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O amor

e
outras

coisas
CHRISTINA
LAUREN

O amor

e
outras

coisas
Love and other words
Copyright © 2017 by Christina Lauren
© 2019 by Universo dos Livros
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empregados: eletrônicos, mecânicos, fotográficos, gravação ou quaisquer
outros.

Diretor editorial: Luis Matos


Gerente editorial: Marcia Batista
Assistentes editoriais: Letícia Nakamura e Raquel F. Abranches
Tradução: Cristina Calderini Tognelli
Preparação: Juliana Gregolin
Revisão: Nilce Xavier
Arte: Valdinei Gomes
Adaptação de capa e projeto gráfico: Rebecca Barboza

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Angélica Ilacqua CRB-8/7057

L412a

O amor e outras coisas / Christina Lauren ; tradução de Cristina


Calderini Tognelli. –– São Paulo : Universo dos Livros, 2020.
384 p.

e-ISBN: 978-65-5609-030-6
Título original: Love and other words

1. Ficção norte-americana 2. Literatura erótica I. Título II. Tognelli,


Cristina Calderini
19-0474 CDD 813.6

Universo dos Livros Editora Ltda.


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Para Erin e Marcia, e a casa perto do riacho no bosque.
PRÓLOGO

Meu pai era muito mais alto do que a minha mãe – e quero dizer muito
mesmo. Ele tinha quase dois metros de altura e minha mãe mal chegava a
1,60 metro. Um grandalhão dinamarquês e uma brasileira mignon. Quando se
conheceram, ela não falava uma palavra sequer em inglês. Contudo, na época
que ela morreu, quando eu tinha 10 anos, era quase como se tivessem criado
uma linguagem própria.
Lembro-me do jeito como ele a abraçava quando chegava em casa do
trabalho. Passava os braços ao redor de seus ombros e afundava o rosto em
seus cabelos curvando o corpanzil sobre ela. Os braços se tornavam
parênteses ao redor da mais doce e secreta das frases.
Eu tentava passar despercebida quando eles se tocavam assim e tinha a
sensação de que testemunhava uma cena sagrada.
Nunca me ocorreu que o amor pudesse ser qualquer coisa que não
transbordante, arrebatador. Ainda na infância, já sabia que não me
contentaria com ter nada menos do que isso.
Então, o que começou como um aglomerado de células malignas matou
minha mãe, e eu não queria mais saber disso, nunca mais. Quando a perdi,
senti como se me afogasse em todo o amor que ainda havia dentro de mim e
que nunca poderia ser dissipado. Era um sentimento que me consumia, me
sufocava como um pano encharcado de querosene, derramava-se em
lágrimas e gritos num silêncio pesado e pulsante. E, por maior que fosse o
meu sofrimento, eu sabia que para papai era ainda pior.
Sabia que, depois de mamãe, ele nunca mais se apaixonaria de novo.
Nesse aspecto, sempre foi fácil entender meu pai. Ele era direto e calmo,
caminhava com leveza, falava baixinho; até mesmo a sua raiva era pacata.
Era seu amor que ribombava. Seu amor era um urro vigoroso e sonoro. E
depois de ter amado mamãe com a força de um sol, depois que o câncer a
matou com um suspiro suave, imaginei que ele ficaria rouco pelo resto da
vida e nunca mais desejaria uma mulher do modo como a desejara.
Antes de morrer, mamãe deixou uma lista dos itens que ela queria que
papai lembrasse ao cuidar de mim até a fase adulta:
1. Não a mime com brinquedos, mime com livros.
2. Diga a ela que a ama. As meninas precisam ouvir essas palavras.
3. Quando ela estiver calada, tome a iniciativa de conversar.
4. Dê à Macy dez dólares por semana. Faça-a poupar dois. Ensine a
ela o valor do dinheiro.
5. Até ela completar 16 anos, a hora de voltar para casa deverá ser às
22h. Sem exceções.
A lista seguia ao longo de vários tópicos e ultrapassava cinquenta
recomendações. Toda essa extensão não era porque não confiava nele, ela só
queria que eu sentisse sua influência mesmo quando ela não estivesse mais
ali. Papai relia a lista com frequência, fazia anotações a lápis, ressaltava
certos pontos e assegurava, assim, que não faria nada errado nem se
esqueceria de algum marco importante. Conforme fui crescendo, a lista
acabou virando uma espécie de Bíblia. Não necessariamente um livro de
regras, mas sim uma espécie de garantia de que tudo aquilo com que
tínhamos dificuldades para lidar estava dentro da normalidade.
Uma regra em especial era muito importante para papai.
25. Quando Macy chegar da escola tão cansada a ponto de mal
conseguir formar uma frase, afaste-a de todo esse estresse. Encontre um
refúgio que seja perto e fácil o bastante para ir aos fins de semana, para
que ela possa respirar.
Embora seja provável que nunca tivesse sido a intenção de mamãe que
chegássemos a comprar uma casa de lazer para os fins de semana, meu pai –
um cara que leva tudo ao pé da letra – economizou, planejou e pesquisou
todas as cidadezinhas ao norte de São Francisco, preparando-se para o dia
em que seria preciso investir no nosso refúgio.
Nos dois primeiros anos depois da morte de mamãe, ele me observava
com aqueles olhos azuis, claros como gelo, que conseguiam ser suaves e
perscrutadores ao mesmo tempo. Ele me fazia perguntas que exigiam
respostas longas ou, pelo menos, que fossem além de “sim”, “não” ou “tanto
faz”. Na primeira vez que respondi uma dessas perguntas detalhadas com um
gemido sem sentido, cansada demais depois do treino de natação, da lição
de casa e do tédio esgotante de lidar com amigos ostensivamente dramáticos,
papai ligou para uma corretora de imóveis e exigiu que ela encontrasse uma
casa perfeita para nossos fins de semana em Healdsburg, Califórnia.
Vimos a casa pela primeira vez num dia em que estava aberta a visitações.
A corretora imobiliária da cidade nos recebeu com um sorriso amplo e um
olhar enviesado, que revelava sua opinião negativa sobre nossa agente de
São Francisco. Tratava-se de um chalé com quatro dormitórios e telhado de
madeira pontudo, úmido até não poder mais e potencialmente embolorado,
enfiado nas sombras de um bosque e próximo a um riacho que borbulharia de
modo contínuo do lado de fora da minha janela. A propriedade era maior do
que precisávamos, com terras além do que conseguiríamos cuidar, e nem
meu pai nem eu percebemos naquele dia que o cômodo mais importante da
casa seria a minha biblioteca, que ele iria construir dentro do imenso closet
do meu quarto.
Tampouco papai poderia saber que todo o meu mundo caberia na casa
vizinha, na palma da mão de um nerd magrelo chamado Elliot Lewis
Petropoulos.
HOJE

TERÇA-FEIRA, 3 DE OUTUBRO

Se você traçar uma linha reta do meu apartamento em São Francisco até
Berkeley, ela teria apenas dezessete quilômetros, mas, mesmo nos dias com
menos trânsito, o trajeto leva mais de uma hora sem carro.
– Peguei o ônibus hoje às seis de manhã – digo. – Duas baldeações de
metrô e um ônibus. – Confiro o relógio. – Sete e meia. Nada mau.
Sabrina limpa uma mancha de espuma de leite no lábio superior. Embora
compreenda por que evito carros, sei que parte dela pensa que eu
simplesmente deveria superar a questão e comprar um Prius ou um Subaru,
como qualquer outro morador com amor-próprio da região da Baía de São
Francisco.
– Não deixe ninguém dizer que você não é uma santa.
– Sou mesmo. Mas você me faz sair da bolha – digo isso com um sorriso e
baixo o olhar para a filhinha dela no meu colo. Só estive com a princesa
Vivienne duas vezes, e ela parece ter dobrado de tamanho. – Que bom que
você faz isso valer a pena.
Seguro bebês todos os dias, mas a sensação nunca é como esta. Sabrina e
eu dividimos o dormitório na Universidade Tufts. Depois, nos mudamos para
um apartamento fora do campus antes de nossa quase melhoria de status indo
morar em uma casa caindo aos pedaços, durante os nossos respectivos
cursos de pós-graduação. Por alguma magia do destino, acabamos as duas na
Costa Oeste, na região da Baía, e agora Sabrina tem um bebê. O fato de
termos idade o suficiente para fazer esse tipo de coisa – ter filhos, gerar
descendência – é a sensação mais esquisita de todos os tempos.
– Ontem às onze da noite eu ainda estava de pé com essa menina aí –
Sabrina conta, fitando-nos com carinho. Ela dá um sorriso irônico. – E às
duas. Às quatro. Às seis…
– Tá bom, você ganhou. Mas, justiça seja feita, o cheirinho dela é muito
mais gostoso do que o da maioria das pessoas no ônibus. – Dou um beijo na
cabeça de Viv e a ajeito melhor na dobra do meu braço antes de estender o
outro para pegar a minha xícara de café.
É estranho ter aquela xícara na minha mão. Ela é de cerâmica, e não um
copo descartável nem a enorme caneca térmica de aço inoxidável que Sean
enche toda manhã para mim, até a boca, presumindo – sem errar – que
preciso de uma dose colossal de cafeína para me aprontar e enfrentar um
novo dia. Faz uma eternidade desde a última vez que tive tempo de me sentar
com uma caneca de verdade e pude bebericar um café com calma.
– Você já está com cara de mãe – Sabrina comenta ao nos observar do
lado oposto da pequena mesa.
– É a vantagem de trabalhar com bebês o dia inteiro.
Sabrina fica calada por um instante e percebo o meu erro. Regra número
um: nunca me referir ao meu trabalho perto de mães, especialmente as
novatas. Consigo praticamente ouvir o coração dela martelando do outro
lado da mesa.
– Não sei como você consegue – ela sussurra.
Essa frase se tornou o refrão que não para de tocar na minha vida agora.
Meus amigos parecem sempre espantados que eu tenha decidido me formar
em pediatria na Universidade da Califórnia – na área de cuidados intensivos.
Sem exceções, percebo uma centelha de suspeita de que talvez me falte uma
parte importante, mais meiga, algum tipo de freio maternal que me impediria
de testemunhar o sofrimento diário de crianças doentes.
Digo a Sabrina o meu rotineiro “alguém precisa fazer isso”, depois
acrescento:
– E sou boa nisso.
– Aposto que sim.
– Mas neuropediatria? Isso eu não conseguiria fazer – digo, mas logo
pressiono os lábios entres os dentes para me impedir de fazer mais
comentários.
Cale a boca, Macy. Feche essa maldita matraca tagarelante.
Sabrina concorda de leve com a cabeça, encarando a filha. Viv sorri para
mim e chuta as perninhas, toda animada.
– Nem todas as histórias são tristes. – Faço cócegas na barriga dela. –
Pequenos milagres acontecem todos os dias, não é, minha lindinha?
A mudança de assunto parte de Sabrina, que diz meio alto e um pouco
estridente demais:
– Como estão os preparativos para o casamento?
Eu solto um gemido, pressionando o nariz no cheirinho gostoso de bebê no
pescoço de Viv.
– Tão bem assim, é? – Rindo, Sabrina estende os braços para a filha,
como se fosse incapaz de partilhá-la por mais tempo. Não posso culpá-la. A
bebê é um fardinho quente e moldável nos meus braços.
– Ela é perfeita, querida – digo baixinho, entregando-a. – Uma menininha
muito fofa.
E, como se tudo o que faço estivesse ligado às minhas lembranças sobre
eles – a família vizinha, gigantesca, barulhenta e meio caótica como eu nunca
tive –, sou atingida por uma onda de saudade do último bebê não relacionado
ao trabalho com o qual convivi. É uma lembrança de quando eu era
adolescente, fitando a pequena Alex adormecida na sua cadeirinha de
balanço.
Minha mente repassa uma centena de imagens: a senhora Dina preparando
o jantar com o pacotinho formado por Alex preso ao tronco. O senhor Nick
segurando Alex em seus braços grossos e peludos, encarando-a com o
carinho de um vilarejo inteiro. George, com seus 16 anos, tentando – e
fracassando – trocar a fralda da bebê sem causar nenhum acidente no sofá da
família. Da inclinação protetora de Nick Jr., George e Andreas ao olharem
para a sua nova e muito amada irmãzinha caçula. Em seguida,
invariavelmente, meus pensamentos voam até Elliot, sempre, esperando com
tranquilidade que os irmãos mais velhos começassem a brigar entre si, ou a
correr, ou a fazer bagunça – e assim permitissem que ele pegasse Alex no
colo, lesse para ela, lhe dedicasse sua total atenção.
Sinto tanta falta deles que até dói, mas especialmente de Elliot.
– Mace – Sabrina me chama.
Pisco.
– O que foi?
– O casamento?
– Ah, sim. – Meu humor se transforma; a perspectiva de planejar um
casamento enquanto faço malabarismos com cem horas semanais de trabalho
no hospital nunca deixa de me exaurir. – Ainda não pensamos em nada.
Ainda temos que escolher a data, o local, hum… tudo. Sean não liga para os
detalhes, o que é bom, eu acho...
– Claro – ela diz tentando parecer alegre, mudando Viv de posição para
amamentá-la. – Além disso, para que tanta pressa?
Embutido – e mal disfarçado – na pergunta dela, o pensamento é: Sou sua
melhor amiga e só vi esse cara duas vezes, pelo amor de Deus. Para que
tanta pressa?
E ela tem razão. Não há pressa. Estamos juntos há poucos meses.
Acontece que Sean é o primeiro homem que conheço em mais de dez anos
com quem consigo ficar sem sentir que é apenas por medo de não conseguir
coisa melhor. Ele é fácil de conviver, tranquilo, e quando sua filha de 6 anos,
Phoebe, perguntou se iríamos nos casar, a situação pareceu mexer com ele,
incentivando-o a me fazer a proposta mais tarde.
– Juro – digo a ela – que não tenho nenhuma novidade interessante.
Espere… Não. Tenho uma consulta com o dentista na semana que vem. –
Sabrina ri. – Chegamos a esse ponto. Esta é a única variável além de você
que vai interromper a minha monotonia num futuro próximo. Trabalhar,
dormir, repetir.
Sabrina encara minhas palavras como um convite para discorrer
livremente sobre sua família, agora com três membros, e ela detalha uma
lista de conquistas: o primeiro sorriso, a primeira gargalhada, e pouco antes,
no dia anterior, um punho minúsculo se lançando certeiro e agarrando com
firmeza o dedo da mamãe.
Eu ouço, adorando a normalidade de cada detalhe e reconhecendo o que
aquilo era na verdade: um milagre. Bem que eu gostaria de ouvir os
“detalhes normais” da vida dela todos os dias. Amo meu trabalho, mas sinto
falta de simplesmente… conversar.
Hoje meu plantão começa ao meio-dia, e provavelmente só terminará em
algum ponto no meio da madrugada. Chegarei em casa e dormirei durante
algumas horas, e repetirei a sequência no dia seguinte. Mesmo depois desse
café na companhia de Sabrina e Viv, o restante do dia vai escorrer até se
transformar no próximo e – a menos que algo terrível aconteça no setor –,
não me lembrarei de uma particularidade sequer a respeito dele.
Por isso, enquanto ela fala, tento absorver o máximo possível do mundo
exterior. Inspiro o aroma do café e das torradas, percebo o som da música
sob as conversas dos clientes. Quando Sabrina se inclina para pegar a
chupeta na bolsa da bebê, volto a atenção para o balcão, analisando a mulher
com dreadlocks rosa, o homem mais baixo com uma tatuagem no pescoço
anotando os pedidos e, na frente deles, um tronco longo e musculoso que me
chama bastante atenção.
Seus cabelos são quase pretos. Espessos e um pouco bagunçados, recaem-
lhe no alto das orelhas. O colarinho está dobrado em um dos lados e a
camisa está fora das calças jeans pretas bem usadas. Seus tênis Vans não têm
cadarço e a estampa xadrez vintage também está gasta. A alça de uma bolsa
bem usada, daquelas de carteiro, trespassa um dos ombros, e a bolsa repousa
no quadril oposto.
De costas para mim, ele se parece com milhares de outros homens de
Berkeley, mas sei exatamente quem é aquele homem.
É o livro pesado e cheio de orelhas nas páginas, enfiado debaixo do
braço, que o denuncia: só conheço uma pessoa que relê Ivanhoé todo mês de
outubro. É um ritual executado com absoluta adoração.
Sem conseguir desviar o olhar, fico paralisada ante a antecipação do
momento em que ele vai se virar, quando então poderei ver o que esses
quase onze anos fizeram a ele. Mal dou atenção à minha aparência: uniforme
hospitalar verde-claro, tênis de bater no dia a dia, cabelos presos em um
rabo de cavalo bagunçado. Mas, na verdade, nunca nos ocorreu levar em
consideração nossos rostos ou o nível de apresentação pessoal antes.
Sempre estivemos muito ocupados memorizando um ao outro.
Sabrina desvia minha atenção enquanto o fantasma do meu passado está no
caixa.
– Mace?
Pisco na direção dela.
– Desculpe. Eu. Desculpe. O que… disse?
– Só estava tagarelando sobre assaduras. Estou mais interessada no que
chamou a sua… – Ela se vira na direção em que eu estava olhando. – Ah...
O “ah” dela ainda não detém uma compreensão do fato. Seu “ah” se deve
apenas à aparência do homem de costas. Ele é alto – isso aconteceu de
repente, quando completou 15 anos. E os ombros são largos – isso também
aconteceu de uma hora para a outra, só que mais tarde. Lembro de ter
percebido a mudança na primeira vez que ele pairou acima de mim no closet,
com os jeans na altura dos joelhos, o corpo largo bloqueando a luz fraca do
teto. Os cabelos são espessos – mas sempre foram assim. Os jeans têm
cintura baixa e a bunda dele está maravilhosa. Eu… não faço a mínima ideia
de quando isso aconteceu.
Em suma, a aparência dele é exatamente o tipo que admiraríamos em
silêncio antes de virarmos uma para a outra com expressão de “nossa, ele é
de verdade?”. Esta é uma das percepções mais surreais da minha vida: ele
se transformou no tipo de desconhecido por quem eu babaria por aí.
É bem estranho vê-lo de costas, e o observo com tamanha intensidade que,
por um segundo, chego a me convencer de que não é ele de fato.
Talvez seja outra pessoa… e também, depois de uma década longe um do
outro, como é que eu poderia reconhecer o corpo dele?
E é então que ele se vira, e sinto como se todo o ar do ambiente tivesse se
esvaído. Como se eu tivesse levado um soco no plexo solar, e com isso meu
diafragma fica subitamente paralisado.
Sabrina ouve o som abafado que eu solto e se vira de volta para mim.
Sinto que ela começa a se levantar da cadeira.
– Mace?
Inspiro, mas é como se não puxasse ar suficiente e perdesse o fôlego;
meus olhos ardem.
O rosto dele está mais fino, o maxilar mais pronunciado, os fios de barba
por fazer mais densos; ainda usa o mesmo tipo de óculos de armação grossa,
mas eles já não fazem seu rosto parecer pequeno. Os brilhantes olhos
castanho-claros ainda ficam maiores por causa das lentes grossas. O nariz é
o mesmo, mas já não parece grande demais para o rosto, e a boca também é
a mesma – reta, macia e capaz do sorriso mais perfeitamente sarcástico da
Terra.
Não consigo imaginar qual expressão ele faria se me visse ali. Pode ser
uma que eu jamais tenha visto antes.
– Mace? – Sabrina me segura no braço com a mão livre. – Querida, você
está bem?
Engulo em seco e fecho os olhos a fim de me libertar do meu transe.
– Sim.
Ela não parece convencida.
– Tem certeza?
– Eu… – Engulo outra vez, abro os olhos e tenho a intenção de olhar para
ela, mas minha atenção é atraída de novo para além dos ombros dela. –
Aquele cara ali… é o Elliot.
Desta vez, o “ah” dela está carregado de significado.
ANTES

SEXTA-FEIRA, 9 DE AGOSTO
QUINZE ANOS ATRÁS

A primeira vez que vi Elliot foi na casa em exposição.


O chalé estava vazio. Ao contrário das propriedades minuciosamente
arrumadas na região da Baía, essa casa rústica à venda em Healdsburg foi
deixada completamente sem móveis. Embora na fase adulta eu viria a
aprender maneiras de apreciar o potencial dos espaços sem decoração, para
os meus olhos adolescentes, o vazio me pareceu frio e chocho. A nossa casa
em Berkeley era atravancada sem que nos déssemos conta. Enquanto mamãe
estava viva, suas tendências sentimentais se sobrepuseram ao minimalismo
dinamarquês do meu pai, e, depois que ela morreu, ficou evidente que ele
não teve coragem de diminuir a quantidade de decorações.
Aqui, as paredes tinham manchas escuras que demarcavam o espaço em
que quadros antigos ficaram pendurados por anos. O caminho no carpete
revelava a rota preferida dos últimos moradores: da porta principal para a
cozinha. O andar de cima era aberto para a entrada e o corredor que dava
para o primeiro andar só tinha um parapeito com grades de madeira na
beirada. Lá em cima, as portas dos quartos estavam todas fechadas,
conferindo a quem passava pelo longo corredor uma leve sensação de que
ele era assombrado.
– Lá no fim – papai disse, erguendo o queixo para indicar a direção que
queria que eu tomasse. Ele já tinha olhado a casa na internet e sabia um
pouco mais do que eu sobre o que esperar dela. – O seu quarto poderia ser
aquele último ali.
Subi as escadas, passei direto pela suíte principal e segui até o fim do
corredor comprido e estreito. Dava para ver uma luz verde-clara por baixo
da porta – e eu logo descobriria que era resultado da pintura verde
iluminada pelo sol do entardecer. A maçaneta de cristal estava fria, mas
limpa, e, conforme girou, emitiu um rangido enferrujado. A porta emperrou,
as extremidades estavam deformadas por causa da umidade crônica.
Determinada a entrar, empurrei-a com o ombro, e quase despenquei aos
tropeços no interior do quarto iluminado e quentinho.
Era mais comprido do que largo, talvez tivesse o dobro de extensão do
que de largura. Uma janela imensa dominava a maior parte da parede
comprida, com vista para uma encosta cheia de árvores cobertas por musgo.
Como um mordomo paciente, uma janela estilo capela, alta e delgada, estava
na ponta oposta, na parede estreita, dando para o rio Russian ao longe.
Se o andar de baixo não era nada impressionante, os quartos, pelo menos,
eram mais animadores.
Sentindo-me melhor, virei-me para ir procurar papai.
– Você viu o closet desse quarto, Mace? – ele perguntou bem quando saí
do quarto. – Pensei que poderíamos transformá-lo numa biblioteca para
você. – Ele estava saindo da suíte principal. Ouvi uma das corretoras
chamá-lo, e em vez de vir na minha direção, ele voltou para o andar de
baixo.
Voltei para o quarto, fui até o final dele. A porta do closet se abriu sem
protestar. A maçaneta até estava quente ao toque.
Como todos os outros espaços da casa, aquele não estava decorado. Mas
também não estava vazio.
Confusão e um leve pânico dispararam meu coração.
Havia um menino sentado no fundo daquele cômodo. Ele estava lendo,
aninhado no canto oposto, costas e pescoço curvados num C para que ele se
encaixasse no nicho menor debaixo do teto inclinado.
Ele não devia ter mais do que 13 anos, o mesmo que eu, então. Magrelo,
com cabelos fartos e escuros que precisavam urgentemente ver um par de
tesouras, e enormes olhos cor de avelã por trás de óculos substanciais. O
nariz era grande demais para seu rosto, os dentes, grandes demais para a
boca, e a presença dele era completamente grande demais para um cômodo
que deveria estar vazio.
A pergunta irrompeu de mim, com uma pontada de incômodo:
– Quem é você?
Ele me encarou com os olhos arregalados de surpresa.
– Não pensei que alguém viria mesmo ver a casa.
Meu coração ainda martelava. E algo no olhar dele – olhos grandes que
não piscavam por trás das lentes – fez com que eu me sentisse estranhamente
exposta.
– Estamos pensando em comprá-la.
O garoto se levantou, espanando a poeira da roupa e revelando que a parte
mais grossa de suas pernas era onde ficavam os joelhos. Os sapatos eram de
couro marrom lustrado, a camisa estava passada e enfiada dentro de
bermudas cáqui. Ele parecia completamente inofensivo… Mas assim que
deu um passo à frente, meu coração tropeçou em pânico e disparei:
– Meu pai é faixa preta!
Ele demonstrou uma mistura de medo e ceticismo.
– Mesmo?
– É.
As sobrancelhas dele se uniram.
– Em quê?
Baixei as mãos que estiveram cerradas junto ao quadril.
– Está bem, ele não é faixa preta. Mas é imenso.
Nisso ele pareceu acreditar, e olhou para além de mim com ansiedade.
– O que você está fazendo aqui? – perguntei, olhando de relance ao redor.
O espaço era enorme para um closet. Um quadrado perfeito, com pelo menos
uns quatro metros de cada lado, um teto alto que se inclinava dramaticamente
nos fundos do cômodo, onde devia ter no máximo uns noventa centímetros de
pé-direito. Eu conseguia me imaginar sentada ali, num sofá, com almofadas e
livros, passando uma tarde de sábado perfeita.
– Gosto de ler aqui. – Ele deu de ombros, e algo dormente dentro de mim
despertou ante a simetria mental, uma animação que eu não sentia há anos. –
Minha mãe tem uma chave da época em que a família Hanson era dona da
casa, e eles nunca vinham para cá.
– Os seus pais vão comprar esta casa?
Ele pareceu confuso.
– Não. Eu moro na casa ao lado.
– Então você não está invadindo?
Ele balançou a cabeça negativamente.
– É uma casa aberta para exposição, lembra?
Observei-o de novo. O livro dele era grosso e tinha um dragão na capa.
Ele era alto e tinha ângulos em todos as extremidades possíveis – cotovelos
afunilados e ombros pontudos. O cabelo estava mal cortado, mas penteado.
As unhas eram bem cortadas.
– Quer dizer que você vem aqui pra passar o tempo?
– Às vezes – ele disse. – Ela está vazia há uns dois anos.
Semicerrei os olhos.
– Tem certeza de que você deveria estar aqui? Está ofegante, como se
estivesse nervoso.
Ele ergueu um ombro pontudo para o céu.
– Talvez eu tenha acabado de correr uma maratona.
– Você não parece capaz de correr até a esquina.
Ele ficou quieto por um segundo, depois desatou a rir. Não me pareceu
que fosse uma risada que ele desse descontraidamente com muita frequência,
e algo dentro de mim aflorou.
– Qual é o seu nome? – perguntei.
– Elliot. E o seu?
– Macy.
Elliot me encarou, empurrando os óculos para cima com o dedo, mas eles
de pronto voltaram a escorregar.
– Sabe, se vocês comprarem a casa, eu não vou aparecer assim pra ler
aqui.
Havia um desafio ali, uma escolha oferecida. Amigo ou inimigo?
Não me faria mal ter um amigo.
Suspirei, dando-lhe um sorriso de má vontade.
– Se comprarmos a casa, você pode vir aqui e ler, se quiser.
Ele abriu um sorriso enorme, tão grande que consegui contar seus dentes.
– Talvez, durante todo este tempo, eu só estivesse guardando esse lugar
pra você.
HOJE

TERÇA-FEIRA, 3 DE OUTUBRO

Elliot ainda não me viu.


Ele espera sua bebida junto ao balcão do expresso com a cabeça inclinada
olhando para baixo. Num mar de pessoas conectadas ao mundo através do
isolamento dos seus smartphones, Elliot está lendo um livro.
Será que ele ao menos tem celular? Para qualquer outra pessoa, essa seria
uma pergunta absurda. Não para ele. Onze anos atrás, ele tinha, mas era um
usado que tinha sido do pai, daqueles de abrir e fechar que exigiam que se
apertasse três vezes a tecla do número cinco para digitar um L. Ele
raramente o usava para qualquer outra coisa que não peso de papel.
– Quando foi a última vez em que o viu? – Sabrina pergunta.
Pisco na direção dela, com o cenho franzido. Eu sei que ela sabe a
resposta para essa pergunta, pelo menos de maneira geral. Mas minha
expressão se relaxa quando entendo que não há nada mais que ela possa
fazer agora além de puxar conversa; eu havia me transformado numa maníaca
muda.
– No meu último do ensino médio. No Ano-Novo.
Ela se retrai dando um sorriso sem graça que deixa todos os dentes à
mostra.
– É verdade...
Um lampejo de instinto se acende e um ímpeto de autopreservação me faz
levantar da cadeira.
– Me desculpe – digo, olhando para Sabrina e para Viv. – Vou embora.
– Sim. Claro. Tudo bem.
– Te ligo no fim de semana? Talvez possamos ir ao parque Golden Gate.
Ela ainda está concordando como se minha sugestão automática fosse uma
possibilidade remota. Nós duas sabemos que eu não tiro um fim de semana
de folga desde que a minha residência começou, em julho.
Tentando me esgueirar o mais discretamente possível, ajeito a bolsa no
ombro e me inclino para beijar o rosto de Sabrina.
– Te amo – digo, de pé, desejando poder levá-la comigo. Ela também tem
cheiro de bebê.
Sabrina assente, retribuindo o carinho, e então, enquanto olho para Viv e
sua mãozinha gordinha, ela espia por cima do meu ombro e congela.
Por sua postura, sei que Elliot me viu.
– Hum… – ela faz, voltando-se para mim e erguendo o queixo como se eu
devesse dar uma olhada. – Ele está vindo pra cá.
Remexo na bolsa, tentando parecer extremamente ocupada e distraída.
– Vou cair fora – murmuro.
– Mace?
Fico paralisada com a mão na alça da bolsa, os olhos grudados no chão.
Uma pontada de nostalgia me atravessa assim que ouço a voz dele. Era
aguda e guinchada até engrossar. Ele cansou de ser caçoado por causa de sua
voz nasal e queixosa e, de repente, num belo dia, o universo decidiu rir por
último, dando a Elliot uma voz grossa e macia como veludo.
Ele repete meu nome – não o apelido desta vez, mas um pouco mais baixo:
– Macy Lea?
Levanto o olhar e – num impulso do qual sei que vou rir até o dia da
minha morte – levanto a mão e aceno, dizendo com alegria:
– Elliot! Oi!
Como se fôssemos recém-conhecidos do primeiro dia de orientações na
faculdade.
Sabe, como se tivéssemos nos encontrado no trem vindo de Santa Bárbara.
Bem quando ele tira os cabelos grossos da frente dos olhos num gesto de
descrença que o vi fazer um milhão de vezes, eu me viro e atravesso a
multidão até chegar à calçada. Estou praticamente correndo na direção
errada antes de perceber meu engano já na metade do quarteirão e dar meia-
volta. Em duas longas passadas na direção contrária, de cabeça baixa e
coração acelerado, eu dou de cara com um peitoral amplo.
– Ai! Desculpe! – disparo a falar antes de levantar a cabeça e perceber o
que tinha feito.
As mãos de Elliot me seguram pelos braços, mantendo-me firme a apenas
alguns centímetros de si. Sei que ele está olhando para o meu rosto, à espera
de que meu olhar encontre o dele. Mas meus olhos estão fixos no pomo de
adão, e meus pensamentos se prendem à lembrança de como eu costumava
olhar fixamente para o pescoço dele repetidas vezes, tentando disfarçar,
enquanto líamos juntos no closet.
– Macy. Sério? – ele diz baixinho, e isso tem mil significados.
Sério, é você?
Sério, por que você saiu correndo?
Sério, onde se meteu na última década?
Uma parte de mim deseja que eu fosse o tipo de pessoa que simplesmente
sai empurrando os outros, fugindo e fingindo que isso nunca aconteceu. Eu
poderia voltar para o metrô, pegar o ônibus até o hospital e me enfiar de
cabeça numa rotina de trabalho atribulada lidando com emoções que,
francamente, são muito maiores e mais merecedoras de atenção do que essas.
Mas outra parte minha esperava exatamente este momento pelos últimos
onze anos. Alívio e angústia pulsam intensamente no meu sangue. Desejei vê-
lo todos os dias. Mas, também, quis nunca mais vê-lo.
– Oi. – Finalmente levanto o olhar. Estou tentando descobrir o que dizer;
minha cabeça está repleta de palavras sem sentido. É um verdadeiro
turbilhão.
– Você está…? – ele começa a dizer sem ar. Ainda não me soltou. – Você
se mudou de volta para cá?
– São Francisco.
Vejo quando ele analisa meu uniforme hospitalar, meus tênis feios.
– Médica?
– Sim. Residente.
Sou um robô.
Ele me olha desconfiado.
– Então, o que está fazendo aqui hoje?
Meu Deus, que estranho começar assim. Mas quando se tem uma montanha
bem à frente, acho que começamos com um passo após o outro.
– Vim tomar um café com a Sabrina.
Seu nariz faz uma expressão dolorosamente familiar de confusão.
– Minha colega de quarto da época da faculdade – esclareço. – Ela mora
em Berkeley.
Elliot murcha um pouco, e recordo que ele não conhece Sabrina.
Costumávamos ficar incomodados quando demorava um mês para nos
encontrarmos e colocarmos as novidades em dia. Agora havia anos e vidas
inteiras desconhecidas de um e do outro.
– Eu te liguei – ele diz. – Um milhão de vezes. E depois o número mudou.
Ele passa a mão pelos cabelos e depois dá de ombros, impotente. E eu
entendo. Esse maldito momento é tão surreal. Mesmo agora é
incompreensível como deixamos esse distanciamento acontecer. Como eu
deixei que acontecesse.
– Eu sei. Eu… troquei de celular – respondi inutilmente.
Ele ri, mas não foi um som particularmente feliz.
– É, eu deduzi.
– Elliot – digo, tentando engolir o nó na minha garganta ao dizer o nome
dele –, sinto muito, mas tenho mesmo que ir. Daqui a pouco preciso entrar no
trabalho.
Ele se inclina até ficar com o rosto no nível do meu.
– Tá de brincadeira? – Seus olhos estão selvagens. – Você acha que vou
esbarrar contigo no Saul’s e ficar só no “Oi, Mace, e aí?”, e então você vai
trabalhar e eu vou trabalhar, e fica tudo por isso mesmo, não conversamos
por outros dez malditos anos.
E lá está. Elliot nunca foi capaz de ser superficial.
– Não estou preparada para isto – admito baixinho.
– Você tem que se preparar para mim?
– Se existe alguém para quem eu tenho que me preparar, é você.
Isso o atinge bem onde eu queria – no alvo de um algum núcleo vulnerável
–, mas assim que ele se retrai, eu me arrependo.
Droga!
– Só me dá um minuto – ele insiste, me puxando para a lateral da calçada
para não atrapalharmos mais o fluxo de pedestres. – Como você está? Há
quanto tempo voltou? E como está Duncan?
Ao nosso redor, o mundo parece parar.
– Estou bem – respondo mecanicamente. – Voltei em maio. – Sou
destruída pela terceira pergunta dele e minha resposta sai trêmula: – E…
hum… papai morreu.
Elliot cambaleia um pouco para trás.
– O quê?
– É – digo com a voz embargada. Fico muda com isso, tentando
reescrever a história, refazer milhares de sinapses no meu cérebro.
De alguma maneira, estou conseguindo ter esta conversa sem me
descontrolar completamente, mas se eu ficar ali mais dois minutos, não
posso garantir. Com Elliot me fazendo perguntas sobre o meu pai, depois que
eu só dormi duas horas e tenho a perspectiva de um turno de dezoito à minha
espera… Preciso sair dali antes de ter um colapso.
Mas quando olho para ele, vejo que o rosto de Elliot é um espelho do que
está acontecendo no meu peito. Ele parece devastado. E é a única pessoa que
ficaria assim ao saber que meu pai morreu, porque é a única pessoa que teria
entendido o que isso causou em mim.
– Duncan morreu? – A voz dele está carregada de emoção. – Macy, por
que não me contou?
Puta merda, essa é uma pergunta monumental.
– Eu… eu… – Começo a dizer e balanço a cabeça. – Não tínhamos
contato quando aconteceu.
Sinto a náusea subir do meu estômago até a garganta. Que desculpa
esfarrapada. Que evasiva inacreditável.
Ele meneia a cabeça.
– Eu não sabia. Sinto muito, Mace.
Permito-me mais três segundos olhando para ele, e isso é como levar
outro soco no estômago. Ele é o meu referencial, a minha pessoa. Sempre
foi. Meu melhor amigo, meu confidente, provavelmente o amor da minha
vida. E eu passei os últimos onze anos com raiva, me fazendo de superior.
Mas, no fim das contas, foi ele que fez um buraco em nós, e o destino o
alargou à força.
– Preciso ir – disse num rompante súbito de constrangimento. – Ok?
Antes que ele possa responder, me afasto, seguindo pela rua até a estação
de metrô. O tempo todo em que andei rápido, e nos sacolejos da viagem de
volta debaixo da baía, sinto como se ele estivesse bem ali, atrás de mim ou
num banco no vagão de trás.
ANTES

SEXTA-FEIRA, 11 DE OUTUBRO
QUINZE ANOS ATRÁS

A família Petropoulos inteira estava no jardim da frente quando


encostamos o furgão de mudança, dois meses depois. O furgão só estava
cheio até a metade porque papai e eu pensamos, no balcão da empresa de
aluguel de carros, que traríamos mais coisas conosco. Mas, no fim, só
trouxemos mobília suficiente da loja de móveis de segunda mão para termos
um lugar para dormir, comer e ler, e não muito mais do que isso.
Papai a chamou de “mobília de demolição”. Não entendi.
Talvez eu tivesse entendido, caso tivesse me permitido pensar a respeito
por alguns segundos, mas o único pensamento no trajeto de noventa minutos
era o de que iríamos para uma casa que mamãe nunca vira. Sim, ela queria
que fizéssemos isso, mas ela não a escolhera, não a vira. Havia algo
horrivelmente amargo nessa realidade. Papai ainda dirigia seu velho Volvo
verde. Ainda morávamos na mesma casa na Rua Rose. Cada uma das peças
de mobília lá dentro era da época em que mamãe estava viva. Eu tinha
roupas novas, mas sempre sentia que mamãe as escolhia para mim através de
alguma intervenção divina quando íamos às compras, porque papai tinha o
dom de me trazer as peças maiores e mais folgadas e, invariavelmente,
alguma vendedora muito simpática chegava com os braços cheios de roupas
mais adequadas, garantindo que, sim, aquilo era o que as garotas estavam
usando, e não, não se preocupe, senhor Sorensen.
Saindo do furgão, ajeitei a camiseta sobre o cós dos shorts e fitei o bando
agora reunido na nossa entrada para carros. Primeiro avistei Elliot – o rosto
conhecido na multidão. Mas, ao redor dele, havia três outros garotos, e dois
pais sorridentes.
Ver aquela família enorme ali, querendo ajudar, só ampliou a dor que
apertava o peito e a garganta.
O homem – estava na cara que era o pai de Elliot, com os cabelos negros
e o nariz revelador – se adiantou, estendendo a mão para papai. Ele era
apenas alguns poucos centímetros mais baixo que meu pai, uma raridade.
– Nick Petropoulos – ele se apresentou, virando-se para apertar a minha
mão em seguida. – Você deve ser Macy.
– Sim, senhor.
– Pode me chamar de Nick.
– Ok, senhor… Nick. – Nunca em minha vida imaginei chamar o pai de
alguém pelo primeiro nome.
Rindo, ele se voltou para papai.
– Pensei que poderia precisar de uma mãozinha para descarregar.
Papai sorriu e falou com a simplicidade que era sua marca registrada:
– Que gentil da sua parte. Obrigado.
– Também achei que seria um bom exercício para os meus meninos não
ficarem se batendo o dia inteiro. – O senhor Nick estendeu um braço grosso
e peludo e apontou. – Esta é minha esposa, Dina. E meus filhos: Nick Jr.,
George, Andreas e Elliot.
Três rapazes robustos – e Elliot – estavam nos degraus da nossa casa, nos
observando. Calculei que todos deviam ter entre 17 e 15 anos, menos Elliot,
que era tão fisicamente diferente dos irmãos que eu não tinha como saber
qual era a idade dele. A mãe, Dina, era formidável – alta e cheia de curvas,
mas com um sorriso amplo que lhe conferia covinhas amigáveis nas
bochechas. A não ser por Elliot – que era a imagem do pai –, todos os filhos
eram parecidos com ela. Estavam com olhos sonolentos, tinham covinhas e
eram altos.
Bonitos.
Papai passou o braço ao redor de meus ombros, me puxando para junto de
si. Fiquei pensando se era um gesto protetor ou se ele também estava atento
ao quanto a nossa família era pequena em comparação.
– Não sabia que vocês tinham quatro filhos. Acho que Macy já conheceu
Elliot, né? – Papai olhou para mim em confirmação.
Pela minha visão periférica, vi Elliot se remexer pouco à vontade. Eu lhe
lancei um sorriso furtivo.
– Sim – respondi, acrescendo em meu melhor tom “e quem faz isso?”: –
Ele estava lendo dentro do meu closet.
O senhor Nick balançou a mão no ar.
– Ah, no dia de exposição da casa, eu sei, eu sei. Vou ser franco, esse
menino adora um livro, e aquele closet é o canto preferido dele. O amigo
dele, Tucker, costumava vir para cá nos fins de semana, mas agora foi
embora. – Olhando para papai, acrescentou: – A família se mudou para
Cincinnati. Da região das vinícolas para Ohio? Que droga, hein? Mas não se
preocupe, Macy. Isso não vai acontecer de novo. – Sorrindo, seguiu a
marcha inabalável de papai pelos degraus. – Moramos na casa ao lado nos
últimos dezessete anos. Vim a esta casa umas mil vezes. – Um degrau rangeu
debaixo da botina dele, que o cutucou com a ponteira e uma careta. – Este
aqui sempre foi um problema.
Mesmo na minha idade percebi a mudança na postura de papai. Ele era um
cara tranquilo e urbano, mas a familiaridade tão casual do senhor Nick com
a propriedade de pronto impôs uma rigidez de macho alfa na coluna dele.
– Posso consertar isso – papai disse num tom grave pouco característico
ao pisar no degrau que rangia. Querendo me assegurar que cada mínimo
detalhe seria corrigido, ele me falou baixinho: – Também não gostei muito
da porta de entrada, mas isso é fácil de substituir. E qualquer outra coisa que
você perceber, me avise. Quero que fique perfeita.
– Pai – eu disse, cutucando-o com gentileza –, ela já é perfeita. Tá bom?
Enquanto os rapazes Petropoulos foram na direção do furgão de mudança,
papai mexia nas chaves, procurando a certa num molho pesado com chaves
de outras portas, da nossa outra vida a 120 quilômetros dali.
– Não sei bem o que vamos precisar para a cozinha – papai murmurou
para mim. – Provavelmente teremos algumas reformas pela frente…
Olhou para mim com um sorriso incerto e abriu a porta da entrada. Eu
ainda avaliava a varanda ampla que dava a volta pela lateral da casa,
escondendo alguma vista desconhecida das árvores grossas além do jardim
lateral. Minha mente se perdeu em duendes e incursões pelo bosque à
procura de pontas de flechas. Talvez algum rapaz fosse me beijar naquele
bosque algum dia.
Talvez fosse um dos rapazes Petropoulos.
Minha pele ardeu, e escondi o rubor abaixando a cabeça e deixando que
os cabelos caíssem para frente. Até então, minha única paixão fora Jason Lee
no sétimo ano. Depois de nos conhecermos desde o jardim de infância,
dançamos rigidamente uma música no Festival de Primavera e então nos
afastamos desconcertados, para nunca mais conversarmos. Aparentemente,
eu me saía bem no nível da amizade com quase qualquer pessoa, mas
bastava acrescentar uma leve química romântica, e eu me transformava num
robô cheio de bugs.
Criamos uma eficiente fila, passando as caixas de braço em braço, e
rapidamente esvaziamos o furgão, deixando a mobília pesada para os corpos
maiores. Elliot e eu levamos uma caixa cada um, marcada com Macy, para o
andar de cima. Segui-o pelo corredor comprido até o vazio iluminado do
meu quarto.
– Pode deixar isso no canto – instruí. – E obrigada.
Ele olhou para mim, assentindo ao colocar a caixa no chão.
– São livros?
– São.
Com uma olhadela para mim para se certificar de que estaria tudo bem,
Elliot abriu a tampa da caixa e deu uma espiada lá dentro. Tirou o livro de
cima. A Corrente do Bem.
– Você já leu este? – perguntou, em dúvida.
Assenti e peguei o amado livro das mãos dele e o coloquei na prateleira
vazia na entrada do closet.
– É bom – ele comentou.
Surpresa, olhei para ele.
– Você também leu?
Ele aquiesceu, dizendo sem jeito:
– Me fez chorar.
Estendendo a mão, ele pegou outro livro e passou os dedos pela capa.
– Este também é bom. – Os olhos grandes piscaram para mim. – Você tem
bom gosto.
Encarei-o.
– E você lê muito.
– Um livro por dia, normalmente.
Meus olhos se arregalaram.
– Está falando sério?
Ele deu de ombros.
– As pessoas vêm ao rio Russian para passar as férias e muitas vezes
deixam os livros que trouxeram para ler antes de irem embora. A biblioteca
recebe uma tonelada de livros, e eu tenho um acordo com a Sue, que trabalha
lá: posso pegar as doações novas assim que chegam se eu as buscar na
segunda-feira e devolver na quarta. – Empurrou os óculos pelo nariz. – Uma
vez, ela recebeu seis livros novos de uma família que passou uma semana
aqui, e eu li todos.
– Você leu todos em três dias? – perguntei. – Isso é loucura.
Elliot franziu o cenho, estreitando os olhos.
– Acha que estou mentindo?
– Não acho que está mentindo. Quantos anos você tem?
– Fiz 14 na semana passada.
– Parece mais novo.
– Obrigado – ele disse sem emoção. – Era isso mesmo o que eu queria. –
Deu uma bufada, para tirar o cabelo da frente da testa.
Não consegui conter uma gargalhada.
– Não quis que a risada saísse assim.
– Quantos anos você tem? – ele perguntou.
– Treze. Faço aniversário em 18 de março.
Ele voltou a empurrar os óculos para cima.
– Está no oitavo ano?
– Sim. E você?
Elliot fez que sim.
– Também. – Olhou ao redor do espaço vazio, inspecionando-o. – O que
os seus pais fazem? Trabalham na cidade?
Balancei a cabeça, mordendo o lábio. Sem perceber, eu já estava gostando
de conversar com alguém que não sabia que eu era órfã de mãe, que não me
vira sofrendo depois que a perdi.
– Meu pai tem uma empresa em Berkeley que importa e vende cerâmicas
feitas à mão, obras de arte e outras coisas. – Não acrescentei que tudo isso
começou quando ele passou a importar as belas cerâmicas que o pai dele
produzia e que vendiam que nem água.
– Maneiro. E quanto à sua…
– O que os seus pais fazem?
Ele estreitou os olhos ante a minha abrupta interrupção, mas respondeu
mesmo assim.
– Minha mãe trabalha meio período na degustação do Toad Hollow. Meu
pai é o dentista da cidade…
O dentista da cidade. O único dentista? Acho que não tinha percebido o
quanto Healdsburg era pequena até ele dizer isso. Em Berkeley, havia três
consultórios de dentistas só no meu trajeto de quatro quarteirões até a
escola.
– Mas ele só trabalha três dias por semana, e acho que você já percebeu
que ele não consegue ficar parado. Ele faz de tudo na cidade – Elliot me
contava. – Ajuda na feira dos produtores locais. Nas operações de algumas
das vinícolas.
– O vinho é bem importante por aqui, não? – Percebi, enquanto ele falava,
que realmente tinha visto várias vinícolas na viagem até ali.
– Vinho: é o que tem para o jantar – Elliot disse com uma risada.
E nessa hora, bem naquele segundo, senti que tudo era tão fácil com ele.
Não foi muito fácil nos últimos três anos. Tive amigas que simplesmente
não sabiam mais como falar comigo, outras cansadas de me verem amuada, e
outras que estavam tão concentradas nos rapazes que já não tínhamos nada
em comum.
Mas, então, ele arruinou a conversa:
– Os seus pais são divorciados?
Inspirei fundo, estranhamente ofendida.
– Não.
Ele inclinou a cabeça e me observou, sem dizer nada. Não era preciso
mencionar que, nas duas vezes em que estive na cidade, eu viera sem uma
mãe.
Depois do que pareceu ser uma hora, soltei o ar.
– Minha mãe morreu há três anos.
A verdade reverberou pelo quarto, e eu soube que minha confissão mudou
irrevogavelmente algo entre nós. A simplicidade que eu representava já não
existia mais: a vizinha nova dele, uma garota potencialmente interessante e
também potencialmente desinteressante. Agora eu era a garota
permanentemente afetada pela vida. Alguém com quem era preciso lidar com
cuidado.
Ele arregalou os olhos por trás das lentes grossas.
– Sério?
Confirmei que sim.
Desejei não ter lhe contado? Um pouco. Mas para que serviria um refúgio
de fim de semana se eu não poderia de fato me refugiar da única verdade que
parecia paralisar meu coração a cada poucos minutos?
Ele baixou o olhar para os pés, matou algum tempo puxando um fio solto
da bermuda.
– Não sei o que eu faria.
– Eu ainda não sei o que fazer.
Ele ficou calado. Nunca soube como retomar uma conversa depois do
tópico “mãe morta”. E o que era pior: como ter essa conversa com alguém
relativamente estranho como ele ou tê-la com alguém que me conhecia a vida
toda e que já não sabia mais como conversar comigo sem alegria falsa ou
empatia melosa?
– Qual é a sua palavra favorita?
Surpresa, olhei para ele, sem saber se tinha ouvido direito.
– Minha palavra favorita?
Ele assentiu, empurrando os óculos para cima no nariz e franzindo o rosto,
o que o fez parecer bravo e depois surpreso em apenas um segundo.
– Você tem sete caixas de livros aqui em cima. Um palpite me diz que
você gosta de palavras.
Acho que nunca pensei em uma palavra favorita, mas agora que ele
perguntava isso, meio que gostei da ideia. Deixei os olhos perderem o foco
enquanto pensava.
– Ranúnculos – respondi depois de um momento.
– O quê?
– Ranúnculos. É um tipo de flor. É uma palavra bem estranha, mas as
flores são muito bonitas, gosto do inesperado disso.
Eram as flores prediletas da minha mãe, eu não disse.
– Que resposta de menininha.
– Bem, eu sou uma menina.
Ele manteve os olhos fixos nos pés, mas eu sabia que não estava
imaginando a centelha de interesse que o vi demonstrar quando eu disse
ranúnculos. Podia apostar que ele esperava que eu dissesse unicórnio ou
margarida ou vampiro.
– E a sua? Qual é a sua palavra favorita? Aposto que é tungstênio. Ou,
quem sabe, anfíbio.
Ele deu um sorriso irônico e respondeu:
– Regurgitar.
Crispando o nariz, encarei-o.
– Essa é uma palavra bem nojenta.
Isso o fez ampliar o sorriso.
– Gosto do som das consoantes dela. Ela praticamente tem o som exato
daquilo que significa.
– Uma onomatopeia?
Eu quase esperei trombetas soando uma música de revelação em alto-
falantes invisíveis na parede, a julgar pela maneira como Elliot me encarou,
com os lábios entreabertos e os óculos lentamente escorregando pelo nariz.
– É… – ele concordou.
– Não sou uma completa idiota, sabe. Não precisa ficar tão surpreso por
eu saber algumas palavras rebuscadas.
– Nunca te achei idiota – ele disse baixinho, olhando para a caixa e
pegando mais um livro para entregar a mim.
Por um bom tempo depois que voltamos ao método lento e ineficiente de
desencaixotar os livros, senti que ele me fitava e me observava, com
pequenos olhares roubados muito rápido.
E fingi que não percebi.
HOJE

QUARTA-FEIRA, 4 DE OUTUBRO

Sinto como se os pontos tivessem se aberto durante a noite. Tudo dentro


de mim está inflamado – como se eu tivesse machucado um órgão emocional.
Acima de mim, o teto sem graça; manchas de umidade no gesso ao longo das
rachaduras que parecem teias de aranha irradiando do lustre. O ventilador
gira em círculos preguiçosos ao redor do globo fosco. Conforme giram, as
lâminas cortam o ar, imitando a exalação ritmada de Sean, adormecido ao
meu lado.
Chh.
Chh.
Chh.
Ele estava dormindo quando cheguei em casa, por volta das duas da
madrugada. Pela primeira vez, estou grata pelos turnos longos; não sei como
teria me sentado à mesa de jantar com ele e com Phoebe, enquanto só o que
eu conseguia pensar era em Elliot aparecendo no Saul’s ontem.
Senti um aperto momentâneo de culpa no ônibus, voltando para casa,
enquanto deixava o caos do plantão lentamente para trás e o encontro
inesperado com Elliot retomava a dianteira de meus pensamentos. Num
rompante de pânico, pensei no quanto eu fora rude ao não apresentar Elliot a
Sabrina.
Como é que pode ele surgir assim de repente e tomar conta de tudo?
Sean acorda quando me mexo para esfregar o rosto, rolando para o meu
lado, puxando-me para perto com a mão moldada ao meu quadril, mas, pela
primeira vez desde que ele me beijou em maio passado, sinto como se eu
estivesse traindo algo.
Gemendo, me afasto e me sento na lateral da cama, apoiando os cotovelos
nos joelhos.
– Tudo bem, linda? – ele pergunta, movendo-se para perto das minhas
costas e apoiando o queixo no meu ombro.
Sean não sabe nada sobre Elliot. O que, pensando bem, é uma loucura,
porque, se vou me casar com ele, ele deveria saber tudo a meu respeito,
certo? Mesmo não estando juntos há tanto tempo, os fatos importantes
deveriam ser ditos, e, em grande parte da minha adolescência, os fatos
importantes não são mais importantes do que Elliot. Sean sabe que cresci em
Berkeley, que passei muitos fins de semana em Healdsburg, no condado de
vinhedos, e que tive alguns bons amigos ali. Mas ele não faz a mínima ideia
de que conheci Elliot quando eu tinha treze anos, me apaixonei por ele
quando tinha catorze, e o excluí da minha vida poucos anos depois.
Balanço a cabeça.
– Estou bem. Só cansada.
Sinto-o virar a cabeça para o lado e conferir o relógio, e imito a ação
dele. São apenas 6h40, e só preciso voltar ao trabalho às 9h. Sono é uma
commodity preciosa. Por que, cérebro, por quê?
Ele passa a mão pelos cabelos pretos com fios grisalhos.
– Claro que está cansada. Volta pra cama.
Quando ele fala isso, sei que o que quer mesmo dizer é: Deite-se e vamos
fazer um pouco de sexo antes que Phoebe se levante.
O problema é: não posso correr o risco de começar a sentir que fazer sexo
com ele é errado.
Maldito Elliot.
Preciso me afastar de tudo isso por alguns dias, só isso.
ANTES

QUINTA-FEIRA, 20 DE DEZEMBRO
QUINZE ANOS ATRÁS

Nunca tinha passado o Natal longe de casa antes, mas no início de


dezembro daquele primeiro ano no chalé, papai disse que partiríamos para
uma aventura. Para alguns pais, isso poderia significar uma viagem a Paris
ou um cruzeiro para algum lugar exótico. Para o meu pai, isso significava
festividades à moda antiga na nossa nova casa, acendendo a kanderlys
dinamarquesa – uma vela natalina – e comendo pato assado, repolho,
beterraba e batatas na ceia de Natal. Chegamos no dia vinte perto da hora do
jantar, nosso carro abarrotado de pacotes e de decorações recém-adquiridas,
seguidos por um homem da cidade com dentes de ouro, uma perna de pau e
um reboque com a nossa árvore de Natal recém-cortada.
Fiquei observando enquanto eles lutavam contra a árvore do tamanho de
um mamute, perguntando-me vagamente se ela passaria pela porta. Estava
frio de lado de fora, e eu batia os pés no chão para me manter aquecida. Sem
pensar, olhei por cima do ombro para a casa dos Petropoulos.
As janelas brilhavam e tinham uma leve névoa de condensação. Uma
nuvem de fumaça consistente saía da chaminé torta, espiralando-se como
uma fita antes de desaparecer na escuridão.
Estivemos no chalé três vezes desde outubro, e a cada visita Elliot
aparecia à porta, batia e meu pai permitia que ele subisse. Então nos
deitávamos no chão do meu closet – que lentamente era convertido numa
biblioteca – e líamos por horas.
Mas eu ainda não tinha ido à casa dele. Tentei imaginar qual seria o seu
quarto e o que ele poderia estar fazendo. Fiquei pensando em como seria o
Natal para eles, numa casa com pai, mãe, quatro filhos e um animal de
estimação que mais parecia um cavalo do que um cachorro. Apostava que
teria cheiro de biscoitos e de pinheiro fresco. Concluí que provavelmente
devia ser difícil encontrar um lugar tranquilo para ler.
Estávamos ali fazia menos de uma hora quando a campainha de som antigo
tocou. Abri a porta e deparei-me com Elliot e a senhora Dina, segurando um
prato cheio de algo pesado e coberto com papel-alumínio.
– Trouxemos biscoitos – disse Elliot, empurrando os óculos pelo nariz.
Sua boca há pouco havia sido tomada por aparelhos. O rosto estava coberto
pelos fios metálicos de um aparelho extrabucal.
Encarei-o com olhos arregalados, e ele me olhou bravo, com o rosto
corando.
– Concentre-se nos biscoitos, Macy.
– Temos convidados, min lille blomst?1 – papai perguntou da cozinha. Em
sua voz, ouvi uma leve desaprovação, o não dito “o garoto não podia ter
esperado até amanhã?”.
– Não vou ficar, Duncan – a senhora Dina disse alto. – Só vim trazer estes
biscoitos, mas mande Elliot de volta para casa quando vocês dois forem
jantar, ok?
– O jantar está quase pronto – papai respondeu, a voz pacata escondendo
qualquer reação externa para qualquer um que não o conhecesse tão bem
quanto eu.
Fui até a cozinha e deixei o prato de biscoitos ao lado dele na ilha. Uma
oferta de paz.
– Vamos ler um pouquinho – eu lhe disse. – Tá bom?
Papai olhou para mim, e depois para os biscoitos, e cedeu:
– Trinta minutos.
Elliot me seguiu de boa vontade, passando pela enorme árvore até o andar
de cima.
Música natalina emanava da cozinha e preenchia o hall de entrada até o
andar de cima, mas sumiu quando entramos no closet. Desde que compramos
a casa, papai cobrira a parede com prateleiras e acrescentara um pufe fofão
num dos cantos, de frente para o sofá futon apoiado contra a parede da
frente. Almofadas trazidas de casa estavam espalhadas, e o lugar estava
começando a ficar aconchegante como o interior de uma lâmpada de gênio.
Fechei a porta atrás de nós.
– E aí, qual é a desse novo equipamento? – perguntei, indicando o rosto
dele. Ele deu de ombros, mas não disse nada. – Você tem que usar essa
máscara o tempo inteiro?
– É um aparelho extrabucal, Macy. Normalmente só para dormir, mas
resolvi que quero tirar esse troço antes do previsto.
– Por quê?
Ele me encarou sem nenhuma expressão e eu, então, entendi.
– Incomoda? – perguntei.
Ele retorceu o rosto num riso sarcástico.
– Parece confortável?
– Não. Parece doloroso e meio nerd.
– Você é dolorosa e nerd – ele brincou.
Eu me joguei no pufe com um livro e o vi espiar as prateleiras.
– Você tem todos os Anne de Green Gables – ele comentou.
– É, tenho.
– Nunca os li. – Puxou um da fileira e se ajeitou no futon. – Palavra
predileta?
Esse ritual já parecia deslizar dele tomando conta do cômodo. Desta vez
nem me pegou desprevenida. Olhando para meu livro, pensei por um
segundo antes de responder:
– Silencioso. E você?
– Bergamota.
Sem mais conversa, começamos a ler.
– São difíceis?– Elliot perguntou de repente, e eu levantei o olhar para
fitar os olhos dele: cor de âmbar, profundos e ansiosos. Ele pigarreou sem
jeito, esclarecendo: – As festas de fim de ano sem a sua mãe?
Fiquei tão surpresa com a pergunta que pestanejei, desviando o olhar.
Internamente, implorei para que ele não me perguntasse mais nada. Mesmo
três anos após a morte dela, o rosto da minha mãe estava continuamente nos
meus pensamentos: olhos acinzentados e joviais, cabelos negros grossos,
pele bem morena, o sorriso assimétrico que me acordava todas as manhãs
até aquela primeira em que ela não veio. Todas as vezes que me olhava no
espelho, eu a via refletida em mim. Portanto, não, difícil não descrevia a
situação. Difícil era o mesmo que para descrever uma montanha como um
montinho, um oceano como uma poça.
E nenhum dos dois também podia abarcar os meus sentimentos ao passar o
Natal sem ela.
Elliot me observou daquele seu jeito cuidadoso.
– Se a minha mãe morresse, as festas de fim de ano seriam estranhas.
Senti meu estômago se contrair, a garganta queimar ao perguntar, embora
não fosse preciso:
– Por quê?
– Porque ela adora cuidar dos preparativos dessa época. Não é o que as
mães fazem?
Segurei o choro e assenti rigidamente.
– O que a sua mãe fazia?
– Você não pode perguntar esse tipo de coisa. – Virei de costas e fiquei
olhando para o teto.
O pedido saiu num rompante imediato:
– Me desculpe!
Agora eu me sentia uma cretina.
– Além disso, você sabe que eu estou bem.
Só de falar isso senti que a carreta emocional de dezoito rodas estava
freando. Senti as lágrimas recuando para a garganta.
– Já se passaram quase quatro anos. Não temos que falar sobre isso.
– Mas nós podemos.
Engoli com força de novo e encarei a parede fixamente.
– Ela começava o Natal do mesmo jeito todos os anos. Fazia muffins de
mirtilo e suco de laranja. – As palavras saíam como se fossem as bicadas de
um pica-pau. – Comíamos na frente da lareira, abrindo as meias penduradas
enquanto ela e papai contavam histórias das suas infâncias até que, no fim,
eles começavam a inventar histórias malucas juntos. Então assávamos o
pato, e depois abríamos os presentes. E depois do jantar nos enroscávamos
uns nos outros diante da lareira para ler.
A voz dele mal era audível.
– Parece perfeito.
– E era – concordo, com mais suavidade agora, perdida em lembranças. –
Mamãe adorava livros também. Todo presente era um livro, ou um diário, ou
canetas legais, ou até papel. Ela lia de tudo. Por exemplo, todos os livros
que eu via expostos nas mesas das livrarias, ela já tinha lido.
– Acho que eu ia gostar muito da sua mãe.
– Todos a amavam – eu disse. – Ela não tinha família; os pais morreram
quando ela era jovem também, mas eu juro que todos que a conheciam a
queriam bem como a um membro da família.
E todos agora se debatiam como peixes fora d’água sem ela, incertos
quanto ao que fazer por nós, inseguros sobre como navegar na reserva
silenciosa de papai.
– Ela trabalhava? – Elliot perguntou.
– Ela era compradora na Books Inc.
– Uau! Verdade? – Ele pareceu impressionado por ela fazer parte de uma
loja tão grande na região da Baía, mas eu sabia que ela já estava cansada
daquilo. Sempre quis ter uma livraria própria. Foi só quando adoeceu que
ela e papai tinham condições de adquirir uma. – É por isso que o seu pai está
transformando este closet para você?
Balancei a cabeça, mas a ideia não me ocorrera até ele dizer isso.
– Acho que não. Talvez.
– Talvez ele quisesse um lugar no qual você se sentisse perto dela.
Eu ainda estava balançando a cabeça. Papai sabia que não havia como eu
pensar ainda mais em mamãe. E ele tampouco me incitaria a tentar pensar
menos nela. De nada adiantaria. Assim como prender a respiração não altera
a necessidade de oxigênio do seu corpo.
E, como se eu tivesse dito isso em voz alta, ele perguntou:
– Mas você pensa mais nela quando está aqui?
Claro, pensei, mas o ignorei, e fiquei remexendo na borda da colcha de
retalhos que estava por cima do pufe. Penso nela em todos os lugares. Ela
está em todos os lugares, em todos os momentos, e também não está em
momento algum. Ela perde tudo o que acontece comigo e não sei para
quem isso é mais difícil: para mim, sobreviver sem ela, ou para ela sem
mim, existindo onde quer que esteja.
– Macy?
– O que foi?
– Você pensa nela aqui dentro? É por isso que você adora este closet?
– Adoro este closet porque adoro ler.
E porque quando encontro aquele livro no qual consigo me perder por
pelo menos uma hora, talvez mais, eu me esqueço.
Eporqueomeupaipensaemmamãetodavezquemecompraumlivro.
E porque você está aqui e eu me sinto mil vezes menos solitária com
você.
– Mas…
– Para, por favor. – Fecho os olhos, sentindo as palmas das mãos suadas,
o coração acelerado, o estômago contraído num nó de todos os sentimentos
que às vezes parecem grandes demais para o meu corpo.
– Você ainda chora por causa dela?
– Está de brincadeira? – arfei, e ele arregalou os olhos mas não recuou.
– É que é Natal – ele disse baixinho. – E quando a minha mãe estava
assando os biscoitos mais cedo, percebi o quanto isso era familiar. Só
pensei que deve ser estranho para você.
– É.
Ele se inclinou na minha direção, tentando olhar nos meus olhos.
– Eu só quero que saiba que pode falar comigo.
– Não preciso falar sobre isso.
Ele se sentou ereto, observou-me durante respiros silenciosos, depois
voltou para seu livro.

- “Minha florzinha”, em dinamarquês. (N. E.)


HOJE

QUARTA-FEIRA, 4 DE OUTUBRO

Deixo o calor confortável da cama e me arrasto até a cozinha, beijando o


topo de uma cabecinha cheia de fios castanhos emaranhados. A esta altura,
Sean já devia saber que não podemos ser furtivos pela manhã. Phoebe
sempre acorda antes de nós, de um jeito ou de outro.
Phoebs é um sonho de menina. Tem seis anos, é inteligente e carinhosa, e
barulhenta de uma maneira que me revela um pouco da mãe, já que o pai é de
uma doçura contida. Só Deus sabe onde é que Ashley, a malandra da mãe
dela, está, e algo dentro de mim lamenta ver Phoebe crescendo sem ela. Pelo
menos eu tinha dez anos quando mamãe morreu, e o sumiço dela da minha
vida não pareceu uma traição. Phoebe só tinha três quando a mãe foi para um
retiro de fim de semana organizado pelo banco de investimentos onde ela
trabalhava e voltou com uma predileção por cocaína que se transformou num
anseio por crack, que, no fim, a fez desistir de tudo por conta das
speedballs.2 Em que momento Sean será obrigado a contar à filha perfeita
que a mãe dela amava as drogas mais do que os amava?
Ainda me lembro de quando saí do quarto dele na manhã seguinte ao
nosso primeiro encontro ébrio, e dei de cara com Phoebe sentada à mesa da
cozinha comendo seus cereais Rice Chex, com os cabelos já presos em
marias-chiquinhas meio tortas, com meias despareadas, leggings com
estampa de cachorrinhos e uma blusa de bolinhas. No torpor do flerte, Sean
não mencionou que tinha uma filha. Tento encarar isso mais como um
testemunho de como meus peitos ficaram estonteantes naquele suéter azul do
que como uma imensa e cretina omissão da parte dele.
Naquela manhã, ela me encarou, com olhos arregalados o bastante para
confirmar sem sombra de dúvida o que ele dissera na noite anterior – que
não levava uma mulher para casa com ele há três anos – e me perguntou se
eu era a nova colega de apartamento.
Como eu poderia dizer não a leggings de cachorrinhos e marias-
chiquinhas tortas? Passei ali todas as noites desde então.
Não é nenhum sacrifício. Sean é um sonho na cama, é sossegado e faz café
muito bem. Aos 42, ele também tem estabilidade financeira, o que quer dizer
muito quando se está de frente ao cano da espingarda da dívida dos
empréstimos estudantis da faculdade de medicina. E pode ter sido
inicialmente culpa do álcool, mas o sexo com ele foi o segundo sexo da
minha vida que não ficou estranho logo depois, como se eu tivesse quebrado
algo inestimável no chão.
– Chex? – pergunto a ela, alcançando o filtro de café, acima da pia.
– Sim, por favor.
– Dormiu bem?
Ela dá um grunhidinho de confirmação e, depois de um segundo, murmura:
– Estava calor.
Então não foi só a minha reação claustrofóbica ao ter visto Elliot e
acordar ao lado de Sean; o pai dela andou mexendo no termostato de novo.
O homem nascera para o calor do Texas, não para a região da Baía.
Atravesso o cômodo, diminuindo a temperatura.
– Pensei que você estivesse encarregada do “Controle de Aquecimento do
Papai” ontem à noite.
Phoebe dá uma risadinha.
– Ele me passou a perna.
O som do chuveiro sendo ligado chega até a cozinha, e me sinto como se
estivesse num programa televisivo num desafio de corrida contra o relógio:
“Saia de casa nos próximos dois minutos!”.
Sirvo o cereal para Phoebe, corro até o quarto, visto um conjunto limpo
de calça e camisa hospitalar, enfio os pés nos tênis e planto mais um beijo na
cabeça de Phoebe antes de sair pela porta.
Parece loucura – ou pelo menos, isso faz eu me sentir meio louca –, mas
se ontem Sean me tivesse me perguntado como foi meu dia, eu sei que, sem
dúvida, tudo sairia de mim aos borbotões.
Vi Elliot Petropoulos ontem pela primeira vez em quase onze anos e
percebi que ainda o amo e provavelmente sempre o amarei.
Ainda quer se casar comigo?
Infelizmente, me afastar de tudo por alguns dias não parece estar nas
cartas: vejo Elliot me esperando do lado de fora do hospital quando subo a
ladeira do ponto de ônibus até lá.
Não seria correto dizer que meu coração parou, porque sinto sua
existência intensamente, como um membro fantasma. Meu coração se contrai,
e depois volta à vida, me socando de dentro para fora com brutalidade.
Diminuo o ritmo dos passos, tentando pensar no que dizer. A irritação me
inflama. Ele não pode ser culpado por aparecer no Saul’s ontem quando, por
acaso, eu estava lá, mas hoje a culpa é dele.
– Elliot.
Ele se vira quando digo o seu nome, e sua postura relaxa um pouco de
alívio.
– Tinha esperanças de que você chegaria cedo hoje.
Cedo?
Observo-o enquanto me aproximo. Paro a poucos centímetros de onde ele
está, com as mãos enfiadas nos bolsos dos jeans pretos, e pergunto:
– Como sabia onde e a que horas eu deveria chegar para trabalhar?
A culpa tira a cor de seu semblante.
– A esposa de George trabalha na recepção aqui. – Ele ergue o queixo,
indicando a mulher que está sentada logo após as portas deslizantes, e quem
eu vejo todas as manhãs nos últimos meses.
– O nome dela é Liz – confirmo sem emoção, lembrando-me das três
letras gravadas na sua plaquetinha plástica de identificação.
– É – ele diz baixinho. – Liz Petropoulos.
Incrédula, rio. Sob nenhuma circunstância consigo imaginar um
funcionário da administração do hospital dando informações sobre a escala
de trabalho de um médico. Afinal, as pessoas conseguem se tornar bem
irracionais quando seus entes queridos adoecem. Se esse ente querido for
uma criança, esqueça. Mesmo no período curto em que trabalho ali, já vi
pais perseguindo médicos que não conseguiram curar seus filhos.
Elliot me encara, sem piscar.
– Liz sabe que não sou perigoso, Macy.
– Ela poderia ser despedida. Sou médica na ala pediátrica de cuidados
intensivos. Ela não pode simplesmente dar informações minhas, nem mesmo
para a própria família.
– Merda… Ok. Eu não deveria ter feito isso – diz ele, genuinamente
arrependido. – Olha só, eu entro no trabalho às dez. Eu… – Olhando para
uma cafeteria atrás de mim, ele diz: – Será que a gente não podia conversar
um pouco antes disso? – Quando não digo nada em resposta, ele se inclina
para capturar meu olhar e pressiona: – Você tem tempo?
Olho para ele, nossos olhares se prendem, e eu entro no túnel do tempo de
todas as outras vezes em que partilhamos essa troca intensa, silenciosa.
Mesmo tantos anos depois, acho que conseguimos interpretar um ao outro
bem pra cacete.
Quebrando essa conexão, baixo o olhar para o relógio. Passa pouco das
sete e meia. E embora ninguém lá em cima vá reclamar se eu aparecer para
trabalhar uma hora e meia antes do previsto, Elliot saberia que eu estaria
mentindo se dissesse que precisava entrar.
– Tenho – respondo. – Uma hora, mais ou menos.
Ele inclina a cabeça, depois pende lentamente para a direita, dá um passo
arrastado, depois outro, como se estivesse tentando me atrair com a sua
graciosidade.
– Café? – O sorriso dele se alarga, e eu noto os dentes dele, como estão
alinhados. Um vislumbre de Elliot aos catorze anos, com seu aparelho
ortodôntico extrabucal, pulsa em meus pensamentos. – Padaria? Lanchonete?
Aponto para o quarteirão da frente, onde a cafeteria de quatro mesas ainda
não está tomada por residentes e por famílias ansiosas à espera de notícias
pós-cirurgias.
Lá dentro está quente – quente até demais; o tema daquela manhã – e ainda
há duas mesas vazias na frente. Acomodando-nos, pegamos os cardápios e
damos uma olhada neles, em silêncio constrangido.
– O que é bom aqui? – ele pergunta.
Dou risada.
– Nunca tomei café da manhã aqui.
Elliot desvia o olhar do cardápio e me encara, pisca devagar, e algo no
meu estômago derrete num calor líquido que se espalha mais para baixo. O
estranho, percebo, é que Elliot e eu só saímos para comer fora poucas vezes,
e nunca sozinhos.
– Eu costumo pegar um muffin ou bagel na lanchonete do hospital. –
interrompo o contato visual e decido pedir o parfait de iogurte com granola
antes de abaixar o cardápio. – Aposto que tudo aqui deve ser gostoso.
Discretamente, eu o observo ler, passando os olhos rapidamente pelas
palavras. Elliot e as palavras. Pasta de amendoim e chocolate. Café com
biscoitos. Pares perfeitos moldados no paraíso.
Ele ergue a mão, coçando o pescoço de maneira pensativa enquanto
cantarola.
– Ovos ou panquecas? Ovos ou panquecas?
Quando ele se apoia à frente num cotovelo, o músculo do ombro se contrai
debaixo da camisa de algodão. Ele esfrega um dedo de um lado a outro
sobre o lábio inferior. O celular vibra junto ao braço, mas ele o ignora.
Tenha piedade. O único pensamento que tenho – desconcertante e ansioso
– é que Elliot se transformou num homem que sabe usar o corpo. Não havia
notado isso ontem, não poderia ter notado.
Enquanto sorri ao tomar sua decisão,
ao deslizar o cardápio suavemente de volta ao seu lugar,
ao pegar o guardanapo e o acomodar com cuidado sobre o colo,
ao olhar para mim, pressionando de leve os lábios, feliz,
de repente percebo que sou grata pelo hiato de onze anos, porque será que
eu teria notado todos aqueles pequenos detalhes de outro modo? Ou tudo
isso teria se misturado, indistintamente, conhecidos como a constelação de
minúsculos maneirismos que lentamente se tornaram...
Apenas Elliot?
Desvio o olhar dele quando nossa garçonete se aproxima da mesa para
anotar os pedidos.
Quando ela se afasta, ele se inclina para a frente de novo.
– É possível me atualizar em uma década durante um café da manhã?
Lembranças se desenrolam em meus pensamentos: o dia cheio de neblina
em que entrei na faculdade. Dividir o dormitório com Sabrina e, depois, ir
para um pequeno apartamento fora do campus, que parecia estar sempre
abarrotado de livros, garrafas de cerveja e nuvem de fumaça de maconha.
Mudando com ela para Baltimore para entrar na faculdade de medicina e as
noites passadas meio que rezando para que eu fosse aceita na ucsf de modo a
poder morar perto de casa de novo, mesmo que essa casa estivesse vazia.
Como alguém consegue condensar uma vida no espaço de tempo em que se
toma uma xícara de café?
– Em retrospecto, não parece haver muita coisa – digo. – Faculdade.
Medicina.
– Bem, e amigos e amores, alegrias e perdas, presumo – ele comenta, indo
direto ao ponto. E fica constrangido ao perceber o que havia dito.
Um silêncio constrangedor cresce como um desfiladeiro entre nós.
– Não me referia a nós – ele diz, acrescentando num murmúrio –, não
necessariamente.
Com uma risada seca, recosto-me na cadeira.
– Não fiquei marinando sentimentos ruins, Ell.
Uau, que mentira.
Quando o celular dele vibra de novo, ele o afasta.
– Então por que não ligou?
– Muita coisa aconteceu. – Vou um pouco para trás na cadeira quando
nossas bebidas chegam.
Ele franze o cenho compreensivelmente confuso. Acabei de lhe dizer que
minha vida fora essencialmente uma rotina sem percalços, mas depois falei
que aconteceu tanta coisa que não me dei ao trabalho de telefonar.
Minha mente dá voltas no calendário dos anos passados, e outra
percepção amarga me ocorre. Elliot completa 29 anos amanhã. Perdi quase
toda a casa dos vinte anos dele.
– Feliz aniversário adiantado, a propósito – digo baixinho.
Seus olhos se suavizam, a boca se curva num sorriso discreto.
– Obrigado, Mace.
Cinco de outubro sempre foi um dia complicado para mim. Como será
este ano, agora que pousei os olhos sobre ele? Envolvo minha caneca quente
de café com as mãos, mudando de assunto.
– E você? O que tem feito?
Ele dá de ombros e sorve um gole do seu cappuccino, passando
casualmente o dedo sobre o lábio superior para limpar o bigode de espuma.
Sinto uma onda de calor reverberar pelo corpo ao constatar como ele se
sente bem em sua própria pele. Nunca vi alguém tão à vontade consigo
mesmo como Elliot.
– Eu me formei antes do tempo na faculdade – ele conta – e me mudei para
Manhattan por uns anos.
O botão pare é pressionado no meu cérebro. Elliot personifica o caos
frenético do norte da Califórnia. Não consigo imaginá-lo em Nova York.
– Manhattan? – repito.
Ele ri.
– Pois é. Loucura total. Mas é o tipo de lugar que só conseguiria digerir
nos meus vinte e poucos anos. Depois de alguns anos lá, trabalhei numa
agência literária por um tempo, mas não gostei. Voltei para cá há quase dois
anos e comecei a trabalhar para um grupo literário sem fins lucrativos.
Ainda trabalho lá alguns dias por semana, mas… comecei a escrever um
livro. E ele está indo muito bem.
– Você está escrevendo um livro. – Sorrio. – Quem diria?
Ele ri com mais vontade dessa vez, e o som é caloroso, e crescente.
– Todo mundo?
Eu me pego mordendo os dois lábios para refrear um sorriso e a
expressão dele lentamente fica séria.
– Posso te perguntar uma coisa?
– Claro.
– O que te fez decidir vir aqui comigo agora?
Não preciso enfatizar o fato de que ele bisbilhotou a minha escala, porque
sei exatamente o que ele quer saber. O que ele disse sobre Liz é verdade;
todos nós sabemos que Elliot não é perigoso. Eu poderia ter lhe dito para ir
embora e não me procurar novamente, e ele o teria feito.
Então, por que não fiz isso?
– Não sei. Acho que eu não seria capaz de te dizer não duas vezes.
Ele gosta da minha resposta. Um leve sorriso se forma em seus lábios e a
saudade preenche minhas veias.
– Você fez a faculdade de medicina na Hopkins – ele diz com admiração
na voz. – Pós-graduação na Tufts. Estou muito orgulhoso de você, Mace.
Meus olhos se arregalaram ao compreender o que ele dizia.
– Seu safado. Você me procurou no Google?
– Você não me procurou? – ele replica. – Ah, qual é. Esse é o primeiro
passo depois de um encontro fortuito.
– Cheguei em casa às duas da manhã. Caí de cara no travesseiro. Nem sei
se escovei meus dentes desde o fim de semana.
O sorriso dele é tão genuinamente feliz que uma do bradiça enferrujada se
abre dentro de mim.
– Sempre teve a intenção de voltar para cá ou foi onde você foi aceita?
– Aqui era a minha primeira escolha.
– Você queria ficar perto de Duncan. – Ele assente como se fosse a coisa
mais natural do mundo e sinto uma pontada de tristeza . – Quando ele
morreu?
– Você sempre teve a intenção de voltar para cá?
Percebo que ele tenta entender por que desviei o assunto, mas inspira
fundo e deixa o ar sair devagar.
– Sempre tive planos de morar onde quer que você estivesse. Esse plano
fracassou, mas deduzi que a probabilidade de voltar a te ver era maior em
Berkeley.
Isso me acerta em cheio. Como se eu fosse um tijolo arremessado contra
uma janela de vidro.
– Ah.
– Você sabia disso. Tinha que saber que eu estaria aqui, te esperando.
Tomo um gole rápido de água para responder.
– Não creio que eu soubesse que você ainda tinha esperanças de eu…
– Eu te amava.
Sou pega de surpresa com essa granada de interrupção, procurando pelo
resgate da garçonete nos trazendo a nossa comida. Mas ela não está aqui.
– Você sabe que também me amava – ele diz baixo. – Aquilo era tudo.
Sinto como se eu tivesse sido empurrada e me afasto um pouco da mesa,
mas ele se inclina para mais perto.
– Desculpe. Isto é muito intenso. Só fiquei aterrorizado com a
possibilidade de não ter outra chance de dizer isso.
O telefone dele vibra outra vez.
– Não vai atender? – pergunto.
Elliot esfrega o rosto e se recosta na cadeira, com os olhos fechados e o
rosto voltado para o teto. Só então noto a barba por fazer e o quanto ele
parece cansado.
Me inclino em sua direção.
– Elliot, está tudo bem?
Ele faz que sim, se endireitando.
– Sim, está. – Fitando-me por um tempo demorado, ele parece estar
decidindo se vai me contar o que lhe passa pela mente. – Terminei com a
minha namorada ontem à noite. É ela quem está ligando. Ela acha que quer
conversar, mas, na verdade, acho que ela só quer gritar comigo. Ela não vai
se sentir melhor depois, por isso estou poupando a nós dois.
Engulo por cima do enorme nó que se formou na minha garganta.
– Você terminou com ela ontem à noite?
Ele confirma, brincando com a embalagem do canudo e agradecendo à
garçonete quando ela coloca os pratos à nossa frente.
– Você é o amor da minha vida. Achei que acabaria superando isso com o
tempo, mas depois que te vi ontem? – Balança a cabeça. – Eu não poderia
voltar para casa, para outra pessoa e fingir que a amo depois disso.
A náusea me preenche. Francamente não sei como traduzir essa emoção
opressiva que toma conta do meu peito. Será que é porque eu me identifico
tão intensamente com o que ele está dizendo, mas sou, de longe, muito mais
covarde? Ou será que é o contrário – eu segui em frente, encontrei alguém, e
não quero a intromissão de Elliot na minha vida simples e descomplicada?
– Macy – ele diz, com mais urgência agora, e abre a boca para continuar,
mas outro gatilho foi acionado, outro desafio de um programa televisivo.
Procuro minha carteira correndo, contra o relógio, mas desta vez Elliot me
impede, segurando meu braço de maneira suave mas com o rosto corado de
raiva. – Você não pode fazer isso. Não pode continuar fugindo desta
conversa. Já faz onze anos. – Ele se aproxima, trava a mandíbula e
acrescenta: – Sei que fiz besteira, mas foi tão ruim assim? Tão ruim a ponto
de você sumir?
Não, não foi. Não no começo.
– Isso – digo, olhando ao nosso redor – é uma péssima ideia. E não por
causa do nosso passado. Ok, em parte é, sim, mas também por causa dos
anos que se passaram nesse intervalo. – Fito os olhos dele. – Você terminou
com a sua namorada ontem à noite depois de me ver por dois minutos. Elliot,
eu vou me casar.
Ele solta o meu braço, pisca algumas vezes e parece – pela primeira vez
desde que o conheço – sem palavras.
– Eu vou me casar… e tem tantas coisas que você não sabe – digo. – E
muitas delas não são culpa sua, mas isto – movo o dedo para a frente e para
trás indicando o espaço que nos separa ao longo da mesa – entre nós? É uma
droga que tenha acabado, e também me machuca. Mas acabou, Ell.
Speedball é a mistura de heroína com cocaína. (N. T.)
ANTES

SEXTA-FEIRA, 21 DE DEZEMBRO
QUINZE ANOS ATRÁS

Como se soubesse que eu estava sensível depois da conversa Natal sem a


mãe com Elliot, papai se mostrou ainda mais calado do que o costume após
o jantar naquela quinta-feira.
– Quer ir para Goat Rock amanhã? – ele me perguntou depois de terminar
seu frango.
Goat Rock, a praia onde o rio Russian colide com o Oceano Pacífico. É
notoriamente fria, os ventos sopram tão intensos e a correnteza é tão forte
que é perigoso até mesmo só caminhar na água, e há tanta areia no ar que é
praticamente impossível grelhar cachorros-quentes.
Amei.
Às vezes, leões e elefantes-marinhos ficavam fazendo preguiça no
desembocar do rio. Algas escuras e grossas cobriam a praia, pesadas de sal
e quase irreais para mim, em sua estranheza sobrenatural e translúcida.
Dunas de sal se acumulavam na costa e, no meio da praia sobre um istmo,
havia uma gigantesca rocha solitária simplesmente se projetando para cima a
mais de trinta metros para cima, como se tivesse sido jogada ali.
– Pode convidar Elliot, se quiser – acrescentou.
Levantei o olhar para ele e assenti.
No trajeto inteiro de carro até lá, Elliot pareceu agitado. Mudava de
posição no banco, mexia no cinto de segurança, passava as mãos pelos
cabelos, cutucava o aparelho ao redor da cabeça. Depois de uns dez minutos,
desisti de tentar me concentrar no meu livro.
– O que deu em você? – sibilei lá no banco traseiro.
Ele olhou de relance para papai no banco do motorista e depois de novo
para mim.
– Nada.
Senti, mais do que vi, papai espiar pelo espelho retrovisor para o que
estava acontecendo ali atrás.
Fitei as mãos de Elliot, que agora mexiam na alça da mochila. Elas
pareciam diferentes. Maiores. Ele ainda era magro demais, mas também tão
à vontade com seus modos desajeitados que eu nem notava mais, a menos
que prestasse atenção de verdade.
Papai parou no estacionamento, e nós saímos, surpresos com o vento que
quase nos derrubou. Fechamos os casacos e enterramos bem as toucas para
cobrir as orelhas.
– Não vão além da rocha na areia – papai instruiu, pegando seu próprio
passatempo (um maço de cigarros dinamarqueses) dentro do bolso. Ele
nunca fumava perto de mim; oficialmente parara de fumar assim que mamãe
descobriu que estava grávida. O vento empurrou os cabelos dele para o
rosto e ele os afastou, sacudindo a cabeça, estreitando o olhar para mim,
dizendo sem palavras “você está bem?”, e eu assenti. Ele enfiou um cigarro
entre os lábios, acrescentando: – E pelo menos a quinze metros das focas.
Elliot e eu avançamos com dificuldade pela duna de areia, parando no alto
para contemplar o oceano ao longe.
– O seu pai me intimida pra caramba.
Gargalhei.
– Porque ele é alto?
– Alto – ele concordou – e caladão. Ele domina a tal coisa da presença
autoritária.
– Ele só diz muito mais com os olhos do que com a boca.
– Infelizmente para mim, não domino a movimentação ocular
dinamarquesa.
Ri de novo e olhei para o perfil de Elliot enquanto ele fitava as ondas se
quebrando.
– Eu não sabia que ele fumava – ele comentou.
– Só algumas vezes por ano. É seu pequeno luxo particular, eu acho.
Elliot aquiesceu, deixando escapar:
– Ok. Olha só, eu te trouxe um presente de Natal.
Gemi.
– Macy, sempre tão graciosa. – Com um sorriso, ele começou a descer o
outro lado da duna indo na direção da praia, e só então percebi um pequeno
embrulho enfiado debaixo do braço dele. Navegamos em meio à areia
pesada, pedaços de madeira que vieram à deriva, e pequenos montinhos de
algas antes de chegarmos a uma minúscula alcova, protegida do vento em
grande parte.
Sentando-se, ele passou o pacote de uma mão à outra, fitando-o. Pelo
formato, eu sabia que era um livro.
– Eu não espero que você me dê nada – ele disse, nervoso. – Estou
sempre na sua casa nos fins de semana que você está aqui, então eu senti que
te devia uma.
– Você não me deve nada. – Esforcei-me para controlar a emoção que
sentia por ele ter me comprado um livro. Não só porque era algo que
fazíamos juntos (ler), mas por causa do que lhe contei na noite anterior,
sobre minha mãe e os presentes. – Você sabe que pode vir sempre. Não tenho
irmãos. Sou só eu e o meu pai.
– Bem – ele disse, me entregando o pacote –, talvez seja por isso que
peguei este.
Curiosa, rasguei o pacote e conferi. Quase perdi o papel de embrulho por
conta de uma rajada de vento violenta.
Ponte para Terabítia.
– Você já leu esse? – Elliot perguntou.
Balancei a cabeça, negando, afastando os cabelos que o vento lançava no
meu rosto.
– Já ouvi falar. – Vi quando ele exalou aliviado. – Eu acho.
Ele anuiu e, parecendo mais tranquilo, se inclinou e pegou uma pedra para
jogar na água.
– Obrigada – agradeci, apesar de não ter certeza de que ele tinha ouvido
por cima do rugido do oceano.
Elliot ergueu o olhar e sorriu para mim.
– Espero que você goste tanto quanto eu. Eu meio que senti que podia ser
a sua May Belle.
HOJE

QUINTA-FEIRA, 5 DE OUTUBRO

O celular vibra dentro da minha bolsa de carteiro enquanto estou no


ônibus, convenientemente me acordando a um quarteirão do meu ponto.
Eu o pego, percebendo que já são quase duas da manhã de novo, e estou
fitando o rostinho de Viv na tela.
– Viv, você aprendeu a usar tecnologia tão rápido! – digo, levantando para
passar a alça da bolsa pelo ombro e avançar pelo corredor estreito do
ônibus a passos trôpegos.
Sabrina ri do outro lado.
– Invadi seu celular quando você foi pedir comida ontem, e mudei a minha
foto de perfil. As suas senhas são tão adoravelmente previsíveis.
Dou um grunhido, tentando parecer aborrecida, mas, de fato, somente duas
pessoas saberiam a sequência de quatro dígitos que uso para praticamente
tudo: Sabrina e Elliot. É o meu número da sorte: quinze, repetido.
– Vou mudar – ameaço, agradecendo ao motorista do ônibus com um
sorriso que ele ignora enquanto desço até a rua.
– Não faça isso – Sabrina aconselha. – Você se esquecerá da nova senha.
– Você deve saber que sou ótima com números.
O silêncio me recebe do outro lado da ligação, e eu acrescento:
– Pelo menos com o tipo de números de matemática, quando estão bem na
minha frente e eu estou com um lápis na mão. – Encaro a ladeira íngreme que
tenho de subir antes de estar na cama. – Você ligou só pra me incomodar?
Aliás, o que está fazendo acordada?
– Estou amamentando o bebê, é claro. E presumi que estivesse a caminho
de casa. Liguei para ver como você está. Você fugiu ontem.
Sem tentar me justificar, comecei a subir devagar. O ar estava denso de
umidade, e a ladeira, depois do dia que tive, parecia quase vertical.
– Elliot me alcançou na calçada.
– Imaginei que sim quando ele saiu correndo de lá.
– Ele não ficou superfeliz comigo, sabe, por termos perdido contato.
Sabrina pigarreou.
– Perder contato? – ela repete. – É assim que estamos chamando isso?
Ignorando o comentário, digo:
– Ele me procurou hoje de novo. Terminou com a namorada ontem depois
de me ver.
Sabrina solta algo parecido com um arrulho do outro lado da ligação, e eu
paro de andar.
– O que é esse barulho que você está fazendo? – pergunto.
– É que é tudo tão meigo. Só isso.
– Você está do lado dele?
O silêncio momentâneo comunica a magnitude da descrença dela.
– Tá querendo me dizer que não sentiu nem um mínimo êxtase quando ele
te contou isso?
– Você tá falando isso porque não gosta do Sean.
– Não seja ridícula. Ele é o primeiro cara que conseguiu ir além do
terceiro encontro; claro que eu gosto dele. Ele merece a minha estima por
bater esse recorde.
Estou tão cansada que sinto a irracionalidade tomando conta de mim. Uma
onda de autodefesa férrea emerge em meu peito, acelerando minha pulsação.
– Ok, vamos esclarecer: você não quer que eu me case com Sean.
– Macy, meu bem, eu não quero que se case com Sean. Ainda. Isso é
verdade. Mas isso não tem nada a ver com o fato de eu querer que você volte
a se relacionar com Elliot também. Eu te adoro, sabe disso, mas você me
contou como foi quando a sua mãe morreu. Como você se empenhou para
manter todos a pelo menos um braço de distância. Vamos mexer nesse
vespeiro, quando você tiver tempo…
– Sabrina!
– O que quero dizer é que você nunca deveria ter se afastado de Elliot.
Ele é a sua alma gêmea. Acha que eu não sei disso?
Só balanço a cabeça, voltando a andar. Estou de pé há tanto tempo que
meus dedos dos pés estão dormentes dentro dos tênis. Basicamente estou me
arrastando ladeira acima.
– Estou tão cansada.
– Ah, meu bem… – ela diz com carinho.
– E tem outra coisa… – digo hesitante.
– O quê?
– Ele não sabia sobre o meu pai. – Essa verdade é dolorosa.
Sabrina arqueja.
– O quê?
– Eu sei, eu sei. Essa parte é culpa minha, eu sei. – Esfrego o rosto. – Só
presumi que ele acabaria ouvindo a respeito… através de alguma fofoca.
Ela ficou calada, e é o silêncio que quase acaba comigo. Puxa vida, sou
um monstro. Sabrina deve estar pensando pela milésima vez que estou morta
por dentro.
– Você ficaria bem se os pais dele morressem – ela começa a falar
lentamente – e ele não tivesse pelo menos tentado entrar em contato com
você?
Os olhos meigos da senhora Dina e seu rosto suave com aquelas covinhas
surgem em meus pensamentos, lançando uma pontada de dor em meu peito.
– Entendi, sei o que quer dizer.
Sabrina volta a ficar em silêncio; estou odiando ter essa conversa pelo
telefone. Quero a presença tranquilizadora dela no sofá ao meu lado.
– Não tenho certeza se Elliot e eu podemos ser apenas amigos.
Ela bufa ao soltar o ar.
– Acho que vale a pena tentar.
Será que eu conseguiria mesmo me afastar? Sendo bem honesta, estar
perto do que ele e eu tivemos não foi parte do apelo de voltar para cá?
– Acha mesmo que é uma boa ideia eu retomar o contato com ele? –
pergunto.
– Sempre achei isso.
– Mas como? – Ouço como minha voz soa frágil ao pegar as chaves,
prendendo o celular entre a orelha e o ombro quando as deixo cair na
varanda. – Tomamos café da manhã e eu fugi. Não tenho o telefone dele, nem
o endereço. Duvido que ele tenha conta no Facebook, no Twitter, nem nada
assim. As maneiras normais de perseguir uma pessoa.
Ouço o gemido pensativo de Sabrina enquanto caço a chave de casa às
cegas.
– Você vai dar um jeito.
ANTES

CATORZE ANOS ATRÁS

De: Macy Lea Sorensen<minlilleblomst@hotmail.com>


Data: 1 de janeiro, 23h00
Para: Elliot P. <elliverstravels@yahoo.com>
Assunto: livro

Oi, Elliot,
Obrigada de novo pelo Ponte para Terabítia e desculpe por ter enchido
sua camisa de ranho quando estava tentando conversar sobre ele. Talvez
agora no computador eu consiga explicar o que estava tentando dizer.
Entendi por que me deu este livro e só quero que saiba o quanto ele tem a
ver. Fico pensando no primeiro dia em que te vi no closet, e como isso meio
que se parece com o momento em que Jesse odeia Leslie por ter sido
derrotado na corrida. Eu não te odiei, mas também não tinha certeza se
gostava de você. Acho que isso já não tem importância porque parece que
você é a pessoa que mais me entende. Jesse e Leslie inventaram Terabítia
para ser o santuário deles e, quando ela morreu, ele levou May Belle para lá
para ser a nova princesa. Minha mãe criou esse mundo de livros para mim,
mas sem ela eu posso levar você para o closet para partilhá-lo comigo.
Eu li o livro de novo no caminho de volta para casa e comecei a chorar
tudo de novo e achei que meu pai ia enlouquecer de vez. Ele não fazia a
menor ideia do que estava acontecendo. Ele só perguntava “O que deu em
você, menina?”. Então parou o carro, respirando fundo, e ficou me
perguntando o que tinha acontecido. Eu contei pra ele que você tinha me
dado esse livro triste. Eu contei pra ele o quanto ele me fez sentir saudades
da mamãe. E então ele chorou quando chegamos em casa, pelo menos eu
acho que chorou. Ele é sempre tão calado que nunca tenho certeza.
Odeio ficar triste na frente dele porque é como se ele já tivesse um cofre
gigantesco de tristeza e então ele tem que deixar tudo trancado só pra cuidar
de mim. E quando penso nisso, percebo que eu ainda tenho ele aqui comigo,
mas ele perdeu seu mundo inteiro. A minha mãe era a pessoa que ele
escolheu dentre todas as outras e ela se foi. Não sei. Acho que ele não gosta
de me ver chorando. Mas foi bom falar sobre ela. Tenho medo de me
esquecer dela. Sinto tantas saudades dela que preciso de uma língua nova
para expressar tudo isso.
Lá vou eu de novo. Bem, mudando de assunto, terminou de ser
Ivanhoeizado? Esse livro é tão colossal que eu dormiria depois de cinco
minutos de leitura. Li a primeira página quando você foi ao banheiro e o que
foi aquilo? Entendi uma milionésima parte. Do que fala?
Tudo bem, amanhã tem escola. Obrigada de novo pelo livro. E também
por me deixar falar sobre ele, acho.
bj,
Macy
PS: Ninguém entende que eu só quero ser mais uma garota na escola e não
a menina cuja mãe morreu e que precisa ser tratada como se fosse quebrar.
Obrigada por dizer coisas e não agir como se elas fossem assunto proibido.

De: Elliot P. <elliverstravels@yahoo.com>


Data: 2 de janeiro, 07h02
Para: Macy Lea Sorensen <minlilleblomst@hotmail.com>
Assunto: Re: livro

Oi, Macy,
De nada. O livro também me fez chorar na primeira vez em que o li. Sei
que não te contei isso, mas acho que deveria ter contado.
Tenho certeza de que o seu pai entendeu o motivo de você estar chorando.
E também acho que ele deve ficar feliz por você estar chorando, por mais
que ele fique triste quando você fica triste. Mas espero que ele não esteja
bravo comigo por fazer você chorar. Quero dizer, foi o livro… Eu não quero
te fazer chorar por minha causa.
Não acho que você seja esquisita ou diferente porque a sua mãe morreu.
Na verdade eu te acho muito legal, mas isso não tem nada a ver com o fato
de você ter ou não uma mãe. Você é legal porque você é você. Um parêntese:
na minha opinião, você está conseguindo levar a situação até que bem.
Ivanhoé é muito bom. A história se passa no século XII depois da
Terceira Cruzada. (Algumas das ideias atuais de Robin Hood se baseiam
numa das personagens, Lockley. Mas ele não é o protagonista.) Gosto da
ação e do estilo. Eu costumava fazer de conta com meu amigo Brandon no
sétimo ano, então acho que vem daí o meu interesse pelo século XII na
Inglaterra. Se você gosta de Nicholas Sparks, provavelmente não vai gostar
de Ivanhoé.
Até mais,
Elliot
PS: Não quis que isso parecesse presunçoso. Meu pai me disse que às
vezes eu faço isso, e não sei se você teve essa impressão. Tenho certeza de
que Nicholas Sparks é muito bom, só é diferente de Sir Walter Scott.
De: Macy Lea Sorensen <minlilleblomst@hotmail.com>
Data: 2 de janeiro, 20h32
Para: Elliot P. <elliverstravels@yahoo.com>
Assunto: Re: livro
Oi, Elliot,
Nicholas Sparks é muito, muito bom. A mãe da minha amiga Elena o
encontrou num congresso literário e disse que ele é muito legal e bem
inteligente também. Aposto que ele leu Ivanhoé.
O que quis dizer com você e Brandon faziam de conta? Tipo aqueles caras
esquisitos no parque com espadas e flâmulas?
bj,
Macy
De: Elliot P. <elliverstravels@yahoo.com>
Data: 2 de janeiro, 20h54
Para: Macy Lea Sorensen <minlilleblomst@hotmail.com>
Assunto: Re: livro
Oi, Macy,
Sim. Exatamente assim. E também com elmos e cavalo de papelão.
Elliot
De: Macy Lea Sorensen <minlilleblomst@hotmail.com>
Data: 2 de janeiro, 21h06
Para: Elliot P. <elliverstravels@yahoo.com>
Assunto: Re: livro
Juro que você me fez gargalhar agora. Sei que você está brincando, mas
consigo te visualizar num cavalo de papelão berrando “Em guarda!” e
“Ivanhoé!”
Macy
De: Elliot P. <elliverstravels@yahoo.com>
Data: 2 de janeiro, 21h15
Para: Macy Lea Sorensen <minlilleblomst@hotmail.com>
Assunto: Re: livro
Eu estava falando sério. Nós fazíamos de conta assim mesmo. Na verdade,
existe uma comunidade muito bem organizada chamada Os Nobres, na qual
se travam batalhas e existe a realeza e é muito divertido. Mas acho que você
não iria gostar porque não tem um beijo suave no final.
Elliot
De: Macy Lea Sorensen <minlilleblomst@hotmail.com>
Data: 3 de janeiro, 18h53
Para: Elliot P. <elliverstravels@yahoo.com>
Assunto: Loucura!
Oi, Elliot,
Tenho quase certeza de que você foi presunçoso ontem à noite, então aqui
estou eu sendo bem madura a respeito, ignorando o assunto.
Quer saber de uma coisa muito louca? A minha amiga Nikki foi suspensa
por ficar com um garoto no refeitório hoje! Fiquei toda Ai meu Deus o que tá
acontecendo? Contei pro papai e ele me perguntou se eu já beijei algum
garoto e eu fiquei toda ofendida dizendo que de jeito nenhum! Quem eu
beijaria na escola? São todos uns babacas!
Foi uma loucura mesmo assim!
Macy
De: Elliot P. <elliverstravels@yahoo.com>
Data: 3 de janeiro, 20h27
Para: Macy Lea Sorensen <minlilleblomst@hotmail.com>
Assunto: Re: Loucura!
Meu amigo Christian foi suspenso no ano passado por ter construído um
foguete numa oficina. Nem sei bem onde ele conseguiu o combustível, mas a
coisa voou pela janela e atingiu um carro no estacionamento. Foi incrível.
Quer dizer que você não sai com os caras da escola?
Elliot
De: Macy Lea Sorensen <minlilleblomst@hotmail.com>
Data: 4 de janeiro, 07h32
Para: Elliot P. <elliverstravels@yahoo.com>
Assunto: Re: Loucura!
Saio Doug e Cody estão na escola comigo desde o primeiro ano então
meio que somos ligados mas ligados pra beijar? Eca não eles são legais mas
eu acho que vou acabar conhecendo algum cara da faculdade em algum
momento porque os caras da minha escola só pensam em videogames e skate
e Danny (outro amigo) uma vez tentou colocar a mão na minha bunda num
baile mas eu fiquei toda acho que não vai rolar.
Macy
De: Elliot P. <elliverstravels@yahoo.com>
Data: 4 de janeiro, 07h34
Para: Macy Lea Sorensen <minlilleblomst@hotmail.com>
Assunto: Re: Loucura!
Macy,
A pontuação é sua amiga.
Elliot
HOJE

QUINTA-FEIRA, 5 DE OUTUBRO

Liz Petropoulos, que loucura.


Ela é de estatura mediana, curvilínea e tem uma pele maravilhosa. E eu
também já lhe disse pelo menos umas quatro vezes o quanto invejo suas
maçãs do rosto. Ela é sorridente, cumprimenta a todos que passam pelas
portas do prédio Mission Bay e para qualquer um sem crachá de
identificação, chamando-os para que se registrem.
Levanto meu crachá, como faço todas as manhãs. Ainda bem que ela
estava no seu intervalo de descanso quando entrei apressada ontem, em
frangalhos depois do meu não café da manhã com Elliot, mas hoje ela sorri
com um leve brilho no olhar, como se soubesse mais agora do que sabia da
última vez em que nos vimos.
– Ora, ora, olá, Liz Petropoulos – digo, aproximando-me e deixando de
lado qualquer fingimento.
Ela hesita apenas um segundo antes de dizer:
– Olá, Macy Sorensen. – Sem olhar para o meu crachá. Quando me
aproximo, ela sorri de novo. – Puxa, como ouvi falar dessa tal de Macy nos
últimos sete anos. E pensar que ela é a mesma nova e gentil doutora
Sorensen que elogia minhas maçãs do rosto.
– Acho que George e Elliot podem desistir e deixar o caminho livre pra
nós nos casarmos – digo, e ela ri. É um som alegre e perfeito.
Mas a expressão dela logo fica séria.
– Desculpe por ter contado para ele a hora que você entraria. – Ela
levanta a mão quando começo a falar e acrescenta mais baixo: – Ele me
contou que te viu sem querer e nós ligamos os pontos. Você nem imagina o
quanto significa para ele ter te encontrado. Sei que não é da minha conta,
mas…
– Sobre isso… – Apoio-me nos cotovelos na larga bancada de mármore
da recepção e sorrio para que ela saiba que não está prestes a ser despedida.
– O que me diz de me fazer um favor e depois paramos de trocar
informações não autorizadas?
– Sem dúvida – Liz concorda com os olhos arregalados. – O que posso
fazer por você?
– O número do celular dele seria fantástico.
Amigos ligam para amigos, digo a mim mesma. O primeiro passo para
consertar as coisas é conversar, espairecer o ar de uma vez por todas e
depois podemos tocar nossas vidas.
Liz pega o celular, abre a lista dos contatos favoritos e se inclina,
anotando o número dele.
Elliot está na discagem rápida dela.
Compreensível: atencioso, cheio de consideração e emocionalmente
maduro, Elliot seria o cunhado dos sonhos. Claro que ela falaria com ele
com frequência.
– Mas não conte que tenho o número dele – digo a ela quando me entrega
o papel. – Não sei quanto tempo vai levar até eu descobrir o que dizer.
A quem estou tentando enganar? Isso é uma péssima ideia. Elliot tem um
passado. Eu também tenho um passado. Nós dois temos tantos segredos que
nem sei se podemos recuar tanto no tempo.
Pelo caminho inteiro até o corredor da sala de descanso dos residentes,
fico checando o bolso da minha calça do uniforme para me certificar de que
não perdi o post-it pequeno que está dobrado ali dentro. Não que eu precise
mesmo dele. Fiquei olhando para o número enquanto subia de elevador até o
quarto andar. Acho que nunca me ocorreu que ele manteria o mesmo número
durante todo esse tempo. O número dele costumava ser como o refrão de uma
música gravado na minha cabeça.
Deixo a bolsa no meu armário na sala de descanso e fico olhando para o
meu aparelho. Meu turno começaria em cinco minutos, e para onde eu ia
precisaria estar com a cabeça no lugar. Se não fizesse isso agora, seria uma
pedra no meu sapato durante todo o plantão. Sinto o coração ribombar nos
ouvidos.
Sem pensar demais, mando uma mensagem:
Trabalho das 9-18 hoje. Quer me encontrar pra
jantar? Pra conversar.
Somente alguns segundos se passam e o balão da resposta aparece. Ele
está digitando. Inexplicavelmente, minhas palmas começam a suar. Não me
ocorreu até agora que ele poderia dizer: Não, você é muito babaca, esquece.

Macy?

Ou que ele não teria este número. Sou uma idiota.

Sim, desculpe. Eu deveria ter dito.

Sem problema.

Me diz onde que estarei lá.


ANTES

QUINTA-FEIRA, 13 DE MARÇO
CATORZE ANOS ATRÁS

Conforme meu décimo quarto aniversário se aproximava, eu sabia que


papai não estava muito seguro quanto ao que fazer. Até onde conseguia me
lembrar, sempre fizemos a mesma coisa: ele prepararia aebleskivers 3 para
o café da manhã, veríamos filmes a tarde inteira, e depois eu me
empapuçaria com um sundae gigante depois do jantar e iria para a cama,
jurando de pés juntos que nunca mais faria isso.
Depois que mamãe morreu, a rotina não mudou. A constância era algo
importante para mim, um pequeno lembrete de que ela de fato estivera aqui.
Mas este era o primeiro ano que tínhamos nosso refúgio, e o primeiro ano em
que eu tinha um amigo próximo como Elliot.
– Podemos ir para a casa de campo neste fim de semana?
A xícara de café de papai ficou parada no ar, os olhos dele se depararam
com os meus através do vapor. Ele soprou por cima da beirada antes de
sorver um gole, engoliu e depois voltou a pousá-la na mesa. Pegando o
garfo, ele partiu uma porção de ovos mexidos, esforçando-se ao máximo
para parecer descontraído, como se nada em especial o alegrasse ou
desapontasse nesse meu pedido.
Era a primeira vez que eu pedia para irmos para lá, e eu o conhecia bem o
bastante para saber o quanto ele estava aliviado por poder contar com as
previsões perfeitas na lista de mamãe.
– É isso o que você quer fazer este ano? No seu aniversário?
Baixei o olhar para os meus ovos antes de confirmar.
– É.
– Quer uma festa também? Quer levar alguns dos seus amigos para lá?
Quer mostrar a sua biblioteca para eles?
– Não… os meus amigos daqui não entenderiam.
– Não como Elliot entende.
Mastiguei uma garfada e dei de ombros como quem não quer nada.
– É.
– Ele é um bom amigo?
Fiz que sim, encarando meu prato enquanto separava mais uma garfada.
– Você sabe que é nova demais para namorar – papai disse.
Ergui a cabeça de pronto.
– Pai!
Ele riu.
– Só me certificando de que você entende as regras.
Piscando para minha comida, murmurei:
– Eca, que nojo. Eu só gosto de lá, tá bom?
Meu pai não era muito sorridente, não era uma daquelas pessoas nas quais
você pensa e logo visualiza com um grande sorriso estampado no rosto, mas,
naquele instante, quando olhei para cima de novo, ele estava sorrindo.
Sorrindo de verdade.
– Claro que podemos ir para a casa, Macy.
Fomos para lá no sábado de manhã, no primeiro dia das minhas férias de
primavera. Papai queria riscar alguns itens na lista essa semana, incluindo o
44 e o 53: plantar uma árvore que eu pudesse ver crescer por muitos anos e
me ensinar a rachar lenha para a lareira.
Antes que eu pudesse disparar para o meu maravilhoso mundo dos livros,
papai tirou uma muda pequena de árvore do porta-malas do carro e a
carregou até o jardim lateral.
– Pegue a pá lá nos fundos – ele me instruiu, ajoelhando-se para cortar a
embalagem plástica da macieira usando uma lâmina. – Traga também as
luvas.
Eu sempre tive a sensação de que era mesmo a filha da minha mãe:
gostava de cores e de encher a nossa casa em Berkeley de quinquilharias.
Gostava de música animada e de dias quentes, e dançava quando lavava os
pratos. Mas ali no chalé, percebi que também era filha do meu pai. No vento
fresco de março que passava pelas árvores, nós cavamos um buraco fundo
compartilhando um silêncio confortável, comunicando-nos através de um
dedo apontado ou de uma inclinação do queixo. Quando terminamos, e uma
pequenina e orgulhosa macieira Gravenstein estava firmemente plantada no
nosso jardim lateral, em vez de me abraçar cheio de entusiasmo, declarando
seu amor no meu ouvido, papai amparou meu rosto entre as mãos e se
inclinou, depositando um beijo na minha testa.
– Bom trabalho, min lille blomst. – Sorriu para mim. – Vou para a cidade
fazer compras.
Com essa permissão, eu me afastei. Com passos decididos, segui numa
linha reta do fim da nossa entrada para carros até a de Elliot. A campainha
ecoou pela casa, reverberando pelas janelas abertas do andar de cima. Um
latido alto chegou aos meus ouvidos, seguido dos arranhados atabalhoados
das unhas do cachorro no assoalho de madeira.
– Calado, Darcy – uma voz sonolenta disse, e o cão se calou, só para
emitir alguns ganidos de desculpas.
Ocorreu-me então que, nos quase seis meses em que tínhamos o chalé, eu
nunca tinha entrado na casa de Elliot. A senhora Dina, claro, nos convidara,
mas papai parecia considerar errado nos intrometermos. Acho que ele
gostava da solidão da nossa casa nos fins de semana – excetuando a
presença de Elliot, evidentemente. Papai gostava de não ter que sair da sua
concha.
Recuei uns passos, me sentindo subitamente nervosa, quando a porta se
abriu e um Andreas bocejando de cabelos bagunçados apareceu na minha
frente.
O segundo irmão mais velho dos Petropoulos evidentemente acabara de
sair da cama – cabelos castanhos emaranhados, marcas do travesseiro no
rosto, sem camisa, e bermuda de basquete que desafiava a gravidade ao mal
se agarrar aos quadris dele. Ele tinha o tipo de corpo que, até aquele
momento, eu não sabia se existia de fato.
Essa seria a aparência de Elliot daqui a alguns anos? Minha mente mal
podia lidar com essa noção.
– Oi, Macy – ele disse. Mais pareceu um grunhido. Ele recuou, segurando
a porta aberta e esperando que eu o seguisse. – Vai entrar ou não?
Obriguei minhas sobrancelhas a não ficarem tão arregaladas.
– Ah, claro.
Tinha mesmo cheiro de biscoitos ali dentro. Biscoitos e rapazes. Andreas
sorriu e coçou o estômago preguiçosamente.
– Vieram passar o fim de semana?
Respondi que sim e o sorriso dele se ampliou.
– Hoje você está falante, hein.
– Desculpe – eu disse, e fiquei ali parada, com os braços pensos ao longo
do corpo, os dedos puxando a barra dos shorts, sem saber muito bem o que
dizer. – Elliot está em casa?
– Vou lá chamar ele. – Andreas sorriu arreganhando os dentes e foi até a
escada. – Ei, Ell! A sua namorada está aqui! – A voz dele ecoou pela entrada
amadeirada enquanto meu corpo explodia num rubor ardente.
Antes que eu pudesse responder, ouvi sons de passos apressados no andar
acima de nós.
– Seu babaca! – Elliot disse, correndo escada abaixo e se jogando em
cima do irmão. Andreas grunhiu com o choque e agarrou Elliot, segurando a
cabeça dele numa chave de braço. Andreas era mais alto e mais musculoso,
mas Elliot parecia determinado a evitar a humilhação pública.
Os dois lutaram, chegaram perigosamente perto de derrubar um abajur,
trocaram um punhado de palavras que supostamente eu não podia nem sequer
pensar, e depois, finalmente, se separaram, arfando.
– Desculpe – Elliot disse para mim, ainda encarando Andreas. Ajeitou os
óculos e arrumou as roupas. – Meu irmão se acha muito engraçado e pelo
visto não sabe se vestir. – Apontou para o peito nu de Andreas.
Andreas bagunçou ainda mais o cabelo de Elliot e revirou os olhos.
– Nem é meio-dia ainda, bobão.
– Acho que a mamãe devia te mandar fazer um exame de narcolepsia.
Com um soquinho no ombro de Elliot, Andreas se virou na direção da
escada.
– Vou para a casa da Amie. Bom te ver, Macy.
– Você também – digo sem graça.
Andreas piscou por cima do ombro.
– Ah, ei, Elliot? – ele chamou.
– Que foi?
– Deixe a porta do quarto aberta.
A gargalhada ressonante tomou conta do corredor de cima antes de, por
fim, desaparecer depois de um clique de porta sendo fechada.
Elliot ficou encarando a escada, mas depois parou, virando-se com uma
carranca para mim.
– Vamos pra sua casa.
– Não vai me mostrar a sua?
Com um gemido, ele se virou e apontou ao nosso redor.
– Sala de estar, sala de jantar, a cozinha fica ali. – Ele girou no lugar,
mostrando cada cômodo com o indicador apontado. Foi para a escada e eu o
segui enquanto ele resmungava: escada, corredor e quarto dos pais. E uma
lista monótona de rótulos até pararmos diante de uma porta branca fechada
com uma tabela periódica afixada nela com fita adesiva.
– Este é o meu.
– Uau, isso é… esperado – disse eu, rindo. Eu estava tão feliz por
conhecer o espaço dele que fiquei um pouco tonta.
– Não fui eu quem colocou isso aí, foi o Andreas. – A voz dele assumiu
um tom defensivo, como se ele só aguentasse ser visto como noventa e oito
por cento nerd.
– Mas você não tirou – observei.
– É um bom pôster. Ele o pegou numa feira de ciências. – Virou-se para
mim e deu de ombros, abaixando o olhar. – Seria desperdício jogar fora e
ele não iria parar de me encher se eu o colocasse dentro do quarto.
Ele abriu a porta e não disse nada, só ficou de lado para me deixar passar
e entrar no quarto dele. A ansiedade e a excitação me atingiram de um golpe:
eu estava entrando no quarto de um menino.
Eu estava entrando no quarto de Elliot.
Ele era esparso e imaculado: cama feita, somente algumas peças de roupa
para lavar dentro de um cesto num canto, gavetas da cômoda fechadas. A
única desordem era uma pilha de livros sobre a escrivaninha, e uma caixa de
livros no canto.
Senti a presença de Elliot atrás de mim, ouvia a cadência espasmódica da
sua respiração. Eu sabia que ele queria sair do caos da sua casa e ir para a
tranquilidade do meu closet, mas eu não conseguia me afastar. Atrás da
escrivaninha havia um painel, com algumas medalhas penduradas, uma
fotografia e um cartão-postal da ilha Maui.
Aproximando-me, me inclinei para observar melhor.
– São de algumas feiras de ciências – ele murmurou atrás de mim,
explicando as medalhas.
Primeiro lugar em sua categoria na feira de ciências do Condado de
Sonoma, por três anos seguidos.
– Uau! – Olhei para ele por cima do ombro. – Você é inteligente.
O sorriso dele saiu meio torto, as faces ficaram coradas.
– Não, não é bem assim.
Voltei a me virar, examinando a foto pregada no canto. Havia três meninos
nela, incluindo Elliot, e uma menina no canto esquerdo. Parecia ter sido
tirada alguns anos atrás.
Um desconforto coçou dentro do meu peito.
– Quem são?
Elliot pigarreou e depois se inclinou, apontando. Trouxe consigo a
fragrância de desodorante – ligeiramente cítrico com aroma de pinho – e
algo mais, um cheiro que era absolutamente de rapaz e que fez meu estômago
afundar.
– Hum… Esse é o Christian, eu, o Brandon e a Emma.
Já tinha ouvido esses nomes de passagem: histórias casuais sobre a aula
ou um passeio de bicicleta pelo bosque. Com uma pontada afiada de ciúme,
percebi que, apesar de Elliot estar se tornado meu, a minha pessoa, o meu
porto seguro e o único humano além do meu pai em quem eu podia confiar
completamente, eu não conhecia muito bem a vida dele. Que lado dele esses
amigos viam? Será que recebiam o sorriso que começava com um leve
arquear de sobrancelha e lentamente se espalhava numa curva divertida dos
lábios? Será que ouviam a gargalhada que se sobrepunha à tendência de
constrangimento dele e explodia num audível haha-haha-haha?
– Eles parecem legais. – Voltei a me endireitar, e o senti recuar
rapidamente atrás de mim.
– Eles são. – Ele ficou calado e o silêncio pareceu crescer numa bolha
tremeluzente ao nosso redor. Meus ouvidos começaram a zunir, o coração
bateu muito forte quando imaginei Emma sentada no chão, ali no canto, lendo
com ele. Ouvi sua voz num sussurro atrás de mim. – Mas você é mais.
Virei-me e me deparei com seus olhos enquanto ele fazia aquela careta
que enrugava o nariz para erguer os óculos.
– Você não tem que dizer isso só porque…
– A minha mãe está grávida – ele disse de repente.
E a bolha estourou. Ouvi passos ao longo do corredor, os latidos do
cachorro.
Meus olhos se arregalaram quando assimilei suas palavras.
– O quê?
– É, eles nos contaram ontem à noite. – Afastou os cabelos da testa. –
Deve nascer em agosto.
– Puxa vida. Você tem catorze anos. Vão ser, sei lá, uns quinze anos de
diferença.
– Pois é.
– Elliot, que loucura.
– Pois é. – Ele se abaixou, amarrando os tênis. – Mas, sério, não quero
falar sobre isso. Podemos ir pra sua casa? Mamãe anda enjoada nas últimas
semanas, e papai está agindo como um louco. Meus irmãos são uns cretinos.
– Apontando para a caixa de livros, acrescentou: – E tenho alguns clássicos
para acrescentar à sua biblioteca.
Papai nos lançou um olhar de atenção quando marchamos para dentro da
casa e subimos a escada.
– O seu aniversário não é na terça? – Elliot perguntou, seguindo-me pelo
corredor. Os tênis dele estavam se desmanchando, seu par predileto de Vans
xadrez, e uma sola meio solta ficava batendo a cada passo.
Olhei por cima do ombro para ele.
– Eu te contei isso uma vez só, sei lá, uns cinco meses atrás.
– E você deveria ter me contado mais de uma?
Virei para a frente e abri caminho até meu quarto e então até o fundo dele,
para o closet. Desde que nos mudamos, o espaço lentamente foi ganhando
vida própria, e agora estava completo: claro que havia prateleiras em uma
parede inteira, o pufe fofão no canto extremo e um sofá futon da parede
oposta à das prateleiras. Mas foi só umas duas semanas antes que meu pai
pintou as paredes e o teto de azul-escuro, com estrelas prateadas e amarelas
salpicando uma constelação ali no alto. Dois pequenos abajures iluminavam
o ambiente – cada um perto de uma das escolhas de assento. No meio do
piso havia mantas e mais almofadas. Era o lugar perfeito.
Elliot se acomodou no chão, puxando uma manta leve para o colo.
– E você está no recesso de primavera?
Mordisquei o lábio inferior, assentindo.
– Sim.
Ele ficou calado, mas depois perguntou:
– Está triste porque não vai estar com os seus amigos?
– Eu estou com um amigo. – Olhei para ele, arregalando os olhos de
propósito.
– Quis dizer as suas amigas – ele explicou, mas não deixei de perceber
como ele havia corado.
– Ah, tá! Não. Nikki vai pro Peru a visitar a família.
Elliot não disse mais nada. Ficou me observando enquanto eu escolhia um
livro e ajeitava minhas almofadas para achar uma posição confortável.
Pensando em como me senti quando vi a foto dele com os amigos – e o
quanto eu queria saber da vida dele fora daquele closet –, escolhi com
cuidado minhas palavras seguintes:
– Parei de sair com a maioria dos meus amigos por um tempo quando a
minha mãe adoeceu, pra poder passar mais tempo com ela.
Ele balançou a cabeça e, por mais que os olhos permanecessem fixos no
caderno diante de si, eu sabia que sua atenção era toda minha.
Passei os olhos pela primeira página, virando para o capítulo que acabara
de começar.
– E depois que ela se foi, eu não tinha muita vontade de ir a festas do
pijama ou de conversar sobre meninos. Foi como se elas tivessem crescido
enquanto eu juntava meus cacos. Nikki e eu ainda nos damos bem, mas acho
que é porque ela também não é muito de sair depois da aula. Ela tem uma
família imensa que encontra bastante.
Agora podia sentir que ele estava me observando, mas não me virei para
ele, pois sabia que não conseguiria terminar caso fizesse isso. As pareciam
pareceram crescer dentro do meu peito, coisas que eu nunca falei para
ninguém.
– Papai tentou me incentivar a sair mais – prossegui. – Ele até arranjou um
jeito de eu frequentar um clube juvenil perto do trabalho dele. – Dei uma
olhadela para Elliot e depois abaixei o olhar de novo. – Ele disse que era
para eu socializar e fazer amigas, mas não era nada disso. Era um grupo de
apoio para jovens em luto.
– Puxa.
– Mas todas nós sabíamos o que estávamos fazendo ali – continuei. –
Lembro-me de entrar nessa imensa sala branca e ver as paredes cobertas de
coisas que acho que alguém pensou que estavam ligadas ao universo das
adolescentes: pôsteres de boy bands, grafite rosa e roxo nos quadros de
aviso, pufes aconchegantes e cestos cheios de revistas. –Fisguei um fio solto
no meu jeans. – Era como se a mãe de alguém tivesse ido lá e espalhado
todos esses itens aleatórios que achava que as adolescentes deviam ter em
seus quartos.
E prossegui, puxando o rabo de cavalo por cima do ombro, brincando com
as pontas:
– Eu me lembro de ter olhado ao redor no primeiro dia, pensando no
quanto era esquisito que todas nós estivéssemos ali para passar o tempo.
Depois de alguns dias, notei que todas as meninas tinham quase o mesmo
corte de cabelo. Umas sete meninas, mais ou menos da minha idade com
aqueles cortes chanel na altura do queixo. Algumas semanas depois,
descobri que todas elas eram como eu, todas haviam perdido a mãe. E a
maioria delas tinha esse corte de cabelos simples. – Fiz uma pausa e
comecei a torcer as pontas dos meus cabelos com o dedo. – Mas o meu pai
aprendeu a prender o meu num rabo de cavalo, descobriu que tipo de xampu
comprar, ele até mesmo aprendeu a trançar e a usar a chapinha para as
ocasiões especiais. Ele poderia ter feito o mais fácil para ele e
simplesmente ter mandado cortar o meu cabelo. Mas não.
Só então levantei o olhar e percebi Elliot me observando. Seus olhos
estavam arregalados, repletos de compreensão, e ele esticou a mão e pegou a
minha.
– Já te disse que eu tenho os cabelos da minha mãe? – perguntei.
Ele balançou a cabeça e me deu um sorriso sincero.
– Acho que você tem os cabelos mais lindos que eu já vi.
Aebleskivers são bolinhos esféricos tradicionais da Dinamarca, feitos com
uma massa cuja textura é semelhante à das panquecas. (N. T.)
HOJE

QUINTA-FEIRA, 5 DE OUTUBRO

Estou do lado de fora da entrada do Nopalito na 9ª Avenida e, sem ter que


olhar lá dentro, sei que Elliot já chegou. Sei disso porque são 20h10.
Combinamos de nos encontrar às oito, e Elliot nunca se atrasa. Algo me diz
que isso não mudou.
Empurrando a porta, vejo-o de imediato. O guardanapo escorrega do colo
e as coxas colidem desajeitadamente com a mesa na pressa dele de se
levantar. Noto duas coisas: primeiro, ele está usando um blazer, belos jeans
e sapatos sociais de couro bem lustrados. Segundo, ele cortou os cabelos.
Ainda está mais comprido no topo, mas bem aparado nas laterais. Isso o
deixa menos parecido com um sabichão hipster do mundo literário e mais
parecido com… um skatista gostosão. Incrível como um visual que ele
jamais teria experimentado na adolescência o deixa absolutamente lindo.
Dito isso, tenho certeza de que ele só tem a agradecer ao cabeleireiro. O
garoto com quem cresci daria mais atenção a que tipo de caneta usaria para
escrever uma lista de compras do que à própria aparência em qualquer
ocasião.
A ternura me invade.
Vou até ele, tentando respirar em meio ao zunido de eletricidade que
percorre minha corrente sanguínea. Talvez seja por eu ter tido a
oportunidade de me vestir bem para a noite – não estou usando o uniforme
do hospital –, mas, desta vez, sinto o modo como os olhos dele se movem
dos meus cabelos até meus sapatos e sobem novamente.
Ele está visivelmente nervoso quando me aproximo e me estico para lhe
dar um rápido abraço.
– Oi.
Engolindo em seco, ele emite um “oi” estrangulado e depois puxa a
cadeira para mim.
– O seu cabelo… Você está… linda.
– Obrigada. Feliz aniversário, Elliot.
Amigos. Isto não é um encontro, repito, como um mantra. Estou aqui para
compensar o fiasco do café da manhã, e para espairecer a situação.
Tento gravar isso no meu cérebro e no meu coração.
– Obrigado. – Elliot pigarreia, sorrindo sem mostrar os dentes, com os
olhos tensos. Mas a verdade é: por onde começar?
O garçom serve água no meu copo e desliza o guardanapo no meu colo. O
tempo inteiro, Elliot tem os olhos sobre mim como se eu tivesse ressurgido
do túmulo. É assim que ele se sente? Em que ponto ele teria desistido de me
procurar, ou a resposta teria sido nunca?
– Como foi o seu trabalho hoje? – ele pergunta, começando em terreno
seguro.
– Agitado.
Ele balança a cabeça, sorvendo um gole de água e depois abaixando o
copo, deixando que os dedos tracejem as gotas de condensação conforme
elas escorregam para a base.
– Você trabalha na pediatria.
– Isso.
– E você soube desde o início da faculdade de medicina que queria se
especializar nessa área?
Dou de ombros.
– Basicamente.
Um sorriso exasperado torce a boca dele.
– Vê se me ajuda aqui, Mace.
Isso me faz rir.
– Desculpe. Não estou tentando bancar a esquisita. – Depois de uma
respiração profunda, admito: – Acho que estou nervosa.
Não que isso seja um encontro.
Quero dizer, claro que não é. Eu disse a Sean que me encontraria com um
velho amigo para jantar hoje e prometi a mim mesma que lhe contaria a
história toda quando voltasse para casa – o que ainda pretendo fazer. Mas,
de todo modo, ele estava mais preocupado em instalar a televisão nova que
nem pareceu notar quando saí.
– Também estou nervoso – Elliot assume.
– Faz muito tempo.
– Faz mesmo – ele concorda –, mas estou feliz que tenha telefonado.
Quero dizer, enviado a mensagem.
– Você respondeu tão rápido – comento, pensando mais uma vez no velho
aparelho dele. – Eu não estava preparada para isso.
Ele dá um sorriso de orgulho fingido.
– Tenho um iPhone agora.
– Me deixa adivinhar: usado do Nick Jr.?
Elliot faz uma careta.
– Até parece. – Toma mais um gole de água e acrescenta: – Na verdade é
o Andreas que troca de aparelho com muito mais frequência.
Nosso riso morre, mas o contato visual se sustenta.
– Bem, para o caso de estar curioso – digo –, o placar está empatado em
um a um. Liz me deu o seu número. Embora eu provavelmente me lembrasse
dele. É o mesmo de antes.
Ele assente e meus olhos se desviam de imediato quando ele morde o
lábio inferior.
– Liz é incrível.
– Parece ser mesmo – concordo. – Gosto dela. – Pigarreando, acrescento
baixinho. – Falando nisso… Desculpe pelo modo como abandonei o nosso
café da manhã.
– Eu entendo – ele responde rápido. – É muita coisa para processar.
É quase risível; um oceano de informações nos separa e existe um número
infinito de lugares por onde começar. Do começo para a frente. De hoje
recuando no tempo. Fazendo alguns saltos no meio.
– Francamente, não sei por onde começar – admito.
– Talvez… – ele diz com hesitação. – Talvez possamos dar uma olhada no
cardápio, pedir vinho e depois começamos a conversar? Você sabe, como as
pessoas fazem nos jantares?
Concordo, aliviada por ele parecer tão mentalmente estável como sempre
foi, e levanto o cardápio para dar uma olhada, mas parece que as palavras na
página estão todas misturadas com todas as perguntas que tenho na cabeça.
Onde ele mora em Berkeley?
Qual é o assunto do livro dele?
O que nele mudou? O que permaneceu igual?
Mas o pensamento traidor e mesquinho que rasteja nas sombras culpadas
da minha mente é a coragem com que ele terminou um relacionamento depois
de me ver por dois minutos. Isto é, a menos que o relacionamento não fosse
sério.
Ou já estivesse para acabar.
Seria esse o pior assunto por onde começar? Sou uma lunática? Mas,
pensando bem, isso foi a última coisa concreta que conversamos no dia
anterior, certo?
– Está tudo bem com… com…? – pergunto, me retraindo.
Ele levanta os olhos do cardápio e talvez seja a minha leve expressão de
ansiedade que faz com que ele entenda.
– Com Rachel?
Assinto, mas o nome dispara meu mecanismo de defesa: ele deveria
mesmo estar com alguém chamado Rachel, que lê deliciada cada edição do
New Yorker, e trabalha numa empresa sem fins lucrativos e faz compostagem
com cascas de ovos e de beterraba para poder cultivar seus próprios
vegetais. Ao passo que eu sou uma bagunça só, com empréstimos estudantis
intermináveis, questões não resolvidas quanto à mamãe, ao papai, a Elliot, e
uma vergonhosa assinatura da US Weekly.
– Está tudo bem – ele diz. – Eu acho. Espero que possamos voltar a ser
amigos. Olhando para trás, nunca poderia ser mais do que amizade.
Esse sentimento dispara pelas minhas veias, quente e eletrizante.
– Elliot.
– Eu ouvi o que me disse – ele diz com franqueza. – Você está noiva, eu
sei. Mas será difícil para mim ser apenas o seu amigo, Macy. Isso não está
no meu DNA. – Ele olha no fundo dos meus olhos e abaixa o cardápio junto
ao cotovelo. – Vou tentar, mas já sei isso a meu respeito.
Sinto a franqueza irresistível dele tirando lascas da carapaça ao meu
redor. Fico imaginando quantas vezes ele poderia dizer que me ama antes de
eu me derreter aos seus pés.
– Então acho bom estabelecermos algumas regras básicas – digo.
– Algumas regras básicas – ele repete, assentindo lentamente. – Como
nada de expectativas? – Faço um gesto afirmativo. – E, talvez… qualquer
coisa que você queira saber eu respondo e vice-versa?
Se isso é um toma lá dá cá, vou ter que vestir minha armadura de gente
grande e enfrentar isso. Embora tudo dentro de mim esteja em um pânico
descontrolado, concordo.
– Então – ele continua com um sorriso –, não sei o que você gostaria de
saber a respeito de Rachel. Nós éramos amigos. Por anos durante o
bacharelado e depois que nos formamos.
A ideia de ele ser amigo de outra mulher por anos é uma faca cravada no
meu esterno. Sorvendo um gole de água, consigo dar continuidade à
conversa:
– No bacharelado?
– De Belas Artes na NYU – ele explica, ainda sorrindo. Esfregando a mão
nos cabelos, como se ainda não estivesse acostumado à sensação de tê-los
curtos, acrescenta: – Avaliando a situação agora, acho que, quando
chegamos aos 28, sentimos a obrigação de ficarmos juntos.
Entendo o que ele quer dizer. Eu fiz 28 e acabei ficando com Sean.
Ele sabe ler mentes.
– Me fala desse cara com quem vai se casar.
Isso é um campo minado, mas é melhor falar de uma vez e ser honesta
também.
– Nos conhecemos no jantar de recepção dos residentes novos – digo, e
ele não precisa de mim para fazer esse cálculo, mas eu faço mesmo assim: –
Em maio.
As sobrancelhas lentamente se arqueiam sob os fios de cabelos
propositamente desalinhados.
– Ah…
– Nos demos bem logo de cara.
Elliot assente, observando-me intensamente.
– Mais do que bem, pelo jeito.
Olho para a mesa, piscando para me recompor, pigarreando e tentando não
responder na defensiva. Elliot sempre foi brutalmente franco, mas nunca
antes foi áspero comigo. Para mim, suas palavras sempre foram suaves e
adoráveis. Agora o meu coração está batendo tão forte que sinto o barulho
dele entre nós, e fico pensando se nossos sofrimentos individuais estão
silenciosamente escapando para fora dos nossos corpos.
– Desculpe – Elliot murmura, estendendo o braço ao longo da mesa antes
de pensar que seria melhor não tocar em mim. – Não tive a intenção de que
soasse assim. É só que foi bem rápido.
Olho para ele e dou um sorriso débil.
– Eu sei. Foi rápido mesmo.
– Como ele é?
– Maduro. Agradável. – Torço o guardanapo no colo, desejando poder
pensar em adjetivos melhores para descrever o homem com que planejo me
casar. – Ele tem uma filha.
Elliot presta atenção, quase sem piscar.
– Ele é um benfeitor do hospital – prossigo. – Bem, de certo modo. Ele é
um artista. O trabalho dele… – Sinto que estou começando a me gabar, e não
sei por que isso me deixa incomodada. – O trabalho dele é bem conhecido
hoje em dia. Ele doa muitas das suas mais recentes instalações para a ala
pediátrica do Mission Bay.
Elliot se inclina na direção da mesa.
– Sean Chen?
– Isso. Já ouviu falar dele?
– Livros e artes andam nos mesmos círculos por aqui – ele explica,
assentindo. – Ouvi dizer que é um cara legal. E a arte dele é maravilhosa.
O orgulho infla e aquece meu peito.
– Sim, ele é. A arte dele também. – E outra verdade escapa de mim antes
que eu consiga refreá-la. – E é o primeiro homem com quem estive que…
Merda.
Tento pensar num modo melhor de terminar essa oração do que soltando a
verdade nua e crua, mas a minha mente parece uma tela em branco,
preenchida somente pela expressão franca de Elliot e pela maneira suave
como segura o copo de água. Tudo nele me abala.
Ele espera e, por fim, pergunta:
– Que o quê, Mace?
Maldição.
– Que não pareceu ser uma espécie de traição…
Elliot encerra minha oração não terminada:
– Ah. Entendi.
Fito os olhos dele.
– Nunca consegui ter essa sensação – ele diz baixinho.
Na verdade, este é o campo minado. Piscando para a mesa, com o coração
subindo pelo esôfago, sigo em frente:
– Foi por isso que eu aceitei quando ele me pediu, num impulso. Sempre
disse a mim mesma que me casaria com o primeiro homem com quem
estivesse e que não me parecesse errado.
– Isso me parece… um critério um tanto… inflexível.
– Senti que era o certo.
– Mas, na verdade – Elliot diz, deslizando com o dedo pelo rastro que
uma gota deixou até chegar à toalha –, de acordo com esse critério,
tecnicamente essa pessoa não seria eu?
O garçom é meu novo ser humano favorito porque ele se aproxima com a
intenção de anotar os pedidos bem quando Elliot diz isso, esquivando-me da
dança desairosa de uma não resposta.
Desviando o olhar para o cardápio, digo:
– Gostaria dos tacos dorados com a salada cítrica. – Erguendo os olhos,
acrescento: – Vou deixar que ele escolha o vinho.
E como eu provavelmente teria deduzido, Elliot escolhe caldo tlalpeño –
ele sempre adorou comida apimentada – e uma garrafa de sauvignon blanc
Horse & Plow antes de entregar o cardápio para o garçom com um
agradecimento sussurrado.
Voltando-se para mim, ele diz:
–Eusabiaoquevocêiapedir.Saladacítrica?ÉosonhoculináriodaMacy.
Meus pensamentos se atropelam com isso, com a constatação do quanto é
descomplicado, de como estamos em sintonia desde a largada. É fácil
demais, na verdade, e sinto como se fosse uma traição muito surreal e
anacrônica para com o homem que está a poucos quilômetros de distância,
instalando uma televisão na casinha que partilhamos. Sento-me ereta,
esforçando-me para infundir um pouco de distanciamento emocional na
minha postura.
– E ela se retrai… – Elliot comenta, avaliando-me.
– Sinto muito – respondo. Ele interpreta cada mínimo movimento que
faço. Não posso culpá-lo por isso; estou fazendo a mesma coisa. – Tudo
começou a ficar familiar demais.
– Por causa do noivo – ele diz, apontando a cabeça para trás, indicando
algum outro lugar. – Quando é o casamento?
– Os meus horários são muito loucos, então ainda não escolhemos uma
data. – Em parte, é verdade.
A postura de Elliot me revela que ele gosta da resposta – por mais in-
sincera que ela seja – e isso provoca uma ansiedade em meu ventre.
– Mas estamos pensando no próximo outono – acrescento rapidamente,
afastando-me ainda mais da verdade agora. Sean e eu não discutimos data
alguma. Elliot estreita os olhos. – Ainda que, se dependesse de mim, poderia
ser qualquer dia, vestindo qualquer coisa, no cartório mesmo. Ao que tudo
leva a crer, não tenho propensão para planejar casamentos.
Elliot não diz nada por alguns segundos, apenas deixa minhas palavras
reverberarem ao nosso redor. Então ele emite um simples “ah”.
Pigarreio meio sem jeito.
– Então, me diz, o que tem feito?
Ele é interrompido brevemente quando o garçom volta com o nosso vinho,
mostrando o rótulo para Elliot, abrindo a garrafa ao lado da mesa e servindo
para ele degustar. Há certos trejeitos que revelam a segurança de Elliot e
mexem demais comigo; este é um deles. Ele cresceu na região dos vinhedos
da Califórnia, portanto deve se sentir à vontade com tudo aquilo, mas eu
nunca o vi degustando vinho à mesa. Éramos tão jovens…
– Está ótimo – ele diz ao garçom, depois se volta para mim enquanto o
vinho é servido, evidentemente não se importando mais com o homem. – O
quanto no tempo tenho que recuar?
– Que tal começar pelo agora?
Elliot se recosta na cadeira, ponderando por alguns momentos antes de
decidir por onde começar. Depois, tudo desliza para fora dele, com
tranquilidade e detalhes. Ele me conta que os pais ainda moram em
Healdsburg (“Nem pagando um milhão conseguiríamos convencer papai a se
aposentar.”); que Nick Jr. é procurador do Estado no Condado de Sonoma
(“Ele se veste como um personagem saído diretamente de uma série policial
ruim, e eu só digo porque estamos num lugar seguro, mas ninguém jamais
deveria vestir terno de tecido sintético.”); que Alex está no colegial e é uma
excelente dançarina (“Nem posso ser acusado de esbanjar orgulho fraternal,
Mace. Ela é boa de verdade.”); que George – como já sei – está casado com
Liz e mora em São Francisco (“Ele é um daqueles engravatados que trabalha
num escritório. Francamente, nunca consigo lembrar o nome do que ele
faz.”); e Andreas mora em Santa Rosa, é professor de matemática para
alunos do quinto ano e vai se casar no fim do ano (“De todos nós para
acabar trabalhando com crianças, ele seria o menos provável, mas, no fim
das contas, ele é muito bom nisso.”).
Durante todo o tempo em que ele me atualiza, só consigo pensar que estou
recebendo apenas a nata, a espuma do topo. Debaixo de tudo isso ainda há
muito mais. Volumosos pequenos detalhes que eu perdi.
A comida chega e está muito boa, mas não consigo prestar muita atenção,
porque pareço incapaz de obter informações suficientes, e nem ele. Os anos
do bacharelado são delineados da maneira monocromática do retrospecto,
histórias de horror da graduação são trocadas com o riso de entendimento de
alguém que também viveu e viu o outro lado. Mas não falamos sobre termos
nos apaixonado por outros e em que pé isso nos deixa agora, e não importa o
quanto esteja presente em cada respiro nosso, em cada palavra, não falamos
sobre o que aconteceu da última vez em que nos vimos, há onze anos.
ANTES

SEGUNDA-FEIRA, 28 DE JULHO
CATORZE ANOS ATRÁS

No nosso primeiro verão no chalé, meu pai e eu ficamos lá quase todos os


dias, indo para casa apenas uma vez, no fim de julho, por conta de uma visita
do meu tio, Kennet.
Kennet tinha duas filhas e uma esposa, Britt, cuja ideia de afeto se resumia
em pousar a mão sobre meu ombro. Então, quando a procurei, sussurrando
com leve horror que achava que tinha menstruado, ela cuidou de mim com a
esperada esterilidade emocional: comprou um pacote de absorventes e uma
caixa de absorventes internos e pediu que a caçula dela, Karin, me
explicasse constrangedoramente o processo básico de uso.
Papai se saiu melhor, mas não com uma ampla margem. Assim que
retornamos para o chalé, ele consultou a lista de mamãe onde, na posição de
número 23, ela havia escrito:
Quando Macy começar a menstruar, certifique-se de que ela não tenha
perguntas sobre o que está acontecendo com seu corpo. Sei que será
constrangedor, meu amor, mas ela precisa saber que é incrível e perfeita
e, se eu estivesse aí, eu contaria para ela a história no envelope marcado
com 23.
Papai o abriu, o rosto ficou corado.
– “Quando eu...” – ele tossiu, corrigindo-se: – Quando sua mãe começou
a… hum… a…
Arranquei a carta das mãos dele e subi correndo para o conforto da minha
biblioteca.
A carta começava assim – e me deparar com a letra cursiva dela fez meu
coração doer:
Eu costumava ter cólicas horríveis. Elas me atacavam nos momentos
mais inesperados. Quando eu estava fazendo compras com as amigas ou
numa festa de aniversário. O analgésico ajudava, quando o descobri, mas
o que mais funcionava era visualizar a dor evaporando para fora do meu
ventre.
Eu imaginava isso repetidamente, até a dor diminuir.
Não sei se isso funcionará para você também, nem se você vai precisar
disso, mas, se precisar, imagine a minha voz te ajudando. Você se sentirá
tentada a odiar isso que seu corpo está fazendo, mas é a maneira que ele
tem para te contar que tudo está funcionando, e isso é um milagre.
Mas, acima de tudo, meu docinho, imagine o orgulho que sinto por
partilhar esse momento contigo. Você está crescendo. Começar a
menstruar foi o processo que, no fim das contas, me permitiu engravidar
de você, quando eu estava pronta.
Trate seu corpo com carinho. Cuide dele. Não deixe que ninguém
abuse dele, e nem você faça isso. Cada pedacinho da sua pele eu criei
com zelo; por meses eu me dediquei à sua gestação. Você é a minha
obra-prima.
Saudades de você. Eu te amo.
Mamãe
Pisquei, assustada. Em algum momento enquanto eu lia, Elliot se
materializara na soleira da porta, mas não viu as minhas lágrimas até eu
virar o rosto para ele. Seu sorriso lentamente se desfez enquanto ele
avançava um passo, depois dois, para mais perto de mim, ajoelhando-se no
chão ao meu lado no futon.
Os olhos dele vasculharam os meus.
– O que aconteceu?
– Nada – respondi, mudando de posição enquanto dobrava a carta. Ele a
fitou antes de voltar a olhar para mim.
Quase 15 anos de idade, e ele já era perceptivo demais.
Mais e mais me incomodava que nossas vidas rotineiras eram essas
incógnitas ocasionais um em relação ao outro. Nos atualizávamos quando
nos encontrávamos ali, contando com quem passamos o tempo, o que
estávamos estudando. Falávamos sobre quem nos irritava, a quem
admirávamos. E, claro, trocávamos nossas palavras prediletas. Ele sabia o
nome dos meus dois melhores amigos – Nikki e Danny –, mas não como era
o rosto deles. Embora eu tivesse visto os rostos na fotografia no quarto dele,
dispunha de informações limitadas a respeito dos amigos da escola de Elliot.
Sabia que Brandon era calado e calmo, e que Christian era uma ficha
criminal à espera de ser registrada. Aqui, nós líamos, conversávamos e
aprendíamos a respeito do outro com o passar do tempo, mas como eu podia
contar para ele o que estava acontecendo comigo?
Não era só o fato de eu ter menstruado tão depois das minhas amigas, ou
mesmo que papai estivesse com dificuldade para lidar comigo em relação a
isso, ou pelo fato de minha mãe estar morta, ou qualquer coisa assim. Ou,
talvez, fosse por tudo isso. Eu amava o meu pai mais do que tudo, mas ele
não estava bem equipado para esse tipo de coisa. Sem dúvida, eu sabia que
ele estava lá embaixo, andando de um lado para o outro, com os ouvidos
aguçados para ouvir minha voz, querendo saber se agira bem ao permitir que
Elliot subisse ou se seus instintos tinham errado.
– Estou bem – respondi, na esperança de ter falado alto o bastante para
que as palavras chegassem ao andar de baixo. A última coisa que eu queria
era ter os dois ali em cima, preocupados comigo.
Franzindo o cenho, Elliot amparou meu rosto entre as mãos num
movimento que me chocou, e os olhos dele vasculharam os meus.
– Por favor, me conta o que aconteceu. Foi o seu pai? A escola?
– Não quero mesmo falar sobre isso, Ell. – Recuei um pouco, passando a
mão no rosto. Minhas mãos ficaram molhadas, o que explica o pânico de
Elliot. Eu devia estar soluçando quando ele chegou.
– Podemos contar tudo um para o outro, lembra? – Relutante, ele recua um
pouco. – O acordo é esse.
– Não acho que você queira saber isto.
Ele me encarou, imperturbável.
– Eu quero saber.
Tentada a aceitar o blefe dele, encarei-o com firmeza, olho no olho, e
disse:
– Eu menstruei.
Ele piscou diversas vezes antes de se endireitar. O rubor se espalhou do
pescoço até os malares.
– E você está triste com isso?
– Triste, não. – Mordi o lábio, pensando. – Aliviada, basicamente. Mas
daí eu li esta carta da minha mãe e agora estou um pouco triste?
Ele sorriu.
– Isso pareceu muito com uma pergunta.
– É só que a vida toda a gente ouve falar de menstruação. – Falar sobre
isso com Elliot era… Na verdade, não era tão ruim assim. – E aí você fica
pensando quando é que vai acontecer, e como vai ser, se vai se sentir
diferente depois. E quando as outras garotas começam a menstruar bem antes
de você, você fica meio “o que tem de errado comigo?”. É como uma
pequena bomba-relógio biológica instalada dentro de você.
Ele morde o lábio, tentando sufocar uma risada constrangedora.
– Até agora?
– É.
– Bem, e então? Você se sente diferente?
Balanço a cabeça.
– Na verdade, não. Não como pensei que ficaria. É meio como se
houvesse alguma coisa abrindo caminho no meu estômago. E estou um pouco
irritada.
Elliot levantou a manta e escorregou para junto de mim, passando o braço
pelos meus ombros.
– Não vou conseguir te ajudar muito, mas acho que deveria estar feliz por
você.
– Você está sendo muito maduro, não está agindo como um “garoto” a
respeito disso. Eu esperava menos compaixão e mais falta de jeito. – Fiquei
inebriada com o calor do seu corpo e com a sensação do braço dele ao meu
redor.
Ele cheirou meus cabelos e soltou uma risada.
– Tenho uma irmãzinha a caminho, e uma mãe que insiste que é função
minha mostrar o caminho das pedras para ela, lembra? Por isso preciso que
você me explique tudo.
Me enrolei ao lado dele, fechando os olhos contra o ardor das lágrimas
que eu sentia chegando.
– Posso fazer alguma coisa? – ele perguntou baixinho.
Um peso enorme se instalou no meu peito.
– Não a menos que possa trazer a minha mãe de volta.
O silêncio pulsa ao nosso redor, e eu o ouço inspirando algumas vezes
antes de falar. Por fim, ele se satisfez com um simples:
– Bem que eu gostaria de poder fazer isso.
Balanço a cabeça ao encontro dele, inspirando a fragrância do seu
desodorante, o cheirinho de suor masculino que paira por baixo, o cheiro de
algodão úmido decorrente da corrida, debaixo da chuva de verão, pelos
cinco metros que separam a varanda dele da minha. É tão estranho, mas só
de ouvi-lo dizer isso já me sinto um milhão de vezes melhor.
– Quer conversar sobre isso? – ele sussurra.
– Não.
A mão dele fez uma trilha suave para cima e para baixo no meu braço. Eu
sei, sem ter que procurar muito, que não existem muitos garotos como Elliot,
em nenhum lugar.
– Sinto muito por você estar irritada.
– Eu também.
– Quer que eu vá buscar uma bolsa de água quente? Faço isso pra minha
mãe.
Sacudi a cabeça. Eu queria que a minha mãe estivesse aqui, lendo aquela
carta para mim.
Ele pigarreou, perguntando baixinho:
– Porque isso faria com que eu parecesse seu namorado?
Engoli em seco, e o clima mudou na mesma hora. Namorado não parecia
ser suficiente. Elliot era meio que meu tudo.
– Acho que sim?
Ele se endireitou, ainda tinha braços finos e longas pernas, mas estava se
tornando algo novo, algo mais… mais homem em vez de menino. Com quase
15 anos, ele tinha o pomo de adão evidente, uma leve penugem no queixo e
as calças estavam curtas demais. A voz dele engrossara.
– Acho que somos novos demais pra isso.
Concordei, e tentei engolir, mas a minha boca estava seca.
– É.
HOJE

SEXTA-FEIRA, 6 DE OUTUBRO

A luz da madrugada se infiltra pela cortina fina, deixando tudo meio


azulado. Do lado de fora, na rua Elsie, caminhões de lixo roncam pelo
asfalto. O guinchado do metal contra metal, as batidas das latas contra o
caminhão e o som do lixo cascateando no compactador chegam vindo do
lado de fora. Apesar de o mundo continuar seguindo em frente do lado
externo da janela, não sei bem se estou pronta para começar o dia.
Meus ouvidos ainda zunem com fragmentos da conversa do jantar de
ontem. Quero me apegar a eles só mais um pouquinho, me deliciar com a
alegria de ter meu melhor amigo de volta à minha vida antes que as
complicações que vêm com isso abram caminho até a superfície.
Sean se vira para mim, puxando-me para ele, pressionando o rosto no meu
pescoço.
– Bom dia… – ele grunhe com as mãos já ocupadas, beijando minha
garganta, minha mandíbula. Ele faz os shorts do meu pijama desceram pelo
quadril, rolando por cima de mim. – Conseguiu dormir uma noite inteira?
– Milagre dos milagres: consegui! – Passo as mãos pelos cabelos dele,
afundando os dedos nos fios grisalhos despenteados. O desejo me invade;
faz mais de uma semana que não fazemos sexo.
Ainda somos um casal recente, não sei se já ficamos tanto tempo sem fazer
antes disso.
Quando ele chega à minha boca, eu o beijo antes que a hesitação tome
conta de mim, mas recuo um pouco.
– Espera.
– Ah. Menstruada? – ele pergunta, com as sobrancelhas levantadas.
– O quê? – pergunto, e depois balanço a cabeça. – Não, eu só queria te
contar sobre ontem à noite.
– Sobre ontem à noite? – ele repete, confuso.
– Sobre o meu jantar com Elliot.
As sobrancelhas escuras de Sean mostram seu desapontamento.
– Não pode esperar até depois…? – Ele se pressiona contra mim,
mostrando a que se refere.
– Hum... – Poder até pode, mas a verdade é que provavelmente não
deveria.
Elliot e eu nem nos tocamos de novo depois que o abracei na chegada.
Não é que tenha acontecido alguma coisa. Mas sinto como se estivesse
mentindo ao não contar a Sean quem Elliot é. Ou melhor, quem ele foi.
– Não é nada ruim – digo, mas Sean rola para longe de mim de todo modo.
– Eu só… Um dos desafios que você e eu enfrentamos é que temos toda uma
bagagem emocional que não contamos um ao outro devido ao pouco tempo
em que estamos juntos.
Ele concorda com isso com um aceno.
– Eu te disse que ia jantar com um velho amigo ontem, e isso é verdade.
– Ok?
– Mas, na verdade, ele está mais para o meu velho… tudo.
Deparo-me com os olhos de Sean e me derreto um pouco. Foram a
primeira coisa que notei nele porque eles são tão profundos, tão expressivos
e reluzentes. Os olhos dele são incríveis: castanhos com cílios longos e o
modo como se erguem nos cantos externos facilmente os torna os olhos mais
cheios de flerte que já vi. Agora, porém, estão mais reservados do que
alegres.
Encolho os ombros, corrigindo.
– Ele foi o meu primeiro tudo.
– O seu primeiro…
– Meu primeiro verdadeiro amigo, meu primeiro amor, meu primeiro…
– Sexo – ele termina por mim.
– É complicado.
– Complicado como? – ele pergunta com suavidade. – Todos têm um ex.
Ele… te machucou?
Nego rapidamente.
– Sabe, depois que a minha mãe morreu, papai foi tudo para mim, mas ele
ainda não sabia como cuidar de mim do jeito que ela fazia. E, então, conheci
o Elliot e foi como se… – Procuro as palavras certas. – Eu tinha alguém da
minha idade que me entendia de verdade e que me via exatamente do jeito
que eu era. Ele foi o meu melhor amigo e o primeiro namorado em uma só
pessoa.
A expressão de Sean se suaviza.
– Fico feliz com isso, querida.
– Brigamos uma noite e… – Percebo que vou por um fim à conversa
prematuramente. Não tenho certeza se consigo concluir a história. – Precisei
de um tempo para pensar e “algum tempo” acabou virando onze anos.
Os olhos de Sean se arregalam um pouco.
– Uau.
– Nos reencontramos por acaso alguns dias atrás.
– Entendo. E é primeira vez que conversam desde então.
Engulo em seco.
– Isso mesmo.
– Então vocês têm bagagem para desfazer – ele diz, sorrindo de leve.
Não quero mentir para ele.
– Sim.
Além da morte dos meus pais, nada foi mais importante na minha vida do
que Elliot.
– Você ainda o ama?
Pisco e desvio o olhar.
– Não sei.
Com o dedo, Sean vira meu rosto para ele de novo.
– Não me importo se você o amar, Mace. Mesmo se achar que sempre o
amará. Mas se isso a faz repensar o que estamos fazendo, então precisamos
conversar a respeito.
– Não faz, de verdade. É que revê-lo foi intenso.
– Eu entendo – ele diz baixinho. – Faz com que coisas antigas ressurjam.
Tenho certeza de que se eu voltasse a ver Ashley, teria o mesmo problema.
Raiva, mágoa e, sim, o amor que ainda sinto por ela. Nunca deixei de amar.
Só tive que seguir em frente quando ela foi embora.
É a descrição perfeita. Nunca deixei de amar. Só tive que seguir em
frente.
Ele me beija, uma vez.
– Não temos mais 18 anos, linda. Não estamos entrando nisso sem alguns
amassados na armadura. Não espero que tenha lugar no seu coração apenas
para mim.
Sinto-me tão grata por ele agora que quase quero chorar.
– Bem, tente fazer a amizade dar certo. Faça o que tiver que fazer – ele
diz, e volta a se acomodar sobre mim, o corpo pressionando o meu, duro e
pronto. – Mas, agora, volte pra mim.
Passo os braços ao seu redor e pressiono o rosto em seu pescoço, mas
quando ele se move sobre mim, e depois dentro de mim, tenho um breve
vislumbre de honestidade. É bom – o sexo sempre foi bom –, mas não está
certo.
Não dispara alarmes na minha cabeça, claro, mas tampouco eriça minha
pele. Não faz meu peito doer deliciosamente a ponto de me deixar sem ar.
Não me sinto apressada, nem desesperada, nem quente demais dentro da
minha própria pele de tanto desejo que sinto por ele. E no pequeno arquejo
que Sean interpreta como sendo de prazer preocupo-me que Elliot esteja
certo e eu errada e – como sempre – ele está cuidando dos nossos corações
enquanto eu me viro por aí, tentando encontrar algum sentido nas coisas.
Sinto meus pensamentos dando voltas, e eles sempre voltam ao mesmo
ponto: como Elliot foi para casa depois de me ver e terminou com Rachel.
Ele só precisou me ver para ter certeza, enquanto eu mal consigo confiar
na única sensação que tenho.
ANTES

QUARTA-FEIRA, 26 DE NOVEMBRO
CATORZE ANOS ATRÁS

Papai empurrou o carrinho pelo corredor do supermercado, parando


diante do balcão congelador cheio de perus imensos.
Olhamos para baixo ao mesmo tempo. Embora papai e eu tenhamos
mantido muitas tradições desde a morte de mamãe, nunca tivemos um Dia de
Ação de Graças sozinhos.
Mas, pensando bem, tampouco o tivemos com ela. Com dois pais
imigrantes de primeira geração do século XXI, o Dia de Ação de Graças
nunca foi um feriado com o qual nos importamos muito. Mas agora tínhamos
o chalé, e quase uma semana de folga sem ter muito o que fazer além de
cortar lenha e ler diante das chamas. Parecia desperdício, de uma maneira
totalmente ilógica, pelo menos não tentar fazer uma refeição caprichada para
a festividade.
Mas, parados ali, diante da perspectiva de fazer um peru enorme apenas
para dois, cozinhar pareceu, definitivamente, um desperdício ainda maior.
– Estes têm seis quilos – papai disse – no mínimo. – Com uma expressão
de leve desgosto, levantou uma ave do compartimento e a examinou.
– Eles não têm só as… – Gesticulei na direção do açougueiro, para os
peitos dispostos ali.
Papai me encarou, sem entender.
– As o quê?
– Ah, você sabe, as partes menores?
Ele deu uma gargalhada.
– Os peitos?
Gemi, passando na frente dele a fim de pegar um peito de peru com osso
que poderíamos assar em menos de meio dia.
Aparecendo atrás de mim, papai disse:
– Esses parecem ter um tamanho mais decente. – Inclinando-se,
acrescentou com um riso contido: – Peitos de tamanho mais decente.
Mortificada, empurrei-o e fui para a parte de hortifrúti para pegar algumas
batatas. Parada lá, com Alex num sling, estava a mãe de Elliot, a senhora
Dina.
Ela tinha um carrinho repleto de comida, o celular colado à orelha
enquanto conversava com alguém e um bebê adormecido junto ao peito,
enquanto inspecionava cebolas como se dispusesse de todo o tempo do
mundo. Ela dera à luz três meses antes e estava aqui, preparando-se para
cozinhar uma refeição imensa para sua tropa de garotos famintos.
Encarei-a, sentindo um misto estranho de admiração e de derrota. A
senhora Dina fazia as coisas parecerem fáceis; papai e eu mal conseguíamos
descobrir como preparar uma refeição festiva para dois.
Ela olhou para mim e depois voltou a olhar e, talvez pela primeira vez na
minha vida eu me imaginei através dos olhos de outra pessoa: a calça do
uniforme da minha equipe de natação, a blusa de moletom larga da Yale que
papai comprou para mamãe anos atrás e chinelos de dedo. E lá estava eu,
parada diante da imensidão de verduras e legumes, órfã de mãe e
evidentemente com uma tarefa grande demais para mim.
A senhora Dina encerrou a ligação e empurrou o carrinho na minha
direção.
Fitou o meu rosto, depois seus olhos se moveram até meus dedos expostos
e voltaram a subir.
– Você e o seu pai planejam cozinhar amanhã?
Lancei-lhe o que esperei ser um sorriso confiante.
– Vamos tentar.
Ela se retraiu, olhando para além de mim e fingindo se inquietar.
– Macy – disse ela, inclinando-se para mim de maneira conspiratória –,
tenho comida mais que suficiente e com a pequena Alex aqui… seria uma
imensa ajuda se você e o seu pai pudessem ir para a nossa casa. Se você
puder me ajudar a descascar as batatas e fazer os pãezinhos, será minha
salvadora.
Nem em um milhão de anos eu recusaria.
O aroma era de massa de torta assada, manteiga derretida e de peru o dia
inteiro – até mesmo na nossa casa. O vento trazia pela nossa janela as
fragrâncias dos pratos em preparo, e meu estômago se torcia.
A senhora Dina nos disse para irmos às três, e eu não podia contar com
Elliot para me entreter até lá porque, sem dúvida, ele fora posto para
trabalhar.
Ouvi o cortador de grama do lado de fora e o aspirador de pó lá dentro. E,
claro, ouvi os bramidos de futebol vindos da televisão da sala de estar,
emanando da casa deles para a nossa. Quando chegou a hora de irmos para
lá, levando flores e uma garrafa de vinho uns dois minutos antes das três, eu
estava quase louca de antecipação.
Papai ganhava bem, e a nossa casa em Berkeley tinha todos os bens
materiais que alguém podia precisar ou querer. Mas jamais poderíamos
comprar o caos e a agitação. Tínhamos falta de barulho, e de discórdia, e da
alegria da louça cheia demais porque todos insistiam que seus pratos
favoritos fossem feitos.
Logo após passarmos pela porta, fomos atraídos tal como metal por um
ímã até a loucura. George e Andreas gritavam para a televisão. Numa
cadeira inclinada num dos cantos, o senhor Nick fazia cócegas com a boca
na barriguinha de Alex. Nick Jr. lustrava a mesa da sala de jantar enquanto a
senhora Dina passava manteiga derretida para dourar os pãezinhos antes de
colocá-los no forno, e Elliot descascava as batatas.
Corri para perto dele, esticando a mão para pegar o descascador da mão
dele.
– Eu disse para a sua mãe que descascaria as batatas!
Ele piscou para mim em surpresa, empurrando os óculos para cima com
um dedo coberto por casca de batata. Eu sabia que ajudá-la com o jantar era
apenas uma desculpa – afinal, senti cheiro de comida o dia inteiro –, mas por
qualquer motivo que fosse, eu era incapaz de desistir.
A questão era que, aos catorze anos, eu já era grande o bastante para saber
que muitas das pessoas que moravam em Healdsburg por muitos anos não
seriam capazes de se sustentar em Berkeley. Embora Healdsburg tenha sido
tomada pelo dinheiro da região da Baía e pelo desvario com o vinho nos
anos 1990, muitas pessoas que moravam aqui ainda recebiam por hora
trabalhada e viviam em casas mais velhas e levemente úmidas.
A riqueza dali era o que havia dentro delas: a família Petropoulos, o
acolhimento e a sabedoria – transmitidas ao longo das gerações – de como
cozinhar uma refeição como aquela para uma família daquele tamanho.
Observei a senhora Dina dar a Elliot outra função – lavar e cortar alface
para a salada –, que ele fez sem reclamar e sem instruções.
Nesse meio-tempo, ataquei as batatas até a senhora Dina se aproximar e
demonstrar como descascá-las mais lentamente, em tiras longas e finas.
– Belo vestido – Elliot disse assim que ela se afastou, a voz entremeada
com um leve sarcasmo.
Olhei para o blusão de brim desmazelado que vestia.
– Obrigada. Era da minha mãe.
Os olhos dele se arregalaram.
– Ai, meu Deus, Macy, eu sint…
Joguei uma lasca de casca na direção dele.
– Brincadeira. Papai comprou isto pra mim. Achei que precisaria usá-lo
um dia ou outro.
Ele pareceu escandalizado, depois sorriu.
– Você é maligna – ele sibilou.
– Se cutuca o touro – respondi, mostrando o indicador e o mindinho –,
acaba chifrado.
Senti que ele me observava e tive esperanças de que visse o meu sorriso.
Mamãe sempre teve um senso de humor mordaz.
Papai ficou assistindo ao jogo dos Niners com interesse fingido com o
senhor Nick e os rapazes até a senhora Dina chamar para o jantar.
Houve um ritual assim que nos sentamos à mesa, uma cena coreografada
que papai e eu seguimos: todos se sentaram e deram as mãos. O senhor Nick
deu graças e depois todos ao redor da mesa contaram algo pelo qual eram
gratos naquele ano.
George agradecia por ter entrado na equipe de atletismo da faculdade.
A senhora Dina estava grata pela filha saudável (que dormia
tranquilamente na cadeirinha de descanso perto da mesa).
Nick Jr. estava grato por estar quase acabando o primeiro semestre da
faculdade, porque, puxa, como era difícil.
Papai agradeceu o bom ano nos negócios e a filha maravilhosa.
Andreas se sentia grato pela namorada, Amie.
O senhor Nick era grato pelos seus meninos e por suas – agora duas –
meninas. Piscou para a esposa.
Elliot agradeceu pela família Sorensen, e especialmente por Macy, de
quem sentia saudades quando ela voltava para casa.
Sentada, olhei para ele enquanto eu tentava encontrar algo para dizer, algo
tão bom quanto aquilo.
Concentrei-me num ponto na mesa à medida que falava, minhas palavras
tremularam.
– Sou grata porque o ensino médio ainda não está tão ruim. Sou grata por
não ter o senhor Syne como professor de matemática. – Olhei para Elliot. –
Mas, mais do que tudo, sou grata por termos comprado esta casa, e por eu ter
conseguido fazer amizade com alguém que não faz com que eu me sinta
estranha por estar triste em relação à minha mãe, ou por querer ficar calada,
e sempre terá me explicar as coisas duas vezes por ser tão mais inteligente
do que eu. Sou grata porque a família dele é tão legal e porque mãe dele que
faz jantares tão deliciosos, e porque papai e eu não tivemos que tentar assar
um peru por conta própria.
A mesa silenciou, e eu ouvi a senhora Dina engolir algumas vezes antes de
dizer com alegria:
– Perfeito! Vamos comer!
E a rotina se dissolveu quando o frenesi tomou conta, com quatro rapazes
adolescentes mergulhando na comida. Pãezinhos foram passados adiante,
peru e molho foram servidos no meu prato, e eu saboreei cada garfada.
Não era tão bom quanto a comida do dia a dia de mamãe, e mamãe estava
perdendo algo que teria absolutamente adorado – um cômodo tomado por
uma família barulhenta –, mas aquele foi o melhor Dia de Ação de Graças
que eu já havia tido. Não senti culpa por estar sentindo isso, porque mamãe
quereria que eu tivesse mais e melhor, sempre.
De volta em casa, papai me levou até o andar de cima, ficando atrás de
mim escovando meus cabelos como costumava fazer enquanto eu escovava
os dentes.
– Desculpe se fiquei muito calado hoje – ele disse com hesitação.
Deparei-me com os olhos dele através do espelho.
– Eu gosto do seu tipo de silêncio. O seu coração não é silencioso.
Ele se curvou para baixo, pressionou o rosto na minha têmpora e sorriu
para mim pelo espelho.
– Você é uma garota incrível, Macy Lea.
HOJE

SEXTA-FEIRA, 13 DE OUTUBRO

Milagre maior do que uma noite inteira de sono era a perspectiva de um


dia inteiro de folga num fim de semana. Estar livre num sábado era o mesmo
que ter dez anos de idade com uma nota de vinte dólares na mão dentro de
uma loja de doces. Eu nem sabia por onde começar.
Bem, isso não era bem verdade. Eu sabia que não queria ficar um segundo
daquele dia dentro de casa. As instalações do Mission Bay Infantil da UCSF
eram tomadas de janelas, mas quando você é residente da pediatria, não nota
nada além da criança à sua frente, ou o seu chefe te dizendo aonde você
precisa ir em seguida.
Na sexta à tarde, num breve intervalo entre as visitas, eu lembro Sean do
nosso plano de fazer um piquenique no parque Golden Gate. Ligo para
Sabrina, confirmando se ela, Dave e Viv podem ir. Convido uns dois velhos
amigos do antigo bairro em Berkeley que ainda moram por perto – Nikki e
Danny. E depois volto a trabalhar com uma sensação zunindo nos meus
ouvidos, estática nos meus pensamentos. Não posso deixar aquilo sem
conclusão o dia inteiro.
Depois de entregar os últimos exames de sangue aos meus atuais pais
prediletos, cuja filha está internada na oncologia, corro para a sala de
descanso, me enfiando atrás da fileira de armários para pegar meu celular e
mandar uma mensagem para Elliot.

Eu e mais umas pessoas vamos ao parque Golden


Gate para um piquenique amanhã. Quer ir com a
gente?
Que horas vocês estavam pensando? Eu pretendia ir
até H-burg à tarde, mas talvez vc consiga me
convencer.

Vamos nos encontrar às onze do lado de fora do


jardim botânico. Tudo bem se você não puder ir, sei
que etá em cima da hora. São só alguns dos meus
amigos e Sean etc.

Pode contar comigo. Vou adorar conhecer todo


mundo.
ANTES

QUARTA-FEIRA, 31 DE DEZEMBRO
CATORZE ANOS ATRÁS

– Garotos não prestam.


O vento fustigava ao nosso redor onde estávamos mais uma vez de
cócoras na praia de Goat Rock, esperando o churrasco de salsichas com a
nossa família, flagbol e fogos de artifício de Ano-Novo junto ao oceano.
– Quero saber isso? – Elliot perguntou, sem nem desviar a atenção do
livro que lia.
– Provavelmente não.
Para ser bem justa, eu não nutria sentimentos fortes por nenhum dos
garotos da minha escola, mas parecia – desde que começamos o ensino
médio, quatro meses antes – que nenhum deles tinha qualquer sentimento em
relação a mim. Danny, meu melhor amigo, me contou que os dois amigos
dele, Gabe e Tyler, me achavam bonita, mas, como ele mesmo disse
“interessada demais em livros”.
Eu não tinha saída; todos estavam começando a “sair” com alguém. Eu
nem mesmo beijara um garoto.
Provavelmente acabaria indo ao baile do nono ano com a Nikki.
Elliot relanceou na minha direção.
– Pode me contar por que os garotos não prestam?
– Garotos não querem garotas interessantes – reclamei. – Eles querem
garotas com peitos e que usam roupas vulgares, e que flertam.
Elliot pousou o livro devagar no pedaço de grama ao seu lado.
– Eu não quero isso.
Ignorando-o, prossegui:
– E as garotas querem, sim, os garotos interessantes. Garotas querem
sabichões tímidos que sabem tudo, têm mãos grandes, belos dentes e que
dizem coisas bonitas. – Mordi os lábios para fechá-los. Talvez eu tivesse
revelado demais.
Elliot sorriu radiante para mim, o aparelho já havia finalmente sido
retirado, os dentes estavam perfeitos.
– Você gosta dos meus dentes?
– Você é estranho. – Mudando de assunto, perguntei: – Palavra favorita?
– Cinosura.
– E o que isso quer dizer?
– É o ponto focal de admiração. Além de estrela polar. E você?
Nem tive que pensar.
– Castração.
Elliot se retraiu. Olhou para as próprias mãos no colo, virando-as e
inspecionando-as com atenção.
– Bem, se valer de alguma coisa – ele sussurrou –, Andreas acha que você
é bonita.
– Andreas? – Ouvi o choque na minha voz. Estreitei os olhos e fitei a
praia, onde Andreas e George lutavam, e tentei me imaginar beijando
Andreas. A pele dele era boa, mas o cabelo era bagunçado demais para o
meu gosto e ele era um pouquinho cabeça-oca.
– Ele disse isso? Mas ele está com a Amie.
Elliot fechou a cara, pegando uma pedrinha para jogar nas ondas do mar.
– Eles terminaram. Mas eu disse pra ele que, se ele encostar em você, eu
quebro a cara dele.
Gargalhei alto.
Elliot era racional demais para se ofender com a minha reação: o que
faltava de cérebro em Andreas, ele compensava com músculos potentes.
– Pois é, daí ele me atacou. Nós brigamos. Quebramos o vaso da mamãe,
aquele feio da entrada?
– Não! – Meu pesar foi genuíno, mas, basicamente, estava orgulhosa
porque estiveram brigando por minha causa.
– Ela nos deixou de castigo.
Mordi o lábio, tentando não rir. Em vez disso, me estiquei na areia,
voltando para o meu livro, e me perdi nas palavras, lendo e relendo a mesma
frase: Parecia viajar com ela, arrastando-a na força da canção, de modo
que ela se movia gloriosa em meio às estrelas e, por um momento, ela
também sentiu que as palavras Escuridão e Luz não tinham sentido algum,
e somente aquela melodia era real.
Horas podiam ter passado antes de eu ouvir uma garganta pigarreando
atrás de nós e ver papai aparecer. O corpanzil dele bloqueou o sol, lançando
uma sombra fria onde estávamos deitados.
Só registrei quando ele apareceu que, lentamente, eu deslizara e estava
deitada com a cabeça no estômago de Elliot, naquele nosso pedacinho
reservado de areia. Eu me sentei de pronto, encabulada.
– O que estão fazendo?
– Nada – dissemos em uníssono.
Ouvi de imediato o quanto nossa resposta conjunta nos fez parecer
culpados.
– Mesmo? – papai perguntou.
– Mesmo – respondi, mas ele não estava mais olhando para mim. Ele e
Elliot estavam se comunicando através de algum tipo masculino de código
que incluía contato visual prolongado, pigarreios e provavelmente alguma
forma misteriosa de comunicação direta entre seus cromossomos Y.
– Só estávamos lendo – Elliot disse por fim, a voz ficando mais grossa no
meio da frase. Não sei se esse sinal de masculinidade iminente foi algo
tranquilizador ou condenatório aos olhos do meu pai.
– Sério, pai – eu disse.
Os olhos dele se desviaram para mim.
– Ok. – Finalmente ele pareceu relaxar e se agachou perto de mim. – O
que está lendo?
– Uma dobra no tempo.
– De novo?
– Ele é bom.
Ele sorriu para mim, estendendo a mão para fazer um carinho com o
polegar no meu rosto.
– Está com fome?
– Sim!
Papai assentiu e se levantou, voltando para onde o senhor Nick se
ocupava acendendo o fogo.
Alguns segundos se passaram até Elliot parecer capaz de soltar o ar.
– Sério. Acho que as palmas dele são do tamanho da minha cara inteira.
Imaginei papai segurando o rosto de Elliot e, por algum motivo, a imagem
foi tão cômica que me fez gargalhar.
– O que foi? – Elliot perguntou.
– A imagem disso é engraçada.
– Não se você for eu e ele estiver olhando pra você como se tivesse uma
pá reservada só pra você.
– Ah, para com isso. – Arregalei os olhos para ele.
– Confia em mim, Macy. Conheço bem pais e suas filhas.
– Falando em pai – eu disse, ajeitando a cabeça no estômago dele para
ficar mais confortável –, adivinha o que eu encontrei esta semana?
– O quê?
– Ele tem revistas pornográficas. Um monte.
Elliot não respondeu, mas sem dúvida o senti mudar de posição debaixo
de mim.
– Elas estão num cesto na prateleira superior do canto extremo do closet
dele lá no chalé. Atrás de uma cena da natividade. – Essa última parte de
alguma forma me pareceu importante.
– Isso foi estranhamente específico. – A voz dele vibrou ao longo da
minha cabeça, e os pelos do meu braço se eriçaram.
– Bem, aquele foi um lugar estranhamente específico para colocar algo
assim. Não acha?
– Por que você estava no closet dele? – Elliot perguntou.
– Isso não é relevante, Elliot.
– Isso é precisamente relevante, Mace.
– Como?
Ele colocou um marcador de livro entre as páginas e se sentou para ficar
de frente para mim, obrigando-me a me levantar também.
– Ele é homem. Um homem solteiro. – Elliot usou a ponta do indicador
para empurrar os óculos para cima e sustentou meu olhar com firmeza. – O
quarto é a fortaleza de solidão dele; o closet, a caixa-forte. Foi como se
você tivesse vasculhado a gaveta do criado-mudo dele, ou debaixo do
colchão. – Meus olhos se arregalaram. – O que você esperava encontrar na
prateleira superior do canto extremo do closet dele atrás da cena da
natividade?
– Álbuns de fotos? Recordações queridas de uma juventude perdida?
Suéteres? Coisas de natureza parental? – Fiz uma pausa, lançando-lhe um
sorriso culpado. – Meus presentes de Natal?
Balançando a cabeça, ele voltou para o livro.
– Bisbilhotar sempre acaba mal, Mace. Sempre.
Pensei a respeito. Papai não era de sair muito… Bem, nunca, que eu
soubesse, passando grande parte do seu tempo no trabalho ou comigo. Nunca
parei para pensar nesse tipo de coisa a respeito dele. Encontrei a página
dobrada do meu exemplar de Uma Dobra no Tempo e voltei a me acomodar
no pedaço de grama atrás de mim.
– Isso é… nojento. Só isso.
Elliot gargalhou: uma gargalhada alta, abrupta, seguida por um meneio de
cabeça.
Fitando-o brava, perguntei:
– Você acabou de balançar a cabeça na minha direção?
– Sim. – Ele usou um dedo para marcar a página do livro. – O que é
nojento? O fato de o seu pai ter revistas ou de ele usá-las para…
Num ato reflexo, cobri os ouvidos.
– Não. Não. Não. Juro que se você terminar essa frase eu te chuto no saco,
Elliot Petropoulos. Nem todo mundo faz isso.
Elliot não respondeu, só pegou o livro e voltou a ler.
– Faz? – perguntei fraquinho.
Ele virou a cabeça e olhou para mim.
– Sim. Todo mundo faz.
Fiquei em silêncio por um momento enquanto digeria aquilo.
– Quer dizer… que você também faz isso?
Um rubor foi subindo pela nuca dele devido ao seu constrangimento, mas,
alguns segundos depois, ele assentiu.
– Muito? – perguntei, genuinamente curiosa.
– Imagino que isso dependa da sua definição de “muito”. Sou um cara de
quinze anos com uma imaginação incrível. Acho que isso deve responder à
sua pergunta.
Senti como se tivéssemos descoberto uma porta nova num corredor que
dava para um quarto novo, que continha tudo novo.
– Sobre o que você pensa? Quero dizer, quando faz isso?
Meu coração parecia uma britadeira por trás das costelas.
– Beijos. Toques. Sexo. Partes que eu não tenho e coisas que as pessoas
fazem com elas – acrescentou, remexendo as sobrancelhas. Revirei os olhos.
– Mãos. Cabelos. Pernas. Dragões. Livros. Bocas. Palavras… Lábios… –
As palavras dele foram sumindo e ele enterrou o nariz no livro de novo.
– Uau – comento. – Você mencionou dragões?
Ele deu de ombros, mas não voltou a olhar para mim de novo. Fitei-o com
curiosidade. A menção a livros e palavras e lábios não me passou
despercebida.
– Como já disse – ele murmurou para as páginas. – Tenho uma imaginação
incrível.
HOJE

SÁBADO, 14 DE OUTUBRO

– Muito bem, será que é possível que eu esteja começando a gostar do


meu uniforme? – Emito um gemido.
Sean enfia a cabeça dentro do quarto.
– Qual o problema, linda?
– Nada – respondo, jogando outra camisa na pilha das rejeitadas sobre a
cama. – Eu só… Faz uma eternidade que não vejo essas roupas. E vamos a
um piquenique. Quero ficar bonita e arrumada porque nunca consigo usar
roupas de verdade. Acho que me esqueci de como me vestir.
– Pensei que tivesse se arrumado para o jantar da semana passada com
ele.
– Não estou me referindo apenas a Elliot.
O riso brincalhão de Sean me diz que ele acha que estou tentando me
enganar, e isso me faz rir, mas, na mesma hora, me faz parar para pensar.
Não quero ficar bonita e arrumada para o Elliot, de verdade; ele já me viu
de roupa formal até blusas desajeitadas e sem nada. Talvez seja coisa de
mulher – e explicar isso pode parecer absurdo –, mas quero estar bonita para
as minhas amigas. Mas se Sean acha que estou agonizando quanto ao que
vestir para o Elliot, isso não deveria incomodá-lo, mesmo que só um
pouquinho?
Pelo visto não, porque ele volta a sair, retornando para o cesto de comida
que andou preparando a manhã inteira. Amo o quanto ele adora cozinhar,
ainda mais porque está em proporção direta ao quanto odeio fazer isso.
Eu o ouço murmurar alguma coisa e, em seguida, Phoebe entra, dando um
salto e aterrissando na pilha de roupas no meio do edredom.
– Quando a gente vai pro Jardim Botango?
Planto um beijo na testa dela.
– Botânico. E vamos sair em… – Relanceio para o relógio na mesinha de
cabeceira. – Opa, vinte minutos.
– Gosto do que você está vestindo – ela diz, gesticulando vagamente na
minha direção. – Papai me diz que é perda de tempo quando mudo de roupa
muitas vezes.
Existem momentos em que sinto ser tarefa minha partilhar um pouco de
sabedoria feminista com Phoebs, mas, como de costume, Sean está muito à
minha frente.
Tendo perdido interesse no dilema fashion, ela vira de costas com
dramaticidade.
– Estou com fome.
– Quer que eu vá buscar alguma coisa? De manhãzinha vi que temos
morangos.
Ela enruga o nariz.
– Não, obrigada. Vou pedir pro papai.
Ela se levanta, bem quando Sean a chama do outro cômodo, tendo nos
ouvido:
– Tenho uma banana pra você, Applejack. Todos os morangos já foram
embalados para o piquenique.
E antes que eu consiga mais do tempo dela, Phoebe já está na porta, indo
para o outro quarto. Quando penso a respeito, talvez eu tenha ficado com ela
por meia hora durante toda a última semana. Sempre digo para mim mesma
que ter uma Presença Materna é algo importante para ela, mas, como
acabamos de testemunhar, será que sou isso? E será que ela precisa mesmo?
Eu meio que fico pensando se Sean murmurou para que ela viesse até aqui
como um lembrete de que precisa me fazer sentir bem recebida, e para ela
me dar um olá.
Deus, estou sendo ridícula. Mas, verdade, Sean e Phoebe são um pequeno
conjunto autossuficiente de duas pessoas. Nunca senti isso com o meu pai.
Nós nos amávamos, claro, mas sem mamãe nós dois meio que ficamos
perdidos, com os braços estendidos enquanto tentávamos chegar ao fim de
cada dia.
Pela milionésima vez pensei em Ashley, e no tipo de esposa que ela deve
ter sido para Sean, na época em que ele era o artista novato em São
Francisco, quando ainda era apenas um artista faminto, casado com uma
mulher a caminho do estrelato dos MBAs de finanças. Sei que Phoebe
apareceu antes de eles terem planejado ter filhos, e quando Ashley ainda
galgava posições em sua carreira. Será que ela ficava em casa? Ou Sean
criou Phoebe, com a mão na massa a cada segundo até ela começar a
frequentar a escola, do modo como a minha mãe me criou?
Como teria sido a minha vida se o meu pai tivesse ficado em casa um
pouco mais? Como teria sido diferente se ele tivesse morrido quando eu
tinha dez anos, e não a minha mãe?
Sinto-me nauseada com esse pensamento, como se tivesse acabado de
desejar uma realidade alternativa que mataria o meu pai primeiro. Cheia de
culpa, digo um “não tive a intenção” baixinho para o ar ao meu redor,
querendo retirar qualquer coisa ruim que eu tivesse acabado de lançar.
Embora ele também já não esteja mais aqui.
Sean e Phoebe se entretêm com um jogo de adivinhação durante o curto
trajeto até o parque. Sabrina e Dave estão esperando junto a Viv em uma
espécie de carrinho de bebê complicado quando chegamos. Sean, Dave e as
meninas entram no parque a fim de encontrar um lugar para ficarmos,
enquanto Sabrina espera pelos outros comigo, mais perto do estacionamento.
Observo os dois homens se afastando, admirando-os por trás.
– Esses são dois homens muito bonitos – comento e me viro para
descobrir que Sabrina me observa atentamente. – O que foi?
– Como você está? – ela pergunta. – Está sexy hoje.
Baixo o olhar para a roupa que acabei escolhendo vestir naquele
inesperado dia quente para a época do ano: camiseta regata branca, jeans
bonitinhos meio rasgados e um colar dourado curto e mais grosso. Prendi os
cabelos em um coque intencionalmente bagunçado, e de repente fico insegura
se meu estilo não está muito forçado – eu sabia que aquele colar estava
demais. Sabrina está usando uma bermuda surrada e camisa com abertura
frontal para amamentação.
– Caprichei demais? Sempre me preocupo de ter me esquecido de como
devo me vestir.
– Nervosa?
Balanço a cabeça.
– Animada.
– Eu também. Nunca o vi.
– O que eu quis dizer é que estou animada por ter um dia de folga, sua
danadinha. Mas já que tocou no assunto, você também nunca viu a Nikki nem
o Danny – eu a lembro.
Sabrina gargalha, aproximando-se para passar um braço ao redor dos
meus ombros.
– Sei que você os conhece desde criancinha, mas acho que nós duas
sabemos quem atiça a minha curiosidade.
Olho para trás de nós, para onde Sean e Dave desapareceram das nossas
vistas.
– Sean não parece nada preocupado com esse lance do Elliot.
– Isso não é bom?
Levanto os ombros.
– Claro. Mas ainda me sinto culpada com o tanto que penso em Elliot e no
passado, depois quando falo com Sean a respeito disso, ele fica todo “tudo
bem, linda, não tem problema”. Mas talvez seja porque eu não estou sendo
totalmente franca em relação ao que eu sinto ao ver Elliot? Mas –
acrescento, pensando em voz alta –, Sean sacou logo de cara que eu estava
mais do que apenas reencontrando um velho amigo quando toquei no assunto,
mas nem assim ficou incomodado. Isso é estranho?
Sabrina responde à minha tagarelice com um olhar impotente. Pelo menos
não sou a única confusa.
Gemo.
– Acho que só estou pensando demais.
– Ah, sim, claro. – Ouço o tom da sua voz, a completa falta de convicção,
mas não tenho tempo para perguntar nada a respeito porque vejo Nikki e
Danny vindo na calçada, em nossa direção. Disparando num trote, corro até
eles, lançando meus braços ao redor de Nikki primeiro, depois de Danny.
Embora eu tenha voltado à Baía há uns seis meses, ainda não os
reencontrei, e é maravilhosamente surreal ver como eles mudaram e, mais
ainda, como não mudaram. Conheci Nikki no terceiro ano, quando dividimos
a carteira, e os pais dela evidentemente fizeram um trabalho melhor do que a
maioria ao orientá-la sobre como agir com a amiga que perdera a mãe no
ano seguinte, porque, embora Nikki ainda não soubesse o que dizer, ela
tampouco deixou de tentar. Danny se mudou de Los Angeles para Berkeley
quando estávamos no sexto ano, então ele perdeu boa parte do pior do meu
luto e dos subsequentes tropeços sociais, mas nunca ligou muito para os
dramas, abstraído demais das coisas, de todo modo.
E para olhos que não a viam há quase sete anos, Nikki está maravilhosa.
Nós duas temos sangue sul-americano nas veias, mas enquanto eu herdei a
baixa estatura da minha mãe e a pele mais morena em detrimento à altura e à
pele clara de papai, Nikki tem a pele clara e olhos verdes, e sempre teve o
corpo naturalmente curvilíneo. Agora ela se parece com a capitã de alguma
equipe esportiva de alta octanagem.
Em contraste, Danny se parece com qualquer outro cara de 28 anos
morando em Berkeley: levemente abaixo do peso, sorridente e não tão
limpinho.
Estávamos começando a colocar a conversa em dia – no fim, Nikki está
treinando a equipe feminina de basquete na escola Berkeley High, Danny é
um programador que trabalha em casa – quando minha atenção é capturada
para cima do ombro de Sabrina.
Vejo uma figura saindo de um Honda Civic azul bem rodado, pegar uma
blusa no banco de trás e dar suas longas passadas ritmadas na nossa direção.
Sei que ele me viu, e fico me perguntando se as pernas dele ficam tão moles
quanto as minhas quando o vejo.
– Elliot está aqui – digo, percebendo o leve tremor nas minhas palavras ,
e que já era tarde para contê-las.
– Lá vamos nós – Sabrina cantarola para si mesma, e não consigo desviar
os olhos por tempo bastante para encará-la brava.
– Elliot-Elliot? – Nikki pergunta de olhos arregalados. – O Elliot
misterioso?
Danny se vira e olha.
– Quem?
– Ai, meu Deus – Nikki sussurra. – Estou tão animada agora.
– Eu também! – Sabrina bate palmas, e eu percebo que Elliot está em
frente a uma parede de mulheres (e Danny), todos esperando pela chegada
dele com sorrisos gigantescos.
– Elliot é o namorado da Macy? – Danny pergunta pelo canto da boca,
mas depois se vira para Sabrina (dentre todas as pessoas) e acrescenta: –
Não, espera, esse é o cara da cidade onde ela passava as férias.
– Elliot foi namorado dela – Sabrina confirma num sussurro deliciado e
escandalizado.
– Por uns dez minutos – eu a lembro.
– Por uns cinco anos – ela me corrige. – Levando-se em conta que você
só tem 28, isso é um período bem considerável da sua vida amorosa.
Gemo, perguntando-me pela primeira vez se toda essa situação não é uma
péssima ideia.
Sabrina a esta altura viu Sean três vezes, e por mais que insista que gosta
dele, ela o considera “estranhamente superficial para um artista” e diz que
ele “não emana vibrações acolhedoras”. Não ajuda nada o fato de ela ter
conhecido Dave no primeiro ano na Tufts e de eles terem namorado por sete
anos antes de se casarem, portanto um namoro de dois meses pré-noivado é
algo inconcebível para ela. Faz com que seus alarmes internos disparem.
Antes de Sean, tive poucos relacionamentos, mas, como Sabrina sempre
me lembra, eu era “aquela amiga chata que sempre encontrava defeito nas
pessoas”. Ela não está errada. Recapitulando: Julian era estranhamente
apegado à sua guitarra. Ashton beijava muito mal, e não importava o quanto
ele fosse adorável e engraçado, era impossível relevar isso. Jaden tinha
problemas com a bebida. Matt festejava demais, e Rob era emotivo demais.
Depois de encontrar Sean pela primeira vez, Sabrina me perguntou o que
eu achava que encontraria de errado nele. Mas, claro, por estar no
relacionamento há uns dois meses e mergulhada no estágio da paixão, minha
resposta foi um meio ébrio “Nada!”.
Mas, no espaço particular dos meus pensamentos, não posso culpá-la de
verdade por pensar que Sean não é muito afetuoso. Ele é maravilhoso em
situações sociais, mas eu sei que ele tende a se manter afastado. Ele
responde perguntas usando o mínimo de palavras possível, mostra interesse
limitado quanto aos meus amigos, permite que conversas emocionais durem
por três minutos antes de mudar de assunto e, externamente, não é muito
afetuoso com ninguém a não ser Phoebe.
Mas sei lá. Existe um elemento de conforto nessa reserva. Faz sentido
para mim porque, por mais que eu permita a entrada de Elliot no meu espaço
emotivo mental, nunca fui capaz de deixar ninguém mais entrar depois disso.
Era muito difícil. Talvez seja assim com Sean em relação a Ashley;
estávamos quebrados do mesmo modo. No espectro de homens evoluídos,
Sean e Elliot não poderiam ser mais diferentes.
Eu preciso de um Sean na minha vida.
Eu preciso de um Elliot assim como preciso de um buraco na cabeça.
Elliot se aproxima com um sorriso que espelha os nossos, olhando para
cada um de nós por vez.
– Presumo que esse seja o comitê de boas-vindas?
Sabrina dá um passo à frente com a mão estendida. Suas palavras saem
arfantes e agudas:
– Sou a Sabrina. Fui colega de quarto da Macy no bacharelado, e quis te
conhecer há um tempããão.
Ele dispara a rir, olhando para mim com as sobrancelhas erguidas.
Apoio uma mão no ombro dela e sussurro de maneira fingida:
– Menos, menos.
Elliot opta por abraçá-la em vez de apertar sua mão. Sabrina é bastante
alta, mas Elliot a apequena, envolvendo-a com braços surpreendentemente
musculosos, bronzeados e tonificados debaixo das mangas da camiseta preta.
Ele encosta a cabeça perto da dela enquanto se abraçam, e eu percebo que,
com esse movimento, Elliot acabou ganhando o afeto de Sabrina por toda a
eternidade. Ninguém adora um abraço mais do que ela.
– Bem – ele diz ao se afastar sorrindo para ela –, que bom finalmente
conhecer você.
Sabrina parece que vai desmaiar de alegria. Virando-se, Elliot olha para
mim na expectativa.
– Nikki – eu digo, apontando. – E este é Danny.
Vejo a reação atravessar a expressão de Elliot, a reação ante os nomes
que ouviu por tanto tempo, mas cujos rostos ele só viu em fotos.
– Ah, certo – ele diz, sorrindo e apertando a mão de Danny primeiro antes
de abraçar Nikki. – Ouvi muitas coisas a respeito de vocês.
Dou risada porque o que ele ouviu foi basicamente todo o drama do
ensino médio. Fico imaginando se ele está pensando o mesmo que eu, sobre
o lado aventureiro de Nikki e as ereções constrangedoras de Danny. Elliot
intercepta meu olhar e o brilho no dele me revela que estou certa. Ele refreia
um sorriso, e eu mordo meu lábio para fazer o mesmo.
– Muito bem – digo –, vamos atrás da comida.
Dave e Sean encontraram um lugar gostoso numa sombra. Phoebe está
desenhando tranquilamente no cobertor, Viv está dormindo no carrinho e os
dois homens estão conversando, mas vejo Dave lançar um olhar com pedido
de resgate para Sabrina quando nos aproximamos. Sinto uma chama de
proteção em relação a Sean se acender dentro de mim, mas a sensação é
afogada pela descarga de adrenalina quando ele se levanta, limpando as
mãos nos jeans e se aproximando de nós. Indo na direção de Elliot.
O que estou fazendo?
Apresento Sean a Nikki e Danny primeiro – os mais fáceis. Danny fica
evidentemente surpreso com que diabos está acontecendo quando me ouve
dizer a palavra noivo, e arregala os olhos para Elliot como se tivesse
perdido algo importante.
Sean se vira para Elliot, e a estática zune ao meu redor. A tensão é
evidente em Elliot também: nos ombros, na testa. Sean está super-relaxado,
como sempre.
– Sean, este é o Elliot – digo, acrescentando inexplicavelmente –, meu
amigo mais antigo.
– Ei! – Nikki exclama, e Danny ecoa o sentimento assim que percebem o
que eu disse.
Dou uma risada.
– Desculpem, não quis dizer isso. É só que…
Elliot vem ao meu resgate, dizendo:
– Prazer em conhecer você, Sean. – Estende a mão para apertar a de Sean
e, Deus, como aquilo é constrangedor. De tantas maneiras.
Sean sorri com tranquilidade e pisca para mim.
– Pensei que eu fosse o seu amigo mais antigo.
Todos riem de acordo com esse comentário, e Sean solta a mão de Elliot,
virando-se para me tascar um beijo enorme na boca. Mas, sério, o que foi
isso? Sean está ou não com ciúme? Isso me pega tão desprevenida que nem
fecho os olhos, que voam na direção do rosto de Elliot. O peito dele se move
para trás com a força da sua inspiração forçada. Ele se recupera
rapidamente, sentando-se ao lado de Phoebe e de Dave, apresentando-se.
Quando Sean se afasta de mim, eu ouço a voz de tenor de Elliot perguntando
a Phoebe o que ela está desenhando.
Saudades tomam conta dos meus pensamentos, levando-me de volta ao
tempo em que Elliot se sentava assim com Alex pequenina, observando com
suavidade, elogiando com tranquilidade. Agora ele pega um lápis de cor e
pergunta se ela pode lhe mostrar como desenhar uma flor como a dela.
– Explosão ovariana – Sabrina sussurra junto ao meu ouvido, fingindo
estar me beijando no rosto.
– Tipo isso – sussurro de volta, enxugando as mãos nos jeans. Estou
suando de verdade.
Desembrulhamos a comida, distribuindo sanduíches, bebidas e frutas para
todos. A conversa fica mais fácil assim que Nikki começa a falar de
basquete, porque Dave também já foi jogador e, graças a Deus pelos dois
estarem ali, porque eles trazem o entusiasmo necessário para qualquer bom
piquenique. Quando Viv acorda, Phoebe tem sua chance de segurá-la no
colo, e a alegria nos olhos dela nos transforma em bobos adoradores cheios
de balbucios. Considerando-se tudo, a tarde segue como um piquenique
deveria: comida, conversa, algumas batalhas não muito importantes contra
insetos e o desconforto parcial de estarmos sentados em mantas sobre a
grama.
Mas algo irreparável aconteceu no meu coração. Esse abalo na minha
convicção começou com o sexo que mal consegui ter com Sean naquela
manhã e continuou rasgando até a metade hoje com os dois ali. Sei que
Sabrina nota os olhares que Elliot e eu parecemos incapazes de parar de
trocar. Talvez ela também note o modo como eu e Sean mal interagimos.
Percebo, finalmente, e numa hora muito estranha, que Elliot está aqui, ele
está aqui. Ele está de volta, diante de mim, acessível. Eu poderia estender a
mão e tocá-lo. Poderia engatinhar até ele e ficar no seu colo, sentir o calor
dos braços dele ao meu redor.
Ele poderia ser meu, ainda.
Por que não tive essa reação quando deveria – duas semanas atrás?
Repenso todos os acontecimentos desde que nos separamos, e a não ser
pela morte de papai, nada mais parece tão significativo assim. Foi como se a
vida estivesse em modo de espera, eu tivesse me movido, fazendo coisas,
mas sem viver de verdade. Isso é horrível ou fantástico? Não faço a mínima
ideia.
A mão de Sabrina cobre a minha em cima da manta, e eu encontro o olhar
dela, imaginando o quanto ela consegue ler no meu rosto.
– Tudo bem por aí? – ela pergunta, e eu assinto, forçando um sorriso e
desejando mais do que tudo poder acreditar nisso.
ANTES

DOZE ANOS ATRÁS

O único motivo pelo qual consegui suportar o primeiro ano e parte do


segundo foi por causa de Elliot – e a boa vontade de papai de passarmos
quase todos os fins de semana em Healdsburg. Os finais de semana lá eram
passados lendo, andando pelo bosque e com uma excursão ocasional até
Santa Rosa. Certa vez, Elliot e eu até nos aventuramos juntos em um show
em Oakland. Elliot era mais família que amigo, mas, ao longo do tempo, ele
também se tornou algo ainda mais pessoal, de algumas maneiras, do que uma
família.
Mas toda essa proximidade significava que toda vez que eu não podia
passar um final de semana no chalé, as semanas no meio pareciam
intermináveis. Nós dois nos saíamos bem na escola, mas eu odiava a conduta
social e política das amizades no ensino médio. Nikki e Danny também se
sentiam assim, e nunca havia drama entre nós – passávamos a hora do
almoço juntos como um grupo de renegados por escolha, sentando num
trecho gramado, observando grande parte do caos se desenrolar.
Mas, depois da escola, Nikki ia ficar com a avó, Danny ia para casa para
andar de skate com os amigos da rua, e eu tocava minha rotina que me
parecia quase ritualística: treino de natação, dever de casa, jantar, banho,
cama. O fato de não fazermos nada juntos fora do horário da escola
dificultava que eu criasse laços emocionais com eles, mas nós parecíamos
estranhamente em paz com isso.
Conforme a primavera do segundo ano foi passando, fiquei muito ciente
de que Elliot estava se tornando… mais. Não só intelectualmente, mas
fisicamente também. Vê-lo somente nos fins de semana e durante os verões
fazia com que eu sentisse estar assistindo ao vídeo da passagem do tempo de
uma árvore em crescimento, de uma flor desabrochando, de um campo
germinando ao longo do ano.
– Palavra favorita. – Ele mudou de posição numa das almofadas, os olhos
se movendo ao longo de mim. Eles, pelo visto, também estavam se
atualizando.
Era 14 de maio, e eu não via Elliot desde o fim de semana do meu décimo
sexto aniversário, em março – o período mais longo sem nos vermos em
quase dois anos. Ele estava… diferente. Maior, de alguma forma, mais
escuro. Seus óculos eram novos, com moldura grossa e preta. O cabelo
também estava mais comprido, a camisa esticada ao longo do peito. Os jeans
resvalavam os tênis pretos. Portanto, jeans novos também.
– Estremecimento – respondi. – Você?
Ele engoliu e respondeu:
– Rigor.
– Uhh, boa. Novidade? – Me acomodei, pegando um livro de Dickinson
que papai havia deixado na minha cama.
– Estou pensando em praticar um esporte mais radical.
Ergui os olhos arregalados para ele.
– Tipo patinação no gelo?
Ele me encarou.
– Não, Macy. Como skateboard.
Ri ante a ênfase que ele pôs na palavra, mas parei quando vi sua
expressão. Num pulso fiquei imaginando se ele queria aprender o esporte
porque sabia que era o que Danny fazia.
– Sabe… melhor só dizer skate.
Ele assentiu com rigidez.
– Tanto faz. Guardei um pouco de dinheiro e estou procurando um
“carrinho” pra comprar.
Refreei o riso. O garoto estava perdido.
– Acho que deve existir um site para gírias ou algo assim.
Ele inclinou a cabeça e estreitou o olhar, aborrecido.
– Desculpa. Fala mais.
– E também – ele disse, fitando a camisa como se ela fosse muito
interessante. – Algumas das minhas aulas do próximo semestre vão ser em
Santa Rosa.
– Como que é? – Arquejei. – Santa Rosa, na faculdade?
Ele assentiu.
– Mesmo estando no colégio? – Eu sabia que Elliot era inteligente, mas
ele ainda estava no segundo ano agora, e já estava qualificado para aulas na
faculdade?
– Pois é. Biologia e… – Ele piscou e desviou o olhar, subitamente
interessado em algo no canto da biblioteca.
– Biologia e o que, Elliot?
– Um pouco de matemática.
– Um pouco de matemática? – Encarei-o com surpresa. Ele já tinha
terminado cálculo avançado? Mentalmente eu encarava com ódio meu
iminente curso de álgebra.
– Então o skate é pra, quem sabe, me ajudar a me misturar com alguns dos
alunos do meu ano.
A vulnerabilidade na voz dele fez com que eu me sentisse uma babaca
descomunal.
– Mas você está com eles todos os dias da escola. Não está?
Ele ficou calado, me observando.
– Depois da aula. Na hora do almoço.
– Espera aí. Você não está tendo aulas com os garotos do seu ano agora?
– Só na primeira aula, para orientação. – Ele engoliu e tentou formar um
sorriso. – Tenho estudado sozinho na escola, mas este semestre vou começar
na Santa Rosa Junior College.
Relanceei para o livro que ele segurava. Franny e Zooey. Estava cheio de
orelhas de tantas vezes que nós dois o lemos.
– Por que não me contou que você era tão especial?
Ele riu baixinho ante a minha pergunta, depois teve um acesso de riso.
– Desculpa – ele disse, recuperando o fôlego. – É que eu não vejo assim.
Encarei-o, tentando descobrir por que ele achava isso tão engraçado.
– E foi só neste semestre – ele explicou. – E, sei lá. – Levantou o olhar e,
subitamente, me pareceu anos mais velho. Senti uma angústia antecipada
quanto às nossas vidas futuras, imaginando se ficaríamos próximos assim
para sempre. A possibilidade de que não seríamos era revoltante para mim.
– Não me pareceu certo incluir isso num e-mail porque parece meio esnobe.
– Bem, estou superorgulhosa de você.
Ele mordeu o lábio num sorriso.
– Super?
– É. Super. – Levantei a cabeça, ajeitando a almofada. – Que mais?
– Tem um novo “parque de skate” – ele fez sinal de aspas com os dedos e
lançou um sorriso de divertimento –, logo depois da Safeway, embora eu
esteja aprendendo no estacionamento atrás da lavanderia. E, vejamos…
Brandon e Christian vão fazer trilha em Yellowstone por um mês no verão
com o pai do Brandon.
Seus dois amigos mais próximos.
– Você vai?
Ele balançou a cabeça.
– Não. O Christian já está falando de quanta bebida vai esconder na mala,
e isso parece que vai dar confusão.
Não insisti no assunto. De todo modo, não conseguia ver Elliot em
Yellowstone.
– Continue.
– Fui a um baile de formatura – murmurou.
O som de pneus freando ecoou no meu cérebro. Assistir a aulas como
calouro em uma faculdade me pareceu pequeno em comparação à magnitude
daquela omissão.
– Um baile? Mas você está no segundo ano.
– Fui com alguém do terceiro.
– Ele era bonito? – Engoli a minha reação mais honesta e amarga.
– Rá-rá. Ela tinha boa aparência. O nome dela é Emma.
Fiz uma careta. Ele a ignorou.
– Boa aparência – repeti. – Que tremendo elogio.
– Foi bem chato. Dança. Ponche. Silêncios constrangedores.
Sorri mostrando os dentes.
– Que pena.
Ele deu de ombros e retribuiu o sorriso. Não foi um sorriso pró-forma,
por educação; foi um sorriso completo, impetuoso. Mas que lentamente foi
desaparecendo à medida que a minha expressão foi azedando. Lembrei-me
do nome Emma, e da pré-adolescente bonitinha de rosto corado da foto
afixada no painel dele.
– Está falando da mesma Emma daquela foto?
Ele deu de ombros de modo casual, mas deliberado.
– Essa mesma. Nos conhecemos desde sempre.
Desde sempre. Meu estômago se revirou.
– Teve sorte? – perguntei, mantendo meu tom de voz leve.
Seus olhos se estreitaram e ele balançou a cabeça.
– Não… não tenho certeza se gosto dela desse jeito.
Não tinha certeza?
– E isso importa pros garotos?
Ele continuou a me encarar, confuso.
– Você a beijou?
O rosto dele ficou corado, e eu tive a minha resposta.
Elliot beijara alguém.
Talvez já tivesse beijado muitos alguéns.
Quero dizer, claro que tinha. Nem todo mundo é exigente e inapropriado
socialmente no jogo do romance como eu era. Elliot logo faria dezessete.
Parecia quase risível que eu tivesse imaginado que ele era tão inocente
quanto eu era. Tenho certeza de que ele já fizera muito mais do que beijar.
Meu sangue pareceu azedar dentro do peito, e eu emiti um único gemido para
o meu colo.
– Por que ficou tão brava de repente? – ele perguntou baixinho.
Continuei de cabeça baixa.
– Não sei.
Afinal, Elliot era só o meu amigo.
Meu amigo de todas as horas.
– Quais as suas novidades? – ele perguntou.
Levantei a cabeça, com os olhos lampejando.
– Tive o meu primeiro orgasmo.
As sobrancelhas dele se ergueram, o rosto ficou rubro, e a boca adotou
uma centena de formatos diferentes antes de ele falar.
– O quê?
– Or. Gas. Mo.
– Você tem… dezesseis. – Ele pareceu perceber, ao mesmo tempo que eu,
que aquela de fato não era uma idade escandalosa.
– Está querendo dizer que é uma vergonha ser tão velha?
Ele emitiu uma risada nervosa.
– Além disso – disse, olhando para ele –, você já teve um. Provavelmente
muitos, pensando em dragões.
O pescoço dele estava muito vermelho quando ele se sentou, deslizando
as mãos entre os joelhos.
– Mas… sozinho.
As palavras dele provocaram uma descarga gélida de alívio em mim, mas
a minha irritação já corria à solta.
– Mas o que você achou que eu estava dizendo?
Os olhos subitamente se fixaram nas minhas mãos.
– Ah. Então ninguém…
– Me tocou? – Levantei o queixo, esforçando-me para não desviar o olhar.
– Não.
– Ah. – Ele engoliu audivelmente. Ao nosso redor, as paredes azuis
pareceram se fechar.
– É uma novidade estranha? – perguntei.
Ele mudou de posição, permanecendo sentado.
– Mais ou menos.
Fiquei envergonhada. O rubor que eu vinha combatendo pareceu explodir
debaixo da minha pele, e eu quis rolar de barriga, pressionar o rosto na
almofada. Senti ciúmes, tentei fazer com que ele também sentisse e,
basicamente, devolvi a honestidade dele com tudo.
– Desculpe.
– Não, é que… – Elliot coçou a sobrancelha, empurrou os óculos pelo
nariz, se recobrando. – Foi bom você tem me contado.
– Você disse que também já fez.
Ele pigarreou, assentiu com gravidade.
– É normal para os rapazes da minha idade.
– Quer dizer que não é normal para as garotas?
Com uma tossidela, ele conseguiu dizer:
– Claro que é. Eu só quis dizer…
– Tô brincando. – Fechei os olhos por um respiro, esforçando-me para
controlar minha loucura. O que havia de errado comigo?
– No que você pensou? – A última palavra saiu meio presa, numa voz
estrangulada.
Encarei-o.
– Pensei “caramba, como isso é maravilhoso”.
Ele gargalhou, mas foi uma risada desajeitada e aguda.
– Não. Antes. Durante.
Dei de ombros.
– Em ser tocada por alguém daquele jeito. Você ainda pensa em dragões?
Os olhos dele dispararam por todas as partes do meu corpo ao mesmo
tempo.
– Não – respondeu, sem rir nem um pouco ante a minha piada. – Penso
em… pulsos e orelhas, em pele e pernas. Partes femininas. Garotas. – As
palavras foram pronunciadas todas juntas, e demorei um pouco para separá-
las.
Garotas? Meu sangue se aqueceu de ciúme.
– Alguma garota em especial?
Ele abriu o livro, procurou uma página. E ficou parado como sempre fazia
quando omitia informações.
– Às vezes.
Esse foi o fim da conversa. Ele não me perguntou nada mais e eu não disse
mais nada.
HOJE

SÁBADO, 14 DE OUTUBRO

Estou ciente de que Elliot e eu estamos numa espécie de aquário social,


com Sabrina e Nikki evidentemente acompanhando quanto tempo passamos
orbitando um ao redor do outro. Então, apesar de me estar complemente
ciente da presença dele, não converso de fato com Elliot durante o
piquenique e isso me deixa louca, imaginando o que ele acha de tudo aquilo.
Ele passa grande parte do tempo conversando com Danny, enquanto Nikki,
Sabrina, Dave e eu colocamos a conversa em dia. Tenho a distinta impressão
de que assim que Sabrina e Dave estiverem sozinhos no carro a caminho de
casa irão explodir em comentários exasperados de quanto Sean É Chato Pra
Caramba.
Baseado nas minhas observações, porém, não posso culpá-los de verdade.
Sean se concentra em Phoebe, mas, além disso, fica mexendo no celular, ou
entra nas conversas apenas para acrescentar seus pensamentos antes de
recuar de novo. Tenho essa percepção estranha e crescente de que nunca o vi
numa situação semelhante antes – sentado com um grupo de amigos meus, em
vez de junto a um grupo de entusiastas da arte ou de benfeitores sedentos
pela atenção de Sean Chen. Parece que, a menos que esteja sendo cortejado,
ele se retrai socialmente. Tenho um medo incômodo de que ele sempre foi
assim, só que isso nunca veio à tona porque nunca passamos tempo com
amigos meus.
Sean tem amigos?
Lá pelas quatro, nuvens pesadas começam a se formar e parece que vai
chover. Porque a Califórnia está virando uma tempestade de areia, limpamos
tudo alegremente, como se fôssemos um punhado de parentes intrometidos
saindo da frente de um casal recém-casados que passará a noite em casa.
Sean leva Phoebe nos ombros na direção do estacionamento, e sigo atrás,
com Sabrina empurrando o carrinho de Viv.
– Você tem que admitir que isso é bem bonitinho – digo a ela, levantando
o queixo na direção do dueto à nossa frente. A pontada protecionista que
senti por ele antes se transformou num estranho sentimento de desespero.
Sean e eu combinamos muito: combinávamos antes de Elliot, e combinamos
agora. Estou à procura de provas. Meu carinho ao vê-lo com Phoebe é uma
prova.
Minha apreciação da bunda dele dentro daqueles jeans é uma prova.
Ela dá uma gargalhada.
– Ele parece um pai incrível.
Suspiro.
– Mensagem recebida.
Mantendo a voz baixa para que os outros não nos ouçam, Sabrina diz:
– Precisamos ter uma conversa séria sobre isto. Uma intervenção.
– Não comece.
– Quando foi que você me viu tentando dissuadi-la de uma relação? – ela
diz de olhos arregalados. – Isso não tem importância?
Abro a boca para responder quando, pelo canto do olho, percebo que
Elliot está a poucos passos atrás de nós, e que provavelmente ouviu cada
palavra.
Lanço um olhar para ele que diz que eu entendo o que estava acontecendo
ali.
– Oi.
Ele estava olhando alguma coisa no celular, mas isso não passa de uma
farsa. Elliot é tão interessado em fuçar um iPhone quanto em enfiar uma
colher no ouvido. Ele nos alcança em duas longas passadas e fica entre nós
duas, passando os braços sobre nossos ombros.
– Senhoras.
– Você ouviu cada palavra que ela falou, não é? – pergunto.
Ele fecha o olho para mim e dá de ombros.
– Ouvi.
– Bisbilhoteiro.
Isso o faz rir.
– Eu estava me aproximando para agradecer por ter me convidado. Eu não
pretendia ouvi-las fofocando sobre Sean. – Numa voz mais baixa, carregada
de significado, ele murmura: – Pode crer.
– A honestidade aqui é um pouco desconcertante – Sabrina intervém. –
Não sei bem se eu devo sair de fininho ou ficar para ouvir mais. – Faz uma
pausa. – Quero ouvir mais.
– Sempre foi assim entre nós – eu lhe digo.
– Verdade – Elliot confirma. – Nunca fomos muito bons em mentir um para
o outro. Quando eu tinha quinze anos, Macy me disse que eu deveria trocar
de desodorante. Ela deu a entender que o meu antigo já não estava mais
cumprindo a sua função.
– Elliot me disse o dia exato em que percebeu que meus peitos estavam
crescendo.
Sabrina nos encara.
– Obriguei Elliot a levar Imodium com a gente quando fomos assistir aos
Backstreet Boys, porque eu estava com problemas intestinais.
– A parte embaraçosa disso – ele intervém – é eu ter ido assistir aos
Backstreet Boys.
– Não – eu o corrijo –, a parte embaraçosa foi quando eu te flagrei
dançando.
Ele reconhece isso remexendo as sobrancelhas de leve.
– Eu sabia me mexer.
Dou uma gargalhada.
– Isso mesmo. Movimentar-se é a única maneira com que podemos
descrever o que você esteve fazendo.
Sabrina dá uma resfolegada e, quando Dave a chama, ela corre para a
frente, mas Elliot me detém com uma mão no meu braço, e recebemos alguns
olhares curiosos quando o resto do grupo nos ultrapassa na direção do
estacionamento. Felizmente, Sean e Phoebe ainda estão à frente.
– Ei. Então… – Elliot enfia as mãos nos bolsos. Os ombros se erguem,
pressionando-lhe o pescoço. Ele ainda é bastante anguloso, e bem alto.
– Ei. Então – repito.
– Obrigado por me convidar hoje. – Ele me dá esse sorriso que não sei
descrever. É um sorriso que diz: “Sei que nos conhecemos desde sempre,
mas ainda significa muito que você tenha me incluído”. Como ele consegue
isso com uma simples curva dos lábios e contato visual, eu jamais saberei.
– Então – eu lhe digo –, acho que deve saber que combinei isto tudo para
poder te convidar e você conhecer os meus amigos. – Só quando digo isso
em voz alta é que percebo que é verdade. É isso o que Elliot provoca em
mim: ele arranca total honestidade das partes emaranhadas do meu cérebro.
Seus olhos se estreitam, as íris aumentam quando as pupilas viram
pontinhos da luz fraca debaixo das nuvens.
– Verdade?
– Por que me segurou? – eu lhe pergunto em vez de responder. Nem sei o
que quero que ele diga. Como me sentirei se ele disser que recuperou o juízo
e percebeu que eu estou certa, que nós só podemos ser amigos? Uma parte
traidora minha deseja não descobrir.
– Queria te perguntar uma coisa.
Meu peito é uma selva; meu coração é uma batida de tambor. Estou
excitada ou aterrorizada?
– Só queria saber quando podemos nos ver de novo – ele diz.
– Ah. – Pisco acima dos ombros dele, na direção dos imponentes
eucaliptos que balançam no céu cada vez mais escuro. – Acho que terei um
tempo livre perto do Dia de Ação de Graças.
Ele assente, e meu coração despenca um pouco. Por que fui dizer isso? O
Dia de Ação de Graças está muito longe.
Pigarreando, ele diz:
– Andreas vai se casar em dezembro…
– Dezembro? – Parece um mês estranho para casar. E também é muito
depois do Dia de Ação de Graças, se é que ele está pensando em me
encontrar só então.
– Na véspera do Ano-Novo, na verdade – ele especifica –, e eu estava
pensando se você gostaria de ir comigo.
Ano-Novo.
Ano-Novo.
Ele está mesmo me perguntando isso.
E, pela expressão dos olhos dele, sei que ele entende o peso dessa data.
Mas, em vez de enfrentar a fera, pergunto:
– Não quer me ver antes de dezembro?
Vejo a excitação atravessar os olhos castanhos dele.
– Claro que quero. – Ele ri. – Estou livre basicamente qualquer dia que
queira sair. Mas, já que é feriado, queria te convidar antes pra saber se você
pode ir.
– Não posso ir como sua acompanhante.
Elliot balança a cabeça.
– Não estou pedindo que vá comigo assim, Macy, enquanto o seu noivo e a
sua futura enteada estão entrando no carro logo ali.
– Então, só… – As palavras me falham. – Ir com você?
– É – ele responde –, pra você ir comigo. Para Healdsburg. – Depois
acrescenta: – Para passar o fim de semana.
Os ombros dele abaixam um pouco, como se a situação fosse tão simples
assim.
Vamos juntos.
Podemos dividir o carro.
Vai ser divertido.
Mas as palavras param entre nós, e eu as ouço num tom diferente quanto
mais demoro a responder.
Venha passar o fim de semana comigo.
Quarenta e oito horas com Elliot.
Como estarão as coisas entre nós daqui a dois meses e meio, quando já
parecem tão confusas agora?
Pisco por cima do ombro dele, onde Sean está prendendo o cinto de
segurança de Phoebe no Prius.
– Todos vão adorar te ver, e eu vou ser o padrinho, então vai ser bom ter
uma amiga lá comigo – ele diz, esforçando-se para afastar a conversa da
beirada do precipício da morte. – Mamãe e papai me perguntaram de você…
Ficaram doidos quando souberam que retomamos o contato.
– Preciso perguntar a Sean quais os planos dele – digo sem graça. – Ele
pode ter alguma exposição ou evento já agendados.
Elliot assente.
– Claro.
– Posso confirmar depois?
– Claro – ele diz com um sorriso contido, e um trovão ruge, chamando a
atenção dele para o céu. Quando volta a olhar para mim, sinto-me tão estável
quanto as nuvens escuras que se avolumam com chuva logo acima. Por um
breve instante, imagino-me abraçando-o. Eu passaria os braços ao redor do
pescoço dele e pressionaria meu rosto ali, inspirando seu cheiro. Ele se
inclinaria mais para baixo, emitindo aquele ínfimo grunhido de alívio que
sempre deixava escapar. Quero isso com tanta intensidade que minha boca se
enche de saliva, e eu me forço a dar um passo para trás.
– É melhor… – digo, apontando por cima do meu ombro.
– Eu sei – ele diz, observando-me com a expressão contraída.
Mais uma trovoada.
– Boa noite, Elliot.
E, por fim, me viro para ir embora.
ANTES

SÁBADO, 19 DE JULHO DOZE ANOS


ATRÁS

Estávamos deitados no telhado achatado em cima da garagem dele,


refestelados ao sol. Era a nossa rotina de férias de verão já há quase duas
semanas: encontro no telhado às dez, almoço por volta do meio-dia, nadar no
rio, de volta às nossas famílias no resto da noite.
Por mais que apreciasse a minha companhia, papai gostava da quietude da
solidão. Ou talvez uma filha adolescente fosse algo exaustivo e alienígena
para ele. De todo modo, ele parecia contente em me deixar ficar fora de casa
e fazer o que bem quisesse com os garotos Petropoulos até que os insetos
começassem a se fazer ouvir e o céu escurecesse.
Andreas estava em um dos meus lados, Elliot do outro. Um irmão jogava
no seu PSP, o outro lia Proust.
– Vocês não podem ser parentes – murmurei, virando a página do meu
livro.
– Ele é um perdedor – Andreas riu. – Não sabe jogar nada.
– Ele é um cabeça-oca – Elliot replicou, e depois sorriu para mim. –
Governado pelo seu…
Uma buzina soou na entrada para carros dele e todos nos sentamos para
ver um Pontiac enferrujado parar num guincho sobre o cascalho.
– Ih – Elliot disse, relanceando para mim e depois levantando num salto. –
Merda. Merda. – Ele deu um meio círculo, agarrando a frente do cabelo,
parecendo em pânico, depois entrou pela janela da sala de estar. Um minuto
depois apareceu no jardim da frente. Uma garota saiu do carro e entregou um
maço de papéis para Elliot.
Ela era de estatura mediana, com cabelos negros num belo corte reto e um
rosto normal e bonito. Vagamente familiar. Esportiva, mas não musculosa.
Com peitos.
Gemi internamente.
Ela disse algo para Elliot, ele assentiu e depois ergueu o olhar para onde
Andreas e eu, sentados, os observávamos.
– Quem é essa? – perguntei a Andreas.
– Uma garota chamada Emma, da escola dele.
– Emma? A Emma do baile? – Meu interior congelou. – Ele gosta dela?
Andreas olhou para o meu rosto e gargalhou.
– Ah, isso é tão bom.
– Não, Andreas, não… – sibilei, frenética.
– Elliot – ele o chamou, ignorando-me. – Traga a sua namorada pra cá pra
conhecer a sua outra namorada!
Fechei os olhos e gemi.
Quando voltei a olhar para baixo, Emma estava me observando, me
inspecionando, com os olhos apertados. Elliot também me observava, com
uma expressão arregalada e aterrorizada, depois olhou para ela.
Acenei. Não ia entrar num joguinho besta.
Ela acenou de volta, dizendo:
– Meu nome é Emma.
– Oi. Sou a Macy.
– Acabou de se mudar para cá?
– Não – respondi –, moramos na casa vizinha nos fins de semana e nas
férias.
– Elliot nunca falou de você.
Elliot olhou para ela chocado e, pela expressão no seu rosto, eu
imaginaria que ele me mencionou muitas vezes. Muito bem. Pelo visto,
Emma iria mesmo jogar para o lado mesquinho.
– Ela é a minha melhor amiga, lembra? – Ouvi Elliot dizer com aspereza.
– Ela frequenta a Berkeley High.
Emma assentiu depois olhou para ele de novo, apoiando a mão no braço
dele e rindo de algo que sussurrou para ele. Ele sorriu, mas era apenas a sua
expressão educada.
Voltei a me deitar na minha coberta, ignorando a náusea crescente no meu
estômago. As palavras dele da semana anterior – quando esteve quase
dormindo ali no telhado, admitindo que se sentia mais ele mesmo comigo do
que com qualquer outra pessoa – ficaram dando voltas na minha cabeça.
Disse a ele que também me sentia assim. Durante o ano escolar, meus dias
úteis eram um borrão, as horas se amalgamavam numa confusão de lições de
casa, aulas de natação e voltando para a cama na esperança de que o que
tivesse entrado no meu cérebro não se esvaísse pelo travesseiro à noite.
Num certo sentido, meu tempo longe dele se parecia com um trabalho, e os
fins de semana e as férias eram como voltar para casa – relaxando, estando
com Elliot e com papai, sendo eu mesma. Mas então, coisas como essa
aconteciam – e eu era lembrada de que grande parte do mundo de Elliot
existia sem mim.
Diversos minutos se passaram antes que eu ouvisse o carro dar partida e
se afastar. Momentos depois, Elliot voltou a subir no telhado pela janela de
trás. Rapidamente enfiei o nariz no livro.
– Que beleza, Ell – Andreas disse.
– Cala a boca.
Os pés dele aparecem no meu campo de visão diante do livro e eu fingi
estar tão envolvida que nem notei.
– Ei – ele disse baixinho –, quer ir comer um lanche?
Continuei a fingir que estava lendo.
– Estou bem.
Ele se ajoelhou perto de mim, se abaixou para prender meu olhar. Eu vi
um pedido de desculpas em todo o seu rosto.
– Vamos lá pra dentro, está muito quente.
Na cozinha, ele pegou um jarro de limonada e dois copos, e começou a
fazer sanduíches. Andreas não nos seguira para dentro e a casa estava fresca,
escura e silenciosa.
– Emma parece adorável – falei com secura, rolando um limão por cima
da bancada.
Ele deu de ombros.
– Foi ela quem você beijou no baile, certo?
Ele olhou para mim e empurrou os óculos por cima do nariz.
– Foi.
– Você ainda a beija?
Voltando a atenção para os sanduíches, ele espalhou pasta de amendoim
no pão e acrescentou geleia antes de responder:
– Não.
– Isso é uma mentira por omissão?
Quando seu olhar se encontrou com o meu de novo, seus olhos estavam
apertados.
– Sim, eu a beijei algumas vezes, mas não a beijo ainda.
As palavras dele atingiram meus ouvidos como tijolos largados de um
avião.
– Você a beijou em outras ocasiões além do baile na primavera?
Ele pigarreou, ficando vermelho-escarlate.
Cretino.
– Sim. – Empurrou os óculos para cima de novo. – Duas outras vezes.
Senti como se tivesse engolido um cubo de gelo denteado; estava com
algo frio e duro alojado no peito.
– Mas ela não é a sua namorada?
Ele balançou calmamente a cabeça.
– Não.
– Você tem uma namorada? – Fiquei pensando por que tive que perguntar
isso. Ele não me contaria? Ou passaria tempo com ela durante o verão em
vez de passá-lo comigo? Ele sempre foi honesto, mas era acessível?
Abaixou a faca e montou os sanduíches antes de olhar para mim com um
sorriso afetado.
– Não, Macy. Estive com você todos os dias durante o verão. Eu não faria
isso se tivesse uma namorada.
Quis jogar o limão na cabeça dele.
– Você me diria se tivesse uma namorada?
Elliot considerou bem a resposta antes de dá-la, com os olhos presos aos
meus.
– Acho que sim. Mas, sendo bem franco, esse é um assunto sobre o qual
nunca sei o quanto partilhar com você.
Apesar de uma parte significante minha entender o que ele queria dizer,
ainda assim odiei aquela resposta.
– Você já teve uma namorada?
Piscando ao desviar o olhar, ele voltou a se concentrar nos sanduíches.
– Não. Tecnicamente, não.
Rolei o limão de novo e ele caiu no chão. Ele se inclinou para pegá-lo e
voltou a entregá-lo para mim.
– Olha só, Macy. Acho que o que estou tentando dizer é que eu não
gostaria de ouvir que você beijou alguém se isso não significasse nada, e
beijar Emma não significou nada para mim. É por isso que não te contei
nada.
– Significou alguma coisa para ela?
O dar de ombros dele disse tudo o que o silêncio omitiu.
– Talvez não seja da minha conta – eu disse –, mas eu quero saber essas
coisas. Eu me sinto estranha por não saber que você tem alguma coisa com
ela.
– Nós não temos uma coisa.
– Você a beijou em três ocasiões diferentes!
Ele aceitou isso com um aceno.
– Você beijou alguém?
– Não.
Ele parou com o sanduíche na metade do caminho até a boca.
– Ninguém?
Balancei a cabeça, mordendo um pedaço e interrompendo o contato
visual.
– Eu teria te contado.
– Mesmo? – ele perguntou.
Concordei com a cabeça, meu rosto em chamas. Eu tinha dezesseis anos e
nunca beijara. O “ninguém?” dele ecoou na minha cabeça, e eu me senti uma
pateta completa.
– E o Donny? Ou… como é mesmo o nome dele?
Olhei para ele propositadamente. Ele sabia o nome do Danny.
– Danny?
Ele sorriu, pego em flagrante.
– É, o Danny.
– Não. Nem mesmo o Danny. Como eu já te disse, eu teria te contado.
Porque você é o meu melhor amigo… cretino.
– Uau.
Ele deu uma mordida gigantesca no sanduíche e ficou me encarando
enquanto mastigava.
Pensei em todos os fins de semana que passamos juntos, em todas as
histórias que ele me contou sobre Christian ser um maníaco ou sobre
Brandon não ter nenhum jogo de cintura com as garotas. Pensei em todas as
novidades que ele tinha sobre os amigos e as namoradas deles, e fiquei
imaginando por que Elliot ficou sempre de bico fechado a respeito das
próprias escapulidas. Isso me incomodou. Fez com que eu sentisse que
talvez não fôssemos tão próximos quanto eu acreditava que éramos.
– Você beijou muitas garotas?
Ele murmurou:
– Umas duas.
Algo dentro de mim se rebelou.
– Fez mais do que beijar?
Ele ficou num tom diferente de vermelho e, por fim, assentiu, dando uma
nova mordida enorme para não ter que elaborar.
Meu queixo caiu até o chão bem lentamente. Esperei até ele terminar de
mastigar e tomar um gole de limonada para perguntar:
– Até onde?
Países se estabeleceram, foram à guerra e se dividiram em países menores
no tempo que Elliot levou para responder.
– Elliot.
– Sem camisa. – Ele coçou a sobrancelha e empurrou os óculos nariz
acima de novo com a ponta do dedo. Demorando-se. Evitando contato
visual. – Hum… e com uma garota, não a Emma, mãos dentro da calça.
– Mesmo? – Faltou pouco para meus olhos saírem das órbitas. – Com
quem?
– Com Emma foi só sem a camisa. O resto foi com outra garota, Jill.
Abaixei meu sanduíche, tendo perdido completamente o apetite. A cozinha
estava no canto mais escuro da casa naquela hora do dia e, de repente, ficou
fria demais. Levantei as mãos para esfregar os braços nus.
– Macy, não fica brava.
– Não estou brava! Por que estaria brava? – Tomei um gole trêmulo da
limonada, tentando me acalmar. – Não sou a sua namorada. Sou só a sua
melhor amiga que, aparentemente, não sabe nada sobre você.
Ele deu um passo ao redor da ilha da cozinha e parou.
– Macy.
– Estou reagindo de um jeito exagerado?
– Não… – ele disse e deu mais um passo para perto de mim. – Eu
definitivamente não gostaria de saber se algum cara colocou a mão dentro
das suas calças.
– Acho que também não gostaria se isso acontecesse e eu nunca tivesse te
contado.
Ele pareceu pensar a respeito.
– Como te disse, isso depende. Isso me incomodaria, sim, então acho que
eu não iria querer saber a menos que significasse mais do que… atração
momentânea.
– É isso o que aconteceu entre você e a Emma? – perguntei. – Atração
momentânea?
Ele assentiu.
– Exato.
– Quando foi a última vez que você ficou com alguém?
Ele suspirou e apoiou o quadril na bancada junto a si.
– Se a situação fosse reversa, você estaria me passando o maior sermão –
observei. – Então, não suspire para mim.
– Emma e eu ficamos em março, depois no baile, em maio, e nos beijamos
no fim de semana depois disso, mas não foi nada. Foi só… – Ele se debateu
um pouco, olhando para o teto. – Se você nunca beijou ninguém, então é
difícil me fazer entender, mas nós estávamos no parque, e ela se aproximou
de mim e meio que aconteceu.
Fiz uma careta para a fala dele, e ele riu pouco à vontade, dando de
ombros.
– Jill é prima do Christian. Ela veio visitar em dezembro e ficamos uma
vez. Não falei com ela desde então.
Desconsiderei Jill com um gesto.
– Quer dizer que você não gosta da Emma?
– Não do que jeito que você imagina.
Desviei o olhar, tirando um minuto para me acalmar. Percebi que seria
dramático, mas o que eu queria mesmo era sair correndo dali, para obrigá-lo
a me seguir e se arrastar, por sei lá, um dia inteiro.
– Fiquei com a Emma porque ela está aqui – ele disse baixinho. – Você
está em Berkeley e nós não estamos juntos e eu estou preso nesta
cidadezinha. Quem mais era pra eu ter beijado?
Algo mudou nesse exato instante, algo que nunca mais poderia ser
retirado.
Quem mais era pra eu ter beijado?
Olhei para as mãos grandes dele e para o pomo de adão. Deixei meus
olhos passearem pelos braços musculosos que costumavam ser tão magros e
finos, pelas pernas longas e definidas por baixo dos jeans rasgados. Olhei
para os botões na frente dos jeans. Pisquei, desviando o olhar para os
armários. Olhei para qualquer lugar que não fossem aqueles botões. Eu
queria tocar naqueles botões, pressionar minha mão neles e, pela primeira
vez, percebi que não queria que ninguém mais tocasse neles.
– Não sei – murmurei.
– Então vem aqui – ele disse no mesmo tom baixo. – Você me beija.
Meus olhos voaram para os dele.
– O quê?
– Me beija.
Pensei que ele estava chamando o meu blefe, mas eu estava irritada com
aquela situação com a Emma e com o jeito com que ele me olhava,
encostado no balcão, me observando. Me aqueci com o jeito com que as
mãos dele pareciam grandes agora, e como o maxilar dele era tão
anguloso… e por conta daqueles botões na frente dos jeans dele.
Dei a volta na ilha e parei na frente dele.
– Tá bom.
Ele me encarou de cima, com um sorriso nos lábios, mas que se endireitou
quando ele percebeu que eu estava falando sério.
Pressionei as mãos no peito dele e me aproximei. Eu estava tão perto que
consegui ouvir cada inspiração e expiração acelerada, consegui ver seu
maxilar pulsar.
Fascinado, ele moveu uma mão para os meus lábios, pressionando dois
dedos ali, encarando. Sem pensar, abri a boca e deixei que o indicador dele
deslizasse para dentro contra meus dentes. Quando ele grunhiu baixinho,
passei a língua pela ponta do dedo. Ele tinha gosto de geleia.
Elliot afastou a mão rápido. Parecia prestes a me devorar: os olhos febris
me procuravam, os lábios estavam entreabertos, uma pulsação latejava no
pescoço. E, porque eu queria beijá-lo, eu o beijei. Fiquei na ponta dos pés,
deslizei as mãos pelos seus cabelos e pressionei a boca contra a dele.
Foi diferente do que eu teria imaginado. Diferente do que – para mim eu
podia admitir – eu tinha imaginado que seria. Foi suave e firme ao mesmo
tempo, e definitivamente mais audaz. Um beijo breve, e mais um, e depois
ele inclinou a cabeça, cobrindo a minha boca com a dele. A língua tracejou
meu lábio inferior, e o instinto deixou que ele entrasse, que me saboreasse.
Acho que provavelmente foi isso o que o fez se descontrolar. Certamente
foi o que me descontrolou. Depois disso, o momento se dissolveu em mim
em apenas sensações, todo o resto sumiu. Todas as imagens proibidas dele,
pele e fantasias, segredos que mantive mesmo de mim, rasgaram minha mente
e eu soube, de alguma maneira, que ele pensava o mesmo que eu: como era
bom estar perto assim… e tudo o mais a que toques assim poderiam levar.
Uma das mãos dele subiu pelas minhas costas até meus cabelos, e foi o
peso daquele toque, eu acho, que me impediu de flutuar para longe do chão.
Mas quando a outra mão dele escorregou pela lateral das minhas costelas e
mais acima, eu recuei.
– Desculpa – ele disse de pronto, instintivamente. – Caramba, Mace. Foi
rápido demais, eu sinto muito.
– Não… É só que… – Hesitei, a boca subitamente cheia de palavras que
eu não queria pensar, muito menos dizer em voz alta. – Fazer isso pode não
significar nada para a Emma – disse, tocando os lábios onde eles tiniam. –
Mas significa tudo para mim.
HOJE

SÁBADO, 14 DE OUTUBRO

Sean larga as chaves no pote junto à porta e tira os sapatos com dois
chutes, gemendo contente.
– Está com fome, Applejack? – ele pergunta a Phoebe, e os dois
desaparecem dentro da cozinha.
Ajeito os sapatos lado a lado na prateleira próxima à porta e penduro
nossas jaquetas nos ganchos. As vozes deles ecoam até o corredor da
entrada; Phoebe está tentando convencer o pai a lhe dar algum bichinho de
estimação, qualquer um – sapo, hamster, pássaro, peixe.
Sinceramente não sei o que estou sentindo. Sean e eu tivemos um começo
meio que de vendaval, e trombamos numa rotina doméstica bem fácil, mas
essa rotina só requer de mim que eu partilhe a cama dele e nossos horários
vão rodando um ao redor do outro como um mecanismo bem lubrificado.
Trouxe o que precisava da casa de Berkeley, mas ela ainda está
basicamente cheia, e completamente desabitada, enquanto eu estou acampada
ali. Sean diz que ama me ter em sua cama. Phoebe sempre parece feliz em
me ver. Mas percebo, ao observá-lo hoje, que eu não o conheço assim tão
bem. Ele e Phoebe têm a coisa deles rolando. Mas, se quero fazer parte
disso, preciso me tornar parte disso.
– Querem que eu prepare o jantar? – pergunto ao entrar na cozinha atrás
deles, e os dois levantam as cabeças que estavam enfiadas na geladeira,
encarando-me como se não entendessem. – Macarrão – digo, fingindo estar
insultada. – Acho que consigo fazer macarrão.
– Tem certeza? – Phoebe continua incerta.
– Claro que sim, bobinha – respondo, fazendo-lhe um carinho na
bochecha.
Ela dá um gritinho e sai correndo da cozinha, e Sean se dirige até o
armário, de onde pega uma caixa de macarrão e um pote de molho pronto
para mim.
– Precisa de ajuda?
– Você pode me fazer companhia. – Indico com a cabeça a bancada onde
tomamos café da manhã, silenciosamente incitando-o a se acomodar numa
cadeira e conversar comigo. Para ajudar a tranquilizar a sensação que me
contrai o peito de que ele e eu jamais daremos certo. Na verdade, nunca
tivemos um tempo livre nos fins de semana, e eu tenho a suspeita de que é
por isso que essencialmente somos desconhecidos fora da cama.
Ele se senta e começa a ler os e-mails no celular enquanto ponho a água
para ferver.
Quero me casar com esse homem; quero que ele queira se casar comigo.
Gosto de estar perto dele.
Gosto da bunda dele nesses jeans.
– Você se divertiu hoje? – pergunto, mantendo o tom leve.
– Claro.
Tela rolando, tela rolando.
O pote de molho se abre com um estalo satisfatório, e o molho bate na
panela que pus no fogão. Sean levanta o olhar ante o som meio esquisito, um
tanto enojado.
– Gostou de conhecer o pessoal? – pergunto. – Eles gostaram muito de
você.
Ele pisca afastando o olhar do fogão e o volta para mim, sorrindo como se
soubesse que estou tentando agradá-lo.
– Claro, linda, eles são ótimos.
O tom dele é tão casual, tão desinteressado, que quero bater na cabeça
dele com o pote vazio. Quero implorar que ele também se esforce. Em vez
disso, enxáguo o pote e o deixo na lata dos recicláveis. A irritação em
relação a ele formiga minha pele como uma coceira.
– Tente não parecer tão entusiasmado.
– O que quer dizer com isso? – ele pergunta, com apenas uma pontada de
defesa da voz. – Foi tudo bem, Mace, mas eles são os seus amigos, não os
meus.
– Bem, quem sabe eles podem se tornar seus amigos também – eu lhe
digo. – Não é isso o que os casais fazem? Misturam suas vidas?
Percebo, nesse momento, que nunca discutimos. Não sei o que é discordar.
Ficamos juntos num total de uma hora despertos, talvez. Seria desastroso
tentar calcular o número de horas que já passamos juntos? Será que nos
importamos o bastante para discutir?
Meu celular treme na bancada, e eu o pego, lendo uma mensagem enviada
por Sabrina.

Oi, lindinha, desculpa se eu fui muito dura com você


sabe o quê.

Percebo que não deveria estar respondendo agora, mas se eu não me


aproveitar desse pequeno respiro, é provável que eu diga algo a Sean de que
possa me arrepender. Inspiro profundamente e digito uma resposta.

Tá tudo bem.

Talvez a gente possa almoçar juntas na semana que


vem? Assim posso levar a Viv pra cidade?

Pra você poder fazer uma intervenção?

Ela responde com uma fila de emojis com corações nos olhos, e percebo
que o pedido de desculpa dela é apenas uma forma de ela me acalmar para
termos mais da mesma conversa. O momento escolhido por ela para isso,
como sempre, é impecável. Deixando o celular com a tela para baixo na
bancada, olho de novo para Sean, determinada a salvar aquilo, fazer planos,
fazer alguma coisa.
– Como vai ser a sua semana? – pergunto.
– Bem tranquila. Talvez eu leve a Phoebs para o Exploratório. Andei
pensando em ir acampar uma ou duas noites, talvez. – Ele dá de ombros,
apontando para o fogão com o queixo. – A água está fervendo.
– Não precisa dar uma de copiloto aqui, senhor – digo, tentando fazer
graça. – Estou no controle.
– Quer que eu faça uma salada ou algo assim? – Ele volta a atenção para a
geladeira, indicando que há coisas ali também.
– Você ficaria mais tranquilo se fizer isso?
– Tanto faz – ele diz, abaixando o olhar de novo para o celular. – É que
não quero só macarrão com molho para o jantar.
Encaro-o por alguns segundos silenciosos. Quero dizer, um “obrigado”
operaria milagres nessa hora.
– Claro que não.
Dito isso, viro-me para pegar alface e outros vegetais da geladeira.
Na cama, mas tarde, Sean se aconchega em mim, murmurando junto ao
meu pescoço:
– Hum, linda, você está tão cheirosa.
Encaro o teto, tentando descobrir o que dizer. Organizei um piquenique no
meu dia de folga, dando-lhe a oportunidade de conhecer os meus amigos, e
ele mal conversou com eles a respeito das vidas, dos trabalhos, dos
interesses deles. Voltamos para casa, e eu me ofereci para cozinhar – ele
comeu sem dizer nada, junto a Phoebe do outro lado da mesa, ajudando-a a
desenhar um unicórnio.
Phoebe o mostrou para mim, toda orgulhosa, depois do jantar, mas, fora
isso, é como se eu nem estivesse ali.
Sempre foi assim, e eu não notei porque estava tão feliz em ser incluída no
dueto deles, e eu estava tão ocupada que nada mais ocupava minha mente?
Foi um alívio tão grande já ter tudo resolvido, e não sentir nada – nada de
culpa, amor, medo ou incerteza – que eu simplesmente permiti que essa
rotina se tornasse o meu futuro?
Ou algo mudou desde que Elliot voltou à cena, e não importa o quanto
Sean negue, isso criou uma fenda na nossa vidinha pacata e sem graça?
Sean abre caminho da clavícula ao pescoço com beijos. Ele está ereto, já
abaixando a cueca boxer, pronto para ação, e nós trocamos quem sabe três
palavras nas últimas duas horas.
– Posso te perguntar uma coisa? – digo.
Ele assente, mas não detém seu progresso até meu queixo, minha boca.
– Qualquer coisa – ele diz, falando em meio a um beijo.
– Está animado em se casar de novo?
Ele desce a mão entre nós, incitando minhas pernas a se abrirem como se
planejasse responder depois de começar a fazer sexo comigo. Mas eu me
desvio e ele suspira, apoiando-se no meu pescoço.
– Claro, linda.
Rejeito isso:
– Claro, linda?
Com um gemido, Sean rola para o meu lado.
– Não é o que você quer? Quero dizer – ele diz –, já fui casado. Sei o que
é maravilhoso nisso, e sei o que não é tão maravilhoso assim. Mas se você
quer…
Eu o interrompo, levantando a mão.
– Você se lembra de como isso aconteceu?
Ele pensa um instante.
– Está falando da noite em que conversamos sobre isso?
Assinto, ainda que “conversamos sobre isso” não seja a melhor descrição.
Depois de uma noite divertida no cinema com Phoebe, nós a colocamos na
cama, depois Sean me levou para o quarto dele, fez de mim uma mulher
satisfeita e depois murmurou: “Phoebe acha que devemos nos casar”, antes
de adormecer entre meus seios.
Ele se lembrou disso na manhã seguinte e perguntou se eu o havia ouvido.
Confusa a princípio, eu disse por fim “eu ouvi”.
– Pela Phoebe – ele dissera. – Se vamos fazer isto, quero fazer direito.
Não tivemos tempo para conversar depois disso porque eu tive que sair
para o hospital, mas as palavras pareceram se repetir na minha cabeça como
uma canção o dia inteiro. Se vamos fazer isto, quero fazer direito.
Em retrospecto, só consigo me lembrar do enorme alívio que senti ante a
perspectiva de ter uma parte da minha vida resolvida com tamanha
conveniência. Não havia nada confuso ou turbulento naquilo. Não havia
picos maníacos com Sean, mas tampouco havia os baixos angustiantes. Sean
era fácil, e ele e Phoebe eram uma família à qual eu podia simplesmente…
me juntar. Mas, olhando para trás e em total contraste com a intensidade das
emoções que sinto perto de Elliot, quase me parece loucura ter voltado para
casa naquele dia mais tarde e ter dito um “sim” entusiasmado para Sean.
Por certo não planejamos muita coisa desde então. Ainda não escolhemos
uma aliança, provavelmente porque ambos percebemos que Phoebe não
parecia tão preocupada assim com a mulher na casa dela, e se talvez aquela
mulher acabasse sendo sua nova mãe.
A única pessoa que perguntava com frequência em que pé estavam os
planos era Sabrina, e ela era a pessoa que disse de bate e pronto que achava
aquela coisa toda um absurdo.
Sean passa uma mão no meu quadril.
– Linda, acho que você precisa tentar descobrir o que quer.
Meus olhos procuram os dele.
– O que eu quero?
– É – ele diz assentindo. – Eu, Elliot, nenhum de nós.
E quem faz isso? Quem se sente completamente tranquilo ante a perda
potencial da noiva a ponto de sugerir que eu reflita, ao mesmo tempo em que,
casualmente, acaricia meu quadril, inferindo que o relacionamento talvez
acabe, mas que o sexo ainda pode continuar?
– Te incomoda que as coisas estejam tão claramente estranhas entre nós?
Sean tira a mão, fechando os olhos com outro longo suspiro.
– Claro que me incomoda. Mas já passei por esses altos e baixos, e
simplesmente não posso deixar que eles me governem. Não tenho como
controlar o que você está sentindo.
Entendo que as palavras dele configuram a reação ideal para a situação na
qual estamos – é a versão bem ajustada de um livro didático desta conversa
difícil –, mas é assim mesmo que o coração humano funciona? Você ordena
que ele se controle e ele se controla?
Fito-o, com o braço em cima dos olhos, e estou tentando encontrar uma
centelha de algo maior, de uma emoção que me consome. Faço o que
costumava fazer com Elliot algumas vezes: imagino Sean se levantando,
saindo pela porta para nunca mais voltar. Com Elliot, meu estômago reagia
como se tivesse levado um soco.
Com Sean, sinto um leve alívio.
Penso na expressão de Elliot quando lhe disse que estava noiva. Penso no
rosto dele agora: no desejo ali, na faísca de sofrimento que vejo em seus
olhos quando nos viramos para direções contrárias. Mesmo onze anos mais
tarde, ele ainda sofre pelo que tivemos.
Estou aterrorizada pelo que estou sentindo; é como se eu tivesse acabado
de despertar. Pensei que não quisesse intensidade, mas, na verdade, estou
desesperada por isso.
Olho para Sean e sinto como se estivesse na cama com alguém que acabei
de conhecer.
Sentando-me, saio da cama.
– Aonde você vai? – ele pergunta.
– Pro sofá.
Ele me segue para fora do quarto.
– Você está brava?
Meu Deus, esta é a mais estranha dentre as situações estranhas do mundo,
e Sean está tão… calmo. Como fui parar nisso?
– Eu só acho que você está certo – respondo. – Talvez eu precise
descobrir o que quero.
ANTES

SÁBADO, 10 DE SETEMBRO DOZE


ANOS ATRÁS

Elliot está esticado no chão, encarando o teto. Fazia um tempo que estava
assim, com seu exemplar gasto de As viagens de Gulliver abandonado na
almofada ao lado dele. Ele parecia tão envolvido em seus pensamentos que
nem notou o modo como meus olhos se moviam pelo corpo dele toda vez que
eu virava uma página.
Eu estava começando a questionar se um dia ele pararia de crescer. Com
quase dezessete anos, ele vestia shorts naquele dia e as pernas compridas
pareciam não ter fim. Também estavam mais peludas do que eu me lembrava.
Não peludas demais, apenas uma penugem castanha sobre a pele bronzeada.
Concluí que era bem másculo. Gostei.
Uma das coisas mais estranhas de se ficar períodos de tempo sem ver
alguém são as mudanças que você perderia se visse a pessoa todos os dias.
Como pelos nas pernas. Ou bíceps. Ou mãos grandes.
Dentre suas novidades, ele disse que a mãe havia lhe perguntado se ele
queria fazer cirurgia a laser de modo a não ter que usar mais óculos. Tentei
visualizá-lo sem óculos, ser capaz de olhar para seus olhos castanho-
esverdeados sem a interferência da armação preta entre nós. Eu adorava os
óculos de Elliot, mas pensar em estar perto dele sem eles provocava coisas
estranhas e quentes dentro do meu estômago. De alguma forma, isso o
deixava nu na minha cabeça.
– O que você quer de presente de Natal? – ele perguntou.
Dei um salto, assustada. Tenho certeza de que estou com a aparência de
alguém apanhada no flagra por encarar o melhor amigo com pensamentos
menos que inocentes. Não voltamos a nos beijar.
Mas eu quis muito.
A pergunta dele ecoou na minha cabeça.
– Natal?
As sobrancelhas negras se uniram, sérias.
– Sim. Natal.
Tentei disfarçar.
– É nisso que estava pensando esse tempo todo?
– Não.
Esperei que ele elaborasse, mas ele não disse mais nada.
– Não sei – respondi. – Algum motivo em especial para você me
perguntar isso em setembro?
Elliot rolou de lado para ficar de frente para mim, a cabeça apoiada numa
mão.
– Eu só quero te dar alguma coisa legal. Algo que você queira.
Abaixei o livro e virei de frente para ele também.
– Você não precisa me dar nada, Ell.
Ele emitiu um som frustrado e se sentou. Empurrando o chão acarpetado,
levantou-se. Eu me estiquei, envolvendo minha mão no pulso dele. O clima
leve e um tanto sensual entre nós aparentemente era só da minha parte.
– Está bravo com alguma coisa?
Elliot e eu não brigávamos, nunca, e a ideia de que algo entre nós não
estava bem mexia com o meu equilíbrio interno, deixando-me imediatamente
ansiosa. Eu sentia a pulsação dele como um tambor ritmado debaixo da pele.
– Você pensa em mim quando volta pra lá? – As palavras dele saem duras,
numa exalação rouca.
Levo um segundo para processar o que ele quer dizer. Quando volto para
casa. Quando estou longe dele.
– Claro que sim.
– Quando?
– O tempo todo. Você é o meu melhor amigo.
– O seu melhor amigo – ele repete.
Meu coração afunda dentro do peito, quase dolorosamente.
– Bem, você é mais do que isso, também. Você é o meu melhor tudo.
– Você me beijou no verão e depois agiu como se nada tivesse acontecido.
Isso me atingiu como uma lâmina nos pulmões. Fechei os olhos e cobri o
rosto com as mãos. Acontecera assim mesmo. Depois de tê-lo beijado na
cozinha, fiz de tudo para que as coisas voltassem ao que eram: leitura no
telhado pela manhã, almoço na sombra, natação no rio. Sentira os olhos dele
em mim, o tremor contido das mãos dele. Lembrei-me de como os lábios
estiveram quentes junto aos meus, o modo como me acendi como um estopim
quando ele gemeu na minha boca.
– Sinto muito – disse.
– Por que você sente muito? – ele perguntou com cuidado, agachando-se
ao meu lado. – Você lamenta porque não gostou de me beijar?
Senti as mãos gelarem e olhei para ele chocada.
– Pareceu que eu não tivesse gostado?
– Não sei – ele disse, dando de ombros, impotente. – Pareceu que você
gostou. Muito. E eu também. Não consigo parar de pensar nisso.
– Mesmo?
– É, Mace, mas daí você… – Ele fez uma careta para mim. – Você ficou
estranha.
Meus pensamentos estavam todos confusos – a lembrança da Emma na
entrada para carros e o pânico que sempre senti ao imaginá-lo saindo de vez
da minha vida.
– Mas é que tem a Emma…
– Emma que se foda – ele estrepitou, com a voz rouca, e isso me
surpreendeu tanto que me apoiei para trás com as mãos, afastando-me dele.
Elliot pareceu se arrepender de pronto e estendeu a mão para afastar uma
mecha de cabelo do meu rosto.
– Sério, Mace. Não tem nada acontecendo entre mim e Emma. É realmente
por esse motivo que você não quer falar sobre o que aconteceu entre nós na
cozinha?
– Acho que também porque tenho medo de estragar isto aqui. – Baixando
o olhar, acrescento: – Nunca tive um namorado, nem nada assim. Você é,
tipo, a única pessoa além do meu pai que é, de fato, importante pra mim, e eu
francamente não sei o que faria se não tivesse você na minha vida.
Quando eu fechava os olhos à noite, a única coisa que via era Elliot. Na
maioria das noites, eu sentia um desespero, querendo ligar pra ele só pra
poder ouvir sua voz. Eu odiava pensar além do fim de semana seguinte,
porque não tinha certeza se nossos planos para o futuro se alinhariam.
Imaginei Elliot indo para Harvard, e eu ficando em algum lugar da
Califórnia, e lentamente nos tornando meros conhecidos. A ideia era
repulsiva.
Quando voltei a fitá-lo nos olhos, notei que as linhas duras ao redor da
boca dele se suavizaram. Ele estava sentado diante de mim, seus joelhos
tocavam nos meus.
– Não vou a parte alguma, Mace. – Segurou minha mão. – Preciso de você
do mesmo jeito que você precisa de mim, ok?
– Ok.
Elliot olhou para a minha mão na dele e moveu as palmas de modo que
ficaram unidas, com os dedos entrelaçados.
– Você pensa em mim? – perguntei. Agora que ele tocara no assunto, a
pergunta me incomodava.
– Às vezes parece que penso em você todos os minutos – ele sussurrou.
Uma bolha de emoção se instalou na região sob minhas costelas, atingindo
um ponto sensível. Observei nossas mãos unidas por bastante tempo antes de
ele voltar a falar.
Eu me esforçava para afastar os olhos do corpo dele.
– Palavra favorita? – ele sussurrou.
– Zíper – respondi sem nem pensar, sentindo, em vez de ver, o sorriso de
resposta dele. – A sua?
– Crepitar.
– Você tem uma namorada? – perguntei, e as palavras pareceram uma
explosão de vento no quarto, uma janela incômoda se abrindo.
Ele levantou o olhar das nossas mãos, com uma carranca.
– Essa é uma pergunta séria?
– Só estou verificando.
Ele soltou da minha mão e voltou para o livro. Não leu; mais parecia que
queria jogá-lo em cima de mim.
Deslizei um pouco para perto dele.
– Não pode ficar surpreso por eu ter perguntado.
Arregalando os olhos para mim, ele baixou o livro.
– Macy. Acabei de te perguntar se você pensava em mim. Perguntei por
que ficou estranha depois que nos beijamos. Acha mesmo que eu tocaria no
assunto se tivesse uma namorada?
Mordi o lábio, me sentindo envergonhada.
– Não.
– Você tem um namorado?
Sorri.
– Uns poucos aqui e acolá.
Ele deu uma risada torta, balançou a cabeça e pegou o livro de novo.
Evidentemente, toda vez que eu me imaginava beijando alguém, era
sempre Elliot. E já tínhamos explorado isso: fantasia perfeita, realidade
sublime, consequências potencialmente desastrosas. Mesmo a ideia de beijá-
lo levava a pensamentos de um rompimento constrangedor e desagradável,
que fazia meu estômago se revirar em espasmos dolorosos.
Ainda assim… eu não conseguia parar de olhar para ele. Quando foi que
ele deixou para trás todo o seu desajeitamento e ficou tão perfeito? O que eu
faria com ele se um dia tivesse oportunidade? O Elliot de quase dezessete
era um estudo de linhas longas e definidas. Eu não teria a mínima noção de
como tocar no corpo dele. Conhecendo-o, ele simplesmente me diria.
Provavelmente me daria um manual sobre a anatomia masculina e me
desenharia alguns diagramas. Enquanto encarasse meus seios.
Bufei. Ele levantou o olhar.
– Por que está me encarando? – ele perguntou.
– Eu não… estava.
Dessa vez quem bufou foi ele, um som de total descrença.
– Ok. – Alongando o pescoço, ele voltou a olhar para o livro. – Ainda
está me encarando.
– Só estava pensando em como funciona – disse.
– Como o que funciona?
– Quando você… – Faço um gesto revelador com a mão. – Os rapazes e
seus… ah, você sabe.
Ele levantou as sobrancelhas, esperando. Notei o momento em que ele
entendeu sobre o que eu falava. As pupilas se dilataram tão rápido que os
olhos dele pareceram negros.
– Está me perguntando como paus funcionam?
– Ell! Não tenho irmãs… Preciso que alguém me conte esse tipo de coisa.
– Você não consegue nem falar sobre me beijar, e agora quer que eu te
conte como é quando eu me masturbo?
Engulo a excitação que se formou na garganta.
– Tudo bem, deixa pra lá.
– Macy – ele disse, com mais gentileza dessa vez –, por que você nunca
sai com ninguém lá na sua cidade?
De olhos arregalados, eu lhe disse o que me parecia meio óbvio:
– Não estou interessada em outros caras.
– Outros caras?
– Quero dizer – disse, tentando corrigir meu deslize –, em ninguém.
– “Outros” sugere que existe um cara – ele levantou uma palma, depois a
outra –, e, então, outros caras. Mas, neste caso, você disse que não está
interessada em nenhum outro. Quer dizer que existe um cara pelo qual se
interessa?
– Pare de ficar debatendo comigo.
Ele deu um sorriso torto.
– Quem é esse um?
Observei-o por uma batida bem demorada. Inspirando bem devagar,
resolvi que não tinha que ser tão difícil.
– Você sabe que comparo qualquer outro garoto com você. Isso não é
nenhuma revelação.
O sorriso dele se ampliou.
– Compara?
– Claro que sim. Como não iria comparar? Lembra? Você é o meu melhor
tudo.
– O seu melhor tudo para quem você pergunta sobre masturbação.
– Exato.
– O seu melhor tudo contra o qual nenhum outro cara se compara e cuja
língua deixou tocar a sua.
– Isso mesmo. – Não gostei muito da direção que aquilo estava tomando.
Aquilo estava levando a confissões, e confissões mudavam as coisas.
Confissões intensificavam sentimentos simplesmente porque recebiam
espaço para respirar. Confissões levavam ao amor, e confissões de amor
eram o mesmo que se prender a um trilho de trem.
– Então, talvez o seu melhor tudo devesse ser o seu namorado.
Encarei-o e ele me encarou.
Falei sem pensar:
– Talvez.
– Talvez – ele concordou num sussurro.
HOJE

QUINTA-FEIRA, 26 DE OUTUBRO

Fiel à sua promessa, Sabrina traz Viv para a cidade para nos encontrarmos
para o almoço. A primeira vez que dá certo para ambas é duas semanas
depois do piquenique. Nesse meio-tempo, eu basicamente me enterrei no
trabalho. É estranho dizer isso, mas só vi Sean acordado em três ocasiões.
Talvez porque eu estivesse dormindo no sofá.
Não sei por que não consigo dar o último passo e fazer as malas e voltar
para Berkeley. Pode ser porque o trajeto de casa para o trabalho seja um
incômodo, ou porque os fantasmas do meu passado ainda moram lá – mamãe
e papai estão em cada partícula suspensa de ar daquela casa.
Só fiquei lá num total de sete dias desde que me mudei para o
bacharelado. Seria o mesmo que entrar numa cápsula do tempo.
O rosto de Sabrina quando entro no Wooly Pig me diz tudo o que preciso
saber quanto ao meu sucesso em esconder os círculos escuros debaixo dos
olhos hoje cedo.
– Jesus Cristo – ela murmura quando me sento na frente dela. – Você
parece um zumbi saído do cemitério.
Rio, pegando a água diante de mim.
– Obrigada.
– Se eu soubesse que era isso o que me esperava, eu teria pedido um
espresso para você.
– Nada de café – digo, erguendo a mão. – Essa tem sido a minha única
fonte de calorias esta semana e preciso de algo mais… encorpado. Um
smoothie ou algo assim.
Sinto a inspeção dela enquanto leio o cardápio.
– Ok, pode me contar o que está acontecendo – ela diz, se inclinando mais
para perto. – Eu a vi há duas semanas, mas hoje você é uma pessoa
totalmente diferente.
– Tenho trabalhado demais. Acho que é a época cheia do ano; as gripes
estão começando. – Sem pensar, relanceio para Viv, adormecida no carrinho
ao lado da mesa. – E as coisas com Sean não andam muito bem.
– É mesmo? – Sabrina pergunta, e eu não olho para seu rosto quando ela
diz isso porque não sei como me sentirei se a expressão dela combinar com
o tom afiado da voz. – O que está acontecendo?
Deparo-me com seus olhos, lançando-lhe a mensagem silenciosa de “fala
sério”.
– Sabrina.
– O que foi?
– Temos mesmo que fazer isto? – Sinto como se estivesse à beira das
lágrimas. – Você sabe o que está acontecendo. – Erguendo uma mão, começo
a contar os acontecimentos nos dedos. – Mal conheço Sean. Ficamos noivos
depois de dois meses. Dou de cara com Elliot no Saul’s e vê-lo é como…
Não sei, um chute na alma. E depois, sabe o quê? Elliot está de volta à minha
vida e: surpresa! Acho que as coisas com Sean talvez não sejam tão
maravilhosas.
Sabrina assente, mas não diz nada.
– Não vai falar nada agora? Pensei que fosse ficar feliz em ouvir isso.
– A questão é que quero que você seja feliz. Quero ver aquela centelha
que vi no outro dia. Quero te ver corar quando alguém só olha pra você.
– Sabrina, eu fui feliz com Sean. Só porque eu sinto mais quando Elliot
está por perto não significa que esses sentimentos sejam mais válidos ou
mais felizes.
– Mesmo? Será que você sabe o que é ser feliz? Fiquei pensando nisso no
outro dia, na verdade. Será que já te vi feliz antes daquele piquenique?
Isso me parece um tremendo safanão vindo de alguém que me conhece há
dez anos.
– Você está brincando.
Ela meneia a cabeça.
– Quando Elliot veio andando na nossa direção… Juro que foi a primeira
vez que te vi sorrir daquele jeito… com o corpo inteiro. E isso me fez
questionar tudo o que sei da sua personalidade antes disso.
– Uau – digo lentamente. Isso me parece… monumental.
– Você acha que é feliz, mas mal está vivendo.
– Sabrina, o problema é a residência e as mais de oitenta horas de
trabalho semanais.
– Não – ela diz com um firme meneio. Recosta-se na cadeira, levando a
caneca de café consigo. –- Você se lembra do primeiro ano?
Sinto uma sombra fria se assomando sobre mim.
– Mais ou menos.
– Desde que te conheci, Elliot foi essa terceira pessoa entre nós, todos os
segundos. Muitas vezes senti que só me contava as coisas que me contava
porque ele não estava lá. – Ela levanta uma mão quando começo a responder
a isso. – Não estou reclamando, a propósito. Eu tinha o Dave e tinha você.
Você tinha a mim… mas também tinha Elliot… nos seus pensamentos, em
cada coisa que você fazia. Quando saía com caras, era como se… saísse
furtivamente e voltasse às escondidas à noite, como se alguém fosse ficar
bravo por você ter ido a um encontro.
Expelindo o ar lentamente, avalio-a, odiando-a por fazer aquilo, por expor
aquelas verdades, que até então só viveram nas sombras empoeiradas da
minha memória, e não num espaço público.
– A primeira vez que você dormiu com o Julian? Lembra disso?
Solto um riso-gemido. Eu lembrava. Eu estava na metade do primeiro ano.
Julian, guitarrista de cabelos compridos, era um semideus no campus, e
estava no último ano. Lindo, levemente convencido, não tão profundo quanto
acreditava ser – ou talvez fosse minha impressão agora, olhando para trás.
Por algum motivo, ele começou a ir atrás de mim em outubro, muito a
contragosto das ciumentas groupies da banda dele. Finalmente concordei em
sair com ele; na época pensei que talvez mergulhar em algo com alguém
fizesse tudo relacionado à Califórnia desaparecer.
Transamos no apartamento dele depois do nosso primeiro encontro. Não
me lembro muito do que aconteceu além de pensar, enquanto aquilo
acontecia, que devia haver pelo menos umas quinze outras mulheres
querendo estar naquela cama com ele naquele momento, e que ele
provavelmente devia estar fazendo um trabalho até que bem-feito. Mas só o
que eu queria era que ele acabasse logo para eu poder voltar para casa e me
embolar em mim mesma.
Voltei para o quarto, no dormitório que eu dividia com Sabrina, e antes
que conseguisse dizer qualquer palavra, vomitei em cima no par de botas
Docs roxas prediletas dela antes de me desfazer numa poça histérica de
lágrimas e lhe contar tudo a respeito de Elliot.
– Pobre Julian – eu digo.
– Ele era bonitinho – ela diz. – E deu certo por um tempo porque você não
estava envolvida. Você nunca se envolve, Macy. Você só tem um punhado de
gente que pode chamar de amigos de verdade, e mantém todas as outras
pessoas à margem.
Mexo-me para objetar, mas ela levanta uma mão ousada à procura de me
impedir.
– Me deixa terminar, tenho pensado neste discurso desde o piquenique.
Sorrio, apesar de estar brava.
– Ok.
– Tenho certeza de que Sean é um cara incrível, mas é mais uma versão de
você e do Julian: tudo na superfície. Você nunca sente o que sente pelo
Elliot, mas é conveniente: não quer sentir isso de novo, de um jeito ou de
outro.
Concordo a contragosto. Sabrina não pode levar a culpa por dizer em voz
alta aquilo que também comecei a perceber.
– Mas que droga, Mace – ela diz com gentileza –, não te parece um pouco
egoísta? Você só dá aquilo que tem vontade. Felizmente, desta vez, Sean está
feliz em receber migalhas.
Recosto na cadeira.
– Meu Deus – digo. – Por favor, me diga o que pensa.
Ela morde o lábio inferior.
– Está dizendo que estou errada?
Esfrego as mãos no rosto, sentindo mais cansaço do que durante toda a
semana.
– Não é tão simples assim, e você sabe disso.
Sabrina fecha os olhos, respirando lentamente. Voltando a olhar para mim
de novo, ela diz com suavidade:
– Eu sei, meu bem. A questão é… você está fingindo que pode
simplesmente dar as costas para o Elliot. Pode mesmo? E se não pode, o que
você está fazendo continuando noiva de outro homem?
– Eu sei, eu sei – digo com um sentimento fervilhando no estômago.
A expressão dela se suaviza.
– Você não quer ver onde isso com Elliot pode dar? A pior coisa que pode
acontecer é não funcionar e ele não ficar mais na sua vida. – Ela volta a se
aproximar, dizendo mais baixo: – Você sabe que consegue sobreviver a isso.
Pelo menos, minimamente.
Giro o garfo na mesa.
– O que te mantém com o Sean?
Sei que ela que ela quer uma resposta séria, mas estou farta da intensidade
daquela conversa.
– O endereço dele é conveniente.
Ela emite uma gargalhada que chega a perturbar o sono de Viv.
– Estão afofando travesseiros para você no Inferno, Macy Lea Sorensen.
– Não acho que nos distribuam travesseiros no inferno – digo, retribuindo
o sorriso. – Brincadeira. Só estou tendo dificuldade para confiar nessas
novas dúvidas, porque há poucas semanas eu estava muito feliz com Sean. E
se isso for apenas algo temporário?
Ela emite um cético “aham”.
Pisco para ela.
– Ah, fala sério.
– Você fale sério. Sabe que tenho razão. Sean é fácil, eu entendo isso. Ele
é um cacto e Elliot é uma orquídea. Entendo isso também, mas…
– Mas o quê?
– Mas não seja um testículo4 – ela diz. Sabrina odeia qualquer referência
a mulheres como sendo fracas, ainda mais depois de dar à luz um bebê de
mais de quatro quilos pelo modo convencional. – Quando pensa em beijar
Elliot, o que isso a faz sentir?
Meu corpo inteiro explode de calor, e sei que isso se revela no meu rosto.
Eu sei como é beijar Elliot. Eu conheço os barulhos que ele faz quando goza.
Sei como as mãos dele ficam urgentes, inquietas quando está excitado. Sei
como ele aprendeu a tocar, a beijar e a dar prazer porque ele aprendeu
comigo.
Sei o quanto tudo isso é bom, mesmo com o pouco tempo que tive.
– Nem preciso que me responda. – Ela se recosta quando a garçonete
chega com os nossos pedidos.
Quando ela volta a se afastar, meu celular vibra na bolsa e eu o pego,
rindo. É uma mensagem do Elliot, com quem não conversei desde o
piquenique.

Conversou com o Sean a respeito do Ano-Novo?

Eu adoraria que você fosse comigo.


Encare isso como uma oportunidade para pesquisar
coisas a respeito de um casamento que não está muito
a fim de planejar.

Viro meu celular, mostrando as mensagens para Sabrina, e ela ri,


balançando a cabeça.
– Intervenção concluída.
No texto original, a autora se refere à palavra “pussy”, que vulgarmente
significa genitália feminina e, ao mesmo tempo, serve de gíria para
“molenga”, “frouxo” ou “bunda-mole”. Por ter feito parto normal, a
personagem se recusa a usar essa palavra e usa “testicles”, testículos, em seu
lugar. (N. T.)
ANTES

SÁBADO, 17 DE JANEIRO ONZE


ANOS ATRÁS

Elliot está espalhado no chão, tirando uma almofada nova e peluda do


futon para ajeitá-la debaixo da cabeça. São quase duas da tarde, e papai e eu
quase não conseguimos chegar por conta de um barulho assustador debaixo
do capô do Volvo. Enquanto papai e o senhor Nick trabalhavam no conserto
do carro, Elliot e eu devoramos os restos de um frango frio nos degraus da
frente. De volta ao interior aquecido da casa, eu estava mais propensa a tirar
um cochilo do que em ler um capítulo inteiro.
A voz de Elliot pareceu ainda mais grossa do que na semana anterior.
– Palavra favorita?
Fechei os olhos, pensando.
– Excruciante.
– Uau. – Elliot fez uma pausa e, quando olhei para ele, ele me fitava com
curiosidade. – Essa é surpreendente. Novidades?
Chutei os sapatos e um deles por pouco não acertou na cabeça dele.
Passamos a última hora juntos, mas algo a respeito de estarmos de volta no
closet, com suas paredes azuis e estrelas, com o calor do corpo de Elliot ali
perto, pareceu afrouxar tudo dentro de mim. As coisas foram difíceis no
nono ano, e depois no primeiro ano do ensino médio, mas o segundo?
Definitivamente o pior.
– Garotas são uma droga. Garotas fofocam, são mesquinhas e são uma
droga – reclamo.
Elliot marcou a página do livro e o fechou, deixando-o de lado.
– Elabore.
– Minha amiga Nikki? – digo. – Ela gosta desse cara chamado Ravesh.
Mas Ravesh me pediu para ir ao baile da primavera com ele e eu disse não
porque ele é só um amigo, mas a Nikki está brava comigo mesmo assim,
como se eu pudesse ter impedido Ravesh de me convidar em vez de
convidar a ela. Então ela contou pra nossa amiga…
– Respira.
Inspirei fundo.
– Ela contou pra nossa amiga Elyse que eu contei para um amigo do
Ravesh, o Astrid, que eu queria ir com o Ravesh, porque aí ele me iria
convidar, e depois eu recusei o convite. Elyse acreditou nela e agora nem a
Nikki nem a Elyse está falando comigo.
– Nem a Nikki nem a Elyse estão falando com você – ele me corrigiu, e
depois, por conta do meu olhar bravo, ele se desculpou baixinho antes de
acrescentar: – Evidentemente tanto Elyse quanto Nikki é vacas.
Dei uma gargalhada e depois gargalhei ainda mais. Tudo era tão mais fácil
ali no closet. Por que não podia ser sempre assim?
Ele coçou o maxilar, me observando.
– Você deveria me levar pra esse baile.
– Você iria? Você odeia esse tipo de coisa.
Elliot assentiu e lambeu os lábios distraidamente.
– Eu iria.
– Todos querem te conhecer. – Descobri que não conseguia desviar os
olhos dos lábios dele, imaginando o seu sabor.
– Bem, isso é perfeitamente unilateral. Não tenho desejo algum de
conhecer nenhum deles. – Me deu um amplo sorriso. – Mas eu quero te ver
vestindo outra coisa que não sejam pijamas, jeans ou shorts.
– Você iria mesmo ao baile de primavera comigo?
Ele inclinou a cabeça, com as sobrancelhas unidas.
– É tão difícil assim aceitar que eu quero ser a única pessoa com a qual
você pensaria em ir a esse baile idiota?
– Por quê?
– Porque você é a minha melhor amiga, Macy, e apesar da sua reticência
ridícula…
– Boa aliteração.
– … você é a garota que eu quero. Eu quero ficar com você.
Meu estômago deu uma cambalhota de excitação e de ansiedade.
– Você beija outras garotas.
– Raramente.
– Ah, tá.
– Obviamente eu não faria isso se pudesse beijar você.
Suspirei, mordi o lábio, me remexi.
– Por que todos não podem ser como você?
– Posso ser o suficiente no seu mundo, assim você sente que todo mundo
é.
Sorri para ele, com suavidade, e senti a conhecida bolha de desejo.
Estava ficando cada vez mais difícil ignorar que eu amava, amava de
verdade, Elliot.
– Qual a sua palavra predileta? – perguntei-lhe.
Ele sugou o lábio inferior por um momento, pensando.
– Vexar – disse baixinho.
HOJE

QUARTA-FEIRA, 8 DE NOVEMBRO

Depois daquela mensagem durante o almoço com Sabrina, a situação com


Elliot virou uma bola de neve e começamos a fazer algo que não fizemos
nem durante o ensino médio: nos falamos quase todos os dias. Às vezes por
apenas alguns minutos. Outras vezes apenas através de mensagens de texto.
Mas sinto a presença dele quase que constantemente, e pouco importa o
quanto eu tente me convencer do contrário, sei que ele é a razão do suave
sussurro de alívio em meus pensamentos.
E talvez, por conta disso, a situação com Sean está… estranha, para dizer
o mínimo. Zero discussões. Zero conversas quanto ao que estamos fazendo.
Quando, por acaso, os pego acordados, Phoebe parece feliz em me ver, Sean
parece feliz em me ver. Tenho certeza de que, se eu planejasse uma grande
cerimônia de casamento para o dia seguinte, Sean apareceria muito contente.
Tenho certeza de que, se eu postergasse indefinidamente os planos para o
casamento, Sean jamais questionaria nada.
Também tenho certeza de que eu poderia ir embora e ele ainda assim
estaria em paz com essa decisão.
É a coisa mais estranha da qual tomei parte e, mesmo assim, seria fácil
pra caramba. Esse relacionamento não requer nada de mim, nenhum
envolvimento do meu coração, e sei, sem sombra de dúvida, que ele não
precisa de mim. Poderíamos ter uma relação que nos daria sexo, segurança
financeira, um teto sobre nossas cabeças e conversa inteligente à mesa do
jantar, mas, de outro modo, vidas completamente distintas.
Mas as verdades cruciais – o fato de que não estamos apaixonados, nem
nunca estivemos, e essa ausência me incomoda – não parecem surgir em
gotículas de consciência. Elas simplesmente estão ali, preto no branco,
gritando “Este relacionamento já acabou de vez” todas as vezes em que
sorrimos com educação para o outro enquanto cedemos a vez junto à pia do
banheiro.
Sinto-me nauseada com a situação. Estou desesperada à procura de uma
saída. Infelizmente, preocupo-me que a principal reação de Sean seja
desapontamento. Sou uma amante conveniente para ele assim como ele é
para mim; mas, no caso dele, talvez ele não precise de mais: ele já tem o
amor da sua vida na forma da filhinha de seis anos de idade.
Um bom começo me parece ser me certificar de que consigo me sustentar
sozinha morando na cidade. Tiro um raro dia de folga e vou até El Cerrito
para fazer algo que venho postergando há meses: encontrar-me com minha
consultora financeira. Daisy Milligan era a antiga guru das finanças de papai
e eu a mantive mais por sentimentalismo e preguiça do que por qualquer
conhecimento quanto às habilidades dela.
Dito isso, embora esteja perto dos setenta, ela mal precisa consultar a
minha pasta enquanto me passa um sermão quanto ao que tenho no fundo
fiduciário (o suficiente para pagar alguns reparos na casa e impostos, mas
não muito mais) e por que eu deveria vender uma das minhas casas (tenho
mais necessidade de um fundo de pensão do que de duas propriedades). Não
ouso mencionar que estou morando em São Francisco e que nem estou
recebendo aluguel com a casa de Berkeley.
Odeio discutir dinheiro. Odeio ainda mais ver o quanto preciso me
organizar financeiramente. Depois disso, fico meio irritada e atordoada e,
quando Elliot me manda uma mensagem me perguntando sobre o andamento
do meu dia, e eu lhe digo que estou do lado dele da Baía… Nos
encontrarmos parece uma escolha óbvia.
Ele sugere que nos encontremos no Fatapple’s em Berkeley, sem saber o
quanto fica perto da minha casa. Então, em vez disso, sugiro irmos para o
topo das colinas de Berkeley, no parque Tilden, na entrada da trilha do rio
Wildcat.
Chego lá antes dele e, do lado externo do carro, puxo a blusa de moletom
para cobrir mais o pescoço e enfrentar o vento. A neblina se move nas
colinas, fazendo parecer que o horizonte acinzentado está mergulhando no
vale, um centímetro de cada vez.
Amo Tilden, e tenho tantas lembranças de ir até lá com mamãe, para
montar nos pôneis, alimentar as vacas na fazendinha. Papai e eu
costumávamos vir todos os fins de semana depois da morte dela para
alimentar os patos na lagoa. Sentávamos em silêncio, jogando pedaços de
pão na água e observávamos os patos abocanhando-os, fazendo quá quá uns
para os outros numa espécie de competição.
A saudade de Tilden parece se embaralhar com a saudade de Elliot e
forma uma mistura potente em minha corrente sanguínea, rasgando-me por
dentro. Apesar de ele e eu nunca termos vindo até ali juntos, sinto como se
tivéssemos. Sinto como se ele fizesse parte do meu núcleo, entremeado ao
meu DNA.
Por isso, vê-lo emergir da neblina do estacionamento e se mover na minha
direção com suas passadas longas e rápidas e aqueles jeans pretos… faz
com que a ansiedade simplesmente… evapore.
Num pulso de Evidente Revelação, percebo que Sabrina estava certa: não
tenho vivido sem ele. Tenho apenas sobrevivido.
Quero partilhar esta vida com ele de alguma forma. Eu só… não faço a
mínima ideia de como isso pode acontecer.
Ele parece interpretar o meu humor ao se abaixar para se sentar no banco
ao meu lado, deslizando o braço pelo encosto.
– Oi. Tudo bem?
O impulso de abraçá-lo é quase debilitante.
– Sim… É só… um dia comprido.
Ele ri, estendendo a mão para segurar com gentileza meu rabo de cavalo e
puxá-lo.
– E só é meio-dia.
– Acabei de me encontrar com a consultora financeira do meu pai.
Ele coça uma das sobrancelhas com a outra mão.
– É mesmo? E como foi?
– Ela quer que eu venda uma das casas.
Elliot se cala, digerindo isso.
– Como se sente com isso?
– Não muito bem. – Olho para ele. – Mas ela tem razão. Não moro em
nenhuma delas. Mas também não quero me livrar de nenhuma delas.
– As duas têm muitas lembranças. Boas e ruins.
Com isso, ele vai direto ao ponto. Desde a primeira vez em que me
perguntou sobre a minha mãe, ele se mostrou gentilmente incansável.
Levanto uma perna e me viro de frente para ele. Estamos tão próximos e,
mesmo estando ao ar livre, num parque público, não há ninguém ao nosso
redor e tudo parece muito íntimo. Os olhos dele hoje estão mais verdes do
que castanhos; a barba está por fazer, como se não tivesse tido tempo de
apará-la pela manhã. Deslizo minha mão por entre os joelhos a fim de não
espalmar o queixo dele.
– Posso fazer uma pergunta?
Os olhos de Elliot descem brevemente para minha boca, depois sobem
outra vez.
– Sempre.
– Você acha que eu guardo as coisas dentro de mim?
Endireitando-se, ele procura ao redor, como se precisasse de uma
testemunha.
– Essa pergunta é pra valer?
Dou um empurrão de brincadeira nele e ele finge se machucar.
– Sabrina sugeriu que eu tenho o hábito de manter as pessoas afastadas de
mim.
– Bem – ele disse, escolhendo as palavras com cuidado –, você sempre
conversou comigo, mas eu tinha a sensação de que você não fazia isso com
mais ninguém. Então, talvez isso ainda seja verdade?
Um carro passa por nós, e o motor a diesel estala audivelmente na curva
do parque, distraindo por um momento nossa atenção um do outro para o
estacionamento gramado. Os sons baixos de animais da fazendinha chegam
até nós, vindo de um pouco além do caminho de cascalho.
Quando eu não respondo, ele continua:
– Quero dizer, talvez eu esteja influenciado pela nossa atual situação, mas
sinto que talvez você não… fale muito. E posso estar testando a minha sorte,
mas tenho a impressão de que Sean é assim também.
Escolho ignorar essa parte, querendo evitar completamente a conversa
sobre Sean com Elliot. Sei o que tenho que fazer, mas devo a Sean discutir
isso com ele primeiro.
– Eu costumava conversar com o meu pai – digo, desviando-me do
assunto como uma profissional. – Não do mesmo jeito com que eu
conversava com você, talvez, mas sobre a escola. Sobre a minha mãe.
– Ok, mas estamos falando sobre o agora – ele diz. – Você sempre foi
meio insular, mas você tem alguém? Além da Sabrina?
– Eu tenho você. – Após um instante de estranheza, acrescento: – Quero
dizer, agora eu tenho você. – Outra pausa. – De novo.
A expressão dele se endurece e Elliot pega um graveto do chão, apoiando
os cotovelos nos joelhos e rodando o graveto entre os dedos e o polegar.
Remexendo.
Eu sei…
Eu sei…
Eu sei o que está por vir.
– Macy? – Ele me olha por cima do ombro. – Você ama o Sean?
Sei que isso aconteceria, mas o peso da pergunta dele faz com que eu me
levante do banco e dê dois passos para longe.
– Eu já te vi apaixonada – ele diz com suavidade, sem ficar de pé. – E não
parece que você esteja apaixonada por ele.
Não respondo, mas ele me entende mesmo assim.
– Não entendo – ele ruge. – Por que está com ele?
Viro-me e encontro a expressão dele, as sobrancelhas unidas, a boca tesa
de tensão. Demoro algumas inspirações para unir as palavras de um modo
que eu não pareça extremamente melodramática.
– Porque – eu lhe digo – temos o acordo totalmente errôneo de pessoas
problemáticas (não verbal, acho, até pouco tempo atrás) de que damos ao
outro apenas uma fração de nós mesmos. Perdê-lo nunca acabaria comigo. –
Balanço a cabeça e baixo o olhar para meu sapato, que mexe com a terra.
Sinto a revelação de antes, de uma vida partilhada robusta, começando a
desvanecer conforme Elliot cutuca os meus instintos de autopreservação.
Odeio que Sabrina esteja certa. Odeio que retrair-me para o meu casulo seja
o meu primeiro reflexo. – Percebo o quanto isso parece covarde, mas acho
que eu não aguentaria perder de novo alguém que eu amo.
– Doeu tanto assim – ele diz baixinho, mas não numa pergunta. – O que eu
fiz. Quando vamos conversar sobre aquela noite?
– Eu não perdi só você – eu o lembro.
Paro, precisando de um segundo para respirar. As lembranças da última
vez em que vi Elliot costumavam me deixar fisicamente doente. Agora
apenas criam um vazio dentro de mim.
Vejo que ele está processando isso. Ele estuda meu rosto, virando as
palavras em sua mente, olhando para elas por diferentes ângulos, como se
soubesse que algo está faltando.
Ou eu estou apenas sendo paranoica.
– Qual a história dele? – ele pergunta.
– Do Sean?
Elliot assente, pegando outro graveto.
– Ele foi casado?
– Sim. Ela trabalhava na área de finanças e ficou viciada em cocaína numa
viagem de trabalho.
A cabeça dele se levanta de pronto, os olhos parecem chocados.
– Sério?
– É. Terrível, não? – Olho para além dele, para o estacionamento. –
Então, acho que parte disso para ele é que ele tem a filha e nunca conseguiu
superar a Ashley. Tem sido… bem fácil para nós passarmos para uma
condição permanente sem, de fato, precisarmos um do outro.
Elliot se inclina para a frente.
– Macy.
– Elliot.
– Você continua com ele por causa da Phoebe?
Eu o encaro, genuinamente confusa.
– O quê?
– Phoebe.
– Não, eu ouvi o nome. Só não entendo… Ah. – Entendo o que ele quer
dizer. – Não.
– Quero dizer, ela é esse doce de menina sem mãe… – ele diz isso como
se fosse óbvio o motivo de eu ficar por perto e, tudo bem, de uma
perspectiva externa consigo entender o motivo de ele pensar assim. Mas ele
não os conhece.
– Ela não precisa de mim – eu lhe asseguro. – Ela tem um pai incrível,
muito dedicado… – Gesticulo com a mão, insegura. – Isso é um acessório.
Quero dizer, sejamos francos: eu não sei como… ser mãe, então, ela não
precisa nada de mim.
Ele emite um grunhido, baixando o olhar para o graveto que está partindo
lenta e metodicamente.
– Ok.
Eu o encaro.
– O que “ok” quer dizer?
– Quer dizer ok.
– Você não pode pensar tanto pra depois me dizer apenas “ok”. Foi um
“ok” presunçoso.
Ele ri e joga o graveto no chão antes de olhar para mim.
– Ok.
Um desafio. Ele quer me atrair para a conversa, sei disso.
– Maldição. – Viro e fico olhando para o centro educacional e para as
nuvens cinzentas se movendo no céu.
– Ela pode precisar de uma mãe quando menstruar – ele diz baixinho. –
Ou quando os amigos dela forem uns cretinos.
– Talvez, em vez disso, ela tenha um amigo num closet que a ouça –
rebato, e depois me viro de frente para ele, cheia de suspeitas. – Por que
parece que você está tentando me convencer a ficar com o Sean? É
psicologia reversa?
Sorrindo, ele relaxa.
– Tá bem, vamos conversar sobre outra coisa. Palavra favorita?
O calor resvala na minha pele. Estou tão despreparada para isso que
minha mente trava e, de repente, não há nenhuma palavra, em parte alguma.
– Preciso pensar… A sua?
A gargalhada dele sai como um estrondo baixo.
– Melífluo.
Enrugo o nariz.
– Essa embola na boca.
– Certamente sim, senhora – ele ruge com uma modulação proposital nas
palavras.
Arremesso um cascalho nele por isso.
– A sua voz é melíflua – ele murmura, levantando do banco para vir na
minha direção. – Vai logo. Sua vez. Não pode pensar muito, trapaceira.
Conhece as regras.
Vejo os lábios se entreabrirem quando ele olha para a minha boca. Vejo a
língua despontar.
– Limerência.
Não existe nenhuma outra palavra como essa: o estado de estar
apaixonado por outra pessoa.
Os olhos de Elliot disparam para os meus, as pupilas se dilatam como um
pingo de tinta num lago.
– Você é terrível.
– Não estou tentando ser.
Ele aponta para a marcação da trilha, chamando-me para segui-lo.
Começamos a descer a trilha, o que me faz lembrar dos nossos passeios no
bosque Armstrong ou ao longo do leito seco do rio no verão. É tão estranho
o quanto isso parece pertencer a outra vida, mas, também, como se tivesse
sido duas semanas atrás. Lentamente nossos passos se convergem num
crunch… crunch… crunch dos pés sobre os cascalhos no mesmo ritmo. Ele
diminuiu as passadas dele para acompanhar as minhas.
– Você é feliz? – pergunto.
A pergunta é tão abrupta que espero certa retração da parte dele, mas não.
– Tive meus momentos de felicidade, sim.
Não gosto da resposta dele. Quero que ele seja alegre, amado, adorado,
repleto de tudo, o tempo inteiro.
– Admito – ele acrescenta. – Sinto mais felicidade quando estou perto de
você.
É inebriante saber que tenho o poder de fazer isso por ele.
– E você é feliz? – ele pergunta.
– Nos últimos tempos, não – conto, e sinto que ele vira o rosto para me
ver. – E estar perto de você fez com que eu percebesse isso. – Paramos numa
ponte pequena e escorregadia no meio do bosque, olhando um para o outro. –
Você me faz sentir tantas coisas – admito num jorro.
Ele estende a mão, segurando meu rabo de cavalo no punho.
– Eu também. Sempre foi assim. – Mudando a posição da mão para
acariciar meus cabelos com a palma, ele murmura: – Eu não estava tentando
fazer com que ficasse com o Sean, a propósito. Eu só acho que você está
sendo muito dura consigo.
Meus olhos se estreitam, céticos.
– Eu?
Assentindo, ele diz:
– Acho que está se maltratando ao ficar com Sean. Foi por isso que
perguntei sobre Phoebe e…
– Ashley?
– É. Ashley. – Ele usa a ponta do indicador para empurrar os óculos, e
encara as árvores densas diante de nós. – Você age como se estivesse com
ele só porque é fácil. Mas, de algumas maneiras, ele é o seu pai neste
cenário, e você é a mulher que veio depois da sua mãe. Sean não tem muito a
dar, mas você entende por quê. Afinal, você não iria querer substituir
ninguém.
Encaro-o chocada. Em apenas poucas frases, Elliot acabou de explicar
por que faz sentido que eu esteja com Sean, ao mesmo tempo em que prova
que ele – Elliot – é o único que de fato entende qualquer coisa a meu
respeito. Nem eu havia enxergado essa verdade até agora.
– Por que você é tão bom para mim? Depois de tudo?
Elliot inclina a cabeça ao retribuir o olhar. Claro que ele não vê dessa
forma. Ele só conhece a traição dele, não a minha.
– Porque eu te amo?
A emoção fica presa na minha garganta, e eu tenho que engolir algumas
vezes para fazer com que as palavras saiam.
– Acho que nunca percebi antes o quanto eu andava entorpecida. Ou não
me importava com isso, talvez.
Vejo que isso o atinge fisicamente.
– Mace…
Rio sombriamente ante a situação, e com o quanto ela parece horrível.
– Uma droga, não?
De repente, Elliot dá um passo à frente, me puxando para junto de seu
peito. Uma mão espalma minha cabeça por trás, a outra envolve meus
ombros, e sinto como se eu não tivesse chorado em dez anos.
ANTES

SÁBADO, 3 DE JUNHO ONZE ANOS


ATRÁS

Papai e eu embalamos nossas vidas para passarmos o verão em


Healdsburg. O nervosismo passara a morar dentro do meu estômago. Tudo
parecia diferente naquele verão: terminaríamos o penúltimo ano e logo
começaríamos o último. A escola parecia mais interessante; os amigos,
menos dramáticos. E embora Elliot e eu não tivéssemos ido ao baile da
primavera juntos – na verdade, nem fui –, o verão sempre pareceu o
momento em que as coisas entre nós mudavam monumentalmente.
Eu tinha dezessete anos. Elliot, quase dezoito. No verão anterior, nos
beijamos. Admitimos ter sentimentos mútuos. E, desde então, ele olhava para
mim de um jeito diferente, mais como algo a ser devorado do que ser
protegido. Embora eu tentasse pensar que poderíamos continuar a ser o tipo
de amigos que sempre fomos, eu sabia que também queria mais. Ele já era
uma das duas pessoas mais importantes na minha vida. Em vez de me
preocupar em perdê-lo, eu tinha que me concentrar em como mantê-lo.
Eu estava largada nas almofadas no canto quando ele entrou no quarto no
sábado após a nossa chegada.
– Oi – ele disse.
Ante o som daquela voz, dei um salto e corri até ele, passando os braços
ao redor de seu pescoço. Foi um abraço diferente: em vez de criar um
abraço cauteloso em forma de triângulo de sempre – com os ombros tocando
e nada mais –, eu pressionei minha frente ao longo da dele, do peito ao
estômago e quadris. Claro que eu sabia que ele era o mesmo Elliot de
algumas semanas antes, da última vez em que estive na casa, mas depois do
meu nervosismo obsessivo sobre como aquele verão poderia ser, eu
subitamente já não me sentia mais a mesma Macy.
Ele ficou imobilizado por um momento e depois reagiu com aquele
grunhido sutil e perfeito de alívio. Arqueando-se, ele passou os braços ao
meu redor e exalou um “oi” baixinho no topo da minha cabeça.
Por alguns respiros, tudo ficou imobilizado, e meu mundo inteiro era a
sensação do coração de Elliot batendo junto ao meu, e o modo como as mãos
dele se espalmavam na minha lombar.
– Estou tão animada com este verão – eu disse junto ao pescoço dele.
Ele recuou, ainda sorrindo.
– Eu também. – Lá estava ele de novo, o silêncio suspenso entre nós. Mas
logo ele o interrompeu, me mostrando dois livros que trazia nas mãos. –
Trouxe uma coisa pra você ler.
– Para a nossa biblioteca?
Ele deu uma risada seca.
– Na verdade, não. Talvez não queira deixar estes expostos.
As palavras dele me confundiram até eu olhar para as capas: Vênus Delta,
de Anaïs Nin, e Trópico de Câncer, de Henry Miller.
Eu conhecia o suficiente sobre livros para saber que aqueles não eram
livros que eu encontraria na biblioteca da escola.
– O que são? – perguntei, procurando confirmação.
Ele deu de ombros.
– Literatura erótica.
– Quando os conseguiu?
– Há alguns anos. Eu os li em janeiro.
Engoli com firmeza. Depois da minha revelação de que as coisas entre
mim e Elliot definitivamente estavam mudando, aqueles livros me pareciam
com pedras empoladas em minhas mãos.
Elliot se largou no futon.
– Você estava curiosa sobre garotos e sexo, pensei que poderia gostar de
lê-los.
Senti meu rosto inteiro queimar e devolvi os livros, evitando contato
visual.
– Ah, tudo bem.
Eu estava pronta para avançar. Mas a ideia de sexo, e Elliot, fez com que
minha cabeça entrasse num território de tontura.
– Tudo bem? – ele perguntou, incrédulo.
– Não tenho certeza se vou gostar deles. – Minha voz estava grossa; a
mentira não queria deslizar pela minha língua.
Ele sorriu maliciosamente.
– Beleza. Mas já os li. Se tudo bem por você, vou deixá-los aqui mesmo.
Depois de uma semana de férias, eu cedi. As lombadas inócuas dos livros
ficaram me encarando, me desafiando. Eu os colocara na prateleira entre O
Guia do Mochileiro das Galáxias e Zen e a Arte da Manutenção das
Motocicletas – ou seja, bem no meio do território de Elliot, como um sinal
para que ele os levasse de volta para casa, se assim quisesse.
Não é que eu não estivesse curiosa. Não é que eu não sentisse coceira nas
mãos para pegá-los. Mas com Elliot esticado diante de mim, todos os dias,
coçando o abdômen sem nem se dar conta ou cruzando as pernas na altura
dos tornozelos – o movimento de alguma forma redefinindo e enfatizando o
que existia debaixo dos botões dos jeans dele… Eu não sabia bem se
precisava de mais erotismo.
Muito bem, Vênus Delta foi o primeiro. Comecei a lê-lo ao raiar do dia,
horas – foi o que pensei – antes que Elliot fosse aparecer.
Mas, como de hábito, foi como se ele soubesse.
– Uau. O que você está lendo? – ele me perguntou da soleira da porta. A
luz fraca do início de um novo dia mal iluminava meu quarto atrás dele;
Elliot bloqueava grande parte dela com a largura dos seus ombros.
Ignorei o calor crescente no meu rosto e virei a capa para mim como se
precisasse de um lembrete do que era.
– Ah. Só um dos livros que você me trouxe.
– Ah – disse ele, e eu ouvi o sorriso satisfeito em sua voz. – Acordou
cedo. Qual deles?
Não querendo dizer o nome, simplesmente levantei o livro e o sacudi para
ele, me esforçando para parecer casual apesar de saber que meu rosto estava
ardendo de tão vermelho.
– Importa-se se eu me juntar a você no closet?
– Fique à vontade. – Rolei de barriga para baixo e continuei a ler.
Uau.
As palavras eram quase demais para a privacidade dos meus
pensamentos. Sempre pensei em coisas sexuais de maneira abstrata, não com
a linguagem, mas com o visual. E ainda mais intenso? Percebi enquanto lia
aquilo que… sempre imaginei Elliot. Eu o imaginaria mais perto e me
tocando, o que ele poderia dizer ou como ele estaria. Mas nunca pensei em
palavras como tremor, atormentada de desejo e absorvendo-o até ele
gozar.
Eu o sentia me observando, mas me esforcei para manter a expressão
neutra.
– Hum – disse pensativamente. – Interessante.
Elliot exalou uma gargalhada.
– O que acabou de ler? – perguntou pouco depois, com a voz brincalhona.
– Os seus olhos vão saltar da cabeça.
– É literatura erótica – disse eu, dando de ombros. – É uma aposta segura
dizer que li algo erótico.
– Partilhe.
– Não.
– Sim.
– Nem pensar.
– Tudo bem se você estiver envergonhada com isso – ele disse,
retornando para seu livro. – Não vou pressionar.
Eu estava intensamente envergonhada com tudo aquilo. Mas, ao mesmo
tempo, estava excitada, e agitada. Era sexual, mas tão impessoal. Queria que
houvesse mais sentimento. As mãos dele se tornaram as de Elliot. As dela,
minhas. Imaginei emoção ali que não estava nas páginas. Fiquei imaginando
se aconteceu a mesma coisa com Elliot quando ele o leu, e se ele percebeu o
quanto aquilo tudo… parecia tão desapegado.
Inalei tremulamente e li:
– “Assim, tinha nascido Vênus do oceano com aquela pequena semente de
salgado mel dentro de si, apenas carícias poderiam revelar os ocultos
segredos de seu corpo”.
Elliot ficou encarando o próprio livro, as sobrancelhas unidas enquanto
assentia sabiamente.
– É um bom trecho.
– “Um bom trecho”? – repito incrédula. – É…
Na verdade, não sabia como terminar aquela frase. Era um nível de
pensamento que eu não tinha nem a capacidade nem a experiência para
articular, mas algo naquilo me pareceu familiar, de alguma maneira antiga.
– Eu entendo – ele murmurou. – Gosta do resto?
– É bom, acho. – Folheei as páginas. – É um pouco impessoal e…
algumas das histórias são meio que tristes.
Elliot gargalhou, e eu o olhei pasma.
– O que foi? – perguntei.
– Você leu o prefácio, Macy?
Fechei a cara.
– Quem lê o prefácio de um livro erótico?
Ele gargalhou de novo e balançou a cabeça.
– Não, você deveria. As histórias foram encomendadas por um homem
rico. Ele só queria sexo. Nenhum sentimento, nenhuma emoção.
– Ah… – disse eu, baixando o olhar para o livro que, de repente, fez
muito mais sentido. – Então, não. Não gosto dele. Não assim.
Ele assentiu, ajustando o pufe debaixo do corpo.
– Você leu isto? – perguntei.
Ele entoou um barulho afirmativo.
– Você gostou?
– Acho que tive a mesma reação que a sua. – Com um grunhido minúsculo,
ele esticou as pernas, levando as mãos para trás da cabeça. Não olhei para
os botões dos jeans dele. Por certo, não uma segunda vez. – É sexy, mas
também desapegado.
– Por que você o leu?
– Por quê? – ele repetiu incrédulo ao levantar a cabeça para olhar para
mim. – Não sei. Porque adoro ler? Adoro o fato de poder usar palavras para
convencer as pessoas, ou irritá-las, ou diverti-las. Mas as palavras também
podem ser usadas para… – Deu de ombros, corando um pouco. – Para
excitar as pessoas também.
Voltei a olhar para o livro, incerta quanto ao que dizer.
– Não te vejo desde abril – ele disse. – O que aconteceu com o baile da
primavera?
Rindo, eu contei:
– Nikki foi com Ravesh.
– Claro que foi. O drama sempre se resolve das maneiras mais tediosas.
Mas me referi a você.
– Ah. – Deixei o livro de lado e levantei uma mão para morder uma unha.
– Eu fiquei em casa.
Senti que ele me observava, e se apoiou num cotovelo.
– Eu teria ido, você sabe disso.
Contemplando-o, tentei mostrar a ele com o olhar que, na verdade, eu não
queria ir.
– Eu sei.
– Não quer que eu conheça os seus amigos? – ele perguntou, e o tom dele
foi brincalhão, mas com uma pontada distante de preocupação sincera.
Rapidamente, balancei a cabeça.
– Não foi isso. – Olhei para ele. Para o rosto de proporções quase
perfeitas agora, para os olhos expressivos, para a boca cheia, para o maxilar
anguloso. – Ok, acho que em parte sim. Quero que você os conheça, mas não
quero que eles conheçam você.
Ele enruga o nariz.
– Ok?
– O que quero dizer… – digo, querendo atenuar o insulto que vi no rosto
dele. – Eu não confiava na Nikki e na Elyse na época, e senti que, se elas te
conhecessem, elas poderiam querer dar em cima de você. Ainda mais no
baile. E eu teria ficado furiosa.
As sobrancelhas subiram aos céus de compreensão.
– Ah.
– E também… – Voltei a relancear para baixo, achando mais fácil dizer
essas coisas para o meu colo. – Esta é meio que uma bolha nossa. –
Gesticulo vagamente para o cômodo. – E quando conheci Emma, isso mudou
para mim. Antes, ela era só um nome, e eu podia fingir que você não tinha
mais tempo com ela todas as semanas do que tinha comigo.
– Mas, Mace, eu não…
– É só um exemplo – expliquei, voltando a erguer o olhar. – Eu não tinha
certeza se você queria mesmo ficar cara a cara com esses nomes com quem
passo o meu tempo.
O esclarecimento o atingiu.
– Ah. Acho que entendi.
Acho que ele entendeu.
– Tem um cara que gosta de você.
Assenti.
– É.
– Tem uns caras. E eles estavam no baile. E você e eu somos um estranho
casal não casal, e você não tinha certeza de como… – Ele deixou as
palavras morrerem antes de dizer: – Você não queria que eu me sentisse
excluído.
Enfiei as pernas debaixo do corpo no futon.
– É isso. Eu só acho que poderia ter sido estranho. Você não é um estranho
para mim, você é tudo para mim. Mas, naquele momento, talvez você não
tivesse enxergado isso, ou acreditado em mim. – Fitei-o de novo,
acrescentando rapidamente: – Eu só… estou falando por conta da minha
experiência com a Emma.
– Ok – ele murmurou.
– Eu quero você na minha vida inteira – disse com cuidado, colocando a
pontinha do pé no vasto território do Mais. – Penso o tempo todo como o
meu medo real não tem a ver com as outras garotas, mas com perder você.
Fico aterrorizada com o cenário da minha vida sem você.
Os olhos dele se contraíram, a voz ficou reverente.
– Isso nunca vai acontecer.
– E se começássemos… e isso de alguma forma desse errado… – Tive
que engolir com força algumas vezes antes de dizer isso, abafando a
tempestade que se fazia dentro de mim ante essa perspectiva. – Sei lá. Não
acho que o baile seria o primeiro lugar para fazer isso. Levar esta vida para
aquela. Teria sido muito rápido.
– Entendo. – Ele ficou de pé, indo até o futon e se sentando perto de mim.
– Eu já te disse, Mace. Quero ser o seu namorado.
Estendendo o braço, ele me coagiu na direção dele, até eu estar encostada
e, por fim, com a cabeça deitada no colo dele. Ele levantou o livro, eu tinha
o meu, e eu fiquei ouvindo à respiração ritmada dele.
– Sabe – eu disse, olhando para o teto, enquanto ele ficava acariciando
meus cabelos com uma mão –, estes livros foram uma espécie de presente
perfeito.
– Por quê?
– O número 47 da lista da minha mãe me diz para não fazer sexo até
conseguir falar sobre sexo.
Debaixo de mim, Elliot ficou muito imóvel.
– É?
– Imagino que seja um bom conselho, acho. Quero dizer, se alguém não
consegue falar sobre sexo, não deveria fazer.
Um riso pequeno e nervoso escapou dele.
– Quer falar sobre sexo hoje?
Dando uma risadinha, dei um soco na coxa dele, e ele fingiu sentir dor.
Também queria que ele fosse meu namorado. Mas eu sabia, mesmo na
época, que eu precisava de passos pequenos. Eu queria a lenta transição.
Não queria perder nenhuma partezinha preciosa dele.
HOJE

QUARTA-FEIRA, 8 DE NOVEMBRO

Sean está no sofá esperando por mim quando chego em casa depois da
meia-noite. A não ser pela minha caminhada com Elliot, meu dia foi uma
droga. Sabendo o que eu tinha que fazer, mas evitando mesmo assim, fui
trabalhar lá pelas três da tarde – uma decisão terrível. Acabei informando
dois prognósticos terminais e interrompendo a quimioterapia de uma terceira
paciente porque a garotinha não toleraria mais uma dose (apesar de o câncer
poder). Nesse estado mental, sei que estou fazendo o Bem, mas não é o que
sinto, e ver Sean no sofá intensifica a autoflagelação.
– Oi, linda. – Ele dá um tapinha na almofada perto da qual está sentado.
Me arrasto até lá, me largando ali. Não nele exatamente, nem numa
posição confortável. Primeiro porque ainda estou de uniforme e quero tomar
um banho. E segundo porque me parece estranho me recostar a ele. Há um
campo de força invisível ali, me repelindo.
Como se estivesse lendo a minha mente, Sean diz:
– Provavelmente precisamos conversar.
– É, provavelmente.
Ele segura minha mão esquerda entre as dele, massageando minha palma
com os polegares. O toque me distrai porque é maravilhoso e me faz pensar
em todas as outras coisas maravilhosas que me distraem que Sean consegue
fazer com o resto do corpo dele.
– Tenho quase absoluta certeza de que você não está feliz – ele diz.
Viro-me de frente para ele. Demora alguns segundos para que o rosto dele
entre em foco porque está muito perto, e estou tão cansada, mas, quando isso
acontece, vejo o quanto isto de fato o está exaurindo. Só porque ele não
disse nada não quer dizer que não estivesse pensando nisso.
Sean e eu somos exatamente iguais.
– Você está? – pergunto.
Levantando um ombro, ele admite:
– Na verdade, não.
– Posso te perguntar uma coisa?
O sorriso dele é genuíno.
– Claro, linda.
A resposta dele não vai mudar o que eu sinto, mas eu tenho que saber.
– Você me ama?
O sorriso dele se apruma, e ele vasculha minha expressão por alguns
segundos.
– O quê?
– Você me ama? – pergunto de novo. – Falando sério.
Sei que ele está levando a sério a minha pergunta. E sei que ele não está
tão surpreso por eu ter perguntado, mas pela sua resposta instintiva.
– Tudo bem – digo baixinho. – É só uma pergunta.
– Acho que preciso de uma palavra entre gostar e amar, o que significa…
– “Eu a tenho em grande estima” – digo com um sorriso.
Nunca, na história do mundo, um término foi tão tranquilo. Mal houve uma
ondulação na superfície. Então, talvez mal estivéssemos juntos o bastante
para haver um rompimento.
– Você me ama? – ele pergunta, com as sobrancelhas unidas.
– Não sei ao certo.
– O que significa não – ele diz, sorrindo.
– Eu te amo… como amigo – respondo. – Amo a Phoebs. Amo o quanto
isto é fácil, e o quão pouco requer de mim agora.
Ele está assentindo. Ele entende.
– Mas tentar imaginar isto – gesticulo entre nós – pelo resto da minha
vida? – digo, beijando a testa dele. – É meio deprimente. Sinto como se nós
dois estivéssemos no caminho da menor resistência.
– Mace?
– Oi.
– O caminho de menor resistência para você não seria aquele com o
Elliot? – ele pergunta.
Fico imóvel, pensando na melhor resposta. De algumas maneiras, sim, ir
para a cama de Elliot é a rota mais fácil, e Sean sabe disso. Não existe
nenhum motivo para não ser franca.
Mas uma parte de mim acredita que Elliot e eu sempre fomos destinados a
sermos apenas melhores amigos. Tive tanto medo de dar o próximo passo
quando éramos adolescentes e, assim que demos, tudo terminou.
– Temos uma história – digo com cautela. – Não é uma história ruim,
considerando o todo. Mas ele fez uma coisa errada. E eu fiz uma coisa
errada. E não chegamos a conversar sobre isso.
– Por que não?
Deus. A pergunta mais simples e óbvia.
– Porque… – começo. – Porque, não sei… aquela época das nossas vidas
foi difícil, e tomei decisões erradas que não sei bem como explicar. E
aparentemente também estou em grande parte morta por dentro e não sou
muito boa para expressar emoções.
Ele se senta ereto, olhando para mim com franqueza.
– Sabe de uma coisa? Se Ashley voltasse para casa, e estivesse
completamente afastada das drogas, e dissesse para mim “Sean, tomei
decisões muito ruins. Não sei como explicá-las”, acho que isso bastaria.
– Mesmo? – pergunto.
Ele assente.
– Sinto a falta dela.
Passo meus braços ao redor dele, segurando-o junto ao meu peito. Não
acho que Sean chegou a chorar por causa da partida de Ashley, ou pela
possibilidade muito real de ela nunca voltar. Ou ainda pela horrível
probabilidade de a campainha tocar um dia e ser ela pedindo dinheiro.
Ou, pior, que um policial estivesse ali, contando a Sean que ela se fora
para sempre.
– Ficamos amigos? – pergunto.
– Sim – ele sussurra, pressionando o rosto no meu pescoço. – Sim,
também preciso disso.
Mudo de lá alguns dias mais tarde, e isso envolve apenas eu fazer as duas
malas que levei para lá alguns meses antes e me deslocar para seis
quarteirões de distância dali. Por menos de setecentos dólares por mês,
estou alugando um quarto vago na casa de Nancy Eaton – ela é médica na
minha unidade, e a filha acabou de se mudar para o leste para fazer
faculdade. É uma situação temporária; não porque Nancy não tivesse me
oferecido o lugar indefinidamente, mas porque sinto que seja assim. Tenho
uma casa em Berkeley e poderia muito bem vendê-la e comprar outro lugar
ali na cidade, mas só de pensar nisso sinto que seria uma traição. Eu poderia
alugar a casa e pagar o aluguel de outra na cidade, mas isso exigiria de mim
que eu desse uma olhada em todos os pertences dos meus pais, e também não
estou pronta para isso.
– Você está um farrapo – Elliot diz para mim do outro lado da linha depois
que eu ter lhe contado os detalhes do que fazer com a casa em Berkeley.
Ele não faz a mínima ideia: não contei que terminei com Sean. Se Elliot
soubesse que eu e Sean terminamos, ele viria até a cidade na mesma hora e
ficaria me encarando até eu ceder, me esticando para beijá-lo. Sean é a única
barreira. Ele é o amortecedor, me dando tempo para pensar. Não quero que
Elliot me encante e me faça apaixonar por ele de novo, nem que me
pressione a tomar uma decisão. Preciso de tempo.
Ouço um objeto caindo ao fundo e ele murmurando um “merda”, frustrado.
– O que foi isso? – pergunto.
– Acabei de derrubar uma panela na pia. Acho que seria bom eu lavar os
pratos.
– Seria.
– Como está Sean? – ele pergunta.
A mudança de assunto é tão repentina que me pega desprevenida.
– Bem – respondo e acrescento sem pensar: – Eu acho.
Sinto o modo como Elliot fica imóvel do outro lado.
– Você acha?
– É. – Tento me desviar. – Tenho andado ocupada.
– Está sendo evasiva comigo?
– Não – digo, fazendo uma careta enquanto procuro por uma meia-verdade
melhor. Olho ao redor do meu novo quarto, como se a resposta fosse se
materializar na parede de alguma maneira. – Eu só não o tenho visto muito
nos últimos dias.
– O que vão fazer no Dia de Ação de Graças? – ele pergunta. – Este será
o primeiro de vocês juntos, certo?
Droga.
– Acho que vou trabalhar.
– Você acha? – ele pergunta de novo, e parece que ele está comendo. – A
escala dos residentes não é mapeada com anos de antecedência?
– Sim – respondo, segurando com dois dedos a ponte do nariz. Odeio
mentir para ele. – Eu ia trocar para não ter que trabalhar no Natal, mas não
cheguei a me organizar. Provavelmente, terei folga.
Elliot faz uma pausa – provavelmente porque sabe que estou mentindo e
está tentando descobrir o motivo.
– Ok, então você tem planos ou não?
– Sean e Phoebe vão para a casa dos pais dele. – Hesito, prendendo o
fôlego. – Eu não.
Antecipo que ele vá desenvolver o assunto, fazer algum tipo de
comentário investigador do tipo “o que isso quer dizer?”, mas ele não faz
nada disso.
Limita-se a pigarrear e concluir:
– Muito bem, então você vem para cá. E é melhor eu lavar a louça antes
disso.
ANTES

QUARTA-FEIRA, 12 DE JULHO
ONZE ANOS ATRÁS

O verão em Healdsburg se transformou do zumbido quente e úmido das


abelhas, dos frutos silvestres e do brilho do sol para o chiado irritadiço dos
rios que secavam somado ao calor ininterrupto. À medida que os dias
passavam, parecia que nós também nos movíamos mais lentamente. Não
estava fresco em lugar nenhum, a não ser no rio e no closet. Mas até mesmo
o nosso santuário estrelado e azul começara a parecer claustrofóbico. Elliot
estava tão alto; ele parecia ocupar toda a extensão do local. E com quase
dezoito anos, vibrava com intensidade sexual – eu me sentia repleta de
energia nervosa tentando não tocar nele. Passávamos as manhãs vagueando
pelos bosques próximos às nossas casas e as tardes caminhando pelas vias
ou andando de bicicleta até a cidade para tomar sorvete… Mas acabávamos
sempre de volta ao closet, deitados no chão, fitando as estrelas pintadas.
– A escola logo vai recomeçar – comentei, relanceando para ele. – Está
animado?
Elliot deu de ombros.
– Claro.
– Você gosta das suas aulas em Santa Rita?
Ele olhou para mim, com as sobrancelhas unidas.
– Por que está perguntando isso agora?
Eu tinha acabado de começar a pensar nisso. Sobre a escola recomeçar no
outono, e nos aproximarmos do fim desse ciclo escolar. Sobre o que ele e eu
faríamos depois de o concluir, e se acabaríamos morando perto um do outro.
Morando um com o outro.
– Só estava pensando – respondi.
– Sim, acho que estou animado por estar tão perto do fim – ele disse. – E
as aulas na SRJC são boas. Mas acho que eu queria ter ido para a Cal alguns
dias da semana.
– Você tinha essa opção? – perguntei, surpresa.
Ele deu de ombros, um “sim” óbvio.
– Você vai ao baile de outono com a Emma? – perguntei, voltando a
rabiscar no meu caderno.
– Macy. Como assim? – Ele pareceu desnorteado, depois riu. – Não.
– Bom.
– Você quer ir comigo? – ele perguntou.
– Quer que eu vá ao baile da escola com você?
– Não? Sim? Depois da nossa conversa a respeito do modo correto de
misturarmos nossas vidas de fim de semana com a dos dias da semana, não
sei bem qual é a resposta certa – ele disse, com uma careta. – Mas se você
não for comigo, eu provavelmente não irei.
– Mesmo? – perguntei com o coração acelerado. – Porque não quero ir e
receber olhares mortíferos das vadias que te amam, mas não quero que você
vá e seja cobiçado sem que eu possa encará-las também.
Ele balançou a cabeça, rindo.
– Não é assim.
– Quer dizer então que a Emma não fica mais te mandando e-mails toda
hora?
– Não.
– Que mentira.
– Ela não manda. – Ele sustentou meu olhar com firmeza. – Não estou a
fim dela, e ela entendeu isso.
Bato os cílios recatadamente para ele.
– Não que eu esteja com ciúmes.
– Claro que não.
Bem nessa hora seu celular vibra, ele o pega, lê a mensagem e depois o
enfia de novo no bolso. Parecendo bastante culpado.
– Isso foi da Emma – arrisquei.
– Sim. – Ele puxa um fio solto inexistente da calça. – É como se o
universo quisesse me fazer parecer um mentiroso agora.
– O que ela disse?
– Nada de interessante. – Ele ri ante minha expressão cética. – Juro que
ela nunca me manda mensagens.
– Se não é nada interessante, por que não me conta?
Ele me encara.
– Ela só queria sair.
– Só isso?
– É.
– Bem, então me passa seu celular. Vou dizer pra ela que você está
ocupado.
Ele dá um sorriso malicioso.
– Vai incluir a parte em que está agindo insanamente ciumenta?
Rolo de costas e fecho os olhos.
– Tanto faz.
– Ou podemos tirar umas fotos dos seus peitos e acidentalmente mandar
pra ela.
– Caramba. Me dá logo esse celular.
Me estiquei para pegá-lo, mas os braços longuíssimos dele o mantiveram
longe de mim com extrema facilidade e eu acabei caindo por cima, em vez
disso, com meus peitos bem diante do rosto dele. Ele emitiu um som abafado
muito feliz e riu uma sequência de palavras ininteligíveis, afundando
completamente o rosto no meu peito.
Dei um grito, indo para trás e empurrando o peito dele para me afastar.
– Pervertido!
Elliot agarrou minha cintura e me mudou de posição ao se sentar, me
puxando para trás no colo dele, fazendo cócegas com aqueles seus dedos
enlouquecedoramente longos enterrados nas minhas costelas.
Arquejei e soltei um som estridente, me remexi enquanto ele fazia
cócegas, e gargalhei e prendi o braço dele ao redor da minha cintura até ele
rolar por cima de mim.
Ele me prendeu no chão suavemente; os quadris se encaixavam à
perfeição entre minhas pernas.
Nós dois congelamos, sem ar, encarando um ao outro.
Eu tinha dezessete anos, mas nunca sentira algo parecido antes. Ele estava
duro, pressionado contra mim.
O clima ficou completa e subitamente diferente daquele brincalhão, com
cócegas, um minuto antes.
Elliot baixou o olhar para a minha boca, e depois de volta para o meu
rosto. Eu queria dizer alguma coisa, fazer alguma piada a respeito da tora
dentro das calças dele, qualquer coisa. Mas minha garganta estava contraída,
meu rosto ardia.
Com um cotovelo apoiado junto à minha cabeça, ele sussurrou um abafado
pedido de desculpas e começou a sair de cima de mim.
Prendi-o com minha perna ao redor da coxa dele, e seus olhos voaram
para os meus.
– Fica – sussurrei.
Eu acho.
Pode ter sido o meu inconsciente falando, mas eu não queria mesmo que
ele se levantasse. Estava obcecada com o que havia por baixo dos botões do
jeans dele e, mais do que isso, eu queria saber se… Bem, eu queria saber o
que poderia acontecer.
Deu pra ouvir o som dele engolindo.
– Tá bom.
Rolei meu quadril para cima, observando a boca dele se abrir e os olhos
se fecharem.
Elliot moveu o corpo para a frente e para trás, pressionando a extensão
sólida contra mim, e de novo. Mais uma vez. A respiração dele estava mais
laboriosa, expelindo o ar junto ao meu pescoço, e depois a mão agarrou
minha perna, ele prendeu a respiração e começamos a nos mover com mais
vigor… juntos. Meu corpo era puro instinto, caçando algo conhecido nas
proximidades.
Ai, meu Deus. O que estávamos fazendo?
Deslizei as mãos pelas costas dele. Se eu pensasse demais, acabaria
arruinando tudo.
Aquele era Elliot.
Aquele era o meu Elliot.
Cerrei os punhos na camiseta dele, pensei nas coisas mais estranhas, como
o peso dele em cima de mim, e também na minha vontade de beijá-lo, apesar
de não querer desviar minha atenção, nem mesmo um pouquinho, da
sensação que crescia dentro de mim… E depois passei para uma série
estranha de pensamentos nos quais acreditava estar imaginando aquilo.
Estávamos fazendo sexo vestidos.
Ele estava muito calado, apesar de eu achar que também devia estar,
porque estava atenta a qualquer indício de pensamento da parte dele,
qualquer que fosse.
Eu precisava de mais. Eu precisava dele. Nunca antes sentira aquele calor
pesado antes, nem mesmo quando pensava nele sozinha. Era um fluxo em
toda a minha pele e aquele desejo pungente no meu baixo ventre. O calor da
boca dele aterrissando no meu pescoço arrancou um sonzinho impotente de
dentro de mim. Ele não estava chupando, nem lambendo, apenas pressionava
a boca ali, fazendo com que sua respiração se aproximasse ainda mais do
meu ouvido, e assim pude ouvir a reação dele a cada exalação brusca.
Ele emitiu um grunhido, e eu me pressionei contra ele, me enterrando, bem
perto. Ouvi o som que eu mesma produzi – ouvi a súplica de mais rápido
sair rasgada de dentro de mim.
Com uma pegada firme, Elliot me conteve com a mão no meu quadril.
– Droga – ele disse. – Espera. Droga.
De repente ele estava se afastando, ficando de pé. Eu me sentei, com
palavras atordoadas nos lábios, mas Elliot já saía pela porta.
O que tinha acabado de acontecer?
Será que ele…? Ou apenas percebeu o que eu havia começado e se
apavorou? No fim das contas, será que Elliot queria mesmo ser meu
namorado ou se equivocara quanto a isso?
Adernei de cabeça no pânico.
Éassimquecomeça.Éassimqueaamizadepassadomelhoremaisperfeito
amigo para nada além de uma troca de olhares estranhos e lascivos ao
longo do jardim.
Permaneci sentada num canto do closet por uma hora, encarando as
páginas de qualquer que fosse o livro que puxei da enorme estante, sem ler
nem uma palavra sequer.
Eu contaria até mil, e depois iria até a casa dele para me desculpar.
Um… dois… três…
Vinte e oito… vinte e nove…
Duzentos e trinta…
– O que está lendo? – A voz dele surgiu na soleira, mas, em vez de ele
entrar e se sentar perto de mim, ficou por lá mesmo, apoiado no batente.
– Oi! – eu disse com alegria excessiva, os olhos focados em qualquer
outro ponto menos nos dele. Notei que ele havia trocado de roupa. Meu rosto
estava pegando fogo e eu baixei o olhar, encarando o livro que tinha nas
mãos. As letras do título lentamente nadaram, formando uma única palavra e
eu apontei para ele desajeitadamente. – Hum… Comecei Ivanhoé.
Quando ergui o olhar, a confusão atravessava o rosto dele num instante, e
ele entrou.
– Mesmo?
– É – disse lentamente, observando-o se esgueirar pelo cômodo. O lábio
dele estava levemente inclinado num meio sorriso brincalhão. – Por que
falou desse jeito? Você o leu umas cinquenta vezes.
– É só que parece que você já está na metade. – Coçando a têmpora, ele
acrescentou baixinho: – Isso é impressionante.
Pisquei para a página a qual havia aberto aleatoriamente.
– Ah.
O ar estava denso e pesado entre nós e fazia meu peito doer. Eu queria
perguntar se o havia constrangido ou… droga. Será que o machuquei?
– Macy… – Ele começou, e eu conhecia aquela voz. Aquela era a voz do
lento desapontamento.
Tentei rir, mas o riso saiu como um arquejo, tentando ser casual, mas
passando bem longe disso.
– Estou angustiada, Elliot, de verdade. Eu sinto muito. Não vamos falar
sobre isso.
Elliot assentiu, com os olhos pregados no chão.
– Claro.
– Sinto muito por ter feito isso, ok? – sussurrei para o meu colo.
– O quê? Macy, não…
– Isso nunca mais vai acontecer, juro. Eu só estava experimentando. Sei
que tenho agido tipo “não vamos ficar juntos porque pode estragar tudo”,
mas depois acabo fazendo aquilo. Desculpa, mesmo.
Ele tirou um livro da prateleira e eu voltei para Ivanhoé – começando do
começo dessa vez – e li por duas horas, mas mal entendi uma palavra. Culpo
meu estado mental. A ideia de que eu pudesse tê-lo machucado, ou
envergonhado, ou irritado me corroía como uma gota de ácido nas entranhas.
Que cresceu e cresceu dentro de mim, me dilacerando de modo que fez com
que eu me revirasse como se fosse passar mal.
– Ell?
Ele levantou os olhos, suavizando-os de imediato.
– Oi.
– Te machuquei?
Um canto dos lábios dele se ergueu num sorriso enquanto ele tentava não
rir.
– Não.
Exalei pelo que pareceu ser a primeira vez em horas.
– Ok, que bom. – Abri a boca e a fechei de novo, incerta sobre o que mais
dizer.
Ele baixou o livro e se aproximou.
– Você não me machucou. – Procurou meus olhos, esperando. – Entende o
que estou tentando dizer?
Observei as sobrancelhas dele se elevarem lentamente, e depois ele sorriu
daquele seu jeito furtivo e sensual…
– Quer dizer que você… – Esbocei um gesto circular com a mão, e ele
gargalhou.
– É. Eu… – E imitou o gesto, com os olhos travessos.
Meu coração se transformou num monstro vitorioso dentro do peito,
querendo explodir para fora.
Eu o fiz gozar.
– Eu estava tentando fazer com que você conseguisse primeiro – ele
admitiu baixinho –, mas o som que você fez… quando me pediu pra ir mais
rápido… – Ele engoliu, levantando um ombro num silencioso “puxa”.
– Ah. – Encarei-o, observando-o combater o rubor. – Desculpa.
– Macy, não se desculpe. Estou te dizendo que foi sexy. – Olhou para
meus lábios, e a expressão dele se tornou séria de novo. – É difícil pra mim
às vezes por não estarmos juntos. Nunca sei qual é o limite. E quero cruzar
os limites o tempo todo. Nos beijamos e nos tocamos, mas depois voltamos a
ser só amigos e isso é confuso. Sabe isso que fizemos hoje? Não chegou nem
perto de bastar pra mim. – Levantou as mãos com os olhos arregalados. –
Não estou dizendo que você deveria fazer mais. É só que eu quero tudo com
você. E penso nisso o tempo inteiro.
Pensei em quanto eu também queria isso. E em como, pouco antes, eu quis
tão mais do que o corpo dele em cima de mim, nós dois estando vestidos. Eu
teria lhe dado tudo hoje. Mas, mesmo assim, as palavras que saíram de mim
foram:
– Mas eu morreria sem a sua amizade.
Ele sorriu e se inclinou para me beijar no rosto.
– Eu também.
HOJE

QUINTA-FEIRA, 23 DE NOVEMBRO

O prédio de Elliot é estreito, com fachada num tom de roxo desbotado e


deve ter sido uma linda casa vitoriana antes de ter sido levianamente
dividido em quatro pequenos apartamentos.
A porta da frente dá para um corredor estreito à direita e um lance de
escadas que leva aos apartamentos de cima. Elliot mora no número quatro.
Subindo as escadas à direita, ele disse. Cada degrau range debaixo das
minhas botas.
Sua porta é lisa, marrom e diante dela há um capacho esguio contendo uma
citação de Dickinson: A alma deveria sempre ficar entreaberta.
Levanto o punho e bato.
É possível que eu reconheça o peso das suas passadas e o ritmo do seu
caminhar? Ou sei disso por ele ser a única pessoa ali dentro – porque
cheguei cedo? De todo modo, minha pulsação acelera tanto que, quando ele
gira a maçaneta e abre a porta, estou até meio tonta.
Em algum momento da última década, Elliot descobriu como pentear o
cabelo e como se vestir. Está usando calças jeans pretas e uma camisa jeans
escura desbotada – não sei se de verdade ou por questão de estilo – com as
mangas enroladas até os cotovelos. Os pés estão descalços.
Pés descalços. Apartamento do Elliot. Ali dentro em algum lugar está a
cama do Elliot.
Se eu não tomar cuidado, não vou voltar para casa esta noite.
Puxa vida, sou uma confusão ambulante.
– Macy! – ele exclama e me puxa para um abraço, me arrastando para
dentro com o braço ao redor dos meus ombros. Quando se afasta, fechando a
porta atrás de mim, o sorriso que vejo em seu rosto poderia iluminar uma
cidade. – Você está aqui. Você está no meu apartamento!
Elliot se inclina e me beija castamente na bochecha.
– Seu rosto está tão frio!
– Vim andando do metrô até aqui. Está fresquinho lá fora. – O calor
irradia do ponto onde os lábios dele tocaram minha pele, e eu ponho de lado
a torta que trouxe para poder tirar a jaqueta.
Ele se afasta um pouco, surpreso.
– Não veio dirigindo?
– Não sou fã de carros – respondo, sorrindo.
Em silêncio, ele pega minha jaqueta.
– Eu poderia ter ido te buscar.
Pouso a palma da mão no peito dele, sussurro:
– Você mora a seis quarteirões da estação. Estou bem.
– Desculpe, estou nervoso. – Ele sacode um pouco os ombros para relaxá-
los. – Vou tentar levar isso numa boa… esta noite. Provavelmente vou me
dar mal.
Dou risada, entregando a torta de nozes-pecã que comprei pela manhã.
– Não é a receita da sua mãe, infelizmente. Eles vêm?
Ele meneia a cabeça e depois a inclina, chamando-me para conhecer o
apartamento. Eu o sigo ao longo de uma pequena sala de estar até a cozinha
ainda menor.
– Eles vão para a casa dos futuros sogros do Andreas, em Mendocino.
Não queríamos que todo o clã Petropoulos despencasse lá; Else, a noiva
dele, é filha única, e acho que eles não saberiam o que fazer com todos nós.
Apenas mamãe, papai, Andreas e Alex irão para lá.
– Quem vem hoje? – pergunto, observando-o colocar a torta na bancada.
Ele conseguiu dispor tudo de que precisa no espaço pequeno, e é meticuloso
apesar do tamanho.
Elliot se vira, apoiando-se de leve na bancada. A camisa se estica no
peito, abrindo-se no colarinho, revelando a clavícula e o indício de pelos.
Meu coração me golpeia por dentro.
– Meu amigo Desmond – ele diz, e levanta a mão para coçar o queixo. – E
Rachel.
Fico paralisada, encaro-o de olhos arregalados. Instintivamente, confiro o
que estou vestindo e olho de novo para ele.
– Rachel vem pra cá?
Ele confirma, observando-me atentamente.
– Isso vai te deixar constrangida?
Tento não expor demais o que estou sentindo, mas sinto as sobrancelhas se
unindo, formando uma carranca na testa.
– Acho que não?
– Pareceu muito uma pergunta – ele comenta baixinho. Afastando-se da
bancada, dá dois passos na minha direção. – Eu deveria ter mencionado. Ela
não tem família na região. Nem… muitos amigos por perto.
Olho ao redor do cômodo em que estamos parados.
– Ela morava aqui com você?
– Não – ele responde. – Mas passava bastante tempo aqui.
Puxa. Olho para o fogão e vejo imagens dessa Rachel desconhecida ali
em frente, preparando ovos mexidos de lingerie enquanto Elliot toma banho.
Visualizo-o servindo café para ela depois, beijando-lhe o ombro nu e pálido.
Fico me perguntando se esse ciúme ardente foi o que ele sentiu ao me ver
com Sean, sabendo que eu dormia na mesma cama com ele, que deixava que
me tocasse da maneira como Elliot apenas começara a fazer.
Virando o olhar para ele, digo:
– Estou tentando não ter um ataque porque a sua ex-namorada vem aqui
hoje.
Elliot ergue um ombro.
– Eu entendo. Talvez eu não tenha planejado muito bem.
– Não foi intencional trazer nós duas aqui para que eu sentisse… ciúmes?
Nem um pouco?
– Juro que não.
Basta olhar para seu rosto e já acredito. Elliot, em muitas ocasiões, esteve
alheio ao quanto as outras garotas de sua vida me afetavam, mas ele não era
cruel. Assentindo, olho para o chão.
– Ela sabe quem eu sou?
– Sim.
Outro pensamento me ocorre.
– Ela sabe que estarei aqui?
Ele hesita e a culpa se espalha num rubor que sobe pelo pescoço.
– Sim.
– Então ela sabia, mas eu não? Elliot, sério?
Ele levanta a mão, coçando o alto da cabeça.
– Eu queria que você viesse. – Os olhos dele se tornam acolhedores e
suaves, do jeito que sempre ficam quando ele está ansioso a respeito de
alguma coisa. – Eu queria muito, muito mesmo que você viesse. E não queria
que ela ficasse sozinha hoje. Mas fiquei preocupado que, caso eu te
contasse, você desse pra trás.
E provavelmente eu teria dado. Nada me parece mais constrangedor do
que uma refeição celebrando uma data festiva com a ex-namorada de Elliot.
– Ela acha que nós… estamos juntos?
– Não sei o que ela acha – ele diz. – Mas isso não tem importância, tem? –
Ele me observa atentamente. – Você está noiva.
A culpa me dilacera, lançando uma pontada de dor nas minhas costelas.
Não estou pronta para contar a Elliot que estou solteira, mas também não me
sinto bem ao deixar que ele pense que estou sendo cronicamente infiel no
âmbito emocional.
– As coisas estão… complicadas.
Ele parece ruminar essas palavras por alguns segundos antes de pegar
minha mão, me puxando.
– Vem. Vamos fazer o grande tour.
A sala de estar é mais comprida do que larga, e na parte estreita há uma
janela alta com vista para um surpreendente e belo jardim. Há figueiras,
ameixeiras e um minúsculo gramado verdejante – uma raridade na região.
– O gramado é falso – ele explica. – O proprietário insiste que tenhamos
esse espaço externo.
Olho para a sala, as prateleiras se estendem do teto ao chão, com uma
escada de correr conectada à beira superior. O sofá é de um azul vibrante, e
limpo, com almofadas multicoloridas. Na extremidade oposta da sala, perto
à porta de entrada, ele arrumou uma mesa dobrável que está posta com
toalha, sousplats e um minúsculo arranjo de mesa, uma cuia com cranberries.
Devo ter passado por ela ao entrar, mas estava tão excitada e nervosa que
não notei.
– Sua casa é muito bonita – sussurro, ajeitando o cabelo atrás da orelha.
Elliot o vê deslizando para a frente de novo e engole em seco.
Provavelmente sabe que o deixei solto por sua causa. – Conte um pouco do
seu livro.
– Literatura fantástica – ele diz, olhando para suas prateleiras. Depois
volta a olhar para mim e seus olhos brilham com um divertimento contido. –
Tem dragões.
– Então está escrevendo pornografia? – brinco, e ele explode numa risada.
– Não exatamente.
– É só isso mesmo que você vai me contar?
Sorrindo, ele pega minha mão de novo.
– Vamos terminar o tour.
Cruzamos uma porta do outro lado da sala, perto da cozinha, e estamos em
um minúsculo corredor. À esquerda fica o quarto dele. À direita, o banheiro.
O banheiro tem uma banheira pequena, mas não tem chuveiro, apenas uma
mangueira afixada à torneira, pendurada inerte para baixo, pescoço penso em
sinal de derrota.
– Você não tem um chuveiro – comento, recuando e sentindo a intimidade
repentina de estar no espaço dele. É tão fundamentalmente ele: mobília
esparsa sem contar a estante que vai do chão ao teto com prateleiras tomadas
por livros.
Elliot me observa quando me recosto na parede do corredor. O espaço é
diminuto, e ele parece preenchê-lo com sua altura e com a largura do peito.
– Não sei se eu poderia viver só com uma banheira – tagarelo.
– Eu chamo isso de “chunheira” – ele diz.
– Parece pornográfico.
Estou encarando o peito dele, mas ouço o riso em sua voz.
– Acho que é por isso que a chamo assim.
Ele dá um passo para perto.
– Ainda parece surreal ter um lugar só meu. Como se fosse um pequeno
milagre viver aqui sozinho. Tão diferente do modo como fui criado.
– Você gosta de morar sozinho? – pergunto.
Ele hesita pela duração de três batidas do meu coração, que está
martelando.
– O quanto quer que eu seja honesto?
Olho para ele. Puxa. Acho que o que está por vir vai me abalar, mas peço
por isso mesmo assim:
– Quero que você seja sempre honesto.
– Ok. Nesse caso, gosto de morar sozinho, mas preferiria morar com você.
Gosto de dormir sozinho, mas preferiria ter você na minha cama. – Ele
levanta a mão e passa um dedo pelo lábio, refletindo sobre as próximas
palavras, e sua voz fica mais grave, mais baixa. – Gosto de receber amigos
para o jantar de Ação de Graças, mas preferiria que fôssemos só nós dois,
comemorando o nosso primeiro Dia de Ação de Graças juntos, como casal,
comendo peru com as mãos, aninhados no chão.
– Só com roupa de baixo – digo sem pensar.
A primeira reação dele é um choque silencioso, mas lentamente se
dissolve num sorriso que derrete meu sangue, fazendo algo começar a
fervilhar debaixo da pele.
– Então as coisas andam “complicadas”?
Sou salva da minha desintegrada decisão de ficar calada a respeito de
Sean quando há uma batida na porta atrás dele. Elliot me fita, com uma luz
urgente nos olhos, como se soubesse que estou prestes a contar uma
novidade importante.
Levanto o queixo na direção da porta depois que continuamos nos olhando
por quase dez segundos silenciosos.
– Acho bom você atender.
Com um pequeno grunhido de derrota, ele se vira e abre a porta para os
outros dois convidados entrarem.
Desmond entra na frente. Ele é mais baixo do que Elliot, mas bem
musculoso, tem pele morena imberbe e um sorriso que parece
permanentemente fixo em seus olhos. Ele entrega uma tigela contendo uma
salada colorida e bate nas costas de Elliot, agradecendo pelo convite.
Rachel entra em seguida, mas me distraio dela porque Desmond se
aproxima, apresentando-se com um sotaque australiano carregado:
– Sou o Des. Prazer em te conhecer.
– Macy – digo, apertando a mão dele e acrescentando sem jeito: – É um
prazer finalmente te conhecer.
Na verdade, eu não tenho a mínima ideia de quanto tempo Elliot o
conhece. Sinto a boca seca, as mãos umedecem.
Levanto o olhar e descubro que Rachel está me encarando. Ela pisca para
disfarçar, sorrindo de maneira forçada enquanto espera que Elliot faça as
apresentações.
– Rachel – Elliot diz, guiando-a para a frente –, está é a Macy.
Ela tem cabelos escuros curtos, olhos azul-claros e um salpico de sardas
no nariz e nas bochechas. Quando sorri dessa vez, o sorriso parece pelo
menos em parte genuíno, e ela revela dentes brancos e alinhados. Ela é
absolutamente adorável.
– Olá, Rachel. – Estendo a mão e ela devolve o aperto, meio frouxo.
– É um prazer te conhecer – ela diz, ainda sorrindo.
As palavras escapam antes que eu perceba o que estou fazendo:
– Obrigada por vir.
Como se eu tivesse ido ali um milhão de vezes. Como se eu morasse ali,
como se fosse a anfitriã.
Ela se vira para Elliot, retraindo-se novamente. Ele se inclina, oferecendo
um sorrisinho apaziguador.
Meu peito se contrai de ciúme e sentimento de posse. Não gosto daquela
troca silenciosa. Não gosto da sensação de que eles têm um passado, um
ritmo, uma linguagem tácita.
– Onde ponho isto? – ela pergunta, erguendo uma sacola de lona com
algumas garrafas de vinho dentro.
– Na geladeira – Elliot responde, apertando o ombro dela e lhe lançando
mais um olhar demorado e encorajador antes de soltá-la e se aproximar de
mim.
Rachel desaparece, e Elliot olha para Des, que sacode de leve a cabeça
quando ela sai.
– Ela está bem, chapa – Des diz baixinho. – Seguindo em frente. – E se
vira para mim, com um sorriso solto. – E aqui está você. Em carne e osso.
Desvio desse possível curso na conversa com uma pergunta:
– Como vocês se conheceram?
– No rúgbi – Des responde.
Minha risada explode mais alta do que eu esperava, e os olhos de Des se
arregalam de prazer.
– Eu não te conheço, Macy, mas acho que seremos ótimos amigos.
– Ei! – Elliot protesta, rindo.
Voltando sua atenção para mim, Des acrescenta:
– Na verdade, ele é muito bom nisso.
– Não pode ser – replico, refreando um sorriso ao olhar para Elliot em
toda a sua glória de rato de biblioteca. – Esse cara? Rúgbi?
– Para com isso – Elliot diz, fingindo um olhar ferido para mim.
– Lembro de quando você começou a patinar – comento.
Os olhos de Desmond se estreitam.
– Patinar no gelo?
Outra risada alta explode de mim, e Elliot me prende numa chave de
braço.
– Era skate, sua danada – grunhe nos meus cabelos.
Lutamos por um segundo e depois paramos ao mesmo tempo, prestando
atenção ao silêncio que se instaurou. Rachel está parada perto da porta da
cozinha, segurando uma garrafa de vinho aberta. Os olhos de Des passam
dela para Elliot e vice-versa.
– Mais alguém quer vinho? – ela pergunta. – Ou… só eu?
Des dá uma risada divertida, achando que ela está fazendo graça, mas
Rachel continua séria, inclinando a garrafa para os lábios para sorver alguns
goles. Afasta a garrafa e enxuga a boca com o dorso da mão.
Elliot me solta devagar da chave de braço, endireitando a camisa
enquanto eu ajeito os cabelos. Sinto como se tivéssemos cometido alguma
infração. Lá estamos nós, de pé na sala de estar espartana dele com aquela
verdade contrastante diante de nós: nunca tivemos que lidar com efeitos
colaterais antes. As partes mais confusas das nossas vidas sempre foram
compartimentadas à semana escolar, ou mantidas em particular por uma
década. Não faço a mínima ideia de como ele vai reagir.
– Rach – ele diz baixinho. – Vamos lá.
É uma reprimenda suave que não consigo imaginá-lo dirigindo a mim, mas
ainda assim, há algo sedutor ali, uma tranquilidade que sinto ser obscena e
íntima demais.
– Vamos lá o quê? – ela rebate.
– Pensei que quisesse vir aqui.
– Acontece que não é tão fácil quanto imaginei que seria.
Por que diabos ela acreditaria que aquilo poderia ser fácil?
– Não preciso ficar – comecei a dizer, mas tanto Des quanto Elliot logo
interviram.
– Não, não, não – Elliot diz, virando-se para mim.
– Não seja boba – Des diz. – Está tudo bem.
Olho para Rachel, que me encara com fúria evidente. Sei exatamente o que
ela está pensando: Não está nada bem.
– Você o machucou demais – ela diz baixinho.
– Rachel – Elliot diz, a voz baixa num aviso. – Não.
– Não o quê? – Ela se vira de frente para ele. – Vocês já conversaram?
Ela tem alguma noção?
Des percebe que precisa ir no banheiro naquele exato momento, e fico
morrendo de inveja por ele poder dar no pé, mas eu tenho que ficar ali
enquanto estilhaços afiados chovem em cima de nós.
Mas, ao mesmo tempo, quero saber o que ela acha que preciso saber.
– Noção a respeito de quê? – pergunto para ele.
Elliot meneia a cabeça.
– Não vamos fazer isso agora.
Ela responde, apoiando-se no batente da porta da cozinha:
– Noção do quanto você acabou com ele. Do quanto ninguém…
– Rachel. – A voz de Elliot foi como uma lâmina cortando o ar. Nunca,
jamais o ouvi usar esse tom antes, e isso deixa meus pelos arrepiados.
Continuo olhando para ele, e foi preciso um esforço monumental para não
me despedaçar ao pensar em tudo o que escapa ali. Sei como foi a minha
vida depois que nos separamos, mas eu não suportaria pensar em como foi a
dele também.
– Tenho certeza de que nós dois ficamos acabados – digo. – Acho que é
isso o que estamos tentando consertar, não? – Olho de novo para Rachel. –
Mas nada disso lhe diz respeito.
– Me disse respeito por cinco anos – ela retruca. Cinco anos. Foi o tempo
que eu tive também. – E foi muito da minha conta por pelo menos um deles.
Que merda ela quer dizer com isso?
Elliot levanta a mão, esfregando o rosto.
– Vamos chegar a esse ponto?
– Não. – Rachel olha para ele, depois para mim, então atravessa a sala a
fim de pegar sua bolsa e vai embora.
ANTES

SEXTA-FEIRA, 25 DE AGOSTO ONZE


ANOS ATRÁS

As férias de verão terminaram num dia escaldante de agosto. Papai, Elliot


e eu carregamos o carro e depois Elliot ficou visivelmente de lado,
aguardando o nosso costumeiro adeus.
Era a quarta vez que fazíamos isso – separação depois de um verão de
longas tardes compartilhadas – mas esta era, de longe, a mais difícil. Tudo
havia mudado.
Como sempre foi entre nós – demos dois passos à frente e dois para trás
–, não voltamos a nos beijar e certamente não passamos mais o tempo nos
agarrando no chão. Mas havia uma nova ternura ali. A mão dele encontrava a
minha enquanto líamos. Eu cochilava no ombro dele e acordava com seus
dedos enfiados nos meus cabelos e o corpo relaxado e adormecido ao lado
do meu, minha perna por cima do quadril dele. Finalmente, era como se
estivéssemos juntos.
Papai também pareceu notar isso, e, depois de fechar o porta-malas do seu
Audi novo com uma batida firme, sorriu sem graça para nós e voltou a entrar
na casa.
– A gente devia conversar sobre isso – Elliot disse baixinho. Não tinha
que explicar a que se referia.
– Tudo bem.
Segurou minha mão e me levou para a sombra entre as nossas casas. Nos
sentamos lá, num trecho de grama entre as janelas da minha sala de jantar, de
costas para a lateral da casa e de mãos dadas, fora das vistas de qualquer um
em ambas as casas.
– Nós ficamos juntos – ele sussurrou. – E… nos tocamos… como se
fôssemos mais do que amigos.
– Eu sei.
– Também conversamos um com o outro como se fôssemos mais do que
amigos… – Ele deixa as palavras no ar e eu olho para ele, captando o
carinho em sua expressão. – Não quero que você volte para casa pensando
que eu estou fazendo isso com alguma outra pessoa.
Minha boca se retorceu, e eu puxei um fiapo de grama comprido.
– Eu também não quero pensar em você fazendo isso com alguma outra
pessoa.
– O que a gente vai fazer?
Sei que ele está perguntando mais do que o óbvio de namorados que se
tocam e se beijam. Ele está se referindo a algo maior, quando as nossas
vidas começarem a existir fora do meu closet e longe do telhado dele, e
quando tivermos que nos satisfazer com mais do que um ou dois fins de
semana ao mês juntos.
Tracejo as linhas dos tendões do dorso da mão esquerda dele. Com a
direita, ele passa um dedo com suavidade do meu joelho até o meio da coxa,
depois desce de novo.
– Qual é a sua palavra favorita? – pergunto sem levantar o olhar.
– Maturação – ele responde, sem hesitar, com a voz grave e rouca.
Meu rubor explode pela pele, um rastro de vermelho escaldante que sinto
pairando nas bochechas muito depois de ele ter interrompido o contato
visual.
– A sua?
Olho para ele, os olhos castanho-esverdeados grandes e curiosos, algo
mais selvagem mal contido no anel escuro ao redor das íris. Debaixo da
superfície, escondido pela palavra sua?, existe algo mais sedento: dentes na
pele, unhas, o som dele grunhindo meu nome. Elliot era sexy. Que garoto da
nossa idade usaria a palavra maturação?
Não existia ninguém mais como ele no mundo.
– Epifania – disse baixinho.
Ele lambeu os lábios, sorriu. O algo debaixo da superfície cresceu, mais
insistente.
– Essa também é boa.
Olhei para a mão dele, acariciando o dorso com o polegar, e disse:
– Acho que a gente devia parar de fingir que não está junto.
Quando volto a olhar para ele, seu sorriso se ampliou.
– Concordo.
– Bom.
– Vou te dar um beijo de despedida – ele disse.
Inclinei a cabeça para ficar de frente para ele.
– Bom.
E senti o hálito dele na minha boca, a mão espalmando meu queixo. Meus
lábios se abriram colados aos dele e, como antes, pareceu natural sugar a
boca, deixar que a língua tocasse a minha, saborear os sons dele. Os dedos
deslizaram pelos meus cabelos, as duas mãos passaram a segurar minha
cabeça, a boca tinha urgência.
E por que fizemos isso ali fora, onde não podíamos nos deitar e nos beijar
até que as bocas entorpecessem e os corpos pegassem fogo? Mesmo com
esse mínimo toque, eu ansiava por mais. Eu o queria todo sobre mim de
novo, queria esse último lembrete do peso dele e da presença firme do seu
desejo por mim me pressionando entre as pernas.
Emiti um suspiro tênue e breve, e ele se afastou, me olhando no fundo dos
olhos.
– Vamos fazer isso devagar – ele disse.
– Não quero ir devagar.
– É o único jeito de garantir que faremos isso do jeito certo.
Com o rosto entre as mãos que me amparavam, aquiesci, e ele me beijou
uma vez mais.
– Eu te vejo daqui a duas semanas.
HOJE

QUINTA-FEIRA, 23 DE NOVEMBRO

Des sai do banheiro, enxugando as mãos nos jeans como se tivesse


entrado lá por motivos reais, e não para se esconder da batalha das “ex” na
sala de estar. Ele nos encara com um sorriso radiante que aos poucos vai se
derretendo quando percebe que Rachel já não está ali.
– Sério? – pergunta a Elliot, que dá de ombros, impotente.
– Não sei o que dizer a ela – argumenta Elliot. – Ela disse que ficaria tudo
bem. Mas está na cara que não ficou.
Elliot se vira e vai para a cozinha. Percebo que está aborrecido porque
Rachel saiu fugindo, e quero pensar que é porque ele é uma pessoa afetuosa
e não por estar preocupado em ter estragado algo a longo prazo com ela.
Mas, Jesus, quem não teria antecipado isso?
Ele permanece de pé no espaço diminuto, curvado para checar o peru,
depois se apoia com as mãos nas laterais do fogão, inspirando fundo
algumas vezes.
Deparo-me com os olhos de Des, que levanta o queixo, indicando que eu
fosse até lá.
– Ele é péssimo com esse tipo de coisa.
E isso me abala. Tenho certeza de que Des está certo, mas é uma conexão
nova que tenho que fazer para poder acreditar de verdade nisso: de nós dois,
Elliot sempre foi o melhor para lidar com emoções complicadas.
Mesmo iluminada por conta de uma grande janela na ponta, a cozinha
agora parece ainda menor. Deslizo as mãos pelas costas de Elliot, sentindo
os músculos tensos, e massageio seus ombros.
O toque é muito íntimo, sei que não posso mais mentir para ele a respeito
de Sean sem parecer que estou fazendo jogo duplo. Ele olha para mim por
cima do ombro.
– Sinto muito – digo. – Sinto que eu talvez não devesse ter vindo.
Ele fica de frente para mim, ainda se apoiando no fogão.
– Eu quero mesmo que você esteja aqui. O fato de você ter sido convidada
não estava aberto para debate. Ela tinha a escolha de vir ou não.
– Sei disso, mas você é amigo dela há muito tempo.
Virando-se para o lado, ele fica olhando para fora da janela, o maxilar
tenso enquanto pensa. O perfil dele está tão… adulto. Meu cérebro ainda
contém um número absurdo de imagens do jovem Elliot. Olhar para ele agora
é o mesmo que olhar por um telescópio para o futuro. É estranho estar tão
perto e imaginar todos os momentos que ele viveu sem mim.
– Precisamos mesmo conversar em algum momento – ele sussurra.
– Sobre Rachel?
Elliot fecha a cara.
– Sobre tudo, Mace.
Sei que preciso ouvir o que ele tem a dizer – e, por Deus, também lhe
devo a minha história –, mas hoje definitivamente não é o dia para mais uma
mulher ter um ataque de nervos no apartamento dele.
– Então – digo, também baixo porque sei que Des está no cômodo ao lado
–, vamos encontrar um tempo para isso. Talvez… depois do casamento do
Andreas?
– O quê? – Ele se vira para mim, incrédulo. – Isso é daqui um mês.
– Acho que um mês cai bem. – O toque do timer dispara na bancada, mas
nós dois o ignoramos.
Elliot balança um pouco a cabeça.
– Já se passaram onze anos.
– Timer – Des avisa da sala de estar.
– Tirei um dia de folga hoje, então vou ter que trabalhar no Natal. – Olho
para além dele, para o exaustor acima do fogão. – Vou tirar mais quatro dias
no Ano-Novo para o casamento, então estarei mesmo trabalhando todos os
dias daqui até lá, e eu preciso… – Preciso de tempo fora do trabalho para
pensar em como desembalar tudo o que tenho a contar para ele. Sobre Sean,
sobre a última noite em que vi Elliot, há onze anos, e sobre tudo o que
aconteceu depois.
Des se inclina para dentro da cozinha e grita para a gente antes de voltar a
sair:
– Ei, tem alguma coisa tocando!
Elliot estica a mão, silenciando o timer com um tapa.
Voltando-se para mim, ele se inclina para que seus olhos fiquem no nível
dos meus, vasculhando.
– Macy, você sabe que eu arranjaria um tempo para você qualquer dia.
Qualquer intervalo que eu tiver é seu.
A verdade é entregue tão facilmente que paralisa os instintos que me
dizem para ir devagar, para dar um respiro entre o fim do meu noivado com
Sean e o mergulho de volta em Elliot. A primeira confissão escapa de mim:
– Sean e eu terminamos.
Vejo a pulsação dele acelerar na garganta.
– O quê?
Acabei de despejar uma bomba do alto de uma nuvem.
– Eu não… No fim… Não era o que eu queria…
– Você deixou o Sean?
Engulo a necessidade de chorar diante da esperança que vejo nos olhos
dele.
– Sim, eu me mudei de lá.
As mãos de Elliot vão para a frente dos meus jeans, o indicador se
engancha por dentro, deslizando até meu umbigo, e ele usa esse ponto para
me atrair para mais perto.
– Para onde você se mudou?
– Estou alugando um quarto na cidade.
O sangue sobe à superfície do meu rosto, ávida pelo que imagino que
esteja por vir – sua boca se abaixando sobre a minha, o alívio absoluto
advindo disso, a sensação da língua dele deslizando pelos meus lábios, a
vibração dos sons.
Fecho os olhos, e, depois de um segundo, cedo à fantasia: o deslizar das
mãos dele por baixo da minha blusa ao longo da cintura, ele me levantando,
me apoiando no balcão, encaixando-se entre minhas pernas se pressionando
em mim.
Por isso, recuo, trêmula com o esforço.
– Você se lembra do que eu disse em Tilden? – começo. – Sobre sentir
tantas coisas com você?
Eledizquesim,comoolharfixonaminhaboca,arespiraçãoentrecortada.
– Não quero me apressar em nada às cegas. – Engulo, fazendo uma careta.
– Ainda mais com você. Já estragamos tudo uma vez antes.
Há uma intensidade entre nós que sempre esteve presente. Ela costumava
me fazer ter confiança de que ele era a minha pessoa, de que eu era a dele. E
agora, ele deixou a namorada por causa disso, e eu deixei o meu noivo, mas,
na verdade, nós só retomamos contato há um mês depois de onze anos no
escuro. O melhor amigo dele no cômodo ao lado é um completo
desconhecido para mim, e a mulher que acabou de sair sabe mais sobre o
sofrimento de Elliot do que eu. Ainda estamos confusos demais.
– Vamos comer o peru – digo, com suavidade tirando o dedo dele de
dentro dos meus jeans. – Vou precisar me esforçar um pouco para conseguir
juntar as minhas palavras, está bem?
Elliot desliza a mão para meu quadril, murmurando:
– Ok. Claro. O que você precisar.
Permito-me um toque íntimo e o uso para pressionar a mão sobre o
coração selvagemente disparado dele.
ANTES

ONZE ANOS ATRÁS

De: Macy Lea Sorensen <minlilleblomst@hotmail.com>


Data: 1 de setembro, 6h23
Para: Elliot P. <elliverstravels@yahoo.com>
Assunto: Saudades
Absurdas de você.

De: Elliot P. <elliverstravels@yahoo.com>


Data: 1 de setembro, 06h52
Para: Macy Lea Sorensen <minlilleblomst@hotmail.com>
Assunto: Re: Saudades
Só se passaram poucos dias e já estou pensando quando você vai
voltar.
De: Macy Lea Sorensen <minlilleblomst@hotmail.com>
Data: 1 de setembro, 20h07
Para: Elliot P. <elliverstravels@yahoo.com>
Assunto: Re: Saudades

Acho que neste fim de semana. Fui até a casa da Nikki à tarde, e Danny
estava lá. Eles ficaram jogando videogame, e se divertiram tanto, e eu só
conseguia pensar que queria que você estivesse lá.

De: Macy Lea Sorensen <minlilleblomst@hotmail.com>


Data: 1 de setembro, 20h12
Para: Elliot P. <elliverstravels@yahoo.com>
Assunto: Re: Saudades
Droga. Papai disse que não vai dar pra irmos nesse fim de semana, mas
talvez no seguinte. As aulas começam na terça e ele quer resolver algumas
coisas aqui neste fim de semana.

De: Elliot P. <elliverstravels@yahoo.com>


Data: 1 de setembro, 21h18
Para: Macy Lea Sorensen <minlilleblomst@hotmail.com>
Assunto: Re: Saudades

Acho que seria uma boa ideia a gente baixar a bola durante a semana. De
outro modo, vai ser difícil demais. Estou enlouquecendo.

De: Macy Lea Sorensen <minlilleblomst@hotmail.com>


Data: 1 de setembro, 21h22
Para: Elliot P. <elliverstravels@yahoo.com>
Assunto: Re: Saudades

Acha que isto é uma má ideia? Ficarmos juntos?


Meu telefone tocou na minha mão, a foto de Elliot apareceu na tela. Eu a
tirei na semana anterior, quando ele estava de pé sobre uma pedra cheia de
musgo no bosque atrás das nossas casas, fitando as copas das árvores,
tentando identificar um pássaro que tinha visto. Na foto, o sol o pegou de
perfil, acentuando o maxilar e a definição do peito debaixo da camiseta.
Meu coração batia tão forte que, quando atendi, minha voz saiu grossa.
– Alô?
– Macy, não – ele disse de pronto. – Não foi isso o que eu quis dizer.
Assenti, encarando a parede do meu quarto, e o pôster brilhante de
unicórnio afixado nela, que eu tinha desde os 8 anos, mas nunca me dei ao
trabalho de tirar.
– Ok.
– Eu só quis dizer – ele disse baixinho – que vamos enlouquecer se
ficarmos trocando e-mails a cada dez minutos todos os dias da semana.
Sentei-me na cama, arrancando os tênis com dois chutes.
– Você tem razão, claro. É que tudo parece diferente agora. Mais
assustador ficarmos separados.
– Não é diferente. – Ele parecia sem fôlego, como se estivesse subindo a
escada às pressas. – Nós sempre nos sentimos assim. Eu estou aqui. Você
está aí. E, assim como antes, nós ainda pertencemos um ao outro.
– Ok.
– E quando você vier para cá – ele disse, e ouvi a porta batendo ao fundo
–, vamos passar juntos o máximo de tempo que conseguirmos.
Me enrosquei no travesseiro, segurando o celular bem pertinho.
– Eu só queria te dar um beijo de boa-noite – sussurrei. – Eu só queria
você aqui, do meu lado, me beijando.
Ele gemeu e ficou calado, e meu coração se revirou no peito, sofrendo.
– Mace – ele disse. – Isso é tudo o que eu mais quero também.
Ficamos em silêncio então, e fico pensando se ele me deixaria dormir com
ele ao telefone mais tarde. Minha mão deslizou por baixo da camiseta,
sentindo o calor do abdômen, imaginando a palma dele ali.
– Só precisa ser assim mais um ano – ele disse por fim. – Pense nisso.
Vamos nos formar na primavera. Nossas vidas não ficarão mais separadas.
Vai passar bem rápido, e depois podemos ficar juntos, de verdade.
HOJE

DOMINGO, 31 DE DEZEMBRO

Cheguei.

Já estou indo.

Saio do meu modesto quarto no Hotel L&M para o reflexo do sol brilhante
de inverno no asfalto. Protegendo os olhos com a mão, consigo ver Elliot uns
três metros adiante, encostado na porta do motorista com um pequeno buquê
improvisado de flores silvestres. De imediato, me lembro de cada um dos
heróis dos romances adolescentes com a visão dele ali, me encarando.
Depois de trinta e sete dias, meus olhos também estão sedentos,
absorvendo cada detalhe de sua aparência naquele smoking, os cabelos
muito bem penteados, a pele lisa por conta de um barbear recente.
Trocamos algumas mensagens desde o Dia de Ação de Graças e
conversamos pelo telefone um pouco aqui e acolá quando tive uma dúvida
quanto ao traje para o casamento, ou quando ele quis combinar comigo onde
deveria me buscar hoje; mas não o vi desde que ele se curvou para me beijar
no rosto na porta de seu apartamento, ambos com as barrigas cheias de peru
e vinho, e me fitou significativamente por três respiros silenciosos.
– Me dá uma chance – ele disse então.
Prometi que lhe daria. A questão era se ele ainda ia querê-la assim que
ouvisse o que eu tinha a dizer.
Comemorei meu Natal no dia 22 de dezembro com Sabrina, Dave e Viv.
Só de vê-los, sentada no banco da cozinha, sorvendo meu vinho, era fácil
enxergar os rituais tomando forma: o CD da banda canadense de músicas
instrumentais tocado repetidamente; Dave assando o equivalente ao estoque
de uma loja de biscoitos natalinos; Sabrina indo para a sala de estar, onde
ficou decorando a imensa árvore de Natal com as luzinhas pisca-pisca. Foi
apenas mais uma diminuta ferroada de percepção daquilo que vim tendo o
mês inteiro, ouvindo os colegas partilharem seus planos para as horas vagas:
festas, encontros, assados, voos para fora da cidade.
Depois que perdi Elliot e – claro – depois que perdi meu pai, eu também
havia perdido qualquer apego às tradições. Estou ávida para recuperá-las.
Quero fazer muffins de mirtilo nas manhãs de Natal e acender a kanderlys à
noite. Quero aebleskivers e livros nos aniversários, e cachorros-quentes na
praia no Ano-Novo. Mas também quero que o Dia de Ação de Graças seja o
dia em que Elliot e eu nos sentaremos no chão, apenas nós dois de roupas
íntimas, comendo peru com as mãos. Quero comemorar aniversários de
casamento na cama o dia inteiro, tendo conversas ao manter nossas bocas a
apenas centímetros de distância.
Estou pronta.
Por isso, vou para o asfalto rachado do estacionamento, desequilibrada
nos meus saltos, tentando caminhar com graciosidade na direção dele. O que
quero de verdade é me jogar em seus braços, mas consigo me controlar,
parando a meio metro de distância. O perfume dele é maravilhoso, e quando
empurra os óculos para cima, os olhos parecem quase âmbares sob a luz do
sol. As palavras que vim ensaiando repetidamente no último mês – Quando
saí da casa do Christian, fui para o chalé. Adormeci no chão e foi lá que
meu pai me encontrou – sumiram num eco distante.
Elliot entrega as flores nas minhas mãos e se curva, beijando-me logo
abaixo da mandíbula, bem onde a pulsação está mais enlouquecida.
Inclino-me para cheirá-las – na verdade, elas não têm cheiro de nada, mas
são tão coloridas que parecem fluorescentes.
– Flores. E não é que você é o par perfeito para um casamento?
– Eu as apanhei logo ali – ele admite, apontando para um trecho com
ervas daninhas desgovernadas no limite da propriedade. Quando se volta e
sorri, parece ter dezoito anos de novo. – Mamãe não me deixou pegar uma
rosa da suíte.
Ele olha para mim, os olhos quentes enquanto os passeia por meu peito,
pescoço e rosto. Estou usando um vestido novo e admito que me sinto
maravilhosa. É um vestido de seda amassada justo – um intenso tom de
vermelho com laranja de alças finas feitas de contas. Faz com que minha
pele morena pareça dourada.
Nossos olhos se encontram, e sinto meu sorriso explodir pelo rosto.
Vamos despejar tudo mais tarde. A antecipação de um fardo sendo retirado
faz com que eu me sinta leve.
– Pronta? – ele pergunta.
– Pronta.
Elliot para o carro na frente da enorme propriedade vitoriana, o motor
estala e então fica em silêncio. Virando-se para mim, pergunta baixinho:
– Você está bem?
Foi um trajeto de dez minutos; não existe a mínima possibilidade de ele
não ter percebido como me agarrei à maçaneta da porta o tempo inteiro.
– Estou bem.
– Ok – ele diz e exala, então me impede de sair colocando a mão na minha
perna, logo acima do joelho. O toque parece cheio de significado, e ele
parece perceber isso ao mesmo tempo que eu, afastando os dedos
lentamente. – Permita-me.
Ele sai, trota pela frente do Civic surrado e abre a porta para mim com um
floreio cavalheiresco.
Atrás dele, a Mansão Madrona se eleva imponente tal qual num conto de
fadas, com gramados extensos emoldurando a imensa propriedade. É algo
completamente diferente do Hotel L&M de beira de estrada. Evidentemente,
eu poderia ter ficado na casa de Healdsburg, que é minha – não está alugada
para nenhum turista no momento –, mas, mesmo sabendo que nos abriremos
mais tarde, a ideia de ficar lá sozinha, sem meu pai, me pareceu ligeiramente
depressiva.
Elliot fica ali, esperando que eu saia e mantém a mão estendida.
– Está emperrada aí?
Não, apenas derretendo silenciosamente só por te ver.
Empurro o assento, deixando que ele segure minha mão assim que fico de
pé.
– Estou bem. É só… muito lindo aqui.
Como está fresco, uso um xale ao redor dos ombros, e Elliot dá um passo
à frente, ajustando-o onde ele escorregou pelo meu braço.
– Pronto. – Ele percorre meu ombro debaixo do xale com um polegar. A
pele dele é mais clara em relação à minha, e o contraste de cores parece
perfeito. – Vai ficar aquecida o bastante?
Digo que sim e passo meu braço pelo dele conforme seguimos pelo
caminho até o prédio principal. É meio-dia e o sol brilha pelas copas das
árvores, deixando a folhagem dourada como o mel. Aninhada nas colinas
acima do Condado de Sonoma, a Mansão Madrona é cercada por acres e
acres repletos de árvores e dá de frente para os vastos vinhedos. O jardim
parece se estender em todas as direções. Na verdade, eu deveria estar mais
curiosa a respeito daquele lugar tão renomado, mas estar perto de Elliot
depois de um mês pensando em tudo, tendo seu corpo pressionado ao meu e
sabendo que a qualquer segundo eu posso detê-lo, virar para ele e beijá-lo…
Sinto como se estivesse espiando na beira do precipício de um vale
profundo em cujo fundo há uma imensa piscina de bolinhas: só quero me
jogar e brincar.
Dentro da mansão, o corredor se estende em linha reta, com cômodos
dando para a entrada principal. Elliot planeja subir e ver como Andreas está
no quarto do noivo. Disse a Elliot que dirigiria de Berkeley na noite anterior,
quando, na verdade, providenciei um transporte, tomei um Xanax e dormi o
trajeto inteiro. Cheguei ao hotel, despenquei na cama e dormi até meu
relógio biológico me despertar, exatamente às seis da manhã.
O que tudo isso significa é que ainda não vi ninguém da família dele e,
reconheço, estou um pouco ansiosa. Mas, por mais que eu não me importe
em explorar a propriedade sozinha, deixando o clã Petropoulos à vontade até
a cerimônia, Elliot não quer saber disso.
– Vem comigo – ele diz, indo para a larga escadaria. O Natal ainda tinha
que ser banido de volta para as caixas e ser guardado até o próximo mês de
dezembro, e as guirlandas ainda decoram festivamente a balaustrada. Uma
pequena árvore de Natal dourada ilumina o patamar no alto. – Eles estão
aqui em cima.
– Não quero atrapalhar os preparativos – digo, ficando para trás,
hesitante.
– Para com isso – ele ri. – Tá de brincadeira, né? Se eu aparecer lá sem
você, só vão me mandar descer de novo pra te buscar.
Uma revoada de pássaros explode em movimento dentro do meu peito
quando ouço o senhor Nick gritando, pedindo que George vá buscar uma
mala no carro e Nick Jr. caçoando de Alex por algum motivo. Ouço a
gargalhada alegre da senhora Dina, e a voz dela – ainda a mesma – dizendo a
Andreas que ele deveria deixar que alguém ajeitasse a gravata-borboleta
porque está parecendo uma “minhoca mole” ao redor do pescoço dele.
Empurramos a porta, que range quando entramos, e o cômodo inteiro
silencia. Andreas se vira diante do espelho, onde estava brigando com a
gravata. Nick Jr. e Alex se endireitam onde estavam, pelo visto, brigando
perto do sofá.
A senhora Dina congela com a mão num grampo do cabelo.
– Macy! – ela arqueja e seus olhos imediatamente ficam marejados. Ela
deixa o grampo cair e cobre a boca com as mãos.
Ergo a mão num aceno trêmulo. Ver os rostos de todos eles faz com que eu
retroceda uma década, como se voltasse para casa depois de muito tempo.
– Oi pra todo mundo.
Elliot me puxa para mais perto dele.
– Ela não está linda?
Olho para ele chocada, mas seu sorriso preguiçoso me diz que ele não
está nem um pouco embaraçado com o exame preciso deles.
– Maravilhosa – o senhor Nick concorda.
Alex corre até mim, lançando os braços ao redor dos meus ombros.
– Lembra de mim?
Não a vejo desde que ela tinha três anos de idade, e não poderia lhe dizer
que penso nela todos os dias desde então. Rindo, passo os braços ao redor
da figura alta e graciosa dela, perguntando:
– Você se lembra de mim?
– Não – a senhora Dina diz, balançando a cabeça. – Eu vou chorar.
Nick Jr. olha para ela e geme.
– Mãe, você já está chorando.
Elliot me solta, mas não se afasta enquanto cada um deles se aproxima
para me abraçar. Quando é a vez de Andreas, ele sussurra baixinho:
– Obrigado por vir.
Ao qual respondo, igualmente baixinho:
– Parabéns, cabeça-oca.
A cena volta a explodir no maior barulho quando Alex recomeça a
discutir com o pai por que precisa ou não de permissão para prender os
cabelos num penteado, e George discute com a mãe sobre onde pode
encontrar a tal mala. Elliot ajuda Andreas com a gravata, e Liz entra,
trazendo uma bandeja de sanduíches da festa de casamento. Está usando um
vestido azul diáfano – evidentemente é uma das madrinhas.
– Olá, Macy! – ela diz e se aproxima de mim. Quando um olhar confuso é
partilhado pelo resto da família de Elliot, ela os lembra de que nos vemos
todos os dias no trabalho, e o lugar explode mais uma vez quando todos se
lembram do significado disso: a pequena Macy é uma médica agora! E sou
abraçada por todos de novo.
Vinho é servido, o cabelo de Alex é escovado para baixo, e depois preso
novamente, para incômodo do pai e dos irmãos mais velhos, e o tempo
inteiro Elliot está ali, com o braço pressionado ao meu, a batida gêmea do
meu coração, uma presença reconfortante.
– Pai – Elliot diz por fim, com uma risada baixa e ressonante –, ela tem
catorze anos. Está usando um vestido que vai até o chão, com mangas. Ela
não vai engravidar se alguém vir a nuca dela.
O senhor Nick encara Elliot por alguns segundos, depois meneia a cabeça
na direção da esposa e da filha.
– Pode prender o cabelo. Não me importo. É só que é muita pele!
– Do meu pescoço! – Alex exclama, frustrada. – Mande os caras não
olharem, se isso o incomoda tanto assim.
– Amém – eu digo, sorrindo para ela.
O sorriso de gratidão dela é como um facho de sol atravessando as
nuvens.
Quando a discussão recomeça, Elliot se inclina para mim e pergunta, bem
junto ao meu ouvido:
– Quer dar um passeio no jardim?
Aceito, estremecendo com sua proximidade dele, e ele me guia em
direção à porta com a mão na minha lombar antes de segurar meus dedos.
Sinto a atenção do quarto todo voltada para as nossas mãos unidas quando
saímos e Alex, confusa, diz: “Pensei que ela tinha um namorado”, seguido do
sibilo agudo da senhora Dina: “Psiu!” e do comentário de Andreas, “Eles
terminaram, lembra?” no nosso rastro.
Elliot baixa o olhar para mim, sorrindo com gosto.
– É como você se lembrava?
Encosto no ombro dele.
– Melhor.
ANTES

SÁBADO, 9 DE SETEMBRO ONZE


ANOS ATRÁS

A primeira viagem após o verão – depois da nossa declaração de que


estávamos juntos, depois daquele beijo doce e tão cheio de ânsia – foi no
meio de setembro. O ar estava pesado e implacável com o calor de um
deserto, e usei isso como desculpa para passar o fim de semana inteiro de
biquíni.
Elliot… percebeu.
Infelizmente, papai também percebeu e logo exigiu que passássemos nosso
tempo de leitura no andar de baixo ou do lado de fora, e não no closet.
Naquele sábado, estendemos uma manta no gramado em frente da casa de
Elliot, debaixo do imenso carvalho, e contamos as novidades dos amigos,
sobre a escola, e palavras prediletas, mas tudo isso tinha um peso diferente.
Nós sussurrávamos agora, deitados de lado, de frente um para o outro, com
os dedos de Elliot brincando com as pontas dos meus cabelos e deslizando-o
pelo meu rosto, o olhar dançando por cima do volume dos meus seios.
Segundo a regra de número 29 – Quando Macy tiver mais de 16 anos e
tiver seu primeiro relacionamento sério, garanta que ela fique segura –,
papai me fez começar a tomar pílula logo depois dessa visita. Ainda
faltavam diversos meses para eu completar 18 anos, e papai me contou que
planejava me levar à minha “médica de mulher”, mas só depois de me passar
um sermão empolado e constrangido de que isso não era, exatamente, uma
permissão para eu fazer sexo com Elliot, mas que ele só estava tentando
proteger os nossos futuros.
Não que ele tivesse que se preocupar. Apesar de nos encontrarmos a cada
duas semanas em todo o mês de outubro, Elliot e eu não chegamos nem perto
de fazer sexo. Não desde aquele dia no chão do closet, o corpo dele sobre o
meu, agindo segundo os instintos. E era Elliot quem estava conduzindo a
situação sem pressa, não eu. Ele me dizia que era porque cada pequeno
passo era um primeiro e tudo o que fazíamos juntos só faríamos por uma
primeira vez, com essa mesma pessoa, pelo resto das nossas vidas.
Parecia uma conclusão predeterminada de que ficaríamos juntos para
sempre. Ainda não tínhamos dito a palavra amor. Não tínhamos feito
promessas. Mas era impossível imaginar deixar de amar Elliot, assim como
era impossível prender a respiração por uma hora.
Portanto, fomos abrindo caminho lentamente através de explorações.
Beijando por horas. Nadando juntos no rio: minhas pernas escorregadias e
frias ao redor da cintura dele, meu abdômen todo eriçado, sensível à
sensação do tronco nu dele pressionado ao meu.
Os dias da semana de volta à escola ficaram mergulhados nessa
antecipação desesperada. Concordamos em conversar via Skype uma vez
por semana – às quartas – o que tornara um tormento prestar atenção às aulas
daquele dia. Nessas noites, ele me fitava de olhos arregalados pela lente da
câmera. Eu pensava em beijá-lo. Eu até lhe dizia o que estava pensando e ele
gemia e mudava de assunto. Depois, eu ia para a cama e fingia que meus
dedos eram os dele, sabendo que ele estava fazendo a mesma coisa.
E nos fins de semana, quando tínhamos qualquer oportunidade, era um
misto de beijos no chão, nossas bocas se movendo juntas até os lábios
ficarem machucados, as respirações superficiais pelo esforço do desejo
contido.
Mas foi só isso. Nos beijamos. As roupas ficaram onde estavam, as mãos
se comportaram.
Até não se comportarem mais.
Fim de outubro. Chovia e fazia frio lá fora. Papai tinha ido de carro até a
cidade para fazer compras, deixando-me sozinha com Elliot na casa. Não foi
premeditado. Ele nem olhou para nós – líamos na sala de estar junto ao
aquecedor a lenha – antes de sair. Só disse que não tinha mais leite e que ia
buscar alguma coisa para jantarmos.
A porta se fechou num clique silencioso.
Os pneus do carro esmagaram o cascalho até o som sumir.
Olhei para Elliot do outro lado da sala, com a pele em fogo.
Ele já estava engatinhando na minha direção e então pairou acima de mim
nas sombras das labaredas.
Ainda me lembro de como ele levantou minha blusa, beijando um caminho
do meu umbigo até a clavícula. Lembro-me de como – pela primeira vez –
ele descobriu como abrir meu sutiã, rindo na minha boca enquanto os dedos
brigavam com o elástico. Eu me lembro da reverência da palma dele ao
deslizar pelo fecho aberto, ao redor das costelas, por baixo do arame
escondido. A mão foi para meu seio exposto, o polegar e indicador se
fechando ao redor do bico. Foi como se luz fluísse de dentro de mim por
cada poro; o prazer e o desejo eram quase ofuscantes. Ele seguiu com a
língua, úmida, os lábios se fechando sobre mim, sugando, e eu puxei a coxa
dele para o interior das minhas pernas, louca para me aliviar, balançando ao
encontro dele até derreter, gozando na frente dele pela primeira vez.
Ele olhou para mim, com as pupilas imensas, a boca entreaberta.
– Você…?
Assenti, sorrindo, inebriada.
Os pneus do carro voltaram a esmagar o cascalho da entrada, e Elliot
emitiu uma risada aguda e frustrada, afastando-se.
– É melhor eu voltar pra casa mesmo. – Ele apontou para baixo com a
cabeça.
Também olhei para baixo, para a mão que pressionava os jeans,
procurando alívio.
Ele começou a se levantar, mas parou, ainda ajoelhado entre minhas
pernas, mas agora olhando para meus seios nus. Era a primeira vez que ele
os olhava de verdade, e a intensidade do seu olhar foi como um fósforo
riscado para o combustível em minhas veias. Peguei a mão livre dele.
A porta do carro bateu.
– Macy – Elliot avisou, mas os olhos continuaram sem piscar e o braço se
moveu sem resistência quando apoiei a mão dele na minha pele.
– Ele ainda tem que pegar as compras. – Pus os dedos dele no meu
abdômen, fiz com que percorressem meu corpo.
O porta-malas também bateu. Elliot afastou o braço.
Lentamente, me sentei ereta, fechei o sutiã e abaixei a blusa.
A chave de papai entrou na fechadura, e ele entrou, olhando para nós na
sala de estar. Eu estava exatamente onde ele havia me deixado. Elliot estava
na outra ponta do sofá, com as mãos enfiadas nos bolsos.
– Oi, pai – eu disse.
Ele parou, com os braços cheios de sacolas.
– Tudo bem por aqui?
Elliot assentiu.
– Eu estava esperando o senhor voltar pra ir pra casa.
Olhei para ele, sorrindo.
– Que gentileza.
– Obrigado, Elliot – papai disse, sorrindo para ele. – Você é bem-vindo
para jantar com a gente.
Papai foi para a cozinha, e eu olhei para a braguilha de Elliot, quase
obsessiva de desejo de tocar nele debaixo daquele jeans.
Ele se curvou, de modo que eu pudesse ver seu rosto.
– Sei pra onde você está olhando – ele sussurrou. – Você é encrenca.
Estiquei-me, beijando-o.
– Logo – respondi também baixinho.
HOJE

DOMINGO, 31 DE DEZEMBRO

Havia mais de 30 mil metros quadrados em volta da Mansão Madrona, e


juraria que percorremos cada um deles. Caminhamos por duas horas,
contando as novidades, conversando à toa sobre as amenidades: nossos
restaurantes preferidos, nossa obsessão tardia pelas azeitonas da Sicília,
livros que amamos e odiamos, receios e expectativas políticas, destinos dos
sonhos para as férias.
E, ainda assim, o último Ano-Novo em que nos vimos parece um meteoro
radioativo dentro de um pote na palma da minha mão. Sinto-o a cada
segundo. E estou fazendo o que posso para não abri-lo até mais tarde.
O sol vespertino desce por trás das árvores e um friozinho surge. Pneus de
carros começam a fazer barulho no cascalho da entrada ao longe, atraindo-
nos de volta ao gramado principal, que está decorado com guirlandas de
flores e salpicado com aquecedores portáteis, mesas de coquetel e
funcionários circulando com aperitivos antes da cerimônia.
– Preciso subir um pouco para me aprontar. Tudo bem?
Confirmo que sim, e Elliot se curva para amparar meu rosto entre as mãos,
beijando-me na testa e depois no rosto, instintivamente. Ele não percebe o
que acabou de fazer quando se afasta, sorrindo para mim. Mais de uma vez, a
caminho da casa onde se encontrará com os demais padrinhos, ele se vira de
olhos arregalados ao entender que acabara de me beijar do modo como fez
tantas vezes quando era meu.
Assim que ele desaparece, olho ao meu redor, percebendo que não
conheço ninguém por ali. Toda a família Petropoulos está lá dentro, e, apesar
de eu ter visto primos, tias e tios em certas ocasiões, não os conheço bem o
bastante para abordá-los e me meter em suas conversas.
Talvez por isso o seu círculo seja tão pequeno, a voz de Sabrina soa nos
meus ouvidos.
Um círculo pequeno é um círculo de qualidade, rebato, estendendo a mão
para pegar um camarão com bacon que passa numa bandeja.
Eu o estou levando à boca quando uma mão circunda meu cotovelo. Viro-
me surpresa, deixo escapar um “desculpe” e começo a devolver o petisco
quando percebo que é só Alex, e que acabei de derrubar o camarão na mão
dela.
Ela o contempla e depois olha para mim, antes de dar de ombros e o
enfiar na boca.
– Vem comigo – murmura enquanto mastiga. – Vamos nos sentar lá na
frente.
– O quê? – digo, resistindo quando ela me puxa adiante. – Não, eu…
– Sem discussão – ela diz, marchando. – Tenho ordens precisas da
mamãe: você é da família.
Isso me emociona – um nó de emoções fica preso na garganta. Ajeitando o
xale sobre os ombros, sigo-a até uma cadeira na lateral destinada aos
convidados do noivo, na fila da frente.
Alex se senta na terceira cadeira, e me puxa para o seu lado na quarta.
– Vai começar logo – ela diz. – Mamãe mandou eu me sentar, assim as
pessoas vão começar a vir também. Estão vindo?
Olho para trás e vejo que os convidados estão começando a se aproximar
dos assistentes que aguardam na entrada do corredor central. As cadeiras
começam a ser ocupadas, o sol está se pondo e o cenário é de tirar o fôlego.
– Faz anos que quero te conhecer – Alex diz, olhando para o altar: um
pequeno arco de madeira decorado com flores tão viçosas que quero me
esticar e tocar uma pétala para ver se são de verdade. – Bem, conhecer de
novo.
– A mim? – Ela só tinha três anos quando Elliot e eu nos afastamos.
Nos afastamos.
Deus, que expressão estranha. Outras pessoas se afastam. O que tivemos
foi mais uma ruptura. Mas será que foi mesmo? Uma fenda em uma
rachadura, talvez. Um machado lançado contra nosso ponto fraco. E o
destino chegou com uma britadeira.
Alex assente, virando-se de frente para mim. Ela se parece tanto com
Elliot aos catorze anos que minha respiração se paralisa por um segundo,
como se eu tivesse levado um soco no plexo solar. Os olhos dela são
castanho-esverdeados, grandes por trás das lentes dos óculos. Os cabelos
são grossos e pretos, mal contidos pelas flores presas ao redor do rosto
oval. O pescoço dela é longo, como o de um cisne; as mãos, delicadas e
finas. Em Alex, tudo isso fica gracioso, talvez porque ela dança e aprendeu a
usar a estrutura delgada a seu favor. O corpo de Elliot sempre se pareceu
mais com uma caixa de ferramentas cheia demais: ângulos agudos, ossos
compridos, perigosos quando manejados desajeitadamente.
– Ele te ama tanto – ela diz. – Juro que levou um tempão pra levar alguma
garota lá em casa.
Meu coração desacelera.
Ela confirma.
– Sério. Meus pais até pensaram que ele fosse gay. Ficavam tipo “Elliot,
você sabe que o amamos não importa o que aconteça. Só queremos que você
seja feliz…”, e ele respondia meio que: “Obrigado mesmo, pessoal”.
Depois, nós o encarávamos com cara de “então, quando é que você vai
trazer o seu namorado aqui em casa?”.
Emito uma risada leve, sem saber bem o que responder. Hesitante,
murmuro:
– Mas ele acabou levando alguém em casa. Tenho certeza de que gostaram
dela, não?
Alex dá de ombros.
– Rachel era legal.
Meu coração para. Rachel foi a primeira namorada que ele levou para
casa? Isso foi quando… no ano passado?
Alex olha para trás para verificar o progresso de ocupação dos assentos,
que já estão bem cheios, por isso ela se inclina para perto de mim quando o
guitarrista e o cantor se preparam para as entradas.
– Mamãe a chamou de Macy umas três vezes na primeira vez que ela foi
jantar com a gente.
– Puxa – digo –, que saia justa. – Compreendo sinceramente, agora que já
conheci Rachel. Tudo faz muito mais sentido a respeito daquele primeiro
encontro.
– Bem – Alex diz, sorrindo para mim –, no fim ele acabou admitindo para
a gente que sempre foi apaixonado por você desde o colégio. Estou feliz que
tenha voltado para a vida dele. – Rapidamente levanta as mãos,
acrescentando: – Mesmo que só como amiga. Muito bem, vou calar a boca
agora. – Ela morde o lábio e depois completa num sussurro: – Sinto muito
mesmo pelo seu pai, Macy. Não me lembro dele, mas mamãe me disse que
ele era um homem muito bom.
– Obrigada, querida. – Passo o braço pelos ombros dela, puxando-a para
um abraço. – Senti muitas saudades de todos vocês.
A multidão vai se calando quando o guitarrista começa, dedilhando um
prelúdio simples e comovente antes de o vocalista se lançar na versão de
Jeff Buckley de “Aleluia”. As primeiras pessoas a entrarem pelo corredor
central são um casal mais idoso, possivelmente os avós de Else. Eles se
sentam na seção oposta à nossa enquanto a senhora Dina e o senhor Nick
vêm com Andreas entre eles. O sorriso da senhora Dina é tão radiante que
até interrompe minha respiração, e sinto o ardor das lágrimas na superfície
dos olhos. Não é só porque é um casamento – embora eu sempre chore em
casamentos. É a canção, o cenário, é estar de volta nos braços das pessoas
que eu mais amo em todo o mundo. É não me sentir mais sozinha pela
primeira vez em tantos anos que já nem me lembro de quantos.
Andreas fica no início do corredor, assistindo em antecipação antes da
entrada da sua noiva. A senhora Dina se senta ao lado de Alex, mas estica o
braço por cima do colo dela e segura minha mão, com tanta força que sinto o
amor e a confusão dela e – acima de tudo – o alívio naquele único toque
trêmulo.
Em seguida vem Nick Jr., com uma das madrinhas. Ele encorpou, tem o
peito largo como o pai e é alto como o pai e a mãe. Tem uma barba cheia e
mais parece um lenhador do que um promotor público. Não consigo imaginá-
lo usando terno de tecido sintético, para ser bem franca.
Depois vêm George e Liz, de braços dados e sorrisos francos. São uma
combinação tão perfeita de expressões felizes e de passos confiantes que me
surpreendo sorrindo, com os olhos brilhantes.
Alex me entrega um lenço.
– Duas choronas, uma de cada lado meu.
– Psiu – a senhora Dina sussurra. – Espere só. Daqui a pouco você
também vai estar chorando.
Não estou preparada para o que vejo a seguir – acabei não assimilando
que Elliot também viria pelo corredor –, e a visão dele, vindo de braços
dados com uma madrinha loira e baixinha, o sorriso tranquilo enquanto fita
os convidados ali reunidos, é um golpe para as emoções que mantenho
presas dentro de mim. Um calor se espalha livremente.
Ele está tão lindo.
Sorridente, com mais de 1,80 metro agora, confortável em sua própria
pele. Ele olha para mim quando deixa a madrinha perto do altar, e nossos
olhares se prendem.
Faz horas que não penso em meu ex-noivo, mas vendo Elliot agora – no
altar de smoking –, percebo como tudo era monumentalmente errado com
Sean. Como seria errado com qualquer um exceto Elliot.
Recuando, ele vai para a posição à frente dos padrinhos e consegue
desviar os olhos de mim quando a música muda, e a guitarra começa as notas
da abertura de “She”, de Elvis Costello.
Os convidados se levantam. Sei que deveria estar olhando para a noiva
entrando, mas minha cabeça é a única virada para a frente, incapaz de tirar
os olhos de Elliot.
Ele consegue sentir minha atenção, estou certa, porque desvia o olhar ao
piscar, virando a cabeça apenas um pouquinho, encontrando meus olhos. Há
uma pergunta nos dele, a evidente e brincalhona Que diabos deu em você?
Não sei mais o que fazer, então, simplesmente formo com os lábios a
palavra Sim.
Sim, sou sua.
Sim, estou pronta.
Sim, eu te amo.
ANTES

SEXTA-FEIRA, 8 DE DEZEMBRO
ONZE ANOS ATRÁS

– Puxa, este livro é incrível – Elliot sussurrou, virando a página.


Internamente, eu me gabei. Enfim o Sr. Esnobe McLivrosClássicos estava
lendo Wally Lamb.
Rolei, ficando de barriga para baixo, e olhei para ele no futon.
– Eu disse que você iria adorar.
– Disse mesmo – concordou. – E adorei mesmo.
Finalmente tínhamos recebido permissão para voltarmos para o closet –
com as portas abertas – porque estava frio demais para ficarmos do lado de
fora, e papai não queria mais ficar ouvindo os nossos sussurros o dia inteiro.
O último ano da escola já estava completamente insano, e passei a maioria
dos fins de semana de novembro na casa de Berkeley, preparando a papelada
de inscrição para as faculdades, estudando para os exames finais e refinando
as redações a serem entregues às faculdades junto com a documentação.
Estávamos tentando vagas em faculdades nas mesmas cidades, quando não
na mesma faculdade, e a necessidade de coordenar tudo isso fez com que nos
comunicássemos constantemente. Contudo, aquele era o primeiro fim de
semana em que de fato via Elliot depois de cinco semanas afastados, e havia
uma força subjacente nos atraindo cada vez mais perto um do outro, mesmo
com a porta aberta.
– Você deveria me idolatrar – eu lhe disse.
Ele olhou para mim por cima da armação dos óculos, com as sobrancelhas
erguidas.
– E eu idolatro.
Dei um amplo sorriso.
– Ou deveria ser meu escravo.
– Eu seria. – Fechou o livro, apoiando os cotovelos nas coxas compridas.
– Eu sou. – Agora eu tinha sua atenção total.
– Me abanar com folhas de palmeiras e me dar pequeninas uvas suculentas
na boca.
Foi como se o ar tivesse parado de se mover entre nós.
– Repete essa palavra – Elliot pediu rouco.
– Abanar.
– Não.
– Pequeninas.
Ele suspirou exasperado.
– Macy.
– Uvas.
Ele voltou a atenção para o livro, expelindo um grunhido irritado.
– Garota insuportável.
Sorri ainda mais, lambendo os lábios e dei o que ele queria:
– Suculentas.
Ele me fitou com as pupilas dilatadas.
Porta aberta.
– Suculentas – repeti e ele engatinhou até mim, inclinando-se para me
beijar no pescoço, fazendo cócegas. Eu me retorci, conferindo a porta.
– Você é muito ligado em palavras, mesmo.
A língua dele seguiu o caminho da minha garganta, e eu ouvi o sorriso
dele quando disse:
– Põe a mão na minha calça.
Dei uma risada, sussurrando num agudo:
– O quê? Não. O meu pai está a dez metros de nós.
Nossos olhos se arregalaram ao mesmo tempo quando, bem nessa hora,
ouvimos o carro sendo ligado e se afastando com os pneus esmagando o
cascalho do caminho, até o som desaparecer.
– Ora, ora. Acho que ele está a mais de dez metros agora – murmurei.
Elliot se afastou e me fitou com olhos carnívoros, e senti algo se acender
dentro de mim, crescendo. Estendi o braço e
finalmente
finalmente
coloquei a mão sobre os botões dos jeans dele, senti o que há tempos
queria muito, muito sentir ali.
– E agora? – perguntei. Estava acontecendo. Aquilo estava acontecendo.
Eu estava tocando. Aquilo. Ele. Aquilo dele.
As sobrancelhas de Elliot subiram até a linha dos cabelos.
– Você não sabe?
– Não tenho certeza? – disse, ficando sem outras perguntas quando ele
rosnou e cobriu minha boca com a dele.
Caímos de costas no chão, pernas e braços enroscados, lábios se
machucando contra dentes, atordoados e desesperados numa completa
perfeição. Depois de todo o distanciamento forçado e das conversas sobre
tudo o que queríamos fazer um com o outro, sem saber quando e como
teríamos esse tempo juntos, aquela oportunidade ínfima parecia ser o
Diamante Hope largado em nossas palmas.
Nunca vivi aquela sensação, aquele desejo crescente em meu estômago
que se espalhava, para baixo, ardente, lançando-me além dos meus sentidos
e centrando meu universo inteiro naquela sensação única, e depois na
seguinte e na próxima. E também o querer do que viria em seguida.
Minha blusa foi tirada. O zíper da minha calça foi aberto e elas foram
despidas de mim. Aproximei-me, temendo que, mesmo nua, nós não
estaríamos próximos o bastante para saciar aquela fome nova.
Ele se curvou, lambendo meu pescoço, meus seios, e depois voltou para
mim, os lábios ansiosos sugando os meus e depois descendo pelo meu peito.
A mão descia pelo meu ventre e os dedos provocavam o elástico da
calcinha.
– Rápido demais? – perguntou, sôfrego, e eu balancei a cabeça, embora
ele não pudesse me ver da posição em que estava explorando meus seios.
– Não – disse em voz alta. Estava lento demais. Não rápido – lento
demais. O fogo se espalhava em cada terminação nervosa e eu queria mais,
mesmo sem saber exatamente o que era esse mais.
– Caramba, Macy. Eu estou… isso é insano. Um insano bom. Você está
insana debaixo de mim.
Ri porque a rara incoerência de Elliot era estranhamente tranquilizadora,
e depois os lábios dele foram para os meus, engolindo meu riso e tornando-o
seu, a língua deslizou pela minha enquanto ele espalmava um seio,
apertando-o, nossos sons abafados porque mal conseguíamos sequer
respirar.
Os dedos voltaram a descer, passando pelas costelas e umbigo, por baixo
do algodão até chegarem onde eu mais precisava deles, e Elliot emitiu um
som estrangulado ao mesmo tempo em que eu rosnei algo ininteligível. O
quadril dele se moveu sobre mim, procurando o mesmo ritmo em que os
dedos dele deslizavam pela minha pele.
Num rompante, ele desceu, arrancando a calcinha e beijando minha
barriga, o quadril, e mais baixo ainda, quase selvagem com um desejo que
espelhava o meu. Ele tremia ali embaixo, entre minhas coxas, os ombros
estremeciam sob minha pegada, eu sentia falta do peso dele sobre mim, mas
o que quer que ele tivesse decidido fazer com a boca me distraiu de qualquer
outro pensamento coerente. Foi uma sucção suave e quente, as mãos nas
minhas pernas, resistindo ao modo como elas pareciam querer se fechar ao
redor da cabeça dele, e a sensação doida de sua língua e seus lábios e seus
arquejos em busca de ar. Elliot estava fazendo o que eu mal me permitia
imaginar.
E voltou a subir quando eu começava a ofegar, mordiscando e beijando a
minha pele, selvagem de um jeito que eu jamais havia imaginado, mas,
naquele momento, eu percebi que não poderia ser de nenhum outro jeito entre
nós.
– Desculpe – ele disse. – Eu queria continuar, mas… – Fechou os olhos,
mordendo o lábio inferior e gemendo como se estivesse tentando se
controlar.
– Tudo bem, vem aqui. – Queria o peso dele em cima de mim. Queria vê-
lo pairando acima do meu corpo para gravar essa imagem no meu cérebro.
– Eu pensei que ia gozar, mesmo – ele acrescentou com uma risada
pressionada nos meus lábios, a boca ainda úmida de mim, e com uma
urgência por trás do seu toque que me deixou meio ensandecida.
Puxei o cinto dele sem sucesso até meus dedos se lembrarem de como
funcionar, retirando cada um dos botões de sua casa, um de cada vez; em
seguida minhas mãos sentiram a pele nua do abdômen liso, do quadril
estreito, dos pelos do dorso das coxas enquanto eu empurrava as calças para
baixo até os joelhos.
Ele estava pesado em cima de mim, duro e espesso contra meu quadril, e
eu me arqueei ao encontro dele, querendo esfregá-lo lá.
– Eu quero – disse, estendendo o braço para encontrá-lo. Minha mente
virou mingau com o som que ele emitiu, com a sensação dele, tão quente e
duro em minha mão. – Você quer?
– Transar? – ele perguntou, assentindo freneticamente, com os olhos
extasiados. – Sim. Sim. Eu quero. Eu quero, Macy, mas, porra, estou sem
proteção.
– Pílula – arfei quando ele mudou de posição e eu o senti deslizar pela
minha coxa. Pele suave e macia sobre algo nada suave.
Elliot levantou o queixo, surpreso.
– Você está tomando pílula?
– É uma das regras da minha mãe. Papai me fez começar a tomar em
outubro.
Com a mão, ele se ajeitou entre nós e quando se esfregou em mim, fiquei
completamente descontrolada. Mal o ouvi perguntar:
– Tem certeza, Macy? Olha pra mim.
Ao som urgente da voz dele, desviei meu olhar do lugar em que ele estava
prestes a entrar em mim para os olhos, que estavam quase negros de desejo,
mas também pacientes, aguardando.
– Por favor – pedi. Era tão bom. Se ele continuasse me esfregando
daquele jeito… – Tenho certeza.
Ele baixou o olhar e se guiou até o lugar certo antes de se inclinar na
minha direção, apoiando os cotovelos perto dos meus ombros. Aquela
pareceu a coisa mais natural do mundo: minhas pernas deslizaram pelos
quadris dele, os lábios dele encontraram os meus. Elliot se moveu para a
frente, meio centímetro. Não dentro ainda, mas perto.
– Isso não vai ser uma maratona – ele gemeu. – Mal estou conseguindo me
controlar.
– Eu só quero te sentir.
Ele empurrou mais meio centímetro e parou quando eu gritei diante da
reação do meu corpo, diante da coesão de sentidos e estímulos. Os olhos
dele se desviaram para o meu rosto e depois se reviraram de prazer quando
usei as pernas curvadas ao redor das coxas dele para puxá-lo com rapidez –
e rispidez – pelo resto do caminho para dentro de mim.
Mordi o ombro dele ante a punhalada de dor, o corpo de Elliot abafou
meu grito. Seus quadris recuaram com cuidado, e depois voltaram para a
frente, e eu senti o rasgo de prazer/dor dele, uma vez depois da outra quando
ele começou a se mover com mais intensidade, empurrando e recuando de
mim, mais rápido.
– Você está bem? – ele arquejou.
Consegui responder com um “sim” estrangulado.
– Deus do céu, eu…
Abracei-me a ele, com os braços e as pernas presas ao seu redor, os olhos
bem fechados a cada investida, meu coração querendo mantê-lo dentro de
mim mais do que meu corpo precisava que ele saísse.
– Vou gozar – ele arfou, e então estremeceu debaixo das minhas mãos, a
respiração em suspenso e a tensão nos ombros até ele despencar.
Senti o que provoquei nele. Senti cada nuance dentro de mim.
Num eco de algum lugar, ouvi sons, de pés, uma voz. O desejo ainda
ecoava dentro de mim, e eu me senti estranha e de pronto vazia. Com a
cabeça atordoada, percebi que ele recuava e me suspendia.
– Macy? – papai me chamou do andar de baixo. Ou de baixo da água, eu
não tinha certeza.
O rosto de Elliot voltou a entrar em foco acima do meu, a testa estava
suada, os olhos arregalados, os lábios vermelhos e ainda úmidos por causa
dos meus beijos.
– Levanta, Mace.
Trazida de volta ao presente, de alguma forma reencontrei minha voz,
dizendo um rouco:
– Oi, pai!
Elliot puxou as calças para cima e passou a camiseta pela cabeça
enquanto meus dedos atrapalhados tentavam vestir minhas calças. Parei
quando vi o fio vermelho escarlate de sangue na minha coxa, pisquei para
Elliot, cujos olhos estavam presos aos meus, mesmo enquanto ele abotoava
os jeans.
– Tudo bem? – ele sussurrou. Passos ecoaram pelos degraus no fim do
corredor.
– Sim. – Fiquei de pé com as pernas bambas para encontrar minha blusa,
vesti-a e escondi o sutiã debaixo de uma almofada bem quando meu pai
entrou.
Ele parou na soleira da porta, absorvendo o cenário. Elliot havia se
lançado sobre as almofadas de um dos cantos, lia meu exemplar usado de O
clube da felicidade e da sorte sem óculos. O rosto estava corado, a
respiração irregular. Eu estava de pé perto da porta, e só então me dei conta
de que não fazia ideia de como meus cabelos estavam, mas deduzi que não
deviam estar nada bem. Elliot enfiara os dedos neles, desmanchara minha
trança e enterrara as mãos pelos meus cabelos mais de uma vez.
Meu corpo estremeceu com a lembrança.
Papai olhou para mim e formou um sorriso malicioso.
– Oi – eu disse.
Tive que lhe dar um pouco de crédito porque ele só disse:
– Oi, gente.
– O que foi? – perguntei, tentando respirar.
– Mace, meu bem, sinto muito, mas acha que consegue ficar pronta para ir
embora em uma hora? Tive que correr para a cidade para pegar um fax,
acredita? Temos que voltar esta noite. – Ele parecia sinceramente lamentar
muito.
Tínhamos mais duas noites, pensei, mas mesmo quando o desapontamento
me esmagava, assenti com alegria.
– Sem problema, pai.
Ele acenou para Elliot, que acenou de volta, e depois saiu.
Lentamente, eu me virei. Elliot estava de olhos fechados, cobrindo o rosto
com as mãos quando ele finalmente pôde respirar, já que não precisava mais
fingir estar relaxado.
Fui até ele, subi no seu colo, querendo desesperadamente senti-lo junto a
mim.
– Puta merda, essa foi por pouco – ele sussurrou.
Concordei. Eu não queria ir embora. A adrenalina me atravessava,
fazendo tremer as pernas e os braços. Eu queria me enroscar com ele e
conversar sobre o que tínhamos acabado de fazer.
Ele virou a cabeça, beijando minha têmpora.
– Você estava sangrando. Eu sei… que é normal, mas só quero ter certeza:
eu te machuquei?
Olhei para o teto, tentando encontrar uma resposta que fosse verdadeira e
tranquilizadora ao mesmo tempo.
– Não mais do que eu esperava.
Os lábios dele encontraram os meus. Beijos lentos e carinhosos
salpicaram minha boca, meu queixo, meu rosto.
– Você precisa arrumar as suas coisas – ele disse com relutância,
afastando-se.
– É.
Elliot se levantou, erguendo-me com ele e depois me colocou no chão.
– Me manda um e-mail hoje à noite?
Disse que sim. Ainda estava tremendo. Pelo que havíamos feito… e por
quase termos sido flagrados fazendo.
Ele amparou meu rosto entre as mãos, vasculhando meus olhos.
– Foi… bom?
– Foi. – Refreei um riso nervoso. – Quero dizer… definitivamente quero
fazer de novo. – A adrenalina estava me deixando agitada e acelerada.
– Ok. – Ele concordou freneticamente. – Ok, então nos falamos? Você está
bem?
– Sim. – Sorri. – Você?
Ele expeliu o ar controlado.
– Vou pra casa, tomar um banho demorado e relembrar de tudo a não ser o
minuto em que o seu pai ficou parado ali e eu ainda estava meio que duro.
Apoiei-me, com a testa no peito dele.
– Não quero ir.
Os lábios dele encostaram na minha cabeça.
– Eu sei.
– Acabamos de transar? – perguntei baixinho.
Com os polegares, ele virou meu rosto para cima de modo que eu o
fitasse.
– Sim. Nós transamos.
Ele se curvou para a frente, me beijou uma vez, duas, suavemente nos
lábios, e depois uma terceira mais intensamente. Por fim, se afastou, me
beijou na ponta do nariz e saiu do closet.
E eu pensei, enquanto ouvia os passos trotando pela escada, que era
estranho e maravilhoso que nunca tivéssemos dito “eu te amo”. E não
precisamos disso.
HOJE

DOMINGO, 31 DE DEZEMBRO

– Apesar de termos nascido dos mesmos pais, e crescido na mesma casa,


Andreas e eu não poderíamos ser mais diferentes – Elliot diz, abrindo seu
discurso de padrinho e deslizando a mão para dentro do bolso da calça do
smoking. Está de pé diante de todas as mesas com arranjos floridos e velas,
com um sorrisinho se abrindo na boca.
– Eu era estudioso, ele era… – Elliot coça a sobrancelha. – Bem, ele era
atlético.
Os convidados riram, entendendo o que ele quis dizer.
– Eu era obsessivo, ele era relaxado. – Outro riso apreciativo. – Eu
aprendi latim; ele se comunicava primordialmente com grunhidos e
carrancas. – Diante disso, eu também me junto às risadas compartilhadas. –
Mas qualquer um que nos conheça sabe que temos algo importante em
comum. – Elliot olha brevemente para mim, de relance, quase como quem
não consegue se conter, e depois de volta a Andreas. – Quando amamos,
amamos pra valer.
Um murmúrio emotivo percorre o ambiente, e meu coração se desmancha
numa poça de mel aquecido.
– Andreas conheceu Else quando tinha 28 anos. Claro, teve namoradas
antes, mas nada semelhante. Certo sábado, ele entrou na casa de nossos pais
parecendo fisicamente abalado. Olhos arregalados, boquiaberto, Andreas
havia perdido a capacidade de se expressar em seu vocabulário costumeiro
e básico. – Gargalhadas emergiram, jubilosas. – Quando a trouxe para jantar,
qualquer um pensaria que ele convidara a rainha da Inglaterra. – Elliot sorriu
para a mãe. – Importunou mamãe quanto ao que serviria. Insistiu com papai
para que não deixasse o jogo dos Niners passando o tempo inteiro. Ficou me
enchendo para que eu não fizesse nada estranho, como citar Kafka ou fazer
truques de mágica com a vagem. Para um homem que jamais limpara o
próprio quarto de livre e espontânea vontade, esse comportamento
meticuloso foi notável.
Meu sorriso se espalha pelo rosto; uma falha sísmica nervosa e
apaixonada.
– E ele se mostrou cuidadoso, leal e devotado a ela todos os dias desde
então. Por quatro anos, eu o observei se apaixonar cada vez mais. Dizer que
Else é o par perfeito para Andreas é pouco. Pelo visto, ela ama cabeças-
ocas. – Risos. – E, pelo visto, ela também gostou de todos nós o bastante.
Elliot ergue a taça, sorrindo com afeto para o irmão e sua nova cunhada.
– Else, bem-vinda à família. Não posso prometer que um dia seremos
tranquilos, mas posso lhe prometer que você jamais será tão amada quanto
ao nos visitar.
Saudações se espalham, taças brindam. Elliot abraça os dois, depois volta
para sua cadeira ao lado da minha.
Debaixo da mesa, segura minha mão. Ele está trêmulo.
– Foi lindo – eu lhe digo.
Ele se inclina, pega um pedaço do salmão com a mão que está livre.
– Achou mesmo?
Inclino-me na direção dele, pressiono os lábios na sua face. A pele está
quente e um pouco áspera agora, como uma lixa bem suave. Mal consigo me
controlar e expor os dentes para dar uma mordidinha.
– Achei.
Quando meus lábios se afastam, deixam uma marca de pétalas gêmeas de
batom. Estendo a mão e, com relutância, tiro a marca com o polegar. Eu meio
que gostei dela ali. Elliot continua a comer, sorrindo para mim enquanto
mexo nele, e nunca em toda a minha vida me senti tão feliz como se fosse a
esposa de alguém.
É uma sensação borbulhante, como se estivesse embriagada – o modo
como isso vai abrindo caminho da garganta até o estômago. Mas ali, tudo
está aquecido. Levo a mão dele para perto de mim, no meu colo, no alto da
minha coxa. Ele para com o garfo na metade do caminho até a boca e me dá
um sorriso malicioso, mas acaba mordendo e mastigando, inclinando-se para
a esquerda para ouvir quando Andreas o cutuca no ombro.
A música começa para a primeira dança do casal, e Andreas e Else se
levantam, indo para o centro da pista, dançando um solo por alguns minutos
antes que o DJ chame todos os convidados para a pista. E, então, a senhora
Dina e o senhor Nick vão para lá, e depois os pais de Else também. Elliot
olha para mim, as sobrancelhas se movendo numa pergunta óbvia… e lá
vamos nós.
Ele me conduz para um ponto no meio da pista, atraindo-me com um braço
na cintura até eu ficar colada nele: peito com peito, ventre com ventre,
quadril com quadril.
Balançamos. Não estamos de fato dançando. Mas a nossa proximidade
incendeia o meu corpo, e consigo sentir o que provoca nele também. Bem
colado em mim, ele está semiereto, a postura expõe a avidez que sente.
Também quero estar mais perto. Com uma mão presa à dele, a outra
desliza pelos ombros ao redor do pescoço, então – bem devagar – por seus
cabelos. Elliot aninha nossas mãos entrelaçadas contra o peito e depois se
curva, pressionando o rosto no meu.
– Eu te amo – ele diz. – Sinto muito por não poder controlar a reação do
meu corpo a você.
– Tudo bem. – Conto quinze batidas de coração antes de conseguir
acrescentar: – Eu também te amo.
Ele reage à minha fala prendendo de leve a respiração, com um leve
tremor dos ombros – é a primeira vez que ele me ouve dizer isso.
– Ama?
Meu rosto roça o dele quando assinto.
– Sempre amei. Você sabe disso.
Os lábios dele estão próximos o bastante da minha orelha que resvalam
quando ele pergunta:
– Então por que me deixou?
– Eu estava magoada. Depois, fiquei devastada.
Agora ele reage. Os pés param na pista.
– O que te devastou?
– Não quero falar sobre isso aqui.
Ele recua, os olhos analisam os meus como se pudesse haver diferentes
mensagens ali.
– Quer sair?
Não sei. Eu quero sair dali… Mas não para conversar.
– Quando você puder – respondo. – Pode ser mais tarde.
– Para onde?
Qualquer lugar. Só sei que preciso ficar sozinha com ele. Preciso tanto
que já estou desassossegada, tensa. Quero ficar sozinha com ele.
Quero Elliot.
– Não me importo com o lugar. – Deslizo a outra mão pelo peito, ao redor
do pescoço, até chegar aos cabelos. A respiração de Elliot fica em suspenso
quando ele percebe o que estou fazendo: puxando-o para baixo para me
beijar.
Os lábios descem sobre os meus com fervor, as mãos sobem para segurar
meu rosto, para me manter perto como se meu beijo fosse algo delicado,
fugidio.
Seu beijo é uma súplica dolorosa; a devoção emana dele. Elliot suga meu
lábio inferior, o superior, inclinando a cabeça em busca de mais, e mais
profundo, antes de eu me afastar, lembrando-o com um leve desvio de olhos
de onde estamos e quantas pessoas podem ter notado.
Elliot não se importa com elas. Segura minha mão, abrindo caminho até os
degraus no fundo da pista que dá para os jardins.
Nossos sapatos fazem um barulho úmido no gramado. Levanto a barra do
vestido, correndo atrás dele.
Vamos para dentro do jardim, para a escuridão, onde só o que ouço é o
zunido dos insetos e o vento que passa pelas folhas. As vozes desaparecem
nas luzes atrás de nós.
ANTES

SÁBADO, 31 DE DEZEMBRO ONZE


ANOS ATRÁS

Papai se materializa ao meu lado, segurando uma taça de champanhe para


ele e outra com um aroma suspeito de soda para mim.
– Nem uma tacinha de verdade para brindar? – pergunto, fingindo uma
carranca. – Essa festa tá horrível.
Papai ouve o comentário dando uma observada geral no que nos cerca
porque, evidentemente, aquela festa não está nada horrível. Era nos jardins
cobertos do Hotel Palace e estava repleta de pessoas lindas cobertas de
joias e – ainda bem – animadas. O ambiente todo fora decorado com
milhares – quem sabe um milhão – de pequeninas luzes brancas. Passávamos
a virada do ano no meio de uma constelação. Embora eu estivesse longe de
Elliot, não podia reclamar.
Faltavam poucos minutos para a meia-noite e a multidão se aglomerava ao
nosso redor, pressionando-nos na direção do bar, pois todos queriam ter uma
taça na mão antes que o Ano-Novo chegasse.
Enfiada debaixo do braço, minha bolsa de festa começou a vibrar. Olhei
para papai, que me deu um único aceno de permissão, e eu saí do salão de
baile.
Conferi o celular. Onze e cinquenta e cinco. Elliot estava ligando para
mim.
– Oi – disse sem fôlego.
– Oi, Mace. – A voz dele estava arrastada e animada.
Mordi o lábio para não rir.
– Tomamos uns golinhos a mais, senhor Petropoulos?
– Um ou dois. – Ele riu. – Pelo visto, sou fraco pra isso.
– Porque você não é de beber. – Seguindo em frente no corredor
silencioso, encostei numa parede. O barulho da festa diminuiu para um
burburinho de pano de fundo: vozes, tilintar de copos, música. – Onde você
está?
– Numa festa. – Ele ficou calado, e eu ouvi os barulhos de fundo, uma
campainha tocando. – Na… hum, casa de alguém.
– De “alguém”?
Ele hesitou e, naquele instante em que ele inspirou e prendeu o ar, eu sabia
o que estava por vir.
– Na casa do Christian.
Fiquei calada por um segundo. Eu sabia o suficiente a respeito de
Christian para ficar desconfortável quanto à sua influência. As coisas
ficavam descontroladas quando Christian estava por perto, pelo menos foi o
que Elliot me dera a entender.
– Ah.
– Não me venha com esse “ah”, mocinha – ele respondeu num tom baixo e
lento. – É uma festa em casa. Uma festa com muitas pessoas numa casa
grande.
– Sei disso – eu disse, inspirando fundo. – Só tome cuidado. Está se
divertindo?
– Não.
Sorrindo com essa resposta, perguntei:
– Quem mais está aí?
– Pessoas – ele murmurou. – Brandon. Christian. – Uma pausa. – Emma. –
Meu estômago se contraiu. – Outras pessoas da escola – acrescentou
rapidamente.
Ouvi algo cair e quebrar no fundo; Elliot falando “ah, para”, e uma garota
rindo o nome dele antes de ter a impressão de que ele tinha ido para um
lugar mais tranquilo.
– E, sei lá, Mace… você não está aqui. Então não estou nem aí pra quem
está.
Dei uma risada taciturna. Aquele telefonema parecia um empurrão para a
frente, para a vida onde tomaríamos cerveja juntos, e teríamos dormitórios
da faculdade, e horas e horas sozinhos. Senti nosso futuro pairando à
espreita, provocando.
Tentadoramente.
– Onde você está? – ele perguntou.
– Na festa elegante.
– Certo, certo. De gala. Alta sociedade.
Olhei por cima do ombro na direção do grande salão de baile.
– Todos aqui estão embriagados.
– Parece horrível.
– Que nem a sua festa – revidei, observando papai do outro lado do
ambiente, conversando com uma loira bonita. – Papai parece estar se
divertindo.
– Está vestindo algo elegante?
Baixei o olhar para meu vestido verde cintilante.
– Estou. Um vestido de paetês verde. Pareço uma sereia.
– Como a princesa da Disney?
Gargalhei.
– Não. – Descendo a mão pelo estômago, acrescentei: – Mas acho que
você iria gostar.
– É curto?
– Não muito. Termina nos joelhos?
– Justo?
Mordendo o lábio, baixei o tom de voz. Desnecessariamente, claro, pois a
festa corria solta.
– Não grudado na pele. Mas… ajustado.
– Hum – ele grunhiu. – Você não preferiria estar de jeans e camiseta
comigo? No meu colo?
Dei uma risadinha com a falta de filtro dele.
– Definitivamente.
– Eu te amo.
Congelei. Fechei os olhos ao som dessas palavras.
Repete, pensei, e de imediato fiquei pensando se era assim mesmo que
queria ouvi-lo confessar isso: bêbado – pela primeira vez, pelo que sei – e a
tantos quilômetros de distância.
– Eu te amo – ele grunhiu. – Eu te amo pra cacete. Eu te amo e te desejo e
te quero. Eu te amo como a pessoa com quem quero estar o resto da vida. Eu
só… Macy? Casa comigo?
O tempo parou. Planetas se alinharam e depois se afastaram. Anos se
passaram. As vozes e a música e as taças tilintando ao meu redor sumiram e
eu só conseguia ouvir o eco do pedido apressado dele.
Gaguejei diversos sons antes de conseguir falar.
Infelizmente “o quê?” foi a primeira resposta que saiu com coerência.
– Droga – ele gemeu. – Droga, estraguei tudo.
– Elliot…?
A voz saiu abafada quando ele disse:
– Vem me ver? Quero te pedir em casamento. Pessoalmente.
Olhei ao redor, meu coração era um raio escaldante, um trovão
retumbante. – Eu… Ell… Não sei se consigo ir hoje à noite. Isso é demais.
– É demais. Mas é real.
– Ok. Estou te ouvindo – disse, prendendo o nariz entre os dedos com os
olhos fechados. Ele me disse que me amava e me pediu em casamento numa
única conversa. Pelo telefone. – Eu só… meu pai nunca vai me deixar pegar
a estrada com todos esses bêbados à solta.
Ele ficou calado por tanto tempo que tive que olhar para o celular para ter
certeza de que a chamada não fora encerrada.
– Elliot?
– Você me ama?
Suspirei, piscando em busca de afastar as lágrimas. Não era assim que eu
queria ter essa conversa – não era assim que eu queria discutir o nosso
futuro –, mas lá estava, na minha cara, exigindo que assim fosse.
– Você sabe que sim. Mas não quero fazer isso pelo telefone.
– Sei que não quer, mas entende o que eu estou dizendo? Você quer se
casar comigo? Quer tornar isso permanente? A Goat Rock, a biblioteca, os
passeios por todos os lados, viagens. Você quer me tocar e estar comigo e
acordar com a minha boca em você e quer que eu seja a pessoa a pessoa que
provoca os seus orgasmos ou… porra, quer que eu seja aquele que te vê
gozando ou sei lá o que mais? Você pensa numa vida comigo ou se casando
comigo?
– Ell…
– Eu penso – ele disse num sussurro apressado. – Eu penso nisso o tempo
inteiro, Macy.
Quase não consegui falar, pois minha pulsação estava desenfreada.
– Você sabe que eu também.
– Vem pra cá hoje à noite, por favor, Macy, por favor.
Cornetas começaram a tocar em algum lugar e soltaram confetes de um
contêiner invisível em algum lugar acima da minha cabeça, mas eu só
consegui ouvir a estática da ligação.
– Vou no próximo fim de semana, combinado?
Ele suspirou: o peso do universo naquele som.
– Promete?
– Claro que prometo. – Olhei para o salão e vi meu pai vindo na minha
direção, com um raro sorriso iluminando seu rosto. O barulho tomou conta
do outro lado da ligação e eu já não conseguia mais ouvir Elliot.
– Macy? Não consigo te ouvir! Está o maior barulho aqui.
– Ell, vá, divirta-se, mas tome cuidado, está bem? Você pode me dar o
meu beijo de Ano-Novo no sábado que vem.
– Ok. – Ele ficou quieto e eu sabia o que ele estava esperando que eu
dissesse, mas eu não faria isso pelo telefone. Ainda mais quando teria que
gritar para ele me ouvir, incerta de que ele se lembraria.
– Boa noite – falei. Ele ficou calado, e eu olhei rapidamente para o
celular antes de aproximá-lo de novo do ouvido. – Ell?
– Boa noite, Mace.
A ligação foi interrompida com um clique.
Acho que eu não conseguiria descrever um aspecto sequer da festa depois
do telefonema. Depois de um abraço e de uma dança com meu pai, fiquei
andando do lado de fora do salão por cerca de meia hora.
Odiei não estar com Elliot para aquela conversa.
Odiei termos cruzado esse limite enorme, termos reconhecido um futuro
para nós – fora do closet, no mundo real, num relacionamento pra valer –
quando ele estava a quilômetros e quilômetros de distância de mim, e
bêbado.
Odiei o tom da voz dele quando me disse boa-noite.
– Macy, por que está aqui fora? – papai perguntou. Os sapatos dele se
chocaram no mármore enquanto ele vinha na minha direção, e o clamor da
festa mais parecia água fria batendo na minha pele. – Quer ir embora?
Olhei para ele, assenti e me desfiz em lágrimas.
– Não estou entendendo qual é o problema – papai disse, manobrando
numa curva acentuada. Olhei para ele para me certificar de que estava
mesmo sóbrio. Eu não o vi bebendo, mas ele parecia tão controlado
mentalmente quanto eu me sentia. – Você teve uma boa conversa com Elliot e
está triste por causa disso?
– Eu só não gostei de como o telefonema terminou – admiti. – Senti que
ele queria muito mesmo que eu estivesse lá com ele.
– Sei que você tem ficado mais em casa do que ido até lá, mas foi sempre
assim entre vocês. Qual é o problema? – papai perguntou, sempre lógico.
Sendo bem justa, ele não tinha todos os detalhes. Não lhe contei que Elliot
disse que me amava. Por certo não lhe contei que Elliot havia me pedido em
casamento.
– Só foi… estranho.
Ao contrário de Elliot, papai dificilmente me pressionava.
Depois de vinte minutos de silêncio, papai entrou em casa e desligou o
carro. Virando-se para mim, disse baixinho:
– Me ajude a entender.
– Ele é meu melhor amigo – comecei dizendo, sentindo as lágrimas me
apertando a garganta. – Acho que nós dois estamos nervosos quanto ao que
vai acontecer quando descobrirmos para que faculdade iremos, e o que
faremos depois disso – depois que as nossas vidas não forem mais
pontuadas por viagens de fim de semana. Foi estranho hoje… O jeito como o
telefonema terminou, e eu não sei se alguma coisa ruim aconteceu entre nós.
– Sentei-me ereta, olhando para o painel do carro silencioso. – Às vezes eu
fico me perguntando se devemos ser só amigos, só pra não ter que ficar me
preocupando se um dia vou perdê-lo.
Papai pressionou os lábios, pensativo.
– Ele é a sua Laís.
Meus olhos se encheram de lágrimas de novo com o som do nome da
minha mãe. Eu não o ouvia pronunciá-lo há muitos anos.
– Vocês dois são jovens, mas… se ele é essa pessoa pra você – papai
prosseguiu –, você não vai conseguir ser só amiga dele. Você vai querer lhe
dar tudo e lhe mostrar de todas as maneiras o quanto o ama.
As lágrimas escorreram, descendo pelo meu rosto.
– Eu aproveitaria qualquer minuto que tivesse com ela – ele sussurrou,
virando-se para mim. – Eu teria aproveitado tudo o que pudesse. E não me
arrependo nenhum instante de tê-la amado, mesmo que ainda doa tanto o fato
de ela não estar mais aqui.
Concordei, com a garganta apertada.
– Eu já sinto que estou perdendo muito tempo longe dele.
– Não vai ser sempre assim.
– Posso ir dirigindo para lá agora à noite? – pedi.
Ele me encarou por um instante longo e silencioso.
– Está falando sério?
– Sim.
Fechando os olhos, ele inspirou fundo algumas vezes.
– Vai tomar cuidado?
O alívio percorreu meus membros.
– Eu juro.
Papai se virou para a frente, olhando para a entrada de carros da nossa
casa pelo para-brisa, para o seu carro velho logo ao lado daquele novo.
– Enchi o tanque do Volvo hoje cedo. Pode ir com ele.
Inclinei-me ao longo do console, envolvendo-o com os braços.
– Vai me ligar assim que chegar lá?
Assentindo junto ao pescoço dele, eu prometi.
HOJE

DOMINGO, 31 DE DEZEMBRO

Elliot para junto a um aglomerado de oliveiras, virando-se de frente para


mim. Longe assim, o cricrilar dos grilos é ensurdecedor; a festa, apenas um
zunido distante. Creio que caminhamos cerca de um quilômetro seguindo um
caminho largo que passou de jardins bem cuidados a terras cultivadas mais
rústicas.
Jesus Cristo, por onde começar?
Eu quero começar tocando.
Ele pode querer começar com palavras, e explicações, e desculpas –
minhas e dele. Há tanto ainda que preciso lhe contar.
O peito dele sobe e desce com a força da respiração, e meus próprios
pulmões parecem se debater dentro de mim, esforçando-se para puxar o ar.
Espero que ele diga algo, mas, em vez disso, Elliot cai de joelhos diante
de mim, passando os braços ao redor do meu quadril e pressionando o rosto
no meu abdômen. Congelada por um momento, eu o encaro ali embaixo, o
topo de sua cabeça, tentando traduzir o tremor dos seus ombros.
Elliot está chorando.
– Não, não – sussurro. Acaricio seus cabelos, inclinando-lhe a cabeça
para que ele olhe para mim, e então me abaixo, empurro-o contra uma
árvore, subo no seu colo até que o rosto dele esteja bem perto do meu, tão
próximo que não passa de um borrão. Tão próximo que ele é a única coisa
que consigo ver. Tiro os óculos dele por cima da cabeça e os coloco com
cuidado na grama logo ao lado.
– O que estamos fazendo? – ele sussurra.
– Senti saudades. – Curvo-me e beijo seu pescoço, seu queixo.
Ele me afasta pelos ombros, e eu vejo duas lágrimas grossas escorrendo
em suas faces.
– Pensei que nunca mais tocaria em você.
– Também pensei.
Ele morde o lábio inferior, com os olhos arregalados.
– Eu aceito qualquer migalha que você me der. Não é patético?
Inclino-me na direção dele, lábios se tocando, inalo o aroma da loção
pós-barba, o cheiro pungente da grama, preciso de oxigênio para permanecer
consciente àquilo tudo.
A boca se abre para mim, e ele se senta mais ereto com uma forte
inspiração, as mãos amparando meu rosto de novo. Com urgência, ele volta
para obter mais, inclinando a cabeça, mordendo e sugando, e eu preciso de
mais intensidade, de mais. Preciso de tudo dele. Os gemidos de Elliot são
abafados pelos meus lábios e dentes e respirações. As mãos sobem por
baixo do vestido, empurrando-o até a cintura enquanto eu solto a gravata aos
puxões e desabotoo a camisa.
Dedos frios deslizam pela parte interna da minha coxa. O peito dele está
tão quente debaixo das minhas mãos, e eu mergulho, deslizando as palmas
pela clavícula e descendo pelo abdômen, querendo sentir cada centímetro.
Ele grunhe algumas palavras ininteligíveis quando me sente por baixo da
calcinha. E depois os dedos sobem até o umbigo, para descer com cuidado
por dentro da renda, e eu fico de joelhos acima dele, ajudando-o a ter acesso
ao lugar em que preciso mais do seu toque do que de qualquer outra coisa na
galáxia.
– Está molhada assim pra mim? – ele pergunta, recuando para me fitar no
rosto. Os dedos me penetram, o polegar afaga. – Isto sou eu?
Assinto e a descrença dele é contagiosa; é o que amplifica cada toque, faz
com que eu me mova no seu ritmo, mordendo enquanto ele me acaricia. É o
que lança meu corpo numa espiral crescente e estreita, a um destino, logo ali,
apenas dois outros toques mais para o alto. Dois mais.
– Ell.
– Isso.
– Vou gozar.
Seu sorriso se curva numa única palavra.
– Ótimo.
Desajeitada, alcanço o cinto, o zíper.
– Espera – digo ao meu corpo. – Deus, estou tão perto.
Espera.
Aguenta. Espera.
Ele não para o que está fazendo quando se retrai e me olha no rosto.
– Você quer…?
Os dedos dentro de mim escorregam, mais forte, mais rápido.
Atrapalhada, procuro e encontro o calor pesado dele, fechando minha mão
ao redor, mudando a posição de modo a estar ali, erguendo-o, deixando-o
molhado comigo.
Ele geme e mergulha dentro de mim, e o som me atinge como algo
ancestral e selvagem.
O alívio daquilo – da espessura ávida dele, finalmente entrando e saindo
de mim – é uma estrela derretendo, espalhando fogo na minha corrente
sanguínea. Ele diz ofegante que não quer gozar, não quer gozar nunca, não
quer parar nunca mais. Eu já estou no limite, e nossa transa instantânea e
frenética me leva além após uma série de investidas rápidas. Ele embaixo,
eu por cima.
Os grilos e Elliot se calam perante os gritos agudos que saem rasgados de
dentro de mim.
No silêncio que se segue, sinto o tamborilar da pulsação dele quando
meus lábios beijam seu pescoço. Mas, então, ele envolve meu rosto com as
mãos, inclinando meu rosto para o dele.
– Ei? – ele sussurra. Balanço a cabeça entre suas mãos, sentindo o peso
dele dentro de mim. – Minha nossa – diz num beijo –, isto é surreal.
Tudo se estreita para os pequenos movimentos do meu quadril sobre o
dele, para os beijos suaves e molhados. Mal estou me mexendo. Apenas um
balançar, um aperto, o que significa que não estou esperando o jeito urgente
como ele me diz que está quase lá.
Pressiono a pergunta contra os lábios dele:
– Quer que eu pare?
– Só se você não estiver protegida. – A língua dele encontra a minha e ele
geme. – Macy, amor, estou muito perto.
Não sei se é bem nesse momento que, de fato, percebo a realidade,
estamos fazendo amor, quase vestidos, em algum lugar dos jardins da
cerimônia de casamento do irmão dele. Mas quando Elliot gozar, quero as
mãos dele e o ar úmido na minha pele, não na seda amassada do meu
vestido. Todas as vezes que nos tocamos, estávamos parcialmente vestidos.
Levo as mãos às costas, desço o zíper e deslizo as alças pelos ombros,
tirando rapidamente o sutiã tomara que caia. Meu vestido cai até a cintura.
Sua boca vai direto para os meus seios, gemendo, e as palavras de
aprovação – pelo meu calor e minha doçura, pela necessidade de sentir meus
seios com a língua. Ao encontro de nossas peles através da camisa
engomada aberta, sinto-o crescer dentro de mim, sinto a necessidade dele de
ultrapassar o balançar suave que está recebendo, e as mãos encontram meus
seios, levando-os à boca aberta.
Estamos de novo num crescendo, mais rápido agora, e eu balanço em cima
dele três,
ah,
quatro, cinco, seis vezes.
– Porra.
Ele me morde,
com força.
– Isso.
Elliot me detém quando as mãos de ferro seguram os quadris, e ele se
move dentro de mim, com a boca aberta e os dentes expostos ao redor do
meu seio.
Vai deixar uma marca.
Mas, mesmo depois de ter terminado, ele resvala os dentes de um lado a
outro, a língua brincando com o mamilo duro, acalentando o local do seu
gentil ataque. Sinto o modo como ele ainda tem espasmos. A respiração dele
sai em lufadas contra meu peito.
Meus dedos fazem um emaranhado dos cabelos dele, segurando-o junto a
mim. A pele fica arrepiada quando as mãos vão para trás, segurando minha
bunda, prendendo-me junto a ele.
Ele gozou dentro de mim.
Ele ainda está dentro de mim.
O que acabamos de fazer?
E como consegui ficar tanto tempo sem ele?
Fazer amor com ele de súbito me pareceu vital, como ar, água e calor.
Elliot vira o rosto para mim, na expectativa, e bastou um leve movimento
da minha boca para a frente para encontrar a dele nesse novo alívio
langoroso.
Aquilo é tão familiar quanto desconhecido. A pele dele está mais áspera
por conta da barba que começa a crescer, os lábios, mais fortes. E dentro de
mim, sei que ele está mais grosso.
Começo a sair de cima – preocupada em não fazer uma lambança no
smoking dele – mas ele me segura firme, mantendo o quadril colado ao meu.
– Ainda não – diz com os lábios contra a minha boca. – Quero ficar aqui.
Ainda não acredito que isso está acontecendo.
– Nem eu. – Estou perdida no langor da sua língua, nos beijos suaves que
se amálgamam em outros mais profundos.
– É possível que eu queira fazer isso de novo.
Sorrio.
– Eu também.
Ele desce a boca para meu pescoço, a mão sobe para espalmar meu seio.
– É estranho – começo a dizer – que eu sinta como se estivesse transando
com alguém novo e antigo ao mesmo tempo?
Isso o faz rir, e ele se curva para beijar meu peito. Voltando para trás, ele
sussurra.
– Quer saber algo ainda mais estranho?
Meus olhos se fecham.
– Quero saber tudo.
E, pela primeira vez em mais de uma década, quero mesmo.
– Demorei anos para estar com alguém depois de você. Você era a única
mulher com quem eu queria estar até eu ter… Bem, demorou bastante.
As palavras dele batem na parede branca do meu torpor sexual, e então o
medo me envolve com sua escuridão.
– Eu te amei a minha vida inteira – Elliot continua com os lábios
brincando pela minha clavícula. Lentamente, abro os olhos, e ele olha para
mim. – Pelo menos a partir do minuto em que comecei a pensar em amor, e
sexo, e mulheres.
Ele ainda está dentro de mim.
Ele sorri, e o luar captura o ângulo agudo do seu maxilar.
– Nunca mais quis ninguém do jeito que eu quero você. Demorou muito
tempo até eu querer outra pessoa, mesmo que só fisicamente.
Deve ser a mesma sensação de estar no olho do furacão. Ao meu redor,
tudo está acontecendo, mas, dentro da minha cabeça, o mundo está muito
silencioso.
Diante do meu silêncio, os olhos dele se arregalam a princípio, depois se
fecham.
– Ai, meu Deus. Acabei de perceber o que eu disse.
ANTES

DOMINGO, 1 DE JANEIRO ONZE


ANOS ATRÁS

Logo após a ponte Richmond, liguei para Elliot, ouvindo quando o


telefone chamou e chamou até cair na caixa-postal. Uns dez minutos depois
que comecei a dirigir foi que me ocorreu que eu não sabia exatamente onde
Christian morava, e não tinha ideia de quanto tempo Elliot ficaria lá. Já
passava de uma da manhã – ele bem poderia já ter voltado para casa, estar
na cama, e eu não conseguiria falar com ele sem acordar o resto da casa.
A rodovia 101 se estendia escura à minha frente, salpicada por ocasionais
faróis de outros carros. Fora isso, estava deserta, com grupos de motoristas
entrando e saindo dos acessos às cidadezinhas no caminho. Novato,
Petaluma, Ronhert Park… Em Santa Rosa, tentei ligar de novo e, dessa vez,
uma voz masculina desconhecida atendeu.
– Telefone do Elliot. – Barulho alto, de pessoas embriagadas e alteradas,
no fundo.
Uma combinação azeda de alívio com irritação se revirou dentro de mim.
Já eram quase duas da manhã e ele – ou pelo menos o telefone dele – ainda
estava na festa?
– Elliot está aí? – perguntei.
– Quem é?
Fiz uma pausa.
– Quem atendeu?
O cara inspirou e a resposta saiu entredentes, como se ele tivesse tomado
uma golada gigante de alguma coisa.
– Christian.
– Christian – eu disse –, é a Macy.
Ele expeliu o ar longa e controladamente.
– A Macy do Elliot?
Alguém no fundo deu um guincho:
– Cara!
– Sim – confirmei –, a namorada dele, Macy.
– Ah, merda! – A ligação ficou abafada, muda, como se alguém estivesse
com a mão em cima do telefone. Quando ele voltou a falar, disse
simplesmente: – Elliot não está aqui.
– Ele voltou para casa sem o celular?
– Não.
Confusa, insisti:
– Então como ele não está aí se você sabe que ele não foi pra casa?
– Macy… – Uma risada ébria e lenta, e depois: – Estou doidão demais
pra entender.
– Ok – disse com calma. – Pode me dar o seu endereço então?
Ele tagarelou um endereço na alameda Rosewood, acrescentando:
– Segunda casa à esquerda. Você vai ouvir.
– Chris – alguém protestou no fundo –, não faz isso.
Christian soltou outra gargalhada baixa.
– Que porra eu tenho a ver com isso?
E, então, desligou.
A casa de Christian era recente, portanto grande para os padrões
artesanais de Healdsburg, no alto de uma colina com vista para um vinhedo.
Ele tinha razão: consegui ouvir assim que virei na rua dele. Carros lotavam a
comprida entrada até a garagem, espalhando-se de qualquer jeito em direção
à calçada. Estacionei no primeiro espaço vazio que achei na rua, diversas
casas mais adiante. Fechei o zíper da jaqueta que pus por cima do vestido,
deixei os sapatos de salto no carro, apanhei uns chinelos no porta-malas e
voltei a subir a colina.
Parecia tolice me dar ao trabalho de bater à porta, que estava ligeiramente
entreaberta, o barulho escapando por ela, por isso eu a empurrei para entrar,
passando por cima de uma grande pilha de sapatos, o que pareceu um
cuidado paradoxal se comparado ao estado do restante da casa. Havia latas,
garrafas e cigarros de maconha fumados até o toco em quase todas as
superfícies. Música alta e televisão se confrontavam no fundo do corredor.
No sofá da sala de estar, dois caras estavam desmaiados, e um terceiro tinha
um controle na mão, jogando Call of duty.
– Você viu o Elliot? – perguntei, gritando acima do tiroteio fictício.
O cara olhou para mim, indicou a cozinha e depois deu de ombros.
Segui para a cozinha.
O ambiente era imenso e estava um completo desastre: coquetéis haviam
sido experimentados e abandonados. Havia uma pirâmide de latas de cerveja
na bancada de mármore da ilha central, cercada por salgadinhos quebrados,
manchas de molho e uma fileira de M&M’s. A pia estava cheia de copos
sujos e de um narguilé.
– Ele está lá em cima – alguém disse atrás de mim.
Eu me virei e reconheci Christian pela foto na escrivaninha de Elliot. Ele
era alto – não tão alto quanto Elliot, mas era mais largo, tinha um
cavanhaque de mau gosto e uma mancha de cerveja na camiseta onde se lia
Chico State Wildcats. Os olhos estavam injetados e dilatados a ponto de
quase parecerem pretos. Ao lado dele, outro cara me encarava de olhos
arregalados, parecendo prestes a passar mal. Era Brandon.
Os dois melhores amigos de Elliot.
– Lá em cima? – repeti.
Christian levantou o queixo como numa indicação, rolando o palito de
dentes de um lado da boca para o outro.
– Ele tá chapado – Brandon disse, seguindo-me quando eu me virei para
sair da cozinha e subir. A voz dele foi ficando cada vez mais desesperada
quando meu pé chegou ao primeiro degrau. – Macy, eu não faria isso. Acho
que ele passou mal.
– Então eu vou levá-lo pra casa. – Mesmo para mim, minha voz pareceu
oca, minúscula, como se estivesse sendo projetada por alto-falantes nos
cantos distantes do vão da escada.
– A gente leva ele pra casa. – Brandon segurou meu cotovelo com leveza.
– Deixa ele dormir por enquanto.
Minha pulsação latejava na garganta, nas têmporas. Eu não sabia o que
iria encontrar… Mas não, aquilo não estava certo. Acho que eu não sabia.
Não entendia o sorriso malicioso de Christian e a crescente ansiedade de
Brandon. Em retrospecto, era difícil saber se eu tive alguma premonição que
me levou até lá, ou se foi apenas algo óbvio.
– Eu iria pra casa, Macy – Brandon suplicou. – Quando ele acordar, eu
peço pra ele te ligar.
A voz dele continuou num zunido ao fundo, seguindo-me por todo o
caminho até o andar de cima e à única porta fechada, bem no fundo do
corredor. Empurrei-a e parei.
Uma perna comprida estava pendurada na lateral de uma cama desfeita.
Os sapatos de Elliot ainda estavam nos pés, ainda tinham os cadarços
amarrados, mas os jeans e a cueca boxer estavam na altura dos joelhos e a
camisa estava erguida até embaixo das axilas, expondo as linhas do peito e a
trilha de pelos escuros que ia até o umbigo.
Brandon tinha razão: Elliot estava desmaiado.
Mas Emma também estava, deitada nua sobre o tronco de Elliot.
Dei um passo para trás, me chocando com o peito de Brandon.
– Ai, meu Deus – sussurrei.
Eu já sabia o que era ter o coração partido, mas aquela foi uma sensação
diferente, como um fósforo aceso perto do meu órgão sangrando dentro do
peito, aguentando firme, esperando pacientemente até a chama morrer, para
endurecer como carvão, para se incendiar.
Eu te amo pra cacete.
Eu te amo e te desejo e te quero.
Eu te amo como a pessoa com quem quero estar o resto da vida.
Casa comigo?
– Ai, meu Deus.
– Macy, não é o que você está pensando – Brandon disse, colocando as
mãos nos meus ombros. – Por favor, acredita em mim.
– Parece que ele fez sexo com ela – disse entorpecida, afastando-me dele.
Por mais que a cena me horrorizasse, eu não conseguia desviar o olhar. A
boca de Emma estava aberta sobre o peito dele enquanto roncava. O pau de
Elliot estava flácido sobre a coxa.
Eu nunca o vira nu antes, nunca… olhei de verdade.
Brandon estava agitado, ansioso.
– A culpa é dela, Macy. Elliot nunca faria…
– Que merda – Christian disse, ficando ao meu lado. – Isso não é nada
bom, Ell.
Arquejei um som engasgado que ele interpretou como uma pergunta.
– Não, eles têm uma história. Só… deixa pra lá – Christian disse, e depois
soltou um arroto e socou o peito com o punho. – Não é nada importante. Eles
só transam de vez em quando.
Dei as costas para eles e voltei pelo corredor, tropecei pelos degraus da
escada, cambaleei pela cozinha até passar pela porta de entrada e voltar
para o ar frio que eu parecia incapaz de respirar. Tentei inspirar, mas era o
mesmo que ser golpeada no diafragma uma vez depois da outra.
Às duas e meia da madrugada do Ano-Novo, eu era a motorista mais
sóbria, porém menos confiável na estrada. Através de um muro de lágrimas,
dirigi atabalhoadamente pela estradinha cheia de curvas, ziguezagueando
colina acima e descendo pela ladeira de pedras. Gritei para o para-brisa, e
quase dei meia-volta um punhado de vezes porque praticamente não
conseguia acreditar no que tinha visto. Os dois deitados lá.
Não olhei para a casa de Elliot quando saltei pelos degraus da frente, com
medo de acabar indo bater à sua porta, exigindo que ele descesse, mesmo
sabendo muito bem que ele não estava ali dentro.
Não tinha mais certeza de nada àquela altura, mas sabia que não
conseguiria chegar a Berkeley inteira.
Lá dentro, a casa estava gelada. Havia madeira empilhada no cesto – eu
poderia acender a lareira, comer alguma coisa para aplacar aquela dor nas
minhas entranhas –, mas mal consegui chegar ao sofá. Puxei uma manta do
encosto da cadeira de balanço e me enrosquei no chão.
Francamente, não me lembro de muita coisa a não ser a sensação do chão
frio ao longo da lateral direita do meu corpo. Acho que meu cérebro deve ter
se fechado de imediato. Algum instinto de autopreservação não queria que eu
enxergasse mais o quadril desnudo dele, visse a mão dela pressionada com
familiaridade no abdômen dele. Algum pedaço de defesa da minha mente não
queria relembrar o cheiro daquele quarto – a nuvem de corpos, e suor, e
cerveja, e sexo – nem o modo casual como Christian se referira à história
íntima dos dois.
Mas será que ele tinha razão? Então foi isso que aconteceu todas aquelas
semanas, em grande parte das vidas deles? Emma e Elliot, transando
casualmente, acabando com o tédio dos dias um com o outro? Enviando
mensagens de texto para se encontrarem quando não tinham mais nada para
fazer? Ficando juntos no parque porque – por que não? Eu não tinha dúvidas
de que Elliot me amava – sabia que sim, sentia isso intimamente –, mas eu
ficava lá nem um terço do tempo, e nos outros dois terços, havia Emma.
Todos os dias de aula, o ano inteiro: acessível, conveniente, familiar.
Eu não fazia ideia de quem era o Elliot-da-Vida-Real. O meu Elliot existia
apenas em certos dias, apenas no confinamento da nossa biblioteca-closet.
Eu não o conheço. Não sei quem ele é. Esse foi o pensamento terrível que
invadiu meus sonhos – sonhos de encontrá-lo por acaso num ônibus e não o
reconhecer, sonhos de passar por ele num corredor, sentindo o eco
desconfortável de que eu, de alguma maneira, havia deixado algo passar,
sem saber o que era.
HOJE

DOMINGO, 31 DE DEZEMBRO

Ergo o quadril, sentindo meu peito contrair quando o corpo de Elliot


desliza para fora do meu. Sinto-o se retrair debaixo de mim, os olhos se
enchem de uma dor que parece crescer à medida que ficamos em silêncio.
– Você nunca me deixou explicar o que aconteceu – ele diz.
Não consigo fitá-lo nos olhos. A questão vai muito além disso, mas,
apesar de todos esses detalhes parecerem minúsculos agora, sei que é por
onde devemos começar.
– Naquela noite, você disse que me amava – eu o lembro –, pela primeira
vez.
Ele confirma com firmeza.
– Eu sei.
– Você me pediu em casamento.
Elliot estende a mão para o meu braço, circundando o meu pulso com os
dedos.
– Falei sério. Eu tinha um anel.
Olho para ele, chocada.
– Se eu tivesse dito sim, você ainda teria transado com a Emma?
– Ok. – Ele se levanta, puxando as calças e fechando o cinto. – Ok. – A
camisa permanece aberta, os cabelos, completamente bagunçados pelos
meus dedos. Elliot, iluminado por trás pela lua e pelo brilho distante da
festa, baixa o olhar para mim. Curvando-se para recuperar os óculos, ele os
coloca. – Você sabe quantas vezes eu te contei essa história na minha
cabeça?
– Provavelmente o mesmo número de vezes que tentei fingir não ter visto
o que vi.
Ele se agacha.
– Eu não sabia o que tinha acontecido até alguns dias mais tarde.
– Como assim?
– Comentei com Christian que você não tinha me ligado de volta e só
então ele disse: “Provavelmente porque ela viu a Emma pelada em cima de
você”.
Pisquei e desviei o olhar. Eu ainda via aquela imagem, nitidamente.
– E o pior foi que – ele diz baixinho –, até ele me falar isso, eu não sabia
que estava com a Emma. Ela não estava lá na manhã seguinte.
Preciso digerir isso por dois, três, quatro respiros.
– Você acordou com as calças abaixadas até os joelhos, Ell. Isso não te
deu nenhuma pista?
– Essa é a parte que eu não consigo entender – ele sussurra. – Na minha
cabeça, era você. Na minha cabeça, você foi até a festa, você me encontrou
desmaiado na cama do Christian. Na minha cabeça, você fez sexo oral em
mim e montou em mim. Não me lembro de ter feito sexo com a Emma
naquela noite. Eu me lembro de ter feito sexo com você.
– Você está se ouvindo? – Encaro-o de boca aberta. Dentro do meu peito,
meu coração troveja com as palavras “fez sexo oral em mim”. Nunca fiz
sexo oral nele; mas ela fez? – Consegue ouvir o medidor de asneira
disparando um alarme aqui no fundo? Está me contando que na noite em que
transou com a Emma, você pensou que ela era eu?
Elliot geme, passando a mão pelos cabelos.
– Sei que parece loucura. Mesmo na época, eu não conseguia juntar os
pedaços daquela noite, e passei onze anos tentando encontrar algum sentido.
Eu estava tão bêbado, Mace. Lembro de ter acordado com a sensação da sua
boca em mim. Lembro de ter tocado seus cabelos, de ter conversado com
você, encorajando. E, quando olho para trás, ainda vejo o seu rosto quando
ela montou em mim.
Ele balança a cabeça, aperta bem os olhos, e quando diz isso, lembro-me
de que Brandon disse algo como “Elliot não faria isso”.
– Acordei – ele continuou – e fiquei completamente envergonhado porque
a porta do quarto do Christian estava aberta e havia algumas pessoas ali por
perto limpando a bagunça. Eu estava sozinho e o meu pau estava pra fora. Te
mandei mensagens de texto perguntando aonde você tinha ido. Toquei a vida
por dois dias, pensando ter feito sexo embriagado com a minha namorada
numa festa. Pensei que você estava envergonhada ou brava comigo por eu ter
ficado tão bêbado, e por isso não me ligava.
É esta a verdade dele – um erro bobo, mas devastador? Parte de mim
anseia por essa versão dos fatos, querendo tanto acreditar que aperto os
dentes até doer. A outra parte de mim quer gritar que essa ladainha de um
equívoco ébrio foi o que desenrolou todo o resto. Deveria ter sido algo
intencional, algo monumental. Algo digno do que aconteceu em seguida.
– Se você tivesse me deixado explicar… – ele diz baixinho, olhando para
mim desnorteado. – Liguei pra você, uma vez depois da outra…
– Sei que ligou.
Eu sabia que Elliot telefonara diversas vezes ao dia, durante meses.
Nunca mais entrei na minha antiga conta de e-mail, mas, se tivesse,
provavelmente haveria quantidades absurdas de mensagens não lidas ali
também.
Eu sabia que o arrependimento dele era enorme.
Mas esse nunca foi o problema.
– Eu estraguei tudo – ele admite –, mas, Macy, por pior que tenha sido, e
eu sei que foi muito ruim, valeu a pena fazer isto? – Ele gesticula entre nós. –
Foi realmente o bastante pra fazer você… me abandonar? Depois de tudo?
Não falar comigo… nunca mais?
Fico olhando para ele, escolhendo as palavras, arranjando-as e
rearranjando-as em orações. A questão da Emma me parece tão
insignificante agora. Foi apenas o primeiro dominó.
– Tínhamos essa confiança cega, inquebrável, sabe. E você acabou com
ela, foi o que você fez… Mas não foi só isso. Sou… eu. Eu também tive
participação nisso.
– Não acha que eu merecia pelo menos uma chance pra me explicar? – ele
me pergunta, compreendendo mal a minha incoerência, a emoção contida
tornando sua voz tensa.
Sei que ele está esperando uma resposta. E a resposta é sim, claro, ele
merecia uma chance para se explicar. Claro que sim. Numa realidade
alternativa, ele teria ligado para mim mais tarde naquele dia e eu teria
atendido.
– Eu te amava – ele continua. – Sempre te amei. Nunca houve outra pessoa
para mim a não ser você, e você sabia disso.
Titubeio entre as palavras.
– Foi uma noite… ruim, muito, muito ruim.
– Sei que foi ruim, Mace. – A voz dele ficou mais dura, quase descrente. –
Fomos o primeiro amor um do outro, o primeiro sexo, o primeiro tudo.
Mas… Aquilo foi um golpe, seria uma briga demorada. Não um…
desaparecimento de uma década.
– Não foi só isso. – Meu coração e a minha boca pareciam em acordo de
que nós, de fato, não podíamos fazer isso agora.
Freadas metálicas no asfalto guincham nos meus ouvidos. Fecho os olhos,
balançando a cabeça para me livrar da lembrança.
– Você tem alguma ideia de como foi pra mim? – ele pergunta, ficando
mais frustrado a cada segundo, diante da minha perturbação inarticulada. –
Todos os dias, eu acordava me perguntando se aquele seria o dia em que eu
voltaria a te ver. E se eu visse, como seria? Eu senti tantas saudades. Tenho
29 anos e nunca amei outra mulher. – Ele me encara sem piscar. – E todas as
outras mulheres com quem estive sabem disso, infelizmente para elas.
Abro a boca para falar, mas nada sai. Ele me encara, atônito.
– Quer saber o que a Rachel queria dizer quando falou que eu estava
acabado? Bem, aqui vai um exemplo: a primeira pessoa a tentar fazer sexo
oral comigo depois que você foi embora teve que ficar sentada esperando
enquanto eu tinha um ataque de nervos que nem um maldito lunático, tentando
explicar por que eu não queria que ela me fizesse um boquete.
– Sinto muito. – Cubro o rosto, inspirando, expirando. O item 27 da lista
da minha mãe me lembrava de respirar. Para dentro e para fora, dez vezes,
quando eu estivesse nervosa.
Um…
Dois…
– Também sinto muito. Eu quero isto – ele sussurra. – Quero você.
Três…
Quero você também, eu penso. Mas não sei como te contar que Emma foi
o menor dos problemas. Outra mulher fazendo um boquete em você é o
menor dos problemas.
– Fala comigo, Mace – ele insiste. – Por favor.
Quatro…
Cinco…
– Eu quero você – ele repete e sua voz carrega um estranho
distanciamento. – Mas começo a perceber agora que talvez eu não devesse.
Seis…
Sete…
Quando chego ao dez, minhas mãos já não estão mais tremendo quando as
abaixo porque eu não imaginava que Elliot iria embora, não o ouvi indo
embora.
Sob a noite escura, a festa na varanda externa é como um farol de
pequeninas luzes e de estrelas lançadas pela luz das velas atravessando as
taças de champanhe. Os aquecedores externos dispostos a intervalos
regulares estão quentes o bastante na noite fresca para impedir o ar úmido de
avançar ao redor dos casais que dançam lentamente.
Encontro George à esquerda da pista de dança, perto do bolo, que já havia
sido cortado e distribuído. O rosto dele está vermelho, o sorriso é amplo e
os olhos, úmidos com uma alegria inebriante.
– Mace! – ele exclama, me puxando para um abraço apertado. – Onde está
o meu irmão?
– Eu ia fazer a mesma pergunta.
Ele levanta a mão e tira um galhinho dos meus cabelos e, meu Deus, só me
ocorre agora que não faço ideia de qual é o meu estado ao sair dos jardins
depois de ter transado com Elliot.
George sorri.
– Suspeito que seu palpite seja melhor do que o meu.
Liz aparece ao lado dele, sorrindo para o marido levemente embriagado.
– Macy! Uau, você parece… – A compreensão se faz em seus olhos e ela
explode numa risada. – Onde está o Elliot?
– A pergunta de um milhão – George murmura.
– Estou bem aqui.
Nós nos viramos e o encontramos logo ali ao lado, de pé, segurando uma
taça meio cheia de champanhe. O calor que senti no rosto dele, contra os
meus lábios, sumiu. Em seu lugar, há um olhar pálido, o vislumbre de uma
carranca. Está sem gravata, a camisa desabotoada no colarinho está
manchada tanto de terra quanto de batom. Olhando para ele agora, não
restam dúvidas do que estávamos fazendo.
Sorrio para ele, tentando transmitir com o olhar que ainda há muito mais a
ser conversado entre nós, mas ele já não está mais olhando para mim.
Virando a taça, ele toma o resto, e a coloca na bandeja de um garçom que
passa por ali e diz:
– Macy, você precisa que eu te leve de volta ao seu hotel?
Uma onda de choque me atravessa. George e Liz ficam quietos e depois se
afastam, parecendo mortificados. Meu coração afunda, a batida de um
tambor seguida do tinir de pratos se chocando quando percebo que ele está
pedindo para eu ir embora.
– Tudo bem – respondo. – Vou pedir um táxi.
Ele assente.
– Ótimo.
Dou um passo à frente, prestes a tocá-lo, mas ele encara minha mão com
uma carranca, como se ela estivesse suja de lama.
– Podemos conversar amanhã? – peço.
O rosto dele se retrai, e ele pega mais uma taça de champanhe, bebendo
seu conteúdo no tempo que leva para o garçom me oferecer uma, e eu
recusar. Elliot pega outra taça da bandeja antes que o garçom ansioso se
afaste.
– Claro que podemos conversar amanhã – ele diz, gesticulando com a
taça. – Podemos conversar sobre o tempo. Talvez sobre a nossa torta
predileta? Ou – ah – ainda não conversamos sobre os méritos de uma panela
Crock-Pot em comparação a uma de pressão. Podemos fazer isso?
– Estou me referindo a terminarmos o que começamos – sussurro,
percebendo que atraímos a atenção de alguns familiares. – Ainda não
terminamos.
Alex nos observa de longe com olhos arregalados e preocupados.
– Não? Pensei que tivéssemos tido o nosso grand finale. Você fez aquilo
em que é mestra – ele diz, sorrindo inexpressivamente. – Você se fechou.
– Você foi embora – replico.
Ele gargalha sem humor, balança a cabeça e ecoa num murmúrio:
– Eu fui embora.
Suavizando, digo:
– Amanhã… eu venho te procurar.
Elliot ergue a taça, tomando quatro goles e enxugando a boca com o dorso
da mão.
– Claro, Macy.
À uma da manhã, o céu parece assombrado na sua escuridão. Subo até a
varanda da minha antiga casa de veraneio, evitando o degrau
previsivelmente quebrado. Usando a chave há tempos ignorada no meu
chaveiro, entro na casa, onde está ainda mais frio do que no bosque; o
isolamento térmico mantém o frio preso dentro das escuras paredes de gesso.
Acendo as luzes ao entrar e me ajoelho diante do fogareiro a lenha para
acender o fogo.
Evidentemente, se fui até ali apenas uma vez na última década, eu deveria
me lembrar da data exata, mas não lembro. Só sei que foi uma ou duas
semanas antes do início do meu ano de caloura na Tufts, e que dirigimos à
noite para examinar nossos pertences e guardar as coisas mais queridas em
armários que podiam ser trancados, para impedir que locatários curiosos
levassem algo. A lembrança daquela noite me parece um borrão de uma
aquarela em meio a um nevoeiro.
No andar de cima, escolho a menor dentre as outras chaves, e a deslizo na
fechadura do closet do meu pai. Ela entra aos poucos, emperrando na
metade, exigindo de mim uma última sacudida antes de ouvir um clique e a
porta se abrir com um rangido enferrujado.
O closet dele se abre com uma lufada de ar embolorado, e meu estômago
despenca quando o cheiro e a percepção emergem: terei de jogar fora grande
parte do que está ali. Ele mantinha algumas camisas e calças ali na casa. E
botas para caminhada, coletes de pescaria. Existem álbuns de fotografias ali
na prateleira de cima, um diorama da natividade que fiz no quarto ano.
Cartas da mamãe. E, bem lá no fundo, a pilha de revistas questionáveis.
Minha bunda aterrissa antes mesmo de eu perceber que estava
escorregando pelo batente. Por baixo do cheiro de bolor, sinto o cheiro
inconfundível dele: os cigarros dinamarqueses, a colônia pós-barba, o
cheiro fresco de amaciante. Puxo uma camisa do cabide – de qualquer jeito;
o arame sai voando do varão e bate na porta antes de chegar ao chão.
Pressionando a flanela no rosto, inspiro, engasgando no meio de um soluço
sentido.
Há muito tempo não me sinto assim. Ou talvez eu nunca tivesse sentido
essa emoção específica: quero chorar. Quero soluçar de tanto chorar. Quero
dar passe livre a essa vontade, deixando que me rasgue nesses terríveis
uivos que ecoam até as luzes do teto e sacodem meu tronco, fazendo com que
eu me curve para a frente. O nariz escorre, a saliva se acumula: estou um
farrapo. Eu sinto sua presença atrás de mim, mas sei que ele não está aqui.
Quero ligar para meu pai, perguntar o que tem para o café da manhã. Quero
ouvir nem que seja a cadência dos passos dele, o estalo intermitente do
jornal quando ele o endireita para ler. Todos esses instintos parecem viver
tão perto da superfície que se arqueiam e se entremeiam no tecido da
possibilidade. Talvez ele esteja lendo lá embaixo. Talvez ele esteja prestes
a sair do banho.
São esses pequenos lembretes que machucam, esses momentos minúsculos
nos quais você pensa: Vou lá chamá-lo. Ah, verdade. Ele está morto. E
então você fica se perguntando como foi que isso aconteceu, será que ele
sofreu, será que ele está me vendo nesta poça de choro aqui no chão?
E isso é o que interrompe a torrente, e me arranca uma gargalhada. Se
papai me visse chorando desse jeito no closet dele, olharia para mim
demoradamente – confuso – antes de agachar devagar, estender a mão e me
acariciar lentamente no braço.
– O que está acontecendo, Mace?
– Sinto sua falta – eu lhe digo. – Eu não estava pronta. Eu ainda precisava
de você.
Ele então ele entenderia.
– Também sinto a sua falta. Eu também precisava de você.
– Você está ferido? Está sozinho? – Passo o braço pelo nariz. – Está com a
mamãe?
– Macy?
Fecho os olhos, sentindo mais lágrimas escorrendo pelas minhas
têmporas, chegando aos meus cabelos.
– Ela se lembra de mim?
– Macy.
– Algum de vocês dois ainda lembra que tinha uma filha?
Estou fora de mim, sei que estou, mas também não estou envergonhada por
ser encontrada assim, ainda mais pelo papai. Pelo menos assim ele sabe o
quanto foi amado.
Braços fortes passam por baixo das minhas pernas e ao redor das minhas
costas, e sou erguida da névoa de mofo e do papai, e carregada pelo
corredor.
– Desculpe – digo e repito, e mais uma vez. – Desculpe por eu não ter
telefonado. Desculpe, papai. Foi culpa minha.
Ainda estou no seu colo quando ele se senta na minha cama. Ele está tão
quente, tão sólido.
Não me sinto pequena assim há anos.
– Mace, meu amor, olha pra mim.
Minha vista está borrada, mas é fácil distinguir suas feições.
Olhos verde-dourados, cabelos pretos.
Não era papai, era Elliot. Ainda de smoking, com os olhos injetados por
trás das lentes dos óculos.
– Aí está você – ele diz. – Volta pra mim. Pra onde você foi?
Passo os braços pelo pescoço dele, puxando-o para perto, apertando bem
os olhos. Sinto cheiro de grama nele, e do tronco da oliveira.
– É você.
– Sou eu.
Ele também precisa do meu pedido de desculpas.
– Me desculpa, Ell. Arruinei tudo porque me esqueci de ligar.
– Vi as luzes acesas – ele sussurra. – Vim pra cá e te encontrei assim…
Macy Lea, me conta o que está acontecendo.
– Você precisou de mim, e eu não estava aqui.
Ele fica em silêncio, beija o topo da minha cabeça.
– Mace…
– Precisei de você ainda mais – digo e começo a chorar de novo. – Mas
não conseguia encontrar uma maneira de te perdoar.
Elliot afasta os cabelos do rosto, me analisando.
– Amor, você está me assustando. Fala comigo.
– Eu sabia que não era sua culpa – falo aos soluços –, mas por muito
tempo não conseguia deixar de sentir que era.
Vejo as lágrimas de confusão marejando os olhos dele.
– Não estou entendendo o que você… – Ele me puxa para junto do peito,
com uma mão nos meus cabelos enquanto a voz se parte. – Por favor, me
conta o que está acontecendo.
E, então, eu conto.
ANTES

DOMINGO, 1 DE JANEIRO ONZE


ANOS

Acordo com a batida da porta, o som urgente dos passos no piso da


entrada.
– Macy?
Gemo, passando a mão no pescoço tenso e me sentando bem quando papai
entra na sala de estar. A primeira conclusão que um pai teria lhe ocorre e ele
se adianta para junto de mim, agachando.
– Ele te machucou? – O sotaque dele faz as palavras se embaralharem
numa bola de raiva.
– Não. – Faço uma careta, me esticando. Lembrando. Meu estômago fica
embrulhado. – Na verdade, sim.
Papai desce cuidadosamente as mãos pelos meus braços, acabando por
segurar minhas mãos. Vira as palmas para cima, inspecionando-as, e depois
pressiona os polegares no centro das minhas mãos.
Ainda lembro daquele toque como se tivesse sido ontem.
Entrelaçamos os dedos.
A percepção atravessa a neblina, e eu me dou conta de que estou no chalé,
e que papai também está ali – na manhã gélida, há mais de cem quilômetros
de casa.
– O que está fazendo aqui?
Ele me olha bravo, mas com uma pontada de amabilidade.
– Você não ligou para me dizer que havia chegado bem. Não atendia o
telefone.
Desabando sobre ele, murmuro junto ao seu peito:
– Desculpe. Eu o desliguei.
Ele suspira de preocupação.
– O que aconteceu, min lille blomst?
– Ele fez besteira – contei. – Das grandes.
Papai me afasta para poder me fitar nos olhos.
– Outra garota.
Confirmo, e um soluço me escapa com a lembrança do corpo de Elliot, nu,
simplesmente… deitado ali. Largado.
Papai suspirou lentamente.
– Por essa eu não esperava.
– Somos dois, então.
Ele me ajuda a levantar, passando um braço protetor ao meu redor.
– Voltamos no fim de semana para pegar o Volvo.
Voltamos no fim de semana para pegar o Volvo.
Nem imagino o que aconteceu com ele.
Papai segurava o volante com uma mão gigante enquanto a outra se
curvava sobre meus dedos.
Olhava para mim a cada cinco segundos mais ou menos, sem dúvida
desejando que a lista da mamãe estivesse no painel do carro, para consultar
o conselho sobre A primeira vez que um garoto partir o coração dela. Eu
sabia onde encontrá-lo. Número 32.
Ele estava preocupado, o cenho franzido… Por mais que eu odiasse o que
havia acontecido com Elliot, amei o calor da atenção de papai, o contato
tranquilizador de sua mão, as perguntas sussurradas: o que eu queria para
jantar? Eu queria sair para ver um filme ou ficar em casa?
Mas a atenção dele em mim significava que ela não estava na estrada.
Nem sei se ele chegou a ver o carro. Era um Corvette azul, chegando pela
via de acesso e já se movendo rápido demais. Noventa, talvez 100 km/h.
Cortou na nossa frente na pista mais lenta, acelerando entre o pequeno
espaço entre nós e a jamanta. Os pneus do Corvette derraparam, a traseira
guinou para o lado e as lanternas se acenderam, logo ali. Bem na nossa
frente.
Será que houve algum momento em que não teria sido tarde demais? Foi
sempre isso que eu me perguntei. Eu poderia ter dito alguma outra coisa
além de um estrangulado “Pai!” com o dedo apontado?
Testemunhas disseram à polícia que tudo aconteceu em menos de cinco
segundos, mas aconteceria para sempre em câmera lenta na minha memória:
ainda vejo os olhos preocupados do meu pai em mim, não no Corvette. Foi
por isso que ele nem chegou a frear. Batemos com tanta velocidade, com um
som ensurdecer de metal se chocando, e nossos corpos foram lançados para
a frente, os airbags explodiram, e eu pensei por uma fração de segundo que
estava tudo bem. O impacto terminara.
Só que ainda não havíamos aterrissado. Quando aterrissamos, o lado do
motorista foi esmagado contra o asfalto, deslizando o metal faiscante por uns
seis metros. Caímos de lado. Minha testa acabou parando perto do volante.
Meu banco esmagou o de papai, com ele ainda ali.
Mais tarde, descobri que o outro motorista era um estudante da faculdade
de Santa Rosa. Seu nome era Curt Andersen, e ele saiu do carro apenas com
uma leve escoriação no pescoço. Causada não pelo cinto de segurança – ele
nem estava usando –, mas pelo tecido do banco do passageiro, onde ele
acabou aterrissando quando seu carro capotou de lado nas três pistas de
rodagem.
A princípio, Curt estava inconsciente, eu acho, e grande parte das
atenções estava concentrada na situação muito mais terrível do nosso carro.
Eu já estava na maca com o braço quebrado quando Curt apareceu, mais que
bêbado e rindo por ter sobrevivido até voltar à realidade num choque ao ver
a cena diante de si e a polícia com as algemas.
Já ouvi pessoas dizendo que não se lembravam do que tinha acontecido
após receberem a notícia da morte de um ente querido, mas eu me lembro de
tudo. Lembro, vivamente, da maneira como meu braço quebrado pendia
como um saco de ossos preso ao meu corpo. Lembro da sensação de querer
sair da minha pele, de querer correr em disparada, porque correr de alguma
forma desfaria o que os paramédicos me contaram.
Sim, ele se foi.
Querida, preciso que se acalme.
Sinto muito. Vamos te levar ao Hospital Sutter, meu bem. Você precisa
de um médico. Precisa respirar.
Lembro-me de pedir repetidamente que retirassem o que haviam dito, que
tentassem mais massagens cardíacas, que me deixassem tentar reanimá-lo.
– Espere.
– Macy, você precisa tentar respirar. Pode respirar para mim?
– Parem de falar! – berrei. – Todos parem de falar!
Tenho uma ideia: vamos recomeçar.
Vamos voltar para o carro, vamos voltar para casa. Só preciso de um
segundo para pensar.
Vamos passar a noite lá.
Não, não, vamos recuar ainda mais.
Não vou me esquecer de telefonar.
Quero voltar para aquele outro sofrimento, não este.
Hoje não é um bom dia para dirigirmos. Se dirigirmos hoje, perderemos
todos.
Se dirigirmos hoje, eu não serei mais uma filha.
Um dos policiais me amparou com facilidade quando rolei para fora da
maca, tentando sair correndo – para longe das luzes, do barulho e da bagunça
horrorosa do carro do meu pai. Ainda sinto o modo como o policial passou
os braços ao meu redor por trás, tomando cuidado com meu braço fraturado,
curvando o corpo sobre o meu quando despenquei. Ainda me lembro que ele
dizia repetidamente o quanto lamentava, pois também perdera um irmão do
mesmo modo e sentia muito.
Depois disso, veio o torpor invasivo. Tio Kennet veio de Minnesota para
Berkeley. Parecia amargurado quando lemos o testamento e as propriedades
de papai. Deu tapinhas nas minhas costas e pigarreou muitas vezes. Tia Britt
limpou a casa enquanto eu ficava sentada no sofá, olhando para ela. Ela
estava ajoelhada, esfregando o chão uma esponja e um balde cheio de
espuma do produto de limpeza para madeira, e esfregou as tábuas do
assoalho durante horas. Não senti que era um gesto amoroso. Parecia mais
que ela queria limpar a casa há anos e finalmente tinha a sua chance.
Minhas primas não vieram, nem mesmo para o enterro. Elas têm aula,
Britt explicou. Isso teria sido muito triste para elas. Estão com meus pais,
em Edina.
Lembro que quis procurar o policial que foi atrás de mim e que chorou
comigo para que ele fosse ao enterro ao meu lado, porque ele parecia me
entender melhor do que ninguém no que restava da minha minúscula família.
Mas mesmo esse pedido pareceu impossível. O esforço que comer e me
vestir exigia de mim era tão imenso que lembrar de um nome, ligar para a
delegacia de polícia, estava além das minhas habilidades.
Ou ligar para Elliot.
Eu estava entorpecida, mas debaixo daquilo também havia uma raiva
pustulenta.
Mesmo naquela época, eu sabia que aquilo não estava muito certo, não
conseguia ligar os pontos muito bem, mas a dor da traição de Elliot com
Emma acabou se misturando ao sofrimento de ter perdido papai e ao motivo
de ele ter ido atrás de mim. Eu precisava de Elliot, queria ele ali comigo. Li
as primeiras mensagens ansiosas, a insistência dele de que tudo tinha sido
um engano. Mas, então, vacilei entre o desejo de querer que ele soubesse
que eu estava em frangalhos e querer que ele soubesse que era o culpado por
tudo. E depois me senti melhor achando que ele não deveria saber. Ele podia
ter cada outro pedaço do meu coração, mas não aquele.
Como eu disse, lembro-me das sensações, e eu senti tudo de uma maneira
enlouquecedora.
Kennet e Britt me levaram para Minnesota com eles por quatro meses.
Cutuquei as cutículas até sangrarem. Cortei o cabelo com a tesoura da
cozinha. Acordava ao meio-dia e contava os minutos até poder ir me deitar
de novo. Não discuti quando Kennet me mandou para a terapia ou quando
Britt se sentou à mesa de jantar, em meio às minhas cartas de admissão para
a faculdade, ponderando se deveria me mandar para Tufts ou para Brown.
Lembro-me de tudo, até de Britt ajeitando os papéis com um movimento
decidido, olhar de novo para a escada onde eu estava e dizer satisfeita:
– Já resolvemos tudo, Macy.
Depois disso, nada mais. Não me lembro de como eles conseguiram
garantir meu diploma do colégio. Não me lembro de ter dormido o verão
inteiro. Não me lembro de ter feito as malas para ir para a faculdade.
Tenho que acreditar que a administração preparou Sabrina para o que
viria, embora ela negue. Seguramente a escolheram a dedo: ela perdera o
irmão num acidente de carro dois verões antes daquele.
Também tenho que acreditar que sair de Berkeley me salvou. Em
dezembro, eu já conseguia passar alguns minutos sem pensar em papai. E
depois disso, uma hora. E, mais tarde, tempo suficiente para fazer uma
prova. Meu mecanismo para lidar com o luto foi envolver meus pensamentos
– quando eles surgiam – num pedaço de papel e depois descartá-lo como um
chiclete. Sabrina me dava espaço para eu viver a minha dor. Eu me encolhia
e dormia até ter certeza de que o pensamento podia ficar bem escondido.
Tempo. Eu sabia muito bem que o tempo era o remédio para todas as
coisas – até mesmo para a morte.
HOJE

SEGUNDA-FEIRA, 1 DE JANEIRO

Elliot se recosta, com os olhos vidrados, olhando para fora da janela do


quarto.
Vejo tudo se passar dentro dele: o horror, a culpa, a confusão, o
entendimento de que meu pai morreu no dia seguinte ao que ele me traíra, e
que papai viera me buscar porque ficou chateado por eu não ter ligado, que o
último dia em que vi meu pai foi exatamente onze anos antes, nesta mesma
data… e por muitos anos eu o culpei por isso.
As narinas dele inflam, ele pisca e desvia o olhar, seu maxilar contraído.
– Meu Deus.
– Eu sei.
– Isso… explica. – Elliot sacode a cabeça, enfiando uma mão nos cabelos.
– O porquê de você não ter me ligado de volta.
Lentamente, eu lhe digo:
– Eu não estava pensando muito claramente – depois –, eu não estava
conseguindo separar… você. Daquilo.
Sou muito ruim com palavras.
– Puta merda, Macy. – Recobrando-se, ele se vira e me puxa para os seus
braços, mas de um jeito diferente.
Mais rígido.
Tive mais de uma década para lidar com aquilo; Elliot teve uns dois
minutos.
– Quando você me parou do lado de fora do Saul’s – digo encarando sua
camisa – e me perguntou sobre o meu pai?
Ele balança a cabeça sem me soltar.
– Eu não sabia.
– Pensei que soubesse. Pensei que tinha ficado sabendo… de alguma
maneira.
– Não tínhamos ninguém em comum – ele diz baixinho. – Foi como se
você tivesse desaparecido.
Assinto, e ele fica mais tenso. Algo parece lhe ocorrer.
– Você não passou todo esse tempo pensando que eu tinha dormido de
propósito com a Emma, que sabia da morte do seu pai, e que estava em paz
com isso, passou?
Faço de tudo para tentar explicar o entorpecimento da minha lógica na
época:
– Acho que não pensei em você nesses termos, que você estivesse em paz
com isso. Eu sabia que estava tentando falar comigo. Eu sabia,
racionalmente, que você me amava. Mas pensei que talvez você e Emma
tivessem mais do que tinha me contado. Eu estava perturbada e de coração
partido…
– Nós não tínhamos nada – ele disse com urgência.
– Acho que foi Christian quem disse que vocês transavam de vez em
quando…
– Macy – Elliot diz baixinho, segurando meu rosto para que eu olhasse
para ele. – Christian é um idiota. Você sabia de tudo o que havia acontecido
entre mim e Emma. Não havia nenhum outro segredo escondido.
Quero lhe dizer que, na verdade, nada disso importa agora, mas vejo que,
para Elliot, não é assim. Ele quer esclarecer tudo.
Ele estreita os olhos, ainda tentando juntar as peças.
– Andreas disse que te viu, no verão seguinte. Vindo aqui com o seu pai.
Nego até finalmente entender ao que ele se refere.
– Aquele era o meu tio, Kennet. – Fungo, limpando o nariz de novo. –
Viemos pra cá para empacotar e levar nossos pertences. – Olho ao nosso
redor, para as paredes tão conhecidas e agora de pintura desbotada,
lembrando que eu não queria ter mexido em nada. Eu queria que tudo ficasse
do mesmo jeito, como se fosse um museu. – Aquela foi a última vez que vim
aqui.
– Não saí de casa – ele sussurra. – O verão inteiro. Passei todos os dias te
procurando. Não me conformava que tinha deixado passar o único momento
em que você veio aqui.
– Viemos bem tarde. Ficamos com as luzes apagadas. – Até hoje ainda
acho ridículo o modo como nos esgueiramos, como se fôssemos ladrões,
usando lanternas para pegar tudo de que precisávamos. Kennet pensou que
eu tinha enlouquecido de novo. – Eu tomei todas as precauções para não te
ver.
Elliot se retrai, a boca curvada para baixo. Odeio que isso abra antigas
feridas, mas odeio ainda mais que esteja criando novas.
– Talvez “precaução” não seja a palavra certa – corrijo-me, apesar de
entender, em retrospecto, que não era mesmo: tive um ataque de pânico na
noite anterior à viagem de carro com Kennet até ali, e eu não suportava a
ideia de Elliot me ver naquele estado. – No primeiro ano após a morte do
papai, na Tufts, eu encontrei uma espécie de lugar tranquilo, sossegado. –
Hesitando, continuo: – Acho que eu teria corrido para os seus braços, mas
não sabia se estaria com raiva ou triste. Era muito mais fácil não sentir nada
em vez de lidar com aquilo.
Elliot abaixa a cabeça, enfiando-a entre as mãos, cotovelos apoiados nos
joelhos. Estendo o braço, esfrego as costas dele, fazendo pequenos círculos
entre as omoplatas.
– Você está bem? – pergunto.
– Não. – Ele se vira e olha para mim por sobre o ombro, vira o rosto e me
encara, dando um sorriso débil que tenta tirar a acidez da sua resposta,
depois empalidece. Vejo que a compreensão de tudo aquilo o assola uma vez
mais.
– Mace… – A expressão dele é de tristeza. – Como posso dizer o quanto
eu sinto? Como posso…
– Elliot, não…
Num rompante, ele se ergue e sai em disparada do quarto. Levanto-me
para segui-lo, mas a porta do banheiro bate e rapidamente ouço o barulho de
Elliot caindo de joelhos e vomitando.
Pressiono a testa na porta, ouço a descarga, a água da torneira correndo, o
gemido abafado dele.
– Elliot? – Meu coração parece estar sendo esmagado por um punho.
– Só preciso de um minuto, Mace. Desculpa, só me dá um minuto?
Deslizo contra a parede, montando vigília do lado de fora do banheiro,
ouvindo enquanto ele vomita de novo.
Acordo debaixo das cobertas, na minha cama, sem a mais vaga lembrança
de como fui parar ali. A única resposta é que acabei adormecendo no chão
do corredor e Elliot me carregou até o quarto, mas o outro lado da cama
permanece intocado, e ele não está em lugar algum.
Uma tossida abafada vem do closet, e o alívio desce quente pelas minhas
pernas. Ele ainda está aqui. Está frio, e eu arrasto a colcha comigo para fora
da cama, espiando ali dentro. Elliot está esticado no chão, as mãos atrás da
cabeça, tornozelos cruzados, fitando as estrelas desbotadas e rachadas. Ele
ainda ocupa o cômodo inteiro esticado assim. Há anos não entro ali, e o
espaço parece minúsculo. Fico pasma por um dia ter parecido um mundo
inteiro, um planeta.
– Oi – ele diz, sorrindo para mim. Os olhos estão injetados, o nariz,
vermelho.
– Oi. Está se sentindo melhor?
– Acho que sim. Ainda meio tonto, acho. – Ele dá um tapinha no chão ao
lado dele. – Vem cá. – Sua voz é um grunhido baixo. – Deita aqui comigo.
Deito-me ao seu lado, aninhando-me no seu peito quando ele passa um
braço ao meu redor, me puxando para perto.
– Por quanto tempo eu dormi? – pergunto.
– Umas duas horas.
Sinto como se pudesse dormir uma década, mas, ao mesmo tempo, não
quero desperdiçar nenhum segundo com ele.
– Mais algum assunto sobre o qual precisamos falar? – pergunto, olhando
para ele.
– Tenho certeza de que sim – ele diz –, mas, neste instante, eu estou meio
que… religando os pontos na minha cabeça.
– Entendo… É compreensível. Tive onze anos para processar tudo, e você
só teve um momento. Quero que saiba que… tudo bem se estiver machucado
aqui dentro. – Esfrego a mão no peito dele. – Sei que as coisas não vão ficar
bem de uma hora para outra.
Ele leva uns minutos para responder e, quando o faz, a voz sai rouca:
– Perder você foi a pior coisa que já me aconteceu, e eu ainda sinto o eco
disso... Foram anos bem difíceis, mas saber ajuda. Por mais terrível que
seja, saber ajuda. – Ele olha para mim e seus olhos marejam de novo. –
Sinto muito não ter estado com você quando Duncan morreu.
– Sinto muito não ter te contado. Sinto muito ter simplesmente
desaparecido. – Beijo o ombro dele.
Ele estende a mão livre e envolve meu rosto com a palma.
– Meu amor, você perdeu a mãe quando tinha dez anos, e o pai aos
dezoito. Foi horrível você ter desaparecido, mas eu entendo. Puxa… A sua
vida… desmoronou naquele dia.
Passo a mão por baixo da camisa dele, subo pelo abdômen, parando em
cima do coração.
– Sim, foi horrível. – Pressiono o rosto no ponto em que o pescoço
encontra com o ombro, tentando me livrar das lembranças, inalando a
fragrância conhecida dele. – Como foram esses anos para você?
Ele zumbe com os lábios fechados, pensando.
– Me concentrei nos estudos. Se quer saber romanticamente, eu sentia
tanta culpa que não consegui me envolver com ninguém até bem mais tarde.
Meu coração dói ao ouvir isso.
– Alex me contou que você nunca levou ninguém em casa, só a Rachel.
– Podemos deixar uma coisa bem clara? – ele diz, beijando meus cabelos.
– De uma vez por todas, para que não haja mais nenhuma dúvida?
– O quê? – Amo sentir seu corpo firme ao meu lado. Acho que nunca vou
ter o bastante disso.
– Que eu te amo – ele sussurra, inclinando meu queixo de modo que eu
possa olhar para ele. – Ok?
– Eu também te amo. – A emoção toma conta do meu peito, fazendo com
que minhas palavras saiam estranguladas. Sempre sentirei saudades dos
meus pais, mas tenho Elliot de volta. Juntos conseguimos ressuscitar algo.
Os lábios dele pressionam minha testa.
– Acha que podemos fazer isto? – ele pergunta, mantendo os lábios ali. –
Será que finalmente temos a nossa chance de ficarmos juntos juntos?
– Com certeza merecemos.
Ele se afasta, olhando para mim.
– Fiquei deitado aqui, pensando. Eu deveria ter desconfiado. Eu deveria
ter imaginado o motivo de Duncan nunca ter voltado. Só deduzi que vocês
dois estivessem bravos comigo.
– Ao longo do tempo, acabei confiando mais nas minhas lembranças. –
Estendo a mão, afastando os cabelos dele dos olhos. – Acabei percebendo
que, independentemente de você ter tido ou não algo consistente com a
Emma, você me amava de verdade.
– Claro que amava. – Ele me encara, com os olhos estreitados. – Odeio o
fato de Duncan ter morrido acreditando no contrário.
Não há nada que eu possa dizer a respeito disso. Apenas o aperto com
força, pressionando os lábios na pulsação debaixo de sua mandíbula.
– Eu ainda amo este espaço – sussurro.
Ao meu lado, Elliot fica imóvel.
– Engraçado você dizer isso… Eu também amo. Mas vim aqui para me
despedir.
Meu coração espreita na beira de um precipício, temendo cair.
– O que isso quer dizer?
Ele se apoia num cotovelo, olhando para mim.
– Quer dizer que eu acredito que este não é mais o nosso lugar.
– Bem, não, claro. Não ficaremos aqui o tempo inteiro, mas por que não
manter o chalé e…
– Não, olha só, claro que o chalé é seu e você pode fazer o que quiser
com ele. – Elliot passa a ponta do dedo debaixo do meu lábio e se inclina
para me beijar uma vez. Quando se afasta, eu sigo sua boca, querendo mais.
– Mas quero que a gente vá além deste closet – diz com suavidade. – O
closet é o motivo de termos nos apaixonado. Nós tornamos este lugar
especial, e não o contrário.
Sei que pareço devastada, e não sei como controlar isso. Adoro estar aqui
com ele. Os melhores anos da minha vida foram aqui, e eu sempre me senti
mais segura dentro do closet.
E é assim que sei que Elliot já está dois passos à minha frente.
– Aposto que, de acordo com a sua interpretação, tudo desmoronou
quando tentamos viver fora dele – ele diz e se inclina, me beijando de novo.
– Mas só foi um tremendo azar. Não vai ser assim desta vez.
– Não? – pergunto, mordendo um sorriso aliviado e puxando-o pelos
ombros para que ele paire acima de mim.
– Não. – Ele dá um sorriso amplo e se acomoda entre as minhas pernas, os
olhos ficando um pouco desfocados.
– Como vai ser desta vez? – Tiro os óculos dele, colocando-o numa das
prateleiras vazias.
Elliot descreve uma lenta trilha de beijos pelo meu pescoço.
– Vai ser como queríamos que fosse antes.
– Dia de Ação de Graças no chão de roupa íntima?
Ele grunhe uma risadinha, erguendo o quadril quando desço as mãos para
o zíper da calça.
– E você na minha cama, todas as noites.
– Talvez você estará na minha cama.
Quando ele se afasta, os olhos estão semicerrados.
– Para isso você teria que ir para a sua maldita casa, mulher.
Dou uma gargalhada, e ele me acompanha, mas essa verdade se acomoda
entre nós, e ele permanece parado. Elliot me observa, e eu sei que aquilo se
transformou numa pergunta no nosso silêncio; e ele não vai deixar que eu me
safe.
– Você vai comigo? Pra tirar tudo de lá? – Faço uma careta, admitindo: –
Faz muito tempo que não volto lá.
Elliot me beija uma vez e depois se abaixa, beijando o ponto no meu peito
em que está o coração.
– Faz onze anos que espero você voltar pra casa. Vou pra qualquer lugar
que você for.
HOJE

QUARTA-FEIRA, 10 DE JANEIRO

A nostalgia me acerta em cheio assim que abrimos a porta. O interior da


casa em Berkeley tem exatamente o mesmo cheiro de sempre – o de lar – e
acho que não percebi antes que lar para mim tem o cheiro do baú de cedro
que a minha mãe usava como mesa de centro e dos cigarros dinamarqueses
do meu pai – pelo visto, ele fumava escondido mais do que eu imaginava.
Um raio de sol se infiltra pela janela e ilumina as partículas de poeira que
flutuam no ar. Tenho uma mulher que vai limpar a casa uma vez por mês,
mas, apesar de estar arrumada e limpa, o lugar ainda me parece abandonado.
Sinto a culpa me corroendo por dentro.
Elliot se aproxima de mim por trás, espiando a sala de estar por cima do
meu ombro.
– Acha que hoje vamos conseguir entrar?
Ele suaviza a piada com um beijo no meu ombro, e não posso exatamente
culpá-lo pelo comentário: já passamos de carro duas vezes diante da casa,
tarde da noite, depois dos meus plantões no hospital. Andava mentalmente
exaurida e sem pique para encarar o o reencontro com o meu lar de infância.
Mas hoje só vou trabalhar à noite e acordei me sentindo… pronta.
Nossos planos são vender o chalé em Healdsburg e esvaziar a casa de
Berkeley, deixando-a pronta para professores da universidade que queiram
uma casa mobiliada para alugar. Mas esvaziá-la significa levar todas as
lembranças importantes comigo – álbuns de fotografias, peças de arte,
cartas, pequenos suvenires afetivos espalhados em todos os cantos.
Dou um passo para dentro, depois outro. O assoalho range onde sempre
rangeu. Elliot me segue, olhando ao redor.
– Esta casa tem o cheiro do Duncan.
– Verdade, né?
Ele faz que sim, passando por mim para se aproximar da cornija da
lareira, onde há fotografias de nós três, de Kennet e Britt, dos pais da minha
mãe, que morreram quando ela era jovem.
– Sabe, só vi uma foto dela. Aquela que Duncan tinha ao lado da
cabeceira da cama.
Dela. Da minha mãe. Laís para todo mundo. Mamãe para mim.
Elliot passa os dedos pelas molduras e depois escolhe uma, antes de olhar
para mim.
Sei qual ele está segurando. É uma foto que papai tirou de mim e da
mamãe na praia. O vento está soprando seus longos cabelos negros junto ao
pescoço, e eu estou encostada nela, sentada entre suas pernas. O sorriso dela
é amplo e radiante; nessa foto, consigo ver, sem que me digam, que ela era
uma verdadeira força da natureza.
Elliot pisca ao fitá-la uma vez mais.
– Você se parece tanto com ela que é até perturbador.
– Eu sei. – Sou muito grata pela passagem do tempo, por ser capaz de ver
o rosto dela em mim e me sentir feliz por ter herdado isso dela, em vez de
ficar aterrorizada ao me olhar no espelho e isso ser uma tortura à medida que
envelheço e começo a me parecer mais com o que me lembro dela.
Ajoelho-me ao lado do baú de cedro, onde estão guardadas todas as
nossas fotos, cartas e lembranças.
– Este tem que ir para o nosso apartamento.
A tampa do baú está na metade do caminho quando Elliot diz isso, e eu a
abaixo de novo sem olhar. O calor se espalha tão rapidamente pelos meus
membros que fico até tonta.
– Nosso apartamento?
Ele desvia o olhar da fotografia.
– Andei pensando e acho que a gente devia ir morar junto. Na cidade.
Só faz dez dias que voltamos, mas, nesse meio-tempo, o trajeto entre nós é
um fardo. Alugar o quarto na casa da Nancy significa que “ter companhia”
para dormir é tão constrangedor que se torna impossível. E Elliot está
simplesmente longe demais do hospital para eu ir dormir na casa dele. Na
maioria das noites, ele me encontra para um jantar tardio na cidade, depois
volta de carro para casa, e eu desmaio na minha cama.
No único dia de folga que tive nesse período – dois dias atrás – nem
sequer saímos do apartamento dele. Fizemos amor na cama, no chão, na
cozinha. Por um breve instante imaginei ter acesso a ele – à voz dele e às
mãos e risadas e seu peso em cima de mim toda vez que eu chegasse em casa
– e o desejo disso se torna uma segunda pulsação no meu peito.
– Você se mudaria para a cidade? – pergunto.
Elliot retorna a foto à cornija e se senta ao meu lado no tapete persa.
– Você precisa mesmo perguntar? – Por trás dos óculos, seus olhos
parecem cor de âmbar na luz do sol que se filtra pela janela. Os cílios são
tão longos.
Quero beijá-lo tanto naquele momento que minha boca saliva. Sei que
temos trabalho a fazer, mas me distraio com os pelos que crescem no queixo
dele, e como seria fácil subir no seu colo e fazer amor naquele exato
instante.
– Macy? – ele diz, diante do meu olhar fixo.
Pisco para sair do meu devaneio.
– Vai ser um deslocamento demorado pra você.
– O meu horário é mais flexível que o seu – ele diz e depois uma centelha
travessa se acende no seu olhar. – E ter você na minha cama todas as noites
pode me inspirar algumas ideias para a minha pornografia dragoniana.
Gargalho.
– Eu sabia.
Vamos morar juntos em primeiro de março. Chove sem parar e nosso
apartamento é minúsculo, com apenas um quarto, mas tem uma imensa
janela-balcão e fica apenas a meio quarteirão do ponto de ônibus que me
leva direto ao hospital. Elliot e os três irmãos montam uma parede de
prateleiras para os livros e, talvez um pouco embaraçados, a senhora Dina e
o senhor Nick nos trazem uma cama nova. Eu teria protestado, mas é uma
linda cama de dossel, feita à mão por um dos mais antigos pacientes do
senhor Nick. Alex, Else e Liz vão até a loja Nest Bedding para comprar todo
tipo de roupa de cama – porque nem eu nem Elliot damos a mínima para a
aparência dos lençóis – e a senhora Dina prepara o jantar enquanto
desencaixotamos tudo, tentando acomodar nossos pertences no lugar
apertado.
Às sete, o apartamento inteiro tem cheiro de folhas de louro e de frango
assado, e a chuva lá fora se transforma numa rara e violenta tempestade, com
raios iluminando o céu. Alex dança enquanto vai colocando os livros nas
prateleiras, e todos nós a observamos disfarçadamente, admirados que algo
tão profundamente gracioso tenha sido gerado por aquela carga genética.
Num momento de mais calmaria, George e Liz anunciam que terão um bebê,
e o ambiente explode em felicitações e abraços. Else aumenta o volume – e a
energia passa para um misto de riso e dança.
Elliot me puxa de lado, pressionando-se contra mim. Nunca o vi com
aquela expressão antes. É mais do que um sorriso, é deleite cheio de alívio.
– Oi – ele diz e repousa seu sorriso no meu.
Me estico para outro beijo quando ele se afasta.
– Oi. Tudo bem?
– Sim. Tudo ótimo. – Ele olha ao redor como quem diz “olha pra este
lugar incrível”. – Estamos morando juntos.
– Até que enfim, né? – Mordo o lábio, quase berrando de tanta felicidade.
Nunca me senti assim antes.
Hoje à noite vamos dormir juntos, no nosso apartamento, na nossa cama.
Quando todos forem embora, vamos deixar as caixas ainda fechadas de lado.
Ele me seguirá para baixo das cobertas com aquela tensão faminta no olhar,
a pele nua deslizando pela minha até ficarmos sem ar, suados e trêmulos.
Dormiremos, abraçados, sem nem nos darmos conta disso.
E eu acordarei antes do amanhecer, e vou querer mais dele de novo.
Pela manhã, Elliot estará ali. As roupas dele estarão ali. E seus livros e
sua escova de dentes. Vou servir cereal enquanto ele toma banho. Talvez ele
me encontre na cozinha segurando uma xícara de café e eu não saberei que
ele está lá até sentir a pressão dos seus lábios no topo da minha cabeça. A
antecipação que sinto por essa vida diária ao redor dele é tão imensa que me
completa com um calor intenso e tremeluzente.
Não estamos dançando de fato; estamos apenas balançando no mesmo
lugar, como fizemos no casamento. Mas, esta noite, não temos mais segredos,
e nenhuma conversa assustadora à espreita. A década passada parece um
borrão nublado, como se tivéssemos feito uma longa viagem partindo de
algum ponto na Terra e circundado-a até voltar ao ponto de partida,
destinados a acabar ali.
As mãos de Elliot deslizam pela minha coluna, a cabeça pende para junto
da minha. George faz uma piadinha a respeito de procurarmos um quarto.
Andreas replica dizendo que a mulher grávida da vez é a dele. E então a
senhora Dina se desfaz em lágrimas na cozinha, falando de bebês, e de,
talvez, mais casamentos, e eu observo Elliot tentando bloquear tudo isso. Ele
faz uma careta para os irmãos, ajeita os óculos no nariz, e me observa como
sempre fez, como se conseguisse ler minha mente num piscar de olhos.
Talvez conseguisse.
– Palavra predileta? – ele sussurra.
Nem hesito.
– Você.

FIM
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