunca teve de ser esperta. Vivia uma vida muito
agradável com tudo o que alguma vez desejou e, em consequência disso,
não era muito simpática. Eu até iria mais longe. Ela parecia ser uma cretina
completa. Uma palavra rude, que pode ser enunciada com diferentes graus
de ferocidade e que define perfeitamente tantas e tantas pessoas. Não
consigo fugir à verdade de qualificar as pessoas como desagradáveis ou
inconvenientes. Jane Austen conseguiria engendrar uma expressão
suficientemente aviltante para nos deixar boquiabertos sem recorrer ao
vernáculo, é certo, mas ela não acabou em Limehouse como eu. Se tivesse
acabado, imagino que Wickham teria recebido qualificativos piores do que
simplesmente «frívolo e ocioso».
Talvez eu devesse tê-la conhecido melhor. Algumas pessoas poderão
perguntar-se porque é que eu a julguei quase inteiramente com base na sua
presença online, quando é universalmente sabido que ninguém é o seu
verdadeiro eu na Internet. Este crime, mais do que outros, poderia fazer-nos
sentir um crescente desconforto. «Eu compreendo que ela quisesse matar
aqueles avós degenerados, mas esta rapariga é tão nova, provavelmente têm
mais em comum do que aquilo que as separa.» Mas isto não é uma história
de reconciliação com a família. Não é uma fábula em que alguém descobre
que tem um conjunto de familiares à espera de o abraçar. E eu não sou uma
ave ferida desesperadamente à procura desse refúgio. O que eu quero é que
esta gente desapareça. Com as minhas desculpas a Isabel I, não tenho
qualquer interesse em abrir janelas para as almas destas pessoas — ou em
explorar a falta delas.
***
Bryony ainda vivia com os pais. Imagino que quando uma pessoa vive
numa casa com 16 quartos e duas escadarias, pode perfeitamente fingir que
está, de algum modo, a viver sozinha — presumo que ocupasse um piso, ou
uma ala, se é que a mansão Artemis tinha tais pretensões. Ainda assim,
continuava a viver em casa, já adulta. Como tinha feito um curso de design
de joias em Londres e renunciado à experiência de uma verdadeira vida
universitária, nunca chegou a sair. Nem por uma vez. Os pais compraram-
lhe uma casa em Chelsea Mews quando fez 21 anos, mas ela nunca lá
passou mais do que duas ou três noites. Em vez disso, usava-a para dar
festas para os seus amigos jovens e bonitos, mas regressava sempre ao
enclave familiar. Isto diz-vos alguma coisa sobre o seu carácter? Uma vez
mais, pode ser que eu esteja a procurar encontrar sentido onde não o há,
mas rejeitar todo o potencial que a vida adulta nos oferece parece-me ser
um desperdício, e permanecer junto dos pais, quando se tem por pais Janine
e Simon Artemis, parece-me ser um verdadeiro sinal de perigo para a
personalidade seja de quem for.
Bryony não tinha um companheiro, ou, pelo menos, um companheiro de
quem falasse. Eu tomei isto como um sinal de que estava sozinha, visto que
os seus anteriores interesses amorosos estavam profusamente expostos nas
redes e também nas colunas sociais. Referia-se as si mesma como
pansexual, mas parecia só ter andado com homens. Pois.
Havia um pequeno cão que figurava amplamente na sua vida a certa
altura e que depois, bem... deixou de aparecer. Muito se especulou sobre
isto, e o hashtag #ONDEESTÁFENDI foi, durante algum tempo, bastante
popular no Twitter, obrigando-a a admitir que tinha dado o cão ao seu
personal trainer por problemas de raiva (por parte do cão, não dela).
Tinha um milhão de amigos, mas não tinha amigos nenhuns. Havia
fotografias dela na cidade com outros ricos, mulheres de olhar vazio —
bochecha com bochecha, mas sem nunca se tocarem —, mas a maior parte
das imagens eram dela sozinha, olhando-se ao espelho, fingindo reagir a um
fotógrafo imaginário.
Bryony não tinha emprego. Claro que se tinha aventurado como modelo
(isto não quer dizer que tenha sido uma modelo de alta-costura, mas tão-só
que foi embaixadora de uma marca para uma velha casa de costura inglesa
caída no esquecimento e desesperadamente à procura de um novo impulso
no seu perfil nas colunas sociais. Os outros embaixadores incluíam o filho
de uma estrela de rock da terceira idade e um nobre de segunda categoria —
suficientemente secundário para não se assemelhar em nada ao príncipe
André), mas nunca fez um trabalho capaz de nos surpreender. «A filha do
multimilionário? Ah, trabalha na agência imobiliária local, a fazer das tripas
coração para subir na carreira.» Não. Claro que não. Teve um momento
particularmente infeliz em que foi anunciado que iria desenhar um linha
exclusiva de bandoletes enfeitadas para a Sassy Girl, quando alguém no
departamento de relações-públicas, claramente desesperado para não ser
despedido, tomou a iniciativa arriscada de a descrever como uma «artista de
pedras preciosas» no material promocional. Não podem criticar os jornais
por terem investigado a sua breve aventura (leia-se, seis semanas) num
curso de design de joias e de lhe terem dado a alcunha de «diamante do
papá».
Ainda assim, Bryony não é nada menos do que completamente imune à
crítica. Não há como desencorajar uma rapariga branca superprivilegiada.
Ela pode não precisar de um emprego a tempo inteiro, mas num mundo
onde as mulheres são constantemente exortadas a ser «chefes», ela tinha de
fazer alguma coisa para justificar a sua vida de altercações e aulas de
ginástica consecutivas (teve uma breve passagem por um ateliê exclusivo
para membros em Mayfair chamado Coletivo SS, que queria dizer «coletivo
magro e forte», mas que servia para nos mostrar a todos que a História não
é bem ensinada nas nossas escolas). Por isso, Bryony fez aquilo que
qualquer pessoa com um mínimo de autoestima faz hoje em dia: tomou-se
influencer.
Muitas pessoas não sabem o que isso é. Não há razão nenhuma para se
ser presunçosamente orgulhosa dessa falta de conhecimento. A única coisa
pior do que alguém que devora entusiasticamente toda a cultura popular
para depois a regurgitar (usando uma t-shirt a dizer «Todas devemos ser
feministas» e fazendo, ao mesmo tempo, fila durante três quartos de hora
para comprar os últimos ténis fabricados por mulheres numa fábrica sob
condições desumanas) são aquelas pessoas que se orgulham de não
compreender as novas tendências. Não são nada melhores por isso. Uma
pessoa não marca pontos por tentar deliberadamente evitar saber o que se
passa à sua volta. E quase de certeza que viram a edição digital do Daily
Mail no último mês, por isso deixem de ser presunçosos. Um influencer é
alguém que tem uma grande presença nas redes sociais e que usa isso para
promover marcas a troco de dinheiro. Nada de muito diferente dos dias
loucos dos anos 90, quando os atores de renome vendiam pastas de dentes
noutros países por notas de mil. Bem, a não ser por este novo grupo não ser
conhecido por mais nada que não o exercício da sua influência. Não existe
qualquer talento por detrás dos seus mentores, nenhum canto, escrita ou arte
que lhes tenha servido de trampolim para começar a dizer mal das coisas.
Geralmente, são apenas mulheres brancas magras (ou homens brancos
encorpados) que têm sorrisos sobrenaturalmente radiosos e casas de um
bege desconcertante (tanto melhor para fotografar bugigangas) e que tentam
convencer os seus acólitos de que têm um estilo de vida que os outros
deviam tentar desesperadamente imitar. Normalmente, os influencers
também batem na tecla da gratidão, ou do viver o momento, e fingem ter
sofrido moderadamente de ansiedade ou terem-se debatido com uma
dificuldade não especificada, a fim de se apresentarem como pessoas mais
relacionáveis. As banalidades que estas pessoas atiram da boca para fora
poderiam fazer rebentar a barreira do Tamisa. Ver algumas destas coisas
poderá levar-nos a desejar que isso aconteça.
Era, portanto, um trabalho perfeito para Bryony. «Trabalho» talvez seja
um exagero. Era uma ocupação perfeita para Bryony. Ela fazia vídeos
diários ilustrando detalhadamente as suas atividades do dia a dia (um vídeo,
com 180 mil visualizações, girava inteiramente em torno de uma ida ao
osteopata), publicava fotografias de si própria em várias poses com ar
enfastiado, utilizando um conjunto variado de adereços e cenários. Quando
digo adereços, refiro-me à sua estúpida alcatifa estupidamente fofa, à sua
parede espelhada e ao seu guarda-fatos gigante. Quando digo cenários,
refiro-me a destinos de férias exclusivos, muitas vezes acompanhados de
hashtags que davam a entender que ela precisava desesperadamente de uma
pausa — #precisodisto —, como se o carrossel de tratamentos de beleza,
aulas de ginástica e discotecas a estivesse a deixar à beira de um
esgotamento. Imagino que os seus fiéis seguidores, muitos deles auferindo
salários presumivelmente miseráveis com contratos de trabalho
intermitente, manifestassem a sua simpatia e aprovação para com isto e
elogiassem a sua sensibilidade ao privilegiar os cuidados pessoais.
Ela intercalava fotografias dessas férias com publicações patrocinadas
que se assemelhavam a tudo o resto no seu mural — como uma árvore
escondida numa floresta. Estes anúncios pretendiam mostrar-nos como
poderíamos ser um pouco mais parecidos com Bryony — com kits
branqueadores de dentes, vestidos fluidos disponíveis para entrega no dia
seguinte, um anel com as suas iniciais que ela descreveu como
«obrigatório». Este tipo de coisas é devorado pela manada de seguidores do
Instagram, ansiosos por se integrarem, desesperados por saberem o que é
que é bom, o que é que funciona, o que é que os poderá distrair das suas
vidas. Mas tudo não passa de um truque. Bryony estava a rir-se deles — ou
talvez estivesse, se conseguisse retirar algum prazer de alguma coisa na sua
vida. Talvez não a rir-se, mas a sorrir desdenhosamente. Porque se a minha
meia-irmã quisesse branquear os dentes, ia ao melhor dentista de Harley
Street. E se quisesse um vestido novo, desencantava uma nota de mil e
mandava-o entregar numa caixa debruada a tecido por correio em menos de
uma hora. As suas joias jamais lhe deixariam uma marca verde no dedo,
eram todas da Cartier. As coisas que ela promove são fotografadas,
descarregadas e descartadas. Posso facilmente imaginar que ela as dá à
govemanta, mas também não me custa nada acreditar que as atire
diretamente para o caixote do lixo.
O seu estilo de vida repugnava-me e seduzia-me em igual medida. Bem,
quer dizer, isto não é bem verdade. Fascinava-me mais. Passei horas da
minha vida a investigar a sua vida selecionada online, a ver os seus
entediantes vídeos de maquilhagem e a assistir, às sete da tarde, às suas
sessões de perguntas e respostas, em que passa 15 minutos a responder
diariamente a perguntas tão desassombradas como esta: «como é que o seu
cabelo é tão brilhante?», a que ela responde com a intensidade e a seriedade
de alguém que estivesse a testemunhar no tribunal de crimes de guerra.
Apesar de a Internet ser um lugar onde podemos chegar mais perto dos
nossos heróis, é também um lugar onde observamos/odiamos pessoas que
faríamos tudo para evitar na vida real. Eu sempre disse a mim mesma que
aquilo era uma investigação valiosa, mas envolver-me nela durante tanto
tempo deixa-nos um sentimento de desmoralização e mácula. É como coçar
repetidamente uma ferida e ficarmos muito espantados por acabarmos com
uma cicatriz horrível.
A abertura de Bryony às redes sociais tinha-me apresentado muitas
opções. Tinha demasiadas possibilidades — elaborava cenários tão
complexos que, a certa altura, dei por mim a investigar de quanto tempo
necessitaria para tirar uma licença de piloto de helicóptero. Tinha de
reavaliar as coisas. Apesar de nem todos os meus planos terem sido
elegantes, tinham sido eficazes. Às vezes, a falta de estilo incomodava-me
um pouco. Quem é que não prefere despachar alguém com um pouco de
inteligência, afinal? Mas seria o cúmulo da vaidade centrar todos os meus
frágeis planos em função do aspeto visual da situação. E a vaidade pode
fazer com que sejamos apanhados — perguntem aos muitos assassinos que
acabaram na prisão porque ficaram perto do local do crime para admirar a
sua obra, atraindo, desse modo, as atenções sobre eles.
Na verdade, o plano por que me decidi continha um elemento
humorístico. Havia outra coisa que eu sabia sobre Bryony e, inicialmente,
quase a excluíra como algo que ela tivesse exagerado para impressionar os
seguidores. Todos os influencers tentam mostrar uma qualquer
vulnerabilidade menor. Ajuda a marca. Alguns fazem de conta ter uma
doença mental aceitável, como eu já referi — a ansiedade costuma resultar,
mas psicose, nunca. Outros insistem em maleitas como a doença de Lyme
ou uma dor crónica tão vaga que ninguém possa refutar. Bryony decidiu
arriscar algo de novo. Há algum tempo, fez um vídeo muito pessoal
(percebi logo que era sério porque estava a usar um fato de treino preto
simples e um mínimo de maquilhagem) sobre um diagnóstico recente que
tinha abalado o seu mundo. A tremer, falou diretamente para a câmara,
explicando que depois de uma noite no Vardo (um restaurante que tinha
aberto recentemente com grande pompa em Chelsea), tinha desfalecido e
deixado de respirar. Após análises intensivas, o culpado tinha sido
descoberto e foi revelado que ela nunca mais poderia voltar a comer um
pêssego na vida. A notícia foi recebida com lágrimas, pois os pêssegos eram
a sua fruta preferida. Quando vi esta história trágica, revirei os olhos e
passei à frente. Mas ela não parou com os seus conselhos pessoais a si
própria sobre os perigos dos frutos de caroço. O Fundo Nacional para as
Alergias Alimentares entrou em contacto com ela, e Bryony encontrou aí
uma pequena causa que a faria parecer séria e dotada de espírito cívico.
Organizou uma noite de gala para angariar fundos para a investigação,
persuadindo alguns criadores de moda a pôr o seu talento ao serviço de um
evento em que ela e as suas amigas desfilavam por uma sala do Museu
Britânico, espojando-se em estátuas de mármore e posando perto de antigos
sarcófagos (se não houvera uma maldição de um faraó até então, pois bem,
seria certamente agora). Aconselhava frequentemente os seguidores a
estarem atentos às alergias dos seus amigos, um serviço que só era
manchado por ela se ter associado a uma empresa de testagem de alergias
privada e recomendado os seus kits de testagem de 79 libras para que
pudéssemos ver se uma simples peça de fruta nos poderia matar ou não.
#AD.
O seu mural não tardou a encher-se novamente de fotografias de alta-
costura e pores do sol, e eu já quase me tinha esquecido da sua cruzada
contra os frutos de caroço até uma noite em que ela fez uma transmissão em
direto de uma ida às urgências. Para ser justa, ela estava com um aspeto
tenebroso, mesmo com filtros, com os olhos muito inchados, a pele
manchada, arquejando enquanto sussurrava para a câmara que tinha tido de
levar três injeções de adrenalina depois de ter parado de respirar numa
discoteca. Alguém lhe tinha dado um cocktail, asseverando alegremente que
era isento de pêssego, e ela tinha-o emborcado de um só trago, até
reconhecer imediatamente o sabor picante e desatar a correr para a saída
completamente em pânico. Como os amigos dela eram imbecis, ou, mais
trágico ainda, talvez por nem sequer a conhecerem realmente, ninguém
juntou dois mais dois e se apercebeu de que ela estava a ter uma reação
alérgica grave. Em vez disso, um dos porteiros achou que ela estava a ter
um ataque de pânico e o outro desconfiou que ela estava apenas bêbeda. Só
quando ela ficou roxa e caiu redonda no chão é que foi chamada uma
ambulância. Pergunto-me se a experiência de uma urgência do Serviço
Nacional de Saúde não terá sido mais traumática para Bryony do que o
episódio em si mesmo. Ela estava numa enfermaria pública, apenas com
uma cortina a resguardar a sua privacidade, enquanto sussurrava para a
câmara, confessando quão assustada estava. Não porque estivera quase a
morrer, mas antes porque um homem bêbedo coberto de sangue na cama ao
lado dela não parava de cantar uma canção de David Bowie. Ela não sabia
que a canção era de Bowie, imagino que rejeitasse David Bowie como um
excêntrico. Sempre com as prioridades bem definidas, aquela rapariga.
Já sabem o que vou fazer a seguir, não sabem? Deviam saber, pois é
mais do que óbvio. Não quero ter de vos segurar a mão enquanto leem isto.
Foi uma inspiração, é o que vos digo, apesar de a ideia me ter sido dada de
bandeja. Deus enviou-me um barco e tudo isso. Cerca de dez pessoas
morrem todos os anos de choque anafilático induzido por alimentos.
Mesmo com todo o dinheiro e privilégios do mundo, porque é que ela não
haveria de ser uma delas? É difícil detetar uma intolerância mortal aos
pêssegos num inimigo distante.
Mas porque é que desta vez não haveria de ser fácil? Alguns destes
crimes exigiram um planeamento cuidadoso — não nos esqueçamos das
semanas de trabalho aturado com rãs, da imersão profunda na cena noturna
das festas sexuais de Londres. Passei meses a tentar descobrir até que ponto
conseguiria manipular um miúdo na Internet para chegar até Janine. Difícil
quando se tem um trabalho a tempo inteiro, um hábito cada vez mais
obsessivo de fazer corridas de longa distância (Lady Macbeth caminhava
durante o sono, tentando esfregar sangue imaginário das suas mãos, eu
corro durante quilómetros em qualquer direção que me afaste dos meus
crimes, é verdade, não é preciso terapia nenhuma, obrigada na mesma) e
uma propensão para a ansiedade que não é propriamente uma falha de
carácter, mas que não ajuda nada quando estamos a gerir responsabilidades.
Nunca soube exatamente quão próxima era Bryony dos pais. Por muito
que tivesse estudado a família e me tivesse aproximado dos seus
empregados, eles mantinham-se à parte, vivendo num mundo a que eu
nunca teria acesso — por mais que subisse na vida ou por muito que os
perseguisse. Aquilo que eu sabia ao certo — que ela era filha única, que
ainda vivia com a família em casa, que nunca se referia aos pais nas redes
sociais — confundia-se com certos boatos. A mãe dela passava a maior
parte do tempo no Mónaco (coisa que ninguém faz, a menos que esteja
muito interessado em evitar impostos), aí tendo vivido pelo menos oito
meses por ano nos últimos cinco anos. Simon apanhava um avião para lá de
vez em quando, mas parecia estar sediado aqui a tempo inteiro. Bryony,
como todas as raparigas do seu mundo, frequentava Saint-Tropez, mas não
parecia aparecer chez maman muitas vezes. A última visita oficial (oficial
por ela a publicar no Instagram) tinha sido dois anos antes de Janine ter tido
o seu infeliz acidente. Mesmo depois de Janine morrer, não havia nenhuma
referência direta a ela nas redes sociais de Bryony. Fez um intervalo de três
semanas nas publicações, depois regressou com uma imagem da sua
silhueta sobre um sol poente, complementada com um emoji de um coração,
e passados dois dias já estava a publicar conteúdos promocionais. Janine foi
enterrada em Inglaterra e a casa que ela tinha no Mónaco estava vazia desde
então. Não consigo imaginar que tenha sido por razões sentimentais, mas
antes porque a casa era onde estava registada a empresa.
Tudo o resto eram suposições com base em toda esta informação.
Comecei a desconfiar que Simon e Janine viviam vidas completamente
separadas, provavelmente há já muito tempo. Isto não era apenas por causa
da situação do Mónaco (apesar de isso ter, evidentemente, fortalecido a
teoria — quem é que passa a maior parte do ano longe de um parceiro se
não precisar de o fazer?), há já muito que corriam rumores de que Janine se
tinha cansado das infidelidades constantes de Simon e que tinha finalmente
tomado providências para se proteger, bem como aos seus interesses nos
negócios. O rumor (secundado por Tina, que o reiterou num sussurro
excitado num dia em que me encontrei com ela depois do trabalho) era que
a gota de água tinha sido quando se descobrira que Simon mantivera outro
iate para a sua amante e que tinha usado uma lancha para o transportar para
ir e vir de lá quando estava a passar férias em família. Ameaçando
divorciar-se e tirar-lhe metade do dinheiro, Janine jogou uma carta de
mestre e conseguiu, de alguma maneira (com a ajuda de um batalhão de
contabilistas a quem deve ter pagado belíssimas quantias), persuadir Simon
de que não havia outra opção. Não haveria divórcio nem perda de ativos,
mas ele tinha de lhe entregar a direção dos negócios. Simon deve ter feito as
contas, tomado consciência de que este acordo o manteria prisioneiro de
Janine, e, mesmo assim, assinou os papéis. Era melhor ser um prisioneiro
rico do que sofrer a indignidade de ver os tabloides a vasculhar a sua vida
privada e ter de entregar um elevadíssimo quinhão de dinheiro a saque.
Havia um ponto positivo — Janine a viver no Mónaco significava que não
teria de continuar a pagar impostos. As pessoas ricas olham para os
impostos da mesma maneira que algumas pessoas olham para as alterações
climáticas — é uma questão de justiça social que merece que as pessoas vão
para a rua manifestar-se. Os muito ricos vivem, no essencial, na convicção
de que foram eles a ganhar esse dinheiro. Não têm tempo para qualquer
discussão teórica sobre se é realmente possível que alguém mereça essa
acumulação individual de riqueza quando a têm, tomam-se como Gollum,
ferozes na proteção dos seus bens e riqueza.
Por isso, Janine vivia uma vida agradável no Mónaco, onde os almoços
eram planeados durante semanas e havia muitas queixas a fazer sobre as
responsabilidades dos empregados, ao passo que Simon era livre de fazer o
que bem lhe apetecesse em Londres. Na verdade, Bryony não estava
minimamente envolvida na equação. Era a filha deles, na medida em que
usava o apelido da família e fazia a ponte entre os pais, mas não era de crer
que ficasse a jogar Monopólio à lareira no Natal com eles. Não era o tipo de
família que reconhecêssemos como funcional ou disfuncional. Em vez
disso, a sua unidade parecia uma coisa que tinha todos os atributos de algo
invejável, sem que nenhuma das emoções correspondentes estivesse
presente.
Talvez eu estivesse enganada. O problema em fazer tudo isto à distância
era que eu nunca conseguia conhecer estas pessoas nem os seus
pensamentos mais íntimos. Uma vez mais, eu achava que compreendia
Jimmy por dentro e por fora, e ele surpreendeu-me. A sua traição tomava-o
pelo menos cinco por cento mais interessante. Talvez Janine e Simon
amassem mesmo Bryony de forma profunda e real. Eu só podia contar com
o que me era dado entrever. Não que isso importasse, eu não estava a tentar
absolver-me nem esperava que não doesse a Simon perder a filha. Tê-lo-ia
matado primeiro se o quisesse poupar a essa dor. Não, obviamente que a
ordem por que eu matei os seus entes queridos era crucial. Foi por isso que
ele ficou para último. Tinha de passar por tudo. A revelação seria aquilo que
daria cabo dele.
***
Eu sabia que era um golpe arriscado — não podia confiar numa
abordagem tão negligente — e, no entanto, havia algo dentro de mim que
não podia dar o assunto por encerrado sem sequer o tentar, ainda que de um
ângulo ligeiramente diferente. Não iria desperdiçar muito tempo com isto
— era uma tentativa única e tinha de ser feita depressa, sem pensar
demasiado. Fiz uma pausa no trabalho à hora do almoço para comprar em
dinheiro seis produtos de beleza de luxo em diferentes lojas. Comprei uma
série de cremes faciais, um dos quais com extrato de pêssego. Quando
voltei ao escritório, tranquei-me na casa de banho fora de serviço, espalhei-
os no chão e pus-me a trabalhar. O frasco mais caro continha uma máscara
facial feita de pérolas (há alguma coisa que as marcas de hoje não
acrescentem a um produto de beleza para o tornar mais desejável? Há de
chegar o dia em que um diretor de marketing bem-pensante irá sugerir
utilizar antimatéria num sérum noturno e as senhoras ricas de Londres,
Moscovo e Nova Iorque vão gostar imenso) e eu arrisquei apostar que
Bryony iria, se se desse sequer ao trabalho de abrir a caixa, dar especial
atenção ao produto mais caro. Este era o frasco em que eu estava a apostar
tudo. Era como uma árvore escondida numa floresta cheia de outras árvores
— daí os outros produtos prontos a serem empacotados num embrulho
atraente. Tudo coisas boas, mas ela já devia ter experimentado a maior
parte. E não há nada como aliciar uma instagrammer vaidosa com um novo
produto, prometendo um nível de luminosidade nunca visto.
A máscara facial e o creme que continha o extrato de caroço de pêssego
eram fabricados pela mesma marca. Isso era importante para qualquer
investigação futura. Os outros produtos eram uma mixórdia de marcas.
Decantei quatro pingos de creme para o frasco da máscara facial usando
uma pipeta que tinha comprado numa clínica veterinária algumas semanas
antes (para o problema de vista do meu pobre cão. Os amantes de animais
estão sempre loucos para falar de maleitas, e eu tive de me esforçar bastante
para explicar o olho inflamado do meu cão fictício à enfermeira que parecia
achar esta situação completamente fascinante) e agitei o frasco
vigorosamente. Ao abri-lo outra vez, cheirei o líquido. Se cheirasse a
pêssego, poderia estar a meter-me num sarilho. O cheiro era idêntico a
qualquer vulgar loção facial. Doce, mas não reconhecivelmente frutado.
Precisava de me sentir um pouco mais segura, e acrescentei uma gota de
essência de amêndoa para bolos só para me certificar. É uma coisa que se
sobrepõe a qualquer outra coisa numa receita. Mais uma agitadela e voltei a
cheirar. Sucesso. O líquido fazia-me lembrar uma pastelaria, quente e
reconfortante, o que, em vista dos meus objetivos, parecia agradavelmente
inapropriado.
Limpei cuidadosamente o frasco com um toalhete de bebé e atirei o
extrato de pêssego para o lixo. Os produtos foram então para uma caixa de
cartão simples enfeitada com papel de seda. Num cartão apenso lia-se
apenas «Bryony, espero que gostes destas delícias — a máscara facial de
pérolas é um sonho! Beijinhos». Eu estava ansiosa por dizer que era de
MORRER, mas não me permiti ser tão contundente. Depois de embrulhar
tudo, escondi a caixa num saco debaixo da minha secretária e tentei
esquecer tudo aquilo enquanto o dia de trabalho corria lentamente.
Normalmente, não era pessoa para sair às cinco e meia em ponto. As
pessoas que o fazem são geralmente os colegas mais chatos e insuportáveis
— daqueles que fazem reuniões intermináveis e inconsequentes e que
teimam em estabelecer um sistema adequado para o frigorífico comum, mas
que se recusam a envolver-se seriamente no trabalho. São também os
empregados mais difíceis de despedir, pois costumam ler atentamente todos
os requisitos do contrato e sabem exatamente como passar entre os pingos
da chuva. E não é que isso tenha importância, mas este tipo de colegas em
particular nunca são carismáticos e atraentes. Não saem às cinco e meia
para ir mudar de roupa a caminho de uma festa empolgante.
Mas, às cinco e meia em ponto, arrumei as minhas coisas e saí,
referindo vagamente uma consulta médica, para o caso de alguém franzir o
sobrolho. Ninguém o fez. As pessoas entravam e saíam a toda a hora para
os seus compromissos, e não era raro alguns membros do pessoal tirarem
«horas de cuidados», em que se ausentavam do escritório para uma sessão
de branqueamento dos dentes ou de depilação das sobrancelhas. «É ótimo
para a interação com os clientes», costumava dizer a minha chefe, com o
que não pretendia mais do que continuar a ir meter botox durante as horas
de expediente.
Consegui chegar ao ponto de entrega de encomendas cinco minutos
antes de fechar. Enviei o embrulho com correio registado, partindo do
princípio de que seria a governanta dos Artemis a recebê-lo, e não dei
quaisquer informações sobre o remetente. Ela não iria procurá-las —
pessoas como Bryony recebem centenas de caixas com presentes por
semana. Enquanto saía para a luz evanescente do outono, a campainha da
loja tocou enquanto a porta se fechava atrás de mim. Eu tomei isto como
um sinal. Não iria verificar as redes sociais de Bryony na esperança de a ver
sucumbir. Tinha tentado o meu golpe, e agora já não estava nas minhas
mãos.
***
Passei o mês seguinte ocupada no trabalho. Estava a aproximar-se a
época dos saldos, e eu estava ocupada a organizar as campanhas nas redes
sociais e a certificar-me de que os e-mails de desconto eram enviados aos
clientes que se haviam inscrito para os receber. Sabia que 95 por cento
ficavam por ler, esquecidos nas caixas de spam onde iam parar. Era um
exercício inútil, mas os dados eram inestimáveis, diziam-nos. O tom das
mensagens que enviávamos era suficiente para tornar o mais fervoroso
comprador num anticonsumista encartado. A palavra «Fri-yay» tinha sido
usada num e-mail antes de eu a apagar. E quando não estava a tentar
preservar a língua inglesa e a minha própria dignidade no escritório, estava
à procura de novas maneiras de matar Bryony.
Tal como acontecera com todas as mortes anteriores, parecia importante
que esta tivesse lugar enquanto Bryony estivesse a fazer algo de normal
para ela. Isso conferia mais credibilidade à hipótese acidental e requeria
menos planeamento elaborado. Eu quero ver estes crimes executados —
bem executados, sim, mas não sou uma adepta entusiástica do homicídio,
empenhada em investigar as formas mais horrendas e fascinantes de matar.
Um bom crime exige uma certa arte. Admito que fico impressionada pelo
trabalho a que algumas pessoas se dão, mas não quero ser apanhada em
planos cada vez mais extravagantes que ainda acabem comigo a pendurar
uma tirolesa no centro de Londres para decapitar alguém com uma espada
de samurai para maior efeito dramático.
Depois de muitas falsas partidas, surgiu uma potencial oportunidade.
Existe um homem, de que alguns de vocês já terão ouvido falar, que se
tornou um esteio da indústria do bem-estar. Chama-se Russell Chan e fez
milhões com um programa nutricional chamado «Manifestar e manter». Se
ainda não ouviram falar neste disparate, poderiam passar mil anos a tentar
adivinhar o que é que esta empresa faz com base no seu nome, por isso vou
poupar-vos o trabalho. A sua marca, ou «inovação», como ele lhe chamou
numa conferência TED a que eu assisti durante três minutos antes de decidir
que preferia cortar os pulsos, consiste essencialmente em duas coisas. A
primeira é fazer-nos copiar afirmações positivas em pequenos papeluchos
coloridos que ele nos enviará assim que nos inscrevermos e que deveremos
depois afixar pela nossa casa. A segunda é dizer-nos para fazermos 85
minutos de exercício por dia e dar-nos receitas de sumos todas as manhãs.
A criatividade requerida para apresentar diferentes combinações de fruta e
vegetais 365 dias por ano (não se pense, de maneira alguma, que se pode
abrir uma exceção no dia de Natal) é surpreendente — e por surpreendente
quero dizer um desperdício de um diploma de um nutricionista qualquer. As
notas de afixar escondem que isto é um plano de dieta. O download da
aplicação MM custa 8,99 libras e ainda temos de pagar mais 4 paus por mês
para o resto da vida. Há pessoas que tentaram cancelar as subscrições, mas
nunca conheci ninguém que o tivesse conseguido. Mas a maior parte das
pessoas não o faz, porque os idiotas ADORAM Russell Chan. Parecem
incrédulos quando perdem peso, como se tivessem acabado de descobrir
uma ciência oculta e não um plano de substituição de refeições que elimina
todas as opções calóricas. Falam repetidamente da confiança que retiram de
(presumo eu) citações inspiradoras geradas por computador que colam pelas
paredes das suas casas desprovidas de livros, onde, presume-se, lutam pelo
espaço entre a placa de madeira recuperada que diz «Amor» e os cestos de
plantas rosa-gold.
Eu admiro Chan. É um monstro terrível, mas não faz mais do que
extorquir dinheiro a quem quer. Abandonou o mundo financeiro bem antes
da grande queda da Bolsa há alguns anos, e entrou imediatamente para o
mercado do bem-estar — usando o cérebro do banqueiro para especular
com o que as massas desejam num tempo de insegurança financeira. E fez
milhões com isso — apostando, e bem, que a multidão iria querer tratar-se
de maneiras modestas, mas reconfortantes, encontrar paz de espírito em
banalidades e, ponto crucial, melhorar o aspeto. Uma pessoa já não
consegue contrair um empréstimo para a casa, mas pode usar leggings
lustrosas com essa confiança recém-descoberta.
Por isso, a ideologia MM está disponível para as massas, mas assenta
num aspeto exclusivo. Chan sabia desde o primeiro momento que o
esquema só resultaria se as pessoas bonitas representassem para ele. Todos
os anos, por volta de maio, convida 100 das personagens mais influentes
para o seu retiro privado em Ibiza, onde dá um fim de semana de aulas de
exercícios, workshops de sumos e seminários de positividade. Todos os
anos, sem exceção, o Daily Mail e outras publicações sempre atentas às
celebridades puxam incansavelmente o lustro às contas de Instagram das
ditas personagens, fazendo capturas de ecrã das pessoas bonitas a fazer
saudações ao Sol em piscinas infinitas, abraçadas umas às outras num
emaranhado confuso de membros bronzeados subnutridos e falando
efusivamente do quanto aprenderam sobre a sua própria alma naquela visita
de três dias. Na última noite, há uma festa onde, de acordo com uma
rapariga minha conhecida que trabalha em relações-públicas de produtos de
beleza, são misturadas doses copiosas de álcool e drogas com os batidos de
fruta, deixando toda a gente desfigurada, e onde não são permitidos
telefones. Suponho que os atos de arromba desta última noite funcionam
como uma compensação por todos os passeios fastidiosos que as pessoas
foram obrigadas a fazer ao longo dos dois dias anteriores.
Adivinhem quem é que iria a este retiro...
Soube dos planos de Bryony porque a mãezinha chata da minha conta
de Instagram segue quase toda a gente que ela segue e eu vejo tudo. Meses
antes já Chan se dedicava a aliciar os seus oito milhões de seguidores com
fotografias do projetado fim de semana em Ibiza, utilizando o duvidoso
hashtag #hedonismolimpo sob as fotografias dos tapetes de ioga
cuidadosamente alinhados no terraço e vídeos de empregados com fatos de
linho branco a aparar a relva. Por baixo de uma imagem de balões de néon
atados a uma árvore, Bryony tinha publicado um comentário: «Ansiosa por
me juntar à minha tribo espiritual».
Meti mãos à obra. O fim de semana propriamente dito seria inacessível,
mas a festa parecia ser algo em que eu poderia tentar trabalhar. Fiz uma
pesquisa para tentar descobrir quem é que tinha organizado a última festa
— não era impossível, visto que toda a gente identifica toda a gente nas
redes sociais como forma de obter descontos por trabalho genuíno. Como
seria de esperar, o evento foi organizado por uma empresa sediada em
Watford chamada Bespoke Bangers. A verdadeira onda balear. Eu tinha
feito serviço de atendimento em muitos eventos quando tinha 20 e poucos
anos e sentia-me confiante para servir um grupo de modelos cheios de
cocaína. Havia um formulário na página deles e eu preenchi-o, enfatizando
as muitas festas exclusivas (e imaginárias) em que já tinha trabalhado.
Sublinhei que iria estar a trabalhar em Ibiza por volta da data da festa, e
expliquei que tinha ouvido dizer que tinham clientes na ilha e que estava à
procura de turnos extra. Alguém chamado Sasha respondeu passadas 24
horas, convocando uma videochamada que eu assumi que serviria para se
certificarem de que eu era suficientemente atraente para o evento. Por mim,
tudo bem — tinha um nome fictício para me encobrir, e não iria cometer a
estupidez de enviar uma fotografia que poderia ser facilmente recuperada.
Maquilhei-me para a conversa, escurecendo as sobrancelhas e aplicando
batom vermelho, duas coisas que alteram subtil, mas eficazmente, o rosto.
Sasha ligou uma hora e meia mais tarde do que o combinado, o que fez com
que eu tivesse de saltar de um autocarro e entrar à pressa num café para
atender a chamada. Foi brusca e determinada, pedindo-me para fazer alguns
turnos em Londres ao longo da semana seguinte para terem a certeza de que
eu seria uma boa colaboradora para a empresa. A chamada demorou menos
de cinco minutos, o que confirmou a minha ideia de que o seu principal
propósito era avaliar a minha aparência. Acordámos que eu iria trabalhar
num evento no Shard na terça-feira seguinte. Os pormenores eram vagos,
mas era um evento de um YouTuber bem conhecido que estava a lançar um
autobronzeador. Eu devia lá estar às cinco da tarde e usar calças pretas —
ser-me-ia dada uma camisola.
«Não olhe para os convidados a não ser que lhes esteja a oferecer uma
bebida — ninguém quer ver os olhos deslumbrados de uma empregada
arrepiante», dissera Sasha enquanto escrevia no teclado, pondo em prática a
sua própria recomendação em relação ao contacto visual.
O evento correu calmamente. Tive de sair a correr do trabalho, era mais
um dia a sair mais cedo, mas que mais podia eu fazer? A sala era banhada
por uma luz aveludada, com arranjos de flores espalhados a toda a volta e
sacos com guloseimas enfiados debaixo das mesas pejadas de bolachas com
o logótipo da empresa em glacé. Estava longe de estar cheio, mas toda a
gente estava a tirar selfies avidamente com o anfitrião, que parecia satisfeito
com os convidados entretidos a fazer vídeos em direto da parede de balões.
Eu servi o champanhe e mantive a cabeça adequadamente inclinada para
baixo. Não é que reconhecesse uma única destas pessoas. A previsão de
Warhol sobre o futuro da fama foi completamente ultrapassada pela
ascensão das personalidades online. Um quarto de hora parece
singularmente estranho quando vemos estes miúdos de cabeça oca a
tentarem desesperadamente fazer com que um vídeo se torne viral de manhã
à noite.
As reações foram obviamente do agrado de Sasha, e eu fui recrutada
para mais três eventos em Londres. Eram pagos em dinheiro, o que foi um
alívio, e geralmente acabavam ao fim de duas horas — a juventude londrina
não se alonga por aí além, preferindo ir para casa aplicar uma máscara
facial ao mesmo tempo que assiste à última novidade da Netflix.
Um mês depois, recebi uma mensagem de Sasha a dizer que tinha três
eventos programados em Ibiza em que eu podia trabalhar. Enviou as datas, e
uma delas coincidia com a última noite do retiro de bem-estar. Não havia
mais informação, mas eu sentia-me bastante confiante de que não haveria
duas festas a acontecer na mesma noite organizadas pelos Bespoke Bangers.
Respondi imediatamente, confirmando a minha disponibilidade, e marquei
voos e alojamento para a minha estadia em Ibiza nessa noite. Não iria
afastar-me muito da minha ideia original. Bryony gostava de beber, e uma
festa tão hedonística como a da MM iria provavelmente tornar-se
rapidamente confusa. Nada como um jejum de sumos de três dias para uma
pessoa ficar embriagada com um cocktail. Algumas gotas de puré de
pêssego num copo e ela acabaria estendida na pista de dança ao fim de
alguns minutos. Teria um grupo de gente obcecada com a saúde à volta
dela, mas eu era capaz de apostar a minha própria vida que nenhum deles
teria preparação médica para a ajudar. Tinha seis semanas de espera pela
frente.
Só que afinal não foi preciso, porque Bryony morreu nessa mesma
noite.
***
Nem sequer soube de nada até às oito da noite do dia seguinte. Por mais
que sejamos bombardeados com notícias durante todo o dia, é incrivelmente
fácil ignorar tudo se nos acontecer uma coisa tão simples como
esquecermo-nos de carregar o telemóvel. Eu estava fora do escritório nessa
quarta-feira, um dia de formação destinado a «empoderar as mulheres nas
empresas». Era obrigatório, o que dava a entender que tinha mais a ver com
o aprofundamento das recentes alegações de assédio sexual contra um chefe
de equipa do que com a promoção das mulheres nas empresas. Ao fim de
oito horas passadas em sessões em que 14 de nós nos sentávamos num
círculo e nos confrontávamos com cenários de trabalho umas às outras,
esquivei-me ao convívio no final e precipitei-me para o metro. O meu
telefone estava sem bateria, por isso passei a viagem a ver um jovem casal a
discutir se o seu êxito em manter uma planta viva em casa significava se já
estavam ou não prontos para ter um cão. Ela revirava muito os olhos, e ele
ainda desviava mais o olhar. Fiquei preocupada com aquele cão imaginário.
Até tive um bocadinho de pena da planta.
Enquanto saía da estação do metro, peguei num Evening Standard e
enrolei-o, enfiando-o na mala. Vinte minutos depois estava em casa, e fui
desembrulhar a comida que tinha comprado na loja de alimentação saudável
do bairro e ligar o aquecimento. Foi só então que tirei o jornal da mala e me
sentei na mesa da cozinha. O artigo principal era uma coisa tipicamente
aborrecida sobre a escassez de habitações sociais, que saltei imediatamente,
pois toda a gente sabe que o Standard só faz destaques com este tipo de
notícias para que o resto do jornal possa ser preenchido com a divulgação
de uma nova casa de gelados de dez paus em Kensington ou com uma peça
elogiosa sobre uma aula de ginásio onde são utilizados pesos de ouro. Ao
lado, estava uma pequena fotografia de uma rapariga, uma selfie tirada de
um ângulo oblíquo, com 75 por cento de boca. Senti o habitual silvo da
adrenalina a correr-me pelas veias. A adrenalina aumenta os nossos níveis
de energia até 100 ao mesmo tempo que congela o tempo. Tudo fica mais
lento, tudo se torna difuso, as nossas reações ficam embotadas. Eu percebi
instintivamente para quem estava a olhar, mas o nevoeiro que tinha
envolvido o meu cérebro impediu-me de registar plenamente o que estava a
acontecer por um breve instante. «Herdeira morta aos 27». Abri o jornal, e
ali, na página 3, estava outra fotografia dela, desta vez muito mais nova, a
posar entre os pais num evento qualquer.
Bryony.
Os pormenores eram escassos. Tinha sido encontrada inconsciente no
seu quarto às sete e meia da tarde por um membro do pessoal (leia-se,
empregada doméstica). Foram chamados os paramédicos, mas ela foi dada
como morta no local. Este artigo referia a morte trágica da sua mãe escassos
meses antes, sugerindo a hipótese de suicídio. Eu sabia que isso era um
disparate. Bryony nunca se teria suicidado numa situação de luto. Ela não
atingia esses níveis emocionais, para ela tudo era tédio, escárnio ou desejo.
Só coisas básicas. O representante da família apelara à privacidade naquele
momento difícil, e para além das coisas básicas sobre Simon e a sua vida
dourada, não eram dadas mais informações.
Eu passei uma hora frenética a consultar o Instagram, sites de notícias e
blogues de mexericos. A sua última publicação tinha sido feita às quatro da
manhã, uma fotografia dela embrulhada numa manta a olhar para um cão
salsicha (felizmente, esta era apenas uma partilha intitulada
#ONDEESTÁFENDI, que estava sentado ao seu lado). Na legenda, lia-se
«quando o meu bebé quer mimo». Por isso não havia quaisquer indicações
para ajudar a imprensa a desenvolver a sua narrativa trágica da menina rica.
Noutras páginas, alguns amigos do Instagram professavam o seu choque
com emojis de mãos a rezar e caras a chorar. Havia mensagens com RIP
espalhadas por toda a parte, uma expressão que sempre detestei. Descanse
em paz. Por muito viva ou engraçada ou ansiosa por viver que a pessoa
estivesse. Agora descansa. Um comentário genérico e sem sentido. Mas não
havia pormenores, nada de palpável. Onde estava Simon? Estaria em casa
quando aconteceu ou estaria fora com uma nova conquista, a jantar num bar
para membros exclusivos, a fechar um negócio qualquer? Como é que ele
soube? Teria sido a empregada a telefonar-lhe ou a polícia? Sentir-se-ia
sozinho, sem a sua mulher, sem a sua filha? A sua única filha reconhecida,
com os seus pais desaparecidos. O seu irmão morto. Teria já alguma vaga
suspeita do que se estava a passar? Como poderia tê-la? Tinha conseguido
negligenciar a minha existência da mesma maneira que lidava com qualquer
outro pormenor indesejável da sua vida privilegiada.
Mas eu também me sentia sozinha. Em todas as outras mortes, tinha
sido eu a precipitar as coisas, estivera lá para escutar o último fôlego, sentia
que tinha as coisas sob controlo. Agora, estava como toda a gente que tinha
pegado num jornal. Não sabia nada e não podia contar a ninguém. Pela
primeira vez em muito tempo, desejava ter a minha mãe comigo. Queria
que ela soubesse que a sua filha era a que estava viva, que estava a fazer
isto por ela, que nunca iria permitir que a sua vida tivesse sido descartada e
esquecida por esta gente. Mas não iria ser uma dessas pessoas que julgam
que conseguem sentir os seus entes desaparecidos sorrir-lhes do alto, e não
iria deixar-me arrastar para um ritual de autocomiseração lamechas. Abri
uma garrafa de vinho e pus água a correr para um banho. Bryony estava
morta, os pormenores podiam esperar. O seu desaparecimento significava
muito mais do que a simples supressão de mais um nome da minha lista. Só
faltava mais um. Meu querido pai, estava pronta para ir atrás de ti.
 
Capítulo 14
 
Escrever tudo isto fez-me rir. Que final tão dramático e pleno de
suspense. Mas eu tinha acabado a história do falecimento de Bryony às duas
da manhã, no meio de um silêncio e escuridão totais. Nem sequer ouvia
Kelly ressonar. Estava um pouco nervosa quando acabei, recordando o
momento em que me dei conta de que me restava um único alvo. Tinha
estado tão perto e tinha sido tudo tão monumental. Dos confins desta cela,
quem me dera ter usufruído um pouco mais desses momentos. Devia ter ido
dançar depois de cada crime, ou ter comprado joias preciosas por cada alvo
que tivesse assinalado com uma cruz na minha lista. Sim, eu tinha uma lista,
já vos tinha dito? Uma lista física, quero eu dizer. Estava escrita a lápis no
verso de uma fotografia minha com a minha mãe. Os Latimer tinham-ma
dado no Natal, pouco depois de eu me ter mudado para a sua casa. Não foi
uma surpresa por aí além, visto que a fotografia era minha. Mas Sophie
tinha-a encontrado na gaveta da minha secretária e mandado fazer uma
moldura para poder ser convenientemente exposta.
— Tens de ver isto todos os dias, minha querida — disse ela quando
abri o embrulho. — A tua mãe gostava tanto de ti. — É claro que eu já
sabia disto, e não precisava que Sophie mo viesse dizer. Para além disso,
não estou certa de que Sophie alguma vez tivesse falado realmente com a
minha mãe, para além de breves combinações sobre encontros para brincar
(que tinham sempre lugar em casa dos Latimer, por ser «muito mais fácil
para os miúdos brincarem com este espaço todo», dizia ela a Marie), por
isso, a sua insistência em me recordar constantemente que eu tinha sido
muito amada costumava tornar-se ligeiramente irritante. Jimmy costumava
revirar os olhos sempre que Sophie se punha a cantarolar como Marie teria
ficado orgulhosa dos meus resultados nos exames ou dos meus «excelentes»
bolinhos com cobertura. Graças a Zeus por Jimmy.
Mas era uma moldura bonita, e eu pendurei-a sobre a minha cama em
casa dos Latimer. Quando saí, ficou sempre exposta onde eu a pudesse ver
quando me levantava. Quando estava a planear como matar Kathleen e
Jeremy, tinha-a tirado da parede e pegado nela, olhando por momentos para
a cara de Marie, perguntando-me o que é que ela acharia das minhas
intenções. Provavelmente, teria ficado horrorizada e angustiada, devastada
por eu ter decidido passar a minha vida a tentar vingá-la. Mas ela não estava
aqui para me dizer isso, por isso não tinha de dar demasiada importância à
sua opinião. Para além disso, estava a fazer isto também por mim. Marie
estava morta e enterrada. Em vida, nunca quisera corrigir os males que lhe
foram infligidos. Ambas sofremos porque ela era demasiado fraca para
exigir o que era justo. Eu tinha acabado como um extra numa família que
não era a minha, sem qualquer amparo ou rede de segurança. Sofrendo o
golpe de perder a minha mãe e de ver o meu pai desfilar com a sua família
legítima pelos quatro cantos da cidade. Se eu queria repor o equilíbrio, ela
não teria pelo que protestar.
Antes de voltar a pôr a fotografia na parede, tinha tirado o lápis com que
estava a tomar notas e rabisquei os nomes de todos os Artemis que achei
que devia matar nas costas da moldura. As marcas eram suficientemente
ténues para que uma pessoa não desse por elas, a menos que estivesse a
olhar com muita atenção, mas de cada vez que riscara um dos nomes, tinha
inclinado o lápis, passando por cima de cada letra até estas ficarem
completamente rasuradas. Era um marcador pequeno, mas importante. Mas
também podia ter comprado algumas joias.
Depois de ter acabado de contar a história de Bryony e o seu triste
encontro com o sérum de pêssego, adormeci, acordando em pânico quando
ouvi a campainha. Ainda estava a segurar o meu bloco de notas, e Kelly
estava a cirandar pela cela, a entoar uma interpretação horrível de uma
canção dos One Direction. Presumo que o original já fosse bastante mau,
mas o seu timbre tomava-a infmitamente pior. Enfiei o caderno entre o
colchão e a armação da cama e disse bom dia. Arriscar-me a que Kelly visse
o meu trabalho era um erro estúpido e negligente. Fiquei a vê-la escovar os
dentes e aplicar uma base escura demais para o seu tom de pele. Quando
aqui cheguei, surpreendeu-me ver quantas mulheres fazem um esforço para
cuidarem do seu aspeto enquanto estão aqui trancadas, mas agora percebo
melhor. Se não tivermos cuidado, a prisão tenta dominar todas as partes de
nós. Desde coisas tão prosaicas como quantos pares de meias uma pessoa
pode ter, até outras mais íntimas, como mudar as coisas com que sonhamos.
Antes de vir para aqui, tinha sonhos vívidos e surreais quase todas as noites.
Agora, sonho apenas com uma única coisa. Vou a correr à beira-rio com o
vento a soprar atrás de mim e o céu a toda a volta. Não é preciso Freud para
analisar isto. Por isso, um toque de maquilhagem ajuda a equilibrar-nos um
pouco, compreendo. Mas mistura-a melhor, Kelly, é só isso que falta.
Sentia-me bastante confiante de que ela não tinha visto o meu bloco de
notas. O seu comportamento era tão leve e jovial como sempre, e estava a
tagarelar sobre uma visita que iria ter nesse dia.
— Um amigo — disse ela, enquanto aplicava camada sobre camada de
máscara —, mas talvez ele queira algo mais. Não o censuro. — Kelly olhou
para mim através do espelho, e eu percebi que a rapariga estava ansiosa que
eu lhe perguntasse algo mais sobre este visitante. Mas eu não estava com
disposição para ouvir um monólogo ligeiramente desiludido em como ela
era desejável para o sexo oposto, por isso vesti o meu fato de treino, disse-
lhe que esperava que corresse bem e dirigi-me para a biblioteca.
Tenho de acabar de explicar o que aconteceu com Caro, visto que é por
isso que aqui estou, vestida com um fato de treino de poliéster, em vez de
uma coisa gira da MaxMara. É por isso que Kelly é a pessoa mais próxima
de mim, visto que Jimmy não responde às minhas cartas e eu já me dei
conta de que tenho muito poucos amigos. Eu já sabia disso antes, na
verdade, não se pode dizer que tenha passado a minha vida a cultivar essas
relações antes de tudo isto acontecer. Estava possuída, agora apercebo-me
disso. Foquei-me apenas no meu plano para derrubar a família Artemis e
nem sequer tive a previdência de construir uma vida que estivesse à minha
espera quando tudo terminasse. Estúpido, claro está. Contei que Jimmy
estivesse à minha espera quando concluísse os meus crimes, julgando que
ele seria suficiente e que o resto viria facilmente. E a maior parte das
pessoas são terríveis. Burras ou chatas, ou então uma combinação das duas
coisas. Eu não conseguia suportar isso, por isso nunca tentei fazê-lo. A
minha presente situação também não serviu para modificar esta minha
atitude.
Mas Jimmy não foi a presença constante que eu esperava que ele fosse
na minha vida. Dois dias depois de Gemma Adebayo me dizer que eu podia
sair em liberdade, fui acordada por alguém a martelar à minha porta.
Quando a abri, ainda estremunhada, fui imediatamente detida pelo
homicídio de Caro Morton. Fui levada para a esquadra da polícia, desta vez
com menos preocupação com o meu conforto ou bem-estar, e fui acusada.
Nesse dia, enquanto estive sentada durante várias horas com os inspetores,
tudo começou a ficar claro. Jimmy tinha dito imediatamente à polícia que
achava que tinha sido um crime, gritando que eu odiava Caro. Os meus
ciúmes, sugeriu, tinham-me levado a empurrá-la violentamente da varanda,
na esperança de que tudo parecesse um acidente trágico. A outra rapariga
que ficou na festa fez um depoimento a dizer que eu tinha discutido com
Jimmy sobre o seu noivado e que depois pedira a Caro para vir fumar
comigo lá fora. Esta rapariga tímida, que eu depois vim a descobrir chamar-
se Angelica e que era decididamente menos inofensiva do que a sua
aparência frágil poderia dar a entender, foi decisiva na acusação contra
mim. Quem diria que uma rapariga com uma coleção de bandoletes na
cabeça tinha coragem para tanto?
Foi-me recusada a caução, depois de ter sido arrebatadamente defendido
que eu era um risco para a sociedade, o que me fez contorcer a cara de
incredulidade e praguejar alto e bom som, coisa que o juiz não apreciou por
aí além. O advogado que me foi designado, um recém-licenciado
gesticulador que nem sequer lera as minhas notas antes de entrar na sala de
audiências, não fez nada para reverter isto e foi despedido no preciso
momento em que saí do edifício e fui detida.
Foi então que tive o meu primeiro contacto com a prisão. Ao início, foi
um choque terrível. O centro para onde fui enviada era um edifício lúgubre
em betão por detrás de um grande muro no Sul de Londres. Fui revistada,
aliviada das minhas possessões e enviada para uma cela. Estava um frio
horrível e eu passei três dias obcecada a tentar lembrar-me do que é que
poderia ter ou não deixado no meu apartamento que pudesse servir de
indicação à polícia sobre os meus verdadeiros crimes. Visualizei cada canto
da minha casa, caminhando mentalmente pelo apartamento para tentar
recordar-me de alguma coisa que eu tivesse sido sufícientemente
descuidada para deixar à vista. Não conseguia dormir, e a minha cabeça não
parava de distorcer as imagens que eu tentava convocar, levando-me a
tentar de novo uma e outra vez, até acabar a chorar de frustração. Ao
terceiro dia, senti-me mais calma, depois de me obrigar a respirar fundo
durante uma hora. Por esta altura, já estava confiante de que nada me
incriminaria em relação às mortes dos Artemis. Este sentimento foi
reforçado pela convicção de que a polícia não estava à procura de nada que
não estivesse relacionado com Caro, e de qualquer maneira ninguém sabia
da minha relação com os crimes. Tanto quanto lhes era dado pensar, eu
tinha empurrado espontaneamente uma rival amorosa de uma varanda num
acesso de ciúmes. A menos que julgassem que eu era o tipo de pessoa capaz
de manter um diário confessional, quaisquer indícios para isto seriam
escassos. Que ridículo que eu só tenha decidido começar a escrever um
diário profundamente confessional depois de ter caído nas entranhas do
sistema de justiça criminal.
Contratei uma nova advogada, Victoria Herbert, e rezei para que ela
fosse o rottweiler que prometia ser. Um rottweiler com lenços Hermès e
sapatos de salto alto Louboutin. Como eu gostava. Herbert mostrou-se
resolutamente confiante nas minhas hipóteses de ser libertada. Não havia
prova forense contra mim, para além de algum contacto que eu e Caro
tivéramos ao longo dessa noite, e o grosso da acusação baseava-se nos
testemunhos de Angelica Saunders e de Jimmy. Jimmy, a prestar
declarações contra mim... Jimmy, a única pessoa de quem eu
verdadeiramente gostava, a dizer ao tribunal que acreditava que eu tinha
empurrado a sua noiva de uma varanda sem olhar uma única vez para mim
durante o julgamento... Jimmy, retratado no Sun na sexta-feira, a entrar no
tribunal de mão dada com Angelica... Ela com uma horrível saia justa de
fazenda e sabrinas de ballet, parecendo bastante orgulhosa. Jimmy pode ter-
me deixado num estado de completa confusão, mas eu começava a respeitar
o jogo de Angelica.
O júri deliberou durante seis horas. Victoria ficou sentada comigo
durante a espera, que pareceu durar um ano. Quando nos disseram que o
júri estava pronto para pronunciar o veredicto, ela estava excitadíssima,
asseverando-me que uma reviravolta rápida era sem dúvida um bom sinal.
Apesar de toda a sua prosápia, estava completamente enganada em relação
a esta decisão. Culpada, culpada, culpada. A palavra ecoou pela sala do
tribunal enquanto as pessoas suspiravam e um homem gritava qualquer
coisa furiosamente da galeria. Eu fiquei ali, com a mão a subir-me para o
pescoço, tentando não me esquecer de respirar, mas sem conseguir. Olhei
para Jimmy, que estava sentado com a cabeça no ombro de Sophie,
enquanto John lhe afagava o braço mecanicamente. Só Annabelle olhou
para mim, inclinando a cabeça como se me estivesse a avaliar pela primeira
vez.
E foi assim. Fui condenada a 16 anos e levada para Limehouse uma
semana depois. Deixei passar a data para apresentar recurso, paralisada pelo
choque e sem saber o que fazer a seguir. Mas foi então que apareceu George
Thorpe, um homem branco de meia-idade que estava aqui para me salvar
como ele imaginava ser a sua missão especial neste mundo. Tinha
conseguido interpor um recurso, argumentando que havia mais testemunhas
que não tinham sido ouvidas pela polícia na altura.
Eu designei Thorpe com consideráveis custos depois de ter vindo para
aqui, dando-me conta de que Victoria Herbert estava muito mais interessada
em se promover a si própria como cão de ataque glamoroso do que em sê-lo
efetivamente. Apareceu na revista Grazia na sequência do meu caso, mal se
esforçando por renunciar aos elogios e usando a palavra «empoderado»
demasiadas vezes. Os honorários que o meu novo advogado exigiu
tornaram-se possíveis porque ele se ofereceu para me deixar pagar depois.
Eu percebi as suas razões — queria obter alguma notoriedade e eu podia
proporcionar-lha, e de que maneira. Imagino que ele aspirasse a ser
nomeado conselheiro da rainha e achasse que o seu interesse num caso de
homicídio poderia reforçar as suas possibilidades. Era um verdadeiro
artista. Nos muitos julgamentos de personalidades importantes em que
trabalhara, os media reportavam servilmente os seus argumentos, a sua
linguagem floreada, o seu hábito de bater com a mão na mesa enquanto
defendia apaixonadamente os seus clientes. Thorpe tinha uma taxa de
sucesso fabulosa, o que significava que eu podia estar descansada em
relação à sua conta final. Acontecesse o que acontecesse, teria dinheiro
suficiente para o pôr a meu soldo permanentemente assim que deitasse as
mãos ao império Artemis. Mérito de Thorpe, que expôs todas as falhas
possíveis no julgamento, e usou a imprensa para dar destaque a essas falhas,
sabendo que eles não hesitariam em contar o que quer que fosse sobre a
homicida de Morton. Durante o julgamento, tinham-me pintado como uma
rapariga amarga e perturbada, apaixonada pelo seu meio-irmão (coisa que
não era, claro está, mas os tabloides adoram tudo o que tenha um leve sabor
a incesto), mas depois de ter sido condenada era preciso dar outra
perspetiva ao caso. Agora era perturbada, mas já não amarga. A minha
fragilidade foi exagerada — «Ela não tinha mais ninguém, na verdade, para
além de Jimmy» —, e foram impressas imagens de mim onde eu parecia
tímida e vulnerável, em vez de dura e arrogante. A julgar pelas roupas que
eu estava a usar, estas fotografias terão sido fornecidas por antigas colegas
de trabalho, e eu só as trazia vestidas porque era obrigatório. É incrível
como uma pessoa pode ser julgada a partir de uma simples fotografia.
Thorpe pediu a um velho amigo da escola que trabalhava em relações-
públicas que plantasse algumas histórias sobre os problemas mentais de
Caro e foram avançadas algumas sugestões sobre as suas perturbações
alimentares, a sua predileção por festas (leia-se: drogas) e o seu
temperamento. Uma estratégia horrível, na verdade, mas isto não é uma
discussão sobre a ética dos media e, para além disso, eu teria aceitado uma
centena de histórias a darem cabo de Caro se isso favorecesse a minha
causa. Mesmo que não favorecessem a minha causa, tê-las-ia lido na
mesma.
Faz agora 14 meses que estou a apodrecer em Limehouse, metade dos
quais a aguardar a resposta ao meu recurso. Ao princípio, quando o designei
meu advogado, chamava George Thorpe diariamente, e escrevia-lhe longas
cartas rogando-lhe que voltasse a explorar a varanda ou obrigasse o
terapeuta de Caro a atestar o seu estado mental. Estava ansiosa por sair num
espaço de alguns dias, não de semanas, e ficava furiosa de cada vez que o
advogado me dizia para ser paciente. Quando se tomou claro que iria ficar
aqui por uns tempos, caí numa espécie de depressão. Não sou uma pessoa
de ficar deprimida. Às vezes, sinto um pânico subir-me até ao pescoço e
sinto que preciso de fugir, mas nunca compreendi as pessoas que ficam
tristes ao ponto de renunciarem à vida. Talvez a prisão nos torne a todos
mais empáticos, ou talvez seja natural uma pessoa ficar deprimida num sítio
com luzes fluorescentes e chuveiros comuns. Comecei a dormir mais e,
durante algum tempo, sentia-me como se o meu cérebro estivesse a nadar
em melaço. Os meus pensamentos abrandaram, parei de fazer exercício e,
num dia particularmente soturno, assisti à série Emmerdale Omnibus até ao
fim, com Kelly a explicar-me constantemente quem era toda a gente, sem
ficar com vontade de lhe martelar a cabeça contra a parede uma única vez.
Um dia, ao fim de oito meses cá dentro, acordei e fiz 500 flexões.
Estava farta desta atmosfera alienígena e com medo de me afundar nela
para sempre se não me obrigasse a trepar daqui para fora. Por isso iniciei
um regime rigoroso, acordando todos os dias à mesma hora, puxando pelo
meu corpo cada vez mais com exercícios na cela e caminhadas à volta do
pátio. Passava horas na biblioteca a ler qualquer coisa que me ajudasse a
tirar a cabeça deste sítio, e voltei a incomodar o meu advogado, mas desta
vez com mais foco.
Agora estou perto de saber a decisão sobre o meu recurso, e a escrever
estas coisas para não pensar demasiado nisso. Estou confiante de que irei
ser libertada e já escrevi um discurso para ler à saída do tribunal.
Acho que adotei o tom certo — magoada, mas magnânima — e vou
usar maquilhagem suficiente para ficar atraente, mas não tanta que dê a
impressão de que estive 14 meses a divertir-me. Quero que sejam capazes
de ver as minhas olheiras escuras e que percebam imediatamente que estive
quase a sucumbir (mas não completamente!) no meu calvário. Irei falar de
como nos devemos lembrar de que, apesar do trauma do encarceramento, há
uma outra vítima em tudo isto. «Caro», direi, olhando diretamente para as
câmaras. «Perdi quase dois anos da minha vida para esta injustiça, mas Caro
perdeu a sua vida toda nessa noite, e não nos devemos esquecer disso.»
Talvez acabe a anunciar que irei estabelecer um programa de
aconselhamento para prisioneiras do sexo feminino com perturbações
alimentares em sua honra, na esperança de assim poder ajudar nem que seja
uma só mulher vulnerável. Ela iria detestar que lhe chamassem vulnerável.
A propósito, não creio que a minha confiança em vir a ser libertada seja
deslocada. A polícia, com a ajuda da ignóbil Angelica, limitou-se a decidir
que tinha sido um crime e não fez nada para testar a sua suposição. Não
posso declarar-me completamente inocente em todas as áreas da minha
vida, mas neste caso sou verdadeiramente vítima de um enorme malogro da
justiça. Que caminho tão tortuoso para percorrer. George Thorpe viu
imediatamente como o caso tinha sido mal conduzido, e expôs falhas em
quase todas as fases do processo. Isto poderia bastar, e bastou certamente
para garantir que o recurso fosse aceite, mas não era uma fórmula mágica.
Isso só chegou há poucas semanas, mas é suficiente para quase garantir que
a minha condenação será anulada. Thorpe tinha-me vindo visitar para uma
reunião há muito marcada, e eu não estava à espera de quaisquer notícias
importantes. Mas assim que o vi entrar percebi logo que tinha acontecido
algo de relevo. O pescoço dele estava vermelho, e parecia elevar-se-lhe em
direção ao rosto enquanto ele caminhava resolutamente em direção a mim
na sala de visitas, esbarrando impacientemente pelas outras pessoas, com o
seu longo casaco de fazenda a esvoaçar atrás de si. Era, disse ele, o
resultado de dois meses de investigações incansáveis por parte da sua
equipa.
— Na noite em que a Ms Morton teve a sua infeliz queda, a polícia fez
inquirições em todos os outros apartamentos do bloco. — Aqui, puxou de
uma lista das outras propriedades no edifício. — Há cinco apartamentos em
cada piso, dispostos de forma quase pentagonal, mas só três deles dão para
os jardins, ao passo que os outros dois dão para a estrada. O apartamento da
Ms Morton era, das três propriedades que davam para o jardim, o que ficava
no meio. Os vizinhos da direita são um casal na casa dos 60 anos que estão
no prédio há 30 anos, muito antes de os profissionais de grandes
rendimentos terem começado a comprar em Clapham, e estavam em casa na
noite do incidente. — Thorpe nunca usava a palavra morte quando podia
encontrar uma descrição mais delicada.
— Eles estavam habituados às festas da Ms Morton e, talvez por isso,
mostraram uma notável falta de simpatia para com o seu trágico acidente.
Foram muito claros quanto a não terem visto nem ouvido coisa alguma
porque foram para a cama às dez da noite munidos de tampões nos ouvidos.
— Thorpe franziu o sobrolho, mas eu percebia muito bem como devia ser
aborrecido ter aquela rapariga privilegiada como vizinha. — A polícia
tentou fazer inquirições no apartamento à esquerda da casa da Ms Morton, o
número 22, mas não houve resposta nem nessa manhã nem mais tarde nesse
mesmo dia. Investigaram um pouco mais o apartamento e os proprietários,
mas foi-lhes dito pela empresa do condomínio que os proprietários viviam
no estrangeiro e nunca estavam no país, por isso a polícia deixou as coisas
por aí. — Usou a sua caneta de tinta permanente dourada para bater no
papel à sua frente. — Isto foi uma ENORME negligência, mas
deploravelmente típica das nossas forças policiais. A razão por que não
vimos isto mais cedo é porque o relatório dá a entender que foram
estabelecidos contactos com os proprietários do n.° 22 e que tinham sido
dadas garantias de que eles não se encontravam no país. Não tínhamos
razão nenhuma para duvidar de que a sua anterior advogada tinha
investigado isto exaustivamente, mas um tipo espertalhão do meu escritório
esteve a rever os relatórios da noite em questão e descobriu que ela não
tinha procurado mais informações no apartamento do lado. — Eu pensei
novamente nos saltos altos vertiginosos de Victoria Herbert e desejei
ardentemente que ela caísse de umas escadas rolantes com eles. Talvez eu
pudesse dar uma ajudinha a que tal acontecesse quando saísse deste lugar.
Thorpe olhou para mim com um ar inquiridor e eu restituí-lhe
imediatamente a minha atenção. — Foi aqui que as coisas se tomaram
interessantes. Este nosso amigo, um membro da minha equipa, como eu
estava a dizer, fez algum trabalho de sapa e descobriu que o apartamento
está registado no nome de uma empresa sediada nas Ilhas Caimão. Sabe o
que é uma empresa offshore, Grace? — Eu revirei os olhos e segui a
explicação rapidamente com um leve sorriso, enquanto lhe asseverava que
sim, que sabia o que era. Que paternalista idiota. — Bom, segundo a atual
lei do Reino Unido, as entidades estrangeiras podem comprar propriedades
aqui sem revelarem quem são. É escandaloso, claro está, e um sistema que
permite toda a espécie de negócios obscuros, sobretudo lavagem de
dinheiro, claro está. O governo está a planear obrigar estes proprietários
anónimos a revelarem as suas identidades, mas é complicado e
provavelmente irá levar algum tempo.
Eu interrompi-o.
— Muito bem, acho que já ouvi o suficiente sobre leis prediais. O que é
que ele descobriu então, esse seu colega?
Ele clareou a garganta e pareceu bastante sentido, mas isso poderia
muito bem ser aquela falta de expressão característica dos homens finos,
por isso era difícil de dizer.
— Bem, tem sido um trabalho árduo, como eu dizia. Uma rede
intrincada. O David, é como se chama o meu associado, passou dois meses
a trabalhar nisto, a tentar estabelecer contacto com a empresa, mas um
número de telefone nas Ilhas Caimão que não funciona não serve de muito.
Por vezes, estas empresas nem sequer têm um escritório verdadeiro no
local, limitando-se a arrendar uma sala para terem uma morada. Por fim,
contratou um investigador que lida com este tipo de coisas para investigar
quem são os donos da empresa e onde estão.
Eu estava a começar a ficar impaciente, e a hora de visita estava a
escoar-se rapidamente.
— Com todo o respeito, George, contratei-o para tratar disto tudo e
parece-me que está a fazer um excelente trabalho, mas uma pessoa às vezes
não precisa de saber com que ingredientes é feito o chouriço, e eu tenho
vários tratamentos de spa seguidos marcados para esta tarde, está a
perceber?
— Sim, certo, desculpe. Bem. Bem. Finalmente, o David, após muitas
pistas falsas e informações abafadas, encontrou os donos do apartamento.
Vivem em Moscovo e não são propriamente solícitos a responder aos e-
mails, por isso ele foi lá na semana passada e entrou em contacto com eles
na quinta-feira. Explicou-lhes a nossa situação e perguntou-lhes se havia
alguma maneira de eles poderem ajudar — uma mulher a dias que pudesse
ter estado no apartamento, por exemplo, ou uma câmara de circuito fechado
de televisão Era uma aposta arriscada, claro, mas valia a pena tentar. E sabe
que mais? — Thorpe parecia tão contente como um menino de escola. —
Disseram ao David que tinham uma série de câmaras! Disseram que as
tinham em todas as suas propriedades. O David mal conseguiu manter a
suposta calma e profissionalismo quando lhe disseram que tinham uma na
varanda, escondida atrás de um pequeno arbusto. E tinham guardado as
fitas?, perguntou o David. Sim, responderam os russos. Tinham tudo
guardado numa base de dados, claro está. Disseram que era melhor assim,
embora não tenham explicado porque é que era melhor assim. — Thorpe
parou para recobrar o fôlego, enquanto eu sustinha a respiração. — O David
tem uma cópia, Grace. Ele viu as imagens e elas irão chegar ao escritório
assim que tiverem sido verificadas por um perito. Não se vê a varanda toda,
mas vê-se o suficiente: a Grace não está em cena quando a Caro se curva
para a queda final.
Quase me atirei para o chão de alívio. Um sentimento como o do Sol a
aquecer-nos o corpo no primeiro dia de verão a envolver-me o corpo, e
agarrei a mão de Thorpe sem pensar no que estava a fazer.
— Obrigada. Obrigada. Não sei o que é que devo dizer, mas obrigada. E
ao David. E aos russos. Obrigada. — Ele pareceu satisfeito, com um rubor a
subir-lhe uma vez mais pelo rosto.
— Bem, fizemos o nosso trabalho e são muito boas notícias. Não a
posso libertar hoje, infelizmente, mas a Grace só vai ficar aqui mais duas ou
três semanas, e não restam dúvidas de que estas filmagens vão exonerá-la
completamente. — A campainha tocou. Ele olhou para o relógio e juntou os
seus papéis. — Entrarei em contacto consigo assim que tivermos notícias.
Enquanto isso, mantenha-se firme. E guarde silêncio sobre tudo isto até
estar oficializado.
Agradeci-lhe outra vez e apertei-lhe a mão. Enquanto se encaminhava
para a porta, George Thorpe voltou-se para mim e perguntou-me, parecendo
um tanto embaraçado:
— Vocês têm mesmo um spa aqui dentro?
***
E foi assim, como se costuma dizer. Voltei para a minha cela com os
punhos cerrados de excitação, incapaz de me concentrar no que estava a
fazer ou para onde ia. Kelly estava sentada na cama de baixo do beliche,
usando uma linha para depilar as sobrancelhas e a cantar canções de
Beyoncé numa escala que nem a própria senhora devia conhecer.
— Estás branca que nem cal, companheira — disse ela, levantando os
olhos para mim. — Más notícias do advogado?
Eu contei-lhe o que Thorpe tinha revelado. Estava demasiado excitada
para não o fazer, toda a minha pose desaparecera. Era estúpido contar a
Kelly o que quer que fosse, na verdade, mas que mal poderia fazer agora?
Ela foi genuinamente amorosa, segurando-me na mão e oferecendo-se para
me pôr em contacto com uma amiga dela no Angel que arrendava quartos
sem exigir referências. Eu tinha conseguido conservar o meu apartamento
enquanto aqui estivera, foi um sacrifício, mas era importante para mim
saber que havia alguma coisa à minha espera quando saísse, apesar de saber
que não iria continuar a ser a minha casa por muito mais tempo. Quando o
dinheiro chegasse, iria querer subir a fasquia o mais cedo possível. E
mesmo que não quisesse, nada me faria arrendar um quarto a nenhuma
amiga desonesta de Kelly. Nada era assim tão desesperado na minha vida.
Ela puxou do seu telefone secreto e começou a escrever, presumivelmente a
procurar alertar a sua amiga senhoria de bairro de lata para a possível
chegada de uma nova inquilina antes de eu ter tempo de a dissuadir. Eu só
esperava que a sua oferta não significasse que ela estivesse convencida de
que a nossa relação iria continuar no mundo lá fora. Kelly era uma lapa de
que eu já tinha dificuldade em me libertar aqui dentro. Se ela tivesse
liberdade de viajar e de usar um telemóvel, eu estaria completamente à sua
mercê. As visões dela a aparecer em minha casa com máscaras faciais e
uma garrafa de vinho barata começaram a formar-se ameaçadoramente no
meu espírito. Não era bem essa a nova vida que eu tinha em perspetiva.
Ah, mas tenho de recuar um pouco. O tempo é estranho na cadeia. Passa
tão lentamente que ao princípio pensava mesmo que ia enlouquecer, depois
o recurso foi aceite e, de um momento para o outro, eis-me a passar a correr
sobre as coisas na minha pressa de acabar esta história e começar a viver
uma vida nova, uma vida que não seja dominada por coisas beras, mas
necessárias, como o homicídio.
Assim que a minha condenação foi revogada, Jimmy contactou-me.
Quer dizer, na verdade os Serviços Judiciais da Coroa já estavam em
contacto com ele uma semana antes da decisão final para o informarem das
novas provas. Ele tinha escrito uma carta quase de imediato para Thorpe me
dar. Não irei relatar a coisa na íntegra, visto que se prolongava por três
páginas. Jimmy não é um escritor nato. O constante mau uso e, creio eu,
deliberado, que faz da gramática sempre fez com que me fosse difícil ler os
seus e-mails e mensagens. Penso que o Guardian é mais descontraído em
relação a erros gramaticais do que outras publicações. Um dilúvio de
pequenos erros pejava uma carta que, de outro modo, poderia ter sido
bastante comovente. Tal como estava, fez-
me pestanejar a cada linha. Escusado será dizer que ele estava cheio de
remorsos. Tinha-me falhado da forma mais monumental que se pode
imaginar, o que era verdade, e mal tinha conseguido dormir desde que eu
tinha sido condenada, o que era uma treta. O homem tem um dom para
adormecer nas alturas mais difíceis, mas eu apreciei a sua boa intenção.
Após inúmeros pedidos de desculpa, dizia-me que se tinha mudado
novamente para casa dos Latimer e que tinha tirado dois meses para fazer o
luto de Caro. Não havia qualquer referência a Angelica, que eu presumo
que teria sido afastada quando se tornou óbvio que ela era uma cobra
traiçoeira a tentar saltar-lhe para a cueca. Presumo que tenha conseguido,
efetivamente, entrar nessa zona antes de ser desmascarada, mas a verdade é
que o desgosto torna as pessoas estranhas, como se sabe. Para além disso,
Jim estava a canalizar a sua tristeza para outra direção. Um curso de
estofador, por muito improvável que pareça. Imagino que isso queira dizer
que vamos todos receber poltronas ligeiramente desengonçadas pelo Natal.
Daí, a morte de Caro não foi em vão. Mesmo sem a mobília grátis, a sua
morte não foi em vão. Significava que não havia mais Caro, e isso era uma
dádiva por si só.
Jimmy acabava a carta com uma passagem bastante vulgar, dizendo que
não esperava que eu o perdoasse (porque é que as pessoas dizem isto, se o
simples facto de terem entrado em contacto connosco nos diz claramente
que esperam o nosso perdão?), mas que passaria o resto da vida a tentar
compensar-me e que viria à prisão no dia em que eu fosse libertada.
«Adoro-te, Gray, em breve ajudar-te-ei a adormecer outra vez», terminava
ele. Eu perguntava-me se Sophie insistiria em vir com ele, ansiosa por tirar
partido da minha história, tal como já tinha feito quando eu era mais nova.
Talvez fôssemos todos à pastelaria mais próxima para um pequeno-almoço
celebratório. Jimmy iria inevitavelmente esquecer-se da carteira e Sophie
pagar-nos-ia a conta, abanando a cabeça, exasperada, e dizendo ao dono do
café que os seus filhos eram, para usar a sua expressão preferida, uns
«biltres completos». Eu estava na cadeia há tempo demais, pois, enquanto
pensava nisto, senti uma pontinha de calor no peito. Era uma imitação
barata de uma família, mas era o que eu tinha.
Depois da carta, reatámos a nossa antiga relação com estranha
facilidade. Eu telefonei-lhe dois dias depois de a ter lido, deixando-o
levemente em pânico. Desde então, falámos sempre que tivemos
oportunidade. Fui magnânima. Ele tinha ficado destroçado pela culpa, e
arranjou um plano para me levar para o apartamento dele e cuidar de mim
no meu regresso à vida, como se eu tivesse sido abandonada durante meses
numa colónia de leprosos e não na prisão por ele me ter acusado de
assassinar a sua sinistra noiva. Eu rejeitei a ideia com firmeza. Queria estar
no meu espaço habitual enquanto preparava a minha próxima ação, e ter
Jimmy a trazer-me chávenas de chá dificultaria um pouco as coisas. Haveria
tempo para a coabitação mais tarde, quando pudéssemos viver numa casa
suficientemente grande para passarmos tempo suficiente agradavelmente
afastados um do outro.
Thorpe também estava a receber bastantes telefonemas da comunicação
social, sobretudo dos tabloides, que tinham feito uma viragem de 180 graus
em relação ao meu caso de maneira tão rápida que os jornalistas deviam ter
feito vários estiramentos musculares. A narrativa da «homicida de Morton»
estava prestes a ser substituída por uma coisa igualmente terrível, pelo
menos no meu espírito. Pus-me a especular sobre qual seria a minha nova
alcunha. Se tivesse acesso a uma casa de apostas, teria apostado em que
«Cheia de Graça»7 seria pelo menos um dos títulos utilizados para noticiar a
minha libertação, acompanhado de uma imagem de mim a ler o meu
comunicado. Composta, a recuperar de um longo sofrimento, dignificada. O
plano a seguir era bastante fácil. Não iria falar com nenhum deles no
imediato, claro está. Não era uma noviça desesperada que não percebia
como é que estas coisas funcionavam e que aceitava o primeiro cheque que
lhe ofereciam. A minha narrativa seria feita por mim. Para além disso, a
atenção da imprensa podia esperar até que eu revelasse ser não apenas uma
vítima inocente, mas também uma filha a chorar a morte do seu pai. Isso,
sim, é um assunto de elevado interesse humano, do género que nos garante
que o nosso nome será lembrado durante as próximas décadas.
Quando a poeira tiver assentado um pouco, farei algumas propostas
iniciais a Thorpe em relação ao meu pai e às suas propriedades. Claro que
não irei apresentar as coisas de modo assim tão direto. Direi apenas que esta
experiência me fez reavaliar a minha vida e explicar-lhe-ei que quero
explorar a ligação com esse lado da minha família. É demasiado tarde para
conhecer o meu pai, direi eu a esfregar os olhos com um lenço de papel,
mas quero saber de onde venho e quem ele era. Não resta ninguém naquela
família, exceto Lara. E Lara nem sequer é um parente de sangue. É uma
mulher separada, e que eu misericordiosamente poupei, aliás. Soube logo a
partir do momento em que decidi não a matar que ela seria a minha porta de
entrada. Irei abordá-la com tal encanto e graça (ah!) que ela ficará para
sempre do meu lado. As duas mulheres maltratadas pelos homens Artemis,
ambas tentando viver as suas vidas longe do peso da sua presença.
Mulheres a apoiarem-se mutuamente, é isso que nós gostamos de ver.
Talvez até nos tomemos amigas, ainda que uma ligação feita apenas com
base no facto de termos sido ambas prejudicadas pelos dois irmãos parecer
um fundamento pouco sólido para uma afinidade para toda a vida. Mas,
mais uma vez, um vínculo forjado a partir do ódio pode ser mais forte do
que qualquer outro. Mais forte do que uma ligação feita com base no amor
pela cerâmica ou por uma paixão por ópera de vanguarda. Teríamos um
vínculo muito mais robusto. O dinheiro era importante, mas o objetivo era a
aniquilação da família. O que não significa que eu me contentasse em ficar
sem nada. E se ela não entrasse no jogo, havia outras opções. Ela tinha sido
poupada, mas isso era sempre negociável. E agora já estão a par de tudo.
Passei mais oito dias em Limehouse e ainda me falta mais um. Hoje foi-
me dito por uma guarda de ar enfastiado que eu nunca tinha visto (a
rotatividade do pessoal é elevada, provavelmente porque quase ninguém no
seu perfeito juízo quer tomar conta de um bando de mulheres zangadas 12
horas por dia a troco do salário mínimo, quando pode trabalhar no
Starbucks e tomar conta de um grupo de mulheres zangadas ligeiramente
mais pequeno e ainda ter direito a café com leite de graça...) que seria
libertada às três da tarde em ponto do dia seguinte. Como a guarda não se
importava nada com a minha privacidade, disse-me isto na presença de
Kelly, que teimava em fazer uma espécie de festa em minha homenagem na
sala de jogo. Como parte dos preparativos, obrigou-me a ir para a cela da
sua amiga Dionne para esta me maquilhar, coisa que não consegui evitar,
apesar de todos os meus protestos.
Acabo de escrever isto a partir da minha cela, incapaz de dormir.
Recordo-me vagamente deste tipo de excitação na minha infância, quando
Marie atravessava furtivamente a sala na véspera de Natal com uma meia de
Natal para mim. Tal como todas as crianças, tentava ficar acordada, à espera
de que o Pai Natal me trouxesse os meus presentes. Ao contrário da maior
parte das crianças, consegui e apercebi-me da mentira desde cedo. Não me
perturbou por aí além. Recebia os presentes na mesma, apesar do
subterfúgio. Amanhã irei passar a manhã a preparar-me — mantendo-me
calma e guardando a minha energia. Mas esta noite ando numa roda-viva,
com a adrenalina a subir. Tal como previra, a minha maquilhagem foi uma
experiência que não irei repetir. Após 20 intensos minutos, saí da cela de
Dionne com um semblante que se assemelhava vagamente a uma boneca
insuflável e um cabelo que tinha sido escovado para trás até mais não ser
possível. A única desculpa que tenho para ter permitido isto é que estava
inebriada pelos eflúvios da minha liberdade e sabia que não iria haver
fotografias da noite em questão. Apesar do pleno sucesso que tive em não
fazer amigas durante a minha estadia, mesmo assim, houve um razoável
número de mulheres a aparecer na festa, seduzidas pela distração e pela
promessa de refrigerantes e bolo. Afinal, acabou por não haver bolo, mas a
coisa arrastou-se por 45 minutos, porque Kelly disse a toda a gente o quanto
iria sentir a minha falta, ao passo que eu tive o cuidado de não retribuir.
Duvido que a mensagem tenha chegado ao destino, pois Kelly tem uma
couraça dura como uma mala Birkin de contrafação. Quando me retirei para
a minha cela, meti-me na cama e fingi estar a dormir às oito e meia. Estou a
escrever isto debaixo dos lençóis. Mesmo a escassas horas de me ir embora,
não posso arriscar encorajar Kelly a tentar um último gesto profundo e
sentido. Amanhã de manhã, irei arrumar os meus parcos pertences e
preparar-me para voltar a entrar no mundo. Um mundo que será muito
diferente para mim a partir de agora.
 
 
7 «Graça» seria o nome da personagem e protagonista da história
(«Grace») em português. (N. do T.)
 
Capítulo 15
 
Na noite passada sonhei com a minha mãe. Não foi um sonho agradável,
nem sempre tenho sonhos agradáveis. Também nunca tenho pesadelos
horríveis, normalmente sou simplesmente transportada para momentos
difíceis ou tristes da minha vida e revivo-os quando acordo. Suponho que
não devo ter uma grande capacidade de imaginação, mas respeito o meu
cérebro prático por não me desviar para aventuras noturnas. Não vou
maçar-vos com a recordação que a minha mente onírica foi buscar, mas
acordei com mais saudades de Marie do que alguma vez tinha tido nos
últimos anos e a sentir-me mais distante dela do que o habitual. Todos os
meus planos e todos os meus crimes me fizeram sentir-me ligada a ela,
como se ela estivesse sempre ao meu lado a dar-me força. Mas ela não está
aqui comigo. Não é que eu ache que ela seja responsável por isso. Isto não é
lugar para almas errantes. Um fantasma poderia olhar para Limehouse e
reaparecer do outro lado do muro imediatamente. Se Marie estiver a pairar
por aí, presa entre este mundo e o outro, espero que esteja a assombrar a
Fortnum & Mason ou a pairar sobre a Harvey Nichols a experimentar
macacões e a retocar os manequins.
Devo dizer que não acredito em semelhantes disparates. Não existem
fantasmas a assombrar estes corredores, e a minha mãe não estava a sibilar
com o vento enquanto eu a vingava. Mas a sua memória ainda estava viva
enquanto a minha raiva era alimentada, e agora, que tudo acabou, dou por
mim a pensar menos nela. O seu rosto começa a esbater-se e a desvanecer-
se. Talvez um terapeuta chamasse a isto fechamento. Imagino que matar
pessoas e escapar incólume é uma espécie de fechamento, mas
possivelmente não é um tipo de fechamento que um médico profissional
possa, em boa consciência, recomendar.
***
Tenho de explicar como é que Simon morreu. Eu sei que a morte final é
normalmente a cereja no topo do bolo dos romances, a maior e mais
dramática de todas. Em parte, é por isso que tenho estado a protelar
escrever sobre isso. Porque isto não é um romance. Não planeei as coisas
para que a sua morte fosse a mais chocante. Não o empurrei de um balão de
ar quente nem o atirei da ponte de Waterloo ao pôr do sol. Talvez devesse
ter tentado um plano assim, só para dar um efeito mais dramático, mas
nunca fui dada a malabarismos desnecessários.
A partir do momento em que o último membro importante da família de
Simon foi despachado, o meu sentido de urgência diminuiu. Como um
maratonista que soubesse que só lhe faltava um quilómetro para a meta,
decidi desfrutar do percurso durante um bocado. Isto significava ir
espreitando como é que estavam as coisas com Simon. E, dadas as
circunstâncias, o funeral de Bryony parecia ser o melhor sítio para o
observar. Era um passo arriscado, e eu tinha passado as últimas semanas a
ponderar se devia ou não comparecer, até concluir que haveria certamente
mulheres da minha idade em número suficiente para que eu passasse
despercebida. Se havia uma altura ideal para observar o sofrimento de
Simon de modo cru e de perto, era ali. Só teria de me certificar de que iria
adequadamente arranjada. No dia anterior ao funeral, fui ao armário da
empresa, que continha roupas e acessórios prontos a serem emprestados a
clientes importantes para eventos especiais. A quantidade de coisas que
mantínhamos neste compartimento sombrio era de se ficar boquiaberto —
sapatos de marca empilhados uns em cima dos outros, malas que valiam
para cima de 2000 paus abandonadas no chão. Por cima, havia vestidos com
lantejoulas e macacões coloridos pendurados de uma prateleira, ao lado de
uma placa onde se lia: «Quanto mais alto o salto, mais próxima de Deus».
Se os olhos pudessem chorar sangue, as placas que vejo neste escritório
todos os dias seriam o meu principal motivo.
Sabia como me vestir para um evento deste tipo. Tinha passado a minha
vida adulta a aprender como me integrar em qualquer tipo de situação. No
trabalho, isso significa usar roupas que observem a necessária falta de
graça, mas evitando ser ativamente desenxabidas. No mundo mais lato,
significa fazer viagens regulares à Zara como qualquer outra mulher da
minha idade para adquirir o uniforme regulamentar de calças de ganga,
camisolas oversize e botas robustas. Mas no meio de uma multidão de
palermas do Instagram podres de ricas, a integração significava algo
completamente diferente. Estas raparigas não se limitavam a gastar quantias
obscenas em roupa; isso qualquer pessoa rica pode fazer. Experimentem
descer a Bond Street e riam-se das idiotas que pensam que sapatos forrados
a pele de carneiro da Gucci e blusões almofadados com enfeites de pele são
o cúmulo do estilo e verão o que quero dizer. Não, estas mulheres eram
maliciosamente argutas e criteriosas com o que vestiam, e ai de nós se não
apanhássemos a ideia. Não bastava ter uma mala Prada, teria de ser aquela
que uma estrela italiana do Instagram recebera de presente três meses antes
de o modelo chegar às lojas. Eu não me importava nada com a opinião
delas, claro está, mas não queria provocar reações de reprovação ou desafiar
quem quer que fosse com a minha presença. Por isso, surripiei um fato de
seda cor de vinho novinho em folha feito por um estilista italiano em
ascensão que eu sabia estar a ser impulsionado pela Vogue e fanei uma mala
de mão Céline em pele de cobra cuja ausência, caso fosse notada, me teria
certamente valido o despedimento. Quanto a sapatos, decidi-me por um par
de sapatos mule em pele e passei o resto do dia a rezar fervorosamente para
que o funeral de Bryony não fosse um daqueles em que toda a gente se
veste solenemente de preto.
O enterro foi uma cerimónia privada, e eu não me permiti sequer
considerar a possibilidade de forçar a entrada num tal evento. Mas as
cerimónias de homenagem fúnebre eram abertas ao público, anunciadas no
Evening Standard como se fosse a abertura de um novo bar. Nada como um
evento lúgubre em memória de uma mulher defunta para tirar algumas
fotografias para as colunas sociais. E, quem sabe, um bocejo ensaiado para
as câmaras para que os nossos seguidores possam ver ao final do dia. O
ponto de encontro era uma igreja antiga numa saída de Marylebone Road,
mas aquele lugar não tinha nada de sagrado. Há anos que tinha sido
convertido num espaço para uso privado que podia ser arrendado por
milhares de libras e que já tinha servido para tudo, desde um casamento real
de nível inferior até à festa do 21.° aniversário de uma filha de um oligarca
russo que teve de ser cancelada depois de os organizadores a terem
autorizado a entrar no evento montada num cavalo pintado com um spray
rosa-claro. Nem os nossos amigos equinos conseguem escapar à
proliferação do cor-de-rosa entre as novas gerações.
Entrei na igreja ensanduichada por hordas de outras pessoas, com os
seus óculos escuros a refletirem outros óculos escuros, os diamantes a
cintilar ao sol e a projetar sombras em forma de joias no chão de pedra. A
cerimónia fúnebre foi interminável. Noventa minutos de leituras, cânticos, e
até mesmo uma projeção de slides dos momentos mais memoráveis de
Bryony — se é que as selfies podem ser consideradas memórias. O
momento mais baixo foi quando uma menina muito magra com um vestido
de alças transparente, que deixava ver a roupa interior fluorescente, se
encaminhou para o atril e começou a ler um excerto do livro preferido de
Bryony — O segredo. A fritura vocal trepidante quase me fez cair por terra,
e a leitura seguinte não ajudou, um poema de e. e. cummings — «I carry
your heart with me (I carry it in my heart)» — o santo padroeiro das
raparigas que querem parecer profundas, mas não conhecem mais nenhum
poeta. Felizmente, a coisa acabou pouco depois. Um coro de gospel cantou
«Stand by Me» maravilhosamente, enquanto as pessoas de luto pranteavam
e se abraçavam umas às outras. Reparei que não houve muitas lágrimas a
sério — expressões de tristeza cuidadosamente ensaiadas, caras secas.
Eu estava, acima de tudo, à procura de Simon. O mestre de cerimónias
(claramente não é o termo adequado para uma ocasião tão solene, mas o
homem estava a usar um fato com entrançados dourados e parecia um
empregado de casino, por isso vou mantê-la) anunciou no início da
cerimónia que se alguém se sentisse demasiado comovido poderia estar à
vontade para sair para apanhar ar puro. Consequentemente, houve um fluxo
constante de pessoas a dirigir-se para a porta durante a cerimónia, voltando
depois a exalar fumo de tabaco no corredor. O vaivém constante fez com
que Simon só estivesse visível metade do tempo. Tive uma boa visão dele
durante a interpretação de uma canção de Adele, enquanto ele levantava os
ombros e abraçava o pescoço de um jovem sentado ao seu lado de uma
maneira bastante agressiva, que fez com que o rapaz parecesse vagamente
desconfortável. Isto é um grande cliché, sem dúvida, mas o desgosto não
faz nada bem à pele. Ele parecia dez anos mais velho. Só consigo olhar para
Simon de uma maneira distanciada, não existe qualquer ligação humana
entre nós, mas quase senti uma pontinha de simpatia por ele. Mais uma vez,
vê-lo desfeito pela perda de um ente querido também me provocou um novo
sentimento de raiva. Os homens dizem muitas vezes que são feministas
apenas quando têm uma filha e são obrigados a ver as mulheres como seres
iguais. Simon só conseguia experimentar a tristeza e a vulnerabilidade
quando alguém que ele amava lhe era roubado. A minha mãe morreu, e ele
sabia que eu tinha sido deixada sozinha no mundo. Para mim, não houve
nada. Tinha-se dado ao luxo de escolher quem é que tinha perto de si. Pois
bem, agora já não o podia fazer.
Uma semana depois, estava sentada em casa a ler os jornais e a comer
um bolo de pastelaria dinamarquês. Um bolo por semana, um regra estúpida
que impusera a mim própria para testar a minha capacidade de renúncia.
Abri os suplementos de sábado e encontrei um artigo num diário sobre
Simon, que falava da preocupação dos seus amigos com a sua saúde mental.
Ah, saúde mental. A desculpa perfeita para todo o mau comportamento. Os
amigos não se identificavam, claro está, mas as citações eram reveladoras.
Simon andava «paranoico e reclusivo, queixando-se de inimigos que
andavam atrás dele». Não era mentira, mas fazia-o parecer tão
satisfatoriamente desequilibrado. Ao que parece, passava a vida a dizer às
pessoas que a filha tinha sido assassinada, apesar das garantias da polícia de
que se tratara de um trágico acidente. Como deve ser horrível saber que as
pessoas à nossa volta estão a ser abatidas uma a uma e que, portanto, o
próximo seremos nós — uma experiência terrível para um homem branco
poderoso. Eu não tinha antecipado o meu pensamento o suficiente para
saborear a perspetiva de Simon vir a recear pela sua própria segurança.
Durante todo este tempo, tinha-me concentrado apenas na tristeza que ele
enfrentaria quando perdesse os seus entes queridos. Este pânico com
paranoia era um bónus. Fez-me pensar se o seu egoísmo inato significaria
que este medo era ainda mais forte do que qualquer sentimento de pesar.
Aprofundando um pouco mais o assunto, cheguei à conclusão de que era
mesmo. Um homem como o meu pai sentiria a perda da sua família, mas
ficaria absolutamente abalado com a ideia de poder estar em perigo. Uma
mulher e uma filha podiam ser substituídas — não seria o primeiro homem
na casa dos 50 a construir uma nova família na meia-idade —, mas o seu
sentimento de segurança estava a ser posto à prova pela primeira vez. E eu
senti-me tão contente ao constatá-lo que comi um segundo bolo para
celebrar.
***
Na altura, pensei que este era um momento de glória na minha vida.
Agora, olho para trás e vejo quão terríveis as coisas estavam prestes a
tomar-se. Tinha eliminado seis nomes da minha lista. Seis já estavam,
faltava um. A pressão tinha aliviado e eu comecei a cultivar aquilo a que se
pode chamar uma vida. Voltei a correr, arranjei tempo para ler alguns livros
que tinha deixado empilhar na mesa de cabeceira e até tive alguns
encontros. Não havia muito a assinalar nesse departamento, pois quem é
que quer continuar a estar com um homem que tem pósteres vintage da
Playboy na sala de estar? As pessoas pensam que comprar uma coisa e dizer
que é vintage as coloca num patamar superior. Mas as Playboy antigas não
são mais do que revistas de masturbação, ainda que em tons desbotados. E
os homens que pedem dirty martinis não são homens que eu esteja disposta
a ver incorrer em semelhantes brincadeiras perto de mim.
Em todo o caso, esses encontros também não foram o ponto alto desse
período. A sensação maravilhosa foi sentir que estava a levantar um peso.
Eu sou teimosa. É bom admitirmos as nossas falhas. E essa teimosia
significava que o plano que tinha concebido em criança era um plano que
me sentia obrigada a levar a cabo já em plena idade adulta — em
detrimento de tudo o resto. Se não tivesse decidido que a vingança era o
caminho que eu tinha de seguir, sei que a minha vida teria sido
inimaginavelmente diferente. Inimaginável, acima de tudo, porque pensar
no que poderia ter sido é bastante doloroso. Pode parecer uma fraqueza
admiti-lo, mas nem por isso deixa de ser verdade. Por isso, não costumo
pensar muito no assunto. Não penso na carreira que poderia ter tido. Houve
uma altura em que queria ser jornalista, o que acabaria, imagino eu, por
significar uma vida idêntica à que tenho agora — de bebida e engano. Não
penso na possibilidade de eu e Jimmy termos construído uma vida juntos
sem que eu tivesse de o manter à distância enquanto terminava a minha
demanda pessoal. Não penso em quão deliberadamente pequena se tomou a
minha vida, sempre cheia de raiva dirigida a pessoas que nem sequer se
lembram de mim.
Apesar de eu saber de tudo isto, a raiva arde em chama viva. Sentia-a
borbulhar de cada vez que passava pelos grandes portões da casa de Simon
(e passei por lá muitas vezes na adolescência, visto que ficava a 15 minutos
e a todo um mundo de distância do enclave dos Latimer), de cada vez que
via um alerta do Google a avisar-me que Bryony aparecera na coluna da
vergonha do Daily Mail, de cada vez que Janine dava um baile de caridade
que era noticiado nas colunas sociais. De cada vez que eles eram projetados
no meu mundo, sentia um novo acesso de raiva, como se um novo rebento
tivesse despontado e crescido.
Mas durante este interlúdio senti a raiva esmorecer. Não por completo,
como imaginam, não ia agora dar tudo por terminado e sair de cena. Mas
Caro tinha acabado de entrar em cena, e eu estava a lidar com esse
rancoroso grão na engrenagem. A diluição do meu foco levou-me a dar-me
conta de que estava a passar muito menos tempo a pensar no clã Artemis
(talvez isto seja bater no ceguinho, pois já não havia clã nenhum de que
falar) e mais tempo a pensar no mundo mais amplo e no que nele poderia
vir a fazer.
O plano que eu sempre tivera na cabeça era mais ou menos assim:
 
— Matar a minha família
— Reclamar a respetiva fortuna (isto era bastante vago no meu espírito,
não queria todo aquele império tóxico, mas tão-só alguns milhões para
poder viver a minha vida como muito bem me apetecesse);
— Juntar-me com Jimmy (claro que isto foi praticamente impedido por
Caro, mas o seu conveniente falecimento e a minha condenação indevida
significavam que estava novamente em cima da mesa)
— Comprar uma casa, viajar, fazer alguns amigos, adotar um cão
— Conseguir fazer tudo isto sem ser apanhada
 
Era o plano de uma criança, ridículo e presunçoso, sem metas
específicas nem cláusulas de salvaguarda incluídas. O dinheiro era um
bónus que eu acreditava cada vez mais estar ao meu alcance. Mas o plano,
que se formou quando eu ainda não tinha consciência das riquezas a que
teria acesso, era todo ele um ato de vingança. Eu mantive-o sempre aceso,
mesmo quando, em certos momentos, admiti a mim própria que se tratava
de uma obsessão prejudicial. Mas, de alguma maneira, tinha-o seguido de
forma bastante fiel — avós, canja; Andrew, doloroso, mas bem executado;
Lee, pfft; Janine e Bryony, um triunfo — e agora hesitava em acreditar que
fosse capaz de o cumprir até ao fim. Este sentimento, após anos de
adrenalina, era intoxicante. Por isso, em vez de me aplicar e acabar com
tudo, passava horas em sites de agências imobiliárias a ver casas. St John’s
Wood era demasiado espalhafatoso, cheio de casas maravilhosas habitadas
por pessoas untuosas convencidas de que os corrimãos cromados são o
cúmulo da elegância. Primrose Hill era exatamente a mesma coisa, só que
as pessoas que lá viviam compravam quinquilharia vintage e achavam-na
melhor do que os cromados. Kensington é um sítio absolutamente horrível e
eu nunca consideraria a hipótese de viver em Clapham ou Dulwich, ou em
qualquer outro sítio em que houvesse mais carrinhos de bebé do que
adultos. Levei três dias até me decidir por Bloomsbury para a minha casa
nova imaginária e mais dois dias a aprender a fazer gravuras em linóleo, até
me dar conta de quão malditamente ociosa me tinha tornado.
Tinha resvalado para a zona perigosa da autocomplacência e banhava-
me gloriosamente nessas águas, reclinada a mexer os dedos dos pés à
superfície. Dei uma severa reprimenda a mim própria, apaguei as aplicações
de encontros, empacotei os livros, o verniz das unhas e qualquer outra coisa
que me pudesse distrair e limpei o meu apartamento até estar tudo em
ordem. Depois, fixei uma folha de papel A3 na parede do meu quarto e
voltei à carga.
Uma hora depois, tinha anotado dez ideias e eram todas ridículas. Esta
parte do plano parecia subitamente a mais cansativa, quando eu sempre
pensara que iria ser a melhor parte. Matar os membros da lista Z da família
para chegar a Simon. Despachar os aperitivos para chegar ao prato
principal. Em vez disso, sentia-me como se estivesse a marcar passo. Por
isso, enfiei a minha roupa de corrida e dirigi-me para Hampstead,
escolhendo um caminho que conhecia como a palma da minha mão. Acabei
à entrada dos portões dos Artemis à espera de inspiração. A rua estava
sossegada, com exceção de um segurança privado com um colete amarelo
que passou por mim a fumar um cigarro. Mal olhou para mim, o que
confirmou a minha velha suspeita de que os seguranças privados só lá estão
para dar uma falsa sensação de segurança a pessoas ricas paranoicas e que
seriam tão capazes de desarmar um assaltante normal como a nossa avó.
Dependendo da avó, talvez ela até tivesse mais oportunidades de o
conseguir.
Eu permaneci fora do alcance das câmaras de filmar fixadas no portão e
olhei para a casa, afastada da rua e rodeada por um jardim que envolvia a
propriedade. As persianas estavam corridas em todas as janelas, fechando o
mundo exterior. A porta da frente, parcialmente obstruída por um enorme
Range Rover, estava firmemente fechada. Não era apenas uma casa de luto,
as casas dos muito ricos parecem muitas vezes desabitadas, o que muitas
vezes é verdade. Quando se tem quatro ou cinco casas, não passamos muito
tempo no mesmo sítio. Se Simon decidisse fugir para o seu refúgio em
Barbados ou passar meses a fazer caminhadas à volta da casa do Mónaco a
chorar por Janine, eu estaria em maus lençóis. A última possibilidade era
mais remota, visto que ele não parecia ter passado muito tempo a chorar
pela mulher, e eu não imagino que ele tivesse vontade de ficar no sítio onde
ela tinha conhecido um final tão grotesco. Mas foi então que os portões
vibraram ao entrar em movimento, e um carro desportivo descapotável
surgiu ao fundo da estrada, conduzido por um jovem que eu supus ser um
assistente. Isto devia querer dizer que Simon estava em casa, o que me deu
alguma esperança.
De volta a casa, risquei todos os planos que tinha tido na cabeça ao
longo dos anos para ele. Alguns eram tontos, fantasiosos, inexequíveis. Um
dos primeiros, que era fazer-me passar por uma tripulante de cabine do seu
avião privado, deixou-me especialmente envergonhada. Quanto tempo teria
de treinar até chegar a esse ponto? Que estupidez, Grace. Alguns eram mais
realistas e eu não descartara a ideia de enviar um envelope de condolências
para o seu escritório que contivesse uma substância capaz de o matar em
poucos segundos. Mas, acima de tudo, sentia que me estava a afundar, que
tinha feito tudo errado, que o devia ter matado antes do resto daquela
horrível família. Tinha feito com que ele ficasse paranoico e propenso a
esconder-se. Na minha excitação e na minha insistência em querer preparar
tudo, tinha tomado o alvo final praticamente impossível de atingir.
A minha melancolia afetou a minha confiança e fez-me recuar de todos
os planos parciais que tinha proposto a mim própria. Depois, as coisas
tinham-se tomado infmitamente mais difíceis quando Jimmy ficou noivo de
Caro, enegrecendo o meu espírito e fazendo com que eu acordasse a meio
da noite, agarrada à pele do pescoço, a respirar de forma ofegante, a
transpirar através da t-shirt. Sentia-me como que condenada, como se as
coisas se estivessem a precipitar à minha frente, já fora do meu alcance.
E estava triste e terrivelmente certa. Já voltaram a olhar para o início
deste texto e repararam que eu matei seis membros da minha família? Já
viram que parecemos já ter alcançado este número mágico? Pois bem, não
temos prémios para semelhantes olhos de falcão. Não sejam presunçosos
nem me tomem por tão tola. Eu já passei meses a lidar com o meu fracasso,
a tentar espantar o sentimento de que foi tudo em vão.
Para aqueles que têm um processo cognitivo mais lento, vou soletrar: eu
não matei Simon Artemis. O meu único objetivo na vida e nunca o irei
alcançar. E porque não? Porque ele está morto. Morto por um terrível
acidente e não pela minha mão. Preferia que ele tivesse vivido mais 50 anos
de tristeza e de ignomínia a ter morrido num maldito acidente. Que anedota
cruel.
Três dias depois de eu ter sido presa pela morte de Caro Morton, Simon
foi dado como desaparecido pelo The Times. Ao princípio, não foi notícia
de primeira página, ocupando metade da página 3 (a minha detenção inicial
só apareceu na página 6). Mas, no dia seguinte, a sua cara estava na
primeira página de todos os jornais. Porque não haveria de estar? A história
tinha tudo: dinheiro, poder, morte, escândalo e um mistério intrigante. Os
media revisitaram as suas notícias sobre o trágico ano da família Artemis.
Lee, cuja morte tinha sido abafada com razoável êxito na altura, foi exposto
como um depravado sexual. Um repórter de um tabloide conseguiu entrar
no apartamento de Janine e tirou fotografias da sauna, sinistramente
acompanhadas de uma legenda em que se lia: «Queimada viva, terá Simon
posto fim à sua própria vida após a horrível morte da sua mulher?» Antes de
haver reais certezas quanto à sua morte, algumas amigas de Bryony usaram
a história como desculpa para publicar fotografias dela com o hashtag
#reunidosnocéu. Se o Céu acolhia magnatas corruptos e fingidoras
maliciosas, então, era porque algo de muito errado se estava a passar no
departamento de recursos humanos do Elísio.
Simon tinha desaparecido no mar. Isto fá-lo parecer um velho
marinheiro, quando, na verdade, tinha arrancado no seu barco a motor
embriagado, apesar dos avisos da tripulação. Aparentemente, tinha fugido
para a sua vivenda em St Tropez. Eu nem sequer sabia que ele lá tinha uma
casa, visto que é mesmo ao virar da costa do Mónaco, mas talvez Janine
quisesse ter uma casa de campo para um muito necessário repouso. Os ricos
são manhosos. Estas propriedades nunca estão em nome desses milionários
corruptos. É para isso que servem as sociedades anónimas offshore. Ia
acompanhado de um assistente não identificado, por receio de que ele
pudesse colocar-se em perigo, o que foi bastante previdente, como se veio a
verificar.
De acordo com o assistente, Simon estava a conduzir demasiado rápido,
inclinando demasiado o barco. Alarmado, o assistente decidiu assumir o
comando da embarcação e, ao passar pelo meu embriagado pai, este
tropeçou borda fora. O barco estava a deslizar muito depressa e o assistente
levou algum tempo a perceber como o controlar. Quando conseguiu
abrandar e inverter a marcha, Simon estava debaixo das ondas. O assistente
andou às voltas durante meia hora, procurando em vão qualquer sinal do
patrão antes de voltar ao iate para pedir ajuda. A guarda costeira foi
chamada e as buscas tiveram lugar, mas o céu noturno e a vastidão das
águas dificultaram demasiado as coisas e Simon Artemis foi dado como
presumivelmente morto. Presumivelmente morto significa apenas morto,
não é verdade? Ainda não tinham encontrado um cadáver inflado,
mordiscado por criaturas marítimas, mas talvez fosse apenas uma questão
de tempo. Ou talvez este corpo tivesse caído para o fundo do mar,
decompondo-se rapidamente para nunca mais reemergir. Ia tudo dar ao
mesmo. À hora em que escrevo isto, as autoridades ainda não encontraram
vestígios dele. Nem um botão de punho resta. Desapareceu. Nunca chegou a
saber o que eu tinha feito.
Eu chorei. Chorei durante dois dias seguidos. A dor que senti era pior
do que quando a minha mãe tinha morrido. Não por Simon, mas por tudo o
que eu tinha planeado para o matar. Isso daria algum sentido à minha vida.
Vingaria a memória de Marie e provaria que era capaz de me elevar acima
das minhas circunstâncias.
Tomaria as coisas justas. Agora, tudo o que tinha para aplacar os meus
problemas era saber que tinha sido bem-sucedida em matar um casal de
pensionistas, em afogar um rapaz simpático que queria ajudar criaturas
anfíbias, em aliciar o meu tio a entrar num clube de sexo mortífero, e em
limpar o sebo a duas mulheres mimadas de que o mundo não sentiria falta
nenhuma. Não era bem a vitória gloriosa que eu tinha em vista.
Nem sequer tive oportunidade de beber vinho da garrafa e caminhar
pelo meu apartamento a ouvir The Cure no auge da dor. Nada disso. Fui
acusada do homicídio de Caro Morton e levada a julgamento. Que agora
tivesse de enfrentar um julgamento por um crime que não cometi parecia
uma anedota surreal. Tinha sido ultrapassada pelo universo, e para quem
acredita no karma, coisa em que eu não acredito, porque é para pessoas que
também dão grande importância aos cristais, pois bem, eu tinha acabado de
levar com uma mala cheia dele em cheio na cara.
Já aqui referi que caí numa espécie de depressão no início da minha
estadia na prisão. Talvez agora seja um pouco mais evidente porque é que
me afetou tanto. Não achava que fizesse sentido dar-me ao trabalho de lutar
pela minha causa porque não sabia que tipo de vida me esperaria e se seria
algo por que valesse a pena alimentar as minhas esperanças. Olho para trás
e vejo uma amostra de mim mesma de olhos vazios a cambalear pela prisão.
Estava a ser completamente patética. Felizmente, o choque passou. Em
parte, a rotina tornou-se menos intolerável, é incrível a velocidade a que
uma pessoa se deixa institucionalizar. Comecei a achá-la menos assustadora
e mais aborrecida e, à medida que o meu cérebro baixava os níveis de
ameaça, comecei a pensar noutras coisas que não em respirar normalmente
quando as portas se fechavam à noite. Isto significava interessar-me pelo
meu processo e despertar para as suas debilidades. Tinha passado pelo
julgamento como uma zombie, mal me envolvendo no processo, vergada
pelo peso dos meus fracassos. Mas depois comecei a ver como o meu
veredicto podia ser contestado. Foi então que chamei George Thorpe. Tal
como acontece em tantas áreas da vida britânica, se uma pessoa quiser ser
levada a sério e tratada com respeito, a solução é contratar um homem
branco fino para a representar. Se for de meia-idade, melhor ainda. E esse o
verdadeiro jackpot dos privilegiados.
Thorpe fez-me ver que não tinha de encarar uma decisão do júri como
definitiva.
— Grace, os jurados não são, digamos, sempre o tipo de pessoas a quem
devamos dar ouvidos. Enganam-se muitas vezes, são largamente motivados
pelas suas próprias animosidades pessoais e têm uma compreensão
extraordinariamente limitada dos factos em si mesmos. Há muitas opções
em aberto para nós, por isso olhemos para o seu veredicto simplesmente
como uma primeira oferta, de acordo? — Eu teria sido capaz de beijar o
homem se ele não estivesse a usar suspensórios debaixo do fato.
O que realmente mudou a minha atitude foi ler que Lara anunciara que
iria estar na inauguração da Fundação Artemis para ajudar crianças
migrantes. Eu apreciei muito isto, imaginando que fosse o derradeiro «vão-
se lixar» a uma família que se preocupava menos com a condição dos
menores mais vulneráveis do que a bruxa que vivia na casa de gengibre.
Mas também me inquietava. Quão boazinha é que Lara estava disposta a
ser? Se o dinheiro estivesse a ser empatado em fundos de caridade, eu teria
grandes dificuldades em aceder a uma parte dele. Talvez eu ter sido
impelida a agir por receio de que o meu dinheiro fosse oferecido a
refugiados atemorizados não seja muito abonatório do meu carácter, mas
enfim, as coisas são o que são. Matei seis pessoas, por isso, agora já não
adianta muito inquietar-me com a minha fibra moral. Volto então a
trabalhar, e a minha persistente depressão desvanece-se com notável
rapidez. Consegui reformular os meus fracassos. Não cheguei a matar
Simon, não adianta agora tentar iludir a severidade desse golpe, mas
eliminei seis membros da sua família sucessivamente num curto período,
causando-lhe grande temor, confusão e dor que o perseguiram para sempre,
até aos seus derradeiros momentos. Consolo-me com a ideia de que ele
nunca teria chegado tão bêbedo e obstinado ao seu barco a motor se não
fossem as minhas ações, por isso é verdade que desempenhei um papel
crucial na sua morte, mesmo que não pudesse estar lá para testemunhar a
sua gloriosa queda. A verdade é que não gosto de barcos por aí além, por
isso, estranhamente, talvez tenha sido melhor assim. Tinha um bom jogo,
mesmo que não fosse a sequência real com que eu estava a contar.
 
Capítulo 16
 
Suponho que devo começar por me apresentar, de outro modo, isto será
ainda mais bizarro para ti do que já é. Chamo-me Harry e sou teu irmão.
Meu Deus, isto soa ridículo, não é? Se calhar, estou a criar uma impressão
de que sou uma espécie de Darth Vader. Seja como for, é verdade. Não
somos filhos da mesma mãe, claro está, isso seria absurdo. Somos do
mesmo pai, mas isso provavelmente é óbvio. Desculpa, não tenho muito
jeito para explicar tudo isto.
Talvez seja melhor começar pelo princípio. Não soube quem era o meu
pai até aos 23 anos. Quer dizer, isto não é bem verdade. Passei 23 anos com
um pai maravilhoso. Christopher era um companheiro fantástico, sempre
pronto para me levar aos treinos de râguebi, ensinou-me a atirar quando
ainda mal tinha idade para segurar numa arma. Costumava subir as escadas
quando a Avó acabava de me dar banho e vestia-me o pijama. Segurando
num copo de whiskey, instalava-se à cabeceira da minha cama e lia-me uma
história todas as noites. Não era um fã dos livros para crianças modernos,
preferindo as histórias de Arthur Ransom e de John Buchan. Tinha uma voz
grave e profunda e costumava gesticular com as mãos enquanto lia para
mim, com o seu whiskey a clarear até as pedras de gelo se unirem com um
estalido. É um som que ainda hoje adoro ouvir.
Os meus pais tiveram duas filhas depois de mim. Havia uma diferença
de idades bastante grande, cinco anos entre mim e Molly e mais dois entre
Molly e Belle. Sempre me disseram que era por me dedicarem tanta atenção
que tinham esperado tanto tempo. Foi uma coisa que fiz questão de
relembrar muitas vezes às minhas irmãs, acredita. É bom ter irmãos, mesmo
com essa diferença de idades. Tu foste filha única, não foste? Não consigo
imaginar como seria não ter companheiras de conspiração à minha volta o
tempo todo. Ter sempre alguém para formar um bando. Ter sempre alguém
com quem brincar.
A minha mãe sempre foi bastante nervosa, mas é uma mulher
maravilhosa, apesar de tudo isso. Já trabalhava antes de me ter, era
professora da escola primária, mas acho que o que ela realmente queria era
criar uma família e viver no campo. Eu sei que já não está muito em voga
dizer isto, mas para a nossa família funcionou muito bem. E o nosso pai
ficou bastante contente por contribuir para que isso acontecesse. Acho que a
minha mãe não era suficientemente forte para trabalhar. Provavelmente
achas isto ridículo. Eu sei como tu és forte. Mas se calhar também achas
isto ridículo, visto que nunca nos conhecemos como deve ser. Mas tenho
razão, não tenho?
Oh, diabo, já me perdi um pouco, não foi? Como eu estava a dizer, só
soube quem era o meu pai biológico quando já era adulto. Tinha-me
formado em Exeter com um curso de Filosofia, Política e Economia, e
tinha-me mudado para Londres para trabalhar na cidade e divertir-me um
bocado. Ter crescido no Surrey fazia com que Londres me parecesse uma
cidade crua e empolgante. Ainda hoje me parece, aliás. Tu nasceste lá, não
foi? Imagino que estejas farta da cidade, demasiado habituada a ela. Sorte a
tua! Acima de tudo, queria fazer dinheiro. Nós vivíamos bem, é certo, mas
eu via as coisas que os outros rapazes da minha escola tinham, e sempre
senti um verdadeiro desejo de conseguir ter as mesmas coisas. Christopher
era diretor de uma empresa de contabilidade de média dimensão, e fazia
bom dinheiro. Sempre foi suficiente. Até que, um belo dia, deixou de ser.
Foi no dia em que um rapaz da minha turma veio a minha casa tomar chá
durante as férias, quando eu tinha à volta de 8 anos, e perguntou se o
motorista o podia levar a casa mais tarde. A minha mãe sorriu-lhe e disse
que ela própria o levaria em segurança, mas ele parecia confuso. Foi então
que percebi o que andava a perder. É engraçado... uma pessoa perceber que
quer ter um motorista aos 8 anos. Imagino que a maior parte dos miúdos de
8 anos queira ter uma consola de jogos.
O treino para ser corretor da bolsa foi extenuante. Ao cabo de 18 meses,
recebi um telefonema durante a hora de almoço, estava eu a empurrar uma
sanduíche pela boca abaixo e a tentar ler os números do dia. Era a minha
mãe, que se chama Charlotte — toda a gente na família lhe chama Lottie. O
meu pai tinha tido um ataque cardíaco e ela estava no Hospital Royal
Surrey com as minhas irmãs. Eu mandei parar um táxi em Liverpool Street
e pedi ao taxista que me levasse lá o mais rápido possível. Mas foi
demasiado tarde. Ele morreu antes de eu chegar. Eu sei que compreendes
como me senti nesse dia, pois também perdeste a tua mãe muito nova.
Estávamos todos inconsoláveis. Tirei três dias de folga para estar com a
minha mãe e as minhas irmãs, apesar de a minha mãe ter caído de cama e se
ter recusado a falar normalmente durante esse período. Mas eu tinha de
voltar ao trabalho, e consegui que a minha avó viesse de Nova Iorque para
ficar com elas. O funeral teve lugar uma semana depois. A igreja estava
cheia de amigos de Christopher — amigos dos seus tempos de escola em
Eton, amigos que fez no trabalho e todos os que tinha feito entre uma coisa
e outra. O coro cantou «Jerusalém» e toda a gente recordou o verdadeiro
cavalheiro que era o meu pai. A minha mãe tomou um calmante para
aguentar a cerimónia, e as minhas irmãs choraram muito. Mas foi uma
despedida como deve ser, um dia encantador, apesar da tristeza. Ou pelo
menos estava a ser, até às cinco da tarde. A vigília voltou a ser em nossa
casa. Tínhamos mandado vir comida, pois a minha mãe não estava,
evidentemente, em condições de servir um banquete. Por isso, a única coisa
que havia para fazer era andar por ali e aceitar o maior número de palavras
de simpatia que conseguíamos por parte das pessoas presentes. A minha
mãe tinha-se retirado para o quarto uma meia hora antes, e eu estava a
tentar falar com tanta gente quanto me era possível. As miúdas estavam
sentadas na sala de estar com a Avó. Pareciam esgotadas. A
responsabilidade agora era minha. Estava eu a acabar de me desembaraçar
de um homem aborrecido com um fato cinzento aos quadrados que tinha
trabalhado com o Pai e a dirigir-me para a casa de banho quando senti
alguém tocar-me no ombro. Era a minha tia Jean. Eu chamava-lhe tia, mas,
na verdade, era a amiga mais antiga da minha mãe. Eram como irmãs, e
uma relíquia da minha infância, apesar de pouco a ter visto nos últimos
anos. Parecia envelhecida, com umas grandes olheiras e uma estranha mão
ossuda com que apertou a minha.
— Lamento o que aconteceu ao nosso querido Christopher — fungou
ela. Eu murmurei «obrigado» e fizemos um pouco de conversa de
circunstância sobre o dia. — Ele sempre te tratou como a um filho. Sempre.
Era um homem maravilhoso.
Vais achar que sou um palerma, mas eu nem sequer me teria apercebido
do que ela dissera, não fora o facto de, assim que as palavras lhe saíram da
boca, ela ter recuado, deixado cair a minha mão, ficando com os olhos
inchados. Apenas durante alguns segundos, percebes? Mas eu via que ela se
tinha assustado a si própria. Jean começou a despedir-se de mim, que tinha
de ir, que era uma longa viagem. Eu assenti, dei-lhe um abraço e disse-lhe
que dizia adeus à minha mãe por ela. Mergulhei na casa de banho lá de
baixo e revolvi o bolso do casaco à procura do maço de cigarros que tinha
feito questão de levar para o caso de precisar de um minuto a sós nesse dia.
Sei que também fazes isso, não fazes? Não o tempo todo, não és uma
rapariga de cigarro a seguir ao primeiro café da manhã. Só de vez em
quando, quando precisas de fazer uma pausa do mundo exterior. Eu pedi-te
o isqueiro emprestado uma vez no pub ao virar da esquina do teu escritório.
É uma boa tática quando se quer passar um segundo ou dois a olhar para
alguém sem que a pessoa se importe ou entre em paranoia. Fui até à porta
lateral e entrei no jardim da cozinha, onde não havia convidados.
Agachando-me, com as costas encostadas à parede, reproduzi o comentário
de Jean na minha cabeça uma e outra vez. Um comentário feito por uma
mulher pesarosa que, em condições normais, eu teria rejeitado como um
simples disparate. Mas ela parecia de tal maneira tomada de pânico quando
acabou de o dizer. Não havia como confundir aquilo. Eu sou uma pessoa
racional, Grace.
O treino para ser corretor da bolsa foi extenuante. Ao cabo de 18 meses,
recebi um telefonema durante a hora de almoço, estava eu a empurrar uma
sanduíche pela boca abaixo e a tentar ler os números do dia. Era a minha
mãe, que se chama Charlotte — toda a gente na família lhe chama Lottie. O
meu pai tinha tido um ataque cardíaco e ela estava no Hospital Royal
Surrey com as minhas irmãs. Eu mandei parar um táxi em Liverpool Street
e pedi ao taxista que me levasse lá o mais rápido possível. Mas foi
demasiado tarde. Ele morreu antes de eu chegar. Eu sei que compreendes
como me senti nesse dia, pois também perdeste a tua mãe muito nova.
Estávamos todos inconsoláveis. Tirei três dias de folga para estar com a
minha mãe e as minhas irmãs, apesar de a minha mãe ter caído de cama e se
ter recusado a falar normalmente durante esse período. Mas eu tinha de
voltar ao trabalho, e consegui que a minha avó viesse de Nova Iorque para
ficar com elas. O funeral teve lugar uma semana depois. A igreja estava
cheia de amigos de Christopher — amigos dos seus tempos de escola em
Eton, amigos que fez no trabalho e todos os que tinha feito entre uma coisa
e outra. O coro cantou «Jerusalém» e toda a gente recordou o verdadeiro
cavalheiro que era o meu pai. A minha mãe tomou um calmante para
aguentar a cerimónia, e as minhas irmãs choraram muito. Mas foi uma
despedida como deve ser, um dia encantador, apesar da tristeza. Ou pelo
menos estava a ser, até às cinco da tarde. A vigília voltou a ser em nossa
casa. Tínhamos mandado vir comida, pois a minha mãe não estava,
evidentemente, em condições de servir um banquete. Por isso, a única coisa
que havia para fazer era andar por ali e aceitar o maior número de palavras
de simpatia que conseguíamos por parte das pessoas presentes. A minha
mãe tinha-se retirado para o quarto uma meia hora antes, e eu estava a
tentar falar com tanta gente quanto me era possível. As miúdas estavam
sentadas na sala de estar com a Avó. Pareciam esgotadas. A
responsabilidade agora era minha. Estava eu a acabar de me desembaraçar
de um homem aborrecido com um fato cinzento aos quadrados que tinha
trabalhado com o Pai e a dirigir-me para a casa de banho quando senti
alguém tocar-me no ombro. Era a minha tia Jean. Eu chamava-lhe tia, mas,
na verdade, era a amiga mais antiga da minha mãe. Eram como irmãs, e
uma relíquia da minha infância, apesar de pouco a ter visto nos últimos
anos. Parecia envelhecida, com umas grandes olheiras e uma estranha mão
ossuda com que apertou a minha.
— Lamento o que aconteceu ao nosso querido Christopher — fungou
ela. Eu murmurei «obrigado» e fizemos um pouco de conversa de
circunstância sobre o dia. — Ele sempre te tratou como a um filho. Sempre.
Era um homem maravilhoso.
Vais achar que sou um palerma, mas eu nem sequer me teria apercebido
do que ela dissera, não fora o facto de, assim que as palavras lhe saíram da
boca, ela ter recuado, deixado cair a minha mão, ficando com os olhos
inchados. Apenas durante alguns segundos, percebes? Mas eu via que ela se
tinha assustado a si própria. Jean começou a despedir-se de mim, que tinha
de ir, que era uma longa viagem. Eu assenti, dei-lhe um abraço e disse-lhe
que dizia adeus à minha mãe por ela. Mergulhei na casa de banho lá de
baixo e revolvi o bolso do casaco à procura do maço de cigarros que tinha
feito questão de levar para o caso de precisar de um minuto a sós nesse dia.
Sei que também fazes isso, não fazes? Não o tempo todo, não és uma
rapariga de cigarro a seguir ao primeiro café da manhã. Só de vez em
quando, quando precisas de fazer uma pausa do mundo exterior. Eu pedi-te
o isqueiro emprestado uma vez no pub ao virar da esquina do teu escritório.
É uma boa tática quando se quer passar um segundo ou dois a olhar para
alguém sem que a pessoa se importe ou entre em paranoia. Fui até à porta
lateral e entrei no jardim da cozinha, onde não havia convidados.
Agachando-me, com as costas encostadas à parede, reproduzi o comentário
de Jean na minha cabeça uma e outra vez. Um comentário feito por uma
mulher pesarosa que, em condições normais, eu teria rejeitado como um
simples disparate. Mas ela parecia de tal maneira tomada de pânico quando
acabou de o dizer. Não havia como confundir aquilo. Eu sou uma pessoa
racional, Grace.
Orgulho-me de não embarcar em lérias e de não me permitir entrar em
autonegação. Por isso, a única conclusão sensata a retirar, por muito
dolorosa que fosse, era que, de algum modo, Christopher não era o meu
verdadeiro pai.
Esperei até o último convidado se ir embora, certifiquei-me de que as
minhas irmãs estavam bem instaladas em frente à televisão e subi a
escadaria estreita que levava ao quarto da minha mãe. A tua mãe era fraca,
Grace? Imagino que sim. Aposto que era muito semelhante à minha em
vários aspetos. A única diferença é que a minha mãe tinha um marido para a
proteger do mundo, e a tua, não. Eu não queria desferir um golpe duro sobre
ela, muito menos naquele dia. Mas subitamente senti-me tão cansado de
andar em bicos dos pés à volta dela, de me esforçar para que ela não tivesse
de enfrentar nenhuma pressão ou situação desagradável, como ela
costumava dizer. Queria ser franco, uma vez na vida. E fui.
Lottie não estava a dormir. Estava apenas deitada na meia-luz, agarrada
a uma almofada como se fosse um ursinho de peluche. Parecia pequenina,
com o seu cabelo loiro fino espalhado sobre as almofadas como se fosse
uma criança. Eu sentei-me do outro lado da cama e disse-lhe que sabia que
Christopher não era o meu pai biológico. Não fazia sentido dar-lhe sequer a
oportunidade de mentir. Se eu estava à espera de a ver transtornada e a
implorar o meu perdão, estava enganado. Ela negou tudo com uma energia
que nunca lhe tinha visto. Era uma energia que eu nem sequer sabia que ela
tinha dentro dela, para ser franco.
Demorámos dez minutos a passar da fase do ultraje, em que ela dizia
não poder crer que eu pudesse afirmar tal coisa. Foram mais 20 minutos
para passar da fase do choro e da reiterada insistência em que não era
possível falarmos sobre tais coisas, e muito menos naquele dia. E meia hora
depois, Lottie estava a abraçar-me, dizendo-me que Christophe era o meu
pai, dissessem as pessoas o que dissessem. Doze minutos depois, começou a
contar-me a verdade.
A minha mãe teve uma educação bastante protegida em Somerset, com
uma família que tinha uma pequena e bela casa antiga e um nome
respeitado. Não houve muito dinheiro para ela, visto que o primeiro filho
era o filho predileto, mas foi feliz quanto baste. Foi para Londres aos 20
anos, com o pretexto de ir trabalhar para uma galeria de arte perto de Savile
Row, mas, acima de tudo, disse-me ela, para ter uma aventura. Para a minha
mãe, isto significava ir a muitas festas, discotecas e excursões ao Sul de
França com amigos ricos. Eu sabia que ela tinha vivido em Londres antes
de me ter, mas fiquei um pouco surpreendido com aquela vida em roda livre
de que agora me estava a falar. A minha mãe usou casacos de lã e galochas
a vida toda. Ainda é difícil para mim imaginá-la a ir a alguns dos clubes da
cidade que eu frequento. Já conhecia Christopher, contou-me ela, mas eram
apenas amigos. Ele era tímido, coisa que eu sabia que toda a vida tinha sido,
e ela não reparava muito nele quando estavam em grupo.
Uma noite, numa discoteca chamada Vanessa’s, ela estava sentada num
banco com um grupo de amigas quando um empregado lhe levou uma taça
de champanhe e lhe disse que era do cavalheiro que estava ao balcão.
Quando olhou, viu um homem de cabelo escuro com uma t-shirt e calças
pretas, a olhar fixamente para ela. Com uma respiração trémula e ofegante,
a minha mãe explicou-me que ficou intrigada. A maior parte dos homens
que ela conhecia já eram fotocópias dos próprios pais. Corretos e
reservados, à procura do tipo de esposa certa. Este era diferente, e as amigas
dela fizeram um grande alarido em torno da sua abordagem, instando a
minha mãe a ir falar com ele. E ela assim fez. A minha mãe ansiosa, que se
vai deitar sempre que a vida a deita abaixo, abeirou-se deste desconhecido e
entabulou conversa.
Não preciso de te contar o resto, pois não, Grace? Tu já sabes. Não é a
tua história, no entanto, é como se fosse. Quando Lottie descobriu que
estava grávida, já este homem tinha passado à fase seguinte. E ela não era
forte como a tua mãe. Horrorizada com o que os pais iriam pensar,
continuou a trabalhar em estado de negação.
Até que, um dia, o meu pai apareceu no apartamento que ela partilhava
com algumas amigas perto de Kings Road e disse-lhe que sabia o que tinha
acontecido. Eu não sei se ele tinha adivinhado ou o que é que se passou ao
certo, mas Lottie estava a chorar bastante nesta parte da história e eu não
quis pressioná-la, mas ele foi muito generoso e disse-lhe que se deviam
casar. Dou por mim a sorrir só de pensar nisso. Que gesto de heroísmo
vitoriano por parte do meu velho pai. Estávamos nos anos 90, valha-me
Deus! Mas os meus avós eram antiquados, e estou certo de que teriam
execrado qualquer tipo de falatório. Tal como a minha mãe, aliás. Há uma
parte da classe alta britânica que aprecia o escândalo, ou pelo menos acha
que tudo é uma anedota. A minha família, apesar da nossa boa fortuna, não
estava bem nesse nível. Ela sorriu ao recordar a sua reação à proposta, ainda
com a almofada apertada contra o corpo.
Não sei se Lottie tinha alguma paixão romântica por Christopher nessa
altura. Talvez nunca tenha tido. Mas eles foram felizes, Grace.
Verdadeiramente felizes. E isso pode significar mais do que os fogachos da
paixão que os homens estão sempre a ouvir dizer que as mulheres querem.
O príncipe Carlos, que parece ser um tipo decente, meteu-se numa grande
alhada quando respondeu a um jornalista que lhe perguntou se amava
Diana, ao dizer: «seja lá o que for o amor».
Eu não sabia o que fazer nessa noite. Ver a Mamã a chorar foi horrível.
Por isso, abracei-a, dei-lhe um calmante que o nosso médico de família lhe
tinha receitado e deixei-a a dormir. O resto da história revelou-se ao longo
das semanas seguintes. Voltei ao trabalho e ia para casa da minha mãe todas
as sextas-feiras à noite, passeava o cão durante quilómetros com as minhas
irmãs e certificava-me de que a minha mãe comia (coisa que tem tendência
para se esquecer de fazer quando está ansiosa). De vez em quando, fazia
uma ou outra pergunta sobre o meu pai, e ela corava e desfalecia. Às vezes,
respondia, outras vezes, não — talvez não conseguisse. Mas eu não
conseguia deixar de insistir. Olhava para as minhas irmãs e, de um
momento para o outro, via como as suas feições não eram nada parecidas
com as minhas. Perguntava-me que partes de mim eram da minha mãe e
quais não eram. O meu temperamento sempre tinha sido tema de conversa
na minha família — sou capaz de explodir de uma maneira que mais
ninguém faz. Christopher era demasiado doce, Lottie demasiado fraca.
Agora sabia que esse temperamento me tinha sido dado por outra pessoa.
Os laços de sangue são importantes para mim, Grace. Não de uma maneira
limitada e obcecada com o sangue azul, como alguns dos meus colegas de
escola que queriam saber que terras é que as nossas famílias detinham no
século xvi, mas porque nos dizem coisas sobre nós mesmos que nada mais
pode dizer. Eu julgava que era o filho de Christopher e de Lottie Hawthorne
e sabia o que isso significava. Sabia quem era e quem é que seria. E agora
tinha de descobrir onde e de que maneira é que me tinha enganado sobre
tudo isso.
Ela deu-me o nome do meu pai num domingo, estava eu estava a
carregar o meu carro para voltar para Londres. Enquanto eu pegava no
último saco do quarto das roupas, ela veio ter comigo, envolvendo o seu
próprio corpo com os braços, como se se estivesse a proteger de mim, e
beijou-me a face.
— Simon. Simon Artemis — sussurrou ela, enquanto se afastava de
mim e se encaminhava decididamente para a cozinha onde as minhas irmãs
estavam a fazer bolinhos.
Eu não ando a par do mundo das celebridades. Se me perguntares pela
família Kardashian, eu dir-te-ei, orgulhosamente, que, até há dois anos,
pensava que era uma dinastia do Médio Oriente. Mas conheço o mundo dos
negócios e aquele nome bateu-me em cheio como um murro no estômago.
Durante toda a viagem puxei pela cabeça a tentar lembrar-me de todos os
pormenores que sabia sobre ele. Os seus pais eram retalhistas de classe
média. Ele começou por abrir uma tenda no mercado a vender saias feitas
de desperdícios aos 16 anos e fez dinheiro suficiente para comprar a sua
primeira loja aos 19. O olho para as tendências e a insistência em ter
produtos novos à venda todas as quintas-feiras (imediatamente antes do fim
de semana, perspicaz) fê-lo ganhar o seu primeiro milhão aos 24 anos de
idade. Desde então, o império Artemis não tinha parado de crescer, fazendo
dele uma presença permanente na lista dos grandes milionários. Simon
Artemis era conselheiro do governo para o mercado e comércio, um papel
essencialmente simbólico, mas que lhe conferia uma aura de
respeitabilidade que, para sermos sinceros, ele não merecia. Não sei quanto
é que tu sabes (ou se queres saber) dos seus negócios, mas ele foi sempre
um homem de negociatas desde o primeiro dia e nunca deixou de o ser ao
longo das últimas décadas. A sua empresa de moda funcionou quando as
outras se afundaram porque ele manteve sempre uma atitude agressiva em
relação às margens de lucro e explorava todos os vazios legais em seu
benefício. Comprou a Sassy Girl com dinheiro de investidores privados e
depois pagou-lhes com ativos que retirou do negócio. Não lhe custou nem
um centavo! Os seus tecidos eram abaixo da média, as suas fábricas
ficavam em países longínquos onde as leis laborais eram inexistentes. Isto
mudou quando houve um clamor geral em relação às condições de trabalho
nas fábricas em meados dos anos 90, mas ele limitou-se a deslocar as
operações para outro país mais ansioso por fechar os olhos e mais capaz de
manter os jornalistas e os ativistas à distância. Simon contratou uma equipa
de contabilistas e advogados para assegurar que pagava o mínimo de
impostos possível no Reino Unido, e mantinha o pessoal com contratos
muito duvidosos, que acabavam muitas vezes antes de ele ser obrigado a
pagar quaisquer benefícios. Os contratos de confidencialidade eram
generalizados na sua empresa — sabe Deus o que é que encobriam. Houve
pelo menos oito casos de mulheres despedidas quando engravidaram, e
apesar de os seus representantes terem sido capazes de defender com êxito
que tinha havido razões legítimas para os despedimentos, toda a gente sabia
que o grupo Artemis era gerido por tubarões.
Devo dizer que não tenho quaisquer problemas com isto. Acredito que
os negócios se devem autorregular, e que a legislação destinada a proteger
os trabalhadores asfixia a inovação e o crescimento. Se se amarrar
demasiado as mãos de uma empresa, ela não terá outro remédio senão
mudar o seu quartel-general para outro sítio — o que é um verdadeiro
desastre para a economia do Reino Unido. Simon jogava com a lei, e eu não
o censuro por ter explorado os seus limites.
Eu tinha dificuldade em aceitar quem o meu pai era por uma razão
diferente, e estou ciente de que isso me pode apresentar a uma luz pouco
favorável aos teus olhos, Grace. Mas estou a ser completamente honesto, e
também não há nada que tu possas fazer com isto, por isso sinto-me livre
para ser franco. A minha principal reação quando descobri quem era o meu
verdadeiro pai ao fim de 23 anos foi de um grande embaraço. Christopher
era um homem que sabia quais os botins que tinham o tom de verde
adequado para não dar nas vistas. Usava fatos de fazenda de tons discretos e
jamais teria aceitado um cartão dourado por receio de parecer deselegante.
Eu cresci numa família em que o bom gosto e a etiqueta eram inatos, eram-
nos naturalmente incutidos, nunca eram discutidos porque nunca
precisávamos de verbalizar nada sobre isso. Mas este homem era o oposto
de tudo o que eu entendia. Passei alguns dias na Internet à procura do
máximo de informação que consegui encontrar sobre ele e todas as páginas
em que cliquei me deixaram horrorizado. Simon era proprietário de uma
frota de automóveis com chapas de matrícula personalizadas. Usava um
anel no dedo mindinho com um escudo de armas que tinha mandado
desenhar para a sua família a um joalheiro cujos principais clientes eram
russos. Havia várias colunas da Hello! que mostravam a casa de família dos
Artemis e a quantidade de creme e dourado em exposição faziam-me gemer
em voz alta. Era tudo indescritivelmente pegajoso. Era dinheiro novo,
mobília nova, arrivismo. Tudo o que eu sabia não ser, sem que alguma vez
tivesse tido de explicar porquê.
Não conseguia tirar da cabeça como é que Lottie podia ter sido seduzida
por semelhante personagem. Ela era nova e fraca, é certo, mas, valha-me
Deus, este homem era a antítese de tudo o que ela alguma vez conhecera.
Repugnava-me, verdade seja dita. As minhas irmãs tinham nascido
numa família feliz, em que as convenções e as tradições tinham bastante
significado. Eu pensava que também era. Mas, em vez disso, tinha aterrado
aqui depois de a minha mãe ter sido suficientemente tonta para se entregar
por uma noite a um playboy que passava férias em Marbella e de vez em
quando aparecia num programa de televisão sobre novas ideias de negócios
chamado Mogul Wars.
A classe importa, Grace. Eu sei que nem sempre é conveniente dizer
isto, mas acho que é uma perfeita loucura negar uma realidade apenas
porque é desconfortável. Não sei o que é que pensas das origens de Simon
ou da sua predileção por relógios tão grandes que podiam servir de
despertador na mesa de cabeceira, mas imagino que tenhas reservas
idênticas. Não quero dizer que tenha sido pior para mim, mas convenhamos
que foi pior para mim. Cresci mesmo no meio de um sistema de classes
rígido que os britânicos habilidosamente criaram há mil anos. É sempre pior
para aqueles que oscilam precariamente entre as categorias — pelo menos
tu sabias qual era o teu lugar na hierarquia.
Passei alguns meses num vaivém entre o trabalho e a casa de Lottie,
tentando transmitir às minhas irmãs um sentimento de normalidade e, para
ser sincero, para dar um sentimento de normalidade a mim mesmo. Em
Londres, estava a progredir no trabalho e a ganhar um ordenado decente,
mas em Surrey começava a tornar-se cada vez mais óbvio que Christopher
não tinha vivido tão confortavelmente como nós julgávamos. O seu
testamento deixava tudo a Lottie — a casa, o carro, os seus investimentos e
a sua pensão —, mas ele tinha feito uma nova hipoteca sem que nenhum de
nós soubesse, três anos antes, e tinha andado a tirar dinheiro da pensão para
pagar as propinas do colégio das miúdas e cobrir as despesas de estilo de
vida. Nada de especial — Christopher não era um esbanjador -, mas, como
eu estava a dizer, o nosso círculo social tinha padrões bastante exigentes e o
meu pai empenhava-se tanto em estar ao nível dos Jones8 — como se
costuma dizer — como qualquer outra pessoa. Só que, no nosso caso, em
vez dos Jones, eram os Guinness, os Montefiore, os Ascot...
Lottie preferia enterrar a cabeça na areia, distraindo-se de quaisquer
questões imediatas suscitadas pela morte do marido, jardinando quase
obsessivamente de manhã à noite. De cada vez que eu tentava abordar o
assunto com ela, enfiava-me bolbos nas mãos ou atirava-me mãos-cheias de
ervas daninhas para cima. Uma vez, enfiou-se numa sebe de espinhos só
para não ouvir a conversa. Mas eu tinha andado a estudar as contas e sabia
que precisávamos de uma injeção de capital urgentemente. Perder a casa
seria uma indignidade de que nenhum de nós recuperaria facilmente. A
nossa família é tradicional, e agora era eu o chefe de família,
independentemente das normas modernas. Lottie não conseguia ou não
queria enfrentar os factos, por isso, era eu que tinha de assumir as rédeas.
Sou uma pessoa prática, Grace. Fui muitas vezes censurado pelo meu
professor de inglês por não ter a imaginação necessária para compreender
as grandes obras de ficção. Não conseguia ver por mim próprio qual era o
interesse da maior parte das coisas. Se tiver de ler um livro, prefiro que seja
uma autobiografia, de preferência, relacionada com desporto. Nunca senti
que isso me prejudicasse na vida. Não sou um sonhador. Sei o que quero e
do que preciso para ter uma vida boa, e sou capaz de trabalhar que nem um
louco para o conseguir. Mas não tinha tempo suficiente para assegurar o
futuro da minha família se continuasse a ter uma posição menor na city. Por
isso, adotei uma nova linha de ação.
Consegues ver o que aí vem? Imagino que seja bastante óbvio. Decidi
que Simon seria a nossa tábua de salvação. A ideia ocorreu-me pela
primeira vez numa noite no meu quarto, enquanto revia as notas do
contabilista sobre a hipoteca, as propinas, a manutenção da casa. As
despesas eram enormes e não havia rendimentos suficientes para as
acomodar. Fala com o teu verdadeiro pai, sussurrava uma voz dentro de
mim. Quase me dava vontade de rir. Eu, contactar aquele homem assim, de
um momento para o outro, e pedir-lhe para financiar a minha família, sobre
a qual ele não sabia rigorosamente nada. Que disparate. E mesmo que
pudesse, era claro que não queria envolver-me com aquele homem. Não por
quaisquer escrúpulos morais — dinheiro é dinheiro, e ele decerto que tinha
muito —, mas sim porque era tudo demasiado sujo e de mau gosto. Um pai
recém-descoberto, um homem que se fazia fotografar com oligarcas em
clubes privados vagamente sórdidos. Um motorista num Bentley.
Tentei repudiar a ideia, mas ela não deixava de me perseguir. De cada
vez que olhava para as contas, o nome dele bailava no meu espírito.
Finalmente, depois de uma conversa algo atormentada com o contabilista,
que me explicou categoricamente que as miúdas teriam de abandonar o
colégio no final do ano, a menos que fizéssemos alguma coisa, a minha
resolução caiu por terra.
Não se envia um e-mail a um homem como Simon Artemis. Aprendi
isso nos poucos meses em que estive no mundo da finança. Pessoas assim
são demasiado importantes. Têm cinco assistentes e a sua caixa de
mensagens é monitorizada, selecionada, as mensagens prioritárias são
acionadas em minutos. Qualquer coisa que eu enviasse seria relegada para a
pilha dos «malucos» e irremediavelmente esquecida. Por isso, resolvi
aparecer no seu escritório. Era um passo arriscado, mas eu sentia que a
abordagem direta me assentava bem. Como costumava ler as páginas da
imprensa financeira todos os dias, sabia que o grupo Artemis estava de olho
numa empresa de vestuário mais pequena chamada «Re’belle», com
excelentes propriedades em Kensington e no Soho. O antigo dono não
estava a querer ceder, teimando que a empresa seria sempre um negócio
familiar. Eu utilizei o nome do seu filho na receção, e disse que estava ali
para abrir um novo canal de comunicação. Podia ter corrido mal, mas a
assistente parecia saber quem eu professava ser (suponho que Benny
Fairstein é um nome bastante memorável para quem está no negócio da
moda) e pôs-se imediatamente ao telefone. Só tive de esperar dez minutos
até ser conduzido ao gabinete de Simon. Os seus olhos semicerraram-se
quando eu entrei, e eu percebi que tinha pouco tempo para explicar quem
realmente era.
Grace, és a única pessoa no mundo com quem desejo partilhar isto. Sei
que vais achar isto fascinante, que não estarás interessada nos aspetos
mexeriqueiros da história. Fui direito ao assunto, não pedi desculpa pelos
meus falsos pretextos. Sentei-me numa poltrona diante dele, olhei-o nos
olhos e disse-lhe que era seu filho. Antes mesmo de continuar a explicar o
que quer que fosse, tenho de dizer que ele não pareceu muito surpreendido.
Talvez já estivesse à espera de que um ou dois filhos extraviados lhe
aparecessem um dia. O que, a confirmar-se, era muito prudente da parte
dele.
Falei-lhe de Lottie, pedi-lhe que tentasse puxar pela memória. Esperei.
Ele examinou-me o rosto com o olhar, e eu examinei o dele. Demo-nos
conta dos nossos narizes idênticos ao mesmo tempo. Suponho que num
filme este seria o momento em que a música de fundo começaria a tocar.
Mas nós permanecemos em silêncio. Depois ele perguntou-me o que é que
eu queria. Ora, quando se faz um negócio, há duas maneiras de abordar uma
pergunta destas. Uma delas é disfarçar a resposta, lisonjear o interlocutor e
atirar ideias vagas e inacabadas para o ar, a outra é ir direito ao assunto. Eu
não tenho tempo para a primeira opção. Disse-lhe que não tinha intenção de
lhe causar qualquer embaraço, que não pretendia ser o filho perdido ansioso
por se juntar ao seu novo império. Assegurei-lhe que o respeitava, mas
agora tinha uma família para sustentar e ele era a única pessoa a quem eu
podia recorrer. Propus-lhe um acordo único, apresentei um valor fechado
num envelope em cima da mesa, e voltei a reclinar-me na poltrona. Ele
abriu-o e riu-se. Não sei bem do que é que estava à espera, mas o riso não
seria a minha primeira aposta. Olhando para trás, acho que o valor o
impressionou. Talvez ele pensasse que era um jogo de poder. Não era — eu
só queria dinheiro, pura e simplesmente —, mas talvez a minha motivação
fosse suficientemente forte para me tornar mais arrojado.
O que foi estranho foi que serviu para quebrar o gelo. Imagino que
quando se é assim tão rico devemos passar o tempo todo a desconfiar que
toda a gente quer obter alguma coisa de nós. Se uma pessoa se limitar a
confirmar isso sem rodeios, então, podemos passar à fase seguinte. Em vez
de atender ao meu pedido, reclinou-se na cadeira, carregou no
intercomunicador e pediu à secretária que cancelasse a reunião seguinte.
Depois perguntou-me pela minha vida — onde eu vivia, o que fazia, qual
era o meu clube de futebol. Ao princípio, foi um pouco estranho, mas eu
alinhei na conversa. Abanou a cabeça quando lhe contei da morte de
Christopher, e sorriu-me quando lhe disse que estava a trabalhar na city.
Viemos a descobrir que ambos éramos adeptos do Queens Park Rangers e
trocámos algumas opiniões sobre o treinador, com ele a meter-se comigo
por ter falhado o último grande jogo da equipa. Para alguém de fora,
poderia parecer um encontro normal entre pai e filho. Eu não parava de
pensar nisso. Não parava de pensar que este homem era meu pai. Este
homem bronzeado, de corpo trabalhado no ginásio, com um fato cinzento-
metalizado e que usava um relógio de ouro que refletia a luz do sol nos
meus olhos quando mexia o braço.
Meu Deus, estou-me a tornar aborrecido, Grace, desculpa. Mas toda esta
situação tem sido uma verdadeira loucura para mim, e eu não sou do género
de deitar tudo cá para fora com um terapeuta. Mais vale estoirar, é o que eu
penso sempre. E não tenho muito de que me queixar, na verdade. Tenho
uma boa família, um bom trabalho e estabilidade financeira. Ah, sim — era
aí que eu queria chegar. Simon deu-me o dinheiro. Foi necessária alguma
altercação, que foi surpreendentemente bem-humorada. O meu valor inicial
foi liminarmente rejeitado, mas acabámos por concordar numa quantia
simpática de seis dígitos para amparar a minha mãe até eu estar em
melhores condições para fazer face à situação. O dinheiro vinha sob
condição de eu fazer um teste de ADN, o que era compreensível, mas fez-
me ficar a ferver por dentro. Sentia que a honra de Lottie estava a ser posta
em questão. Mas a honra é pouca quando estamos em presença de um
homem de negócios como Simon, não é verdade?
Nas seis semanas que foram precisas para negociarmos o acordo,
encontrei-me com Simon algumas vezes. A maior parte das vezes no seu
gabinete, mas uma ou outra vez num clube privado perto de Berkeley
Square. Numa ocasião, fomos a um jogo juntos, evitando o seu camarote
privado — imagino que ele não me quisesse apresentar aos amigos, o que
era compreensível. Como é que uma pessoa apresenta o filho secreto a um
bando de magnatas que adorariam explorar essa vulnerabilidade enquanto
almoçavam num buffet pago por nós? O Queens Park Rangers ganhou 2-1 e
a nossa relação subiu mais um patamar. Não era preciso ser-se um génio
para perceber que ter um filho era algo que agradava a Simon. Podia não ser
um filho criado por ele, ou que ele sequer conhecesse muito bem, mas dava-
lhe bastante gozo na mesma. Gracejava comigo, zombava do meu blazer,
oferecia-se para me apresentar aos seus amigos da city. Às vezes,
combinava encontrar-se comigo sob pretexto de rever os termos do nosso
pequeno pacto, para depois nem sequer mo referir quando estávamos cara a
cara, preferindo oferecer-me um copo, contar-me o seu último negócio,
desafiar-me para um jogo de cartas.
Havia uma certa presunção no nosso velho pai. Não era exatamente
charme, mas sim um sorriso de dentes arreganhados, uma confiança que
subjugava os outros, um sentimento de que as coisas nos podiam correr
bem, mas só se ele assim desejasse. O seu aperto de mão transmitia uma
força séria, mas parecia um pouco artificial — como se ele tivesse lido um
manual sobre como mostrar a sua dominância através do contacto físico.
Sabia os nomes dos porteiros, das criadas, da senhora da limpeza do seu
escritório, e mais do que uma vez o vi meter-lhes dinheiro nas palmas das
mãos com uma espécie de galanteria agressiva. No entanto, toda a gente que
passava por ele parecia vagamente intimidada pelo homem. Verdade seja
dita, sabia bastante bem ser a pessoa que estava na sua companhia.
Sentíamo-nos respeitados, e era isso que eu sentia. As pessoas acenavam-
me com a cabeça como se eu também fosse alguém, como se fizesse parte
do círculo íntimo de Simon Artemis.
Mas quando não estava deslumbrado com o poder que ele irradiava da
pele, lembrava-me de que ele não era inteiramente respeitado da maneira
que ele próprio gostaria de imaginar que era. As pessoas na city tinham uma
opinião negativa sobre as suas táticas de valentão — as coisas ficaram
bastante negras quando o Evening Standard fez mais uma parangona com
ele a repreender uma ajudante de loja por não ter os varões em condições
quando ele fez uma das suas visitas surpresa. Simon telefonava aos
jornalistas que escreviam essas peças, a censurá-los por escreverem
semelhantes «parvoíces» e a desconsiderar as histórias como sinal de
inveja. Uma vez, depois de ter organizado uma festa pelo 50.° aniversário
da mulher no Coliseu (ele reservou mesmo o raio do Coliseu, Grace), um
tabloide publicou uma história a explorar o alegado custo de 500 mil libras,
e ele enviou à jornalista em questão um bilhete de primeira classe para
Roma com um bilhete a dizer «Desculpe, vai ter de ir para a fila com as
outras sacanas imundas. Aposto que teria gostado de o ver ao pôr do sol
com uma taça de champanhe na mão, como nós». Pergunto-me se ela terá
aceitado a oferta...
Ele queria ser parte do establishment, mas não conseguia esconder
inteiramente a sua proveniência. Uma vez, olhei para as suas mãos
enquanto ele estava a falar e reparei que tinha umas unhas polidas e
brilhantes, quase como se tivesse ido a uma manicura. Suponho que terá ido
mesmo. Eu não sou metrossexual, mas sei que há tipos a quem dá para aí.
Mas é uma coisa que nunca vai ser bem aceite pela velha guarda, pois não?
Ele também devia saber disso, mas continuava a manter aquele toque
extravagante. Era como se ele percebesse que nunca iria ser aceite e por isso
se visse compelido a dobrar a parada. Chegava a um jantar de caridade com
um carro tão vistoso que deixava as pessoas incomodadas, mas depois
gastava mais dinheiro do que qualquer outra pessoa no leilão do jantar,
sabendo que, desse modo, a alta sociedade seria obrigada a falar com ele.
Para lhe agradecer. Para gravar o seu nome na parede de uma galeria.
Meu Deus, estou outra vez a divagar. Tudo isto é para tentar resumir
como me sentia dividido em relação a tudo aquilo. Ele era encantador e
interessava-se por mim, e eu tenho de admitir que me sentia algo cativado
por isso. Mas nunca me senti completamente à vontade na sua companhia e
senti-me aliviado quando as negociações se aproximaram do fim. Da
maneira como eu via as coisas, ele iria pagar para me sustentar durante 18
anos, e eu poderia assim zelar pela minha família. Dito e feito. Eu jamais
teria sido capaz de o chantagear ou de fazer algo de ignóbil desse género.
Se ele tivesse rejeitado o meu pedido, ter-me-ia ido embora. Sou bastante
orgulhoso e não teria sido capaz de implorar. Esperava que ele se portasse
como um cavalheiro e, em certa medida, foi isso que aconteceu. Mas tinha
de haver algum benefício para Simon. Ninguém consegue enriquecer
daquela maneira se não estiver constantemente em busca de compensações,
suponho eu. Eu pensava que iria comprá-lo com o meu silêncio, mas estava
completamente enganado.
Depois de ter feito a transferência bancária (da sua conta para a minha,
complementada com um acordo de confidencialidade tão rigoroso que nos
deixava os olhos em lágrimas), apertou-me a mão e mandou vir uma
rodada. Nessa noite, passámos quase seis horas juntos, na sala privada de
um dos restaurantes mais finos do Soho, onde o bife que ele pediu para mim
custou 68 libras e cujos empregados nunca olhavam diretamente para nós.
Era como um encontro de namorados, e de cada vez que ele pedia mais uma
garrafa, eu pestanejava face ao absurdo de tudo aquilo. Tentei ir-me embora
várias vezes, mas Simon repudiava as minhas tentativas com irritação.
— Estamos a conhecer-nos melhor, filho meu! O que é que pode haver
de mais importante?
Depois, mergulhava em mais uma história sobre a sua brilhante
estratégia de negócios, ou explicava-me como tinha conseguido esmagar
um rival por ter sido mais cruel. Eu cheguei a casa e enfiei-me na cama às
três da manhã, sabendo que teria de voltar a levantar-me daí a três horas.
Acordei às seis da manhã, com a cabeça a latejar de dor e as mãos a tremer.
Peguei no telefone e vi que ele já me tinha enviado uma mensagem.
«Futebol este fim de semana. Vemo-nos ao pequeno-almoço antes do jogo».
Apesar de a minha cabeça estar envolta em nevoeiro, compreendi então que
não iria haver uma saída fácil para isto. Simon pagou e agora queria-me à
sua mercê. Seria por gostar de mim e estar contente por ter encontrado o seu
filho perdido? Podia ser. Mas o mais provável era que quisesse apenas ter o
controlo da situação, ter controlo sobre mim. Se ele tinha de se resignar a
ser colocado numa posição vulnerável, iria extrair alguma coisa daí, fosse lá
o que fosse, mesmo que eu não quisesse entrar no jogo — especialmente se
eu não quisesse entrar no jogo.
Não sei o que teria feito se tivesse de continuar assim durante anos,
representando o papel do filho que ele desejava. Poucas semanas depois de
ele me ter entregado o dinheiro, já a coisa era bastante insuportável, Grace.
O fascínio comigo desvaneceu-se rapidamente, e Simon começou a tratar-
me como tratava toda a gente. Significa isto que esperava que eu fosse ter
com ele a correr quando me chamasse. Telefonava-me quando eu estava no
escritório, e se eu não atendesse, telefonava logo outra vez. Um dia pus o
meu telefone em modo de avião só para evitar ver a luzinha a piscar pelo
canto do olho. Quando o voltei a ligar, tinha três mensagens dele, uma das
quais a chamar-me «imbecil preguiçoso». A mensagem vinha envolta nos
seus gracejos habituais, mas era evidente que aquilo era intencional.
Continuei a ir a casa tanto quanto possível. A minha mãe estava um
pouco melhor, apesar de continuar a jardinar obsessivamente. Claro que não
contei a Lottie que andava a passar tanto tempo com Simon. Não lhe contei
nada. As propinas do colégio foram pagas e a hipoteca saldada. Lottie não
me perguntou como é que eu tinha conseguido, o que me deixou
momentaneamente zangado. Estava habituada a que lhe tratassem de tudo e
não se dava ao trabalho de pensar no que era preciso para o resolver. Mas
era uma atitude pouco generosa da minha parte. Ninguém podia esperar que
a minha mãe soubesse o que eu tinha feito para salvaguardar a nossa
família. Não estava suficientemente forte. Talvez nunca viesse a estar.
Simon apenas se referiu à minha mãe uma única vez na minha presença.
Depois do nosso primeiro encontro, eu perguntei-me se ele realmente se
recordaria dela. Era evidente que ela não era propriamente a única mulher a
ter recebido o tratamento Artemis completo. Seria compreensível se ela
fosse apenas uma imagem esbatida na sua memória. Mas um dia olhou de
relance para o meu telefone quando este se iluminou com um alerta de
mensagem e reparou na minha imagem de fundo.
— Essa é a tua mãe? — Perguntou ele, com os olhos focados numa
fotografia de Lottie abraçada às minhas irmãs no relvado à porta de nossa
casa. Eu assenti com a cabeça, mas fiquei ligeiramente tenso, não querendo
que ele visse a minha família ou que conspurcasse o nosso espaço. —
Credo, o tempo não é nada amigo das mulheres — disse ele. — Uma pessoa
vai para a cama com uma bomba aos 25 e aos 50 acorda ao lado da avó.
Senti uma raiva cega invadir-me o corpo, um acesso de calor inundar-
me as faces. Derrubei o pequeno banco do bar de um modo um tanto
dramático, e irrompi porta fora. Simon enviou-me uma caixa de vinho nessa
noite, caixa essa que Ben, o meu colega de casa, veio trazer ao meu quarto,
perguntando-me quem é que me andava a comprar um tintol de cinco mil
paus. Pelo menos, era vinho bom e não a zurrapa que ele vendia com a sua
própria marca. De qualquer maneira, com vinho ou sem vinho, era
demasiado tarde. Tinha decidido que não queria ter mais nada a ver com
este pai tardio. Ia escrever-lhe uma carta a explicar que estava grato pela
sua ajuda, mas a sublinhar que tinha passado 23 anos com um pai
maravilhoso e que não estava interessado em substituí-lo. Senti um alívio
espantoso quando a escrevi ao computador nessa noite. O mundo dele
subjugava-me, e eu queria voltar ao meu próprio mundo.
Podia ter ficado tudo por aí. Ele podia espernear um pouco, mas, na
realidade, que poderia fazer? A minha existência era potencialmente uma
granada na sua vida, e eu não via como é que isso poderia mudar. Nunca
poderia falar de mim à sua mulher ou filha. E eu não queria que ele o
fizesse. O melhor era darmos um aperto de mão e seguir cada um o seu
caminho — eu estava confiante de que ele acabaria por ver as coisas assim.
Mas nessa noite os pais de Simon morreram num acidente de carro.
Descobri quando ele me telefonou aos soluços na manhã seguinte. Tinha a
carta na minha mala, pronta para pôr no correio a caminho do trabalho. Em
vez disso, dei por mim a sair mais cedo do trabalho (desculpei-me com uma
emergência familiar, o que não era totalmente mentira) e dirigi-me para a
casa de Simon em Hampstead. A sua mulher e filha estavam no Mónaco,
dissera ele. Poderia eu aparecer? Não sou um monstro, não podia deixar
aquele homem a chorar sozinho. Por isso, sentei-me na sua mansão sinistra,
enquanto uma mulherzinha vietnamita nos servia chá gelado e nos oferecia
uma quantidade interminável de bolachinhas. As bolachas continuaram por
comer, apesar de eu estar esfomeado. O chá gelado foi rejeitado e trocado
por uma garrafa de whiskey que Simon não parava de alcançar, enchendo
um copo dourado no chão junto aos pés. Simon estava afundado num sofá
rodeado de almofadas com borlas que ameaçavam fazê-lo desaparecer. Eu
posicionei-me diante dele, empoleirado num grande pufe, desejando
ardentemente estar noutro sítio qualquer do planeta que não ali.
Por entre telefonemas ao seu irmão, a um advogado e à sua assistente,
falou mais ou menos na minha direção sobre como Kathleen e Jeremy eram
«diamantes». Eu ofereci-lhe algumas palavras de pesar e disse-lhe que sabia
como era duro perder um pai. Ele não apreciou muito isto, murmurando que
eu estava a tentar fazê-lo sentir-se mal por não assumir as suas
responsabilidades. Pedi-lhe desculpa, tentando minimizar a minha perda e
sentindo-me aborrecido comigo mesmo por o fazer.
O dia arrastou-se, e eu fiquei basicamente sozinho na sala de estar
enquanto Simon atendia mais telefonemas e bebia mais whiskey. Às quatro
da manhã, murmurou qualquer coisa sobre Bryony estar a caminho de casa,
o que eu agradeci como a minha deixa para me ir embora. Enquanto me
dirigia ostensivamente para a porta, Simon agarrou-me pelo braço e puxou-
me para uma espreguiçadeira cor de pêssego que estava no átrio. E foi então
que, de uma maneira algo distorcida e não totalmente coerente, ele me
contou uma coisa que mudaria o resto da minha vida. Falou-me sobre ti,
Grace.
Até esse momento, acho que nunca tinha considerado a ideia de ter toda
uma outra família. Simon era um meio para atingir um fim — eu tinha a
minha família e não tinha a menor vontade de conhecer Bryony ou a sua
horrível mãe. Não queria ter nada a ver com a maneira como elas viviam e
desconfiava de que elas sentiriam o mesmo em relação a mim, se tivessem
alguma ideia da minha existência. Mas tu eras diferente. Tu estavas de fora,
eras alguém que também não tinha voto na matéria. Enquanto Simon
divagava sobre a forma como desmerecera o exemplo que lhe havia sido
dado pelos seus próprios pais, eu via as semelhanças entre as nossas
histórias. Ambos nascidos de mulheres novas e tontas, deslumbradas por
este homem importante, e depois postas de lado quando ele se começou a
aborrecer e a considerar a sua presença inconveniente. Apesar de eu achar
que ter dois filhos ilegítimos de duas mulheres diferentes estende um pouco
o sentido da palavra «inconveniente».
Não sei porque é que ele me falou sobre ti, Grace. Estava embriagado,
mas já devia ter estado embriagado mais de mil vezes e não tinha andado a
contar às pessoas que tinha uma filha secreta. Só posso supor que tenha sido
o desgosto. Diz-se que faz coisas estranhas às pessoas, não é? Como a
minha velha tia Jean, que guardou o segredo sobre a minha paternidade
durante 23 anos para o soltar da boca para fora no funeral, como se não
conseguisse guardá-lo por mais tempo. Ele disse-me que ainda era novo,
que os pais lhe tinham dito que resolvesse o problema e que tinha tido medo
de perder tudo. Era tudo treta, claro. Um homem como deve ser não
abandonaria uma criança, muito menos duas, mas eu não lhe podia dizer
isso enquanto ele estava ali bêbedo a chorar. Disse-lhe apenas que tinha
feito o que lhe parecera melhor, ao mesmo tempo que lhe fazia perguntas
sobre ti com a maior delicadeza possível.
No seu estado algo destroçado, baixara a guarda apenas o suficiente
para me manter interessado. Vou ser honesto contigo. Ele não sabia grande
coisa. A sua tristeza com a situação toda era bastante teatral, e não imagino
que ele estivesse muito a par da tua vida. Espero que isto não seja
demasiado aborrecido para ti. A julgar pelo que sei de ti, suponho que não
será. Ele sabia o teu nome e onde tinhas crescido. Sabia até que trabalhavas
em moda, o que queria dizer, aparentemente, «que a maçã não tinha caído
muito longe da árvore». Eu mantive uma expressão inalterada, sem mostrar
o que aquela informação significava para mim, e consegui escapulir-me
meia hora depois, numa altura em que ele estava ao telefone aos berros com
o seu irmão sobre a casa de família em St John’s Wood. Tinha-se esquecido
de tudo o que tínhamos falado.
Mas eu não. Passei as duas horas seguintes num pub a tentar descobrir o
máximo que conseguisse encontrar sobre ti a partir do Google. Devo dizer-
te, Grace, que a tua presença online é mínima. Tão reduzida que até se torna
suspeita, na verdade. É quase como se estivesses a tentar esconder-te do
mundo. Seja como for, não há como evitá-lo completamente, pois não? Há
de haver sempre uma pegada, mesmo que tenhas jurado renunciar às redes
sociais e nunca tenhas sequer olhado para o Linkedln, como parece ser o
caso. E fizeste tu muito bem, aliás, pois não passa de um sorvedouro de
agentes imobiliários e outros empresários de treta.
Foi preciso um bocado, pois Simon não me tinha dado o teu apelido e
pedi-lo teria sido demasiado direto, apesar do nevoeiro da embriaguez. Mas
acabei por te encontrar, depois de ter passado horas a selecionar raparigas
chamadas Grace que trabalhavam em relações-públicas de moda. O meu
procedimento foi procurar informação sobre as outras raparigas, a maior
parte da quais me davam informação suficiente sobre as suas vidas nas
redes sociais para que me fosse fácil eliminá-las. Fotografias felizes em
família? Fora da lista. Idade errada, etnia errada, já tinha vivido noutro
sítio? Eliminada. Até que acabei por me cruzar com Grace Bernard. Não
havia fotografia no website da empresa, o que parecia ser um sinal, pois
toda a gente gostava de posar para a fotografia. Com o apelido, segui
algumas pistas falsas até me deter num pequeno artigo sobre ti na Islington
Gazette de há mais de uma década. Quer dizer, na verdade, não era nada
sobre ti. Uma mulher chamada Sophie estava a protestar por causa de uma
onda de assaltos perto da escola do bairro. Uma fotografia granulosa
mostrava-a a segurar uma placa a dizer «ruas seguras!», e atrás dela estava
uma adolescente carrancuda e um rapaz da mesma idade com um ar
ligeiramente divertido. A fotografia, bem... foi aí que o meu coração
começou aos pulos. A legenda trazia o teu nome. O rapaz chamava-se
Jimmy. A mulher revoltada referia-se a vocês como seus filhos, o que me
deixou momentaneamente confuso. Simon tinha dito que a tua mãe tinha
morrido. Desculpa, estou a ser metediço. Mas havia falhas que eu não
consegui suprir e a cabeça precisa de respostas! Não importa, obtive-as
mais tarde.
Seja como for, fui ao teu escritório. Estou certo de que isto te deve
parecer assustadoramente arrepiante, mas eu estava mais nervoso do que tu
estarias se soubesses! Esperei desde as cinco da tarde, uma sexta-feira,
convencido de que as raparigas das relações-públicas, tal como nós, malta
da city, saíam mais cedo para ir beber uns copos. Um bando desordenado de
mulheres saiu às cinco e um quarto, formando uma corrente humana ao
descer a rua. Tu saíste às 17h32. Eu soube imediatamente que eras tu;
olhaste para mim. Bom, talvez isto não seja inteiramente justo para ti. Já
parti o nariz duas vezes em jogos de râguebi e tenho umas mãos do tamanho
de pratos de mesa, segundo a minha mãe. Mas eu conhecia a tua cara. Era
como se já a tivesse visto um milhão de vezes. És baixa e tens um tom de
pele muito mais escuro do que o meu, e tens os olhos com um tom
esverdeado que nem eu nem as minhas irmãs temos. Os meus são de um
cinzento-azulado de que por acaso sempre gostei. Mas tu eras
inequivocamente Grace Bernard. Eu estive quase para atravessar a rua a
correr para te dizer olá, como grande idiota que sou, mas contive-me. É
difícil fazer apresentações destas no meio da rua!
Não sei o que é que queria de ti na altura. Talvez só ver-te em carne e
osso... Acho que tinha uma profunda necessidade de informação. Não saber
a minha paternidade tinha-me abalado, e eu acredito firmemente que
conhecimento é poder. Saber tudo sobre nós próprios ajudar-me-ia a
controlar melhor as coisas, que era algo que já não sentia desde que
Christopher tinha morrido. Por isso segui-te. Devo dizer que não estou nada
orgulhoso disso, aliás. Não é bonito os homens andarem por aí a seguir as
mulheres. Sentia-me ignóbil, na verdade. Tu sentaste-te no metro à minha
frente, olhando por cima do meu ombro para coisa nenhuma em especial.
Eu tentei não fitar o teu rosto por muito tempo, mas bebi-o o mais que pude.
Calças pretas, um casaco de cabedal cortado e um estranho top aveludado
que eu presumo que estivesse em voga. Uns sapatos de fivela robustos que
eu imagino que usasses para fazer com que homens como eu se sentissem
intimidados, e com êxito. Caminhei atrás de ti da estação até tua casa, e
fiquei a olhar para o primeiro andar quando a luz se acendeu. Depois disse
uma palavra severa a mim mesmo e fui para casa. Uma loucura, realmente.
Sou um homem que nem ao Norte de Londres vai, mesmo que tenha um
encontro escaldante.
Não podia deixar as coisas assim. Eu bem queria, mas, ao longo das
semanas seguintes, dei por mim a caminhar pela tua rua sempre que tinha
algum tempo livre, esperando apanhar-te a sair de casa. A ver se tu me
conduzias a qualquer sítio que me dissesse mais sobre quem eras. Algumas
vezes vi-te sair a correr, o que queria dizer que eu também teria de usar
ténis, para o que desse e viesse. Uma vez, segui-te até a um café das
imediações onde pediste um café ridiculamente específico. Não és lá muito
sociável, pois não, Grace? Uma visita em duas semanas — um homem
muito parecido com o adolescente do artigo do jornal local.
Por esta altura, já estava a ficar aborrecido com tudo isto. Estava pronto
para parar de te seguir e a ponderar se te devia enviar um e-mail a explicar
quem eu era. Nem sequer tinha bem a certeza se queria abrir a caixa de
Pandora, na verdade. Era, sem dúvida, mais sadio do que andar por aí a
espiar-te, sem ficar a saber nada sobre ti. Mas uma noite as coisas ficaram
todas viradas de pernas para o ar. E se alguma vez pensei que eras algo
aborrecida, Grace, nunca mais voltaria a pensar o mesmo.
Foste a um pub e estiveste a beber com um grupo bastante heterogéneo.
Um tipo ainda novo que parecia o exemplo acabado de um hippie. Um
velhote e uma rapariga simples que não era filha dele, mas que claramente
também não era namorada. Tu também não parecias especialmente ligada
ao tal hippie. Mas passaste a maior parte da noite a falar com ele. Eu fui
beberricando da minha caneca e tentei sentar-me suficientemente perto para
apanhar a conversa. Não é que valesse a pena ouvir. Tritões, Grace? Fiquei
mesmo a pensar como é que serias, depois de ouvir aquela discussão
arrebatada sobre anfíbios.
Saíste com o maltrapilho, e eu fiquei intrigado. Quando te vi descer a
rua e ir para um centro de vida selvagem, fiquei pasmado, mas segui os teus
passos e saltei a vedação poucos minutos depois de teres entrado. Comecei
a desconfiar de que estavas à procura de um sítio para ficares a sós com o
rapaz, e receei apanhar-vos em flagrante — coisa em que um irmão nunca
deve ver uma irmã envolvida. Por isso, permanecei à distância enquanto
vocês foram até ao passadiço à beira da água. Não estava suficientemente
perto para ouvir o que diziam, mas estava perplexo. Algo de estranho
aconteceu quando ele acendeu um fósforo junto ao teu pé, mas eu não
conseguia ver grande coisa na escuridão. E depois, no preciso momento em
que comecei a sentir as pernas entorpecidas por estar agachado e a pensar se
deveria mandar vir um Uber a um centro de vida selvagem recôndito, tu
empurraste-o para dentro de água. Eu levantei-me, chocado, Grace. Tu
olhaste rapidamente em redor, mas eu estava protegido pela escuridão. Não
sabia o que fazer. O meu cérebro gritava-me que corresse para a água para
puxar o rapaz de lá para fora, mas as minhas pernas não se mexeram.
Parecia tudo uma perfeita loucura. Estavas a beber uma garrafa de vinho
com este homem aparentemente inofensivo, e de um momento para o outro
mataste-o. Porquê? Enquanto limpavas tudo à tua volta (com uma calma
impressionante, agora que penso nisso), marquei o número de emergência,
mas não carreguei no botão para ligar. Disse a mim próprio que o faria
quando tu te fosses embora, mas, quando foste, tinha a cabeça mais calma e
percebi que não o podia fazer. Como poderia eu explicar o que estava a
fazer? «Ah, sim, senhor Agente, é tudo muito simples: estava a seguir a
minha irmã (que não sabe que é minha irmã) e escondi-me atrás deste lindo
arbusto enquanto ela afogava um amigo. Depois, fiquei a vê-la lavar umas
chávenas e meti-me num táxi.» Isto nunca iria resultar. Por muito boas que
fossem as minhas intenções, seria arrastado para uma história sórdida, e
Lottie e as miúdas também ficariam marcadas por ela. Fosse lá o que fosse
que tinhas feito, era um assunto teu. Mas fez com que eu me desse conta de
que talvez a vaga ideia que eu tivera de vir a estabelecer uma relação
contigo estivesse condenada ao fracasso. É difícil uma pessoa aproximar-se
de uma mulher que anda por aí a afogar pessoas em lagos, por mais fortes
que sejam os laços de sangue.
Fiquei a saber por Simon quem é que tinhas matado dois dias depois.
Com menos whiskey desta vez, pois era evidente que ele não gostava assim
tanto deste sobrinho. Mas não deixou de ser um choque. Um acidente, disse
ele. Andrew andava perturbado e tinha tentado procurar uma nova vida,
mas estava sempre a afundar-se. A família fazia os possíveis por manter
tudo na maior discrição, e eu sabia que a razão para isso era o potencial
escândalo que o caso poderia desencadear. O que só me fez sentir que tinha
tomado a decisão certa ao manter-me de bico calado.
Portanto, tinhas matado o nosso primo. Mas porquê? Tanto quanto me
era dado a perceber, tratava-se de um rapaz simpático, sem qualquer relação
contigo. Não irias beneficiar financeiramente da morte dele, e eu não
conseguia ver o que é que podias retirar daí em termos emocionais. Aquilo
não me saía da cabeça, e era cada vez pior porque não podia contar a
ninguém o que sabia.
Suponho que um terapeuta que me estivesse a acompanhar nessa altura
diria que eu ainda estava a processar a morte de Christopher, e por muito
que eu não alinhe nesse tipo de coisa, é provável que tivesse acertado em
cheio. Para além disso, estava a ser bombardeado por Simon, que tinha
reforçado a sua exigência de contacto; pior: tinha Lottie a pedir-me que
fosse a casa de cada vez que me telefonava. Sentia-me a dar em doido. Para
me abstrair disso tudo, continuei a seguir-te, ansioso por compreender o
sucedido, por perceber porque é que o tinhas feito. Tornei-me um homem
vagamente possuído. Durante uns tempos, as coisas acalmaram e eu coçava
a cabeça a perguntar-me porque é que tinhas matado o nosso primo para
depois voltares a sair de cena. Comecei a correr, a seguir os teus percursos,
mas tu nunca fazias nada fora do normal. Alguns meses mais tarde,
começaste a ir a bares e a discotecas sozinha. Eu comecei a ir também,
sentava-me sempre a uma certa distância, com cuidado para tentar passar
despercebido. Não é difícil fazê-lo, Grace, quando se é um tipo branco de
aspeto mais ou menos normal num estabelecimento fino. Aparentemente,
sou capaz de me camuflar bem, pois tu nunca pareceste lembrar-te da minha
cara, apesar de eu ter estado ao teu lado durante meses. Para além disso, não
era de mim que andavas à procura. Tu andavas à caça. Do teu tio, como se
veio a constatar. Foi então que comecei a perceber o que se estava a passar.
Suponho que deves pensar que eu fui de compreensão um pouco lenta, mas
os meus sentimentos em relação a Simon não eram minimamente parecidos
com os teus, e precisei de algum tempo para procurar pôr-me no teu lugar.
Mesmo quando o fiz, continuava a não conseguir conceber o ódio feroz que
era preciso para levar a cabo um plano desses. Ver-te passar horas à espera
nos bares para ver que os teus olhos só se iluminavam quando Lee entrava
queria dizer que aquilo só podia ser algo que tinhas planeado.
Eu não estava absolutamente certo, nota bem. Durante algum tempo,
pensava que estavas a ensaiar uma espécie de fetiche louco em que querias
mesmo ir para a cama com o teu próprio tio. Lamento ter pensado isso, mas
tens de admitir que é estranho ver alguém entrar num clube de sexo com um
parente próximo. Eu até me diverti nessa noite, para dizer a verdade. Não é
uma coisa que estivesse normalmente disposto a fazer, mas pensei que o
melhor era vestir uma personagem. Numa orgia, um homem de calças chino
dava provavelmente mais nas vistas do que um tipo de calças de ganga sem
rabo daria numa reunião anual do orçamento. Trouxe uma máscara que me
fez sentir como se estivesse a desempenhar um papel e fiquei triste por ter
de abandonar a diversão quando tu levaste Lee pelo corredor para um
quarto privado.
Em todo o caso, quando vi o que tinha acontecido, percebi exatamente o
que se estava a passar. Esperei que abandonasses o quarto, claro está,
encostado à parede do corredor sombrio. Lembras-te de eu olhar para ti de
alto a baixo, e de as nossas mãos se tocarem? Estava impressionado pela
audácia de matar um homem numa discoteca cheio de gente e ligeiramente
horrorizado por o teres deixado para que fosse encontrado por outra pessoa
— eu, como veio a acontecer. Também eu o abandonei, claro está. Mas
acredito que aquela cara com os olhos esbugalhados não me irá sair da
cabeça tão cedo.
Estavas a matar a nossa família. Eu não tinha provas de que tivesses
sido tu a liquidar Kathleen e Jeremy, mas não era preciso muito para te
imaginar a apanhar um avião para Espanha, a alugar um carro e a empurrá-
los para fora da estrada. Começaste por ter uma abordagem muito mais dura
e imediata ao princípio, não? Mas suponho que estavas concentrada em
fazer com que cada morte parecesse um acidente, e duas pessoas a
despistarem-se de um monte durante a noite foi uma vitória inicial fácil.
Agora tinha de decidir o que fazer com esta informação. A família
Artemis não era grande — e as únicas pessoas (que tu ainda não tinhas
liquidado) ligadas ao dinheiro eram a mulher e a filha de Simon, bem como
a cunhada. Isto no caso de ser mesmo o dinheiro que te movia. Se eu tivesse
de adivinhar, diria que havia algo mais por trás dos teus atos. Do pouco que
via da tua vida, levavas uma existência bastante aborrecida. Não tinhas
amigos, não tinhas uma grande carreira (espero que não te ofendas com
isto) e vivias num pequeno apartamento numa rua sombria. Era quase como
se estivesses a marcar passo até... Até o quê? Até ao dia em que livrasses o
mundo da tua família tóxica para depois poderes avançar e prosperar? Eu
guardo muito pouco ressentimento em relação a Simon porque tive uma
vida maravilhosa com Lottie e Christopher e as minhas irmãs. Se não fosse
a minha tia Jean, teria continuado a viver feliz porque tinha essa base. E
ainda vou conseguir. Mas tu não tinhas nada. E talvez isso te tenha tornado
obcecada com a injustiça de tudo isto. É mesmo injusto, Grace. De todos
nós, que estamos enredados nesta confusão, a ti calhou-te a fava, não foi?
Ao fim de alguns dias de andar a dar voltas à cabeça, e de uma conversa
vigorosa com Simon que acabou com ele a gritar comigo por eu não ter
conseguido chegar ao seu gabinete às onze da manhã numa quarta-feira,
decidi que não iria interferir no que quer que fosse que tu andavas a fazer.
Em parte, achava que devias ter o direito de corrigir as injustiças de que
tinhas sido vítima. E em parte, já que estou a ser honesto, porque ponderei o
que seria melhor para mim, e dei-me conta de que talvez me estivesses a
fazer um favor. Houve duas coisas que determinaram a minha decisão. A
primeira é que eu queria Simon fora da minha vida. Agora conseguia
antever o meu futuro, e percebia que teria de continuar a passar mais tempo
com ele sempre que ele o exigisse. O dinheiro que me tinha dado fizera-o
sentir que ganhara esse direito, e eu não suportava a ideia de ser absorvido
pela sua família, de andar por aí às voltas no seu Bentley e a passar férias
em Marbella. A outra coisa era que, se tu conseguisses dar conta deles, eu
ficaria em posição de reclamar uma parte da fortuna. Como vês, Grace, sou
um hipócrita feliz. Não queria ter muito a ver com o nosso querido pai, mas
sentia-me completamente à vontade para ficar com alguns dos despojos.
Dinheiro é dinheiro, não importa como nos vem parar às mãos. E eu iria
utilizá-lo de uma maneira diferente de Simon. Nada de ostentações
extravagantes, nada de torneiras de ouro. Eu tinha nascido para ter dinheiro,
pelo menos foi o que sempre pensei. E o teu plano podia conduzir-me a isso
mais rápido do que eu a continuar a esforçar-me por subir na hierarquia.
Nunca teria sequer pensado em fazer o que tu fizeste se não tivesse
assistido ao desenrolar dos acontecimentos, mesmo que tivesse sido
injustiçado da maneira que tu achavas que tinhas sido injustiçada. Mas isso
não significava que não pudesse retirar daí algo de bom. Suponho que,
numa escala móvel de moralidade, eu estaria mais ou menos a meio. Julgo
que a maior parte das pessoas, se fossem honestas, olhariam para a minha
situação e chegariam à mesma conclusão. Não é fácil ser-se honesto em
relação a isto, no entanto — é por isso que foi tão libertador para mim
contar-te tudo isto. Sei que nunca poderás mostrar isto a ninguém. É um
tipo de confiança forçada, o que talvez seja melhor do que o tipo de
confiança normal.
Mas já estou a ficar cansado de estar a escrever, por isso vou tentar
despachar a coisa. Agora já conheces a maior parte da minha história. Ou,
pelo menos, tanto quanto precisas de saber. Eu vi-te prosseguir a tua linha
de ação. Com Janine foste um pouco longe demais, permite-me que te diga
— a descrição da morte dela deu-me náuseas. Uma vez mais, eu não estava
lá (tu partiste abruptamente e eu não consegui libertar-me do trabalho em
tão pouco tempo), mas soube de tudo bastante depressa pela assistente
pessoal de Simon. Ainda hoje não percebo bem porque é que deixaste Lara
de fora — será que te pareceu ser apenas arraia-miúda? Eu não estava lá
para acudir a Bryony, claro, mas apreciei bastante a maneira como o
executaste (quer dizer, a ela). Divertido e eficaz. Mas foi aí que Simon
começou a desfazer-se. Ele adorava Bryony. Acho que ele estava farto de
Janine — já estava há anos. Nós somos fruto disso, suponho eu. Mas
Bryony era a sua única filha. A sua única filha verdadeira. Ele é
incrivelmente antiquado, para um homem que é um produto do mundo
moderno. Casamento, filhos, reputação, tudo isso importava imenso para
Simon. E por muito horrível que ela te pudesse parecer, a ti ou a mim, ele
amava a filha. Para além da dor de a ter perdido, também começou a ficar
paranoico. Apesar de eu achar que não é bem paranoia se alguém estiver
efetivamente atrás de nós. Chamava-me a casa dele, sentava-se no sofá com
as cortinas corridas, levantando-se de vez em quando para andar de um lado
para outro da sala que nem um maníaco. Dizia-me repetidamente que
alguém estava a matar a sua família. Tinha ido à polícia, contratado
segurança e tudo o mais. Ninguém acreditou verdadeiramente nele, o que
poderás tomar como um elogio, imagino. Toda a gente achava que era
apenas um conjunto de coincidências — o Daily Mail publicou um artigo de
duas páginas sobre «o infortúnio do magnata», elencando todos os azares
que se tinham abatido sobre a família Artemis. Mas por ninguém parecer
levá-lo a sério, Simon tornou-se ainda mais insistente. Ele pensava que era
alguém com quem se tinha cruzado nos seus negócios. Não dizia quem, mas
era evidente que tinha alguém em mente, pois estava claramente assustado.
Eu assumi o papel de filho prestimoso nesta altura. Dormia na casa de
Hampstead, sendo acordado várias vezes durante a noite por Simon, que me
queria chamar a atenção de mais outras quantas maneiras de como o
queriam tentar matar. Estas suspeitas eram quase sempre absurdas — um
homem que ele julgava estar a rondar os portões da casa ou um carro
estacionado demasiado perto da entrada do escritório. Procurava sinais em
todo o lado. De cada vez que uma janela rangia, dava-lhe um chilique. Não
é que as janelas de casa dele rangessem, pois as originais haviam sido
retiradas e substituídas por uns resistentes vidros duplos.
Fomo-nos tornando mais chegados, à medida que eu ia assumindo a
minha posição de confidente e parente mais próximo, na esperança de que
tudo acabasse depressa com a tua ajuda. Ajudei a organizar todas as coisas
lúgubres que é preciso fazer quando alguém morre. E escutava-o quando ele
queria gritar e berrar contra tudo o que estava a acontecer, o que era
frequente. Tornou-se cada vez mais insuportável à medida que as semanas
passavam e, pelo que me era dado a ver, tu não estavas a fazer grande coisa.
Cheguei a ver-te a rondar os portões da entrada, sabes? Devo dizer-te que
não foste muito subtil, Grace. Mesmo que tivesses um grande plano na
forja, estava a começar a ficar desesperado com a tua incapacidade de te
aproximares de Simon. A equipa de segurança era imensa, o homem estava
constantemente rodeado de homens corpulentos que te teriam afastado do
seu caminho como a um galho seco se te tivesses chegado a menos de dois
metros dele.
Comecei a ficar furioso contigo, o que é de loucos, não é? Mas eu sentia
que tinha finalmente encontrado uma maneira de me libertar desta situação
tenebrosa e tinha começado a imaginar que estávamos a trabalhar em
conjunto e de acordo com um calendário. Mas tu não estavas a jogar. Eu
mal tinha tempo de te seguir nessa altura, visto que Simon estava a tornar-se
cada vez mais agressivo, mais errático, mais dependente de mim. Mas,
quando o fazia, via que ias jantar fora e saías para longas corridas,
prosseguindo a tua vida como se não tivesses mais um alvo para abater, e
sentia-me confuso com a tua falta de iniciativa.
Eu mal conseguia trabalhar porque ele telefonava de cinco em cinco
minutos, a chorar, ou bêbedo, ou ambas as coisas. Eu desligava o telefone e
ele enviava-me e-mails. Comecei a hesitar de cada vez que olhava para a
caixa do correio. Orgulho-me de ser um bom trabalhador, acho mesmo que
o trabalho é que faz um homem, e estava furioso comigo mesmo por andar
a fazer um trabalho medíocre quando devia estar a atacar esta oportunidade
para subir dentro da empresa. Aproximava-se a altura dos prémios e eu via
os meus a encolherem de cada vez que o meu patrão me via a falar ao
telefone.
Olhando para trás, a minha saúde mental estava a cair a pique, coisa em
que eu nunca tinha sequer pensado. O meu sono estava feito em cacos,
emagreci de forma alarmante, por muito que comesse. Sentia-me
completamente encurralado, como uma raposa na toca. Também me fez
deixar de ir à caça, agora que reparo melhor na analogia. Mais uma coisa
que Simon destruiu na minha vida. Mas ele não me deixava em paz e a sua
vontade era esmagadora. Por fim, caminhei até lá e disse-lhe que não podia
continuar a fazer aquilo. Fui firme, mas calmo. Disse-lhe que ele estava a
ter um comportamento horrível e que não me podia tratar como a um dos
seus assistentes. Continuei a falar até ele começar novamente a chorar, mas,
desta vez, não me deixei demover. As lágrimas enxugaram-se-lhe bastante
rápido quando percebeu que eu não ia consolá-lo, e então ele dirigiu-se para
a sua secretária e sentou-se. Eu continuei a apontar-lhe o que me pareciam
ser as suas faltas de cavalheirismo, envolvendo-me de tal maneira que nem
sequer estava a prestar atenção ao que ele estava a fazer até ele se voltar a
aproximar de mim e me presentear com um cheque. Consegui ver que tinha
sido passado no valor de 500 mil libras. Caí de queixos, acredita. A minha
boca permaneceu aberta durante alguns segundos enquanto ele mo levava à
cara, a dizer-me que, se eu fosse uma semana com ele para St Tropez, ele se
certificaria de que eu seria devidamente recompensado.
— Preciso de sair do país por alguns dias, fugir das atenções, filho. E
não quero ir sozinho. Não me digas que isto não ia ajudar a tua mãe. E as
miúdas, Harry? Elas precisam disto. É só uma semana ou assim. — Eu
permaneci em silêncio, ponderando tudo, e ele olhava para mim, de olhos
semicerrados. — Estás a querer negociar comigo, é isso? Pois bem, não há
sinal mais claro de que és meu filho. Eu torno tudo oficial. Faço-te meu
herdeiro. É isso que tu queres, não é? É o que toda a gente quer, no fim de
contas. — Não estava enganado nesse ponto. Mas o que ele não conseguia
ver é que tinha transformado o dinheiro na única moeda de troca que tinha
na vida e que estava completamente sozinho.
Ao início, Simon não foi claro quanto às razões por que precisava de
sair do país, mas, por mais que ele tentasse abafar o assunto, tornou-se claro
que estava a decorrer um qualquer tipo de investigação à sua empresa e que
os seus conselheiros haviam sugerido veementemente que ele não estivesse
disponível durante algum tempo. Eu perguntava-me qual seria a parte da
empresa que seria mais atreita a falcatruas (as linhas aéreas pareciam ser um
forte candidato), mas, para ser sincero, Grace, depois de ver como ele
trabalhava, acho que podia ser uma qualquer. Era evidente que ia dar merda,
como se costuma dizer, mas eu não me podia preocupar com isso. Não me
ia enredar mais naquele seu mundo de vilania. Era assim que eu agora via
as coisas. Uma vida sórdida e suja que eu tinha vergonha de ter ido
procurar. Mas uma quantia como aquela era impossível de ignorar, e eu teria
sido um palerma se o fizesse. E foi por isso que, menos de seis horas
depois, desembarquei de um avião privado para o ar ameno do Sul de
França. Se eu soubesse o que ia acontecer, talvez lhe tivesse pedido para
acrescentar alguns zeros àquele cheque.
 
 
8 No original «keep up with the Joneses», expressão idiomática que
significa imitar os outros com o intuito de salvar as aparências [N. do T].
 
Capítulo 17
 
Meio-dia.
 
Acabou tudo. Os últimos 14 meses estão prestes a tornar-se uma
estranha nota de rodapé na história da minha vida. Kelly desejou-me boa
sorte antes de eu sair para ouvir a grande decisão.
— Vou ter saudades tuas, Gracie, vem-me visitar. Faço uma colher para
ti na próxima aula, ah, ah. — Deu-me um abraço apertado, cravando-me as
unhas nas costas. Eu deixei-a fazer isto durante cinco segundos, antes de
atravessar a porta em passo decidido sem olhar para trás. Entretanto, chegou
George Thorpe, o rosto ruborescente de orgulho quando veio ter comigo a
uma sala de visitas de Limehouse depois de ter ido ao tribunal e ver o meu
julgamento revertido com êxito. Eu tinha assistido por videoconferência, o
que me privou da oportunidade de ter um momento dramático diante do
juiz, e significava que tinha perdido o inevitável rebuliço com os jornalistas
à porta do tribunal. Antes assim, apesar do pequeno anticlímax; assim posso
trabalhar ao meu próprio ritmo. Em vez disso, recebi um abraço
atabalhoado do meu advogado, a promessa de uma reunião daí a poucas
semanas para rever tudo e um convite para jantar que certamente declinarei.
Até recebi os parabéns da guarda que supervisionou o nosso encontro. Não
foi bem um clímax cinematográfico, mas nem por isso foi menos
importante. Fiz o que me propus fazer por Marie. Agora estou livre.
 
 
 
Quatro da tarde
 
Estou em casa! Fui libertada com grande rapidez, o que me apanhou de
surpresa porque estava habituada a um sistema que demorava meses a
tomar até as mais pequenas decisões. Suponho que deviam estar a precisar
desesperadamente da minha cela. Mesmo agora imagino que Kelly irá
contar à sua nova companheira de quarto tudo sobre a antiga ocupante,
sentando-se sempre demasiado em cima de nós no frágil beliche. Eu tive de
me apressar para juntar as minhas coisas e sair até ao meio-dia, o que
significava que Jimmy não ia estar à minha espera. Mas não me importei,
sobretudo quando me dei conta de que a ideia era evitar quaisquer
fotógrafos mais persistentes. Eu estava agradecida por isso, já que 14 meses
na prisão não são propriamente a melhor maneira de uma pessoa se preparar
para enfrentar as câmaras. Apanhei um táxi para casa, serpenteando pelas
ruas de Londres banhadas por um raro sol luminoso, olhando pela janela e
sorrindo o caminho todo. O apartamento estava calmo e aquecido quando
abri a porta, com tudo no devido lugar. Sophie até tinha enviado a sua
mulher da limpeza, e havia uma garrafa de Brunello e um bocado de
tiramisú do minimercado do bairro à minha espera em cima da mesa. Levei
ambas as coisas para o banho e encharquei-me em óleo Le Labo durante
duas horas. Uma experiência gloriosa, estava meio histérica de
contentamento. Vou passar o meu correio todo a pente fino e depois vou
encontrar-me com Jimmy para o que espero que venha a ser um jantar
apropriadamente condescendente na Brasserie de Balon. Sinto que a vida
está finalmente a desenrolar-se e a mostrar-se a mim.
 
Capítulo 18
 
Meu Deus, que desgraça, Grace! Que terrível desgraça de Deus!
Transformou-se tudo numa farsa horrível, só que ninguém se lembrou de rir.
No nosso primeiro dia em França, Simon adormeceu num sofá na sala de
jogos e eu escapei-me até à varanda e pedi a um empregado mais tímido
que me trouxesse um café. Estendi-me ao sol e tentei afastar a temível
possibilidade de ele me encontrar quando acordasse. Durante alguns
minutos, fiquei a olhar para o mar, mal podendo acreditar no pouco tempo
que teria para aproveitar este lugar maravilhoso — este sítio soalheiro para
gente sombria, como alguém disse um dia. Depois, por uma questão de
hábito, peguei no telemóvel e dei uma vista de olhos no site de notícias da
BBC. Passando rapidamente por algumas notícias de guerra e sobre um
membro do parlamento do Partido Conservador que se envolveu com a sua
assistente pessoal, os meus olhos foram atraídos para uma fotografia de uma
linda mulher que tinha sido objeto de «uma chuva de homenagens». Tinha
sido empurrada de uma varanda e tinhas sido tu a empurrá-la. O meu rosto
arrefeceu, apesar do calor sussurrante, e senti um barulho ribombante
atravessar-me os ouvidos até à cabeça. Sentia que não te compreendia de
todo, apesar do tempo que tinha passado a tentar fazê-lo. Eras uma pessoa
de sangue-frio em busca de vingança, não uma assassina impulsiva e
passional. Porque é que tinhas desperdiçado tanto tempo de trabalho
aturado para depois empurrares uma rival amorosa de uma varanda abaixo?
Que momento de estupidez. Não quero correr o risco de ser considerado
sexista, mas uma reação emocional destas era difícil de explicar de outra
forma. Agora como é que irias chegar a Simon?
Ao fim de algumas horas a tentar saber mais sobre a tua detenção,
Simon gritou-me da sala de estar e eu tive de desistir da minha demanda.
Não estava muito preocupado com a possibilidade de ele te ver nas notícias,
porque ele estava a viver praticamente noutro planeta de paranoia e raiva.
No estado em que estava, era mais provável que o encontrássemos a ver
vídeos no YouTube sobre extraterrestres do que a ver os títulos das notícias.
Passei dois dias horríveis com o nosso pai na sua vivenda, onde ele meteu
uma quantidade de cocaína francamente impressionante pelo nariz acima e
se recusou a abrir as cortinas, não fosse dar-se o caso de alguém estar a
espiar a casa. O seu corpo de segurança permanecia lá fora, temendo as suas
explosões de raiva, e a pobre mulher a dias, que não tinha sido avisada de
que nós vínhamos, refugiou-se no seu quarto quando ele lhe atirou um vaso
à cabeça depois de ver que as camas não estavam feitas. Éramos só eu e ele.
Sempre que eu tentava retirar-me para outra parte da casa, ele seguia-me,
resmoneando que havia uma conspiração contra ele e insistindo em que
tínhamos de «travar esses sacanas». Eu passava a vida a dizer a mim
mesmo: «Vá lá, Harry, mais uns dias e é meio milhão de paus para a
família», mas parecia-me tudo muito longínquo, se queres que te diga. Ao
terceiro dia, acordei e encontrei Simon debruçado sobre a minha cama, com
os olhos muito vermelhos e a camisa rasgada. Era evidente que tinha
passado a noite acordado, e tresandava a whiskey.
— Vamo-nos pirar daqui. Há câmaras. Temos o iate à espera, arruma as
tuas tralhas, filho. — Eu desviei a cara ao ser tratado por filho, lembrando-
me do meu querido Christopher com pesar, mas ele já tinha saído, pegando
nas suas malas e batendo com as portas.
O iate era uma monstruosidade. Eu nunca tinha visto nada assim na
minha vida e espero nunca mais voltar a ver. Uma caravana de
extravagância flutuante, era o que parecia, toda cromados e vidros e nada
que se parecesse com um barco a sério. Felizmente, depois de subir a bordo,
Simon pareceu relaxar e adormeceu no sofá o dia todo, acordando apenas
quando foi servido o jantar. Comemos meio em silêncio, enquanto ele
virava copos de vinho uns atrás dos outros — Chic Chablis da sua própria
vinha, disse-me ele, comigo a tentar disfarçar a minha repugnância.
Como se alguma coisa pudesse dizer mais sobre uma pessoa, não é,
Grace? Quando começámos a comer a sobremesa, a minha mão começou a
contorcer-se, e eu tentei travá-la, alarmado com este novo desenvolvimento.
Simon reparou e riu-se. Riu-se e disse-me que eu era demasiado delicado
para um homem crescido. Eu não disse nada, sentia o coração a bater e os
ouvidos a zumbir. Quando terminámos, com ele bastante encharcado, gritou
pelo capitão e disse-lhe para preparar a lancha. O homem, intuindo
claramente que Simon não estava disposto a discutir, saiu a correr sem uma
palavra de advertência, mas o empregado que estava a levantar a mesa
levantou os olhos na minha direção. Eu tentei distrair o nosso pai, dizendo-
lhe que não estava com vontade de sair na lancha, mas ele repudiou-me com
um gesto de irritação.
— Tu estás aqui por minha conta, menino Harry. E nós vamos dar um
passeio.
E assim fomos. Levou mais uma garrafa de Chic Chablis debaixo do
braço e cambaleou pelas escadas abaixo para a lancha, comigo a seguir
atrás dele e a sentir-me algo enjoado. Arrancámos ruidosamente e
penetrámos na escuridão distante, comigo agarrado ao assento pela minha
querida vida, ele a gritar ao vento com a garrafa entalada entre os joelhos.
Passado cerca de um quarto de hora, abrandou e parou o barco. Veio a
tropeçar até mim e riu-se da minha expressão. Admito que estava nauseado.
Andar de barco nunca foi o meu forte, e estes mergulhos e ziguezagues no
vazio do oceano deixaram-me tão maldisposto quanto é possível imaginar-
se. Acima de tudo, estava completamente farto. Farto dele, do barco, de
todos os dias da minha vida desde que o tinha conhecido.
Simon sentou-se e encostou a sua cara à minha com um olhar lascivo.
— Sê um homem, Harry, estamos a criar laços. Age como se estivesses
a gostar, raios te partam.
— Mas não estou — disse eu com a maior dignidade que conseguia
mostrar enquanto tentava não vomitar. — Não estou a gostar. Quero voltar
para o iate.
Ele contorceu o rosto e imitou-me.
— Quero voltar para o iate, papá, estou farto disto. Não demoraste a
habituar-te ao meu estilo de vida e ao meu dinheiro, filho. Podias ao menos
fingir que estás aqui pela companhia. — Arrotou na minha cara e desatou a
rir ruidosamente. — Mas não consegues, pois não? És igualzinho à tua mãe.
Ela também fingia que era muito pura de sentimentos, mas só estava à
espera de um palerma rico para lhe abrir as pernas.
Eu levantei-me, puxando-o comigo pela camisa, e agarrei na garrafa de
vinho nojenta que estava ao lado dele. Tinha um único pensamento: queria
desesperadamente que ele se calasse. Martelei-lhe a garrafa na cabeça com
uma força que imagino que terá vindo de toda a raiva reprimida que tinha
dentro de mim. Senti um zumbido familiar atravessar-me os ouvidos que
deu lugar depois ao som de alguma coisa pesada a cair na água. Consegui
distinguir um braço na água e um gorgolejar sonoro e repugnante. Liguei a
lanterna do meu telefone e apontei-a para esse lado do barco. Simon estava
agarrado à borda do barco com dois dedos, mas o resto do corpo não se
mexia. Tinha sangue a escorrer-lhe da cabeça, acumulando-se debaixo do
nariz e a entrar-lhe pela boca. Era esse o som, um som miserável que ainda
consigo ouvir na minha cabeça quando penso nisso. Ele estava a tentar
manter-se à tona enquanto se afogava no seu próprio sangue. Eu fiquei ali a
olhar para ele, preparando-me para o alcançar e puxá-lo dali para fora. Mas
depois aconteceu uma coisa estranha. Lembrei-me de ti, Grace. Pensei em
tudo o que tinhas feito, em como te tinhas esforçado para apanhar este
homem. Agora sabia quão improvável seria que alguma vez o conseguisses
vir a fazer. Pensei nas nossas mães e no que elas tinham sofrido às mãos de
Simon Artemis. E depois pensei no quanto eu estava a sofrer naquela altura.
Se o puxasse novamente para dentro do iate, ele era capaz de me processar
— ou pior, podia usar aquilo que eu lhe fizera contra mim durante os
próximos 20 anos, mantendo-me refém dele para sempre.
Tinha sido um acidente. Eu nunca teria sido capaz de planear uma coisa
tão nefasta ou cometer um ato de violência a sangue-frio. Mas tinha sido
intensamente provocado e todos nós temos um limite, não é assim? Eu não
sabia que ia deixá-lo morrer, a sério que não sabia. As coisas simplesmente
aconteceram, como se eu estivesse a assistir a tudo à distância. Debrucei-me
sobre ele e retirei-lhe os dedos da borda do barco, antes de lhe dar um
pequeno empurrão, fazendo-o afastar-se alguns palmos ao sabor das ondas.
Os seus olhos arregalaram-se, mas não conseguiu falar. E eu sentei-me.
— Se tentares tocar no barco outra vez, vou-me embora. Por isso não o
faças. Deixa-te ficar aí alguns minutos que eu já te puxo cá para dentro.
Precisas de aprender a tratar as pessoas como deve ser. Talvez seja disto que
tu precisas — disse-lhe eu enquanto esfregava uma pequena mancha de
sangue dos nós dos dedos. Fosse como fosse, ele já nem sequer estava em
posição de tentar arremeter em direção à borda do barco. Foram precisos
três minutos para ele desaparecer, com o seu cabelo cor de palha a
mergulhar lentamente na água. Eu fiquei em silêncio a olhar para as estrelas
no céu. Quando vi que ele estava completamente submerso, parti a garrafa
na borda do barco e atirei-a para a água, o que era certamente um destino
apropriado para o vinho Artemis. Depois, esperei meia hora para ter a
certeza de que ele não ia irromper bruscamente da água. Tu lembras-te, sem
dúvida, de teres feito algo parecido com o nosso querido primo Andrew,
não é fácil saber quanto tempo é que é suficiente, pois não? Quando estava
convencido de que não havia qualquer oportunidade de ele reaparecer, levei
a lancha de volta para o iate. Sou um péssimo navegador e demorei quase
uma hora a voltar e a acordar a tripulação. Expliquei que ele tinha tropeçado
enquanto acelerava e que tinha caído borda fora. Na ausência de qualquer
sinal, tinha sido obrigado a fazer buscas sozinho durante uma hora na
esperança desesperada de o encontrar vivo, mas não tinha conseguido. O
capitão não pareceu muito surpreendido, e a minha história foi reforçada
por Simon se encontrar completamente bêbedo quando partíramos. As
equipas de buscas e salvamento não encontraram vestígios dele nas 24
horas seguintes, mas eu sustinha a respiração de cada vez que a rádio fazia a
atualização da notícia.
E foi isto, na verdade. A minha história foi aceite como a mais pura das
verdades, e porque não haveria de ser? Fui referido como um assistente nos
jornais, mas o meu nome não foi mencionado, o que foi um enorme alívio.
Não gostaria de perturbar a minha mãe ou de arranjar problemas às minhas
irmãs no colégio. Mas Lara Artemis entrou em contacto comigo para me
agradecer por ter sido tão discreto. Foi tão simpática em tudo, que lhe
contei a minha verdadeira ligação a Simon. Devo dizer que ela não ficou
surpreendida. Suponho que já o conhecia há tempo suficiente para receber a
notícia de uma criança ilegítima sem sequer franzir o sobrolho. E o teste de
ADN de Simon era a única prova de que eu precisava. Lara é uma mulher
adorável, Grace, tenho pena de que nunca a venhas a conhecer. Agora é ela
que está incumbida de gerir a fortuna da família e tem sido incrivelmente
generosa para comigo. Mais do que eu alguma vez poderia esperar, na
verdade. Depositei o tal cheque, claro está, e a minha família vive muito
melhor agora. Lara até veio almoçar connosco algumas vezes. Apesar de
isso nunca ter sido referido explicitamente, acho que ela e a minha mãe
reconhecem o vínculo que as liga. Fazem parte de um grupo restrito de
mulheres que sobreviveram aos irmãos Artemis.
Mas então porque é que eu te estou a contar tudo isto?, deves estar tu a
pensar. Bem, em parte, porque queria que soubesses como é que ele
realmente morreu. Pensei que te pudesse ajudar a sentires-te menos
frustrada saberes que eu assumi as rédeas e terminei aquilo que tu
começaste. De uma maneira curiosa, formámos uma equipa. O calendário
não podia ter sido mais perfeito, na verdade — atendendo a todos os
problemas que tiveste ultimamente, terias menos possibilidades de o
matares. E, para sermos totalmente honestos, nunca o terias conseguido. Eu
sei que estiveste bastante bem com o resto da família, e dou-te os parabéns
por isso. Mas Simon era algo completamente diferente, na verdade. E teria
exigido bem mais do que planos vagos e alguma sorte. E não me pareceu
que estivesses a trabalhar com nada mais do que isso. Estou certo ou errado,
Grace?
Portanto, esta é a parte boa. Espero que te agrade. Mas escrevo-te,
acima de tudo, para te dizer que tens de deixar as coisas por aqui. A tua
motivação foi a vingança, eu compreendo isso, a sério que sim. E agora já a
tens, com uma pequena ajuda deste teu amigo. Alarga os teus horizontes,
Grace. Junta os trapos com o teu velho amigo Jimmy — há pessoas no
mundo que te querem amar, Grace, desde que tu deixes. Escreve um livro
sobre a experiência excruciante do teu encarceramento — os editores vão
estar ansiosos por assinar um contrato contigo. Mas tudo o resto tem de
ficar por aqui. Preciso de proteger a minha nova vida. Lara promoveu-me a
diretor financeiro da nova fundação e vamos administrá-la juntos. Ainda
não foi anunciado, temos estado a preparar-nos para isso, mas já não deverá
faltar muito. Ela perdeu o interesse pelas coisas relacionadas com a vida
selvagem, e ainda bem, pois não era tão aliciante como este novo
empreendimento. Não quero com isto dizer que saiba muito sobre crianças
refugiadas, mas estou ansioso por aproveitar esta oportunidade para
organizar jantares de gala e convidar os grandes e poderosos do mundo da
banca para os fazer abrir os cordões à bolsa. Haverá parcerias fabulosas e
vamos trabalhar de perto com o mundo financeiro para tornar a fundação
tão grande como a dos Rothschild ou dos Guiness. Será uma instituição
prestigiada, nos antípodas de Simon, na verdade. Certamente que não
haverá Chic Chablis para leiloar sob o novo reinado de Lara.
Só para me certificar de que não virás procurar-me (tenho demasiado
respeito por ti para pensar que não o farias), montei um pequeno esquema
enquanto estavas na prisão. Espero que me perdoes a minha estratégia um
pouco suja, mas estou certo de que compreenderás a necessidade de uma
garantia neste caso. Quando descobri que tinhas estado em Limehouse,
paguei a um detetive de segunda classe para descobrir com quem é que
partilhavas a cela. Não foi difícil, como veio a comprovar-se. Kelly tinha
conseguido contar a metade de Islington que tinha sido ela a feliz
contemplada para partilhar o beliche com a famosa Grace Bernard. Eu
escrevi-lhe, pedindo-lhe para a visitar e explicando que havia dinheiro
envolvido, e ela aceitou. Na verdade, vi-te na primeira visita, sentada a falar
com o teu advogado. Olhaste-nos de relance várias vezes, talvez
surpreendida por veres Kelly na companhia de alguém como eu. Devo dizer
que ainda estou surpreendido por não teres achado a minha cara familiar.
Assim, de repente, já estive a menos de um metro de ti várias vezes. À porta
do Centro de Vida Selvagem, nas escadas da Catedral de São Paulo, naquele
bizarro clube de sexo (dessa vez perdoo-te, porque estava de máscara), a
pegar no teu isqueiro no Soho, no café do Museu Britânico, na sala de
visitas... Imagino que ter uma cara vagamente normal joga a meu favor
neste caso. Pareceste-me um pouco magra, se não me levas a mal dizer-to.
Espero que aproveites ao máximo a tua liberdade recém-conquistada e que
usufruas de algumas refeições opíparas. Desculpa, onde é que eu ia?
É verdade, Kelly. Não era o tipo de mulher com que eu estivesse
habituado a cruzar-me no meu dia a dia — não conseguia deixar de olhar
para as suas unhas assombrosamente brilhantes quando nos conhecemos —,
mas achei-a uma rapariga amorosa. Muito prestável. Expliquei-lhe que
trabalhava para uma firma que andava a investigar os teus crimes para um
benfeitor privado e perguntei-lhe se ela estaria recetiva a manter um olho
aberto para certas coisas. Há que dizê-lo, foi refrescante ver o pouco que ela
exigiu saber sobre mim quando lhe foi prometido dinheiro. Através de um
contacto dela, que me levou a uma parte bastante insalubre de Londres
Oriental, consegui arranjar-lhe um telefone que tinha a preciosa
funcionalidade de ter uma câmara — o que é que seria de nós se não fosse
essa inovação, hem? E Kelly, justiça lhe seja feita, assumiu o seu novo
papel como um peixe na água. Vigiou-te muito mais de perto do que tu
alguma vez imaginaste, e enviou-me uma mensagem muito excitada quando
percebeu que estavas a escrever a história da tua vida. Ela leu-a, claro está,
surpreende-me que tenhas sido tão descuidada. E fotografou todas as
páginas com um entusiasmo que me deixou perplexo e cheio de admiração.
Depois, só por uma questão de segurança, retirou algumas folhas
escolhidas para obter impressões digitais e isso. Eu nem sequer tinha
pensado nisso, mas suponho que, quando se anda há tanto tempo a
chantagear pessoas, se aprende a guardar cópias materiais. Tenho de te dizer
isto, Grace: subestimaste-a.
Por isso, bem vês que é aqui que a nossa viagem tem de terminar. Não
me podes matar, porque a história dos teus crimes seria imediatamente
divulgada, bem como uma carta que os meus amigos advogados têm a
especificar que qualquer acidente que possa abater-se sobre mim será tudo
menos o que parece. Não deves contactar Lara, caso contrário, a dita
informação cairá nas mãos da polícia. Ambos passámos por muita coisa às
mãos da família Artemis, mas agora, entre nós, estamos livres. E pode não
ser exatamente como tu esperavas, mas ganhaste na mesma. Ganhámos os
dois. Amanhã deverás ser libertada, pelo menos é o que Kelly diz. Este e-
mail irá chegar à tua caixa do correio quando voltares ao teu pequeno
apartamento. Foste sensata em mantê-lo, fizeste muito bem. Ah, e a
mensagem expira depois de ter sido lida. Um pequena tecnologia muito
eficaz que me foi recomendada pela nossa amiga comum, na verdade. Os
chantagistas andam sempre em cima destas coisas, ao que parece. Agora
que já te disse isto, é melhor parar de escrever. Ao princípio, poderá
parecer-te que um homem irrompeu por aí adentro e te roubou a vitória que
era tua, mas não é nada disso. Eu só tinha melhor jogo do que tu. Incentivo-
te a aproveitares a tua vida. O dinheiro não é tudo, e tu tens sorte por
andares em liberdade. Boa sorte, Grace, pensarei muitas vezes em ti.
O teu irmão
 
PS.: Não te preocupes com Kelly, paguei-lhe bem, por isso estou
confiante de que ela te irá deixar em paz.
 
Capítulo 19
 
Olá, companheira! É a Kel. Espero que o mundo exterior te esteja a
tratar bem. Liga-me, temos de conversar sobre umas coisas. Nem sequer
penses em ignorar isto, eu sei onde vives, LOL. P.S.: A minha mãe adorou a
colher, mas ficou intrigada com as marcas que lhe fizeste. Mas eu não! Vou
guardá-la em segurança. Saudades tuas! Beijinhos e abraços.
 
Agradecimentos
 
Obrigada a todos na The Borough Press por arriscarem publicar o meu
primeiro romance. Sobretudo à minha editora, Ann Bissell, por ter pegado
no rascunho quando já estava a meio e se ter dedicado totalmente a ele,
editando-o meticulosamente, e por conhecer e compreender as personagens
tão bem quanto eu. A Ann tolerou a minha relação informal com os prazos
e lidou com os meus ocasionais ataques de pânico com uma calma e
gentileza supremas. Fez com que escrever durante uma pandemia fosse
agradável e tornou este livro infinitamente melhor. Não poderia ter pedido
uma melhor editora.
Obrigada, Fliss, por fazeres o livro chegar às pessoas, por o promoveres
tão bem, e por trabalhares tanto para que ele tivesse um bom lançamento —
nada fácil de conseguir quando vivemos os tempos mais estranhos da
História.
Obrigada também a Abbie Salter, Caroline Young, Sarah Munro,
Margot Gray, Lucy Stewart e a Suzie Dooré. Que incrível equipa de
mulheres.
Obrigada ao meu agente, Charlie Campbell, que ignora constantemente
os horários de expediente e tem estado disponível para me ajudar a qualquer
hora do dia e da noite desde que tive a ideia para este livro. Não consigo
imaginar ninguém mais dedicado, paciente e solidário ao longo de todo o
processo.
Obrigada a Aoife Rice, que tomou conta de todo o meu restante trabalho
de forma exemplar, sabendo que o livro era prioritário.
Obrigada a Nicki Kennedy, Sam Edenborough, Jenny Robson,
Katherine West e aos seus colegas na ILA por venderem o livro nos seus
países. Tenho esperança de que brevemente isso me leve a festivais
literários regados com bom vinho em climas mais quentes.
Emily Hayward-Whitlock e Fern McCauley, muito obrigada pelo
trabalho árduo que tiveram com a questão dos direitos. Sei o quanto
investiram nisto.
Um enorme obrigado a Owen O’Rorke, Nigel Urwin, David Hooper e
Anthony Mosawi por todos os valiosos conselhos e orientação.
Obrigada ao meu vizinho Robert, que me brindou com o seu
imensamente detalhado conhecimento do sistema legal para me ajudar com
alguns momentos do enredo. Além disso, és um vizinho encantador; sorte a
nossa.
Obrigada, Max Van Cleek, por me ajudares a perceber as casas
inteligentes e por me levares a sério quando perguntei se poderia matar
alguém com um comando à distância.
Josh Berger, és um verdadeiro amigo. Obrigada pelos teus conselhos.
Pandora Sykes, obrigada por seres a primeira pessoa a ler uma prova do
romance e fazeres uma crítica; foi muitíssimo amável da tua parte.
Janine Gibson, leste os primeiros capítulos e riste. Fazer-te rir foi o
estímulo de que precisava para continuar. Archie, Maya, Miranda, Nesrine,
Ben, Benji, são as melhores pessoas. Adoro-vos a todos.
Lizzie, minha querida irmã. Obrigada por leres este livro. Obrigada
pelas tuas notas, que me ajudaram mais do que poderei dizer.
Linds e Alan, obrigada, literalmente, por tudo. Vocês inspiraram este
livro (de todas as melhores formas).
Finalmente, Greg. Todos os homens no meu livro são autênticos
canalhas, mas tu és o absoluto oposto. Disseste-me que eu era uma escritora
muito antes de eu me considerar isso. Tenho tanta sorte por te ter ao meu
lado.
 

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