Você está na página 1de 23

Questões sobre práticas

sociais psicoterapêuticas

mediadas por contribuições de Vigotski

Achilles Delari Junior

Arquivos digitais
Delari Jr., Achilles. Questões sobre práticas sociais psi-
coterapêuticas mediadas por contribuições de Vigo-
tski. In: “Estação Mir” Arquivos digitais, 2015. 22 p.

Palavras-chave: Práticas sociais psicoterapêuticas;


Psicologia; Vigotski.

Material não indexado.


Disponível em:
www.estimir.net/delari_2015_qst-prt-pst.pdf

Primeira versão concluída em 7 de junho de 2015.


Versão atual concluída em 22 de janeiro de 2020.
Umuarama-PR.

Trabalho voluntário e independente.


Sua reprodução integral ou parcial é livre e incentivada,
respeitada a citação à fonte.

www.estmir.net

1
“Não só é importante saber que do-
ença uma pessoa tem, mas que pes-
soa tem determinada doença”

(Vygotski, 1931/1997, p. 134)

2
Conteúdos

1 Sobre a natureza deste material 04

2 “Como é a psicoterapia sócio-histórica e qual sua 05


diferença frente a outras abordagens?” 0

2.1 Não há “a” psicoterapia sócio-histórica 05


2.2 A denominação “sócio-histórica” não é unânime 05
2.3 Diferentes propostas sobre “como é” a psicoterapia 06
a) A proposta do psicólogo cubano Fernando Rey 07
b) A proposta da psicóloga portuguesa Maria R. Leal 07
c) A proposta da psicóloga americana Lois Holzman 08
d) A proposta do psicólogo russo Fiodor Vasiliuk 09
e) Nosso convite à produção coletiva 10
2.4 Sobre diferenças frente a “outras abordagens” 11

3 “Qual é o foco na terapia?” 13

3.1 Quanto ao objetivo a atingir 13


3.2 Quanto a qual aspecto dar mais atenção 14

4 “Utiliza-se alguma técnica” 17

5 “Enfim como é a prática psicoterapêutica?” 19

6 Referências 21

3
1 Sobre a natureza deste material
“proximal” em língua portuguesa

Este trabalho é uma versão revisada de respostas minhas, por


escrito, em documento digital, a uma breve lista de perguntas que
me foi enviada por internet, por parte de estudantes de graduação
do curso psicologia da UFPR, em Curitiba no ano de 2015. A de-
manda advinha da necessidade de cumprirem um dos momentos de
avaliação de aprendizado em disciplina obrigatória de tal curso.
Não fazia parte da tarefa convidar quem dava respostas a estar pre-
sente quando fossem discutidas em sala de aula. Nem fornecer re-
torno sistemático, oral ou escrito, ao colaborador externo. Mesmo
assim a tarefa foi aceita cumprida. Como ato militante de levar a um
centro de formação oficial uma concepção que está excluída das pri-
oridades curriculares nacionais. Porém, faltou oportunidade para
rever minhas posições pela crítica e novas questões de estudantes e
colega docente daquela instituição.
Sendo assim, mesmo passados já cinco anos, releio este trabalho
e entendo ser válido reeditar meu posicionamento naquela ocasião.
Isso com o objetivo de ampliar o horizonte de interlocução, tentando
fazer chegar este material a pessoas realmente interessadas e com-
promissadas com o avanço da discussão conceitual baseada nas con-
tribuições de Vigotski, articulada às práticas sociais psicoterapêuti-
cas. As perguntas enviadas, que procurei responder da melhor
forma possível, no prazo de um dia dado a mim, são as seguintes:
“Como é a psicoterapia sócio-histórica e qual sua diferença frente a
outras abordagens? Qual é o foco na terapia? Utiliza-se alguma téc-
nica? Enfim, como é a prática psicoterapêutica?” Segue-se o que me
tocou dizer quanto a tais questões, mesmo não concordando com
alguns pressupostos de sua enunciação. Tendo, desde o início, ex-
plicitado tais discordâncias a quem me atribuiu a tarefa e solicitou
minhas palavras.

4
2 “Como é a psicoterapia sócio-histórica e qual
“proximal” emfrente
sua diferença línguaaportuguesa
outras abordagens?”

Antes de responder àquilo a que questão demonstra dirigir-se,


devo fazer três observações iniciais quanto ao que o próprio modo
de fazer a pergunta pode induzir alguém a pensar. Tais observações
dizem respeito: (2.1) à impossibilidade de haver “a” psicoterapia só-
cio-histórica; (2.2) à imprecisão de se chamá-la “sócio-histórica”; e
(2.3) à necessidade de explicitar o “como” mediante diferentes apro-
priações da contribuição de Vigotski às práticas psicoterapêuticas.

2.1 Não há “a” psicoterapia sócio-histórica

Em primeiro lugar, considero essencial não substancializar o


que alguém poderia supor ser “a psicoterapia sócio-histórica”. Sa-
bemos que não há, por exemplo, uma só “psicoterapia psicanalí-
tica”, mas várias tendências sob esse título, algumas divergentes ou
mesmo opostas entre elas. Também não há, ao longo da história da
psicologia, uma única forma de conceber e realizar “psicoterapia
comportamental”, mas algumas tendências nesse campo. Talvez
não tão divergentes quanto as psicanalíticas, mas com distinções sig-
nificativas. Da mesma maneira, de modo algum, se pode falar cate-
goricamente em algo no singular, homogêneo, unificado, canônico,
que seja “a” psicoterapia sócio-histórica...

2.2 A denominação “sócio-histórica” não é unânime.

Em segundo lugar, também não está historicamente muito bem


definido o que seja, de modo homogêneo, nem canônico, uma “psi-
cologia sócio-histórica”. Nem se este termo seria correto para no-
mear o conjunto complexo e heterogêneo do pensamento do princi-
pal “expoente” (de que temos notícia) na proposição de um projeto
de psicologia marxista na URSS, que foi Lev Semionovitch Vigotski.
Ele mesmo disse, em 1927, que melhor seria não dizer sequer “psi-
cologia marxista”, pois havia tantas psicologias marxistas diferentes
e opostas na URSS, que esse adjetivo não dizia quase nada. Sendo

5
melhor, por fim, falar apenas de “psicologia”. Mais tarde, críticos
stalinistas aos estudos de Luria na Ásia central e ao conceito vigots-
kiano de “desenvolvimento cultural” viriam a nomear suas elabora-
ções, de modo pejorativo, como “teoria histórico-cultural”. Elabora-
ções que na história da produção do autor correspondem ao período
de 1928 e 1931, não à totalidade da mesma.
Tal como o termo “marxismo”, cunhado por inimigos de Marx,
foi assimilado por continuadores como “marxistas”; também o
termo “histórico-cultural” foi assimilado por colegas e estudiosos de
Vigotski. Hoje, na Rússia, por exemplo, o principal periódico cientí-
fico que publica estudos que dialogam com o legado científico de
Vigotski chama-se “Revista de Psicologia Histórico-Cultural”. O
termo “sócio-histórico” teria sido introduzido após a morte de Vi-
gotski, por A. N. Leontiev, para denominar sua teoria da atividade.
A qual, por sua vez, mesmo sendo uma leitura marxista do desen-
volvimento do psiquismo humano, não se pauta fielmente no pro-
jeto científico de Vigotski e tem críticas ao mesmo. Entende-se que
as divergências entre os autores não eram vistas, a princípio, como
critério para expurgos e/ou censuras, em nome de uma unificação
doutrinária a todo custo. Mas como necessárias e adequadas ao
avanço da psicologia como ciência.

2.3 Diferentes propostas sobre “como é” a psicoterapia

Em terceiro lugar, sobre como são as diferentes práticas psicote-


rapêuticas que, de algum modo, tomam como base para o legado
científico de Vigotski para o estudo da gênese social da personali-
dade, da consciência, do psiquismo propriamente humano, isso se
diferenciará de acordo com os seus leitores atuais. De acordo com a
maneira pela qual os estudiosos contemporâneos tentam teorizar e
praticar psicoterapia partindo de estudos de Vigotski, Luria, Leon-
tiev, Rubinshtein, Lídia Bojóvitch, entre outros. Até a última vez que
tive a oportunidade de identificar “linhas” distintas em psicoterapia
com esta base, as quais, como podem imaginar, são bastante hetero-
gênea, identifiquei pelo menos 4 (quatro) caminhos diferentes, além
da minha posição atual que não consolidou-se ainda como caminho,
porque só poderia fazê-lo num trabalho coletivo.

6
a) A proposta do psicólogo cubano Fernando Rey.

Fernando Rey entende que todo o desenvolvimento histórico


das técnicas psicoterápicas é patrimônio cultural da humanidade e
que pode ser posto em movimento dentro de um novo quadro in-
terpretativo histórico-cultural. Por isso, não se priva de se utilizar-
se de técnicas da terapia cognitiva, como que em busca de ajudar as
pessoas a desfazerem certos mitos que têm sobre sua existência so-
cial (ver Rey, 2006). De modo que seu sofrimento por conta deles
possa ser sobrepujado... O aspecto da empatia é levado fortemente
em consideração. Assim como o respeito e tematização da singula-
ridade da vivência da pessoa que busca a terapia, evitando reduzi-
la à simples soma dos eventos ambientais que determinam sua con-
duta... E assim por diante. Tal vertente por sua necessidade de evitar
o reducionismo ambiental, pode sofrer críticas quanto ao subjeti-
vismo que insinua, como quando interpreta “o social como produ-
ção subjetiva” (Rey, 2012).

b) A proposta da psicóloga portuguesa Maria Rita Leal.

Maria Rita Leal estabeleceu, por assim dizer, algumas “formas


tipificadas” de ação do terapeuta no trabalho clínico, sobretudo com
crianças. As quais são denominadas: “por verbo” (se a criança está
abrindo uma caixa de brinquedos, o terapeuta diria “agora você está
abrindo a caixa de brinquedos”); “marcação” (o terapeuta organiza
a vez de cada um falar ou fazer alguma coisa; pode, por exemplo,
começar a montar um quebra-cabeça e dizer ‘agora você’, pode es-
perar que a criança faça algum esforço no mesmo quebra-cabeça e
dizer ‘agora eu’); e “repetição” (é como a, por todos conhecida e pra-
ticada, ‘resposta reflexa’, na qual a pessoa diz, por exemplo, ‘mas
essa brincadeira é cansativa’ e o terapeuta repete para dar ênfase no
que foi dito ‘mas essa brincadeira é cansativa’).
Tais recursos não são isolados nem aplicados mecanicamente.
Na prática com a criança se faz muito uso de brincadeiras e jogos, e
o objetivo é ajudá-la na tomada de consciência de seus atos e proces-
sos afetivo-cognitivos de modo a gerar a dita “zona de desenvolvi-
mento proximal”. Isto é, um avanço qualitativo no desenvolvimento
geral da pessoa, com auxílio de alguém mais experiente, adian-

7
tando-se à organização interfuncional dos sistemas psicológicos que
ela já tem consolidados no momento atual. Supõe-se que isso dará
mais recursos para a pessoa lidar com suas situações de sofrimento
afetivo e/ou dificuldades no processo de ensino-aprendizagem, por
exemplo. Para mais detalhes pode-se consultar o trabalho da psicó-
loga brasileira Simone Marangoni pautado nessa linha interpreta-
tiva proposta por Leal (ver Marangoni, 2007). No meu ponto de
vista, esse modelo é mais rígido que o de Rey, e não tão profundo
teoricamente quanto o dele – indicando tender mais para um ambi-
entalismo.

c) A proposta da psicóloga americana Lois Holzman.

Lois Holzman faz uma leitura, digamos, pós-moderna, da obra


de Vigotski (Holzman 2009). Também opera com o conceito de
“zona de desenvolvimento proximal” do qual deriva a noção pouco
rigorosa da “zona de desenvolvimento emocional”. Ela o faz pela
via de trabalhos grupais, que se constituem numa terapia pela “per-
formance”. Isto é, as pessoas buscariam encontrar formas criativas
de atuar diante das demais, de modo tal que se “libertassem” de
suas formas corriqueiras de sentir o mundo e a si mesmas. Dá-se,
portanto, forte ênfase nos processos de imaginação. Os quais, se-
gundo Vigotski, são a neoformação principal da idade pré-escolar
que é engendrada pela brincadeira de papéis sociais, como atividade
social essencial da criança nesse momento de sua vida. Mas, mesmo
com adultos, as “performances” são possíveis, digamos, pelo fato de
que a imaginação não seria uma “regressão” à idade infantil, mas
uma potência necessária para vida de todo ser humano.
De modo a superar situações de impasse, para as quais o já es-
tabelecido e que se tornou hábito cristalizado é insuficiente. Não sou
especialista nesta vertente, nem nas anteriores. Por isso não saberia
explicar o quanto o terapeuta pode ser interventivo na montagem
de algumas performances ou não. Por exemplo trazendo algumas
sugestões de roteiro, ou participando de sua criação coletiva. Mas
parece ser uma linha menos interventiva que a de Rey, e muito me-
nos interventiva que a de Leal. Uma crítica que pode ser feita a essa
vertente é se tal prática pós-moderna não pode repor/manter um
conceito neoliberal de liberdade: já que o mundo está ruim, cada

8
pessoa “inventa” um modo “criativo” de dar sentido para ele. De
modo que se faz livre apenas como indivíduo e não como coletivi-
dade, apesar de estar “em grupo”. Isto acabaria sendo mais neocon-
servador do que “revolucionário” – adjetivo que a autora atribuiu a
Vigotski em título de livro seu com Newman (Holzman e Newman,
1993). Ao contrário do que seria a busca original de Vigotski para a
ciência psicológica com que sonhou e pela qual lutou por criar al-
guns alicerces.

d) A proposta do psicólogo russo Fiodor Vasiliuk.

Este psicólogo pauta seu trabalho terapêutico numa forte ênfase


para o conceito de “vivência” - em russo “переживание” [perejiva-
nie]. O qual Vigotski chega a considerar “uma verdadeira unidade
dinâmica da consciência” (Vygotski, 1933-34/2006, p. 383). Para Fer-
nando Rey, tal conceito também é importante. Mas Vasiliuk tem
uma visão peculiar. A qual reconheço, em pelo menos, dois aspec-
tos: (a) para ele a “vivência” é uma forma de atividade não só de con-
templação, e Rey é um crítico da teoria da atividade de Leontiev,
com quem estudou Vasiliuk na juventude; (b) a “vivência” na psi-
coterapia proposta por Vasiliuk é conceituada de uma maneira
muito específica como “atividade pela qual o sujeito logra superar
situações críticas”... Uma situação crítica, para Vasiliuk, significa
uma situação real de impossibilidade, não apenas de dificuldade
(Vasiliuk, 1984; Vasilyuk, 1984/1991).
Por isso ele diferencia conceitualmente: estresse, frustração, con-
flito e crise. Sendo que na vida real estão entrelaçados. Para proceder
a terapia Vasiliuk lança mão do que chama de “unidades psicotéc-
nicas” que também se entrelaçam e me parecem mais abrangentes e
dinâmicas que os procedimentos diretivos de Rita Leal. São quatro
estas unidades: “interpretação” “empatia"; “compreensão” e “mai-
êutica”. Esta é abordagem que considero mais próxima do que eu
gostaria de desenvolver. Embora note algo de fenomenológico-exis-
tencial na formação do pensamento de Vasiliuk. É o autor, com al-
guma influência de Vigotski, que me pareceu mais completo e siste-
mático, comparado aos três que citei anteriormente. Porém, sobre
quão presente realmente está em seu trabalho o legado marxista e o

9
vigotskiano mais avançado, caberia submeter a leituras mais apura-
das.
Seja como for, também vejo como bastante promissora sua aten-
ção ao tema dos “automatismos de consciência” - processos que, di-
gamos, “cristalizamos” e nos travam o crescimento, por impedirem
a vivência como superação de situações críticas. Tanto quanto se
mostra promissora a inclusão do tema do “inconsciente” como com-
ponente interno do sistema teórico e psicotécnico (atuação prática).
Tema este que, de modo algum, esteve ausente das preocupações
teóricas de Vigotski, visto de maneira crítica em contraste com o tra-
tamento dualista e biologicista que Freud dá ao tema. Sobre isso te-
nho algumas anotações feitas noutro lugar, mas que não cabem
neste momento.

e) Nosso convite à produção coletiva.

Nosso próprio modo de articular as contribuições de Vigotski


com as práticas sociais psicoterapêuticas não se encontra tão conso-
lidado como os anteriores. Seja no que diz respeito à sistematização
técnica, quanto às publicações de maior alcance, eventos especiali-
zados, e maior repercussão coletiva. Mas a necessidade de buscar
por uma articulação coerente, surge historicamente para mim, tanto
da insatisfação com os modelos anteriores quanto da necessidade
prática de atuar como terapeuta junto a crianças e adolescentes víti-
mas de violência e seus familiares. Nesse momento não poderia abs-
trair de minha própria organização afetiva e intelectual o modo ge-
ral pelo qual concebo o desenvolvimento social da consciência e da
personalidade, ao atuar num espaço terapêutico. Como se pudesse
ser vigotskiano em educação e na prática clínica adotar outra visão
de ser humano apenas por ela ter mais publicações disponíveis so-
bre os processos psicoterapêuticos. Estava fora de cogitação.
Os mesmos princípios de que me valia para trabalhar direta-
mente com crianças num projeto de ação educativa coletiva que con-
cebi e implementei por dois anos, com crianças do MST (entre 1998
e 2000) foram os que guiaram cada passo meu na lida com as crian-
ças vítimas de violência e/ou com “suspeita” de terem sido vítimas
de violência. Porém, é claro, com a necessidade imperativa de agir
com bom senso e a ética substancial do humanismo marxista. Ou

10
seja, sem criar “experimentos” com procedimentos ainda não con-
solidados para “testar” com estas crianças. E houve momentos que
objetivamente revelaram avanços.
Porém, apesar de os quatro modelos anteriores não me satisfa-
zerem intelectualmente como me satisfaz a própria concepção de Vi-
gotski, não posso, nesse momento histórico, levantar descrições de-
talhadas do meu “como” – sem nenhuma regra de sigilo envolvida,
como ocorre com estas respostas às perguntas de estudantes de psi-
cologia da UFPR. Pois as pessoas que atendi não eram objeto de pes-
quisa e nada do que se passou pode ser nem será posto a público.
Desenvolver melhor este “como” demandaria fazer parte de algum
grupo ou instituição com interesses comuns, envolvendo novas prá-
ticas, relações presenciais de diálogo, orientação e estudo – o que
não está ao nosso alcance fazer, nem a isso fui convidado. Tampouco
estou em condições de montar um sistema teórico geral para lhes
propor com base apenas nas minhas leituras, que venho fazendo
desde 1987 em psicologia geral, mas apenas desde 2003/2004 no
campo das suas aplicações para a clínica.
Por isso, meu texto apresentado na UFMS, que vocês me disse-
ram ter lido na UFPR, fala de “diretrizes iniciais”. Se houver coleti-
vidade disposta a cooperar para transformarmos essas diretrizes ini-
ciais em “intermediárias” e “avançadas”, eu me disponho a estar ao
lado. Mas aqui nesse texto, não posso ir mais longe sozinho, para
responder perguntas tão amplas e um tanto formais, o que as torna
praticamente vagas. Mesmo que eu saiba que são legítimas e since-
ras.

2.4 Sobre diferenças frente a “outras abordagens”

Sobre “quais as diferenças frente as outras abordagens”, penso


que vocês que conhecem outras abordagens poderão agora estabe-
lecer, comparando-as com o que foi exposto anteriormente. Nunca
pautei minha prática em educação ou clínica em outra concepção de
mundo e de gênese do psiquismo propriamente humano que não
fosse a da dialética materialista. Mesmo com os inúmeros limites
que existem para seu aprendizado nas universidades e para sua di-
fusão social numa sociedade perversa como a nossa. Ao sermos
constrangidos/cerceados por tais limites, é necessário fazer

11
percursos marginais, paralelos e, muitas vezes, em choque com os
cursos oficiais de formação de psicólogos num país capitalista peri-
férico como o Brasil.
Mas, tal concepção se coloca, para mim, como aquela mais fiel
às contradições imanentes ao real, do que todas as demais que me
foram apresentadas em abundância no ensino escolar dito “supe-
rior”. Tudo que eu sei sobre outras abordagens é o que me foi ensi-
nado nas disciplinas obrigatórias da faculdade, e posto que tão so-
mente obrigatórias e não necessariamente condizentes com meu
projeto de vida, de ciência e de profissão, nenhum aprofundamento
nelas jamais desejei ou necessitei ter. Espero que façam suas pró-
prias comparações se isso for realmente importante para vocês.

12
3 “Qual é o foco na terapia?”
” em língua portuguesa

Recebendo esta questão sem poder dialogar com quem a formu-


lou, não compreendo exatamente o que se entende “foco”. Digamos
que, para mim, quem pergunta pode estar se referindo a, pelo me-
nos, dois assuntos: “Qual o objetivo da terapia?” e “A quais aspectos
mais se atenta na terapia?”. Sem saber qual seria o significado prio-
ritário para quem formulou a questão, trato das duas acepções do
termo. Inclusive por serem complementares, no meu ponto de vista.

3.1 Quanto ao objetivo por atingir.

O objetivo almejado com as práticas psicoterapêuticas orienta-


das pelas contribuições de Vigotski, não pode ser outro que não o
da potencialização do desenvolvimento da personalidade de quem
busca o processo psicoterapêutico. O que significa nas palavras de
Vigotski, realizar “um caminho para a liberdade”. Retomando a
frase de modo mais desdobrado, este autor entende que “uma
grande imagem do desenvolvimento da personalidade: [é] um ca-
minho para a liberdade. Renascimento do espinosismo na psicologia
marxista” (1932/2010, p. 92-93). Entende-se como ser humano mais
saudável aquele que, em ação conjunta com os demais, caminha
para a conquista de maior liberdade. O que se dá ao longo de sua
história pessoal de modo indissociável com relação à história de
toda humanidade. E o desenvolvimento de alguém é movido pelas
diferentes relações sociais nas quais participa ativamente, não só das
quais recebe ou deixa de receber “influências” – como uma massa
passiva a ser “modelada”.
De modo que tal objetivo que não compactua com o conceito
liberal de liberdade, que se esgota na ilusão ideológica de que al-
guém, por natureza, é “livre” para concorrer no mercado e vencer,
sobrepujando seus semelhantes. Em Vigotski, ao contrário, opõe-se
a tal visão de mundo uma concepção comunista de liberdade. O qual
implica “sermos livres, portanto aptos, para cooperar com nossos
semelhantes na constituição de uma coletividade mais avançada”.
Isso supõe, simultaneamente, a ampliação de nossa autonomia:

13
nossa capacidade de irmos além dos nossos limites atuais com a con-
tribuição de alguém; e da capacidade de contribuirmos para que a
liberdade de todos seja ampliada. Certamente, no plano concreto –
multideterminado – isso não pode ser uma “exigência” a ser aten-
dida apenas pelo esforço de um terapeuta e da pessoa que conta com
seu trabalho... Porém o objetivo não deixa de ser o de nos tomarmos
mais livres e capazes de auxiliar as pessoas a que se tornem tão mais
livres, quanto nos seja possível, dentro dos limites históricos dados.
Limites cuja demarcação permanece em permanente disputa, no
seio da luta de classes.
Tais possibilidades de avanço no desenvolvimento da persona-
lidade de alguém, vão implicar atitudes não apenas da pessoa para
consigo mesma, mas, em alguma medida, para com todas as rela-
ções sociais das quais participa ativamente ou das quais possa des-
cobrir, no próprio processo terapêutico, que pode vir a participar.
Dando sua contribuição para que tais relações sejam mais saudáveis,
mais densas, para além do corriqueiro e do banal que por vezes nos
massacra, por não termos como passar a ser quem ainda não somos.
O objetivo da terapia, na perspectiva do legado teórico de Vigotski,
só pode ser contribuir para o desenvolvimento integral da persona-
lidade rumo à conquista da maior liberdade possível, no sentido co-
munista do termo.

3.2 Quanto a qual aspecto dar mais atenção

Quanto aos aspectos aos quais se daria mais atenção no processo


terapêutico, a minha posição foi em parte exposta no que chamei
“diretrizes iniciais” em texto do qual vocês tomaram conhecimento
(Delari Jr., 2012). Mesmo que “numericamente” se esteja traba-
lhando com “um indivíduo”, aquilo a que damos atenção principal
(ou “foco” se preferirem) não é o seu “mundo interior”. Mas para as
relações sociais que a pessoa vive, que se convertem em formas in-
ternas da dinâmica de sua personalidade. Mesmo que o que seja “re-
presentado”, ou melhor, significado pela pessoa (e dito no set tera-
pêutico) nunca seja idêntico ao que se passa no cenário de cada re-
lação como tal, cabe considerar que existe um mundo objetivo de
relações concretas do qual a pessoa faz parte ativamente. O qual no
espaço no qual se dá o atendimento vem para a relação social

14
terapêutica (na qual o terapeuta não é neutro, muito menos supe-
rior) como significação a ser desenvolvida.
Ou seja, os processos de significação mediante os quais alguém
aprendeu a se relacionar com a realidade, não apenas se colocam
para o terapeuta como algo a ser “explicitado” e “decifrado”. Mas
como uma atividade viva, que é posta à prova da prática dialógica
terapêutica, e tem possibilidade de desenvolver-se, de deixar de ser
tal como fora até então. Tais processos são dinâmicos, e podem vir a
ser refeitos, reorganizados, reinterpretados, redirecionados em par-
ceria, para uma distinta tomada de atitude nas relações da pessoa
com os demais de seu convívio social. Não se trata de forjar atitudes
de controle da pessoa para consigo mesma, para que possa apenas
“suportar” a vida com os demais, ao adaptar-se ao mundo perverso
que ora está posto. Pois partimos do princípio vigotskiano que as
relações interpsíquicas são a força motriz para a reorientação dos sis-
temas intrapsíquicos. Lembrando sempre que o social não é algo “ex-
terno” à pessoa, mas algo de que ela faz parte em relação ativa,
desde muito cedo.
Poderíamos dizer que a ênfase não é no sintoma, não é na do-
ença, mas sim no ser social que traz o sintoma ou que traz um con-
junto de sintomas que alguns profissionais dizem ser a “doença”.
Seja por alguma definição científica (explicativa) ou por simples
classificação meramente formal (descritivo-enumerativa). Com base
na orientação de que “não só é importante saber que doença uma
pessoa tem, mas que pessoa tem determinada doença” (Vygotski,
1931/1997, p. 134). Porém, entendendo que essa pessoa é um ser so-
cial, cuja vida em suas múltiplas determinações se dá necessaria-
mente em relação. Evidente que um terapeuta não pode interferir
em tudo o que uma outra pessoa vive concretamente, não podemos
fazê-lo nem com relação a nós mesmos.
Porém é a esta pessoa como síntese de suas relações que volta-
mos o nosso “foco”, nosso olhar, nossa escuta, nossas perguntas e
nossas sugestões, nosso silêncio. E tanto melhor podemos tomá-la
como pessoa real quanto melhor pudermos resgatar significações re-
levantes que traz sobre o que vive em diferentes situações sociais.
Processos de significação que não só refletem a realidade, como tam-
bém a refratam. Mas tendo esse aspecto refratário não são tomadas
apenas como “projeções fantasmáticas” de um mundo interno que
distorce a realidade ao bel prazer. Toda a significação verbalizada,

15
gesticulada, desenhada, escrita, silenciada, trará algum lastro de ob-
jetividade sem o qual ela sequer poderia se constituir como processo
de significação...
E assim o “foco” é “multifocal” – mas não é aleatório, ou seja,
não é desprovido de organização mental por parte do terapeuta.
Pois esse pauta numa teoria do desenvolvimento da personalidade
humana mais genérica que lhe dá suporte ao diagnóstico. E domina
uma teoria da gênese e da função da linguagem que lhe permite não
tratar os diferentes modos de significação de modo apenas conteu-
dista - ou seja “a qual realidade objetiva esta fala se refere”. Mas
também e fundamentalmente à dialética conteúdo-forma – ou seja “de
que maneira esta fala se refere à realidade objetiva”, mantendo-a e
transformando-a. Mas para isso é preciso estudar a própria teoria,
como em todas as correntes psicológicas oficialmente consideradas
válidas no momento histórico atual.

16
4 “Utiliza-se alguma técnica?”
“proximal” em língua portuguesa

Também não sei o que quer dizer “alguma técnica”, nem se seria
humanamente possível qualquer trabalho, digno desse nome, ser to-
talmente desprovido de técnicas ou simplesmente conceber que to-
das as técnicas são igualmente válidas. Como, por exemplo, numa
hipótese absurda, tratar seres humanos com técnicas usadas para
adestrar animais em laboratório, visando a que se tornem dóceis e
obedientes. “Técnica”, de modo geral, é uma palavra derivada do
grego “tekhné”, que também pode ser traduzido como “arte”. Por
exemplo, nos títulos dos livros de Aristóteles “A arte poética” e “A
arte retórica” a palavra original traduzida por arte é “tekhné”. Aris-
tóteles nesses livros se refere de modo normativo, a como bem pro-
ceder, respectivamente, na produção de obras de arte e no conven-
cimento do público, por exemplo em um tribunal ou um parla-
mento. Estava ali a “tekhné” como, por assim dizer, arte de exercer um
ofício, seja ele de criação artística ou de argumentação visando ao
convencimento.
Poderíamos imaginar que ainda não se concebera na Antigui-
dade, a divisão moderna, própria do modo de produção capitalista,
entre arte como “processo criativo” e como “saber fazer”. O que,
grosso modo, polarizamos hoje como trabalho intelectual/criativo
versus trabalho físico/repetitivo. Nesse sentido, aquelas quatro pro-
postas de que falei antes, tem suas técnicas, como vocês viram, em-
bora sem haver aqui como detalhar tudo isso. Mas em todos os casos
as técnicas não estão pulverizadas necessariamente em pequenos
procedimentos que se deva seguir para algumas situações estrita-
mente pré-estabelecidas e outros que se deva seguir para outras si-
tuações, etc. Certamente, como em outras abordagens, cabe o discer-
nimento intelectual e pensamento criativo por parte do terapeuta,
não só reprodutivo dos cânones de sua abordagem.
Se tiverem oportunidade de ler o livro de Paul Roazen “Como
Freud trabalhava” - com entrevistas com pessoas que foram anali-
sandas de Freud - verão, por exemplo, que o “Mago de Viena" várias
vezes quebra regras que indicava canonicamente para seus próprios
discípulos, como a de não se envolver pessoalmente na vida dos
analisandos (chegou a ser padrinho de casamento de uma paciente).

17
Além disso, existem procedimentos simples que podem migrar de
uma orientação teórica para outra e ganhar outra conotação, função
e objetivo – como sugere Fernando Rey, e tendo a concordar, embora
com algumas ressalvas. Assim como existem técnicas mais específi-
cas que talvez sejam indispensáveis para algumas dentre as verten-
tes “histórico-culturais” existentes, porém totalmente dispensáveis
para outras.
Não sei se fui claro, quando falei do que vocês perguntaram so-
bre “como é?”, quanto a que ali já estava compreendido o aspecto
técnico. Mas se não o fui, a partir de agora teria se tornado possível
perceber isso, mesmo que de modo introdutório e resumido?

18
5 “Enfim, como é a prática psicoterapêutica?”
“proximal” em língua portuguesa

“Enfim”... penso que já tenha exposto anteriormente o que po-


deria, dentro do tempo que me foi estipulado para enviar estes co-
mentários, sobre “como são”, em linhas gerais, “as práticas”. Ou me-
lhor “algumas das práticas”, das quais tenho conhecimento. E penso
ser impossível ter domínio de qualquer prática senão entendendo
quem é o ser humano, qual a origem social, a estrutura e a dinâmica
de sua personalidade concreta, multideterminada. Nem sem inves-
tigar por quais motivos sua existência social pode conter sofrimento
intolerável ao ponto de recorrer à psicoterapia como uma das medi-
das necessárias ao seu restabelecimento e/ou para o avanço a níveis
de maior consciência crítica, mais autonomia e melhor saúde. Po-
rém, devo ressaltar que toda a prática de um profissional que neces-
sita formação científica para exercê-la é aquela que se fundamenta
em determinados princípios teóricos. Em um sistema conceitual di-
nâmico, flexível, mas coerente, estruturado, com uma orientação
ética e política definida, sem que se converta em proselitismo, ou
justamente para que isso não aconteça.
Do contrário, lendo um manual de “técnicas” e o aplicando-as
qualquer um poderia exercer a função de psicoterapeuta, por exem-
plo, ou de fisioterapeuta, fonoaudiólogo, etc. Ora, as práticas profis-
sionais de psicanalistas são aquelas que seguem princípios teóricos
da psicanálise. Não será por haver um divã ou não haver um divã
que isso vai diferenciar o essencial de sua prática. As práticas dos
comportamentalistas são aquelas que seguem os princípios teóricos
do behaviorismo, etc. Vou colocar em anexo aqui os principais prin-
cípios que sistematizei para o trabalho de qualquer psicólogo que se
paute no legado científico mais radical de Vigotski, com as corres-
pondentes orientações práticas (referia-me a Delari Jr., 2009, p. 30-
36). Não se trata de lhes oferecer “regras”, como se não fossem inte-
ligentes para criar seu próprio modo de trabalhar, mas de orienta-
ções gerais para a atuação prática do psicólogo “histórico-cultural”.
No meu entendimento, elas valem para quem trabalhe com educa-
ção, com promoção de saúde mental, com a organização das lutas
de movimentos sociais, entre outras áreas possíveis para a atuação
do psicólogo na atualidade.

19
Um dos problemas de responder a perguntas muito amplas, e
sem estar diante do interlocutor é que, na tentativa de não ser sim-
plista, cabe desdobrar problemas que precedem a resposta direta
das perguntas. E isso tomará tempo para que os realmente interes-
sados possam ler, discutir, criticar e se apropriar. Mas sobre quanto
tempo e desejo vocês terão para ler estas simples respostas resumi-
das não cabe a mim definir. Muito menos quanto tempo vocês terão
para estudar a teoria necessária para entender com profundidade
aquilo que estão perguntando. Pois o problema da prática social do
psicólogo, inclusive a do psicoterapeuta, é um dos problemas mais
importantes, mais difíceis e que mais exige discussão, fundamenta-
ção abstração, compromisso e tomada de atitude. Justamente por-
que não pode ser respondido em forma de cartilha, de manual de
instruções, com algoritmos lineares ou imutáveis.

* * *

20
6 Referências
“proximal” em língua portuguesa

Delari, Jr. (2009) Vigotski e a prática do psicólogo: em percurso da psi-


cologia geral à aplicada. 2ª versão. Umuarama-PR. 40 p. Disponível
em: www.estmir.net/delari_2009_lsv-prt-psi.pdf
Delari, Jr. (2012/2020) Notas sobre a pratica social psicoterapêutica: me-
diante contribuições de Vigotski. 2ª. versão de 12 de janeiro de 2020.
Umuarama-PR. 25 p. Disponível em: www.estmir.net/de-
lari_2012_prt-soc-pst.pdf
Holzman, L. (2009) Vygotsky at work and play. London; New York:
Routledge. 146 p.
Holzman, L.; Newman, F. (1993) Lev Vygotsky: revolutionary scientist.
London; New York: Routledge. 236 p.
Marangoni, S. de F. S. (2007) A mediação da palavra e do brincar na psi-
coterapia com crianças. Dissertação de Mestrado. São Paulo. Univer-
sidade São Marcos, 2007. 156 p.
Rey, F. L. G. (2006) Psicoterapia, subjetividade e pós-modernidade.
Uma aproximação histórico-cultural. São Paulo: Thomson. 292 p.
Rey, F. L. G. (2012) O social como produção subjetiva: superando aa dico-
tomia indivíduo-sociedade numa perspectiva histórico-cultural. In:
ECOS. Estudos contemporâneos da subjetividade. Vol. 2. N. 2. p.
167-185.
Vasiliuk, F. E. (1984) Psikhologuiia perejivaniia. Analiz preodoleniia
krititheskikh situatsii. Moskva: Izdatel’stvo Moskovskogo Universi-
teta.
Vasilyuk, F. E. (1984/1991) The psychology of experiencing. The resolu-
tion of life’s critical situations. New York: New York University
Press. 258 p.
Vygotski, L. S. (1931/1997) Acerca de los procesos compensatorios en el
desarrollo del niño mentalmente retrasado. In: ______. Obras escogi-
das. Tomo V. Fundamentos de defectología. Madrid: Visor. p. 131-
151.
Vygotski, L. S. (1933-34/2006) La crisis de los siete años. Obras escogidas.
Tomo IV. Madrid: Visor y A. Machado Libros, 2006. p. 377-386.

21
Vygotsky, L. S. (1932/2010) Two fragments of personal notes by L. S.
Vygotsky from the Vygotsky family archive (Prepared for publica-
tion and with comments by E. Zavershneva). In: Journal of Russian
and East European Psychology, vol. 48, no. 1, January-February,
2010, p. 91-96.

* * *

22

Você também pode gostar