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e
outras
coisas
CHRISTINA
LAUREN
O amor
e
outras
coisas
Love and other words
Copyright © 2017 by Christina Lauren
© 2019 by Universo dos Livros
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outros.
L412a
e-ISBN: 978-65-5609-030-6
Título original: Love and other words
Meu pai era muito mais alto do que a minha mãe – e quero dizer muito
mesmo. Ele tinha quase dois metros de altura e minha mãe mal chegava a
1,60 metro. Um grandalhão dinamarquês e uma brasileira mignon. Quando se
conheceram, ela não falava uma palavra sequer em inglês. Contudo, na época
que ela morreu, quando eu tinha 10 anos, era quase como se tivessem criado
uma linguagem própria.
Lembro-me do jeito como ele a abraçava quando chegava em casa do
trabalho. Passava os braços ao redor de seus ombros e afundava o rosto em
seus cabelos curvando o corpanzil sobre ela. Os braços se tornavam
parênteses ao redor da mais doce e secreta das frases.
Eu tentava passar despercebida quando eles se tocavam assim e tinha a
sensação de que testemunhava uma cena sagrada.
Nunca me ocorreu que o amor pudesse ser qualquer coisa que não
transbordante, arrebatador. Ainda na infância, já sabia que não me
contentaria com ter nada menos do que isso.
Então, o que começou como um aglomerado de células malignas matou
minha mãe, e eu não queria mais saber disso, nunca mais. Quando a perdi,
senti como se me afogasse em todo o amor que ainda havia dentro de mim e
que nunca poderia ser dissipado. Era um sentimento que me consumia, me
sufocava como um pano encharcado de querosene, derramava-se em
lágrimas e gritos num silêncio pesado e pulsante. E, por maior que fosse o
meu sofrimento, eu sabia que para papai era ainda pior.
Sabia que, depois de mamãe, ele nunca mais se apaixonaria de novo.
Nesse aspecto, sempre foi fácil entender meu pai. Ele era direto e calmo,
caminhava com leveza, falava baixinho; até mesmo a sua raiva era pacata.
Era seu amor que ribombava. Seu amor era um urro vigoroso e sonoro. E
depois de ter amado mamãe com a força de um sol, depois que o câncer a
matou com um suspiro suave, imaginei que ele ficaria rouco pelo resto da
vida e nunca mais desejaria uma mulher do modo como a desejara.
Antes de morrer, mamãe deixou uma lista dos itens que ela queria que
papai lembrasse ao cuidar de mim até a fase adulta:
1. Não a mime com brinquedos, mime com livros.
2. Diga a ela que a ama. As meninas precisam ouvir essas palavras.
3. Quando ela estiver calada, tome a iniciativa de conversar.
4. Dê à Macy dez dólares por semana. Faça-a poupar dois. Ensine a
ela o valor do dinheiro.
5. Até ela completar 16 anos, a hora de voltar para casa deverá ser às
22h. Sem exceções.
A lista seguia ao longo de vários tópicos e ultrapassava cinquenta
recomendações. Toda essa extensão não era porque não confiava nele, ela só
queria que eu sentisse sua influência mesmo quando ela não estivesse mais
ali. Papai relia a lista com frequência, fazia anotações a lápis, ressaltava
certos pontos e assegurava, assim, que não faria nada errado nem se
esqueceria de algum marco importante. Conforme fui crescendo, a lista
acabou virando uma espécie de Bíblia. Não necessariamente um livro de
regras, mas sim uma espécie de garantia de que tudo aquilo com que
tínhamos dificuldades para lidar estava dentro da normalidade.
Uma regra em especial era muito importante para papai.
25. Quando Macy chegar da escola tão cansada a ponto de mal
conseguir formar uma frase, afaste-a de todo esse estresse. Encontre um
refúgio que seja perto e fácil o bastante para ir aos fins de semana, para
que ela possa respirar.
Embora seja provável que nunca tivesse sido a intenção de mamãe que
chegássemos a comprar uma casa de lazer para os fins de semana, meu pai –
um cara que leva tudo ao pé da letra – economizou, planejou e pesquisou
todas as cidadezinhas ao norte de São Francisco, preparando-se para o dia
em que seria preciso investir no nosso refúgio.
Nos dois primeiros anos depois da morte de mamãe, ele me observava
com aqueles olhos azuis, claros como gelo, que conseguiam ser suaves e
perscrutadores ao mesmo tempo. Ele me fazia perguntas que exigiam
respostas longas ou, pelo menos, que fossem além de “sim”, “não” ou “tanto
faz”. Na primeira vez que respondi uma dessas perguntas detalhadas com um
gemido sem sentido, cansada demais depois do treino de natação, da lição
de casa e do tédio esgotante de lidar com amigos ostensivamente dramáticos,
papai ligou para uma corretora de imóveis e exigiu que ela encontrasse uma
casa perfeita para nossos fins de semana em Healdsburg, Califórnia.
Vimos a casa pela primeira vez num dia em que estava aberta a visitações.
A corretora imobiliária da cidade nos recebeu com um sorriso amplo e um
olhar enviesado, que revelava sua opinião negativa sobre nossa agente de
São Francisco. Tratava-se de um chalé com quatro dormitórios e telhado de
madeira pontudo, úmido até não poder mais e potencialmente embolorado,
enfiado nas sombras de um bosque e próximo a um riacho que borbulharia de
modo contínuo do lado de fora da minha janela. A propriedade era maior do
que precisávamos, com terras além do que conseguiríamos cuidar, e nem
meu pai nem eu percebemos naquele dia que o cômodo mais importante da
casa seria a minha biblioteca, que ele iria construir dentro do imenso closet
do meu quarto.
Tampouco papai poderia saber que todo o meu mundo caberia na casa
vizinha, na palma da mão de um nerd magrelo chamado Elliot Lewis
Petropoulos.
HOJE
TERÇA-FEIRA, 3 DE OUTUBRO
Se você traçar uma linha reta do meu apartamento em São Francisco até
Berkeley, ela teria apenas dezessete quilômetros, mas, mesmo nos dias com
menos trânsito, o trajeto leva mais de uma hora sem carro.
– Peguei o ônibus hoje às seis de manhã – digo. – Duas baldeações de
metrô e um ônibus. – Confiro o relógio. – Sete e meia. Nada mau.
Sabrina limpa uma mancha de espuma de leite no lábio superior. Embora
compreenda por que evito carros, sei que parte dela pensa que eu
simplesmente deveria superar a questão e comprar um Prius ou um Subaru,
como qualquer outro morador com amor-próprio da região da Baía de São
Francisco.
– Não deixe ninguém dizer que você não é uma santa.
– Sou mesmo. Mas você me faz sair da bolha – digo isso com um sorriso e
baixo o olhar para a filhinha dela no meu colo. Só estive com a princesa
Vivienne duas vezes, e ela parece ter dobrado de tamanho. – Que bom que
você faz isso valer a pena.
Seguro bebês todos os dias, mas a sensação nunca é como esta. Sabrina e
eu dividimos o dormitório na Universidade Tufts. Depois, nos mudamos para
um apartamento fora do campus antes de nossa quase melhoria de status indo
morar em uma casa caindo aos pedaços, durante os nossos respectivos
cursos de pós-graduação. Por alguma magia do destino, acabamos as duas na
Costa Oeste, na região da Baía, e agora Sabrina tem um bebê. O fato de
termos idade o suficiente para fazer esse tipo de coisa – ter filhos, gerar
descendência – é a sensação mais esquisita de todos os tempos.
– Ontem às onze da noite eu ainda estava de pé com essa menina aí –
Sabrina conta, fitando-nos com carinho. Ela dá um sorriso irônico. – E às
duas. Às quatro. Às seis…
– Tá bom, você ganhou. Mas, justiça seja feita, o cheirinho dela é muito
mais gostoso do que o da maioria das pessoas no ônibus. – Dou um beijo na
cabeça de Viv e a ajeito melhor na dobra do meu braço antes de estender o
outro para pegar a minha xícara de café.
É estranho ter aquela xícara na minha mão. Ela é de cerâmica, e não um
copo descartável nem a enorme caneca térmica de aço inoxidável que Sean
enche toda manhã para mim, até a boca, presumindo – sem errar – que
preciso de uma dose colossal de cafeína para me aprontar e enfrentar um
novo dia. Faz uma eternidade desde a última vez que tive tempo de me sentar
com uma caneca de verdade e pude bebericar um café com calma.
– Você já está com cara de mãe – Sabrina comenta ao nos observar do
lado oposto da pequena mesa.
– É a vantagem de trabalhar com bebês o dia inteiro.
Sabrina fica calada por um instante e percebo o meu erro. Regra número
um: nunca me referir ao meu trabalho perto de mães, especialmente as
novatas. Consigo praticamente ouvir o coração dela martelando do outro
lado da mesa.
– Não sei como você consegue – ela sussurra.
Essa frase se tornou o refrão que não para de tocar na minha vida agora.
Meus amigos parecem sempre espantados que eu tenha decidido me formar
em pediatria na Universidade da Califórnia – na área de cuidados intensivos.
Sem exceções, percebo uma centelha de suspeita de que talvez me falte uma
parte importante, mais meiga, algum tipo de freio maternal que me impediria
de testemunhar o sofrimento diário de crianças doentes.
Digo a Sabrina o meu rotineiro “alguém precisa fazer isso”, depois
acrescento:
– E sou boa nisso.
– Aposto que sim.
– Mas neuropediatria? Isso eu não conseguiria fazer – digo, mas logo
pressiono os lábios entres os dentes para me impedir de fazer mais
comentários.
Cale a boca, Macy. Feche essa maldita matraca tagarelante.
Sabrina concorda de leve com a cabeça, encarando a filha. Viv sorri para
mim e chuta as perninhas, toda animada.
– Nem todas as histórias são tristes. – Faço cócegas na barriga dela. –
Pequenos milagres acontecem todos os dias, não é, minha lindinha?
A mudança de assunto parte de Sabrina, que diz meio alto e um pouco
estridente demais:
– Como estão os preparativos para o casamento?
Eu solto um gemido, pressionando o nariz no cheirinho gostoso de bebê no
pescoço de Viv.
– Tão bem assim, é? – Rindo, Sabrina estende os braços para a filha,
como se fosse incapaz de partilhá-la por mais tempo. Não posso culpá-la. A
bebê é um fardinho quente e moldável nos meus braços.
– Ela é perfeita, querida – digo baixinho, entregando-a. – Uma menininha
muito fofa.
E, como se tudo o que faço estivesse ligado às minhas lembranças sobre
eles – a família vizinha, gigantesca, barulhenta e meio caótica como eu nunca
tive –, sou atingida por uma onda de saudade do último bebê não relacionado
ao trabalho com o qual convivi. É uma lembrança de quando eu era
adolescente, fitando a pequena Alex adormecida na sua cadeirinha de
balanço.
Minha mente repassa uma centena de imagens: a senhora Dina preparando
o jantar com o pacotinho formado por Alex preso ao tronco. O senhor Nick
segurando Alex em seus braços grossos e peludos, encarando-a com o
carinho de um vilarejo inteiro. George, com seus 16 anos, tentando – e
fracassando – trocar a fralda da bebê sem causar nenhum acidente no sofá da
família. Da inclinação protetora de Nick Jr., George e Andreas ao olharem
para a sua nova e muito amada irmãzinha caçula. Em seguida,
invariavelmente, meus pensamentos voam até Elliot, sempre, esperando com
tranquilidade que os irmãos mais velhos começassem a brigar entre si, ou a
correr, ou a fazer bagunça – e assim permitissem que ele pegasse Alex no
colo, lesse para ela, lhe dedicasse sua total atenção.
Sinto tanta falta deles que até dói, mas especialmente de Elliot.
– Mace – Sabrina me chama.
Pisco.
– O que foi?
– O casamento?
– Ah, sim. – Meu humor se transforma; a perspectiva de planejar um
casamento enquanto faço malabarismos com cem horas semanais de trabalho
no hospital nunca deixa de me exaurir. – Ainda não pensamos em nada.
Ainda temos que escolher a data, o local, hum… tudo. Sean não liga para os
detalhes, o que é bom, eu acho...
– Claro – ela diz tentando parecer alegre, mudando Viv de posição para
amamentá-la. – Além disso, para que tanta pressa?
Embutido – e mal disfarçado – na pergunta dela, o pensamento é: Sou sua
melhor amiga e só vi esse cara duas vezes, pelo amor de Deus. Para que
tanta pressa?
E ela tem razão. Não há pressa. Estamos juntos há poucos meses.
Acontece que Sean é o primeiro homem que conheço em mais de dez anos
com quem consigo ficar sem sentir que é apenas por medo de não conseguir
coisa melhor. Ele é fácil de conviver, tranquilo, e quando sua filha de 6 anos,
Phoebe, perguntou se iríamos nos casar, a situação pareceu mexer com ele,
incentivando-o a me fazer a proposta mais tarde.
– Juro – digo a ela – que não tenho nenhuma novidade interessante.
Espere… Não. Tenho uma consulta com o dentista na semana que vem. –
Sabrina ri. – Chegamos a esse ponto. Esta é a única variável além de você
que vai interromper a minha monotonia num futuro próximo. Trabalhar,
dormir, repetir.
Sabrina encara minhas palavras como um convite para discorrer
livremente sobre sua família, agora com três membros, e ela detalha uma
lista de conquistas: o primeiro sorriso, a primeira gargalhada, e pouco antes,
no dia anterior, um punho minúsculo se lançando certeiro e agarrando com
firmeza o dedo da mamãe.
Eu ouço, adorando a normalidade de cada detalhe e reconhecendo o que
aquilo era na verdade: um milagre. Bem que eu gostaria de ouvir os
“detalhes normais” da vida dela todos os dias. Amo meu trabalho, mas sinto
falta de simplesmente… conversar.
Hoje meu plantão começa ao meio-dia, e provavelmente só terminará em
algum ponto no meio da madrugada. Chegarei em casa e dormirei durante
algumas horas, e repetirei a sequência no dia seguinte. Mesmo depois desse
café na companhia de Sabrina e Viv, o restante do dia vai escorrer até se
transformar no próximo e – a menos que algo terrível aconteça no setor –,
não me lembrarei de uma particularidade sequer a respeito dele.
Por isso, enquanto ela fala, tento absorver o máximo possível do mundo
exterior. Inspiro o aroma do café e das torradas, percebo o som da música
sob as conversas dos clientes. Quando Sabrina se inclina para pegar a
chupeta na bolsa da bebê, volto a atenção para o balcão, analisando a mulher
com dreadlocks rosa, o homem mais baixo com uma tatuagem no pescoço
anotando os pedidos e, na frente deles, um tronco longo e musculoso que me
chama bastante atenção.
Seus cabelos são quase pretos. Espessos e um pouco bagunçados, recaem-
lhe no alto das orelhas. O colarinho está dobrado em um dos lados e a
camisa está fora das calças jeans pretas bem usadas. Seus tênis Vans não têm
cadarço e a estampa xadrez vintage também está gasta. A alça de uma bolsa
bem usada, daquelas de carteiro, trespassa um dos ombros, e a bolsa repousa
no quadril oposto.
De costas para mim, ele se parece com milhares de outros homens de
Berkeley, mas sei exatamente quem é aquele homem.
É o livro pesado e cheio de orelhas nas páginas, enfiado debaixo do
braço, que o denuncia: só conheço uma pessoa que relê Ivanhoé todo mês de
outubro. É um ritual executado com absoluta adoração.
Sem conseguir desviar o olhar, fico paralisada ante a antecipação do
momento em que ele vai se virar, quando então poderei ver o que esses
quase onze anos fizeram a ele. Mal dou atenção à minha aparência: uniforme
hospitalar verde-claro, tênis de bater no dia a dia, cabelos presos em um
rabo de cavalo bagunçado. Mas, na verdade, nunca nos ocorreu levar em
consideração nossos rostos ou o nível de apresentação pessoal antes.
Sempre estivemos muito ocupados memorizando um ao outro.
Sabrina desvia minha atenção enquanto o fantasma do meu passado está no
caixa.
– Mace?
Pisco na direção dela.
– Desculpe. Eu. Desculpe. O que… disse?
– Só estava tagarelando sobre assaduras. Estou mais interessada no que
chamou a sua… – Ela se vira na direção em que eu estava olhando. – Ah...
O “ah” dela ainda não detém uma compreensão do fato. Seu “ah” se deve
apenas à aparência do homem de costas. Ele é alto – isso aconteceu de
repente, quando completou 15 anos. E os ombros são largos – isso também
aconteceu de uma hora para a outra, só que mais tarde. Lembro de ter
percebido a mudança na primeira vez que ele pairou acima de mim no closet,
com os jeans na altura dos joelhos, o corpo largo bloqueando a luz fraca do
teto. Os cabelos são espessos – mas sempre foram assim. Os jeans têm
cintura baixa e a bunda dele está maravilhosa. Eu… não faço a mínima ideia
de quando isso aconteceu.
Em suma, a aparência dele é exatamente o tipo que admiraríamos em
silêncio antes de virarmos uma para a outra com expressão de “nossa, ele é
de verdade?”. Esta é uma das percepções mais surreais da minha vida: ele
se transformou no tipo de desconhecido por quem eu babaria por aí.
É bem estranho vê-lo de costas, e o observo com tamanha intensidade que,
por um segundo, chego a me convencer de que não é ele de fato.
Talvez seja outra pessoa… e também, depois de uma década longe um do
outro, como é que eu poderia reconhecer o corpo dele?
E é então que ele se vira, e sinto como se todo o ar do ambiente tivesse se
esvaído. Como se eu tivesse levado um soco no plexo solar, e com isso meu
diafragma fica subitamente paralisado.
Sabrina ouve o som abafado que eu solto e se vira de volta para mim.
Sinto que ela começa a se levantar da cadeira.
– Mace?
Inspiro, mas é como se não puxasse ar suficiente e perdesse o fôlego;
meus olhos ardem.
O rosto dele está mais fino, o maxilar mais pronunciado, os fios de barba
por fazer mais densos; ainda usa o mesmo tipo de óculos de armação grossa,
mas eles já não fazem seu rosto parecer pequeno. Os brilhantes olhos
castanho-claros ainda ficam maiores por causa das lentes grossas. O nariz é
o mesmo, mas já não parece grande demais para o rosto, e a boca também é
a mesma – reta, macia e capaz do sorriso mais perfeitamente sarcástico da
Terra.
Não consigo imaginar qual expressão ele faria se me visse ali. Pode ser
uma que eu jamais tenha visto antes.
– Mace? – Sabrina me segura no braço com a mão livre. – Querida, você
está bem?
Engulo em seco e fecho os olhos a fim de me libertar do meu transe.
– Sim.
Ela não parece convencida.
– Tem certeza?
– Eu… – Engulo outra vez, abro os olhos e tenho a intenção de olhar para
ela, mas minha atenção é atraída de novo para além dos ombros dela. –
Aquele cara ali… é o Elliot.
Desta vez, o “ah” dela está carregado de significado.
ANTES
SEXTA-FEIRA, 9 DE AGOSTO
QUINZE ANOS ATRÁS
TERÇA-FEIRA, 3 DE OUTUBRO
SEXTA-FEIRA, 11 DE OUTUBRO
QUINZE ANOS ATRÁS
QUARTA-FEIRA, 4 DE OUTUBRO
QUINTA-FEIRA, 20 DE DEZEMBRO
QUINZE ANOS ATRÁS
QUARTA-FEIRA, 4 DE OUTUBRO
SEXTA-FEIRA, 21 DE DEZEMBRO
QUINZE ANOS ATRÁS
QUINTA-FEIRA, 5 DE OUTUBRO
Oi, Elliot,
Obrigada de novo pelo Ponte para Terabítia e desculpe por ter enchido
sua camisa de ranho quando estava tentando conversar sobre ele. Talvez
agora no computador eu consiga explicar o que estava tentando dizer.
Entendi por que me deu este livro e só quero que saiba o quanto ele tem a
ver. Fico pensando no primeiro dia em que te vi no closet, e como isso meio
que se parece com o momento em que Jesse odeia Leslie por ter sido
derrotado na corrida. Eu não te odiei, mas também não tinha certeza se
gostava de você. Acho que isso já não tem importância porque parece que
você é a pessoa que mais me entende. Jesse e Leslie inventaram Terabítia
para ser o santuário deles e, quando ela morreu, ele levou May Belle para lá
para ser a nova princesa. Minha mãe criou esse mundo de livros para mim,
mas sem ela eu posso levar você para o closet para partilhá-lo comigo.
Eu li o livro de novo no caminho de volta para casa e comecei a chorar
tudo de novo e achei que meu pai ia enlouquecer de vez. Ele não fazia a
menor ideia do que estava acontecendo. Ele só perguntava “O que deu em
você, menina?”. Então parou o carro, respirando fundo, e ficou me
perguntando o que tinha acontecido. Eu contei pra ele que você tinha me
dado esse livro triste. Eu contei pra ele o quanto ele me fez sentir saudades
da mamãe. E então ele chorou quando chegamos em casa, pelo menos eu
acho que chorou. Ele é sempre tão calado que nunca tenho certeza.
Odeio ficar triste na frente dele porque é como se ele já tivesse um cofre
gigantesco de tristeza e então ele tem que deixar tudo trancado só pra cuidar
de mim. E quando penso nisso, percebo que eu ainda tenho ele aqui comigo,
mas ele perdeu seu mundo inteiro. A minha mãe era a pessoa que ele
escolheu dentre todas as outras e ela se foi. Não sei. Acho que ele não gosta
de me ver chorando. Mas foi bom falar sobre ela. Tenho medo de me
esquecer dela. Sinto tantas saudades dela que preciso de uma língua nova
para expressar tudo isso.
Lá vou eu de novo. Bem, mudando de assunto, terminou de ser
Ivanhoeizado? Esse livro é tão colossal que eu dormiria depois de cinco
minutos de leitura. Li a primeira página quando você foi ao banheiro e o que
foi aquilo? Entendi uma milionésima parte. Do que fala?
Tudo bem, amanhã tem escola. Obrigada de novo pelo livro. E também
por me deixar falar sobre ele, acho.
bj,
Macy
PS: Ninguém entende que eu só quero ser mais uma garota na escola e não
a menina cuja mãe morreu e que precisa ser tratada como se fosse quebrar.
Obrigada por dizer coisas e não agir como se elas fossem assunto proibido.
Oi, Macy,
De nada. O livro também me fez chorar na primeira vez em que o li. Sei
que não te contei isso, mas acho que deveria ter contado.
Tenho certeza de que o seu pai entendeu o motivo de você estar chorando.
E também acho que ele deve ficar feliz por você estar chorando, por mais
que ele fique triste quando você fica triste. Mas espero que ele não esteja
bravo comigo por fazer você chorar. Quero dizer, foi o livro… Eu não quero
te fazer chorar por minha causa.
Não acho que você seja esquisita ou diferente porque a sua mãe morreu.
Na verdade eu te acho muito legal, mas isso não tem nada a ver com o fato
de você ter ou não uma mãe. Você é legal porque você é você. Um parêntese:
na minha opinião, você está conseguindo levar a situação até que bem.
Ivanhoé é muito bom. A história se passa no século XII depois da
Terceira Cruzada. (Algumas das ideias atuais de Robin Hood se baseiam
numa das personagens, Lockley. Mas ele não é o protagonista.) Gosto da
ação e do estilo. Eu costumava fazer de conta com meu amigo Brandon no
sétimo ano, então acho que vem daí o meu interesse pelo século XII na
Inglaterra. Se você gosta de Nicholas Sparks, provavelmente não vai gostar
de Ivanhoé.
Até mais,
Elliot
PS: Não quis que isso parecesse presunçoso. Meu pai me disse que às
vezes eu faço isso, e não sei se você teve essa impressão. Tenho certeza de
que Nicholas Sparks é muito bom, só é diferente de Sir Walter Scott.
De: Macy Lea Sorensen <minlilleblomst@hotmail.com>
Data: 2 de janeiro, 20h32
Para: Elliot P. <elliverstravels@yahoo.com>
Assunto: Re: livro
Oi, Elliot,
Nicholas Sparks é muito, muito bom. A mãe da minha amiga Elena o
encontrou num congresso literário e disse que ele é muito legal e bem
inteligente também. Aposto que ele leu Ivanhoé.
O que quis dizer com você e Brandon faziam de conta? Tipo aqueles caras
esquisitos no parque com espadas e flâmulas?
bj,
Macy
De: Elliot P. <elliverstravels@yahoo.com>
Data: 2 de janeiro, 20h54
Para: Macy Lea Sorensen <minlilleblomst@hotmail.com>
Assunto: Re: livro
Oi, Macy,
Sim. Exatamente assim. E também com elmos e cavalo de papelão.
Elliot
De: Macy Lea Sorensen <minlilleblomst@hotmail.com>
Data: 2 de janeiro, 21h06
Para: Elliot P. <elliverstravels@yahoo.com>
Assunto: Re: livro
Juro que você me fez gargalhar agora. Sei que você está brincando, mas
consigo te visualizar num cavalo de papelão berrando “Em guarda!” e
“Ivanhoé!”
Macy
De: Elliot P. <elliverstravels@yahoo.com>
Data: 2 de janeiro, 21h15
Para: Macy Lea Sorensen <minlilleblomst@hotmail.com>
Assunto: Re: livro
Eu estava falando sério. Nós fazíamos de conta assim mesmo. Na verdade,
existe uma comunidade muito bem organizada chamada Os Nobres, na qual
se travam batalhas e existe a realeza e é muito divertido. Mas acho que você
não iria gostar porque não tem um beijo suave no final.
Elliot
De: Macy Lea Sorensen <minlilleblomst@hotmail.com>
Data: 3 de janeiro, 18h53
Para: Elliot P. <elliverstravels@yahoo.com>
Assunto: Loucura!
Oi, Elliot,
Tenho quase certeza de que você foi presunçoso ontem à noite, então aqui
estou eu sendo bem madura a respeito, ignorando o assunto.
Quer saber de uma coisa muito louca? A minha amiga Nikki foi suspensa
por ficar com um garoto no refeitório hoje! Fiquei toda Ai meu Deus o que tá
acontecendo? Contei pro papai e ele me perguntou se eu já beijei algum
garoto e eu fiquei toda ofendida dizendo que de jeito nenhum! Quem eu
beijaria na escola? São todos uns babacas!
Foi uma loucura mesmo assim!
Macy
De: Elliot P. <elliverstravels@yahoo.com>
Data: 3 de janeiro, 20h27
Para: Macy Lea Sorensen <minlilleblomst@hotmail.com>
Assunto: Re: Loucura!
Meu amigo Christian foi suspenso no ano passado por ter construído um
foguete numa oficina. Nem sei bem onde ele conseguiu o combustível, mas a
coisa voou pela janela e atingiu um carro no estacionamento. Foi incrível.
Quer dizer que você não sai com os caras da escola?
Elliot
De: Macy Lea Sorensen <minlilleblomst@hotmail.com>
Data: 4 de janeiro, 07h32
Para: Elliot P. <elliverstravels@yahoo.com>
Assunto: Re: Loucura!
Saio Doug e Cody estão na escola comigo desde o primeiro ano então
meio que somos ligados mas ligados pra beijar? Eca não eles são legais mas
eu acho que vou acabar conhecendo algum cara da faculdade em algum
momento porque os caras da minha escola só pensam em videogames e skate
e Danny (outro amigo) uma vez tentou colocar a mão na minha bunda num
baile mas eu fiquei toda acho que não vai rolar.
Macy
De: Elliot P. <elliverstravels@yahoo.com>
Data: 4 de janeiro, 07h34
Para: Macy Lea Sorensen <minlilleblomst@hotmail.com>
Assunto: Re: Loucura!
Macy,
A pontuação é sua amiga.
Elliot
HOJE
QUINTA-FEIRA, 5 DE OUTUBRO
Macy?
Sem problema.
QUINTA-FEIRA, 13 DE MARÇO
CATORZE ANOS ATRÁS
QUINTA-FEIRA, 5 DE OUTUBRO
SEGUNDA-FEIRA, 28 DE JULHO
CATORZE ANOS ATRÁS
SEXTA-FEIRA, 6 DE OUTUBRO
QUARTA-FEIRA, 26 DE NOVEMBRO
CATORZE ANOS ATRÁS
SEXTA-FEIRA, 13 DE OUTUBRO
QUARTA-FEIRA, 31 DE DEZEMBRO
CATORZE ANOS ATRÁS
SÁBADO, 14 DE OUTUBRO
SÁBADO, 14 DE OUTUBRO
SÁBADO, 14 DE OUTUBRO
Sean larga as chaves no pote junto à porta e tira os sapatos com dois
chutes, gemendo contente.
– Está com fome, Applejack? – ele pergunta a Phoebe, e os dois
desaparecem dentro da cozinha.
Ajeito os sapatos lado a lado na prateleira próxima à porta e penduro
nossas jaquetas nos ganchos. As vozes deles ecoam até o corredor da
entrada; Phoebe está tentando convencer o pai a lhe dar algum bichinho de
estimação, qualquer um – sapo, hamster, pássaro, peixe.
Sinceramente não sei o que estou sentindo. Sean e eu tivemos um começo
meio que de vendaval, e trombamos numa rotina doméstica bem fácil, mas
essa rotina só requer de mim que eu partilhe a cama dele e nossos horários
vão rodando um ao redor do outro como um mecanismo bem lubrificado.
Trouxe o que precisava da casa de Berkeley, mas ela ainda está
basicamente cheia, e completamente desabitada, enquanto eu estou acampada
ali. Sean diz que ama me ter em sua cama. Phoebe sempre parece feliz em
me ver. Mas percebo, ao observá-lo hoje, que eu não o conheço assim tão
bem. Ele e Phoebe têm a coisa deles rolando. Mas, se quero fazer parte
disso, preciso me tornar parte disso.
– Querem que eu prepare o jantar? – pergunto ao entrar na cozinha atrás
deles, e os dois levantam as cabeças que estavam enfiadas na geladeira,
encarando-me como se não entendessem. – Macarrão – digo, fingindo estar
insultada. – Acho que consigo fazer macarrão.
– Tem certeza? – Phoebe continua incerta.
– Claro que sim, bobinha – respondo, fazendo-lhe um carinho na
bochecha.
Ela dá um gritinho e sai correndo da cozinha, e Sean se dirige até o
armário, de onde pega uma caixa de macarrão e um pote de molho pronto
para mim.
– Precisa de ajuda?
– Você pode me fazer companhia. – Indico com a cabeça a bancada onde
tomamos café da manhã, silenciosamente incitando-o a se acomodar numa
cadeira e conversar comigo. Para ajudar a tranquilizar a sensação que me
contrai o peito de que ele e eu jamais daremos certo. Na verdade, nunca
tivemos um tempo livre nos fins de semana, e eu tenho a suspeita de que é
por isso que essencialmente somos desconhecidos fora da cama.
Ele se senta e começa a ler os e-mails no celular enquanto ponho a água
para ferver.
Quero me casar com esse homem; quero que ele queira se casar comigo.
Gosto de estar perto dele.
Gosto da bunda dele nesses jeans.
– Você se divertiu hoje? – pergunto, mantendo o tom leve.
– Claro.
Tela rolando, tela rolando.
O pote de molho se abre com um estalo satisfatório, e o molho bate na
panela que pus no fogão. Sean levanta o olhar ante o som meio esquisito, um
tanto enojado.
– Gostou de conhecer o pessoal? – pergunto. – Eles gostaram muito de
você.
Ele pisca afastando o olhar do fogão e o volta para mim, sorrindo como se
soubesse que estou tentando agradá-lo.
– Claro, linda, eles são ótimos.
O tom dele é tão casual, tão desinteressado, que quero bater na cabeça
dele com o pote vazio. Quero implorar que ele também se esforce. Em vez
disso, enxáguo o pote e o deixo na lata dos recicláveis. A irritação em
relação a ele formiga minha pele como uma coceira.
– Tente não parecer tão entusiasmado.
– O que quer dizer com isso? – ele pergunta, com apenas uma pontada de
defesa da voz. – Foi tudo bem, Mace, mas eles são os seus amigos, não os
meus.
– Bem, quem sabe eles podem se tornar seus amigos também – eu lhe
digo. – Não é isso o que os casais fazem? Misturam suas vidas?
Percebo, nesse momento, que nunca discutimos. Não sei o que é discordar.
Ficamos juntos num total de uma hora despertos, talvez. Seria desastroso
tentar calcular o número de horas que já passamos juntos? Será que nos
importamos o bastante para discutir?
Meu celular treme na bancada, e eu o pego, lendo uma mensagem enviada
por Sabrina.
Tá tudo bem.
Ela responde com uma fila de emojis com corações nos olhos, e percebo
que o pedido de desculpa dela é apenas uma forma de ela me acalmar para
termos mais da mesma conversa. O momento escolhido por ela para isso,
como sempre, é impecável. Deixando o celular com a tela para baixo na
bancada, olho de novo para Sean, determinada a salvar aquilo, fazer planos,
fazer alguma coisa.
– Como vai ser a sua semana? – pergunto.
– Bem tranquila. Talvez eu leve a Phoebs para o Exploratório. Andei
pensando em ir acampar uma ou duas noites, talvez. – Ele dá de ombros,
apontando para o fogão com o queixo. – A água está fervendo.
– Não precisa dar uma de copiloto aqui, senhor – digo, tentando fazer
graça. – Estou no controle.
– Quer que eu faça uma salada ou algo assim? – Ele volta a atenção para a
geladeira, indicando que há coisas ali também.
– Você ficaria mais tranquilo se fizer isso?
– Tanto faz – ele diz, abaixando o olhar de novo para o celular. – É que
não quero só macarrão com molho para o jantar.
Encaro-o por alguns segundos silenciosos. Quero dizer, um “obrigado”
operaria milagres nessa hora.
– Claro que não.
Dito isso, viro-me para pegar alface e outros vegetais da geladeira.
Na cama, mas tarde, Sean se aconchega em mim, murmurando junto ao
meu pescoço:
– Hum, linda, você está tão cheirosa.
Encaro o teto, tentando descobrir o que dizer. Organizei um piquenique no
meu dia de folga, dando-lhe a oportunidade de conhecer os meus amigos, e
ele mal conversou com eles a respeito das vidas, dos trabalhos, dos
interesses deles. Voltamos para casa, e eu me ofereci para cozinhar – ele
comeu sem dizer nada, junto a Phoebe do outro lado da mesa, ajudando-a a
desenhar um unicórnio.
Phoebe o mostrou para mim, toda orgulhosa, depois do jantar, mas, fora
isso, é como se eu nem estivesse ali.
Sempre foi assim, e eu não notei porque estava tão feliz em ser incluída no
dueto deles, e eu estava tão ocupada que nada mais ocupava minha mente?
Foi um alívio tão grande já ter tudo resolvido, e não sentir nada – nada de
culpa, amor, medo ou incerteza – que eu simplesmente permiti que essa
rotina se tornasse o meu futuro?
Ou algo mudou desde que Elliot voltou à cena, e não importa o quanto
Sean negue, isso criou uma fenda na nossa vidinha pacata e sem graça?
Sean abre caminho da clavícula ao pescoço com beijos. Ele está ereto, já
abaixando a cueca boxer, pronto para ação, e nós trocamos quem sabe três
palavras nas últimas duas horas.
– Posso te perguntar uma coisa? – digo.
Ele assente, mas não detém seu progresso até meu queixo, minha boca.
– Qualquer coisa – ele diz, falando em meio a um beijo.
– Está animado em se casar de novo?
Ele desce a mão entre nós, incitando minhas pernas a se abrirem como se
planejasse responder depois de começar a fazer sexo comigo. Mas eu me
desvio e ele suspira, apoiando-se no meu pescoço.
– Claro, linda.
Rejeito isso:
– Claro, linda?
Com um gemido, Sean rola para o meu lado.
– Não é o que você quer? Quero dizer – ele diz –, já fui casado. Sei o que
é maravilhoso nisso, e sei o que não é tão maravilhoso assim. Mas se você
quer…
Eu o interrompo, levantando a mão.
– Você se lembra de como isso aconteceu?
Ele pensa um instante.
– Está falando da noite em que conversamos sobre isso?
Assinto, ainda que “conversamos sobre isso” não seja a melhor descrição.
Depois de uma noite divertida no cinema com Phoebe, nós a colocamos na
cama, depois Sean me levou para o quarto dele, fez de mim uma mulher
satisfeita e depois murmurou: “Phoebe acha que devemos nos casar”, antes
de adormecer entre meus seios.
Ele se lembrou disso na manhã seguinte e perguntou se eu o havia ouvido.
Confusa a princípio, eu disse por fim “eu ouvi”.
– Pela Phoebe – ele dissera. – Se vamos fazer isto, quero fazer direito.
Não tivemos tempo para conversar depois disso porque eu tive que sair
para o hospital, mas as palavras pareceram se repetir na minha cabeça como
uma canção o dia inteiro. Se vamos fazer isto, quero fazer direito.
Em retrospecto, só consigo me lembrar do enorme alívio que senti ante a
perspectiva de ter uma parte da minha vida resolvida com tamanha
conveniência. Não havia nada confuso ou turbulento naquilo. Não havia
picos maníacos com Sean, mas tampouco havia os baixos angustiantes. Sean
era fácil, e ele e Phoebe eram uma família à qual eu podia simplesmente…
me juntar. Mas, olhando para trás e em total contraste com a intensidade das
emoções que sinto perto de Elliot, quase me parece loucura ter voltado para
casa naquele dia mais tarde e ter dito um “sim” entusiasmado para Sean.
Por certo não planejamos muita coisa desde então. Ainda não escolhemos
uma aliança, provavelmente porque ambos percebemos que Phoebe não
parecia tão preocupada assim com a mulher na casa dela, e se talvez aquela
mulher acabasse sendo sua nova mãe.
A única pessoa que perguntava com frequência em que pé estavam os
planos era Sabrina, e ela era a pessoa que disse de bate e pronto que achava
aquela coisa toda um absurdo.
Sean passa uma mão no meu quadril.
– Linda, acho que você precisa tentar descobrir o que quer.
Meus olhos procuram os dele.
– O que eu quero?
– É – ele diz assentindo. – Eu, Elliot, nenhum de nós.
E quem faz isso? Quem se sente completamente tranquilo ante a perda
potencial da noiva a ponto de sugerir que eu reflita, ao mesmo tempo em que,
casualmente, acaricia meu quadril, inferindo que o relacionamento talvez
acabe, mas que o sexo ainda pode continuar?
– Te incomoda que as coisas estejam tão claramente estranhas entre nós?
Sean tira a mão, fechando os olhos com outro longo suspiro.
– Claro que me incomoda. Mas já passei por esses altos e baixos, e
simplesmente não posso deixar que eles me governem. Não tenho como
controlar o que você está sentindo.
Entendo que as palavras dele configuram a reação ideal para a situação na
qual estamos – é a versão bem ajustada de um livro didático desta conversa
difícil –, mas é assim mesmo que o coração humano funciona? Você ordena
que ele se controle e ele se controla?
Fito-o, com o braço em cima dos olhos, e estou tentando encontrar uma
centelha de algo maior, de uma emoção que me consome. Faço o que
costumava fazer com Elliot algumas vezes: imagino Sean se levantando,
saindo pela porta para nunca mais voltar. Com Elliot, meu estômago reagia
como se tivesse levado um soco.
Com Sean, sinto um leve alívio.
Penso na expressão de Elliot quando lhe disse que estava noiva. Penso no
rosto dele agora: no desejo ali, na faísca de sofrimento que vejo em seus
olhos quando nos viramos para direções contrárias. Mesmo onze anos mais
tarde, ele ainda sofre pelo que tivemos.
Estou aterrorizada pelo que estou sentindo; é como se eu tivesse acabado
de despertar. Pensei que não quisesse intensidade, mas, na verdade, estou
desesperada por isso.
Olho para Sean e sinto como se estivesse na cama com alguém que acabei
de conhecer.
Sentando-me, saio da cama.
– Aonde você vai? – ele pergunta.
– Pro sofá.
Ele me segue para fora do quarto.
– Você está brava?
Meu Deus, esta é a mais estranha dentre as situações estranhas do mundo,
e Sean está tão… calmo. Como fui parar nisso?
– Eu só acho que você está certo – respondo. – Talvez eu precise
descobrir o que quero.
ANTES
Elliot está esticado no chão, encarando o teto. Fazia um tempo que estava
assim, com seu exemplar gasto de As viagens de Gulliver abandonado na
almofada ao lado dele. Ele parecia tão envolvido em seus pensamentos que
nem notou o modo como meus olhos se moviam pelo corpo dele toda vez que
eu virava uma página.
Eu estava começando a questionar se um dia ele pararia de crescer. Com
quase dezessete anos, ele vestia shorts naquele dia e as pernas compridas
pareciam não ter fim. Também estavam mais peludas do que eu me lembrava.
Não peludas demais, apenas uma penugem castanha sobre a pele bronzeada.
Concluí que era bem másculo. Gostei.
Uma das coisas mais estranhas de se ficar períodos de tempo sem ver
alguém são as mudanças que você perderia se visse a pessoa todos os dias.
Como pelos nas pernas. Ou bíceps. Ou mãos grandes.
Dentre suas novidades, ele disse que a mãe havia lhe perguntado se ele
queria fazer cirurgia a laser de modo a não ter que usar mais óculos. Tentei
visualizá-lo sem óculos, ser capaz de olhar para seus olhos castanho-
esverdeados sem a interferência da armação preta entre nós. Eu adorava os
óculos de Elliot, mas pensar em estar perto dele sem eles provocava coisas
estranhas e quentes dentro do meu estômago. De alguma forma, isso o
deixava nu na minha cabeça.
– O que você quer de presente de Natal? – ele perguntou.
Dei um salto, assustada. Tenho certeza de que estou com a aparência de
alguém apanhada no flagra por encarar o melhor amigo com pensamentos
menos que inocentes. Não voltamos a nos beijar.
Mas eu quis muito.
A pergunta dele ecoou na minha cabeça.
– Natal?
As sobrancelhas negras se uniram, sérias.
– Sim. Natal.
Tentei disfarçar.
– É nisso que estava pensando esse tempo todo?
– Não.
Esperei que ele elaborasse, mas ele não disse mais nada.
– Não sei – respondi. – Algum motivo em especial para você me
perguntar isso em setembro?
Elliot rolou de lado para ficar de frente para mim, a cabeça apoiada numa
mão.
– Eu só quero te dar alguma coisa legal. Algo que você queira.
Abaixei o livro e virei de frente para ele também.
– Você não precisa me dar nada, Ell.
Ele emitiu um som frustrado e se sentou. Empurrando o chão acarpetado,
levantou-se. Eu me estiquei, envolvendo minha mão no pulso dele. O clima
leve e um tanto sensual entre nós aparentemente era só da minha parte.
– Está bravo com alguma coisa?
Elliot e eu não brigávamos, nunca, e a ideia de que algo entre nós não
estava bem mexia com o meu equilíbrio interno, deixando-me imediatamente
ansiosa. Eu sentia a pulsação dele como um tambor ritmado debaixo da pele.
– Você pensa em mim quando volta pra lá? – As palavras dele saem duras,
numa exalação rouca.
Levo um segundo para processar o que ele quer dizer. Quando volto para
casa. Quando estou longe dele.
– Claro que sim.
– Quando?
– O tempo todo. Você é o meu melhor amigo.
– O seu melhor amigo – ele repete.
Meu coração afunda dentro do peito, quase dolorosamente.
– Bem, você é mais do que isso, também. Você é o meu melhor tudo.
– Você me beijou no verão e depois agiu como se nada tivesse acontecido.
Isso me atingiu como uma lâmina nos pulmões. Fechei os olhos e cobri o
rosto com as mãos. Acontecera assim mesmo. Depois de tê-lo beijado na
cozinha, fiz de tudo para que as coisas voltassem ao que eram: leitura no
telhado pela manhã, almoço na sombra, natação no rio. Sentira os olhos dele
em mim, o tremor contido das mãos dele. Lembrei-me de como os lábios
estiveram quentes junto aos meus, o modo como me acendi como um estopim
quando ele gemeu na minha boca.
– Sinto muito – disse.
– Por que você sente muito? – ele perguntou com cuidado, agachando-se
ao meu lado. – Você lamenta porque não gostou de me beijar?
Senti as mãos gelarem e olhei para ele chocada.
– Pareceu que eu não tivesse gostado?
– Não sei – ele disse, dando de ombros, impotente. – Pareceu que você
gostou. Muito. E eu também. Não consigo parar de pensar nisso.
– Mesmo?
– É, Mace, mas daí você… – Ele fez uma careta para mim. – Você ficou
estranha.
Meus pensamentos estavam todos confusos – a lembrança da Emma na
entrada para carros e o pânico que sempre senti ao imaginá-lo saindo de vez
da minha vida.
– Mas é que tem a Emma…
– Emma que se foda – ele estrepitou, com a voz rouca, e isso me
surpreendeu tanto que me apoiei para trás com as mãos, afastando-me dele.
Elliot pareceu se arrepender de pronto e estendeu a mão para afastar uma
mecha de cabelo do meu rosto.
– Sério, Mace. Não tem nada acontecendo entre mim e Emma. É realmente
por esse motivo que você não quer falar sobre o que aconteceu entre nós na
cozinha?
– Acho que também porque tenho medo de estragar isto aqui. – Baixando
o olhar, acrescento: – Nunca tive um namorado, nem nada assim. Você é,
tipo, a única pessoa além do meu pai que é, de fato, importante pra mim, e eu
francamente não sei o que faria se não tivesse você na minha vida.
Quando eu fechava os olhos à noite, a única coisa que via era Elliot. Na
maioria das noites, eu sentia um desespero, querendo ligar pra ele só pra
poder ouvir sua voz. Eu odiava pensar além do fim de semana seguinte,
porque não tinha certeza se nossos planos para o futuro se alinhariam.
Imaginei Elliot indo para Harvard, e eu ficando em algum lugar da
Califórnia, e lentamente nos tornando meros conhecidos. A ideia era
repulsiva.
Quando voltei a fitá-lo nos olhos, notei que as linhas duras ao redor da
boca dele se suavizaram. Ele estava sentado diante de mim, seus joelhos
tocavam nos meus.
– Não vou a parte alguma, Mace. – Segurou minha mão. – Preciso de você
do mesmo jeito que você precisa de mim, ok?
– Ok.
Elliot olhou para a minha mão na dele e moveu as palmas de modo que
ficaram unidas, com os dedos entrelaçados.
– Você pensa em mim? – perguntei. Agora que ele tocara no assunto, a
pergunta me incomodava.
– Às vezes parece que penso em você todos os minutos – ele sussurrou.
Uma bolha de emoção se instalou na região sob minhas costelas, atingindo
um ponto sensível. Observei nossas mãos unidas por bastante tempo antes de
ele voltar a falar.
Eu me esforçava para afastar os olhos do corpo dele.
– Palavra favorita? – ele sussurrou.
– Zíper – respondi sem nem pensar, sentindo, em vez de ver, o sorriso de
resposta dele. – A sua?
– Crepitar.
– Você tem uma namorada? – perguntei, e as palavras pareceram uma
explosão de vento no quarto, uma janela incômoda se abrindo.
Ele levantou o olhar das nossas mãos, com uma carranca.
– Essa é uma pergunta séria?
– Só estou verificando.
Ele soltou da minha mão e voltou para o livro. Não leu; mais parecia que
queria jogá-lo em cima de mim.
Deslizei um pouco para perto dele.
– Não pode ficar surpreso por eu ter perguntado.
Arregalando os olhos para mim, ele baixou o livro.
– Macy. Acabei de te perguntar se você pensava em mim. Perguntei por
que ficou estranha depois que nos beijamos. Acha mesmo que eu tocaria no
assunto se tivesse uma namorada?
Mordi o lábio, me sentindo envergonhada.
– Não.
– Você tem um namorado?
Sorri.
– Uns poucos aqui e acolá.
Ele deu uma risada torta, balançou a cabeça e pegou o livro de novo.
Evidentemente, toda vez que eu me imaginava beijando alguém, era
sempre Elliot. E já tínhamos explorado isso: fantasia perfeita, realidade
sublime, consequências potencialmente desastrosas. Mesmo a ideia de beijá-
lo levava a pensamentos de um rompimento constrangedor e desagradável,
que fazia meu estômago se revirar em espasmos dolorosos.
Ainda assim… eu não conseguia parar de olhar para ele. Quando foi que
ele deixou para trás todo o seu desajeitamento e ficou tão perfeito? O que eu
faria com ele se um dia tivesse oportunidade? O Elliot de quase dezessete
era um estudo de linhas longas e definidas. Eu não teria a mínima noção de
como tocar no corpo dele. Conhecendo-o, ele simplesmente me diria.
Provavelmente me daria um manual sobre a anatomia masculina e me
desenharia alguns diagramas. Enquanto encarasse meus seios.
Bufei. Ele levantou o olhar.
– Por que está me encarando? – ele perguntou.
– Eu não… estava.
Dessa vez quem bufou foi ele, um som de total descrença.
– Ok. – Alongando o pescoço, ele voltou a olhar para o livro. – Ainda
está me encarando.
– Só estava pensando em como funciona – disse.
– Como o que funciona?
– Quando você… – Faço um gesto revelador com a mão. – Os rapazes e
seus… ah, você sabe.
Ele levantou as sobrancelhas, esperando. Notei o momento em que ele
entendeu sobre o que eu falava. As pupilas se dilataram tão rápido que os
olhos dele pareceram negros.
– Está me perguntando como paus funcionam?
– Ell! Não tenho irmãs… Preciso que alguém me conte esse tipo de coisa.
– Você não consegue nem falar sobre me beijar, e agora quer que eu te
conte como é quando eu me masturbo?
Engulo a excitação que se formou na garganta.
– Tudo bem, deixa pra lá.
– Macy – ele disse, com mais gentileza dessa vez –, por que você nunca
sai com ninguém lá na sua cidade?
De olhos arregalados, eu lhe disse o que me parecia meio óbvio:
– Não estou interessada em outros caras.
– Outros caras?
– Quero dizer – disse, tentando corrigir meu deslize –, em ninguém.
– “Outros” sugere que existe um cara – ele levantou uma palma, depois a
outra –, e, então, outros caras. Mas, neste caso, você disse que não está
interessada em nenhum outro. Quer dizer que existe um cara pelo qual se
interessa?
– Pare de ficar debatendo comigo.
Ele deu um sorriso torto.
– Quem é esse um?
Observei-o por uma batida bem demorada. Inspirando bem devagar,
resolvi que não tinha que ser tão difícil.
– Você sabe que comparo qualquer outro garoto com você. Isso não é
nenhuma revelação.
O sorriso dele se ampliou.
– Compara?
– Claro que sim. Como não iria comparar? Lembra? Você é o meu melhor
tudo.
– O seu melhor tudo para quem você pergunta sobre masturbação.
– Exato.
– O seu melhor tudo contra o qual nenhum outro cara se compara e cuja
língua deixou tocar a sua.
– Isso mesmo. – Não gostei muito da direção que aquilo estava tomando.
Aquilo estava levando a confissões, e confissões mudavam as coisas.
Confissões intensificavam sentimentos simplesmente porque recebiam
espaço para respirar. Confissões levavam ao amor, e confissões de amor
eram o mesmo que se prender a um trilho de trem.
– Então, talvez o seu melhor tudo devesse ser o seu namorado.
Encarei-o e ele me encarou.
Falei sem pensar:
– Talvez.
– Talvez – ele concordou num sussurro.
HOJE
QUINTA-FEIRA, 26 DE OUTUBRO
Fiel à sua promessa, Sabrina traz Viv para a cidade para nos encontrarmos
para o almoço. A primeira vez que dá certo para ambas é duas semanas
depois do piquenique. Nesse meio-tempo, eu basicamente me enterrei no
trabalho. É estranho dizer isso, mas só vi Sean acordado em três ocasiões.
Talvez porque eu estivesse dormindo no sofá.
Não sei por que não consigo dar o último passo e fazer as malas e voltar
para Berkeley. Pode ser porque o trajeto de casa para o trabalho seja um
incômodo, ou porque os fantasmas do meu passado ainda moram lá – mamãe
e papai estão em cada partícula suspensa de ar daquela casa.
Só fiquei lá num total de sete dias desde que me mudei para o
bacharelado. Seria o mesmo que entrar numa cápsula do tempo.
O rosto de Sabrina quando entro no Wooly Pig me diz tudo o que preciso
saber quanto ao meu sucesso em esconder os círculos escuros debaixo dos
olhos hoje cedo.
– Jesus Cristo – ela murmura quando me sento na frente dela. – Você
parece um zumbi saído do cemitério.
Rio, pegando a água diante de mim.
– Obrigada.
– Se eu soubesse que era isso o que me esperava, eu teria pedido um
espresso para você.
– Nada de café – digo, erguendo a mão. – Essa tem sido a minha única
fonte de calorias esta semana e preciso de algo mais… encorpado. Um
smoothie ou algo assim.
Sinto a inspeção dela enquanto leio o cardápio.
– Ok, pode me contar o que está acontecendo – ela diz, se inclinando mais
para perto. – Eu a vi há duas semanas, mas hoje você é uma pessoa
totalmente diferente.
– Tenho trabalhado demais. Acho que é a época cheia do ano; as gripes
estão começando. – Sem pensar, relanceio para Viv, adormecida no carrinho
ao lado da mesa. – E as coisas com Sean não andam muito bem.
– É mesmo? – Sabrina pergunta, e eu não olho para seu rosto quando ela
diz isso porque não sei como me sentirei se a expressão dela combinar com
o tom afiado da voz. – O que está acontecendo?
Deparo-me com seus olhos, lançando-lhe a mensagem silenciosa de “fala
sério”.
– Sabrina.
– O que foi?
– Temos mesmo que fazer isto? – Sinto como se estivesse à beira das
lágrimas. – Você sabe o que está acontecendo. – Erguendo uma mão, começo
a contar os acontecimentos nos dedos. – Mal conheço Sean. Ficamos noivos
depois de dois meses. Dou de cara com Elliot no Saul’s e vê-lo é como…
Não sei, um chute na alma. E depois, sabe o quê? Elliot está de volta à minha
vida e: surpresa! Acho que as coisas com Sean talvez não sejam tão
maravilhosas.
Sabrina assente, mas não diz nada.
– Não vai falar nada agora? Pensei que fosse ficar feliz em ouvir isso.
– A questão é que quero que você seja feliz. Quero ver aquela centelha
que vi no outro dia. Quero te ver corar quando alguém só olha pra você.
– Sabrina, eu fui feliz com Sean. Só porque eu sinto mais quando Elliot
está por perto não significa que esses sentimentos sejam mais válidos ou
mais felizes.
– Mesmo? Será que você sabe o que é ser feliz? Fiquei pensando nisso no
outro dia, na verdade. Será que já te vi feliz antes daquele piquenique?
Isso me parece um tremendo safanão vindo de alguém que me conhece há
dez anos.
– Você está brincando.
Ela meneia a cabeça.
– Quando Elliot veio andando na nossa direção… Juro que foi a primeira
vez que te vi sorrir daquele jeito… com o corpo inteiro. E isso me fez
questionar tudo o que sei da sua personalidade antes disso.
– Uau – digo lentamente. Isso me parece… monumental.
– Você acha que é feliz, mas mal está vivendo.
– Sabrina, o problema é a residência e as mais de oitenta horas de
trabalho semanais.
– Não – ela diz com um firme meneio. Recosta-se na cadeira, levando a
caneca de café consigo. –- Você se lembra do primeiro ano?
Sinto uma sombra fria se assomando sobre mim.
– Mais ou menos.
– Desde que te conheci, Elliot foi essa terceira pessoa entre nós, todos os
segundos. Muitas vezes senti que só me contava as coisas que me contava
porque ele não estava lá. – Ela levanta uma mão quando começo a responder
a isso. – Não estou reclamando, a propósito. Eu tinha o Dave e tinha você.
Você tinha a mim… mas também tinha Elliot… nos seus pensamentos, em
cada coisa que você fazia. Quando saía com caras, era como se… saísse
furtivamente e voltasse às escondidas à noite, como se alguém fosse ficar
bravo por você ter ido a um encontro.
Expelindo o ar lentamente, avalio-a, odiando-a por fazer aquilo, por expor
aquelas verdades, que até então só viveram nas sombras empoeiradas da
minha memória, e não num espaço público.
– A primeira vez que você dormiu com o Julian? Lembra disso?
Solto um riso-gemido. Eu lembrava. Eu estava na metade do primeiro ano.
Julian, guitarrista de cabelos compridos, era um semideus no campus, e
estava no último ano. Lindo, levemente convencido, não tão profundo quanto
acreditava ser – ou talvez fosse minha impressão agora, olhando para trás.
Por algum motivo, ele começou a ir atrás de mim em outubro, muito a
contragosto das ciumentas groupies da banda dele. Finalmente concordei em
sair com ele; na época pensei que talvez mergulhar em algo com alguém
fizesse tudo relacionado à Califórnia desaparecer.
Transamos no apartamento dele depois do nosso primeiro encontro. Não
me lembro muito do que aconteceu além de pensar, enquanto aquilo
acontecia, que devia haver pelo menos umas quinze outras mulheres
querendo estar naquela cama com ele naquele momento, e que ele
provavelmente devia estar fazendo um trabalho até que bem-feito. Mas só o
que eu queria era que ele acabasse logo para eu poder voltar para casa e me
embolar em mim mesma.
Voltei para o quarto, no dormitório que eu dividia com Sabrina, e antes
que conseguisse dizer qualquer palavra, vomitei em cima no par de botas
Docs roxas prediletas dela antes de me desfazer numa poça histérica de
lágrimas e lhe contar tudo a respeito de Elliot.
– Pobre Julian – eu digo.
– Ele era bonitinho – ela diz. – E deu certo por um tempo porque você não
estava envolvida. Você nunca se envolve, Macy. Você só tem um punhado de
gente que pode chamar de amigos de verdade, e mantém todas as outras
pessoas à margem.
Mexo-me para objetar, mas ela levanta uma mão ousada à procura de me
impedir.
– Me deixa terminar, tenho pensado neste discurso desde o piquenique.
Sorrio, apesar de estar brava.
– Ok.
– Tenho certeza de que Sean é um cara incrível, mas é mais uma versão de
você e do Julian: tudo na superfície. Você nunca sente o que sente pelo
Elliot, mas é conveniente: não quer sentir isso de novo, de um jeito ou de
outro.
Concordo a contragosto. Sabrina não pode levar a culpa por dizer em voz
alta aquilo que também comecei a perceber.
– Mas que droga, Mace – ela diz com gentileza –, não te parece um pouco
egoísta? Você só dá aquilo que tem vontade. Felizmente, desta vez, Sean está
feliz em receber migalhas.
Recosto na cadeira.
– Meu Deus – digo. – Por favor, me diga o que pensa.
Ela morde o lábio inferior.
– Está dizendo que estou errada?
Esfrego as mãos no rosto, sentindo mais cansaço do que durante toda a
semana.
– Não é tão simples assim, e você sabe disso.
Sabrina fecha os olhos, respirando lentamente. Voltando a olhar para mim
de novo, ela diz com suavidade:
– Eu sei, meu bem. A questão é… você está fingindo que pode
simplesmente dar as costas para o Elliot. Pode mesmo? E se não pode, o que
você está fazendo continuando noiva de outro homem?
– Eu sei, eu sei – digo com um sentimento fervilhando no estômago.
A expressão dela se suaviza.
– Você não quer ver onde isso com Elliot pode dar? A pior coisa que pode
acontecer é não funcionar e ele não ficar mais na sua vida. – Ela volta a se
aproximar, dizendo mais baixo: – Você sabe que consegue sobreviver a isso.
Pelo menos, minimamente.
Giro o garfo na mesa.
– O que te mantém com o Sean?
Sei que ela que ela quer uma resposta séria, mas estou farta da intensidade
daquela conversa.
– O endereço dele é conveniente.
Ela emite uma gargalhada que chega a perturbar o sono de Viv.
– Estão afofando travesseiros para você no Inferno, Macy Lea Sorensen.
– Não acho que nos distribuam travesseiros no inferno – digo, retribuindo
o sorriso. – Brincadeira. Só estou tendo dificuldade para confiar nessas
novas dúvidas, porque há poucas semanas eu estava muito feliz com Sean. E
se isso for apenas algo temporário?
Ela emite um cético “aham”.
Pisco para ela.
– Ah, fala sério.
– Você fale sério. Sabe que tenho razão. Sean é fácil, eu entendo isso. Ele
é um cacto e Elliot é uma orquídea. Entendo isso também, mas…
– Mas o quê?
– Mas não seja um testículo4 – ela diz. Sabrina odeia qualquer referência
a mulheres como sendo fracas, ainda mais depois de dar à luz um bebê de
mais de quatro quilos pelo modo convencional. – Quando pensa em beijar
Elliot, o que isso a faz sentir?
Meu corpo inteiro explode de calor, e sei que isso se revela no meu rosto.
Eu sei como é beijar Elliot. Eu conheço os barulhos que ele faz quando goza.
Sei como as mãos dele ficam urgentes, inquietas quando está excitado. Sei
como ele aprendeu a tocar, a beijar e a dar prazer porque ele aprendeu
comigo.
Sei o quanto tudo isso é bom, mesmo com o pouco tempo que tive.
– Nem preciso que me responda. – Ela se recosta quando a garçonete
chega com os nossos pedidos.
Quando ela volta a se afastar, meu celular vibra na bolsa e eu o pego,
rindo. É uma mensagem do Elliot, com quem não conversei desde o
piquenique.
QUARTA-FEIRA, 8 DE NOVEMBRO
QUARTA-FEIRA, 8 DE NOVEMBRO
Sean está no sofá esperando por mim quando chego em casa depois da
meia-noite. A não ser pela minha caminhada com Elliot, meu dia foi uma
droga. Sabendo o que eu tinha que fazer, mas evitando mesmo assim, fui
trabalhar lá pelas três da tarde – uma decisão terrível. Acabei informando
dois prognósticos terminais e interrompendo a quimioterapia de uma terceira
paciente porque a garotinha não toleraria mais uma dose (apesar de o câncer
poder). Nesse estado mental, sei que estou fazendo o Bem, mas não é o que
sinto, e ver Sean no sofá intensifica a autoflagelação.
– Oi, linda. – Ele dá um tapinha na almofada perto da qual está sentado.
Me arrasto até lá, me largando ali. Não nele exatamente, nem numa
posição confortável. Primeiro porque ainda estou de uniforme e quero tomar
um banho. E segundo porque me parece estranho me recostar a ele. Há um
campo de força invisível ali, me repelindo.
Como se estivesse lendo a minha mente, Sean diz:
– Provavelmente precisamos conversar.
– É, provavelmente.
Ele segura minha mão esquerda entre as dele, massageando minha palma
com os polegares. O toque me distrai porque é maravilhoso e me faz pensar
em todas as outras coisas maravilhosas que me distraem que Sean consegue
fazer com o resto do corpo dele.
– Tenho quase absoluta certeza de que você não está feliz – ele diz.
Viro-me de frente para ele. Demora alguns segundos para que o rosto dele
entre em foco porque está muito perto, e estou tão cansada, mas, quando isso
acontece, vejo o quanto isto de fato o está exaurindo. Só porque ele não
disse nada não quer dizer que não estivesse pensando nisso.
Sean e eu somos exatamente iguais.
– Você está? – pergunto.
Levantando um ombro, ele admite:
– Na verdade, não.
– Posso te perguntar uma coisa?
O sorriso dele é genuíno.
– Claro, linda.
A resposta dele não vai mudar o que eu sinto, mas eu tenho que saber.
– Você me ama?
O sorriso dele se apruma, e ele vasculha minha expressão por alguns
segundos.
– O quê?
– Você me ama? – pergunto de novo. – Falando sério.
Sei que ele está levando a sério a minha pergunta. E sei que ele não está
tão surpreso por eu ter perguntado, mas pela sua resposta instintiva.
– Tudo bem – digo baixinho. – É só uma pergunta.
– Acho que preciso de uma palavra entre gostar e amar, o que significa…
– “Eu a tenho em grande estima” – digo com um sorriso.
Nunca, na história do mundo, um término foi tão tranquilo. Mal houve uma
ondulação na superfície. Então, talvez mal estivéssemos juntos o bastante
para haver um rompimento.
– Você me ama? – ele pergunta, com as sobrancelhas unidas.
– Não sei ao certo.
– O que significa não – ele diz, sorrindo.
– Eu te amo… como amigo – respondo. – Amo a Phoebs. Amo o quanto
isto é fácil, e o quão pouco requer de mim agora.
Ele está assentindo. Ele entende.
– Mas tentar imaginar isto – gesticulo entre nós – pelo resto da minha
vida? – digo, beijando a testa dele. – É meio deprimente. Sinto como se nós
dois estivéssemos no caminho da menor resistência.
– Mace?
– Oi.
– O caminho de menor resistência para você não seria aquele com o
Elliot? – ele pergunta.
Fico imóvel, pensando na melhor resposta. De algumas maneiras, sim, ir
para a cama de Elliot é a rota mais fácil, e Sean sabe disso. Não existe
nenhum motivo para não ser franca.
Mas uma parte de mim acredita que Elliot e eu sempre fomos destinados a
sermos apenas melhores amigos. Tive tanto medo de dar o próximo passo
quando éramos adolescentes e, assim que demos, tudo terminou.
– Temos uma história – digo com cautela. – Não é uma história ruim,
considerando o todo. Mas ele fez uma coisa errada. E eu fiz uma coisa
errada. E não chegamos a conversar sobre isso.
– Por que não?
Deus. A pergunta mais simples e óbvia.
– Porque… – começo. – Porque, não sei… aquela época das nossas vidas
foi difícil, e tomei decisões erradas que não sei bem como explicar. E
aparentemente também estou em grande parte morta por dentro e não sou
muito boa para expressar emoções.
Ele se senta ereto, olhando para mim com franqueza.
– Sabe de uma coisa? Se Ashley voltasse para casa, e estivesse
completamente afastada das drogas, e dissesse para mim “Sean, tomei
decisões muito ruins. Não sei como explicá-las”, acho que isso bastaria.
– Mesmo? – pergunto.
Ele assente.
– Sinto a falta dela.
Passo meus braços ao redor dele, segurando-o junto ao meu peito. Não
acho que Sean chegou a chorar por causa da partida de Ashley, ou pela
possibilidade muito real de ela nunca voltar. Ou ainda pela horrível
probabilidade de a campainha tocar um dia e ser ela pedindo dinheiro.
Ou, pior, que um policial estivesse ali, contando a Sean que ela se fora
para sempre.
– Ficamos amigos? – pergunto.
– Sim – ele sussurra, pressionando o rosto no meu pescoço. – Sim,
também preciso disso.
Mudo de lá alguns dias mais tarde, e isso envolve apenas eu fazer as duas
malas que levei para lá alguns meses antes e me deslocar para seis
quarteirões de distância dali. Por menos de setecentos dólares por mês,
estou alugando um quarto vago na casa de Nancy Eaton – ela é médica na
minha unidade, e a filha acabou de se mudar para o leste para fazer
faculdade. É uma situação temporária; não porque Nancy não tivesse me
oferecido o lugar indefinidamente, mas porque sinto que seja assim. Tenho
uma casa em Berkeley e poderia muito bem vendê-la e comprar outro lugar
ali na cidade, mas só de pensar nisso sinto que seria uma traição. Eu poderia
alugar a casa e pagar o aluguel de outra na cidade, mas isso exigiria de mim
que eu desse uma olhada em todos os pertences dos meus pais, e também não
estou pronta para isso.
– Você está um farrapo – Elliot diz para mim do outro lado da linha depois
que eu ter lhe contado os detalhes do que fazer com a casa em Berkeley.
Ele não faz a mínima ideia: não contei que terminei com Sean. Se Elliot
soubesse que eu e Sean terminamos, ele viria até a cidade na mesma hora e
ficaria me encarando até eu ceder, me esticando para beijá-lo. Sean é a única
barreira. Ele é o amortecedor, me dando tempo para pensar. Não quero que
Elliot me encante e me faça apaixonar por ele de novo, nem que me
pressione a tomar uma decisão. Preciso de tempo.
Ouço um objeto caindo ao fundo e ele murmurando um “merda”, frustrado.
– O que foi isso? – pergunto.
– Acabei de derrubar uma panela na pia. Acho que seria bom eu lavar os
pratos.
– Seria.
– Como está Sean? – ele pergunta.
A mudança de assunto é tão repentina que me pega desprevenida.
– Bem – respondo e acrescento sem pensar: – Eu acho.
Sinto o modo como Elliot fica imóvel do outro lado.
– Você acha?
– É. – Tento me desviar. – Tenho andado ocupada.
– Está sendo evasiva comigo?
– Não – digo, fazendo uma careta enquanto procuro por uma meia-verdade
melhor. Olho ao redor do meu novo quarto, como se a resposta fosse se
materializar na parede de alguma maneira. – Eu só não o tenho visto muito
nos últimos dias.
– O que vão fazer no Dia de Ação de Graças? – ele pergunta. – Este será
o primeiro de vocês juntos, certo?
Droga.
– Acho que vou trabalhar.
– Você acha? – ele pergunta de novo, e parece que ele está comendo. – A
escala dos residentes não é mapeada com anos de antecedência?
– Sim – respondo, segurando com dois dedos a ponte do nariz. Odeio
mentir para ele. – Eu ia trocar para não ter que trabalhar no Natal, mas não
cheguei a me organizar. Provavelmente, terei folga.
Elliot faz uma pausa – provavelmente porque sabe que estou mentindo e
está tentando descobrir o motivo.
– Ok, então você tem planos ou não?
– Sean e Phoebe vão para a casa dos pais dele. – Hesito, prendendo o
fôlego. – Eu não.
Antecipo que ele vá desenvolver o assunto, fazer algum tipo de
comentário investigador do tipo “o que isso quer dizer?”, mas ele não faz
nada disso.
Limita-se a pigarrear e concluir:
– Muito bem, então você vem para cá. E é melhor eu lavar a louça antes
disso.
ANTES
QUARTA-FEIRA, 12 DE JULHO
ONZE ANOS ATRÁS
QUINTA-FEIRA, 23 DE NOVEMBRO
QUINTA-FEIRA, 23 DE NOVEMBRO
Acho que neste fim de semana. Fui até a casa da Nikki à tarde, e Danny
estava lá. Eles ficaram jogando videogame, e se divertiram tanto, e eu só
conseguia pensar que queria que você estivesse lá.
Acho que seria uma boa ideia a gente baixar a bola durante a semana. De
outro modo, vai ser difícil demais. Estou enlouquecendo.
DOMINGO, 31 DE DEZEMBRO
Cheguei.
Já estou indo.
Saio do meu modesto quarto no Hotel L&M para o reflexo do sol brilhante
de inverno no asfalto. Protegendo os olhos com a mão, consigo ver Elliot uns
três metros adiante, encostado na porta do motorista com um pequeno buquê
improvisado de flores silvestres. De imediato, me lembro de cada um dos
heróis dos romances adolescentes com a visão dele ali, me encarando.
Depois de trinta e sete dias, meus olhos também estão sedentos,
absorvendo cada detalhe de sua aparência naquele smoking, os cabelos
muito bem penteados, a pele lisa por conta de um barbear recente.
Trocamos algumas mensagens desde o Dia de Ação de Graças e
conversamos pelo telefone um pouco aqui e acolá quando tive uma dúvida
quanto ao traje para o casamento, ou quando ele quis combinar comigo onde
deveria me buscar hoje; mas não o vi desde que ele se curvou para me beijar
no rosto na porta de seu apartamento, ambos com as barrigas cheias de peru
e vinho, e me fitou significativamente por três respiros silenciosos.
– Me dá uma chance – ele disse então.
Prometi que lhe daria. A questão era se ele ainda ia querê-la assim que
ouvisse o que eu tinha a dizer.
Comemorei meu Natal no dia 22 de dezembro com Sabrina, Dave e Viv.
Só de vê-los, sentada no banco da cozinha, sorvendo meu vinho, era fácil
enxergar os rituais tomando forma: o CD da banda canadense de músicas
instrumentais tocado repetidamente; Dave assando o equivalente ao estoque
de uma loja de biscoitos natalinos; Sabrina indo para a sala de estar, onde
ficou decorando a imensa árvore de Natal com as luzinhas pisca-pisca. Foi
apenas mais uma diminuta ferroada de percepção daquilo que vim tendo o
mês inteiro, ouvindo os colegas partilharem seus planos para as horas vagas:
festas, encontros, assados, voos para fora da cidade.
Depois que perdi Elliot e – claro – depois que perdi meu pai, eu também
havia perdido qualquer apego às tradições. Estou ávida para recuperá-las.
Quero fazer muffins de mirtilo nas manhãs de Natal e acender a kanderlys à
noite. Quero aebleskivers e livros nos aniversários, e cachorros-quentes na
praia no Ano-Novo. Mas também quero que o Dia de Ação de Graças seja o
dia em que Elliot e eu nos sentaremos no chão, apenas nós dois de roupas
íntimas, comendo peru com as mãos. Quero comemorar aniversários de
casamento na cama o dia inteiro, tendo conversas ao manter nossas bocas a
apenas centímetros de distância.
Estou pronta.
Por isso, vou para o asfalto rachado do estacionamento, desequilibrada
nos meus saltos, tentando caminhar com graciosidade na direção dele. O que
quero de verdade é me jogar em seus braços, mas consigo me controlar,
parando a meio metro de distância. O perfume dele é maravilhoso, e quando
empurra os óculos para cima, os olhos parecem quase âmbares sob a luz do
sol. As palavras que vim ensaiando repetidamente no último mês – Quando
saí da casa do Christian, fui para o chalé. Adormeci no chão e foi lá que
meu pai me encontrou – sumiram num eco distante.
Elliot entrega as flores nas minhas mãos e se curva, beijando-me logo
abaixo da mandíbula, bem onde a pulsação está mais enlouquecida.
Inclino-me para cheirá-las – na verdade, elas não têm cheiro de nada, mas
são tão coloridas que parecem fluorescentes.
– Flores. E não é que você é o par perfeito para um casamento?
– Eu as apanhei logo ali – ele admite, apontando para um trecho com
ervas daninhas desgovernadas no limite da propriedade. Quando se volta e
sorri, parece ter dezoito anos de novo. – Mamãe não me deixou pegar uma
rosa da suíte.
Ele olha para mim, os olhos quentes enquanto os passeia por meu peito,
pescoço e rosto. Estou usando um vestido novo e admito que me sinto
maravilhosa. É um vestido de seda amassada justo – um intenso tom de
vermelho com laranja de alças finas feitas de contas. Faz com que minha
pele morena pareça dourada.
Nossos olhos se encontram, e sinto meu sorriso explodir pelo rosto.
Vamos despejar tudo mais tarde. A antecipação de um fardo sendo retirado
faz com que eu me sinta leve.
– Pronta? – ele pergunta.
– Pronta.
Elliot para o carro na frente da enorme propriedade vitoriana, o motor
estala e então fica em silêncio. Virando-se para mim, pergunta baixinho:
– Você está bem?
Foi um trajeto de dez minutos; não existe a mínima possibilidade de ele
não ter percebido como me agarrei à maçaneta da porta o tempo inteiro.
– Estou bem.
– Ok – ele diz e exala, então me impede de sair colocando a mão na minha
perna, logo acima do joelho. O toque parece cheio de significado, e ele
parece perceber isso ao mesmo tempo que eu, afastando os dedos
lentamente. – Permita-me.
Ele sai, trota pela frente do Civic surrado e abre a porta para mim com um
floreio cavalheiresco.
Atrás dele, a Mansão Madrona se eleva imponente tal qual num conto de
fadas, com gramados extensos emoldurando a imensa propriedade. É algo
completamente diferente do Hotel L&M de beira de estrada. Evidentemente,
eu poderia ter ficado na casa de Healdsburg, que é minha – não está alugada
para nenhum turista no momento –, mas, mesmo sabendo que nos abriremos
mais tarde, a ideia de ficar lá sozinha, sem meu pai, me pareceu ligeiramente
depressiva.
Elliot fica ali, esperando que eu saia e mantém a mão estendida.
– Está emperrada aí?
Não, apenas derretendo silenciosamente só por te ver.
Empurro o assento, deixando que ele segure minha mão assim que fico de
pé.
– Estou bem. É só… muito lindo aqui.
Como está fresco, uso um xale ao redor dos ombros, e Elliot dá um passo
à frente, ajustando-o onde ele escorregou pelo meu braço.
– Pronto. – Ele percorre meu ombro debaixo do xale com um polegar. A
pele dele é mais clara em relação à minha, e o contraste de cores parece
perfeito. – Vai ficar aquecida o bastante?
Digo que sim e passo meu braço pelo dele conforme seguimos pelo
caminho até o prédio principal. É meio-dia e o sol brilha pelas copas das
árvores, deixando a folhagem dourada como o mel. Aninhada nas colinas
acima do Condado de Sonoma, a Mansão Madrona é cercada por acres e
acres repletos de árvores e dá de frente para os vastos vinhedos. O jardim
parece se estender em todas as direções. Na verdade, eu deveria estar mais
curiosa a respeito daquele lugar tão renomado, mas estar perto de Elliot
depois de um mês pensando em tudo, tendo seu corpo pressionado ao meu e
sabendo que a qualquer segundo eu posso detê-lo, virar para ele e beijá-lo…
Sinto como se estivesse espiando na beira do precipício de um vale
profundo em cujo fundo há uma imensa piscina de bolinhas: só quero me
jogar e brincar.
Dentro da mansão, o corredor se estende em linha reta, com cômodos
dando para a entrada principal. Elliot planeja subir e ver como Andreas está
no quarto do noivo. Disse a Elliot que dirigiria de Berkeley na noite anterior,
quando, na verdade, providenciei um transporte, tomei um Xanax e dormi o
trajeto inteiro. Cheguei ao hotel, despenquei na cama e dormi até meu
relógio biológico me despertar, exatamente às seis da manhã.
O que tudo isso significa é que ainda não vi ninguém da família dele e,
reconheço, estou um pouco ansiosa. Mas, por mais que eu não me importe
em explorar a propriedade sozinha, deixando o clã Petropoulos à vontade até
a cerimônia, Elliot não quer saber disso.
– Vem comigo – ele diz, indo para a larga escadaria. O Natal ainda tinha
que ser banido de volta para as caixas e ser guardado até o próximo mês de
dezembro, e as guirlandas ainda decoram festivamente a balaustrada. Uma
pequena árvore de Natal dourada ilumina o patamar no alto. – Eles estão
aqui em cima.
– Não quero atrapalhar os preparativos – digo, ficando para trás,
hesitante.
– Para com isso – ele ri. – Tá de brincadeira, né? Se eu aparecer lá sem
você, só vão me mandar descer de novo pra te buscar.
Uma revoada de pássaros explode em movimento dentro do meu peito
quando ouço o senhor Nick gritando, pedindo que George vá buscar uma
mala no carro e Nick Jr. caçoando de Alex por algum motivo. Ouço a
gargalhada alegre da senhora Dina, e a voz dela – ainda a mesma – dizendo a
Andreas que ele deveria deixar que alguém ajeitasse a gravata-borboleta
porque está parecendo uma “minhoca mole” ao redor do pescoço dele.
Empurramos a porta, que range quando entramos, e o cômodo inteiro
silencia. Andreas se vira diante do espelho, onde estava brigando com a
gravata. Nick Jr. e Alex se endireitam onde estavam, pelo visto, brigando
perto do sofá.
A senhora Dina congela com a mão num grampo do cabelo.
– Macy! – ela arqueja e seus olhos imediatamente ficam marejados. Ela
deixa o grampo cair e cobre a boca com as mãos.
Ergo a mão num aceno trêmulo. Ver os rostos de todos eles faz com que eu
retroceda uma década, como se voltasse para casa depois de muito tempo.
– Oi pra todo mundo.
Elliot me puxa para mais perto dele.
– Ela não está linda?
Olho para ele chocada, mas seu sorriso preguiçoso me diz que ele não
está nem um pouco embaraçado com o exame preciso deles.
– Maravilhosa – o senhor Nick concorda.
Alex corre até mim, lançando os braços ao redor dos meus ombros.
– Lembra de mim?
Não a vejo desde que ela tinha três anos de idade, e não poderia lhe dizer
que penso nela todos os dias desde então. Rindo, passo os braços ao redor
da figura alta e graciosa dela, perguntando:
– Você se lembra de mim?
– Não – a senhora Dina diz, balançando a cabeça. – Eu vou chorar.
Nick Jr. olha para ela e geme.
– Mãe, você já está chorando.
Elliot me solta, mas não se afasta enquanto cada um deles se aproxima
para me abraçar. Quando é a vez de Andreas, ele sussurra baixinho:
– Obrigado por vir.
Ao qual respondo, igualmente baixinho:
– Parabéns, cabeça-oca.
A cena volta a explodir no maior barulho quando Alex recomeça a
discutir com o pai por que precisa ou não de permissão para prender os
cabelos num penteado, e George discute com a mãe sobre onde pode
encontrar a tal mala. Elliot ajuda Andreas com a gravata, e Liz entra,
trazendo uma bandeja de sanduíches da festa de casamento. Está usando um
vestido azul diáfano – evidentemente é uma das madrinhas.
– Olá, Macy! – ela diz e se aproxima de mim. Quando um olhar confuso é
partilhado pelo resto da família de Elliot, ela os lembra de que nos vemos
todos os dias no trabalho, e o lugar explode mais uma vez quando todos se
lembram do significado disso: a pequena Macy é uma médica agora! E sou
abraçada por todos de novo.
Vinho é servido, o cabelo de Alex é escovado para baixo, e depois preso
novamente, para incômodo do pai e dos irmãos mais velhos, e o tempo
inteiro Elliot está ali, com o braço pressionado ao meu, a batida gêmea do
meu coração, uma presença reconfortante.
– Pai – Elliot diz por fim, com uma risada baixa e ressonante –, ela tem
catorze anos. Está usando um vestido que vai até o chão, com mangas. Ela
não vai engravidar se alguém vir a nuca dela.
O senhor Nick encara Elliot por alguns segundos, depois meneia a cabeça
na direção da esposa e da filha.
– Pode prender o cabelo. Não me importo. É só que é muita pele!
– Do meu pescoço! – Alex exclama, frustrada. – Mande os caras não
olharem, se isso o incomoda tanto assim.
– Amém – eu digo, sorrindo para ela.
O sorriso de gratidão dela é como um facho de sol atravessando as
nuvens.
Quando a discussão recomeça, Elliot se inclina para mim e pergunta, bem
junto ao meu ouvido:
– Quer dar um passeio no jardim?
Aceito, estremecendo com sua proximidade dele, e ele me guia em
direção à porta com a mão na minha lombar antes de segurar meus dedos.
Sinto a atenção do quarto todo voltada para as nossas mãos unidas quando
saímos e Alex, confusa, diz: “Pensei que ela tinha um namorado”, seguido do
sibilo agudo da senhora Dina: “Psiu!” e do comentário de Andreas, “Eles
terminaram, lembra?” no nosso rastro.
Elliot baixa o olhar para mim, sorrindo com gosto.
– É como você se lembrava?
Encosto no ombro dele.
– Melhor.
ANTES
DOMINGO, 31 DE DEZEMBRO
SEXTA-FEIRA, 8 DE DEZEMBRO
ONZE ANOS ATRÁS
DOMINGO, 31 DE DEZEMBRO
DOMINGO, 31 DE DEZEMBRO
DOMINGO, 31 DE DEZEMBRO
SEGUNDA-FEIRA, 1 DE JANEIRO
QUARTA-FEIRA, 10 DE JANEIRO
FIM
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SÉRIE CRETINO IRRESISTÍVEL