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social psicoterapêutica
Arquivos digitais
Delari Jr., Achilles. Notas para a prática social psicote-
rapêutica mediante contribuições de Vigotski. In: “Es-
tação Mir” Arquivos digitais, 2015. 25 p.
www.estmir.net
1
“É muito ingênuo interpretar o so-
cial apenas como coletivo, como exis-
tência de uma multiplicidade de pes-
soas. O social existe até onde há ape-
nas um homem e suas emoções pesso-
ais.”
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Conteúdos
1 Palavras iniciais 04
6 Referências 23
3
1 Palavras iniciais
“proximal” em língua portuguesa
*A primeira versão deste texto foi produzida como material de apoio para uma fala na mesa
redonda “O sujeito dentro da clínica” no âmbito da “VIII Semana de Psicologia da
UFMS/CPAR” - de 29 de outubro a 01 de novembro de 2012. Algumas adaptações foram
feitas. Como no título original “O sujeito e a clínica na psicologia histórico-cultural” que não
era de minha autoria, mas havia sido fixado previamente pelos proponentes da mesa.
1 Stephen Toulmin, por exemplo, vê Vigotski como o “Mozart da Psicologia” (1978/ 1984).
Jerome Bruner sugere que ele seja um “Titã da psicologia”, ao lado de Piaget e Freud (Bruner,
2005).
4
Vigotski, não conta hoje com trinta anos de recepção repleta de limi-
tações. Dos, pelo menos, 282 títulos escritos por Vigotski, 54 foram
publicados nas “Obras reunidas”, além de títulos fora do plano das
mesmas. E no Brasil, de 1984 a 2012, temos só 33 títulos publicados,
traduzidos das obras ou não. Não que tais leituras sejam condição
suficiente para avanço, mas são uma das condições necessárias e au-
sentes. Somos, coletivamente, iniciantes na psicologia de Vigotski e
suas possibilidades para a prática profissional do psicólogo foram
pouco exploradas.
Em segundo lugar, o tema foi e é desafiador porque em alguns
do próprios grupos que estudam Vigotski em nosso país pode haver
rejeição em ver sua teorização, que coloca as relações sociais como
princípio explicativo central, adentrar campo tão “individualista” e
“burguês” quanto a clínica e/ou as práticas psicoterápicas individu-
ais. Como se fosse uma traição à psicologia deste autor, em sua matriz
epistemológica dialética materialista, ocupar-se também da clínica,
quando talvez devesse dar dedicação exclusiva aos processos educa-
tivos. E às práticas sociais preventivas em saúde mental que, supos-
tamente evitassem ou abolissem as situações traumáticas que levam
alguém a buscar ajuda em psicoterapia, individual ou grupal... Muito
mais na direção de lidar com essa segunda dificuldade, esteve orien-
tada minha naquela ocasião e assim também neste texto revisado, que
se organiza nas seguintes seções: “podem as contribuições de Vigo-
tski dar base a práticas sociais psicoterapêuticas?”; “qual o conceito
de ‘sujeito’ em jogo nas contribuições de Vigotski à psicologia?”; e
“quais os desafios para a teorização vigotskiana da práticas psicote-
rapêuticas?”.
Sendo assim, aqueles que puderam me ouvir naquela ocasião no-
taram e vocês que me leem agora também notarão que estou no papel
social de quem busca e não no de quem já tem tudo estruturado, para
tão somente “ensinar”. Fiz a fala antes e reescrevo agora, sincera-
mente, mais para aprender que para ensinar, pois ao tentar dizer do
que penso aos outros, meu próprio pensamento se efetiva de modo
distinto. Toda minha trajetória teórica, desde a graduação e durante
a docência no ensino médio e ensino superior, veio se pautando
numa busca permanente de montar um quadro teórico geral em psi-
cologia, a partir das contribuições mais radicais de Vigotski. Digo
“montar”, uma vez que elas nos chegam em forma de umas poucas
peças de um grande quebra-cabeças, sem a figura na caixa. Contudo,
5
aconteceu-me de vir a trabalhar em clínica com crianças, primeiro
num CAPS, depois num Programa Federal de combate à violência
sexual contra crianças e adolescentes. Sim, eu estava em terapia e ti-
nha supervisão, não faria nada sem suporte que pudesse tornar o tra-
balho inócuo ou prejudicial àquelas crianças.
Contudo, o fato principal a ser destacado, é que se havia institu-
cionalizado nesses espaços que o atendimento clínico/psicoterapêu-
tico individual era o modo prioritário de se trabalhar. E assim eu de-
via me perguntar: como fechar a porta do consultório e deixar de fora
minha visão de mundo, visão de homem, e concepção sobre a gênese
social da consciência e dos processos psíquicos superiores? Não havia
como abstrair meu modo de compreender a realidade humana, nem
havia como “migrar” para teorias que tradicionalmente são mais
“usadas” na prática psicoterapêutica individual. As crianças deman-
davam atendimento. Algo era preciso se produzir. E neste trajeto o
trabalho com a brincadeira e os jogos tornou-se a forma material mais
tangível de relação simbólica, sob a luz, digamos, de uma hermenêu-
tica, uma ciência da interpretação, dialética materialista. Então meu
papel social naquela mesa e nessa versão revida do texto apresentado
é o de um profissional mais experiente no campo da “psicologia ge-
ral” e da “docência”, e iniciante nas práticas clínicas, sobretudo com
crianças.
6
2 Podem as contribuições de Vigotski dar
“proximal” em sociais
base a práticas língua psicoterapêuticas?
portuguesa
7
metodológicos da psicologia – em Vigotski também nomeada a “dia-
lética da psicologia” (Vygotski, 1927/1991, p. 338).
Tudo indica ter sido um grande educador, professor, palestrante,
estudioso, sistematizador teórico. Mas também teve a característica,
pouco lembrada por autores menos informados, de ter clinicado, ou
pelo menos conduzido muitíssimas entrevistas de triagem, no campo
da “clínica pedológica”. A pedologia era entendida como uma ciência
geral para o entendimento do desenvolvimento da criança e isso in-
cluía diferentes modalidades de intervenção. Também atesta o traba-
lho de Vigotski como clínico o fato de que a prevista, mas não acer-
tada, publicação de suas obras completas em 16 tomos conterá seus
“Cadernos clínicos (incluindo o caderno da Clínica de Don, 1933-34)
contendo conversações com pacientes e casos clínicos”2. O que com-
prova que ele mesmo não só trabalhou com clínica como também re-
gistrou momentos de suas intervenções. De fato, Vigotski não apenas
trabalhou com crianças como recebia seus pais, e procedia a entrevis-
tas, elaborava diagnósticos e tinha sua própria posição crítica quanto
a como proceder ao diagnóstico, na época. Além disso, temos regis-
tros de que Vigotski realizou estudos com pacientes histéricas, par-
kinsonianos, afásicos, esquizofrênicos e pessoas com a doença de Pick
(uma forma de demência).
Disso podemos concluir que não se trata de um autor de gabinete,
que nenhum contato teve com o sofrimento humano. Nem de alguém
que advogasse que a única e exclusiva saída para tal sofrimento fosse
a prevenção, sem que nada se pudesse fazer uma vez que a dor já
estivesse instalada. Claro que sua franca aposta na educação intenci-
onalmente organizada em direção à formação integral de uma perso-
nalidade saudável para todos era fundamental e programática – no
interior de sua visão socialista sobre a formação do “novo ser hu-
mano” (Vygotsky, 1930/1934). Mas quem busca entender como se
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forma o ser humano de forma integral, se for um pesquisador rigo-
roso, também se aproxima de situações limite em que ocorrem “de-
sintegrações” ou “dissoluções” (conforme a tradução) das funções
psíquicas superiores, da consciência e da personalidade como um
todo. Tais momentos limite dizem algo de como os processos gerais
se constituem:
9
isto, quando a arte realiza a catarse e arrasta para esse fogo
purificador as comoções mais íntimas e mais vitalmente im-
portantes de uma alma individual a sua ação é uma ação so-
cial. A questão não se dá de maneira como representa a teoria
do contágio, segundo a qual o sentimento que nasce em um
indivíduo contagia a todos, torna-se social; ocorre exata-
mente o contrário. A refundição das emoções fora de nós re-
aliza-se por força de um sentimento social que foi objetivado,
levado para fora de nós, materializado e fixado nos objetos
externos da arte, que se tornaram instrumento da sociedade.
A peculiaridade essencialíssima do homem, diferentemente
do animal, consiste em que ele introduz e separa do seu
corpo tanto o dispositivo da técnica quanto o dispositivo do
conhecimento científico, que se tornam instrumentos da so-
ciedade. De igual maneira, a arte é uma técnica social do sen-
timento, um instrumento da sociedade através do qual incor-
pora ao ciclo da vida social os aspectos mais íntimos e pesso-
ais do nosso ser. Seria mais correto dizer que o sentimento
não se torna social mas, ao contrário, torna-se pessoal,
quando cada um de nós vivencia uma obra de arte, converte-
se em pessoal sem com isso deixar de continuar social.” (Vi-
gotski, 1925/1999, p. 315)
10
coletiva que desconsidere o ser humano individual como ser social
também ficará desfalcada. Sem o humano (pessoa - tchelovek) como a
unidade viva para a sua intervenção, estas práticas se esvaziariam.
Porque que díades, grupos, instituições e classes sociais são conjuntos
dinâmicos não antropomórficos, ou seja não têm “consciência pró-
pria”, como tais. O que é elaborado de modo bastante consistente por
Vigotski no primeiro capítulo de sua Psicologia da Arte (Vigotski,
1925/1999) – mas não há espaço para detalhar aqui. Ao intervirmos
no movimento destes planos diferenciados, participando deles, tendo
potência para fazê-lo, se atingirá o diálogo com alguém singular, com
sua história, suas lutas, seus limites e suas potencialidades únicas.
Este tópico nos direciona agora para o nosso próximo item de discus-
são que é relativo ao conceito de sujeito que se deduz das formulações
teóricas da psicologia tal como Vigotski busca conceber, projetar e
contribuir para sua edificação.
11
3 Qual o conceito de sujeito em jogo nas
“proximal” em língua
em contribuições portuguesa
de Vigotski à psicologia
12
modo que até hoje encontrei para definir “sujeito” a partir de Vigo-
tski, embora ele mesmo não o tenha definido com tal termo, é aquele
enunciado pelo estudioso de sua obra, Angel Pino Sirgado (1996).
Para este pensador, o sujeito pela teorização de Vigotski é “sujeito de
relações sociais”. Não é nem um sujeito hipostasiado (cartesiano, que
funda tudo o que existe ao seu redor), nem um sujeito inexistente (as-
sujeitado, que apenas espelha o que existe ou existiu ao seu redor).
Mas um sujeito emergente nas relações nas quais a pessoa concreta
necessita colocar-se como tal, assumindo um determinado papel so-
cial, o sujeito como pai na relação com seu filho, o sujeito como filho
na relação com seu pai, o sujeito como aluno na relação com seu pro-
fessor, o sujeito como professor na relação com seus alunos.
Então, não se trata de uma postura relativista, de que somos to-
talmente outros conforme as condições que se apresentam, a saída
conceitual para isto está em que se trata de uma mesma pessoa (ho-
mem - tchelovek), de um mesmo ser humano, que vive diferentes situ-
ações, e estas diferentes situações deixam suas marcas, têm sua histó-
ria e sua memória para cada um, não desaparecem no mesmo ins-
tante em que as circunstâncias mudam. Ao mesmo tempo a pessoa, o
ser humano, vive o choque de assumir seus diferentes papéis sociais
alguns nem sempre conciliáveis com os outros. Como pai desejo estar
próximo ao meu filho, como pesquisador preciso concluir meu pró-
ximo livro; como filho desejo estar perto de meus pais e cuidar deles,
como enamorado desejo mudar-me para longe deles e estar mais
perto dela. O conflito entre os papéis coloca o sujeito diante de uma
situação de escolha, que é tensa, conflitiva, à qual Vigotski chamou
de “drama”.
Nosso “sujeito de relações sociais” é um sujeito de relações “dra-
máticas”, não cômicas (como quando a mimese é de animais e seres
inferiores), não trágicas (como quando a mimese é de heróis e deu-
ses), mas uma mistura das duas coisas (a vida humana, como ela é).
Pois o que une a tragédia e a comédia para Aristóteles é que são am-
bas ação, diferentemente da epopeia e da lírica. Trata-se de uma ação
de escolher, ou o que Vigotski chama de ato volitivo, ato de vontade.
Todo ato de vontade é um ato de escolha, e toda escolha envolve uma
perda, nisso a tensão – a qual como tal é necessária, constitutiva da
personalidade humana, é tanto limite quanto potência. O exemplo
fictício dado por Vigotski é o do juiz que deve julgar a própria esposa:
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como juiz deve condená-la, como marido fiel a perdoa: o que ven-
cerá?
Exemplos da literatura podem ser dados, como quando Orestes
deve matar sua mãe Clitemnestra, para vingar a morte de Aga-
mêmnon, mas não deve fazê-lo, pois sentirá a fúria das Eríneas. Ou o
próprio Agamêmnon que fica entre sacrificar sua filha Efigênia, ou
perder a oportunidade de ir guerrear contra Tróia, como comandante
supremo das forças gregas. E ainda Hamlet, que hesita entre dar fim
a tudo com um punhal, já que a morte é apenas um sono, e continuar
vivendo – já que não os sonhos que pode trazer o sono da morte.
Posso dizer, com base em Rubinshtein (1946/1967): que toda escolha
envolve um ganho e uma perda; contudo essa perda pode ficar ainda
na memória como maior ou menor intensidade, o ato volitivo, o ato
de escolher, não necessariamente esgota de todo o conflito, toda a
tensão. Além do que algumas decisões para serem cumpridas exigem
um conjunto de relações que está todo garantido desde o ato de deci-
dir.
Tenho um exemplo real, relatado numa dissertação de Melo
(2001), sobre mulheres sem terra. Uma das entrevistadas diz ter sido
consultada pelos pais, ainda criança, quanto a participar ou não da
luta pela terra. Ela deveria decidir entre (a) ir para a zona rural com
seus pais e (b) ficar na cidade com outros familiares; porém seu real
desejo era continuar na cidade e junto com os pais. “(...) ela é consul-
tada sobre a adesão e cogita não concordar, mas não suporta não
acompanhar a família e então adere” (Melo, 2001, p. 141-142). Ou seja,
uma decisão no sentido mais completo da palavra “decidir”, pois
qualquer opção envolvia uma perda. Minha hipótese é a de que a dor
da ausência daquilo que não foi escolhido continua marcando os sen-
tidos sociais do que foi escolhido, assim como o que calamos compõe
o sentido do que pronunciamos.
Não se trata de uma escolha totalmente “livre”, no sentido de que
o homem está “condenado a ser livre”, mas também não se trata exa-
tamente de uma imposição convencional, como se estivéssemos “con-
denados a nos submeter”. Para Vigotski a liberdade é uma meta do
desenvolvimento humano, não um pressuposto. Por isso ele diz que
“uma grande imagem do desenvolvimento da personalidade: [é] um
caminho para a liberdade. Renascimento do espinosismo na psicolo-
gia marxista” (1932/2010, p. 92-93). Um caminho para uma vida mais
saudável, mais autônoma, em meio à contradição envolvida no ato
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volitivo, contradição dialética entre ser e não ser, que, no meu enten-
dimento, é imanente ao “salto para adiante, do reino da necessidade
para a esfera da liberdade, como descrito por Engels” (Vigotski,
1930/1994, p. 182) - o que se faz necessário tanto para “toda a socie-
dade quanto para a personalidade individual”.
A traços largos, esse é um conceito de sujeito com o qual lidamos
em psicologia histórico-cultural de forma geral e que também não po-
deria deixar de estar presente nas práticas clínicas e/ou em saúde
mental de um modo geral.
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4 Quais os desafios para a teorização
“proximal”
vigotskiana em língua portuguesa
de práticas psicoterapêuticas?
Este primeiro desafio diz respeito a que tais práticas sociais psi-
coterapêuticas devem continuar sendo, de todo modo, psicologia na
mesma orientação pela qual Vigotski procede sua teorização geral à
gênese social do psiquismo propriamente humano. E não uma junção
mecânica de alguns princípios seus com os de outros saberes quais-
quer. Evidente que o diálogo com outros saberes e práticas é neces-
sário e desejável. Mas não se pode abrir mão de princípios epistemo-
lógicos que norteiam a psicologia geral de tal como a concebeu Vigo-
tski em seu projeto científico, mesmo que inacabado, sem abrir mão
de toda sua teorização psicológica como tal. Dentre estes princípios
dos quais não se pode abrir mão, citarei apenas quatro que considero
imprescindíveis para o momento:
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simétricas, a redução da assimetria das relações se dá com o
desenvolvimento;
17
linhas biológica e cultural, os recursos sociais e a dinâmica neurofun-
cional, pelo princípio da “unidade psicofísica” (cf. Rubinshtein,
1946/1972, p. 40). Vigotski (1932-34/2006) fala de “idades psicológi-
cas”, não “cronológicas”, mas “cronogênicas”, definidas por “neofor-
mações básicas” ou “principais”, as quais, por sua vez são determi-
nadas por específicas “situações sociais de desenvolvimento”, em
momentos críticos na ontogênese. O que é válido inclusive para a
idade adulta, porém, por não ser seu objetivo, no campo da pedologia
(estudo da criança) não se colocou a tarefa de detalhá-la nos textos a
que temos acesso. Tais “idades”, evidentemente, serão histórica e cul-
turalmente contextualizadas – irão variar em função de tempo e es-
paço, mas, ao mesmo tempo, sem seguir à deriva, em total aleatorie-
dade. Ou seja, para pensar o sofrimento humano e a lida intencional
para diminuí-lo, é preciso ter uma base sólida sobre o desenvolvi-
mento da personalidade tal como pudera se dar da forma mais sau-
dável possível.
2a meta. Há que esclarecer detalhadamente a concepção de diag-
nóstico própria da psicologia sob a orientação das contribuições de
Vigotski. A qual se encontra já desenhada de modo programático no
livro “Diagnóstico do desenvolvimento e clínica pedológica da cri-
ança difícil” (Vygotski, 1931/1997), publicado na íntegra no Tomo V
de suas “Obras escolhidas” (ou reunidas). Está claro que a “clínica
pedológica” não é coincidente com o que hoje consideramos práticas
psicoterapêuticas, nem estas são dirigidas apenas a crianças, nem tem
uma ligação tão forte com a pedagogia com tinha a pedologia na
União Soviética. Não poderei detalhar aqui, mas ali o autor traça uma
discussão crítica sobre o processo de diagnóstico, como processo de
interpretação da realidade humana, orientando-nos sobre como pro-
ceder e como não proceder, num esquema que contém as seguintes
etapas:
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3a meta – Há que produzir uma leitura mais aprofundada sobre
a Patopsicologia soviética, na qual se especializou Bluma Zeigarnik
(1962/1965; 1969/1972), uma vez que tal ciência se configura num pa-
radigma distinto daquele da psicopatologia ocidental. Tal distinção,
no meu entendimento se faz por ela ser: (a) uma proposta científica
que toma as caraterísticas qualitativas como prioritárias com relação
às quantitativas; (b) uma proposta científica prioritariamente explica-
tiva e não apenas descritiva; (c) uma proposta científica pautada na
metodologia da experimentação e não apenas na observação, coleta
de material introspectivo e tabulações estatísticas; e (d) uma proposta
científica não pautada prioritariamente em classificações de quadros
patológicos tipificados, mas antes no caráter disfuncional de sistemas
psicológicos3 integrais e dinâmicos. Focando não apenas em “doen-
ças” específicas, mas nas funções psíquicas superiores que, por al-
gum motivo, entram em colapso. Porém, nada disso será suficiente se
não mantivermos o entendimento de que “não só é importante saber
que doença uma pessoa tem, mas que pessoa tem determinada do-
ença” (Vygotski, 1931/1997, p. 134).
4a meta. Há que produzir um avanço na teoria das emoções de
Vigotski. A qual está mais voltada a questões de cunho filosófico e
metodológico (Vygotsky, 1931-33/1999). Tais reflexões não relevantes
e devem ser preservadas, mas também será importante dirigir a sis-
tematização para os caminhos mais propriamente psicológicos, indi-
cados por Vigotski mesmo quando elogia Chabrier. Convidando-nos
a construir uma teoria dos sentimentos humanos que tenha como al-
gumas de suas categorias principais: a consciência, a cultura, a ideo-
logia, a história e a personalidade humana, em suas relações inter-
constitutivas. Teoria que complemente as críticas ao dualismo, com o
conteúdo sensível de episódios em que se nos apresentem as emoções
de seres humanos reais, amando, indignando-se, entristecendo-se, lu-
tando por sua própria emancipação.
5a meta. Há que dar resposta consistente ao problema dos pro-
cessos psíquicos inconscientes e não conscientes em sua dialética com
a consciência humana. Este tema é um problema metodológico para
a psicologia histórico-cultural (Vygotski, 1930/1991a). A consciência
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não é um processo absoluto, ela tem estruturação sistêmica e estrutu-
ração semântica, relativa ao sentido do que dizemos/pensamos. Tal
sentido não é definido só por nós, mas por nossas relações com outras
pessoas. Lembremo-nos de que o foco da consciência nunca pode
abarcar toda a realidade num só ato, mas, como diz Vigotski: “a ati-
vidade da consciência pode seguir rumos diferentes” (1934/1989, p.
78). Mudanças de rumo nem sempre são planejadas. E podemos agir
conscientemente sem ter consciência de nossos motivos para agir as-
sim. Não se estabelecerá uma consciência paralela no interior da
consciência, “império dentro do império”, como critica Espinosa.
Mas temos um problema de investigação, já levantado na história da
psicologia, para o qual não há respostas sociais satisfatórias, sob os
critérios do materialismo histórico e dialético, embora Uznadze
(1961/1966) e Bassin (1968/1981) tenham lançado bases importantes.
Em suma, os principais desafios que pude apontar são da ordem
da estruturação teórica, das bases metodológicas e psicológicas para
que possa haver uma prática psicoterapêutica orientada pelas contri-
buições de Vigotski à psicologia. Primeiro, não deixe de ser orientada
por tais contribuições gerais. Segundo, que não se omita das temáti-
cas específicas próprias da prática social psicoterapêutica, algumas
delas nem tão específicas assim. Em seguida, direi algumas poucas
palavras finais sobre o papel social do terapeuta que estamos perse-
guindo.
20
5 Algumas palavras para continuar o diálogo
“proximal” em língua portuguesa
21
fazer o bem? Era preciso números, estatísticas, eram demandadas de-
núncias e identificação de culpados. Então, entendam estas coisas his-
toricamente, como nos recomenda Vigotski.
Os três “momentos (psico)operacionais” interligados a que me
referi, retirei do próprio bom-senso quanto às práticas terapêuticas
em geral, o qual não pertence a uma “abordagem” ou outra. Mas são
patrimônio cultural de toda a sociedade. É preciso uma boa acolhida,
é preciso diagnóstico mais preciso possível, e é preciso intervir. Eis
que de um ponto de vista vigotskiano, acolher já é uma intervenção,
diagnosticar já é intervir, e intervir mais agudamente exige que não
se perca ainda a acolhida, a relação de confiança e que não se deixe
de retomar seguidamente o próprio diagnóstico. Pois somos o que
somos em relação social, e em relação nos potencializamos, nos tor-
namos outros no próprio processo. Que recursos simbólicos, semân-
ticos podiam ser utilizados, já que a consciência se estrutura seman-
ticamente?
A brincadeira era um deles. Mas a palavra seguia sendo central:
escutando a brincadeira, lendo a brincadeira, conversando com a cri-
ança no interior dela, pedindo para participar, aceitando participar
quando pedido... Como diz o próprio Vigotski: “a palavra [significa-
tiva] é microcosmo da consciência humana” (1934/ 2001, p. 486). Ao
terapeuta cabe tanto dizê-la em sua modalidade dialógica quanto in-
terpretá-la na mesma modalidade. A arte do diálogo não foi criada
por nenhuma psicologia. É prática milenar que remonta aos “diálo-
gos socráticos de rua”, analisados por Bakhtin (1963/1997). E a antes
quando antigos sábios gregos se desafiavam constantemente por
enigmas que deviam proferir e decifrar (Colli, 1988). A fala não é pro-
priedade de qualquer “corrente” psicológica, é processo que nos faz
humanos. Em psicologia, sob orientação das contribuições de Vigo-
tski, temos nossa visão sobre como ela funciona nos planos interpsí-
quico e intrapíquico. Não nos cabe estabelecer modismos, como se
nossa visão fosse novo produto para concorrer no mercado da saúde
humana. Cabe avaliar criticamente os recursos existentes, compreen-
der se são objetivamente válidos, sob a prova da prática social ao
longo da história. E direcioná-los a orientação distinta – à emancipa-
ção humana. Mas quanto a isso só poderemos avançar tendo em vista
critérios expostos ao longo deste trabalho. Que se constitui como con-
vite à discussão coletiva, desde sua origem e também no momento
histórico atual.
22
5 Referências
“proximal” em língua portuguesa
*A. N. Leontiev morreu em 1979, mas foi colocado o ano da primeira publicação em russo,
não temos a data em que foi originalmente escrito.
23
Uznadze, D. N. (1961*/1966) The psychology of set. New York: Consult-
ants Bureau. 251 p.
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*Dmitri Nikolaevitch Uznadze viveu de 1886 a 1950. 1961 é a data da primeira publicação
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24
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