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Leia o texto "O nariz", Luis Fernando Veríssimo:

O nariz

Era um dentista respeitadíssimo. Com seus quarenta e poucos anos, uma filha quase na
faculdade. Um homem sério, sóbrio, sem opiniões surpreendentes, mas de uma sólida
reputação como profissional e cidadão. Um dia, apareceu em casa com um nariz postiço.
Passado o susto, a mulher e a filha sorriram com fingida tolerância. Era um daqueles narizes
de borracha com óculos de aros pretos, sobrancelhas e bigodes. Sentou-se à mesa de almoço
– sempre almoçava em casa – com a retidão costumeira, quieto e algo distraído. Mas com um
nariz postiço.
- O que é isso? – perguntou a mulher, sorrindo menos.
- Isto o quê?
- Esse nariz.
- Ah, vi numa vitrina, entrei e comprei.
- Logo você, papai...
Depois do almoço ele foi recostar-se no sofá da sala como fazia todos os dias. A mulher
impacientou-se.
- Tire esse negócio.
- Por quê?
- Brincadeira tem hora.
- Mas isto não é brincadeira.
Sesteou com o nariz de borracha para o alto. Depois de meia hora, levantou-se e dirigiu-se
para a porta. A mulher interpelou:
- Aonde é que você vai?
- Como, aonde é que eu vou? Vou voltar para o consultório.
- Mas com esse nariz?
- Eu não compreendo você – disse ele, olhando-a com censura através dos aros sem lentes. –
Se fosse uma gravata nova, você não diria nada. Só porque é um nariz...
- Pense nos vizinhos, pense nos clientes.
Os clientes, realmente, não compreenderam o nariz de borracha. Deram risada, fizeram
perguntas, mas terminaram a consulta intrigados e saíram do consultório com dúvidas.
- Ele enlouqueceu?
- Não sei – respondia a recepcionista, que trabalhava com ele há 15 anos. – Nunca vi ele
assim.
Naquela noite, ele tomou seu banho, como fazia sempre antes de dormir. Depois vestiu o
pijama e o nariz postiço e foi deitar.
- Você vai usar este nariz na cama? – perguntou a mulher.
- Vou. Aliás, não vou mais tirar esse nariz.
- Mas, por quê?
- Por que não?
Dormiu logo. A mulher passou a metade da noite olhando para o nariz de borracha. De
madrugada começou a chorar baixinho. Ele enlouquecera. Era isto. Tudo estava acabado. Uma
carreira brilhante, uma reputação, um nome, uma família perfeita, tudo trocado por um nariz
postiço.
- Papai...
- Sim, minha filha.
- Podemos conversar?
- Claro.
- É sobre esse seu nariz...
- O meu nariz, outra vez? Mas vocês só pensam nisso?
- Papai, como é que nós não vamos pensar? De uma hora para outra, um homem como você
resolve andar de nariz postiço e não quer que ninguém note?
- O nariz é meu e vou continuar a usar.
- Mas por que, papai? Você não se dá conta de que se transformou no palhaço do prédio? Eu
não posso mais encarar os vizinhos, de vergonha. A mamãe não tem mais vida social.
- Não tem porque não quer...
- Como é que ela vai sair na rua com um homem de nariz postiço?
- Mas não sou “um homem”. Sou eu. O marido dela. O seu pai. Continuo o mesmo homem. Um
nariz de borracha não faz nenhuma diferença.
- Se não faz nenhuma diferença, então por que usar?
- Mas, mas...
- Minha filha...
- Chega! Não quero mais conversar. Você não é mais meu pai.
A mulher e a filha saíram de casa. Ele perdeu todos os clientes. A recepcionista pediu
demissão, pois não sabia o que esperar de um homem que usava nariz postiço. Evitava
aproximar-se dele. Seu pedido de demissão foi mandado pelo correio. Os amigos mais
chegados, numa última tentativa de salvar sua reputação, o convenceram a consultar um
psiquiatra.
- Você vai concordar – disse o psiquiatra depois de concluir que não havia nada de errado com
ele – que seu comportamento é um pouco estranho...
- Estranho é o comportamento dos outros! – disse ele. – Eu continuo o mesmo. Noventa e dois
por cento do meu corpo continua o que era antes. Não mudei a maneira de vestir, nem de
pensar, nem de me comportar. Continuo sendo um ótimo dentista, um bom marido, dom pai,
contribuinte, sócio do Fluminense, tudo como antes. Mas as pessoas me repudiam todo o resto
por casa deste nariz. Um simples nariz de borracha. Quer dizer que eu não sou eu, eu sou o
meu nariz?
- É... – disse o psiquiatra. – talvez você tenha razão...
O que é que você acha, leitor? Ele tem razão? Seja como for, não se entregou. Continua a usar
nariz postiço. Porque agora não á mais uma questão de nariz. Agora é uma questão de
princípios.

# Exercícios:
1) O texto tem características que fazem parte de qual gênero narrativo?

2) O texto discute vários aspectos da vida social moderna; contudo, um deles se destaca. Das
palavras seguintes, qual traduz o assunto central do texto?
a) a moda
b) o comportamento        
c) o casamento
d) beleza

Por quê?

3) A partir de que momento o comportamento bem-humorado da mãe e da filha começa a se


modificar?

4) “Uma carreira brilhante, uma reputação, um nome, uma família perfeita”. Esse fragmento
demonstra os sentimentos e desejos do dentista como pessoa ou o papel social exercido pelo
dentista? Justifique.

5) De acordo com o texto, o que é mais importante para a sociedade: o que o indivíduo
realmente é ou o que ele parece ser?
6) Escreva sobre como as pessoas reagiram quando o dentista insistiu em usar o nariz.

7) De modo geral, tal qual ocorreu no caso do dentista, pode-se dizer que a sociedade reserva
um único destino a todos aqueles que ousam ser diferentes. Qual é esse destino?

8) Que argumentos contrários o dentista apresenta diante da opinião do psiquiatra sobre seu
comportamento?

9) No final da crônica, o narrador afirma que o dentista continua a usar o nariz: “Porque agora
não é mais uma questão de nariz. Agora é uma questão de princípios”. Qual a diferença entre
uma questão de nariz e uma questão de princípios?

10) Responda ao questionamento feito pelo narrador no último parágrafo.

 # Respostas:
1. Crônica

2. b) o comportamento        
Podemos afirmar isso, pois o personagem principal coloca um nariz postiço, decide usá-lo e
isso faz com que o comportamento das pessoas mude.

3. A partir do momento em que o homem decide não tirar o nariz postiço.

4. O trecho “Uma carreira brilhante, uma reputação, um nome, uma família perfeita” demonstra
isso. Porque, na visão da família, o que importava era o papel social exercido pelo dentista e
não suas características pessoais, seu caráter, suas qualidades. Isso indica que o exterior, na
visão do seu círculo familiar, era mais relevante do que o interior.

5. De acordo com o texto, o que é mais importante para a sociedade é o que o indivíduo parece
ser.

6. Quando o dentista resolveu utilizar o nariz postiço, inicialmente, as pessoas acharam


engraçado; alguns, estranharam, pois tal atitude não condizia com seu modo de ser.
Posteriormente, porém, começaram a achar estranho e até perigoso. Isso acabou causando
distanciamento.

7. Tal qual ocorreu no caso do dentista, pode-se dizer que a sociedade reserva um este único
destino a todos aqueles que ousam ser diferentes: a solidão.

8. O dentista apresentou estes argumentos:


Ele continuava o mesmo.
Seu corpo e sua maneira de vestir não haviam se alterado.
Suas habilidades profissionais eram as mesmas.
Suas qualidades estavam intactas.
Suas características não haviam mudado.
As pessoas que mudaram o comportamento e não ele.

9. A questão de nariz seria resolvida apenas se ele tirasse o nariz. Isso poderia ser feito a
qualquer momento. Já a questão de princípios não pode ser resolvida de uma hora para outra.
Ele precisaria continuar usando o nariz para provar que sua dignidade não estava relacionada
à sua aparência, mas sim à sua essência.

10. Acho que o dentista fez o certo, pois não podemos permitir que as pessoas nos definam
pelo que aparentamos ser. Por mais que essa seja uma tendência social, é necessário resistir
em alguns momentos.

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