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fev-2023-grad-ead/)

1. Introdução
Seja bem-vindo(a) à disciplina de  . Ao longo da história da Filoso�a, três
grandes questões se apresentam incessantemente. A primeira delas refere-se
à questão do conhecimento do “ser” e do que é possível conhecer (metafísica,
lógica e epistemologia). A segunda, se dedica a analisar como podemos convi-
ver e criar regras de convivência e acordos comunicativos com coletivos hu-
manos e a sociedade (�loso�a política e da linguagem). Já a terceira, refere-se
ao desa�o de se pensar como a vida deve ser vivida, quais atitudes, valores e
decisões devem ser implementadas para que nossas vidas sejam signi�cati-
vas, na relação que mantemos internamente para com a nossa subjetividade e,
externamente, para com o Outro.

Ocorre na Ética as investigações sobre essa terceira grande questão e nela se-
rão abordados as inúmeras teorias normativas que foram produzidas ao longo
da história da �loso�a e que, até hoje, suscitam debates acalorados e recebem
atenção incessante da sociedade – isto porque, as decisões éticas que toma-
mos podem vir a impactar positiva ou negativamente a todos. Para esse �m,
teremos nessa disciplina a investigação sobre os fundamentos da ética, as
inúmeras teorias éticas que foram produzidas ao longo do tempo e as interre-
lações que essas teorias possuem com o conhecimento e a política.

Por meio desses temas investigativos, esperamos apresentar fundamentos


importantes a respeito de questões contundentes presentes na sociedade, tais
como as assimetrias presentes entre em seres humanos (racismo), a criação
de um mínimo básico de respeito para a condição humana (direitos humanos),
a dignidade da pessoa humana em sua diversidade (políticas de inclusão) ou a
relação do homem com seu entorno (as questões ambientais).
2. Informações da Disciplina
Ementa
Vislumbraremos, nessa disciplina, uma ótica ampla sobre os fundamentos da
Ética, de suas bases conceituais, aproximações e divergências com relação à
moral. Para tanto, teremos a oportunidade de conhecer as diversas teorias éti-
cas que surgiram ao longo da história ocidental. Nesse sentido, veremos as
origens da ética na Filoso�a grega antiga (so�stas, Sócrates, Platão,
Aristóteles, epicurismo e estoicismo), bem como a forte in�uência do pensa-
mento cristão nos mecanismos sociais medievais (Agostinho e Tomás de
Aquino). Contextualizaremos o desenvolvimento do conceito e prática da ética
e da moral segundo alguns autores da �loso�a renascentista, tais como Pico
Della Mirandola, Nicolau Maquiavel, Michel de Montaigne, como também no
decorrer de todo o período moderno, com o racionalismo de René Descartes e
Baruch Spinoza; com o empirismo de Thomas Hobbes, John Locke e David
Hume; e com o criticismo de Immanuel Kant. Por �m, em direção às teorias
contemporâneas, do século XIX em diante, passaremos pelo utilitarismo de
Jeremy Bentham e Stuart Mill, juntamente com as contribuições de Arthur
Schopenhauer e Friedrich Nietzsche, entre outros representantes que favore-
cem e manifestam a elaboração do conceito de ética no mundo hodierno.

Objetivo Geral
Re�etir sobre as principais teorias éticas da história ocidental (antiga, medie-
val, moderna e contemporânea) para o desenvolvimento de habilidades e
competências que capacitem a formação pedagógica do pro�ssional em
Filoso�a, auxiliando-o a quali�car suas relações e deliberações intersubjetivas
de modo humano, autônomo, crítico e justo.

Objetivos Especí�cos
• Compreender os mecanismos estruturais e epistêmicos da Ética.
• Entender quais são os objetos e �nalidades da Ética.
• Apreender os principais segmentos �losó�cos do pensamento ocidental,
entre eles, a ética grega, a ética greco-romana, a ética medieval, a renas-
centista, os pressupostos das éticas eudaimonistas, teleológicas e, por
�m, deontológicas.
• Desenvolver habilidades interpretativas para re�etir sobre as principais
questões que movimentam (telos) a vida humana, em suas posturas in-
terpessoais.
• Aplicar os conteúdos estudados criativa e criticamente na prática educa-
cional/ pro�ssional.
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Ciclo 1 – Contribuições Clássicas para a Ética

 Sérgio Ibanor Piva


 Juan Antonio Acha

Objetivos
• Entender os fundamentos conceituais da Ética e sua relação com o con-
ceito da Moral.
• Compreender o objeto material e o objeto formal da Ética.
• Apreender as doutrinas éticas fundamentais que se desenvolveram na
Antiguidade: so�stas, Sócrates, Platão, Aristóteles, epicurismo e estoicis-
mo.

Conteúdos
• A Ética como a dimensão da Filoso�a que oportunamente se dedica à re-
�exão sobre os problemas morais.
• Diferenças entre Ética e Moral.
• O problema da Moral e a relação producente entre a ética normativa e o
fenômeno moral.
• A tradição �losó�ca de Sócrates e Platão, e o desenvolvimento do con-
ceito do Bem como princípio norteador da justiça.
• A Ética dos so�stas como convenção social: o papel pedagógico do  nó-
mos.
• As virtudes éticas e dianoéticas (areté) em Aristóteles.
• O  telos  (�nalidade) da vida ética em Aristóteles: a busca pela felicidade
como eudaimonia (carência de estruturas).
• As propostas éticas do epicurismo e do estoicismo.

Problematização
O que é a Ética e qual a sua relação com a moral, encontros e desencontros?
Qual a causa de seu surgimento e o contexto social parturiente? O que se en-
tende e como podemos gerir os problemas da ética normativa e dos fenôme-
nos morais? Quais as divergências e proximidades entre a ética de Platão e
Aristóteles? Estoicos e Epicuristas apresentam propostas �losó�cas que ori-
entam a questão da ética no contexto helênico: o que isso acarreta ao contex-
to histórico e à vida humana?

Orientação para o estudo


A área de estudo da Ética é complexa e vasta. Por conta disso, ao longo da
história, diversas modalidades éticas foram apresentadas, resultando em
inúmeras vertentes. Orientamos, para este ciclo, ler as informações iniciais
contidas na Introdução da disciplina, bem como aprofundar a distinção entre
“ética” e “moral”. Para tanto, faça uso de algum dicionário de Filoso�a ou pro-
mova pesquisas na internet.

1. Introdução
Neste primeiro ciclo de aprendizagem veremos não somente os fundamentos
da Ética e sua relação com a Moral, como também conheceremos as princi-
pais doutrinas éticas da Filoso�a grega, especialmente com os So�stas,
Sócrates, Platão, Aristóteles, Epicurismo e Estoicismo. É fundamental visitar-
mos as origens da Ética na Antiguidade para que possamos então compreen-
der o desenvolvimento do pensamento ético posterior: no mundo medieval,
moderno e contemporâneo.

Bons estudos!

2. O que é Ética?
Do ponto de vista etimológico, o termo “Ética” vem de duas palavras gregas: a)
Ēthos (ἦθος – com “eta”), que signi�ca “morada”, “abrigo”, “lugar onde se habi-
ta” etc.; b) Éthos (ἔθος – com “épsilon”), que signi�ca “costume”, “hábito”, “uso”
etc. Do primeiro termo (ēthos) decorre, enquanto raiz semântica, o signi�cado
do segundo (éthos): ou seja, é justamente da realização daqueles comporta-
mentos que se repetem no “lugar onde se habita” que nascem os “costumes” e
os “hábitos”, que moldam, por sua vez, a personalidade e o caráter dos indiví-
duos e dos grupos. De acordo com Menezes (2010, p. 6),

esses termos estão relacionados entre si, uma vez que um [ēthos] é o ponto de parti-
da para algumas normas de comportamento, enquanto o outro [éthos] é o resultado
de comportamentos que se transformaram em costumes. Um produz o outro que,
por sua vez, é fonte do outro.

Em síntese, a ética seria a ciência relativa ao caráter e aos costumes.

Do ponto de vista �losó�co, a Ética seria aquela área que tem por objetivo o juí-
zo de apreciação que distingue o “bem” e o “mal”, o comportamento correto do
incorreto, em suas mais diversas linhas e correntes. Segundo Vázquez (1995, p.
12), “ética é a ciência do comportamento moral dos homens em sociedade. Ou
seja, é a ciência de uma forma especí�ca de comportamento humano”. Para
Vaz (1999, p. 61), trata-se de “uma ciência dos costumes transmitidos na socie-
dade, dos estilos permanentes do agir dos indivíduos (hábitos), bem como da
comprovação crítica dos novos valores que a evolução da sociedade faz sur-
gir”.

No entanto, nesse esforço de de�nição da ética, poucas frases conseguiram


imprimir uma ideia tão signi�cativa quanto o do famoso jargão anônimo da
Idade Média, provavelmente datado por volta do ano de 1050: “ethica est ars
bonum faciens operatum et operantem”; ou seja, “ética é a arte que torna bom
àquilo que é feito e quem o faz” (Anônimo apud MARCHIONNI, 1999, p. 33). Em
outras palavras: trata-se da arte e da ciência do bom – do esforço repetido e do
hábito (“ēthos” e “éthos”) que leva à excelência do agir.

Mas a ética pode ser considerada uma ciência? De acordo com Menezes
(2010), por possuir tanto um objeto material, como um objeto formal, a Ética
pode ser considerada uma ciência: enquanto objeto material, volta-se para a
análise da moralidade dos “atos humanos”; enquanto objeto formal, utiliza-se
dos métodos sintético-indutivo e analítico-dedutivo. Para Maýnez (1944, p. 14,
tradução nossa),

o objeto que a ética, enquanto disciplina �losó�ca, se propõe de�nir e explicar, é a


moralidade positiva, ou seja, o conjunto de regras de comportamento e formas de
vida através das quais tende o homem a realizar um dos valores fundamentais da
existência.

É neste ponto que reside a importância da ética: os princípios éticos


constituem-se enquanto diretrizes, pelas quais o homem rege o seu comporta-
mento, tendo em vista uma moral. Portanto, a importância da ética confunde-
se com sua função: é a parte da �loso�a que se dedica a pensar os atos huma-
nos e os seus fundamentos – isto é, uma moral.

3. Ética e moral: diferenças


O subtítulo anterior nos coloca diante de uma distinção fundamental: entre
ética e moral. Embora utilizados indistintamente, especialmente pelo senso
comum, os conceitos de ética e de moral não são iguais e, por isso, carregam
aspectos divergentes quando o assunto é a sua aplicabilidade. O que seria en-
tão um sujeito “ético” ou “antiético”? E em que sentido ele se distinguiria de
um indivíduo “moral” ou “imoral”? Os textos seguintes apresentam, de forma
didática e fundamentada, elementos que nos ajudarão a responder as questões
mencionadas.

 Pronto para saber mais?

O primeiro texto indicado, de Eduardo Dias Gontijo (2006), Os termos


“Ética” e “Moral” (http://pepsic.bvsalud.org/pdf/mental
/v4n7/v4n7a08.pdf), Já o segundo, de Maria
Thereza Pompa Antunes (2019), Ética, obra que está disponível na
Biblioteca Virtual Pearson, você deverá ler as .
4. Moral
Schopenhauer diz que instituir moral é simples, o difícil é fundamentá-la.
E Wittgenstein acrescenta, instituir moral é simples, fundamentá-la impossí-
vel.

Vásquez (2007, p. 19) diz que os problemas éticos se caracterizam por sua ge-
neralidade e se diferenciam dos problemas morais da vida cotidiana, que são
os que têm relação com as situações concretas. A Ética, como Filoso�a moral,
serve para fundamentar ou justi�car a forma de comportamento moral. A mo-
ral diz sobre o modo de comportar-se do ser humano, que, por natureza, é his-
tórico, ele é um ser de liberdade e responsabilidade ética. É um ser que não
nasce perfeito, tem como característica produzir-se e aperfeiçoar-se mediante
suas ações. O ser humano vive como uma pessoa quando é senhor de si mes-
mo; sem liberdade de escolha lhe é impossível a responsabilidade ética. A mo-
ral está presente em toda coletividade na forma de regulamento do comporta-
mento social, ela tem uma dimensão social, mas essa realidade não para no
binômio homem/sociedade; o ser humano tem interesses pessoais além dos
coletivos. A moral, nesse sentido, deve estar baseada na responsabilidade pes-
soal.

Para conceituar o termo moral, devemos partir da ideia de que existe uma sé-
rie de morais concretas com características históricas, todas elas compostas
de regras que orientam o comportamento, sendo, portanto, normativas. Essas
regras fazem referências a ações concretas: não mentir, não roubar, não enga-
nar, não desrespeitar os pais, os maiores etc. E, como contrapartida, estão as
ações morais, que fazem referência às normas: ser solidário com quem preci-
sa, não jogar lixo na rua, não perturbar o descanso dos vizinhos com sons al-
tos ou gritos, dar bons exemplos aos menores etc., o que, muitas vezes, supera
o alcance da norma. As normas impõem um comportamento moral e esses
atos devem estar em consonância com elas.

Também devemos considerar que a Ética não cria a moral; ela procura deter-
minar a essência da moral. A Ética é concebida como a ciência da moral.
Diferença de moral e moralidade
Segundo Vásquez (2007, p. 66), existe uma distinção entre moral e moralidade:

A moral tende a transformar-se em moralidade devido à exigência de realização


que está na essência do corpo normativo; a moralidade é a moral em ação, a moral
praticada. Por isso, lembrando que não é possível levantar um muro instransponí-
vel entre as duas esferas, cremos que é melhor empregar um termo só – o da moral
como se costuma fazer tradicionalmente e não dois. Mas, deve �car claro que se
utilizamos um só, com ele se indicam os dois planos da moral, o normativo ou
prescritivo e o prático ou efetivo, ambos integrados na conduta humana concreta.

Diferentes sociedades, diferentes concepções morais


Como diz Vásquez (2007, p. 67), “A moral possui, em sua essência, uma quali-
dade social”. Toda sociedade, ainda as mais primitivas, possuem normas mo-
rais que convivem com outras normas, as jurídicas, as religiosas, técnicas etc.,
e todos os indivíduos adotam uma concepção moral determinada pelo sim-
ples fato de pertencer a uma sociedade. Toda mudança radical na estrutura
social traz consigo uma mudança na moral. A História apresenta uma
sequência de morais que correspondem às diferentes sociedades que se suce-
deram no tempo. É importante esclarecer que essa linha não deve ser neces-
sariamente ascendente, como a do conhecimento cientí�co, social ou cultural.
Toda sociedade em seu momento teve códigos morais, e estes podem ser con-
siderados avançados ou de�cientes, independente do momento histórico. As
sociedades escravistas podem ter sido as piores, mas, se comparadas às que
aceitavam o canibalismo, foram melhores; mesmo assim foram péssimas.

Na realidade cotidiana, percebemos que algumas comunidades (gens) progre-


diriam mais que outras, tiveram melhores normas morais, na medida em que
estimularam a responsabilidade dos atos dos integrantes. Portanto, uma soci-
edade é mais elevada em seu desenvolvimento moral quanto maior seja o grau
de liberdade e responsabilidade que todos os seus membros têm. É verdade
que na sociedade há uma série de padrões que modelam o comportamento so-
cial dos indivíduos, e que estes variam de uma para outra, mas a sociedade é a
união de homens livres que, com suas relações, a constroem. A sociedade não
existe sem os indivíduos concretos, e estes também não existem fora do soci-
al. Como alerta Vásquez (2007, p. 67), não devemos considerar a sociedade co-
mo algo que existe em si e por si, como uma realidade substancial que se sus-
tenta independentemente dos homens que a formam.

A moral é fundamental para garantir a ordem ou a harmonia da sociedade, ela


regulamenta a conduta entre os homens. Os indivíduos que compõem a socie-
dade aceitam os valores, as normas que a distinguem, e se submetem livre-
mente a eles.

A moral tem uma concordância com o Direito, ambos baseiam-se em regras


que visam organizar a partir do ponto de vista da conveniência a maioria das
ações humanas. Porém, diferenciam-se no fato de que, enquanto o Direito ga-
rante o cumprimento do sistema social em vigor, a moral procura fazer com
que os indivíduos que compõem a sociedade harmonizem de maneira consci-
ente, voluntária e livre seus interesses pessoais com os interesses coletivos.

As idéias, normas e relações sociais nascem e se desenvolvem em correspondên-


cia com uma necessidade social. [...] A função social da moral consiste na regula-
mentação das relações entre os homens (entre os indivíduos e entre o indivíduo e a
comunidade) para contribuir assim no sentido de manter e garantir uma determi-
nada ordem social. Esta ação também se cumpre no Direito. Graças ao Direito, cujas
normas, para assegurar o seu cumprimento, contam com o dispositivo coercitivo
do estado, assim consegue-se que os indivíduos aceitem – voluntária ou involunta-
riamente – a ordem social que é juridicamente formulada. Mas isso não considera-
do su�ciente, procura-se que os indivíduos aceitem de forma íntima e livremente,
por convicção pessoal, os �ns, princípios, valores e interesses dominantes em uma
determinada sociedade. Tal função social que a moral deve cumprir (VÁSQUEZ,
2007, p. 69).

A moral acontece em dois planos: o normativo e o factual. No primeiro, encon-


tramos as normas, regras e princípios que exigem obediência e, no segundo,
estão os atos humanos denominados morais que têm relação com esses prin-
cípios.

O enriquecimento da vida moral acarreta um aumento de responsabilidade in-


dividual, e isso depende do exercício da liberdade e da responsabilidade hu-
mana. Quem não tem liberdade não pode ser responsável pelos seus atos, por
isso a massi�cação dos dias de hoje apresenta-se como impedimento para o
progresso da moral.

Figura 1 Astreia, divindade que difundia entre os homens sentimentos de justiça e de virtude.

Astreia, �lha de Zeus e Têmis. “Segundo Grimal (1997, p. 51), ‘ela espalhava entre os homens os sentimen-
tos de justiça e de virtude. Isto passava-se na tempo da Idade de Ouro. Mas depois que os mortais degene-
raram e a inclinação para o mal se espalhou pelo mundo, Astreia subiu de novo ao céu’” (SUPREMO
TRIBUNAL FEDERAL, 2012).

Diferentes usos do termo moral


Cortina e Martínez (2005, p. 13) alertam sobre a pluralidade de signi�cados que
o termo moral possui na linguagem atual: “O termo moral é utilizado hoje em
dia de maneiras muito diferentes, dependendo dos contextos. Essa multiplici-
dade de usos dá lugar a muitos mal-entendidos”.

Frequentemente utilizamos esse termo como adjetivo: “fulano é imoral”. Como


adjetivo estamos fazendo um julgamento das ações dos indivíduos na medida
em que estes não respeitam valores estabelecidos, normas ou princípios con-
sagrados como morais.

Outras vezes, ele é utilizado como substantivo; “a moral” equivale a um con-


junto de ordens, normas de conduta, proibições e permissões relacionados à
vida boa para um determinado grupo social. Assim, o termo “moral” equivale à
forma de vida no sentido coletivo, como norma correta de conduta.
Outro uso do termo “moral” como substantivo faz referência ao código de con-
duta pessoal ou de alguma instituição: “fulano tem uma moral muito rígida”.
Tais instituições impõem uma moral muito rigorosa, ou carecem de moral.
Dessa forma, o termo faz referência ao código moral que inspira a conduta do
indivíduo ou da instituição.

Também é normal ouvir a palavra “amoral”. Esse termo reúne o pre�xo “a”
(acéfalo, privação) e a palavra “moral” (o termo se refere aos campos da con-
duta humana e tem a ver com os princípios que orientam a conduta do ho-
mem), ser amoral signi�ca não possuir um código moral. Cuidado, essa pala-
vra não é sinônimo de imoral. A conduta dos animais é amoral, ou seja, não
tem relação com a moralidade que rege a sociedade de seres humanos, em que
são moralmente maduros, cada um é senhor de seus atos e é responsável por
sua conduta moral. A invenção da bomba atômica é em si um descobrimento
cientí�co amoral. O uso no caso do bombardeio americano ao Japão foi imo-
ral. Um tem relação com o desenvolvimento de um princípio físico e o outro
com o uso destruidor desse princípio, com a intenção de matar e destruir.

Pessoas imorais são aquelas que, reconhecendo a validade das normas e dos
valores da sociedade, os infringem, priorizando seu próprio interesse.

Outro termo de uso frequente que tem relação com moral é: “ter a moral bem
alta”; nesse caso, refere-se à con�ança, à coragem que tem o indivíduo para fa-
zer frente a um determinado desa�o. A moral deixa de ser um dever para re-
�etir uma determinada atitude.

Outro uso frequente do termo “moral” como substantivo, no sentido de moral


como “a ciência que trata do bem geral da comunidade”, faz referência àquele
conjunto de normas estabelecidas e de caráter normativo que regem à convi-
vência social. A mesma tem um caráter histórico. Sofre progressos na medida
em que se amplia o campo de atuação, ou seja, que se universaliza.

Atos morais
Os atos morais são atos essencialmente humanos. Neles distinguimos três
elementos: objeto, �m e circunstâncias.
São motivados por uma eleição relacionada com a pergunta “por quê?”, suce-
dida pela indagação “para quê?”, relacionada à �nalidade do referido ato. A
consciência das possíveis consequências de nossos atos é importante para a
valoração moral. Os atos morais devem ser realizados de forma voluntária, po-
dendo escolher realizá-los ou não.

O ato humano implica uma estrutura baseada nos seguintes princípios:

1. : é um princípio fundamental, já que não podemos querer al-


go se não temos conhecimento de sua existência. Assim, o conhecimento
intelectual é indispensável para a realização do ato moral.
2. : é voluntário. Todo ato moral deve ser voluntário e para isso de-
vemos prever de forma antecipada as consequências de tal ação.

A liberdade é componente essencial; sem ela estaríamos ao nível animal. Para


que exista o ato moral, devemos ser responsáveis pelo mesmo.

Como disse o Papa João Paulo II (2013): “Nenhum homem pode esquivar-se às
perguntas fundamentais: Que devo fazer? Como discernir o bem do mal?”.

O bom como valor moral


Vásquez (2007, p. 135) diz que todo ato moral inclui a necessidade de escolher
entre vários atos possíveis. Todo ato moral no sentido positivo é um ato valio-
so. Mas, o que é bom? Lembremos que, para Sócrates e seus principais discí-
pulos, o bom é o absoluto, incondicionado. Na Idade Média, o bom concorda
com a vontade de Deus. O bom tem concordância, então, com a razão ordena-
dora presente na natureza. Durante a Idade Moderna, esse conceito muda,
condicionado pelo progresso socioeconômico. O problema do que fazer ante
cada situação concreta é um problema prático-moral, mas de�nir o que é bom
tem caráter teórico, é de competência da Ética.
Figura 2 Têmis, divindade grega responsável por de�nir a justiça, no sentido moral

Moral e religião
Toda crença religiosa leva, implícita, uma determinada concepção moral e
uma visão de mundo ou cosmovisão. As grandes religiões, como o
Cristianismo, Budismo e Islamismo, possuem um corpo doutrinar moral, em
geral muito bem elaborado, que o crente deve observar para orientar suas
ações. Nele detalham-se valores, objetivos, normas e virtudes que servirão pa-
ra orientar a ação. Entretanto, a religião não compreende só um código moral;
é uma forma de relacionar-se com o transcendente e ordenador.

A obrigatoriedade moral
A realização da moral é um fato individual, porém a moral responde aos inte-
resses da sociedade, formada pelos indivíduos e sua vida econômica, política,
espiritual e social.

As teorias morais são sistematizações de algum conjunto de valores: princípi-


os ou normas, como é o caso da moral cristã, da laicista, moral protestante etc.
Ante a pergunta: “qual moral deve ser cultivada?”, existem diferentes teorias:
egoístas, utilitaristas, as teleológicas ou deontológicas, formalistas etc.

Todas as teorias morais partem de uma concepção de homem. Muitas vezes


essa concepção é abstrata e a teoria derivada será também abstrata; em outros
casos, estará relacionada às ideias de sociedade e em concordância com a
História. Contudo, seja qual for a concepção de homem, a humanidade sempre
admitirá a obrigatoriedade da moral.
5. Ética normativa e o fenômeno moral
As normas morais são de caráter obrigatório, mas a moral não entra em nossa
consciência como uma “injeção”; pelo contrário, é de responsabilidade pessoal
do sujeito. Ante o caráter normativo da mesma, é preciso responder à questão:
como devo agir ante determinada situação? Os �lósofos morais colocam como
alternativas as “teorias teleológicas” e as “teorias deontológicas”.

As teorias teleológicas (de “telos” que, em grego, signi�ca “�m”) baseiam-se


nas ideias de que o padrão para decidir o que é certo e o errado, o conveniente
e o inconveniente depende da quantidade de bem que a ação vai causar.
Assim, uma ação é boa se produz consequências intrínsecas boas superiores
ao mal produzido.

Como diz Frankena (1969, p. 29), o teologista pode assumir qualquer posição
com relação ao que é o bem no sentido não moral. Frequentemente os teolo-
gistas têm sido hedonistas, relacionando o bem ao prazer. Em Aristóteles
(2002), a Ética teria um caráter propriamente teleológico e não deontológico, e
esclarece, na Ética a Nicômaco, que só pode ser bom aquele que é orientado
para o bem em seus afetos e em suas inclinações.

Já as teorias deontológicas (de “déon”, palavra grega para “dever”) negam a


proposta teleológica, e defendem que existem outras características legitima-
doras do ato moral. Partem de juízos como: “devemos sempre cumprir nossas
promessas, independente das cosequências de dito ato moral”. Defendem que
o caráter especí�co de cada ato diante de cada situação impede que possamos
apelar para uma norma geral que determine o que devemos fazer. Essa posi-
ção é comum a diversas teorias éticas, como a kantiana, as intuicionistas e
contratualistas etc., que analisaremos futuramente. Todas elas postulam a
existência de princípios e deveres morais, independentes de seus efeitos. Para
esses éticos, as ações humanas são boas ou más por sua coerência com esses
princípios, não por suas consequências.

Frankena (1969, p. 39) destaca ainda as teorias ato-deoantológicas, que são


aquelas que não propõem qualquer padrão para determinar o que é certo ou
errado em casos particulares. Os juízos particulares não devem seguir uma
determinada regra. Os ato-deoantológicos não propõem nenhum princípio ori-
entador.

Uma aproximação às teorias éticas é importante para entender o fenômeno da


moral. Dessa forma, sugerimos a leitura do mito O anel de Giges, contido no li-
vro II da A República, em que Platão discute sobre a de�ciência do ser humano
ante a possibilidade de ser imoral porque não terá consequências: PLATÃO. A
República. São Paulo: Martin Fontes, 2006.

Figura 3 O anel de Giges.

Ao tomarmos nota das possíveis distinções entre ética e moral, também per-
ceberemos o quanto esses dois conceitos estão interconectados: versam sobre
o binômio “teoria/prática” e tentam nos lembrar que um se completa no outro.
Enquanto a ética é o princípio de toda e qualquer conduta, a moral é a conduta
do princípio. Na tirinha a seguir, de Bill Watterson, observamos uma síntese
interessante sobre a aplicabilidade dos conceitos de Ética e Moral:

 
(https://mdm.claretiano.edu.br/eti-gp0061-2021-01-grad-ead-p/wp-content
/uploads/sites/792/2020/01/C1-F1.jpg) Figura 4 Calvin and Hobbes.

Agora, para entender melhor a relação entre ética e moral, acompanhe os ví-
deos a seguir:

6. A Ética no contexto da Filoso�a Grega


A partir do século V a.C., a Filoso�a grega ampliou sua área de re�exão: da
pesquisa sobre os princípios e causas da natureza para a compreensão das
questões morais acerca do homem na polis. Vale ressaltar que a ética grega
não estava dissociada da coletividade política; o indivíduo moral era aquele
que se apresentava como membro da comunidade (cidadão). No entanto, deve-
se lembrar também que a cidadania grega estava pautada na igualdade entre
os “iguais” – isto é, entre homens, de idade adulta, �lhos legítimos da cidade;
os demais (mulheres, crianças, estrangeiros e escravos) eram tratados como
“desiguais”. Essa noção seletiva de cidadania, cujas origens encontram justi�-
cava na virtude do aristói (do guerreiro aristocrata), fundamenta-se no vínculo
societário da amizade (philia): é a reciprocidade entre os iguais que fornece a
coesão necessária para manter as relações sociais e a vida coletiva. Nesse
contexto encontram-se as propostas éticas dos so�stas, Sócrates, Platão,
Aristóteles, do epicurismo e do estoicismo.

Com Sócrates (469/470-399 a.C.) e Platão (428/427-348/347 a.C.), a ética ga-


nhou um contorno intelectualista: possuir uma areté (virtude) signi�ca conhe-
cer o Bem e a essência humana, que não residem na corporalidade, mas na al-
ma racional. Enquanto a virtude é compreendida como sabedoria, o vício é en-
tendido como ignorância. No famoso Mito da Caverna (https://livrepensamen-
to.com/2014/02/11/o-mito-da-caverna-de-platao-em-quadrinhos/) de Platão, a
virtude ética coincide com a virtude da ciência, uma vez que o abandono das
sombras da caverna (mundo sensorial) é equivalente ao conhecimento do
Bem, representado metaforicamente pelo sol. Logo, é pela racionalidade – e
não pelos afetos corporais – que se chega à justiça, tanto no plano individual
(cuja natureza irascível e concupiscível passa a ser governada pela razão),
quanto na coletividade (cujo poder político está nas mãos daqueles que estão
aptos a conhecer o Bem e, por isso, governar virtuosamente – os magistrados).

As contribuições éticas dos so�stas (https://brasilescola.uol.com.br/�loso�a


/os-so�stas.htm) – ao contrário das propostas essencialistas de Sócrates e
Platão – pautam-se no aspecto pedagógico da coletividade: a moralidade dos
atos não decorre da areté (virtude) enquanto condição inata do ser humano,
mas da aprendizagem do nómos, isto é, das leis criadas e produzidas pela co-
munidade. É o nómos político-social – e não a virtude da alma – que faz os
homens serem melhores:

O ser político, o viver numa polis, signi�cava que tudo era decidido mediante pala-
vras e persuasão, e não através de força e violência. Para os gregos, forçar alguém
mediante violência, ordenar ao invés de persuadir, eram modos pré-políticos de li-
dar com as pessoas, típicos da vida fora da pólis (ARENDT, 1999, p. 35-36).

O desenvolvimento da ética encontra em Aristóteles (384-322 a.C.) um ponto


de relevância, em especial em sua Ética a Nicômaco. Nessa obra, o �lósofo
parte da premissa de que as ações humanas – independentemente de cada in-
divíduo – almejam um sumo bem, um �m por si mesmo, uma vida feliz (eu-
daimonia), alcançada não somente pelas virtudes dianoéticas (relacionadas
às funções da racionalidade), mas, principalmente, pelas virtudes éticas, que
atuam como princípio moderador (“justa-medida”) das funções volitivas e �si-
ológicas.

De acordo com Epicuro (341-271/270 a.C.), fundador do epicurismo, a ética deve


estar amparada no prazer da alma, superior ao prazer corporal. O prazer ja-
mais poderá ser um mal para o epicurismo – haja vista que o mal é compreen-
dido apenas como dor. No entanto, dependendo da forma em como se buscam
os prazeres, tais ações podem ser tornar males piores. Logo, a função da vida
moral não é exercida pelo prazer corporal, mas pelo prazer da alma – isto é,
pelo cálculo racional aplicado aos prazeres. Em sua Carta sobre a Felicidade,
Epicuro diz:

convém, portanto, avaliar todos os prazeres e sofrimentos de acordo com o critério


dos benefícios e dos danos. Há ocasiões em que utilizamos um bem como se fosse
um mal e, ao contrário, um mal como se fosse um bem (EPICURO, 2002, p. 39).

Por �m, a ética do estoicismo – movimento �losó�co fundado por Zenão de


Cítio (333-263 a.C.) – fundamenta-se no princípio do “viver segundo a nature-
za”, que signi�ca viver de acordo com a conciliação ou apropriação do próprio
ser e daquilo que o conserva (= oikeíosis, impulso da autoconservação). No ca-
so do homem, pelo fato de ser um ente racional, viver segundo a natureza sig-
ni�ca viver conciliando-se com o seu próprio ser racional, conservando-o e
potencializando-o cada vez mais. Bem é o que conserva e potencializa o nosso
ser; mal é aquilo que o prejudica e o diminui.

 Pronto para saber mais?

Para aprofundar todas essas propostas éticas da Filoso�a grega, leia as


da obra Ética Antiga e Medieval (2014), de Polesi, disponí-
vel na Biblioteca Virtual Pearson.
7. Ética no âmbito da Filoso�a Moral
Podemos dizer que o interesse por regular, mediante normas preestabelecidas,
as ações dos seres humanos é tão antigo como a humanidade; formam parte
de todas as sociedades e culturas as prescrições, proibições, códigos e normas
que de�nem sua moral.

Por isso, a Filoso�a Moral ou Ética tem como objetivo esclarecer os juízos mo-
rais, e serve, em última instância, de orientação moral.

Vamos supor que precisemos realizar um juízo ético sobre o problema do


aborto envolvendo fetos anencéfalos (que nascem sem o cérebro) ou referir-
nos ao problema da corrupção. O correto é analisar essas questões à luz de ar-
gumentos racionais e com conhecimento do tema, para estabelecer se a con-
cepção moral que valida a questão mostra boas razões ou não. Da re�exão �lo-
só�ca sobre o tema surgirá uma orientação que pode concordar ou discordar
com a posição moral em questão.

A Filoso�a Moral compreende tanto a Ética como a moral. Ética tem relação
com o “bem”; moral com o “justo”, que impulsiona o conjunto de regras que �-
xam condições de convivência.

Como alerta, segundo Cortina e Martínez (2005, p. 10-11), para compreender


melhor que tipo de saberes constituem a Ética, devemos lembrar-nos da dis-
tinção aristotélica entre saberes:

1. O “saber teorético” é aquele cuja �nalidade é o próprio saber, a verdade, e


cujos objetos são seres que existem independentemente da vontade e da
ação dos homens. Está composto de três grandes ciências teoréticas: a
Física, a Matemática e a Teologia ou Filoso�a primeira, posteriormente
Metafísica.
2. O “saber teórico” (mas não teorético, pois seu princípio ou causa é o ho-
mem como agente) é aquele que se constitui a partir da �nalidade de co-
nhecer a realidade. Para as Ciências Teóricas, seu objeto de conhecimen-
to depende da vontade e da ação humanas.
3. O “saber prático”, que é o que mais nos interessa neste momento, é aquele
que pretende dirigir a atuação humana, o fazer humano. Para Aristóteles,
a sabedoria prática está relacionada à capacidade de justi�car as normas
e valores que ajudam a ordenar a vida em sociedade, que ajudam a viver
de forma ordenada, sem con�itos. O saber prático possibilita viver de for-
ma digna, a viver uma boa vida. Vejamos o que dizem Cortina e Martínez
(2005, p. 11) sobre esse saber:

Na classi�cação aristotélica, os saberes práticos eram agrupados sob o rótulo “�lo-


so�a prática”, rótulo que abarca não só a Ética (saber prático destinado a orientar a
tomada de decisões prudentes que nos leva a conseguir uma vida boa), mas tam-
bém a Economia (saber prático encarregado da boa administração dos bens da ca-
sa e da cidade) e a Política (saber prático que tem por objeto o bom governo da pó-
lis).

Os saberes práticos são aqueles que servem para orientar a vida de forma boa
e justa, que nos auxiliam na hora de agir, contribuindo para adotar a atitude
mais correta ante cada situação particular. Estes são normativos, nos mos-
tram como conduzir a vida de forma justa.

Ainda segundo Cortina e Martínez (2005, p. 10-11), Aristóteles agrupou os sabe-


res práticos dentro da denominação “Filoso�a Prática”. A Ética é concebida
por Aristóteles como um saber orientador para alcançar a felicidade e a vida
boa, assim, está dentro do âmbito da Filoso�a Prática.

8.   Filósofos gregos, elementos fundamentais


da ciência do caráter e dos costumes
Comparato (2006, p. 471-473) explica que os gregos descobriram que a razão
está desdobrada em duas capacidades.

Uma tem a ver com o caráter objetivo, corresponde à capacidade do ser huma-
no de enxergar as essências por trás das formas individuais, e possibilita agir
de acordo com esse conhecimento. Chamaram-na de razão especulativa; por
meio da análise da coisa apreendida se chega à verdade.

A segunda fase da razão tem relação com o agir e o fazer segundo a arte (belo)
e a técnica (o útil). Uma das mais importantes dimensões da razão é sua capa-
cidade ética, com ela organizamos nosso comportamento no mundo, ela serve
para indicar a linha reta.

Sócrates foi o primeiro pensador a colocar que no âmbito da Ética se encon-


tram as noções de felicidade, de virtudes e de caráter.

9. Platão, os diálogos socráticos: a virtude co-


mo sabedoria
Para a tradição socrática e platônica, só o conhecimento do bem poderia diri-
gir a ação justa.

Antes de Sócrates, não existia na Grécia uma re�exão organizada sobre o “ho-
mem moral” a não ser a posição relativista dos so�stas. Ele inicia a re�exão
sobre a Ética, e por isso é chamado “Pai da Ética”. Contudo, devemos apontar o
fato de que, nos períodos anteriores, sempre houve uma de�nição perfeita do
que era o bem comum e o bem individual.

Para os so�stas, a Ética é mera convenção social ou pactos entre os homens;


Sócrates os refuta e também critica os tradicionalistas: os primeiros por não
reconhecer a realidade objetiva dos valores éticos, e os segundos por não se
aprofundar no caráter permanente desses valores.

Com exceção de uns poucos fragmentos de Heráclito e Xenófanes, encontramos


entre os so�stas e e Sócrates (século V a.C.) as primeiras re�exões �losó�cas sobre
questões morais. Com relação aos so�stas, sabe-se que consideram a si mesmos
mestres da virtude, concretamente a “virtude política” ou excelência da gestão dos
assuntos públicos. Mas ao mesmo tempo suas doutrinas �losó�cas defendem – ao
que parece – posições individualistas e relativistas que de fato conduzem ao ceti-
cismo ante a própria noção da virtude política. Eles alardeiam saber como educar
os jovens para que cheguem a ser “bons cidadãos” e ao mesmo tempo negam a pos-
sibilidade de alcançar critérios seguros para saber em que consiste a boa cidadania
(CORTINA; MARTÍNEZ, 2005, p. 53).

Sócrates defende a necessidade de estabelecer critérios racionais para dife-


renciar a verdadeira virtude da virtude aparente defendida pelos so�stas. Essa
doutrina que equipara sabedoria e virtude é denominada “Intelectualismo éti-
co” e está apoiada no pressuposto de que os conceitos morais não são produto
de convenções nem de pactos, porque estão referidos às realidades universais,
às ideias. A bondade em si, a prudência em si, o que é justo em si mesmo, co-
mo todos os outros valores morais, existem por si próprios. O homem, por in-
termédio da razão, os pode de�nir objetivamente e, uma vez conhecidos, os
pode levar para a vida prática. A moral baseada nesses princípios universais
(ideias) deve presidir a vida individual, tanto a do cidadão, como a da Polis.

A Ética socrática é profundamente racionalista. Para esse pensador, só o reto


conhecimento das coisas leva ao homem a viver bem. Seu grande legado está
relacionado a esse saber com uma ordem que emana da natureza das coisas,
da essência delas.

Tanto para Platão como para Sócrates, só o conhecimento do que é virtude po-
de tornar o homem virtuoso. Platão a�rma que só o “sábio” é virtuoso, porque
unicamente conhecendo o que é virtude, ou seja, conhecendo a ideia de virtu-
de é possível ser virtuoso. Hoje essa a�rmação seria no mínimo ingênua, mas
devemos considerá-la no contexto do Mundo das Ideias na Filoso�a platônica
para entender esse raciocínio. Sugerimos a releitura do Mito ou Alegoria da
caverna (PLATÃO, 2006, livro VII, p. 267) para entender melhor o “sábio”, que é
aquele que está em contato com o Mundo das Ideias. Na Ética, como na
platônica, devemos pensar em um bem absoluto, um Bem com
“B” maiúsculo.

Em Fédon, Platão coloca em evidência seu dualismo antropológico, evidenci-


ando que o corpo di�culta o acesso às virtudes e ao verdadeiro conhecimento.
Nesse ponto discrepa de seu discípulo Aristóteles.

Logo no período socrático, Platão começa a trabalhar sua teoria das formas ou
das ideias, colocando a forma do Bem agathós como a forma metafísica supre-
ma. Platão (1999, p. 149) diz que “a alma quando está em si mesma e analisa as
coisas por si mesmas, sem se valer do corpo, encaminha-se para o que é puro,
eterno, imortal, imutável [...]”. Dando continuidade ao pensamento:
Há algum sentido corporal por meio do qual chegaste a apreciar as coisas de que te
falo como a nobreza, a sanidade, a força, em resumo, a essência de todas as coisas,
isto é, aquilo que são nelas mesmas?
Não, o conseguirá claramente quem examine as coisas apenas com o pensamento,
sem pretender aumentar sua meditação com a vista, nem sustentar seu raciocínio
por nenhum outro sentido corporal; aquele que se servir do pensamento sem ne-
nhuma mistura procurará encontrar a essência pura e verdadeira sem o auxílio dos
olhos ou ouvidos e, por assim dizê-lo, completamente isolado do corpo (PLATÃO,
1999, p. 127).

É muito clara a distinção metafísica entre corpo e alma: o corpo é visto como
um cárcere da alma, e o prazer e os sentidos são extremamente desvaloriza-
dos.

Os �lósofos, ao verem sua alma presa ao corpo são obrigados a apreciar as coisas
por intermédio do corpo, como se fosse através de uma cerca ou prisão. Ao senti-
rem que a força dessa ligação corporal consiste em paixões que fazem com que a
alma acorrentada ajude a apertar seus ferros [...]. Consolam-se e a advertem para
não utilizar os sentidos mais do que exige a necessidade, aconselhando-a recolher-
se e encerrar-se em si mesma, a não crer em nenhum testemunho que não seja o
seu próprio (PLATÃO, 1999, p. 149).

A felicidade, eudaimonia
Eudaimonia é um termo formado por o pre�xo “eu” que signi�ca “bem dispos-
to” e “daimon”, “com um poder divino”; “eudaimon” é o adjetivo para “feliz”. No
pensamento grego antigo, ser feliz signi�ca poder usufruir os dons divinos.
Para Platão, a felicidade é produto da sabedoria. O sábio que acede ao mundo
das ideias é então eudaímon: feliz. Contrariamente a esse pensamento, para
Aristóteles a felicidade é uma atividade acessível ao ser virtuoso que respeita
os valores morais.

Esse tema foi comentado por Platão nas obra A República, (2006, 354a) e As
Leis (http://www.�loinfo.bem-vindo.net/plotinus/taxonomy/term/4896) (1991,
livro 5) e citado por Aristóteles (http://www.�loinfo.bem-vindo.net/plotinus
/taxonomy/term/167) em Ética a Nicômaco (2002, livro 1).
A proposta platônica também é diferente da defendida pelo estoicismo
(http://www.�loinfo.bem-vindo.net/plotinus/taxonomy/term/5144); para os
seguidores dessa doutrina, a felicidade (http://www.�loinfo.bem-vindo.net
/plotinus/taxonomy/term/4268) resulta da vida (http://www.�loinfo.bem-
vindo.net/plotinus/taxonomy/term/4404) harmoniosa, mas não é um �m (te-
los (http://www.�loinfo.bem-vindo.net/plotinus/taxonomy/term/5136)), e sim
um estado concomitante. Porém, tanto para Platão como para Aristóteles, a fe-
licidade é o �m da ação humana.

A virtude, aretê

Figura 5 A escola de Atenas (1509-1510), quadro de Rafael, que mostra Platão ao centro.

Em A República (PLATÃO, 2006), Platão, ao reportar-se ás qualidades da cida-


de, enumera as quatro virtudes principais: a sabedoria (sophia), a coragem ou
fortaleza de ânimo (andreia), a temperança (sophrosyne) e a justiça (dikaiosy-
ne). Posteriormente essas virtudes foram chamadas de cardeais, ou seja, fun-
damentais. Platão alerta: não basta conhecer a virtude, devemos também fa-
zer algo voluntariamente para conservar-nos virtuosos.

A República não é simplesmente uma utopia, nem simplesmente uma obra de


Filoso�a Política; envolve um projeto ético-político-educativo. Está baseada
num princípio ético: para que exista uma sociedade justa, esta deve estar go-
vernada por pessoas justas e receber uma educação especí�ca.
Para concluir esse tema, é oportuno citar as palavras de Cortina e Martínez
(2005, p. 57):

Talvez o que mais chame a atenção da teoria ética de Platão seja sua insistência na
noção de um bem absoluto e objetivo – o Bem com maiúscula – que, em sua quali-
dade de Idéia Suprema no mundo das Ideias, constitui a razão última de tudo o que
existe e de toda possibilidade de conhecimento. [...]

Platão a�rma que só os que têm a capacidade e a constância adequadas chegarão a


se encontrar frente a frente com o Bem em si. [...] Quanto às demais pessoas, que
por falta de capacidades naturais não chegarem à contemplação da Idéia de Bem,
encontrarão o tipo de felicidade que lhes corresponde atendendo às capacidades
que têm, sempre e quando, é claro, desempenharem cabalmente as virtudes própri-
as de sua função social.

10. O �m último: a felicidade


Aristóteles expõe suas re�exões éticas na obra Ética a Nicômaco
(ARISTÓTELES, 2002). Também escreveu outras duas obras sobre este tema: a
Ética a Eudemo, que re�ete elementos de seu período de juventude, e a Grande
Moral ou magna moralia, na qual aparecem de forma resumida as ideias cen-
trais da Ética a Nicômaco, a obra Política, que para Aristóteles é um desdobra-
mento da Ética.

Aristóteles inicia a Ética a Nicômaco a�rmando que toda ação humana se rea-
liza visando um �m; o �m que impulsiona a ação coincide com o bem, se iden-
ti�ca com o bem. Ainda assim, alerta o pensador, muitas das ações que o indi-
víduo executa são “instrumentos” para possibilitar a realização do �m. Por
exemplo, o fato de submeter-se aos cuidados da Medicina preventiva tende a
evitar futuras intervenções mais complexas e perigosas, possibilitando um
�m que não é o imediato. Alimentar-nos de forma racional sem cometer ex-
cessos para ter boa saúde também visa a um �m não imediato. A correta ali-
mentação é um instrumento, como a Medicina preventiva, para ter boa saúde,
que é o �m último da ação.

Aqui surge a pergunta: existe algum �m que não seja um instrumento para al-
cançar outro bem mais cobiçado? Aristóteles diz nessa obra que a felicidade é
o bem último. A felicidade é aquele estado a que todos aspiraram por natureza.
A felicidade é um conceito que está identi�cado com a boa vida. O problema é
que não são todos os homens que concebem de forma clara o que é a verdadei-
ra felicidade, muitos, procurando a felicidade, se entregam ao prazer, procu-
ram acumular riquezas materiais, cargos de reconhecimento, honras, enquan-
to a verdadeira felicidade é viver de forma virtuosa, sem cometer excessos.
Quanto maior for o número de virtudes que o indivíduo pratica, mais virtuoso
ele será, e a prática consciente da virtude está diretamente ligada à felicidade.
A felicidade é então o maior dos bens, é um bem em si (ARISTÓTELES, 2002,
livro 1, 1).

Ninguém pode buscar a felicidade pela felicidade; a felicidade não é uma coisa
que pode ser adquirida. Muitos imaginam que, adentrando no mundo dos pra-
zeres, das posses materiais, do poder, podem “comprar“ a felicidade, mas esta
é um bem absoluto, é considerada um bem em si mesmo. Só podemos alcan-
çar a felicidade como consequência de uma vida reta e virtuosa.

No livro 2 da Metafísica (2006), Aristóteles descreve o que entende por virtude


e vício. O homem deve repetir as boas ações, aquelas consagradas como boas.
Praticando boas ações e descartando as erradas, adquire-se um hábito, que,
para Aristóteles, é a Virtude. Por sua vez, se a minha conduta não é a correta e
mesmo assim persisto nela, estarei adquirindo um vício. Virtudes e vícios têm
relação com a conduta escolhida. Todo bom hábito deve ter como farol o ter-
mo médio, que se encontra entre os extremos. Alguns vícios são produto do
excesso, outros, da privação; a virtude escolhe o termo médio. Assim, a virtude
é o termo médio, mas a perfeição que a determina é o Bem. Contudo, não exis-
te uma norma rígida sobre como se comportar perante determinado fato.
Continuamente devemos, racionalmente, tomar decisões corretas. Mesmo que
exista essa necessidade de avaliar continuamente nossas decisões, não pode-
mos nem pensar que Aristóteles aceite a relatividade da virtude. Acontece que
o que é termo médio para uns pode ser extremo para outros e vice-versa.
Ora, realmente parece haver diversas �nalidades visadas por nossas ações; entre-
tanto, ao elegermos algumas delas, por exemplo, a riqueza, ou �autas e instrumen-
tos em geral – como um meio para algo mais, �ca claro que nem todas são �nalida-
des completas, ao passo que o bem, mas excelente (o bem supremo) parece algo
completo. Conseqüentemente, se houver alguma coisa que, por si só, seja a �nalida-
de completa, essa coisa – ou se houver várias �nalidades completas, aquela entre
elas que for a mais completa será o em que é o objeto da nossa investigação. Ao nos
referirmos a graus do completo, queremos dizer que uma coisa buscada como uma
�nalidade em si mesma é mais completa do que uma buscada como um meio para
alguma coisa mais e que uma coisa jamais eleita como um meio para qualquer coi-
sa mais é mais completa do que as coisas eleitas tanto como �nalidade em si mes-
mas quanto meios para aquela coisa; em conformidade com isso, chamamos de ab-
solutamente completa uma coisa sempre eleita como uma �nalidade e nunca como
um meio.
Ora, a felicidade, acima de tudo o mais, parece ser absolutamente completa nesse
sentido uma vez que sempre optamos por ela mesma [...]. Mas ninguém opta pela
felicidade pela honra, pelo prazer etc. [...] (ARISTÓTELES, 2002, p. 15-16).

Virtudes éticas e dianoéticas


Para explicar as virtudes, Aristóteles (2002) parte da análise da ação humana.

Aristóteles, com relação às ações humanas, determina que existem três aspec-
tos principais presentes nelas: a volição, a deliberação e a decisão.

Sobre a primeira, a vontade, Aristóteles a�rma que está orientada para o bem.
Portanto, a preocupação não é sobre o que queremos, e sim sobre que cami-
nhos escolhemos para alcançar o bem, que já está determinado na própria na-
tureza humana. O segundo aspeto sim é fundamental: a deliberação, como e o
quê fazer; este inspira o terceiro, a decisão.
Mas como a felicidade é uma certa atividade da alma em conformidade com a vir-
tude perfeita, é mister examinar natureza da virtude por isto provavelmente nos
ajudará em nossa investigação da natureza da felicidade. Acresça-se que aprece
que o verdadeiro estadista é alguém que realizou um estudo especial da virtude,
visto ser sua meta tornar os cidadãos indivíduos virtuosos e respeitadores da lei.

A virtude que temos que considerar é a virtude humana, visto que o bem e a felici-
dade que nos dispomos a buscar foram o bem humano e a felicidade humana. Mas
a felicidade humana signi�ca, a nosso ver, excelência da alma, não excelência do
corpo; em coerência com isso de�nimos a felicidade como uma atividade da alma
[...].

Ora, a virtude também é diferenciada em consonância com a divisão da alma (ve-


getativa, apetitiva e racional). Algumas formas de virtude são chamadas de virtu-
des intelectuais, e outras virtudes morais. A sabedoria, o entendimento e a prudên-
cia são virtudes intelectuais; a generosidade e a temperança são virtudes morais.
Ao descrever o caráter moral de alguém não falamos que se trata de alguém sábio
ou capaz de entendimento, mas que é uma pessoa moderada ou sóbria. Mas o ho-
mem sábio também é louvado por sua disposição e chamamos virtudes às disposi-
ções dignas de louvor (ARISTÓTELES, 2002, p. 60-63).

Aristóteles continua explicando que as virtudes éticas são resultado de nossos


costumes e hábitos e são dirigidas a dominar a alma sensitiva. Durante toda
nossa existência, vamos desenvolvendo um ethos. Para as virtudes éticas, va-
le a teoria do justo-meio; por exemplo, entre a vaidade (que é um excesso) e a
extrema modéstia (que evidencia falta de autoestima) está o respeito próprio,
que coincide como o justo-meio, que é uma virtude.

As principais virtudes são: fortaleza, temperança e justiça.

As virtudes dianoéticas, relacionadas às funções da alma racional, formam


parte do intelecto (nous) e do pensamento (noésis). Seu desenvolvimento de-
pende da boa educação.

As principais virtudes dianoéticas são: sabedoria e prudência. Segundo


Aristóteles (2002, livro 10-6, p. 274, 275):
A felicidade não pode ser uma disposição do caráter, porque se o fosse poderia ser
possuída por um individuo que passasse a totalidade de sua vida adormecido vi-
vendo a vida de um vegetal, ou por alguém que estivesse mergulhando no mais
profundo infortúnio. [...] Fica claro que a felicidade deve ser considerada uma ativi-
dade desejável em si mesma e não entre aquelas desejáveis a título de meios para
alguma coisa. Mas a felicidade consiste na atividade de acordo com a virtude.

Continuando o raciocínio, vejamos um extrato da obra de Ana Leonor Santos


(2008, p. 39-43), o qual explica a função da educação responsável pela forma-
ção do êthos:
[...] Do (êthos) animal ao humano

A ética deve importar particularmente a alguns seres humanos – aqueles que não
estão sob protecção imediata dos deuses. Mas este conjunto de seres a que a ética
diz respeito é intersectado por um outro, respeitante aos animais, aos quais
Aristóteles aplica o termo êthos.

[...]

No homem: diferentemente do que acontece com os animais, não há um êthos da


espécie humana; no nosso caso, a singularidade manifesta-se também nas diferen-
ças individuais de carácter – justificadas pela ausência de regulação natural da fa-
culdade desiderativa (regulação vigente no mundo animal) –, para cuja formação
contribuem os hábitos adquiridos através da educação. [...] Assim sendo, e apesar
de algumas diferenças individuais devidas à natureza – já que nem todos são
igualmente receptivos à educação –, existe uma dimensão de indeterminação que
vai adquirindo forma graças à educação e que é, porventura, responsável pela for-
mação do êthos numa dimensão que não estritamente psicológica, ao mesmo tem-
po, e pelo mesmo motivo, responsável pela imputabilidade das noções de bem e de
mal ao ser humano, juntamente com a posse da razão e a ausência de auto-
suficiência. Pela posse da razão percebe-se que o homem não é um simples animal;
pela ausência de auto-suficiência ele afasta-se dos deuses. A sua situação é inter-
média: entre um e outros encontra-se o único ser vivo que percebe o bem e o mal, o
justo e o injusto, distinções cujo conhecimento lhe é indispensável na medida em
que nem o seu carácter está determinado pela natureza nem o seu comportamento
é padronizado. Deve, pois, escolher o comportamento a adoptar, após um período de
deliberação, durante o qual se supõe que a percepção ética acima referida exerça
influência, caso tenha sido correctamente adquirida, formando um carácter tempe-
rado.

O ideal grego consistia na beatitude da contemplação. O romano, porém, era o


oposto do grego, caracterizando-se pelo espírito prático.

11. Os so�stas, defensores do “nómos”


Segundo Guthrie (1995, p. 62-69), no século 5 a.C., como consequência das teo-
rias físicas da evolução da vida desde a matéria inanimada, surgiram teorias
que se opuseram às alinhadas à perfeição da “Raça dourada” de Hesíodo.
Essas teorias evolutivas relatam que, no começo os homens viviam como os
animais, não tinham ideia de organização social nem econômica, morriam
em grande número de frio, de fome e de ataque de feras. As necessidades lhes
impuseram a precisão da comunicação racional, aprender a falar simbolica-
mente e a armazenar alimentos para períodos de escassez como o inverno e
épocas de seca. Isso marcou o começo da vida civilizada em comunidade, pa-
ra isso foi fundamental observar o respeito pelos direitos do outro. Esses rela-
tos de corte racionalista referido à evolução humana estão em forte oposição
às teorias religiosas baseadas na idade da perfeição de Hesíodo ou da Idade do
Amor de Empédocles.

Os seguidores das teorias evolucionistas estavam a favor de que o “nómos”


fosse considerado o meio para elevar a vida humana a uma vida civilizada.
Um dos grandes defensores dessa teoria do progresso é Protágoras; na lista de
suas obras encontramos uma que se destaca nesse sentido, Sobre o estado ori-
ginal do homem. Esse pensador so�sta defende que o avanço moral depende
da experiência e da educação. Por tanto, discorda de Sócrates ao defender que
a “aretê” (ou “conteúdo moral”) é uma habilidade adquirida respeitando as leis.

Para Protágoras, então, autodomínio e senso de justiça são virtudes necessárias à


sociedade, que por sua vez é necessária para a sobrevivência humana; e nomoi são
as linhas-mestras �xadas pelo Estado para ensinar aos cidadãos os limites dentro
dos quais podem se movimentar-se sem violá-las (GUTHRIE, 1995, p. 69).

Segundo Guthrie (1995, p. 57), o termo “nomo”, “norma escrita”, para os pensa-
dores do século 5 a.C. é alguma coisa em que se acredita, que se pratica e se
aceita por certa. Assim é aceito que povos diferentes tenham diferentes no-
mis.

Segundo Heráclito, as leis humanas são sustentadas pelas leis divinas (nó-
mos-physis); para os so�stas elas dependem de costumes e hábitos.

12. Estoicos e a lei natural, período helenista


Enquanto a Grécia viveu seu momento de maior esplendor cultural no século 5
a.C., no período helenista reinou a confusão política e moral. Esses tempos fo-
ram marcados por inúmeras guerras, ruíram as cidades de Atenas, Esparta e
Tebas, enquanto isso, viram surgir novas cidades de cultura grega, entre elas
Alexandria e Antioquia.

Na Filoso�a, podemos destacar diferentes escolas:

a) Os cínicos (400 a.C.), que cultivavam a ideia de que ser feliz dependia
de se liberar das coisas transitórias. Para esses pensadores, a felicidade é
um bem que pode ser alcançado por todos, pois ela não consiste em luxú-
ria, poder político ou boa saúde, e sim em se libertar disso tudo.
b) Os estoicos, cujo fundador é Zenão, e os epicuristas, escola fundada por
Epicuro. Ambos os grupos acreditavam que a Ética e as questões morais
eram mais importantes do que as questões teóricas. Baseavam sua
Filoso�a em um individualismo moral. Os estoicos, em geral, pregavam
uma vida austera, mas os epicuristas defendiam o prazer (hedoné), só que
o prazer que procede do exercício do lógos. No campo da moral proclama-
vam viver conforme a natureza, sendo a natureza o lógos, ou seja, deveria
se viver em concordância com a razão.
c) O neoplatonismo, que conserva traços do movimento inspirado pelos
pré-socráticos, Demócrito e Heráclito de Éfeso.

Os estoicos acreditavam no destino e na resignação ante o irremediável. Como


diz Comparato (2006, p. 109): “É inegável que o pensamento estoico insere-se
na linha histórica das �loso�as de Paci�cação da alma”.

O estoicismo representa a reunião de um grande número de pensadores. Os


primeiros foram Zenão de Cítio (322-264 a.C.) e Crísipo (232-204 a.C.). Cuidado
para não confundir Zenão de Cito com Zenão de Eleia, conhecido por seus pa-
radoxos! Infelizmente não existe nenhuma obra completa desses pensadores;
abundam citações e comentários de seguidores ou detratores, mas faltam os
textos originais. Para todos os estoicos, era muito importante a exaltação da
ordem da natureza.

Ainda segundo Comparato (2006), os estoicos defendem que existe uma ordem
universal superior. Por isso é possível dizer que, para os estoicos, natureza
(physis) e razão (logos) se confundem. A natureza possui um princípio racio-
nal que é responsável por organizar as estruturas do mundo, a vida, em todos
seis níveis, inclusive a humana e a verdade ética. Motivado por esta ideia,
Zenão divide a Filoso�a em: Lógica, Física e Ética. Para ele a virtude consiste
em viver em concordância com a natureza.

Cortina e Martínez (2005, p. 61-63) falam que sob a denominação de estoicos


agrupam-se as doutrinas �losó�cas de um amplo conjunto de autores gregos e
romanos que viveram nos séculos III a.C. e II d.C. Eles julgaram necessário in-
dagar em que consiste a ordem do universo para determinar qual devia ser o
comportamento correto dos seres humano. Acreditam que deve haver uma
Razão primeira comum, que será ao mesmo tempo a Lei que rege o universo.
Essa razão cósmica, esse logos, é providente, ou seja, cuida de tudo o que exis-
te. O sábio é o que consegue conquistar os bens internos e desprezar os exter-
nos, chegando a ser, nas palavras de Sêneca, “artí�ce de sua própria vida”. Já
aparece aqui, ainda que de forma rudimentar a concepção de liberdade como
autonomia, que será desenvolvida posteriormente por Santo Agostinho.

Natureza como lei


Está presente em diversas culturas da Antiguidade Clássica a concepção de
que existem leis universais ou um direito que é comum a todos.

Aristóteles (2005) escreve na obra Retórica que existem leis particulares dos
povos e leis comuns ao gênero humano. As últimas são conforme à natureza,
pois existe algo que todos, de certo modo, percebemos ser.

Aristóteles (2005, p. 114) cita a a�rmação de Antígona de que tais leis “não são
de hoje nem de ontem, senão que sempre existiram”.

“Natureza”, para Burgos (2007), deriva da palavra latina “natura”, tradução do


temo grego “physis”, substantivo que tem por raiz “nascer, crescer, produzir, re-
produzir etc.”. Mas, para o grego antigo, “natura”, “natureza”, “physis” é tudo o
que existe, é o conjunto da in�nidade de coisas que existem, mas também o
sentido por que surge e vive cada um em particular. A natureza assim enten-
dida sugere perfeição, beleza, espontaneidade, harmonia; é perpassada por leis
que são independentes do homem. Burgos (2007, p. 22) nos diz que “[...] o ho-
mem só pode aceder a elas por intermédio da razão”.
Ainda segundo Burgos (2007), é de Aristóteles a de�nição que diz que também
é natureza o elemento primeiro, imutável, a essência que faz com que as coi-
sas tenham um princípio ativo que lhes empurra para a perfeição do ser.
Burgos (2007, p. 31) escreve: “O conceito de natureza ultrapassa o mundo físico
e alcança o metafísico; por essa perspectiva, natureza é a essência enquanto
princípio de operação” (tradução nossa). Natureza inclui a natureza humana,
abarca a dimensão de alma física e também de alma intelectual, inclui a di-
mensão humana de liberdade. Platão, na República (2006, 486a), explica que
existe uma natureza �losó�ca, physis philósophos, que é inata.

Segundo Comparato (2006), a Ética estoica difundida por Cícero e trazida para
Roma por Panécio se destaca pelos seguintes princípios:

a) A lei natural está acima dos costumes e das leis dos povos, ela não depende da
vontade popular;
b) Viver em harmonia com a natureza;
c) Saber conformar seu próprio interesse com o interesse da coletividade, obser-
vando o bem comum e as leis que emanam da ordem natural;
d) Respeitar ao próximo pelo fato de ser pessoa humana de acordo com a lei natu-
ral implica em não atentar contra os direitos alheios;
e) Só o respeito pela lei natural resguarda as virtudes (amor à pátria, piedade, von-
tade de fazer o bem etc.);
f) O termo Lex toma em Cícero o sentido geral e abstrato de princípio, tal como a pa-
lavra “nómos” na �loso�a grega. A lei se de�ne como “a razão fundamental, ínsita
na natureza, que ordena o que se deve fazer e proíbe o contrário”. A lei verdadeira é,
portanto, a expressão da razão e da justiça. Segue-se que um mandamento injusto,
ainda que revestido de aparência legal, não é lei, senão corrupção dela; assim como
uma receita médica que induz a morte do paciente não é uma verdadeira receita
em essência. Um mandamento pernicioso, votado pelo povo, é tão pouco uma lei
quanto aquele promulgado por uma assembléia de bandidos (CÍCERO apud
COMPARATO, 2006, p. 112-113).

Para viver em harmonia com a natureza, o ser humano, que é um, não pode
ser dividido em alma e corpo como substâncias diferentes desde o ponto de
vista hierárquico como supusera Platão; deve controlar as paixões (a dor, o
medo, o desejo sexual, o prazer pelo prazer). Para alcançar o estágio de sábio, o
ser humano deve controlar sua conduta sendo indiferente, apático aos fatos
exteriores sobre os quais não tem poder nenhum (morte, dores pelo corpo, be-
leza ou feiura de seus traços, riqueza material ou pobreza, condição social
etc.). Para os helênicos, viver em concordância com a natureza consiste, em
última instância, em viver em harmonia consigo mesmo, a�rma Comparato
(2006, p. 110).

Para os Estoicos o sistema físico, o lógico e ético encontram-se uni�cados pela


noção de logos. A Física estoica enxerga o mundo como um ser vivo totalmen-
te racional, governado por uma espécie de Providência racional (pronoia).

A phýsis se apresenta aos olhos estoicos como algo sagrado, evocando a soma
daquilo que é permanente e essencial nos fenômenos naturais, não no sentido
de um Deus criador como o do cristianismo, e sim como princípio de raciona-
lidade que se encontra em todas as coisas, em especial no homem, que con-
tém em si o logoi spermatikoi, ou seja, a capacidade de racionalidade equiva-
lente.

Cícero (2012) sustenta que a beleza e a complexidade do mundo, onde tudo es-
tá em equilíbrio e se ajusta perfeitamente, são provas ontológicas da existên-
cia de uma inteligência superior que tudo governa e ordena. Não foram áto-
mos acidentais os forjadores do mundo como pensaram os epicuristas. Viver
de acordo com a natureza signi�ca respeitar o princípio que opera nela.

Estoicismo e o Estado Universal


Para os estoicos, não existem atos maus em si mesmos; o mal moral sintetiza
a ausência da reta ordem na vontade humana. Nenhuma ação é por si boa ou
má, também não pode ser considerado bom ou ruim o que não é nem virtude
nem vício, já que nos é indiferente. Os estoicos aderem às virtudes cardinais
propostas por Platão: Prudência, Temperança, Fortaleza e Justiça, e prestaram
uma grande atenção a problemas da conduta para alcançar o �m da vida hu-
mana, que é a felicidade. Para isso, ensinam que devemos ser virtuosos (viver
de acordo com a lei da natureza). Entendem que tudo no universo é regido pe-
la lei natural, e o homem racional deve se adaptar a sua própria natureza-
essencial e viver de acordo com as leis do universo.

Os estoicos usaram a alegoria de um cachorro amarrado a uma carroça para


ilustrar nossa realidade: quando ela se movimenta, o cão deve ir atrás dela,
mas isso pode ser feito de duas maneiras: aceitando o fato ou ir sem aceitá-lo,
sendo arrastado pelo pescoço. Tudo o que acontece depende da natureza orde-
nada por Deus. A morte é inevitável e estamos destinados a ela, como a maior
ou menor fama, riqueza, pobreza, dor ou alegria, tudo faz parte do nosso desti-
no.

Eles, os estoicos, são deterministas, nada acontece fora da ordem da natureza.


Tudo tem um signi�cado e uma razão. Para ser feliz, o homem deve aceitar
sua �nidade e seu destino, deve conformar-se com a sua condição de transito-
riedade e fragilidade; a vida humana é passageira se comparada aos milhões
de anos do universo. O sábio estoico é aquele que não nega a sua transitorie-
dade e se acredita eterno, não nega a sua fragilidade e se pensa invulnerável,
já que o engano implica sofrimento. A máxima estoica diz: para evitar o sofri-
mento, devemos aceitar o nosso destino.

Assim, o termo “estoicismo” �cou associado à resistência ao infortúnio e à for-


taleza ante a nossa sensibilidade. No entanto, o pensamento estoico vai muito
além disso: sustentará o amor como fundamento do direito verdadeiro e expo-
rá as bases para idealizar uma sociedade de todos os homens, uma sociedade
universal unida pelo princípio da fraternidade. Ensinará que não deve haver
cidades-estados governadas por diferentes sistemas jurídicos, todas devem
observar ou ter como base o princípio da igualdade de todos os homens que
emerge da Lei Natural. Assim, delineiam as bases do Estado Universal, no
qual as pessoas convivem juntas em harmonia guiadas pela luz da razão.
Iniciam-se desse modo os alicerces do edifício dos Direitos Humanos.

Os estoicos explicam a história que envolve o desenvolvimento da sociedade


da seguinte forma: no começo da história humana, as pessoas conviviam sem
divisão de classes ou nacionalidades. No primeiro estágio social, denominado
Idade de Ouro, não era aceito qualquer tipo de discriminação ou dominação de
um sobre seus semelhantes, uma vez que todos participavam da propriedade
comum dos bens conseguidos. A humanidade era formada por uma comuni-
dade de homens livres e iguais, que foi terminando quando se instalou a troca,
a ganância e o egoísmo.
Assim, o Direito Natural perfeito e absoluto teve de ser substituído por outro,
relativo, que levasse em conta a natureza imperfeita do homem e observasse
as condições reais da realidade social. Para corresponder ao princípio do
Direito Natural, deveria se evitar a discriminação por sexo, raça, condição so-
cioeconômica, promovendo a liberdade e igualdade de todos os homens.

Essa concepção de Direito Natural defendida pelos estoicos teve uma grande
in�uência sobre o ulterior desenvolvimento do Direito; está presente no pensa-
mento dos Padres da Igreja, in�uenciou as instituições jurídicas do Direito
Romano que foi legado para os povos do Ocidente, primeiramente, para logo se
universalizar.

Figura 6 O império romano antigo.

Para Comparato (2006, p. 111-112), Cícero, por exemplo, explicou que o Direito
Civil é simplesmente a manifestação humana da Lei Natural. O verdadeiro
Direito não pode ser diferente em Atenas e Roma por ser de aplicação univer-
sal, imutável, eterna e obrigatória para todos os povos. Observemos o que diz
Comparato (2006, p. 116-117):
A partir do �nal da Segunda Guerra Púnica (218-201 a.C.), inicia-se o chamado pe-
ríodo helenístico da história jurídica romana, em que os jurisconsultos passam a
aplicar o método dialético grego na análise do Direito.

A dialética foi introduzida em Roma pelos estóicos, notadamente por Panécio.

O método dialético consistia, antes de tudo, na classi�cação dos dados da realidade


empírica pelo duplo processo de distinção (diairesis, differentia) e do relaciona-
mento (synthesis), o qual conduzia ao estabelecimento de gêneros e espécies (dis-
tinctio, divisio), ou seja, à formulação de conceitos.

[...] Uma vez formulados os conceitos, o segundo passo da análise dialética consis-
tia em descobrir os princípios ou explicações racionais da realidade. Uma breve
narração das coisas (brevis rerum narration).

Mas a contribuição dos estóicos para a criação da ciência jurídica não se limita à
introdução do método da análise dialética da realidade jurídica. Eles trouxeram
também para Roma uma visão ética do mundo, expressa em um sistema de princí-
pios.

Por exemplo, há uma correspondência, essências entre as virtudes cardinais e as


tendências fundamentais da natureza humana. A justiça, segundo Panécio, corres-
ponde com tendência do indivíduo a viver em harmonia com a humanidade. A
prudência, à tendência natural à descoberta da verdade e ao cumprimento dos va-
lores morais. Por sua vez, a virtude da moderação, ou razoabilidade, que ele deno-
minara sophrossyne, está ligada à tendência natural do respeito à dignidade pró-
pria e à dos outros homens (Aidôs). A qual conduz à beleza moral (kálon) que os ro-
manos traduziram por decorum ou honestum, em oposição à seca utilidade. Na
verdade, nada pode existir de útil na vida que não seja, ao mesmo tempo, justo e ho-
nesto.

O jurisconsulto Celso, segundo Comparato (2006, p. 448), de�ne o Direito como


o Bom e Equitativo. Declara que os princípios jurídicos fundamentais são três:

1. Viver de modo honesto.


2. Não lesar ninguém.
3. Atribuir a cada um o que lhe corresponde.

Esses princípios formam a base do Direito Comum a todos os povos, e surgem


do princípio do Direito Natural. Por serem superiores aos do Direito convencio-
nado, regem todas as ações éticas.

Não podemos encerrar o tema dos estoicos sem falar de um de seus fundado-
res, Epicuro, que tem uma reputação até um pouco injusta por parte de alguns
�lósofos cristãos, pois o consideram estimulador da autoindulgência e da su-
premacia da alegria. Talvez porque nos jardins (comunidade dos discípulos de
Epicuro) reinava a alegria por sobre as outras práticas educativas, a vida sim-
ples guiada pelo sensível desconsiderando a imortalidade da alma no sentido
platônico. No que respeita à moral, esse pensador defende a Regra de Ouro: é
impossível viver uma vida prazerosa sem viver sabiamente e é impossível vi-
ver bem e com prudência (evitando a dor, o perigo, a doença etc.) sem se viver
uma vida agradável. Em realidade, buscava mais a extinção do sofrimento do
que propriamente o prazer.

O mérito de Epicuro está em ter compreendido que havia alguma coisa que recla-
mava um grande número de espíritos e em ter-lhes dado satisfação de uma forma
admirável. Muitos homens, com efeito, preocupam-se acima de tudo em ser felizes;
a felicidade é o último termo das suas aspirações; mas, como são inteligentes, não
podem recusar o terem em conta as exigências do seu espírito; não poderiam ser
completamente felizes se não dessem uma razão plausível da sua regra de procedi-
mento; sentem a necessidade de conceber uma explicação do espetáculo que apre-
sentam os seres e os fenômenos do mundo, mas não apresentam muitas di�culda-
des, não são muito exigentes em matéria de explicação; contentam-se de boa von-
tade com a primeira teoria que lhes propõem, que julgam compreender e que acei-
tam com con�ança; não se dão ao trabalho de a complicar, de a aprofundar; se as
suas doutrinas apresentam algumas contradições, não dão por isso ou não se in-
quietam com a sua resolução. O epicurismo trazia-lhes precisamente aquilo que
eles pediam: “Ó aberta e simples e direta via”, diz Cícero (JOYAU, in Os Pensadores,
1985).

A Lei moral, inspirada no Direito Natural impresso por Deus no homem, deve
ser aplicada na vida cotidiana. O homem deve controlar as paixões (amor, ad-
miração, ódio, tristeza, alegria e desejo) e encaminhar-se para uma vida justa.
Segundo Agostinho (2000), como o homem possui uma vontade livre, é res-
ponsável ante Deus e ante si mesmo por sua vida.
Sócrates, o patrono da Filoso�a Moral, nos últimos dias de sua vida deixa, co-
mo está retratado na obra Críton de Platão, um grande ensinamento sobre o
que é bom, virtuoso, justo e sobre como atuar corretamente ante as desaven-
ças, injustiças etc.

Figura 3 A morte de Sócrates (1787), quadro de Jacques-Louis David.

Segundo Platão (2012), Sócrates está na prisão de Atenas esperando a hora de


sua execução. Analisando a proposta de fuga apresentada por Críton, Sócrates
conclui que nunca devemos agir de forma moralmente errada. Para funda-
mentar sua posição, utiliza três argumentos por meio dos quais mostra que
nessas circunstâncias é errado fugir:

1. Nunca devemos lesar ninguém, e muito menos o Estado e seu conjunto


de leis.
2. Se Sócrates fugisse, estaria desonrando o acordo de aceitar as leis do
Estado, faltando às promessas realizadas.
3. A sociedade e Estado em que vivemos são nossos pais e mestres e é erra-
do desobedecer ao pai e ao mestre.
Sócrates defende os seguintes princípios: nunca se deve agir injustamente,
nunca se deve fazer mal aos outros, nem mesmo como paga do mal que nos é
feito. Se ele se transformasse num fora da lei, nenhum bem estaria fazendo a
si mesmo, a seus amigos e familiares.

Em Críton, Platão exempli�ca a Filoso�a Moral argumentando sobre a forma


como deve ser justi�cada uma importante decisão prática. Sócrates podia ter
fugido da prisão e saído de Atenas, ou pedido clemência aceitando o que os po-
líticos argumentavam contra ele, mas não quis, preferiu cumprir com as leis
da cidade. Preferiu terminar sua vida salvando sua integridade moral.

Leia os Diálogos Platônicos, especialmente o Críton ou o Dever, disponível em: http://www.dominiopubli-


co.gov.br/download/texto/cv000015.pdf (http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto
/cv000015.pdf).

Além das leituras, também sugerimos que assista aos seguintes vídeos:

• Filoso�a: Ética grega (https://www.youtube.com/watch?v=uPFoAvgVrY4)


• Sócrates e a Autocon�ança (https://www.youtube.com/wat-
ch?v=AQU6s5_RJCs&list=PLcjvH2jdkvA6kSWppVjmhLok1mzz99kSf)
• Epicuro e a Felicidade (https://www.youtube.com
/watch?v=FFM45K1Dd9w&list=PLcjvH2jdkvA7p7QVMWg6M53kQjf5-
BKJx)
• Sêneca e a Raiva (https://www.youtube.com/watch?v=oBOw3anyN4I&
list=PL44A80EFC8CC9A053)

Neste momento, re�ita sobre sua aprendizagem respondendo à questão a se-


guir.

13. Considerações
Neste ciclo, estudamos os aspectos conceituais em torno dos termos “ética” e
“moral”, que foram importantes para a compreensão da área de atuação da éti-
ca (objeto formal e material), sua organização e relação com a moral. Além
disso, também passamos pelas propostas éticas de alguns �lósofos e movi-
mentos da antiguidade (so�stas, Sócrates, Platão, Aristóteles, epicurismo e es-
toicismo) com o objetivo de delinear as origens da ética, bem como em que
sentido essa área da �loso�a foi alterada ou complementada pelos autores da
Filoso�a Medieval e do Renascimento.
(https://md.claretiano.edu.br/eti-gs0123-

fev-2023-grad-ead/)

Ciclo 2 – Contribuições Medievais e Renascentistas


para a Ética

Juan Antonio Acha


Sérgio Ibanor Piva
Telma Apparecida Donzelli

Objetivos
• Perceber e examinar criticamente as principais questões éticas deriva-
das da Filoso�a e da Religião cristã.
• Reconhecer os principais representantes da Filoso�a cristã medieval e
suas propostas éticas: Agostinho e Tomás de Aquino.
• Conhecer e compreender as características fundamentais do pensa-
mento �losó�co da Renascença, a partir das mudanças relacionadas a
uma visão do mundo e do homem.
• Conhecer as concepções sobre o ético e o moral de alguns importantes e
representativos pensadores da época renascentista: Pico Della
Mirandola, Machiavel, Paracelso e Montaigne.

Conteúdos
• Os fundamentos da ética medieval: baseada no cristianismo e em suas
construções teóricas e dogmáticas, trazendo à luz temas éticos de pro-
fundo signi�cado, entre eles: a pessoa humana, a razão, a liberdade e a
virtude.
• O pensamento ético de Santo Agostinho e São Tomás de Aquino.
• O Renascimento como um momento ímpar da história do pensamento
humano e os conceitos éticos de alguns de seus principais representan-
tes: Pico Della Mirandola, Machiavel, Paracelso e Montaigne.

Problematização
O cristianismo reitera a ética greco-romana ou propõe novas bases do pensa-
mento ético? Como se dá a construção da ética com base no pensamento reli-
gioso? O renascimento traz elementos culturais novos que movimentam a
hermenêutica social, de que maneira isso se dá e como é aceito pelos repre-
sentantes intelectuais desse período, também conhecimento como humanis-
mo? Quais as principais colaborações de Pico Della Mirandola e Machiavel
para a ética no período do renascimento? A partir de uma investigação �losó-
�ca, como podemos inferir a respeito da ética na renascença, nas propostas
de Paracelso e Montaigne?

1. Introdução
O segundo Ciclo de Aprendizagem abordará as propostas éticas provenientes
do contexto medieval, especialmente com dois representantes, Agostinho e
Tomás de Aquino, como também apresentará as teorias éticas dos autores do
Renascimento, tais como Pico Della Mirandola, Machiavel, Paracelso e
Montaigne. Tais contribuições serão essenciais para a continuidade do estudo
de Ética, uma vez que estabelecerão problemas éticos e morais até então não
tratados pela Filoso�a antiga.

Bons estudos!

2. O problema ético fundamental na Filoso�a


Medieval-Cristã
A Filoso�a Medieval está fundamentalmente baseada nos dogmas do cristia-
nismo. A perspectiva cristã introduziu distinções que romperam com a ideia
grega de uma participação direta e harmoniosa entre nosso intelecto e a
Verdade. Os �lósofos gregos antigos consideravam o homem como um ente
participante de todas as formas de realidade: a) por nosso corpo, participamos
da natureza; b) por nossa alma, participamos da inteligência divina.
Ao contrário dos gregos, a �loso�a cristã parte da concepção judaica de uma
separação entre o homem e Deus, causada pelo pecado original (episódio de
Adão e Eva). Ao serem punidos, por usarem a liberdade para desobedecer a or-
dem de Deus, perderam: a) o contato direto com Deus e com a verdade; b) a
imortalidade de seus corpos; c) a perfeição da inteligência e da vontade, cain-
do para sempre no erro e na ilusão. Pelo pecado, os seres humanos �caram se-
parados da inteligência divina e perderam os laços harmoniosos com a natu-
reza. Dessa maneira, o cristianismo medieval pressupõe que o erro é parte da
natureza humana em decorrência do caráter imperfeito da própria vontade
humana.

Mas o que essa questão tem a ver com a ética e a moral medieval? Em decor-
rência dessa concepção cristã do ser humano, a Filoso�a precisou enfrentar
novos problemas: uma vez que somos considerados seres maculados pelo pe-
cado original ("decaídos"), como poderemos conhecer a verdade? Com a sepa-
ração radical entre homem e Deus, como a criatura, em sua �nitude, poderá
conhecer a verdade in�nita e divina?

Para resolver esse problema, a Filoso�a Medieval recorreu à fé como resposta


central: Deus, em sua misericórdia, prometeu dar a redenção aos homens por
meio de Cristo, para salvá-los de sua condição maculada. Nesta direção, dois
autores deixaram suas contribuições: Santo Agostinho e São Tomás de
Aquino, os quais passaremos a estudar no próximo tópico.

Antes de prosseguir, para complementar seu estudo sobre a ética medieval - e


sua diferença com relação à ética clássica grega -, assista ao seguinte vídeo:

3. Ética Medieval: Agostinho e Tomás de


Aquino
Um dos �lósofos que tentou resolver esse problema ético foi Agostinho de
Hipona (354-430 d.C.), representante da Patrística (https://brasilesco-
la.uol.com.br/�loso�a/patristica.htm), especialmente através da concepção de
liberdade. Para ele, o homem seria uma criatura privilegiada, porque foi feito à
imagem e semelhança de Deus, dotado de três faculdades: memória, inteligên-
cia e vontade. De todas essas faculdades, a mais importante é a vontade, que,
para Agostinho, é criadora e livre (livre-arbítrio). No entanto, embora Deus co-
nheça a ordem das causas que dão origem a todas as coisas (presciente e onis-
ciente), isso não quer dizer que a vontade humana não possa fazer nada por si
mesma. Pelo contrário, por meio do livre-arbítrio o homem pode, inclusive,
afastar-se de Deus (que é a essência do pecado).

A liberdade é própria da vontade e não da razão, no sentido em que a entendiam os


gregos. E assim se resolve o antigo paradoxo socrático de que é impossível conhe-
cer o bem e fazer o mal. A razão pode conhecer o bem e a vontade pode rejeitá-lo,
porque, embora pertencendo ao espírito humano, a vontade é uma faculdade dife-
rente da razão, tendo uma autonomia própria em relação à razão, embora seja a ela
ligada. A razão conhece e a vontade escolhe, podendo escolher até o irracional, ou
seja, aquilo que não está em conformidade com a reta razão (REALE; ANTISERE,
2003, p. 98).

O pecado, portanto, não é algo necessário (ou seja, algo determinado), mas
contingente: resulta não de Deus, mas da vontade do homem - isto é, de seu
livre-arbítrio, ou do mau uso de sua liberdade.

A partir dessa noção de livre-arbítrio, Agostinho desenvolveu sua teoria dos


"tipos de mal", que são três: a) Mal físico, caraterizado pelas doenças, ferimen-
tos, moléstias etc.; b) Mal metafísico, compreendido como a limitação da pró-
pria condição mortal do homem; c) Mal moral, fruto do mau uso do livre-
arbítrio (escolhas), o único tipo de mal que é de autoria humana. Logo, o mal
moral é fruto do pecado; e o pecado é resultado do mau uso da vontade e do
livre-arbítrio.

A noção de livre-arbítrio - isto é, da liberdade de escolha e a possibilidade do


mal moral - recon�gurou a noção de consciência moral: se, por um lado, o ho-
mem passa então a ser o responsável pela existência do mal moral no mundo,
por outro, essa mesma liberdade de escolha é a condição para a existência de
uma consciência deliberativa, que avalia as consequências das escolhas a
partir do critério da proximidade do homem ao Bem supremo (Deus).

Já que o livre-arbítrio é inerente à vontade - e a vontade, por sua vez, pode se


corromper devido à condição imposta pelo pecado original -, então, conse-
quentemente, o homem não pode ser autossu�ciente para o exercício do bem.
É preciso da graça de Deus. Para exercer o bem, temos então duas condições
que nos são exigidas: a graça e o livre-arbítrio. Sem a graça, não seria possível
ter acesso ao bem, mesmo se o quiséssemos; sem o livre-arbítrio, não seria
possível escolher o bem, mesmo se estivesse disponível. A graça, portanto,
não tem a função de suprimir a vontade, mas sim de torná-la boa. De fato, a
possibilidade de fazer o mal é inseparável do livre-arbítrio, mas o poder de não
o fazer é a marca e o grau supremo da liberdade. Quanto mais o ser humano
estiver repleto da graça de Deus, mais será livre.

Não é pelo fato de uma pessoa poder se servir da vontade também para pecar, que é
preciso supor que Deus no-la tenha concedido nessa intenção. Há, pois, uma razão
su�ciente para ter sido dada, já que sem ela o homem não poderia viver retamente.
Ora, que ela tenha sido concedida para esse �m pode-se compreender logo, pela
única consideração que se alguém se servir dela para pecar, recairão sobre ele os
castigos da parte de Deus. Ora, seria isso uma injustiça, se a vontade livre fosse da-
da não somente para se viver retamente, mas igualmente para se pecar. Na verda-
de, como poderia ser castigado, com justiça, aquele que se servisse de sua vontade
para o �m mesmo para o qual ela lhe fora dada? (AGOSTINHO, 1995, p. 74-75).

Tomás de Aquino (1225-1274), outro representante da Filoso�a Medieval, mais


especi�camente da Escolástica (https://brasilescola.uol.com.br/�loso�a/esco-
lastica.htm), também tentou resolver o problema proposto pela Ética
Medieval. Para tanto, introduziu uma distinção até então impensável para os
�lósofos antigos: a diferença entre "verdades de razão" e "verdades de fé".

Por "verdades de razão" compreende-se o conhecimento que a razão humana é capaz de al-
cançar por si mesma; já por "verdades de fé" entende-se o conhecimento que só alcança-
mos por meio de uma revelação divina. E mais: as verdades que dependem da revelação di-
vina são aquelas que nossa razão �nita e imperfeita não só não pode alcançar sozinha, co-
mo também são, sobretudo, aquelas que só podemos aceitar sem compreender. Portanto, as
verdades de fé são "mistérios".
Entretanto, visto que as verdades - tanto a de razão como a de fé - têm sua ori-
gem na sabedoria e inteligência de Deus, chegamos ao seguinte termo: a ver-
dade, que para o homem é dividida em duas, na realidade, é indivisível e única
em si mesma, pois provém unicamente de Deus. "Uma vez que em Deus há du-
as espécies de verdades, algumas das quais são acessíveis à nossa inteligên-
cia e outras ultrapassam completamente a nossa capacidade, é justo que Deus
proponha como objetos de fé tanto umas como outras" (AQUINO, 1990, p. 24).

A partir da concepção de "verdade única" - porém aparentemente dividida em


duas para o homem - conclui-se dois aspectos:

• Não pode haver então contradição entre as "verdades de fé" e as "verda-


des de razão", pois a verdade não pode contradizer a si mesma.
• Se houver alguma contradição, as verdades de razão devem ser abando-
nadas em proveito das verdades de fé, uma vez que a razão humana está
sujeita ao erro e à ilusão.

A alma julga todas as coisas, não segundo qualquer verdade, mas, segundo a verda-
de primeira, enquanto esta nela se re�ete, como num espelho, por meio dos princí-
pios primeiros. Donde se segue, que a verdade primeira é maior que a alma.
Contudo, também a verdade criada, existente em nosso intelecto, é maior que a al-
ma, não absolutamente, mas de certo modo, enquanto é a perfeição dela. Assim co-
mo também podemos dizer que a ciência é maior do que a alma. Mas, é verdade
que nada de subsistente é maior que a mente racional, exceto Deus (AQUINO, 2001,
p. 229, tradução nossa).

O conhecimento racional, mesmo que não dependa da fé, deve subordinar-se a


ela. Com isso, para Tomás de Aquino, a �loso�a não precisa ser substituída pe-
la teologia, pois ambas não se opõem. Ou melhor, não pode haver contradição
entre fé e razão. É possível conhecer a verdade desde que a razão não contra-
diga a fé e se submeta a ela no que diz respeito às verdades últimas e princi-
pais. "A fé melhora a razão assim como a teologia melhora a �loso�a. A graça
não suplanta, mas aperfeiçoa a natureza" (REALE; ANTISERE, 2003, p. 213).

Em síntese - para ambos os autores -, a Ética medieval pressupõe que: a) a


causa da verdade é a inteligência divina (que ilumina a razão humana); b) a
causa do erro é a vontade humana (que envenena a razão humana). Desta for-
ma, se somos livres para cair ou fugir do erro, então quer dizer que somos res-
ponsáveis por nossos atos e pensamentos. Isso mostra que estar no erro ou na
verdade depende de nós mesmos, de nossa consciência, e, por isso, precisa-
mos saber se podemos ou não conhecer a verdade e em que condições tal co-
nhecimento é possível. O conhecimento da verdade se torna, portanto, uma
questão de consciência ética e moral.

Sobre a questão da consciência moral e do livre-arbítrio, observe a tirinha a


seguir:

(https://mdm.claretiano.edu.br/eti-gp0061-2021-01-grad-ead-p/wp-content
/uploads/sites/792/2019/11/C2-F1.jpg)
: Thaves (2008).

Figura 1 Frank & Ernest.

 Pronto para saber mais?

Para aprofundar as propostas éticas de Agostinho e Tomás de Aquino,


você deverá realizar a leitura das da obra Ética Antiga
e Medieval (2014), que está disponível na Biblioteca Virtual Pearson.

4. In�uência Judeu-cristã na ética da Idade


Média
A Ética teocrática e teológica é aquela que identi�ca o Bem com a vontade de
Deus. Dentro dessa categoria, incluem-se as Éticas hebreia e cristã.. . A relação
e o reconhecimento do outro constitui a base para essa Ética, precisamente
porque a realização da justiça consiste no reconhecimento da alteridade do
outro. Nesse sentido, o Cristianismo manda em seis de seus mandamentos
amar o próximo como a si mesmo.

"AMARÁS O PRÓXIMO COMO A TI MESMO" Jesus disse a seus discípulos: "Amai-


vos uns aos outros como eu vos amei" (Jo 13,34). Em resposta à pergunta feita acer-
ca do primeiro dos mandamentos, Jesus diz: "O primeiro é: 'Ouve, ó Israel: o Senhor
nosso Deus é o único Senhor, e amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, de
toda a tua alma, com todo o teu espírito, e com toda a tua força'. O segundo é este:
'Amarás O teu próximo como a ti mesmo'. Não existe outro mandamento maior do
que estes" (Mc 12, 29-31).

O apóstolo S. Paulo o recorda: "Quem ama o outro cumpriu a lei. De fato, os preceitos
'não cometerás adultério, não matarás, não furtarás, não cobiçarás' e todos os
Outros se resumem nesta sentença: amarás o teu próximo como a ti mesmo. A cari-
dade não pratica o mal contra o próximo. Portanto a caridade é a plenitude da lei"
(Rm 13, 8-10). (CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, 1993, §2196, p. 449).

Nesse preceito bíblico, está muito clara a importância da experiência alteritá-


ria. Bauman (2005, p. 101) a�rma que amar o próximo como amamos a nós
mesmos signi�caria respeitar a singularidade de cada um. Assim, amar ao
próximo tem relação com tolerância e promoção da individualidade do outro,
o valor de nossas diferenças enriquece o mundo.

A grande síntese da moralidade bíblica está expressa nos Dez Mandamentos


(Ex 20, 10). As chamadas “duas tábuas da lei” mostram os deveres das pessoas
para com Deus nos três primeiros mandamentos, e para com o seu próximo
nos sete seguintes.
Figura 2 Os Dez Mandamentos.

A moralidade para os cristãos não é criada de forma arbitrária por Deus; pro-
vém do caráter inato de Deus, que é bom, portanto não pode ser aceito pecado
ou ruptura com a ordem divina. A lei moral é obra da sabedoria divina:

obra excelente do criador, a lei moral fornece os fundamentos sólidos sobre os


quais pode o homem construir o edifício das regras morais que orientam suas
ações (CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, 1993, p. 449-450).

Para alcançar a felicidade, que coincide com a contemplação de Deus, deve-


mos impedir que o pecado tome o lugar da ordem moral existente na criação.

[...] o mal não é senão a corrupção da ordem natural. A natureza má é, portanto, a


que está corrompida, porque a que não está corrompida é boa. Porém, ainda quando
corrompida, a natureza, não deixa de ser boa; quando corrompida, é má.
(AGOSTINHO, 2005, p 25).

A Ética de Jesus está contida nos seus ensinamentos e é ilustrada pela sua vi-
da. O Sermão da Montanha, uma das melhores sínteses da Ética cristã, apre-
senta as bases éticas de Jesus, caracterizada pela humildade, misericórdia, in-
tegridade e veracidade, a busca da justiça e da paz, pelo perdão, a generosida-
de e, acima de tudo, pelo amor a Deus que se desprende do amor ao próximo.
Figura 3 Lápide sepulcral com peixes e âncora.

Joseph Klausner, escritor judeu, escreveu, na obra titulada Jesus de Nazareth


(1996), que é universalmente aceito que Cristo ensinou a mais pura e sublime
Ética, já que a mesma supera os preceitos morais e as máximas dos homens
sábios da antiguidade.

5. Pessoa humana
Apoiada na declaração do Livro do Gênesis, que diz que o ser humano foi cria-
do à imagem e semelhança de Deus (Gn 1, 26-27), a Bíblia eleva à condição de
dignidade “todos os seres humanos” por participarem da condição divina.

O conceito de pessoa humana re�ete a essência de todos os seres humanos.


Segundo Comparato (2006, p. 457), o conceito de pessoa humana toma forma
com Boécio no século 6. Esse pensador de�ne a pessoa humana como “subs-
tância individual da natureza racional”, de�nição que, posteriormente, foi ado-
tada por Tomás de Aquino.

O nome “pessoa” vem ganhando destaque desde a Antiguidade grega. Platão,


na República (2006), e Aristóteles ,na Metafísica (2006), destacaram a capaci-
dade racional como condição de imortalidade existente entre os deuses e que
se repete no ser humano. Contudo, o conceito de pessoa humana nos moldes
cristãos, mesmo que mantendo pontos em comum com a concepção grega
clássica, traz uma nova visão do mundo e do homem. Destaca o ser pessoal do
homem como imagem e semelhança de Deus (MARÍAS, 1975, p. 78).

Segundo Lucas (1996), a palavra “pessoa” é derivada do verbo latino “persona-


re”, que signi�ca “ressoar” em português. Os pensadores comprometidos com
essa radical visão de ser humano colocaram a origem da pessoa na cultura
grega. “Pessoa” decorre do vocábulo grego “prósopon”, que signi�ca “máscara”,
em alusão às máscaras utilizadas pelos atores nas tragédias gregas, que re-
presentavam personagens (pessoas) das diferentes classes sociais. Suas vozes
ressoavam por meio das máscaras utilizadas pelos atores; assim também na
pessoa ressoa uma voz que tem características de divindade por trás de sua
forma biológica.

No Direito romano, eram pessoas os que possuíam direitos e deveres de cida-


dãos; os escravos e os estrangeiros não eram pessoa para essa forma de
Direito. Com a difusão da idia cristã de espiritualidade e imortalidade da alma
e a noção de que todos os homens são �lhos de Deus e iguais em direitos, o
conceito de pessoa se universalizou em todo o Império Romano.

Figura 4 Martírio dos escravos.

6. O fundamento da vida ética é a dignidade da


pessoa
Com o advento do Cristianismo, o conceito de pessoa como substância passou
a sustentar o atributo da dignidade humana. A partir do conceito de pessoa,
todos os seres humanos são considerados iguais em essência. Vejam que esse
conceito de igualdade não abrange as igualdades culturais e históricas. O im-
portante é que, a partir dessa visão, todo ser humano passa a ter direitos, que
emanam do fato de ter sido criado à imagem e semelhança de Deus.

Com a Teologia medieval, o princípio do Direito formulado por Cícero, �ca em


segundo plano enquanto a organização da vida em sociedade e conduta indi-
vidual, em primeiro lugar está a supremacia da fé. Porém, a fonte da re�exão
jurídica continua sendo o Direito Natural.

7. Agostinho de Hipona
Como explicam Cortina e Martínez (2005, p. 63-64) a obra de Agostinho per-
tence cronologicamente ao período romano, mas seu conteúdo inaugura uma
série de temas que serão discutidos ao longo da Idade Média. A Ética cristã de
Santo Agostinho é inspirada, como todo o seu pensamento, na Filoso�a greco-
platônica-estoica, matizada pela visão bíblica. Tanto Santo Agostinho como
São Boaventura se apoiam na Filoso�a de Plotino (204-270), que possui carac-
terísticas neoplatônicas, mas ambos se contrapõem ao racionalismo ético dos
pensadores gregos.

Concordando com os gregos, Agostinho a�rma que a moral é um conjunto de


normas que ajudam a alcançar a “boa vida” e, como consequência, a felicida-
de. Sua Ética resulta da releitura das teorias éticas socráticas. Diferente dos
gregos, Agostinho, em Cidade de Deus (AGOSTINHO, 2000), explica que a meta
para alcançar a felicidade é o encontro amoroso com Deus, a partir do que se
deduz que os conteúdos da moral não podem ser outros que os ensinados por
Jesus aos homens. Para Agostinho, na doutrina cristã está a solução para os
problemas éticos.

Esse raciocínio nos afasta um pouco do caminho que a Ética vinha traçando,
na medida em que os conteúdos da fé não podem ser apresentados com o
mesmo valor de verdade para todos os seres racionais, mas, como dizem
Cortina e Martínez (2005, p. 64):
[...] as éticas religiosas são realmente éticas, sempre que ofereçam sua correspon-
dente explicação da moral, mas são éticas “de máximos”, pois contêm elementos de
convite à felicidade que não podem razoavelmente ser impostos a todo ser racio-
nal. No entanto, com a adoção de muitas dessas éticas de máximos é possível coin-
cidir com outras éticas em conteúdos (alguns “mínimos” comuns) que permitiriam
uma convivência harmoniosa.

Santo Agostinho parte do princípio ético “emancipante” de que o ser humano é


feito à semelhança de Deus para justi�car a correspondência com as três pes-
soas da Trindade. As expressões dessa correspondência encontram-se nas
três faculdades da alma. Considera que a alma contém uma norma divina
(correspondência com ideia platônica de alma), que lhe orienta para a felicida-
de, mas não é su�ciente conhecer essa norma divina; é necessário ser movido
em direção a ela pelo “amor” e pela Graça. O autor da Cidade de Deus a�rma
que a alma tem como princípio a ratio recta, princípio que é inato no ser hu-
mano. A Ética tem como fundamento a vida virtuosa, é a beatitude, dito �m, é
a visão de Deus.

Segundo Agostinho (2005), a dignidade do homem está fundamentada na cita-


da passagem bíblica que explica que este foi criado à imagem e semelhança
de Deus, e sua miséria está explicada por sua inclinação ao pecado. O homem,
pelo pecado original, nasce orgulhoso e inclinado a pecar e, pelo livre-arbítrio
que recebe de Deus, pode fazer mau uso dos bens temporais.

Assim, o mal não está na criação, e sim no mau uso que o homem faz dela. A
pergunta de Evódio: “como é possível que Deus conceda ao homem o livre-
arbítrio uma vez que é certeza que podia pecar?” é respondida por Agostinho
(2004) da seguinte forma: não é por que o homem tem a vontade livre para pe-
car que se deve supor que Deus a concedeu para isso. Sem ela o homem não
teria oportunidades de viver e agir corretamente; se o homem não fosse dota-
do de livre-arbítrio, não existiria esse bem que consiste na realização da justi-
ça por meio da condenação da ação moralmente errada e a premiação pela
ação da ação correta.

Segundo Marcondes (2007, p. 58-59), nas Con�ssões (livro VII, capítulo 12),
Agostinho diz que o mal deve ser entendido como diminuição ou privação do
bem, já que, sendo Deus sumamente bom, teria criado bens bons. No capítulo
16 (AGOSTINHO apud Marcondes, 2007) da mesma obra, o pensador conclui
que o mal não é substância, pois as coisas são boas; ele é produto do desvio de
conduta.

O pecado para Agostinho é o resultado de uma má escolha possibilitada pelo


livre-arbítrio. Na Filoso�a agostiniana, o homem é livre e responsável por
seus atos. Na obra A Natureza do bem (2005, livro II) Agostinho explica que o
livre-arbítrio possibilita que o homem racional tenha responsabilidade moral
em seus atos, ou seja, que seja merecedor de castigos ou de prêmios.

Você pode ampliar seus conhecimentos sobre esse tema lendo a obra O livre-arbítrio
(http://sumateologica.�les.wordpress.com/2009/07/santo_agostinho_-_o_livre-arbi-
trio.pdf), de Santo Agostinho.

Na obra de Agostinho, dentre os principais problemas éticos está a origem do


mal ante a perfeição de Deus e a questão da liberdade humana ante a realida-
de do pecado original. Agostinho distingue a lei eterna, vinculada a Deus, de
caráter imutável, das leis temporais, sujeitas a mudanças. Estas nada têm de
justo e legítimo se não foram retiradas da lei eterna; assim, uma lei justa no
sentido temporal deve ser inspirada na obra de Deus.

Agostinho é um autor preocupado com a Ética,  se bem que não escreveu uma
obra especí�ca sobre este tema no texto intitulado Sobre o sermão do senhor
da montanha (2003), tratou , quando ainda era bispo em Hipona, sobre a Ética
do Sermão da Montanha, considerado um dos grandes tratados éticos antigos.
Escrito em uma linguagem �gurada, ensina aquilo que o homem deve ser.

Para entender melhor sobre este tema, sugerimos que leia O Sermão da Montanha
(http://www.estudosdabiblia.net/som.pdf), de Paul Earnhart.

8. Tomás de Aquino: ética da lei natural


Cortina e Martínez (2005, p. 65) explicam que Tomás de Aquino segue a linha
eudemonista, por considerar a felicidade como o �m último da atividade hu-
mana, mas sempre dentro da tradição ética teocrática-teológica iniciada por
Agostinho.

A moral para Santo Tomás é a ciência que dirige os atos humanos para seu
�m último. Esses atos humanos devem estar ordenados segundo a razão que
apreende as leis da natureza. Assim, a razão estará em concordância com a lei
natural, que é comum a todos os povos. Ainda existem os costumes, que são
particulares de cada povo; nesse sentido, a educação moral, que consiste no
ordenamento dos hábitos e dos costumes, fará com que o homem alcance a fe-
licidade na ordem do cumprimento de sua própria natureza (AQUINO, 2004, p.
19-21).

A felicidade total não é possível para o homem nesta vida; só pode ser alcan-
çada na vida de�nitiva junto ao Criador. Para isso, o homem deve atuar em
concordância com as virtudes para aperfeiçoar sua vida. Segundo Marcondes
(2007, p 61-63), o conceito de virtude em Santo Tomás provém de Aristóteles,
só que, para o pensador medieval, a virtude já não está relacionada ao concei-
to de polis, como no universo grego, e sim às virtudes teologais, enquanto uni-
das à caridade (amor ao próximo) que dá forma aos atos das virtudes. O con-
ceito de felicidade, que, para Aristóteles, coincidia com eudaimonia, está rela-
cionado à beatitude.

Suas principais teses �losó�cas estão contidas na Suma Teológica (AQUINO,


2004). Nessa obra em forma de respostas, trata do ser, da verdade e do conhe-
cimento, de Deus e da criação, da Graça Divina, dos sacramentos, da
, das virtudes teologais e da lei eterna que contém os lineamen-
tos da verdadeira moral natural.

Para Tomás de Aquino, a vida prática deve ser organizada por meio dos prin-
cípios fornecidos pela sindérese e pela consciência moral. A sindérese, como
habitus, apreende e formula os dois grandes princípios da vida moral: fazer o
bem e evitar o mal. A palavra latina “habitus” signi�ca “um estado de corpo e
alma”, ou seja, “a maneira de ser da pessoa humana”. Assim, “habitus”, que, pa-
ra Aristóteles, é a primeira categoria predicamental (hexis), é um agir relacio-
nado com o concreto, com a inteligência, dispensando os instintos, dispen-
sando a ação da dimensão vegetativa da alma. Esse termo simboliza um dese-
jo re�etido. Sendo as virtudes habitus, pode se dizer que o homem virtuoso
age bem, em concordância com seu ser (AQUINO, 2004, IV, I-II, p. 45). Porém,
como está expresso no prólogo do volume 5 da Suma Teológica (2004, p. 45): “A
moral em generalidades é pouco útil, já que as ações se realizam em situações
particulares”. Esses princípios são sempre confrontados com a realidade pes-
soal. Para que isso seja possível, necessitamos da intervenção da consciência
moral, que é um ato da razão prática que engloba a sindérese, o conhecimento
moral, a experiência, as convicções etc.

A moral é uma ciência prática, isto é, uma ciência do ato humano tal como existe
onde quer que seja exercido. Não basta ter estudado os princípios gerais da moral: o
�m do homem; a felicidade eterna, depois os atos das paixões que podem conduzir
à felicidade. Para maior utilidade de aquele que age, é preciso retomar em “particu-
lar”. [...] Não podemos conceber todo “pensamento, palavra ou ato” que, estando re-
lacionados a um mesmo objeto, sejam da mesma espécie. Não podemos tampouco
pensar em determinar a norma, ou a medida de toda ação concreta. Esta depende
tanto de circunstâncias, tempo, lugar, humor, ou simplesmente de fraqueza ou for-
ça, de ignorância ou ciência (AQUINO, 2004, p. 43).

Os princípios traduzidos em regras darão inicio à vida moral. No entanto, para


realizar as boas ações, devemos praticar as virtudes (disposição do espírito e
do coração para agir bem; são sete as virtudes). Santo Tomás, na Suma
Teológica (2004, VI, p. 1-170), precisamente a partir da questão 58, diferencia as
virtudes morais e virtudes intelectuais; na questão 61, destaca as cardeais.
Segundo pode ser apreciado no volume 6, em primeiro lugar Santo Tomás co-
loca a “justiça” pela extensão das funções que lhe são consagradas enquanto
controladoras de pessoa e sociedade; logo vem a “força” e a “temperança”, a
primeira controladora pelas paixões, enquanto a segunda nos a�rma racionais
ante a pressão da paixão e, por último, temos a “prudência”. (AQUINO, 2004).

Entretanto, como diz Santo Tomás (2004), para agir bem, é necessário que a ra-
zão esteja bem disposta pelo hábito da virtude intelectual, e que a potência
apetitiva atue em relação ao hábito da virtude moral em conformidade com a
razão. Tal como o apetite se distingue da razão, assim também a virtude moral
se distingue da intelectual. As virtudes morais são vivenciadas na afetividade
humana, em relação ao costume.
Tanto as virtudes morais como as intelectuais têm como objeto algo que a ra-
zão humana pode compreender. Só as virtudes teologais podem relacionar-
nos à aventurança sobrenatural (AQUINO, 2004).

Cristo e a caridade são a pedra angular da estrutura moral


Para Santo Tomás, a moral é uma ciência prática, que pode conduzir o homem
à felicidade eterna. A condição para que exista moral é que exista liberdade;
sem a liberdade não há moral, sendo que esta tem fundamento na razão.

O �m último da vida humana signi�ca um retorno a Deus, e o homem se dirige


a ele com “passos do conhecimento e do amor”. Todas as criaturas são chama-
das de volta ao Criador. Na maior parte delas, por não serem dotadas de inteli-
gência, o retorno será operado de maneira passiva, mas, no ser humano, por
ser criado à imagem de Deus e gozar de inteligência, livre-arbítrio, capacidade
de autodeterminação, o retorno envolve outras condições. Enquanto as criatu-
ras irracionais são simplesmente atraídas, com o homem acontece um movi-
mento diferente: Deus só o orienta mediante uma inclinação à sua própria rea-
lização por intermédio de um desejo de bem-aventurança (AQUINO, 2004).
Portanto, todas as criaturas possuem um só e mesmo �m último: Deus.

A lei que liga ordem e ação compete ao âmbito da razão


O Tratado da Lei se encontra na “primeira e segunda parte” da obra Suma
Teológica. Nele está expresso que o homem deve buscar sua realização, que
coincide em conhecer e amar a Deus; para isso, precisa orientar seus atos para
esse �m. Assim, surge a necessidade da lei, que lhe dê direção, já que tal em-
preitada não pode ser deixada ao arbítrio de cada consciência. É importante,
portanto, que o ser humano disponha de uma fonte pedagógica e objetiva, so-
bre a qual possa basear as decisões que pesam sobre sua consciência.

Para Santo Tomás, a fonte de toda lei é a vontade divina (plano de Deus para o
governo de suas criaturas), expressa na criação, que se evidencia no conheci-
mento do homem que está situado no tempo e na história. A partir do pensa-
mento divino chega a lei eterna que vai determinando as leis mais contingen-
tes, que são as terrenas. A Nova Lei ou lei de Cristo é a própria Graça, presença
dinâmica do amor de Deus (AUBERT in AQUINO, 2004).
Os quatro tipos de leis, para Santo Tomás, são: a lei eterna, que é a razão de
Deus; a lei natural, que é a "participação da lei eterna na criatura racional”; a
lei humana, que se deriva da lei natural e que norma a vida social; e a lei divi-
na, que é dada ao homem para que possa orientar-se para seu �m último que é
a vida. Vejam que, para Santo Tomás, a vida na terra é importante e faz parte
do plano de salvação do homem.

Para saber mais sobre  esse pensador, sugerimos que leia a obra de Patrícia Calvário, O
Governo da Cidade no De Regno de Tomás de Aquino. (http://www.lusoso�a.net/textos/cal-
vario_patricia_o_governo_cidade_no_de_regno_de_tomas_de_aquino.pdf)

Além dos textos, para complementar a sua formação sobre ética medieval, as-
sista aos seguintes vídeos:

• Palestra sobre "O Livre Arbítrio", de Santo Agostinho (https://www.youtu-


be.com/watch?v=ySIT8AUTvp4)
• Café Filosó�co - Santo Agostinho (https://www.youtube.com
/watch?v=lAH3g_-DUQo)
• Agostinho e Tomás de Aquino: documentário Filósofos e a Educação
(https://www.youtube.com/watch?v=VYiBcyP0GdU)
• Top 3 Filósofos: Tomás de Aquino (https://www.youtube.com/wat-
ch?v=RopBvOfmISI)

9. O contexto do Renascimento
Cada época tem a sua especi�cidade e singularidade em vista de seus diver-
sos condicionamentos e in�uências (sociais, econômicas, políticas, religiosas,
culturais e outros) que ajudaram a direcionar a História da Filoso�a. Por
exemplo: na antiguidade o povo grego formou numerosas perspectivas �losó-
�cas, tais como as de Parmênides, Heráclito, Sócrates, Protágoras, Demócrito,
Platão, Aristóteles, Epicuro, Zenão, Plotino etc. O mesmo pode-se dizer das so-
ciedades cristãs da Idade Média: elas também, embora profundamente preo-
cupadas com o aspecto religioso (relação do homem com Deus, com a vida fu-
tura e com a salvação eterna), elaboraram teorias e interpretações �losó�cas
bastante diversi�cadas, como as de Agostinho, Boécio, Anselmo, Abelardo,
Bernardo, Boaventura, Tomás de Aquino, Duns Scott, Ockham e outros.
Neste impulso de síntese entre contexto histórico e �losó�co nasceu o
"Renascimento", movimento intelectual iniciado na Itália entre os séculos XIV
e XV, cuja característica fundamental é a preocupação em resgatar e retomar a
cultura clássica que havia sido excluída durante toda a Idade Média
(BOTELHO, 2013, p. 45).

O Renascimento também pode ser caracterizado pela descoberta das obras de


Platão desconhecidas na Idade Média, de novas obras de Aristóteles, bem co-
mo pela recuperação das obras dos grandes autores e artistas gregos e roma-
nos. De acordo com Chauí (2003), existiram no Renascimento, ao menos, três
vertentes predominantes de pensamento:

• : proveniente da concepção que propunha o "ideal huma-


no" como artí�ce de seu próprio destino, tanto através dos conhecimentos
(astrologia, magia, alquimia), quanto através da política (o ideal republi-
cano), das técnicas (medicina, arquitetura, engenharia, navegação) e das
artes (pintura, escultura, literatura, teatro).
• : originária dos pensadores �orentinos, pela qual se valorizava a
vida política em vista da defesa dos ideais republicanos das cidades itali-
anas contra o Império Romano-Germânico. Divulgaram e comentaram
amplamente os autores latinos (Cícero, Tito Lívio e Tácito) e os historia-
dores e juristas clássicos.
• : proveniente de Platão, do neoplatonismo e da descoberta dos li-
vros do Hermetismo, na qual se destacava a relação entre o microcosmo
(homem) e o macrocosmo (natureza) através da magia natural, da alqui-
mia e da astrologia - com o objetivo de conhecer os segredos constituin-
tes do cosmo, seus vínculos e ligações secretas.

Para Abaggnano (1970, p. 9-10), escritores, historiadores, moralistas e políticos,


todos estão de acordo em que se teria veri�cado na Itália, a partir da segunda
metade do século XIV, uma mudança radical na atitude dos homens perante o
mundo e a vida. Convencidos como estão do início de uma época nova, consti-
tuindo uma ruptura radical com o mundo medieval, procuram explicar a si
mesmos o signi�cado dessa mudança. Esse signi�cado é atribuído então ao
"renascimento" de um espírito que já tinha sido do "homem antigo" e que se
perdeu durante a Idade Média: um espírito de liberdade, pelo qual o homem
reivindica a sua autonomia de ser racional e se reconhece como intimamente
ligado à natureza e à história, apresentando-se resolvido a fazer de ambas o
seu reino.

Em síntese, o Renascimento trata-se de um retorno à Antiguidade, uma rea-


quisição de capacidades e poderes investigativos outrora possuídos pelos an-
tigos (gregos e latinos), que, todavia, não consiste numa mera repetição do
passado, mas numa retomada e consequente continuação daquilo que no
mundo antigo foi realizado.

Na opinião de Reale e Antisere (2004, p. 13), apesar de o renascimento ainda


não ser considerado um período tipicamente moderno, sem dúvida, não é pos-
sível prescindir dele como passagem para a modernidade: "assim como as raí-
zes da Renascença devem ser buscadas na Idade Média, da mesma forma as
raízes do mundo moderno devem ser procuradas na Renascença".

Porém, este período de transição da Idade Média para a época Moderna foi,
sem dúvida, complexo e repleto de acontecimentos históricos que foram capa-
zes de mudar radicalmente as estruturas sociais, a mentalidade e o comporta-
mento do homem medieval. De acordo com alguns autores (BOTELHO, 2010;
MONDIN, 1982; REALE; ANTISERE, 2004), veja alguns destes eventos e mudan-
ças que in�uenciaram o contexto do Renascimento:

• : �m do signi�cado político do Império e


do Papado; a a�rmação das potências nacionais (primeiro da Espanha,
depois da França, da Inglaterra, da Holanda etc.); contestação do poder
absoluto dos soberanos e introdução dos governos constitucionais etc.; as
navegações; a descentralização do poder (fundamentado na suserania e
na vassalagem) que cede lugar aos governos nacionais.
• : descoberta da América; desenvolvi-
mento da indústria e das �nanças; declínio do feudalismo e ascensão do
capitalismo mercantil que ganha força com as navegações; o apareci-
mento do comércio e da vida urbana em toda a Europa.
• : quebra dos estamentos (clero, nobreza e
monarquia) e estrati�cação e contestação social (a sociedade é dividida
em camadas); o êxodo rural; a primazia da burguesia sobre a nobreza e o
clero.
• : a ruptura da unidade cristã do
Ocidente com a Reforma Protestante; a Contrarreforma Católica; a funda-
ção de novas ordens religiosas; as missões católicas; a secularização da
sociedade e da cultura; o desenvolvimento do ateísmo enquanto corrente
de pensamento.
• : a revolução de Copérnico; a desco-
berta da imprensa, do telescópio, do microscópio, da eletricidade, da má-
quina a vapor, da célula etc.
• : a mentalidade teocêntrica medieval,
que cede lugar à mentalidade moderna baseada num antropocentrismo
moderno, provocando assim o aparecimento do Renascimento.
• : o próprio Renascimento, enquanto re-
torno à cultura greco-romana, baseado na criatividade e no empreende-
dorismo que ultrapassa a perspectiva mecânica do artesão medieval.

Todos esses acontecimentos deram lugar a profundas mudanças e transfor-


mações culturais; e a estes condicionamentos o Renascimento não permane-
ceu estranho. Pelo contrário, participou intensamente, algumas vezes
fornecendo-lhes motivações ideais e, em todos os casos, procurando interpre-
tar seu signi�cado profundo.

Com o objetivo de expandirmos algumas questões apresentadas, deixamos co-


mo sugestão o vídeo a seguir:

10. A Ética no Renascimento


A ética no Renascimento, conforme já apresentado anteriormente, possui um
caráter naturalista e humanista, resultado do esforço dos autores renascentis-
tas em atualizar a cultura clássica greco-romana e, ao mesmo tempo, promo-
ver uma ruptura com a cristandade medieval teocêntrica. Dentre tantos auto-
res que se destacaram nesse período, podemos mencionar Pico Della
Mirandola, Nicolas Machiavel, Paracelso e Michel de Montaigne.

O pensamento ético de Pico Della Mirandola (1463-1494), autor da obra


Discurso sobre a dignidade humana e pertencente à vertente antropocêntrica
do Renascimento, procura demonstrar a seguinte tese: o homem é um ser li-
vre, artí�ce de si mesmo, capaz de decidir o seu próprio destino e cumprir a
sua natureza. Nesse sentido, o ser humano é o único ser, segundo Mirandola,
cuja natureza é ontologicamente indeterminada: diferentemente dos anjos e
dos animais - cuja natureza já foi determinada por Deus -, o homem é aquele
ser que tem a capacidade de se atualizar por si mesmo, como potência de "ser",
como escolha e autor de si.

Não te �zemos celeste nem terreno, nem mortal nem imortal, a �m de que tu, árbi-
tro e soberano artí�ce de ti mesmo, te plasmasses e te informasses, na forma que
tivesses seguramente escolhido. Poderás degenerar até aos seres que são as bestas,
poderás regenerar-te até às realidades superiores que são divinas, por decisão do
teu ânimo (MIRANDOLA, 1989, p. 57).

Portanto, o pensamento ético de Pico Della Mirandola reside no ideal antropo-


cêntrico do ser humano, como autor do seu próprio destino. Nisto consiste a
dignidade humana: ser livre. Isso não quer dizer que o homem seja perfeito,
mas que, por ter uma natureza absoluta e ontologicamente indeterminada, é
capaz de aspirar pela perfeição e autodeterminar-se como um indivíduo mo-
ralmente livre.

Nicolas Machiavel (1469-1527), representante da vertente política do


Renascimento, também contribuiu com o desenvolvimento da Ética no
Ocidente. Autor do célebre livro O Príncipe, a ética de Machiavel está ampla-
mente direcionada à orientação dos critérios que legitimam a ação política do
governante. Enquanto muitos governantes se preocupam somente em con-
quistar, Machiavel a�rma que é mais importante saber manter-se no poder. E
para isso, é preciso desfazer-se de qualquer idealização política e pautar-se no
realismo das circunstâncias, pois são elas que, de fato, condicionam a nature-
za do comportamento humano.

No entanto, somente reconhecer as circunstâncias não resolve; é necessário


também - e acima de tudo - utilizar-se das próprias circunstâncias em seu fa-
vor. Aparecem nesse momento dois conceitos fundamentais no pensamento
de Machiavel:

• : diz respeito à virtude do Príncipe (governante), não no


sentido da "bondade ou piedade cristã", mas como aquele toma sabia-
mente suas decisões com plena força, virilidade e convicção.
• : está relacionada aos fatos e circunstâncias ocasionais
da própria realidade, que não podem ser controlados nem previstos pelo
governante. Trata-se da contingência.

É fato que nenhum governante pode prever todas as circunstâncias (fortuna) -


que são ocasionais. No entanto, se possuir a sabedoria necessária (virtú) para
tirar o máximo de proveito do acaso e agir conforme o momento, estará sem-
pre preparado para o imprevisto e para manter-se estrategicamente no poder.
Por isso, a fortuna não se baseia puramente na sorte do governante, mas na
sua sabedoria para saber tirar proveito das circunstâncias.

A um príncipe, portanto, não é necessário ter de fato todas as qualidades [...], mas é
indispensável parecer tê-las. Aliás, ousarei dizer que, se as tiver e utilizar sempre,
serão danosas, enquanto, se parecer tê-las, serão úteis. Assim, deves parecer cle-
mente, �el, humano, íntegro, religioso - e sê-lo, mas com a condição de estares com
o ânimo disposto e, quando necessário, não o seres, de modo que possas e saibas
como tornar-te o contrário. É preciso entender que um príncipe, sobretudo um prín-
cipe novo, não pode observar todas aquelas coisas pelas quais os homens são con-
siderados bons, sendo-lhe frequentemente necessário, para manter o poder, agir
contra a fé, contra a caridade, contra a humanidade e contra a religião. Precisa, por-
tanto, ter o espírito preparado para voltar-se para onde lhe ordenarem os ventos da
fortuna e as variações das coisas e, como disse acima, não se afastar do bem, mas
saber entrar no mal, se necessário (MACHIAVEL, 2001, p. 84-85).

Em outras palavras, o Príncipe (governante) deve possuir a prudência para


agir convictamente conforme as circunstâncias que lhe aparecem, em prol da
defesa e manutenção do Estado, como também em vista do respeito dos go-
vernados. Não há uma regra geral, �xa ou transcendental para ação, mas sim
a sabedoria para entender as "regras do jogo" e agir de acordo com o momento,
nem que para isso seja preciso tomar uma atitude considerada má. É nesse
sentido que se encontra o famoso jargão atribuído a Machiavel: "os �ns justi�-
cam os meios".

Phillipus Theophrastus Bombastus von Hohenheim, mais conhecido como


Paracelso (1493-1541), médico, físico, alquimista e astrólogo, faz parte da ver-
tente mística do Renascimento. De modo geral, a ética proposta por Paracelso
versa sobre a não separação entre homem, natureza e Deus. De origem pan-
teísta, seu pensamento apresenta duas premissas:

• A natureza (macrocosmo) é vista como um grande ser vivo, possuidora


de uma alma (Alma do Mundo), organizada por vínculos secretos exis-
tentes entre as coisas (que se unem pela simpatia e se desunem pela anti-
patia).
• O homem é concebido como uma parte especial da natureza, pois ele traz
em seu intelecto um pequeno mundo (microcosmo) que o possibilita agir
sobre a natureza através de conhecimentos e práticas (magia natural, al-
quimia e astrologia) capazes de desvendar as ligações secretas que unem
as coisas.

Cabe ao homem, dentro de uma perspectiva ética, reconhecer que tudo está li-
gado a tudo e, por isso, compreender que a sua liberdade se legitima na sub-
missão e participação da vontade divina, que está em todas as coisas.

Por �m, a proposta ética de Michel de Montaigne (1533-1592) está voltada para
o ideal da "arte de viver" conforme a natureza. De vertente cética, Montaigne
despreza as idealizações metafísicas do contexto medieval e se pauta por um
pensamento humanista, que ensina ao indivíduo a reconhecer-se como "hu-
mano" em todas as suas virtudes e defeitos. Portanto, encarar a vida como ela
"é", em seus benefícios ou di�culdades, é o primeiro passo para uma legítima
realização de si, uma vez que suas expectativas de vida não estão atro�adas
pelo ressentimento passado, mas por uma otimista compreensão do presente:

É também vaidade desejarmos ser diferentes do que somos; um tal desejo não leva
a nada; contradiz-se e traz em si o obstáculo à sua realização. Quem deseja que o
homem se faça anjo, não trabalha por si; se seu desejo se realizasse, não o aprovei-
taria, pois não mais existindo não poderia regozijar-se com a transformação e sen-
tir seus efeitos (MONTAIGNE, 1984, p. 168).
Essa compreensão naturalista do ser humano reorienta os limites e os critéri-
os da re�exão moral em Montaigne: não convém ao sujeito culpar-se por aqui-
lo que pertence ao campo da condição humana; o que lhe cabe, nesse caso, é
fazer das experiências - boas ou más - um guia para suas escolhas futuras.

11. Giovanni Pico della Mirandola (1463-1494)


O italiano Giovanni Pico della Mirandola foi discípulo de Marsílio Ficino
(1433-1599) e de seu círculo neoplatônico, na Academia de Florença (Itália). O
neoplatonismo, revivido na Renascença italiana por, entre outros, Marsílio
Ficino, é uma corrente de pensamento iniciada no século 3º da nossa era, por
Plotino (205-270 d.C.), grande �lósofo grego de Alexandria. Baseada, em prin-
cípio, nos ensinamentos de Platão, dos quais se diferencia bastante, foi rein-
troduzida no Ocidente por Plethon (1355-1452), um dos grandes pensadores de
seu tempo, que, por sua vez, dizia ter recebido os ensinamentos de Amônio
Sacas (175-242), renomado �lósofo grego de Alexandria. Segundo o neoplato-
nismo, o Uno refere-se a Deus, que é indivisível, e do Uno emanou uma
sequência de seres menores. Os neoplatônicos não acreditavam na existência
do mal, que, para eles, seria a imperfeição. Veremos essa ideia permear todo o
pensamento de Pico della Mirandola, na medida em que funda toda ética e
moral na busca da perfeição.

Pico della Mirandola de�ne o homem como meio de equilíbrio de todas as coi-
sas criadas: pela força do espírito e do intelecto, é o homem capaz de unir e
harmonizar os elementos da natureza.

Apesar de ter falecido aos 31 anos de idade, Pico della Mirandola é um dos re-
presentantes mais signi�cativos dessa visão, que coloca o homem como o
centro do universo. Ao lado do papel preponderante do homem na Criação
Divina e sua consequente miséria com a “queda” advinda do “pecado original”,
tão lembrada e descrita na visão religiosa, há que se enfatizar, segundo ele, a
dignidade que advém ao homem com o exercício da liberdade.

Esforçava-se Pico della Mirandola por estabelecer uma nova fé cristã funda-
mentada no desenvolvimento das capacidades humanas por meio de uma ex-
celente formação intelectual pelo estudo de correntes as mais diversas e mes-
mo opostas. O sincretismo, tendência a reunir doutrinas ou teorias diversas
ensinadas como verdadeiras seja por um autor, seja por vários autores, é uma
das características de sua obra. Propunha-se a estudar um tema sob o maior
número de pontos de vista, tentando chegar à visão ou ideia mais próxima
possível da realidade observada.

Sendo por natureza um eclético, busca, em vários sistemas �losó�cos e religi-


osos, o que mais lhe parecia conter elementos interessantes para compor um
único sistema de explicação da realidade observada. Pico sintetizou as doutri-
nas �losó�cas conhecidas em sua época, principalmente o platonismo, os
aristotelismos, a escolástica, os escritos hebraicos e talmúdicos (textos funda-
mentais do judaísmo rabínico, estruturados nos séculos 2º e 6º E.C. – Era
Cristã – e reconhecidos como a norma do judaísmo), assim como os textos do
hermetismo.

Do ponto de vista de uma “Ética”, a obra de Giovanni Pico della Mirandola re-
presenta o que Henri Gouhier (�lósofo francês de inspiração cristã, historiador
de Filoso�a e crítica dramática, autor, entre outras obras, de L’Anti-
humanisme du XVII siècle) denominou de “misticismo da nobreza humana”.
Trata-se de valorizar o poder de escolha situado no íntimo de cada ser huma-
no – nisso consistindo sua dignidade: “somos dignos porque somos livres”.
Esse poder de escolha, a liberdade, seria uma potencialidade do homem – po-
tencialidade que o liberta do dogma determinista religioso ou astrológico (a
astrologia tinha grande autoridade na época, no que concerne à determinação
do destino de cada indivíduo) e que reduzia o homem a um mero instrumento
de luta entre forças opostas. O poder de escolher torna-se um instrumento po-
sitivo de ação sobre a realidade. O ser humano é um ser imperfeito, mas cuja
possibilidade de perfeição é ilimitada, podendo alcançar o grau de moralidade
e intelectualidade que desejar.

Sensível, para este humanista, o amor, fundamental na fé cristã, possui capacidade


de superar divergências e promover a harmonia e a paz. Giovanni é cônscio de que
todo homem é um ser consciente, dotado de valor inestimável, e que é na dignidade
que repousa a nobreza humana, pois, nos seres humanos não é
somente sua racionalidade (Aristóteles) ou sua imortalidade (cristianismo), mas a
magnânima capacidade de autocriar-se livremente, podendo vir-a-ser sempre e
muito mais do que já é por natureza (FÉLIX, 2015).
Leiamos o texto a seguir, extraído da obra de Giovanni Pico della Mirandola Da
dignidade do homem, escrito em 1486:
Já Deus, Pai e arquiteto supremo, havia construído segundo as leis de uma sabedo-
ria secreta esta morada do mundo que nós vemos, augusto templo de sua divinda-
de: ele tinha ornado com espíritos a região supra-celeste, vivi�cado com almas
eternas os globos etéreos, preenchido com uma multidão de seres de todo gênero as
partes fétidas e impuras do mundo inferior. Mas, uma vez sua obra terminada, o ar-
quiteto desejava que houvesse alguém que pudesse avaliar o seu signi�cado, amar
sua beleza, admirar sua grandeza. Do mesmo modo, quando tudo estava terminado
(como atestam Moisés e Timeu) pensou por último em criar o homem. Ora, não ha-
via nos arquétipos nada com que criar uma nova raça, nem nos tesouros o que ofe-
recer como herança ao novo �lho, nem havia no mundo inteiro o menor lugar onde
o contemplador do universo pudesse se instalar. Tudo estava já ocupado: tudo ha-
via sido distribuído às ordens superiores, intermediárias e inferiores. [...]
Finalmente, o perfeito construtor decidiu que àquele que não podia receber nada de
próprio seria comum tudo o que havia sido dado de particular a cada ser isolada-
mente. Pegou, pois, o homem, essa obra de imagem indistinta, e, tendo o colocado
no meio do mundo, dirigiu-lhe a palavra dizendo: “Se não te demos, Adão, um lugar
determinado, nem um aspecto que te seja próprio, nem um dom particular, é para
que o lugar, o aspecto, os dons que tu mesmo quiseres, tu os tenha e possua de acor-
do com o teu desejo, segundo a tua ideia. Para os outros seres, a natureza deles de�-
nida é mantida presa a leis estabelecidas: tu, nenhuma lei te prende, é a própria
possibilidade de julgar que te conferi que te permitirá de�nir tua natureza. Se te co-
loquei no mundo, em posição intermediária, é para que daí onde estás possas exa-
minar mais à vontade tudo o que se encontra no mundo ao teu redor. Se nós não te
�zemos nem celeste nem terrestre, nem mortal nem imortal, é para que, dotado, por
assim dizer, do poder honorável de arbítrio, possa te modelar e de elaborar a ti mes-
mo, tu te dês a forma que preferires. Tu poderás te degenerar em formas inferiores,
que são bestiais; tu poderás, por decisão de teu próprio espírito, te regenerar em for-
mas superiores, que são divinas”.

Ó, suprema bondade de Deus o Pai, suprema e admirável felicidade do homem! É te


dado ter o que desejas, ser o que quiseres. Os animais, no momento de seu nasci-
mento, trazem com eles “do ventre de sua mãe” [...] o que possuirão. Os espíritos su-
periores foram, em sua totalidade ou quase, destinados a ser eternamente. Mas, ao
homem, ao nascer, o Pai deu sementes de toda espécie e germes de todo tipo de vi-
da. Aqueles que cada um cultivar, em si mesmo, se desenvolverão e fruti�carão: ve-
getativos, o farão tornar-se planta; sensíveis, farão dele um animal; racionais, o ele-
varão à altura da abóbada celeste; intelectivos, farão dele um anjo e um �lho de
Deus e, se, sem te contentar com o destino de nenhuma criatura, reconhece-te no
centro de tua unidade, formando com Deus um só espírito, na solitária opacidade
do Pai, elevado acima de todas as coisas, tendo sobre todos a preponderância”
(MIRANDOLA, 1995, p. 5-9, tradução nossa).
Temos, de um lado, o ideal almejado de chegar a uma verdade geral via um co-
nhecimento eclético de doutrinas �losó�cas conhecidas e escritos hebraicos;
de outro lado, há a preocupação em busca do caráter mais próprio e único do
ser do humano e que seria a liberdade.

A singularidade do humano, o que o caracteriza e o torna único, para Pico del-


la Mirandola, é a sua capacidade de agir livremente. Toda moralidade se fun-
daria nessa estrutura de liberdade: as ações moralmente dignas devem ser es-
sencialmente livres, ações cujo dever é o de se aproximar da natureza celesti-
al, caminhando em direção à intelectualidade e afastando-se de toda sensuali-
dade que aproxima dos animais.

12. Machiavel (1469-1527)


Outro importante pensador do Renascimento, de interesse no que diz respeito
ao ético, particularmente na relação deste com a política, foi, sem dúvida
Nicholas Machiavel. Dele nos ocuparemos a seguir.

Nascido em Florença, Nicolas Machiavel é conhecido, sobretudo, pela sua obra


controvertida O príncipe. Obra admirada por Napoleão e criticada por
Descartes, Diderot e outros. Trata-se de um manual dedicado aos príncipes pa-
ra fortalecer e manter seus poderes.

Florença, cidade onde nasceu Machiavel, fora libertada do governo da podero-


sa família dos Médicis por Carlos VIII e vivia como República ao mesmo tem-
po democrática e teocrática, sob a inspiração do monge dominicano
Savanarole (1452-1498).

Machiavel, nascido de uma família da pequena burguesia, eleito secretário da


segunda chancelaria, responsável pelas relações com o interior e com países
estrangeiros, com missões junto a soberanos italianos e estrangeiros, desen-
volveu habilidades políticas.

Encarregado de organizar a defesa da cidade, é vencido em 1512. Os espanhóis


devastam a cidade e os Médicis retomam o poder. Machiavel é torturado e exi-
lado. Redige sua obra, iniciando por O Príncipe, terminado em 1513 e só publi-
cado em 1532. Escreveu também um importante comentário sobre a história
romana, intitulado Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio. De volta a
Florença, em 1520, redige o Discurso sobre a língua, comédias e obras históri-
cas.

Como todo pensador de sua época, Machiavel rompe com o poder da Igreja e,
em consequência, com a tradição ética cristã trazida da Idade Média. Volta-se
para os historiadores da Antiguidade e se impõe a tarefa de esclarecer, de ma-
neira rigorosa, as práticas políticas de seu tempo. Da mesma maneira que se
procuram leis que dessem conta do comportamento da natureza, Machiavel
busca as regras que regulam os comportamentos sociais e políticos.

Machiavel estuda o passado para compreender qual o caminho para tomar o


poder e mantê-lo. Mais precisamente, quer encontrar as leis eternas da domi-
nação dos homens pelos homens. Pretende chegar ao conhecimento do senti-
do que funda a ação humana, especialmente a ação política, não baseada em
uma visão mítica ou �losó�ca dos acontecimentos históricos, e nem buscando
dar conta das coisas pela ação de Deus ou da providência divina. Sua meta é
prever os acontecimentos por meio da observação das ações humanas no pre-
sente, particularmente das ações políticas.

Quanto ao comportamento ético em política, ao observar os acontecimentos


de sua época, caracterizada pela ausência de um poder central e, consequen-
temente, por lutas constantes, Machiavel conclui que a política não pode mais
ser conduzida à luz de uma norma transcendente, tal como o Bem dos �lóso-
fos e teólogos. É necessário que a ação política seja prática, em um universo
continuamente hostil. Trata-se de um mundo constituído de indivíduos não
éticos, que julgam e decidem segundo seus desejos e necessidades imediatas.

Alguns autores observam que, diferentemente de Aristóteles, para quem a


Ética e a política, embora não se confundam, são campos relacionados, para
Machiavel, embora seja louvável exercer a política com integridade ética sem-
pre que possível, é preciso partir do princípio de que os homens são maus e de
que a ação política só pode ser julgada por sua e�cácia. É a e�cácia da ação
política que permite aos homens uma coexistência ética. O Estado é uma cria-
ção de alguns homens superiores e nenhuma ordem é possível senão pela co-
erção e pela força.

En�m, fundamentar a ação política por uma concepção �losó�ca do dever éti-
co é, segundo Machiavel, correr o risco de perder o que deve ser conservado (o
poder) e com ele toda a possibilidade de governar. A verdade em política é que,
para se atingir um bem como a paz e a prosperidade, todo meio é legítimo. É o
que o mundo real exige e o mundo, segundo Machiavel, é imutável.

A imutabilidade do mundo
Em sua obra Discurso sobre a primeira década de Tito Lívio, Machiavel apre-
senta o mundo como imutável, pois, se o mundo não fosse constante, não seria
possível estabelecer suas leis.

Re�etindo sobre o andamento das coisas humanas, concluo que o mundo perma-
nece na mesma situação através dos tempos; que há sempre a mesma quantidade
de bem e de mal; mas que este mal e este bem não fazem nada mais do que percor-
rer diferentes lugares, diversos países.

Segundo o que conhecemos dos antigos impérios, vimos todos se deteriorarem uns
após os outros na medida em que seus costumes são modi�cados ou alterados.

Mas o mundo é sempre o mesmo (MACHIAVEL, 1995a, p. 177, tradução nossa).

As experiências do passado são, assim, válidas para o presente e para o futuro.


Ou seja, embora os acontecimentos históricos se movimentem com rapidez di-
ferente, a história se repete e é sempre a mesma, à semelhança do universo,
que é constante e sempre o mesmo, apesar do fato de os corpos nele se movi-
mentarem em velocidades diferentes.

Em contrapartida, as coisas humanas, ao contrário do universo, apresentam


uma causalidade totalmente imprevisível. É o que Machiavel denomina de
Fortuna ou roda da fortuna. O termo “Fortuna” tem uma origem mítico-
�losó�ca, consistindo na personi�cação do “acaso”. A ideia expressa por ele
vem da deusa romana da sorte, representando as coisas inevitáveis que acon-
tecem aos seres humanos, tanto na vida cotidiana quanto na Política.
Signi�ca a impossibilidade de o homem dominar totalmente a história.
Porém, como veremos no texto a seguir, Machiavel considera que o homem
tem possibilidade de, até certo ponto, e de uma certa maneira, dominar o ine-
vitável.

A mutabilidade dos negócios humanos

Leia o trecho a seguir:

Sei que alguns pensaram e pensam que os negócios deste mundo são de tal manei-
ra governados por Deus e pelo destino que os homens, com toda a sua sabedoria,
não podem mudar e não encontram para isso remédio; assim, poderiam julgar que
suar sangue e água para dominá-los seria em vão, em vez de se deixar governar pe-
lo destino. Esse ponto de vista foi retomado em nossa época por causa das grandes
revoluções que se tem visto e que se veem todos os dias, e que excedem toda con-
jectura por parte dos homens. Se bem que, algumas vezes eu mesmo, pensando so-
bre isso, me deixei levar, em parte, por essa visão. No entanto, nosso livre arbítrio
não pode ser negado, estimo que possa ser verdadeiro que a sorte seja a senhora de
metade de nossas obras, mas que também ela nos deixa governar aproximadamen-
te a outra metade. Comparo o destino com um desses torrenciais que, em sua cóle-
ra, inundam as planícies ao redor, destroem árvores e casas, roubam a terra de um
lado para levá-la para outro; todos fogem diante deles, todo mundo cede ao seu fu-
ror, sem poder impedi-los com diques e aterros mais elevados. Apesar disso, os ho-
mens, em tempos amenos, não deixam de ter a liberdade de construir diques e ater-
ros de maneira que, se o rio subir novamente, suas águas desembocarão em um ca-
nal, ou sua fúria não será tão livre e tão destruidora. O mesmo acontece com a
Fortuna, que mostra seu poder onde não há construção que possa resisti-la, e que
ataca onde sabe que não há diques nem pontes para enfrentá-la (MACHIAVEL,
1995b, p. 177-178, tradução nossa).

A necessidade leva a �ns que a razão desconhece. Esse fato explica os aciden-
tes da história e sua aparência caótica. Inimiga do homem de ação, a Fortuna
pode vir a ser um seu auxiliar, com a condição de que ele saiba dominá-la por
meio da política. E nisto consiste a “virtù”, ou seja, na capacidade de adapta-
ção aos acontecimentos políticos e de consequente permanência no poder.
Segundo Machiavel, a tendência dos seres humanos é manter sempre a con-
duta que deu certo, atitude que levaria à perda do poder. Os grandes homens
políticos, que criam novas situações por sua virtù, são os “virtuosi”.
Machiavel apresenta uma teoria cíclica da sucessão dos governos,
inspirando-se no historiador grego Políbio (202-120 a.C.) e na República de
Platão. Segundo essa teoria, existe um ciclo determinado que se apresenta de
maneira regular, tornando possível a observação histórica. O ciclo é o seguin-
te:

1. O governo original é criado por vários homens de diferentes procedênci-


as, consistindo em um governo que é a monarquia.
2. Não tarda tal governo entrar, por sua vez, em decadência, degenerando-se
em tirania.
3. Surge, então, um novo governo melhor, a aristocracia.
4. Este não demora a degenerar-se em um governo oligárquico.
5. A este sucede um governo democrático que também não tarda a cair na
desordem, anarquia.
6. Nessa situação, só um príncipe ou um monarca pode salvar o povo. E o
ciclo recomeça.

Para deixar o ciclo mais claro, analise a Figura 5 a seguir:

Figura 5 Sucessão dos governos em Machiavel.

Sobre a questão de uma Ética em Machiavel, diz o professor Renato Janine


Ribeiro à Revista E:
A leitura dos textos de Machiavel nos leva a perceber que ele não defendia a tese de
que os �ns justi�cam os meios e de que o mal deve ser praticado para conseguir
um �m egoísta. Ele se mostra preocupado com o fato de que na política não exis-
tem regras �xas; governar, isto é, tomar a iniciativa política, é um trabalho extre-
mamente criativo e, por isso mesmo, sem parâmetros anteriores. Assim, essa preo-
cupação do �lósofo, por curioso que pareça, torna-se um bom instrumento para re-
pensar a ética. (RIBEIRO, 2015).

Continuando, Janine aproxima Machiavel de uma ética da responsabilidade –


classi�cação de Max Weber (1864-1920), sociólogo e economista alemão:

Para falar de ética, também é necessária uma alusão a Max Weber e sua teoria das
duas éticas. Weber, depois da Primeira Guerra Mundial, distingue a ética de princí-
pios, em que se aplicam valores já estabelecidos, da ética da responsabilidade, que
é a ética do estadista. Esta modalidade aponta para a necessidade de pensar nos
resultados possíveis de uma determinada ação. De modo geral, a ética da responsa-
bilidade é uma retomada de Machiavel; ela representa a interferência da política na
ética. [...]

Então, o ponto interessante de Machiavel e da questão ética está na maneira como


nós a enxergamos sob a luz da política. E hoje, com o �m das garantias tradicionais
para a ação do indivíduo privado, estamos todos mais ou menos na posição do
príncipe de Machiavel – isto é, num mundo de incertezas, dentro do qual temos de
inventar a melhor posição (RIBEIRO, 2015).

A importância de Machiavel está, sem dúvida, nesse suscitar da re�exão so-


bre a Ética e sobre as di�culdades inerentes à tomada de decisões, particular-
mente em campos especialmente móveis, como a política ou, hoje, a tecnolo-
gia.

O �lósofo francês Maurice Merleau-Ponty, em sua obra intitulada Signos, faz


uma descrição fenomenológico-existencial que visa compreender a obra de
Machiavel dentro de seu contexto existencial. Isso signi�ca que Merleau-
Ponty vê, na obra de Machiavel, um entendimento da política como algo emi-
nentemente humano, buscando a verdade dos acontecimentos, descrevendo-
os segundo se apresentam no mundo real, em sua instância de relação com o
outro, que seria um “signo” de valor na política, parte da experiência de seu
próprio tempo.

Assim, por exemplo, quando Machiavel escreve que o príncipe deve ter as qua-
lidades que ele aparenta, estaria enunciando uma condição fundamental da
política como ela era em seu tempo e continua a ser até os dias de hoje, que é
“se desenrolar na aparência”; quando Machiavel diz que o príncipe tem que ter
domínio de si para poder desenvolver posições contrárias no caso de ser ne-
cessário, isso signi�caria que, no campo da política, não há lugar para os valo-
res de uma moral abstrata. En�m, a verdade na política é aquela de quem tem
o poder e que não vê a própria imagem passada aos outros.

Merleau-Ponty vê, na obra O Príncipe, de Machiavel, a descrição da política


como ela tem sido e é através dos tempos e, como vimos, em tal política não
há lugar para a Ética.

A questão que colocaríamos seria a seguinte:

Responderíamos que a busca de Machiavel pela compreensão dos comporta-


mentos sociais e políticos não tem como objetivo propriamente o caráter des-
tes enquanto se mostram em si mesmos, mas, sim, enquanto se mostram à luz
de uma meta geral: a obtenção e a manutenção do poder político.

Uma visão ética é sempre uma visão concreta, o que signi�ca uma visão com-
pleta tanto da “morada interior”, ou seja, tanto dos fenômenos em si mesmos,
quanto da “morada exterior”, ou dos fatos em si. A visão de Machiavel perma-
nece na “morada exterior”, ou seja, nos fatos. E a pergunta �nal é:

Duas são as consequências principais da visão da política em Machiavel, no


que concerne à Ética, a nosso ver:

1. O ético ou a Ética estará necessariamente ausente em suas considerações


sobre a política, uma vez que tais considerações não contemplam a ação
política em seu sentido mais próprio, buscando esse sentido fora dela.
2. Não há regras propriamente de moralidade em sua concepção política,
pois, sem fundamento ético, não há moralidade. As regras de comporta-
mento por ele apresentadas são meros instrumentos de ação em busca do
poder e de sua manutenção. Para não citar senão algumas:

• : para permanecer no poder, é permitido, segundo Machiavel,


usar de meios coercitivos, como oprimir, cultivando o medo. Pode-se, ain-
da, recorrer a medidas primitivas mais sumárias com relação aos que
subvertem a política adotada, como as execuções.
• : em alguns casos, de acordo com Machiavel, é aconselhável
destruir cidades inteiras, quando o controle destas torna-se difícil, tendo
em vista a existência de grupos de cidadãos, dotados de consciência polí-
tica, buscando subverter a política implantada.
• : diz Machiavel, no capítulo XVIII da obra O Príncipe, que um
príncipe prudente não pode e nem deve guardar a palavra dada, se isso
vier a prejudicá-lo ou quando as causas que determinaram a palavra da-
da cessarem de existir. En�m, ser um bom simulador e dissimulador é
uma das qualidades do bom governante.

E, assim, muitos outros exemplos do pensamento em política de Machiavel se


encontram em sua obra principal, O Príncipe, cuja leitura aconselhamos. Ao
fazê-la, você perceberá o quanto suas ideias são atuais e em plena vigência
em nossa época.

No que diz respeito a convicções pessoais, estas con�guram uma moralidade


pessoal e não propriamente uma Ética, uma vez que se fundamentam em va-
lores e normas culturais.

Quanto a uma Ética da responsabilidade, ela concerne a consequências e não


a resultados. Em uma área como a política, particularmente assolada por cir-
cunstâncias, a postura ética é essencial (Aristóteles, recordemos, considerava
a Ética como propedêutica à política), pois toda circunstância, por sua própria
natureza, não comporta regras ou princípios gerais. Ela é fundamentalmente
singular. Atender às circunstâncias é buscar compreendê-las, o que signi�ca
“dar a justa medida”, captando seus sentidos (direções) e possibilidades. É tra-
balho para uma equipe de pro�ssionais, pois implica a atuação de vários cam-
pos do saber. Não há “savoir-faire”, nem mesmo o político, como parece pre-
tender Machiavel, que substitua o saber das razões que fundamentam uma si-
tuação circunstancial.

13. Phillipus Theophrastus Bombastus Von


Hohenheim – Paracelso (1493-1591)
Phillipus Theophrastus Bombastus von Hohenheim, médico suíço, autodeno-
minado Paracelso, era, além de médico, também alquimista, físico e astrólogo.
Alguns o consideram a própria expressão dessa visão mágica da natureza.
Para ele a natureza é uma força vital que cria, produz e transforma. Tudo é du-
plo: há um macrocosmo e um microcosmo; um mundo visível e um mundo in-
visível. A natureza só poderia ser conhecida por meio da alquimia, da astrolo-
gia e da magia.

O invisível não é um objeto, e por isso nunca se apresenta como imagem; é


energia viva e criativa que, a partir do interior das coisas, transforma-as no
que elas são. O invisível se mostra no visível, embora oculto. A natureza invi-
sível se movimenta pela imaginação e uma imaginação su�cientemente forte
é a origem da magia. É por meio da magia que captamos os sinais do invisível
no visível.

Segundo Paracelso, a saúde é um estado de equilíbrio das energias e a doença,


o desequilíbrio dessas mesmas energias. O médico deve reconhecer a ação da
natureza invisível no doente e a medicação deve responder ao modo como a
natureza trabalha no visível, respeitando determinados horários correspon-
dentes a certas constelações planetárias. Para curar, é necessário abrir-se às
forças naturais invisíveis, observando-as (ROUX-LANIER, 1995, p. 161).

Embora seja tido por muitos como charlatão e visionário, encontramos, em


Paracelso, não propriamente uma Ética cristã, resultado da institucionaliza-
ção dos ensinamentos de Jesus, o Cristo, mas a Ética trazida por Jesus de
Nazaré. Segundo Paracelso, o exercício da Medicina e os ensinamentos de
Jesus são inseparáveis. Trata-se essencialmente de uma Ética da Fé e do cor-
po enquanto expressão do espírito e vice-versa. Deus, segundo ele, é uma enti-
dade que devemos considerar antes de todas as outras coisas. É o princípio
que regula toda a vida, princípio que denominou de Moral.
A Fé seria o elemento básico de toda cura, pois é impossível curar o corpo sem
curar, ao mesmo tempo, o espírito. Todo mal que se faz ao corpo atinge o espí-
rito, pois o espírito é aquilo que, sem matéria, está dentro do corpo físico e é
gerado pelas nossas sensações e meditações. Por isso, o espírito pode sofrer as
mesmas doenças do corpo. Por sua vez, todo pensamento negativo sobre o ou-
tro poderá nos afetar, porque é fruto de uma vontade �xa, �rme e intensa, gera-
dora do espírito.

Considerações �nais: um panenteísmo ético


No que diz respeito à Ética, a posição de Paracelso é denominada de panen-
teísmo. Essa palavra foi cunhada pelo �lósofo alemão Karl C. F. Krause
(1781-1832) e signi�ca “Deus está presente em tudo”, o que não quer dizer “pan-
teísmo” (tudo é Deus).

De fato, a posição de Paracelso sobre o homem e a Ética expressa uma das ca-
racterísticas básicas do Renascimento, que, contrariamente à separação entre
a natureza e o Divino (que se deu na Idade Média), busca reaproximá-los.

Podemos dizer, a partir do que aqui vimos, que o transcendental que funda o
ético e o moral, em Paracelso, é a vontade divina. A liberdade estaria no reco-
nhecimento de nossa submissão à vontade divina. O ético e o moral se situari-
am nesse “dever” de se realizar a si mesmo, mediante a obediência à vontade
divina, tendo em vista o que caracteriza o homem, tornando-o único: o seu
realizar-se está subordinado a uma instância superior que o ultrapassa, mas
que se impõe a ele incondicionalmente. Deus �xa, na natureza do homem, a
sua medida por meio dos dez mandamentos. A liberdade do homem está em
decidir sobre os meios para obedecer ou não a essa vontade.

A sociedade é a oportunidade para o ser humano se transformar (transmuta-


ção alquímica interior) e se elevar, desenvolvendo sua essência na vida social,
mediante o respeito à sua origem como �lho de Deus. Estamos, assim, diante
de uma Ética de natureza empírica cujo fundamento é a fé (JEAN-PIERRE,
2012).

14. Michel de Montaigne (1533-1592)


Michel de Montaigne nasceu em um château da região francesa do Périgord.
Recebeu educação esmerada e fez carreira política. Viveu no período �nal da
Renascença, quando o entusiasmo e a con�ança nos homens já havia decres-
cido muito. Para Montaigne, a ciência da qual o homem tanto se orgulha não
propicia um conhecimento certo, pois seu instrumento principal, a razão abs-
trata, não tem maior valor que a imaginação, que está sujeita às variações das
impressões sensoriais.

A partir da leitura dos autores gregos e romanos, Montaigne desenvolve uma


análise crítica da razão humana. Referindo-se às obras morais de Plutarco,
mostra nelas a vaidade de pensar que o homem é superior ao animal. Chega,
assim, a um ceticismo �losó�co. Há sempre algo não passível de conhecimen-
to, algo que a razão humana jamais dominará. Mostra que a experiência antro-
pológica apresenta opiniões e costumes os mais diversos. Descreve um gran-
de número de exemplos de experiências ou fatos, evidenciando o caráter ilimi-
tado e misterioso da natureza, contrariando toda interpretação unilateral.
Observa que, quando nos abstemos de tomar partido em favor de uma deter-
minada ideia ou interpretação, nosso pensamento descobre, ao mesmo tempo,
a prodigiosa riqueza do real e a diversidade do espírito humano.

Montaigne expõe experiências humanas as mais diversas e contraditórias que


impossibilitam chegar a um conhecimento geral do ser humano. Chega, as-
sim, a um universo móvel, incerto e múltiplo. Não há, segundo Montaigne, ne-
nhuma esperança para nós de encontrarmos a causa das coisas em meio a es-
sa confusão e profusão de fatos. Há que se meditar sobre a contingência ou
impossibilidade de nossa razão chegar a uma só verdade.

Montaigne é sensível à dimensão ética propriamente dita, a do caráter, a do


espaço existencial (morada interior) e do tempo (campo de possibilidades) de
cada ser. Quer recuperar o ideal humanista individualista da cultura antiga.
Por meio dos ensinamentos dos clássicos, reconhece a limitação de nossa ca-
pacidade de conhecer. É cético quanto à possibilidade de conhecimento meta-
físico. Volta-se para a arte de viver. Sob a in�uência dos estoicos, busca o ca-
minho da sabedoria para a solução dos problemas da vida, sabedoria que con-
sistia em saber deliberar entre o bem e o mal para viver melhor. Dos estoicos
traz também o agir de acordo com a natureza para enfrentar as adversidades e
encontrar a paz.
O conhecimento generalizado é, para Montaigne, limitado. Não há julgamento
autônomo independente de uma consciência individual. Só nós mesmos so-
mos capazes de nos conhecer. De nós, o outro apenas consegue conjeturar a
partir do que lhe mostramos. O indivíduo carrega em si a essência da vida hu-
mana, essência essa que deve ser captada na singularidade do indivíduo e não
submetida a regras e conceitos gerais. A orientação deve ser buscada à luz das
singularidades.

Para Montaigne, ser ético é, principalmente, cultivar a amizade verdadeira,


que só pode ser vivida. Segundo observação de vários autores, a amizade, en-
quanto valor ético, não tem, para ele, apenas uma dimensão individual, mas
possui dimensão política, na medida em que ela só é possível onde há igual-
dade, liberdade e justiça (CALLADO, 2005).

Montaigne era muito amigo de Étienne de La Boétie (1530-1563), um dos cria-


dores da ideia moderna de democracia, a qual chamava de república livre,
pois, como observam muitos, essa noção de democracia ainda não existia. Em
sua obra Discurso sobre a Servidão Voluntária, escrita a partir da observação
dos acontecimentos de seu tempo, rejeita todas as formas de demagogia; de-
fende a liberdade e a igualdade de todos os homens no nível político; eviden-
cia a força da opinião pública; prefere a república, rejeitando a monarquia co-
mo forma de governo, pois o poder de um só homem sobre os outros é ilegíti-
mo.

A experiência da perda do amigo, com quem debatia longamente questões im-


portantes, fez Montaigne confrontar-se com a dor e a solidão, experiência que
surge frequentemente em sua obra Ensaios, que escreveu já afastado da vida
pública na política. Essa obra consiste em considerações humanistas sobre a
existência, próprias do �m do século 16, que vão desde temas da vida corrente
até os de religião e �loso�a. Nela Montaigne analisa escritos de Lucrécio
(95-53 a.C., datas prováveis) – poeta e �lósofo que escreveu o poema De Rerum
Natura (Sobre a Natureza das Coisas), um tratado de �loso�a epicurista; Cícero
(106-43 a.C.) – advogado, orador, escritor romano e autor do célebre discurso
contra Catilina (patrício romano, conspirador sem escrúpulos), recitado no
Templo de Júpiter em 63 a.C.; Sêneca (65-4 a.C.) – escritor, �lósofo romano e
importante representante do estoicismo, que defendia a Ética e a vida simples;
e sobretudo Plutarco (120-45 a.C.) – �lósofo grego que teve muita in�uência so-
bre ensaios e biogra�as na literatura ocidental, cuja obra Bioi paralleloi (Vida
de homens ilustres) consiste em 64 biogra�as de personagens gregos e roma-
nos importantes e é considerada a fonte mais importante de ideias tradicio-
nais sobre a Antiguidade greco-romana.

Visando ao homem comum, Montaigne busca liberar a �loso�a de abordagens


estritamente metafísicas e dogmáticas, concretizando a liberdade de apresen-
tar diferentes perspectivas ao mesmo tempo. Montaigne escreve em francês
(é o primeiro pensador, na época, a se expressar em francês). Embora não
apresente o desenvolvimento sistemático de uma ideia, sua obra é �losó�ca na
medida em que situa suas considerações no nível daquilo que funda as dife-
rentes razões que constroem o pensamento da época (ROUX-LANIER, 1995).

Indo do homem universal à condição humana, Montaigne, em vez de partir de


modelos morais como os dos sábios, prefere proceder à observação concreta
da variação que nos conduz ao indivíduo único e singular. Preserva, assim, o
caráter misterioso e imprevisível de cada ser, mas não concebe esse caráter
único de cada ser, coisa ou situação como uma verdade objetiva. O que chama
de “ciência moral” não consiste em uma doutrina moral, concebida à maneira
dos estoicos, para quem o universo pode ser explicado racionalmente porque
tem uma estrutura racionalmente organizada, consistindo a felicidade em ter
fé nessa racionalidade oculta, discernindo-a e aceitando-a plenamente, alcan-
çando, desta maneira, a perfeição. Para Montaigne, a honra, a �delidade e a
amizade são qualidades éticas importantes. Para ele, cujas obras tiveram
grande in�uência sobre escritores e �lósofos dos séculos seguintes, é possível
fazer o que atende ao caráter de cada um e de cada situação e, assim, ser feliz.
Viver eticamente é viver o momento presente, é meditar sobre a morte e a ela
submeter a autenticidade de nossa vida.

No texto que se segue, Montaigne critica a pretensão humana de tudo conhe-


cer e chegar a verdades absolutas ou dogmáticas por meio da razão �losó�ca.
Observa e analisa o fenômeno humano no seu caráter mais próprio.
Consideremos o homem só, sem qualquer ajuda a ele estranha, armado somente
com suas armas e desprovido da graça e conhecimento divinos, os quais constitu-
em toda a sua honorabilidade, sua força e o fundamento de seu ser. Vejamos quanto
de dignidade há nesse belo revestimento. Que ele me faça entender, pelo esforço de
seu discurso, sobre quais bases construiu as vantagens que ele pensa ter sobre as
outras criaturas. Quem o persuadiu que esta dança admirável da abóbada celeste,
que a luz eterna destes clarões que voam orgulhosamente sobre sua cabeça, os mo-
vimentos terríveis deste mar in�nito foram estabelecidos e mantidos durante tan-
tos séculos para a sua comodidade e a seu serviço? É possível imaginar algo mais
ridículo do que esta criatura frágil, que nem mestre de si mesmo é, passível de ser
atingida pela ação violenta das coisas, se proclamar mestre e senhor do universo, o
qual não tem o poder de conhecer minimamente, quanto mais de comandá-lo? E
esse privilégio que atribui a si mesmo, de ser único nesta construção do universo,
de ser capaz de reconhecer sua beleza e partes, de ser o único a dar graças ao seu
arquiteto e entender a receita e a criação do mundo, quem lhe concedeu esse privi-
légio? […]

A presunção é nossa doença natural e original. A mais calamitosa e frágil de todas


as criaturas é o homem e, ao mesmo tempo, a mais orgulhosa. Ele se sente e se vê
alojado aqui, em meio à lama e aos dejetos do mundo, atado e pregado à pior, à mais
morta e vendida parte do universo, situado no último lugar, afastado da abobada
celeste, [...] e vai se colocando pela imaginação acima do círculo da lua e trazendo o
céu para abaixo de seus pés. É pela vaidade dessa mesma imaginação que ele se
iguala a Deus, que se atribui condições divinas, que se distingue e se separa da
multidão das outras criaturas, classi�ca os animais, seus irmãos e companheiros,
atribuindo-lhes determinadas quantidades de faculdades e de forças a seu bel pra-
zer. Como conhece ele, pela sua inteligência, as formas internas e secretas dos ani-
mais? Por meio de qual comparação deles conosco chega à conclusão pouco re�eti-
da e inteligente sobre tais atribuições? (MONTAIGNE, 1995, p. 189-190, tradução nos-
sa).

A natureza não opera por distinções:


Mas, quando estou em meio a opiniões mais moderadas, em meio àqueles discur-
sos que tentam mostrar a semelhança nossa com os animais, e como eles têm co-
mo nós os maiores privilégios, e quanta semelhança possuem conosco, certamente
desconto muito dessa nossa pretensão, e me libero com prazer dessa misti�cação
que nos atribui uma realeza imaginária em relação às outras criaturas.

Quando tudo o que aqui foi falado não for considerado, que haja um certo respeito e
um dever geral de humanidade nos ligando não apenas aos animais que têm vida e
sentimento, mas também às próprias árvores e às plantas. Nós devemos justiça aos
homens e a graça da clemência às outras criaturas capazes de bondade. [...] os tur-
cos dão esmolas e têm hospitais para os animais. Os Romanos têm um cuidado pú-
blico com o alimento das corujas, seu Capitólio foi salvo graças à vigilância das co-
rujas; os atenienses ordenaram que as mulas e os jumentos que tivessem auxiliado
a construção do templo chamado Hecatompedon fossem deixados livres e para
pastar, sem impedimento, em qualquer lugar. [...] Os egípcios enterravam os lobos,
os ursos, os crocodilos, os cães e os gatos em lugares sagrados, embalsamando
seus corpos e guardando luto (MONTAIGNE, 1995, p. 190-191, tradução nossa).

Veja, no texto transcrito a seguir, que Montaigne critica o instrumento pelo


qual o ser humano acredita ser a mais elevada das criaturas deste planeta, a
razão enquanto faculdade de abstrair e generalizar:

Chamo sempre razão esta aparência de raciocínio que cada um forja em si; essa ra-
zão com relação à qual podem existir outras contrárias sobre o mesmo tema é um
instrumento de chumbo e de cera, prorrogável, maleável e acomodada a qualquer
viés e a todas as medidas, não resta senão a capacidade de contorná-la. Seja qual
for o plano bem intencionado que tenha um juiz, se ele não se ouve no seu íntimo,
coisa que poucos gostam de fazê-lo, a inclinação à amizade, ao parentesco, à beleza
e à vingança, e não somente a sentimentos tão dominantes, mas ainda a este ins-
tinto fortuito que nos faz favorecer mais a um do que a outro, e que, na escolha de
temas semelhantes, mesmo estando presente a razão [...], podem se insinuar insen-
sivelmente em seu julgamento favorecer ou desfavorecer [...].

Eu que me vejo de mais perto, que tenho os olhos incessantemente voltados para
mim [...], mal ousaria dizer a vaidade e a fraqueza que encontro em mim. Eu ando
tão instável e tão mal assentado, eu me acho tão susceptível de escorregar e de me
desequilibrar, e minha visão tão confusa, a ponto de quando em jejum me sentir ou-
tro do que após me alimentar; se tenho algo que me espeta os dedos do pé, eis me
carrancudo, de mau humor e inacessível (MONTAIGNE, 1995, p. 302-303, tradução
nossa).
Com relação a grupos humanos muito diferentes dos europeus, os quais tem-
se o hábito de denominar de “selvagens” ou de “bárbaros”, Montaigne faz uma
re�exão sobre a precariedade de tais julgamentos sobre o que é civilizado e o
que não é.

Penso, voltando aos meus propósitos, que não existe nada de bárbaro nem de selva-
gem naquilo que me relataram, senão que cada um chama de bárbaro o que não
corresponde a um costume seu; verdadeiro também parece dizer que não temos ou-
tra visão da verdade e da razão além daquela das opiniões e costumes do país em
que vivemos. No nosso país a religião é perfeita, a polícia é perfeita, o uso de todas
as coisas é perfeito. São selvagens da mesma maneira que consideramos selvagens
os frutos que a natureza produz de si mesma e em seu desenvolvimento natural: na
verdade, são aqueles frutos que alteramos arti�cialmente, impedindo-os de se de-
senvolverem naturalmente, que deveriam ser denominados selvagens. Nos primei-
ros, estão vivas e vigorosas as verdadeiras e as mais úteis e naturais virtudes e pro-
priedades, as quais nós degeneramos e adaptamos de acordo com o nosso paladar
corrompido [...]. Não há por que a arte ser mais considerada do que a mãe Natureza.
Nós sobrecarregamos de tal maneira a beleza e a riqueza das obras da natureza que
a sufocamos (MONTAIGNE, 1995, p. 305-306, tradução nossa).

Com a re�exão de Montaigne sobre o problema ético envolvido na problemáti-


ca da re�exão �losó�ca, re�exão essa que pretende abarcar todos os seres sin-
gulares, partindo de noções gerais, ele chama a atenção para essa pretensão e
aponta algumas de suas falhas, o que re�ete uma forte crítica ao dogmatismo
�losó�co, caracterizando o pensador com um autêntico cético em relação a
essas pretensões humanas. Chamamos a atenção para a crítica que
Montaigne desfere, nessa nossa última citação, à sociedade europeia de sua
época, que considera as outras sociedades como “bárbaras”. Essa crítica é bem
avançada para o seu tempo e encontrará adeptos em vários pensadores da
história da Filoso�a.

Sugerimos que você procure responder, discutir e comentar as questões a se-


guir, relacionadas ao contexto humanista e antropocentrista em que se desen-
volve o Renascimento, das implicações que essa nova visão de mundo (que
pretende explicar tudo a partir do homem, e que busca uma divinização da
Natureza) terá sobre o pensamento moral e ético desse período. Tentamos sa-
lientar aquilo que se fará presente em toda a nossa re�exão sobre o ético nesta
obra, ou seja, a busca por encontrar, na tradição �losó�ca, as possíveis re�e-
xões que tentaram, de alguma forma, tratar do “característico de”, do “singular”
ou do ético, como salientamos em nossa Abordagem Geral.

Além da leitura anterior, indicamos também os seguintes vídeos:

• Discurso sobre a Dignidade do homem - Pico della Mirandola, Livre arbí-


trio (https://www.youtube.com/watch?v=ltSAnQKVkIU)
• Maquiavel e a Arte de enganar-se (https://www.youtube.com
/watch?v=ca3KMPG-Zwg)
• Montaigne e a Autoestima (https://www.youtube.com/watch?v=GuT-
ybaerok&list=PLcjvH2jdkvA6sNegK30h-oN6PyTO5__UK)

Agora, como ocorreu no ciclo anterior, chegou o momento de re�etir sobre sua
aprendizagem respondendo à questão a seguir:

14. Considerações
Neste ciclo, estudamos algumas das principais teorias éticas da Filoso�a
Medieval e do Renascimento. Dentre as principais ideias da ética medieval,
salientamos a questão do livre-arbítrio e da consciência moral - enquanto no-
ção de que cada indivíduo pode optar livremente em se aproximar ou se afas-
tar de Deus, o sumo Bem e o critério para a vida moral. No Renascimento ob-
servamos uma ética antropocêntrica, pautada em ideais humanistas, natura-
listas e na autonomia humana. Essas concepções serão fundamentais para
compreendermos as éticas modernas, que nasceram de projetos epistemológi-
cos em torno do questionamento acerca dos limites e das condições do conhe-
cimento.

Preparado(a) para a próxima etapa?


(https://md.claretiano.edu.br/eti-gs0123-

fev-2023-grad-ead/)

Ciclo 3 – Contribuições Modernas para a Ética:


Racionalismo e Empirismo

Telma Apparecida Donzelli

Objetivos
• Conhecer as mudanças epistemológicas da Modernidade e relacioná-las
com as propostas da moral e da Ética do racionalismo e do empirismo
modernos.
• Compreender a proposta ética de René Descartes.
• Analisar os desdobramentos, na proposta de Spinoza, de uma Ética pu-
ramente racional-intuitiva.
• Conhecer a moral e o estado de direito em Thomas Hobbes e John
Locke.
• Compreender o empirismo e o início de uma moral utilitarista com John
Locke.
• Compreender a proposta do empirista David Hume sobre a moral.

Conteúdos
• As novas perspectivas éticas do período moderno e suas respectivas
metodologias de re�exão, dentre os quais encontraremos René
Descartes, Baruch Spinoza, Thomas Hobbes e John Locke.
• O empirismo como método em David Hume.
• A moral empirista de David Hume.

Problematização
A modernidade nasce pela ênfase no pensamento racional, na relevância
do cogito, orientando o valor do aspecto subjetivo: como isso impactou o pen-
samento sobre a ética? No período moderno houve divergências na concep-
ção de ética? Como se apresenta a proposta ética de Hume, quais suas carac-
terísticas e contribuições ao pensamento ético? Qual a relevância de Hume
para o pensamento de Kant?

Orientação para o estudo


Neste ciclo de aprendizagem, faremos inúmeras menções às �loso�as do
Racionalismo e do Empirismo em seu recorte com a Ética. Por conta disso,
orientamos que busque auxílio em manuais, artigos acadêmicos e dicionári-
os. Alguns conceitos serão extraídos das áreas da Teoria do Conhecimento
(Epistemologia) e da História da Filoso�a Moderna e, por isso, nem sempre
serão aprofundados pontualmente. Em caso de dúvida, entre em contato com
seu tutor.

1. Introdução
Como tentativa de superação de várias propostas do ceticismo moderno
(https://www.youtube.com/watch?v=xATfYuuVCC8), que duvidavam da capa-
cidade da razão humana para conhecer a realidade exterior (Deus, mundo e o
próprio homem), alguns �lósofos, a partir do séc. XVII, propuseram questionar
os limites e as fontes do conhecimento. Ou seja, antes mesmo de a�rmar a na-
tureza do “ser” e da essência das coisas (homem, mundo e Deus), conforme fez
a Filoso�a Antiga e Medieval, pensaram que seria mais adequado investigar a
possibilidade do conhecimento – isto é, o que a razão humana realmente é ca-
paz de conhecer.

Como propostas, surgiram movimentos epistemológicos como o racionalismo


e o empirismo. Ambos apresentaram a mesma �nalidade: abandonar a pes-
quisa do “ser” e passar para a investigação do “conhecer”; porém, partiram de
premissas distintas no que diz respeito à origem do conhecimento. Passemos
então pelas éticas racionalistas e empiristas.
2. Éticas Racionalistas
De modo geral, o racionalismo trata-se de uma doutrina �losó�ca que atribui
exclusiva con�ança à razão como fonte e origem do conhecimento, atribuindo
à experiência (isto é, tudo aquilo que pode ser acessado pelos sentidos) um
processo cognitivo secundário. Dentre os diversos autores racionalistas, estu-
daremos mais especi�camente as propostas éticas de René Descartes e
Baruch Spinoza.

É um consenso para os historiadores da Filoso�a considerar René Descartes


(1596-1650) como o “fundador da Filoso�a Moderna” (REALE; ANTISERE, 2004,
p. 283), muito por conta da mudança de orientação �losó�ca daquela comum
ao pensamento antigo e medieval: “Com Descartes a �loso�a recebe uma colo-
cação crítica e gnosiológica: o que se quer veri�car em primeiro lugar é o valor
do conhecimento humano” (MONDIN, 1982, p. 62). Ao invés de investigar a na-
tureza empírica das coisas particulares – que se fundamenta do uso dos senti-
dos –, o principal é conhecer o potencial da razão:

Se alguém quiser investigar a sério a verdade das coisas, não deve escolher uma ci-
ência particular: estão todas unidas entre si e dependentes umas das outras; mas
pense apenas em aumentar a luz natural da razão, não para resolver esta ou aquela
di�culdade de escola, mas para que, em cada circunstância da vida, o intelecto
mostre à vontade o que deve escolher. Em breve �cará espantado de ter feito pro-
gressos muito superiores aos de quantos se dedicam a estudos particulares, e de ter
obtido não só tudo o que os outros desejam, mas ainda coisas mais elevadas do que
as que podem esperar (DESCARTES, 1985, p. 13).

A partir da de�nição do seu método, a preocupação de Descartes era encontrar


um ponto de partida indubitável e evidente para o conhecimento. Para tanto
utilizou-se da chamada “dúvida metódica”: colocou tudo sob o �ltro do questi-
onamento (sentidos, senso comum, verdades do raciocínio, argumentos de au-
toridade etc.); aquilo que resistisse ao próprio ato da dúvida, poderia ser uma
verdade clara e evidente por si mesma. De todas as coisas, a única ideia que
continuou inabalável à dúvida metódica foi o cogito (pensamento): podemos
duvidar de tudo que existe; mas, a única coisa que não podemos negar é o fato
de que continuamos a pensar até mesmo quando duvidamos das coisas e do
próprio pensamento.
Mas logo depois atentei que, enquanto queria pensar assim que tudo era falso, era
necessariamente preciso que eu, que o pensava, fosse alguma coisa. E, notando que
esta verdade – penso, logo existo – era tão �rme e tão certa que todas as mais ex-
travagantes suposições dos cépticos não eram capazes de a abater, julguei que po-
dia admiti-la sem escrúpulo como o primeiro princípio da �loso�a que buscava
(DESCARTES, 2001, p. 38).

Baseado em Platão, o pensamento de Descartes leva em consideração que o


homem é composto de duas substâncias distintas: a) Res Cogitans: alma /
pensamento; b) Res Extensa: corpo / matéria. Esse é o chamado dualismo psi-
cofísico cartesiano, uma vez que separa alma e corpo como substâncias dis-
tintas. Porém, apesar de diferentes, corpo e alma possuem uma relação: atra-
vés da imaginação, o corpo oferece à alma os elementos sensíveis do mundo
(paixões, apetites e sentimentos); e através da razão, alma controla os senti-
mentos e prazeres corporais.

Desta maneira, a concepção cartesiana sobre a relação entre corpo e alma está
vinculada ao controle racional das paixões corporais através de um comporta-
mento moral virtuoso; a ética para uma vida feliz depende do maior ou do me-
nor uso da reta razão. Portanto, a essência do homem consiste na res cogitans
(pensamento e razão), que refreia a potencialidade dos erros e das opiniões ad-
vinda da res extensa (sentidos e paixões corporais) – conforme ilustrado nas
máximas de sua moral provisória.

Baruch Spinoza (1632-1677), embora também racionalista, diverge de várias


ideias da ética cartesiana. Ele também concebe que o ser humano é constituí-
do de corpo e alma, mas não o considera a partir do dualismo de “substâncias”
distintas. Para Spinoza, Descartes criou uma ambiguidade ao propor o concei-
to de substância. Em Princípios da Filoso�a, Descartes tinha a�rmado que,
“quando concebemos a substância, concebemos uma coisa que existe de tal
maneira que só tem a necessidade de si própria para existir” (DESCARTES,
1997, p. 45). Ora, levando em consideração essa de�nição, somente Deus (res
in�nita) poderia ser então uma substância – e não mais o pensamento (res co-
gitans) e a matéria (res extensa), consideradas como criaturas. Para sair desta
situação, Descartes apresentou uma segunda de�nição de substância: são
também substâncias aquelas realidades criadas (tanto as pensantes como as
corpóreas) que, para existirem, “só têm necessidade do concurso ordinário de
Deus”, diferentemente dos atributos, que dependem de outras coisas criadas
para existirem (DESCARTES, 1997, p. 45).

Embora a segunda de�nição sirva para resolver o problema criado pela pri-
meira, é inegável a ambiguidade em torno do conceito de substância: trata-se
daquilo que “depende” e, ao mesmo tempo, “não depende” de outra coisa para
existir. Ao perceber essa contradição conceitual, Spinoza conclui que a única
maneira de resolver essa aporia seria considerar a existência de uma substân-
cia só, de modo unívoco e radical, como causa sui (causa de si mesma): “por
substância compreendo aquilo que existe em si e que por si mesmo é concebi-
do” (SPINOZA, 2016, p. 13). Portanto, para o autor, só Deus pode ser causa de si
mesmo: “por Deus compreendo [...] uma substância que consiste de in�nitos
atributos, cada um dos quais exprime uma essência eterna e in�nita”
(SPINOZA, 2016, p. 13).

Se Deus é a única realidade que pode ser identi�cada como substância, o que
seria então o pensamento e a matéria? Segundo Spinoza, pensamento e maté-
ria não seriam substâncias, mas atributos in�nitos de uma única substância:
“o atributo é aquilo que, da substância, o intelecto percebe como constituindo a
sua essência” (SPINOZA, 2016, p. 18). Na realidade, a substância (Deus) possui
in�nitos atributos constitutivos de sua essência; no entanto, a �nitude do inte-
lecto humano concebe apenas dois: o pensamento e a extensão (materialida-
de).

Essa perspectiva – de uma única substância – desconstrói totalmente o dua-


lismo corpo-alma de Descartes, bem como sua premissa moral: para Spinoza,
corpo e alma não são realidades distintas e separadas, pois pertencem ontolo-
gicamente à mesma substância (Deus) – são diferentes apenas enquanto atri-
butos da mesma essência. E se não são substâncias distintas, então quer dizer
que não existe uma relação de causalidade ou de hierarquia entre corpo e al-
ma, mas apenas um paralelismo. “Nem o corpo pode determinar a mente a
pensar, nem a mente pode determinar o corpo ao movimento ou ao repouso,
ou a qualquer outro estado (se é que existe)” (SPINOZA, 2009, p. 100).

Por isso, ao contrário da tradição dualista (https://www.infoescola.com/�loso-


�a/dualismo/) platônica e cartesiana, para Spinoza não convém dizer que os
afetos habitam o domínio da irracionalidade e, por isso, precisam ser contidos
pela razão livre e ativa; pelo contrário, para o �lósofo, o afeto (http://www.scie-
lo.br/pdf/fractal/v21n2/12.pdf) também é uma forma legítima e constitutiva
do ser humano se realizar enquanto sujeito pensante. Isso quer dizer que, de
acordo com Spinoza, a felicidade humana não decorre do bom uso da razão,
mas da libertação das potências afetivas (https://www.youtube.com/wat-
ch?v=GGkeXeKuRkw), especialmente da alegria, o mais positivo e propositivo
afeto de todos.

3. René Descartes (1596-1650) e uma “Moral de


Provisão”
Descartes, como sabemos, é o �lósofo do “método” ou do caminho para se che-
gar a verdades claras e exatas. Em 1619, estando combatendo os espanhóis, no
exército do príncipe holandês Maurício de Nassau, Descartes tem três visões
ou sonhos a partir dos quais concebe “os fundamentos de uma ciência admi-
rável”, sobre a qual, por volta de 1620, começa a redigir a obra Regras para a di-
reção do espírito, obra essa que só será publicada em 1701.

Considerado o grande fundador do pensamento racionalista moderno, sua


marca inconfundível é o princípio da “dúvida”: tudo o que pensamos saber ou
acreditamos existir deverá passar pelo crivo da dúvida.

Nesse sentido, em Meditações (Meditação 1), a�rma:


1. Há algum tempo eu me apercebi de que, desde meus primeiros anos, recebera
muitas falsas opiniões como verdadeiras, e de que aquilo que depois fundei em
princípios tão mal assegurados não podia ser senão mui duvidoso e incerto; de mo-
do que me era necessário tentar seriamente, uma vez em minha vida, desfazer-me
de todas as opiniões a que até então dera crédito, e começar tudo novamente, desde
os fundamentos, se quisesse estabelecer algo de �rme e de constante nas ciências.
Mas, parecendo-me ser muito grande essa empresa, aguardei atingir uma idade
que fosse tão madura que não pudesse esperar outra após ela, na qual eu estivesse
mais apto para executá-la; o que me fez diferi-la por tão longo tempo que doravante
acreditaria cometer uma falta se empregasse ainda em deliberar o tempo que me
resta para agir.

Agora, pois, que meu espírito está livre de todos os cuidados, e que consegui um re-
pouso assegurado numa pací�ca solidão, aplicar-me-ei seriamente e com liberdade
a destruir em geral todas minhas antigas opiniões. Ora, não será necessário, para
alcançar esse desígnio, provar que todas elas são falsas, o que talvez nunca levasse
a cabo; mas, uma vez que a razão já me persuade de que não devo menos cuidado-
samente impedir-me de dar crédito às coisas que não são inteiramente certas e in-
dubitáveis, do que às que parecem manifestamente ser falsas, o menor motivo de
dúvida que eu nelas encontrar, bastará para me levar a rejeitar todas (DESCARTES,
1973a, p. 93).

A questão da moral em Descartes: uma moral de “provisão”


Descartes propõe, inicialmente, em sua famosa obra Discurso do Método, o que
chamou de “moral de provisão”, partindo para o estabelecimento de normas
ou máximas que nos permitissem nos aproximar da verdadeira virtude – nor-
mas ou máximas que são, no entanto, segundo o �lósofo, imperfeitas, necessi-
tando de aperfeiçoamento. Trata-se de uma moral provisória, elaborada antes
da construção das bases do edifício do saber a que se propunha e que permiti-
ria orientar a conduta até que fosse possível a elaboração de uma moral de�-
nitiva, a qual seria o ponto mais alto do referido edifício do saber.

São três as máximas por ele estabelecidas na obra citada:

1. a vida de cada um deve ser conforme os desígnios de Deus e as leis e cos-


tumes de seu país;
2. a “prudência” é a atitude que supriria a imperfeição;
3. deve-se procurar vencer a si mesmo, mudando os próprios desejos e não
a ordem do mundo.

A primeira máxima

A vida de cada um deve ser não apenas conforme os desígnios divinos, que
seriam os mais justos, mas, ainda, conforme a conduta daqueles que seguem
as leis e os costumes de seu país e que são os moderados e sensatos.

Referindo-se a essa primeira regra, diz Descartes:

A primeira era obedecer às leis e aos costumes de meu país, retendo constante-
mente a religião em que Deus me concedeu a graça de ser instruído desde a infân-
cia, e governando-me, em tudo o mais, segundo as opiniões mais moderadas e as
mais distanciadas do excesso, que fossem comumente acolhidas em prática pelos
mais sensatos daqueles com os quais teria de viver. Pois, começando desde então a
não contar para nada com minhas próprias opiniões, porque eu as queria submeter
todas a exame, estava certo de que o melhor a fazer era seguir as dos mais sensa-
tos. E, embora haja talvez, entre os persas e chineses, homens tão sensatos como
entre nós, parecia que o mais útil seria pautar-me por aqueles entre os quais teria
de viver (DESCARTES, 1973a, p. 49-50).

A segunda máxima: a “prudência”

Em vez de adotarmos teimosamente uma decisão ou de permanecermos inde-


cisos, quando não possuímos todas as informações necessárias, é prudente to-
mar a decisão de agir (resolução) em uma determinada direção.
Minha segunda máxima consistia em ser o mais �rme e o mais resoluto possível
em minhas ações, e em não seguir menos constantemente do que se fossem muito
seguras as opiniões mais duvidosas, sempre que eu me tivesse decidido a tanto.
Imitando nisso os viajantes que, vendo-se extraviados nalguma �oresta, não de-
vem errar volteando, ora para um lado, ora para outro, nem menos ainda deter-se
num sítio, mas caminhar sempre o mais reto possível para um mesmo lado, e não
mudá-lo por fracas razões, ainda que no começo só o acaso talvez haja determina-
do sua escolha: pois, por este meio, se não vão exatamente aonde desejam, ao me-
nos chegarão no �m a alguma parte, onde verossimilmente estarão melhor do que
no meio de uma �oresta. E, assim como as ações da vida não suportam às vezes
qualquer delonga, é uma verdade muito certa que, quando não está em nosso poder
o discernir as opiniões mais verdadeiras, devemos seguir as mais prováveis; e mes-
mo, ainda que não notemos em umas mais probabilidades do que em outras, deve-
mos, não obstante, decidir-nos por algumas e considerá-las depois não mais como
duvidosas, na medida em que se relacionam com a prática, mas como muito verda-
deiras e muito certas, porquanto a razão que a isso nos decidiu se apresenta como
tal. E isto me permitiu, desde então, libertar-me de todos os arrependimentos e re-
morsos que costumam agitar as consciências desses espíritos fracos e vacilantes
que se deixam levar inconstantemente a praticar, como boas, as coisas que depois
julgam más (DESCARTES, 1973a, p. 50-51).

A terceira máxima: a conduta correta é aquela que respeita as possibilidades


de um mundo regido por leis imutáveis e acima de nosso alcance

Descartes a�rma que


Minha terceira máxima era a de procurar sempre antes vencer a mim próprio do
que à sorte, e de antes modi�car os meus desejos do que a ordem do mundo; e, em
geral, a de acostumar-me a crer que nada há que esteja inteiramente em nosso po-
der, exceto os nossos pensamentos, de sorte que, depois de termos feito o melhor
possível no tocante às coisas que nos são exteriores, tudo em que deixamos de nos
sair bem é, em relação a nós, absolutamente impossível. E só isso me parecia su�-
ciente para impedir-me, no futuro, de desejar algo que não pudesse adquirir, e, as-
sim, me tornar contente. Pois, inclinando-se a nossa vontade naturalmente a dese-
jar só aquelas coisas que nosso entendimento lhe representa de alguma forma co-
mo possíveis, é certo que, se considerarmos todos os bens que se acham fora de nós
como igualmente afastados de nosso poder, não lamentaremos mais a falta daque-
les que parecem dever-se ao nosso nascimento, quando deles formos privados sem
culpa nossa, do que lamentamos não possuir os reinos da China ou do México; e
que fazendo, como se diz, da necessidade virtude, não desejaremos mais estar sãos,
estando doentes, ou estar livres, estando na prisão, do que desejamos ter agora cor-
pos de uma matéria tão pouco corruptível quanto os diamantes, ou asas para voar
como as aves. (DESCARTES, 1973a, p. 51).

Tal conduta exigiria preparo:

Mas confesso que é preciso um longo adestramento e uma meditação amiúde reite-
rada para nos acostumarmos a olhar por este ângulo todas as coisas; e creio que é
principalmente nisso que consistia o segredo desses �lósofos, que puderam outrora
subtrair-se ao império da fortuna e, malgrado as dores e a pobreza, disputar felici-
dade aos seus deuses. Pois, ocupando-se incessantemente em considerar os limites
que lhes eram impostos pela natureza, persuadiram-se tão perfeitamente de que
nada estava em seu poder além dos seus pensamentos, que só isso bastava para
impedi-los de sentir qualquer afecção por outras coisas; e dispunham deles tão ab-
solutamente, que tinham neste particular certa razão de se julgarem mais ricos,
mais poderosos, mais livres e mais felizes que quaisquer outros homens, que, não
tendo esta �loso�a, por mais favorecidos que sejam pela natureza e pela fortuna, ja-
mais dispõem assim de tudo quanto querem (DESCARTES, 1973a, p. 51).

Porém, em suas demais obras, como Meditações, e particularmente em sua


correspondência com a princesa do Palatino, Isabel da Boêmia, a quem pro-
meteu e escreveu o Tratado das Paixões da Alma, sua última obra publicada
em 1649, poucos meses antes de sua morte, encontraremos mais subsídios pa-
ra a possível con�guração de uma moral cartesiana. Nessas suas últimas
obras, Descartes procura elaborar uma moral mais perfeita, retomando em no-
vos contextos o que dissera na moral de provisão.

Veremos, nesses seus escritos, que Descartes, no que concerne à questão da


conduta moral correta, fundamenta-se em algumas verdades que considera
essenciais: a existência de Deus; o fenômeno da vontade ilimitada; a limitação
do entendimento; o recurso ao hábito; razão e liberdade; a “unidade” da alma; a
união da alma e do corpo e as paixões; a virtude como soberano bem.

A existência de Deus: Ele existe, pois sua existência pode


ser demonstrada
Diz Descartes:

Entendo por Deus uma substância in�nita, eterna, imutável, independente, puro co-
nhecimento, puro poder, pelo qual eu próprio e tudo o que existe (se é verdade que
há algo existente) foi criado e produzido. Ora, tais vantagens são tão grandes e ad-
miráveis que quanto mais atentamente eu as considero, mais me convenço de que
a ideia de Deus não pode se originar unicamente de mim. E, consequentemente, se
faz necessário concluir que Deus existe: pois, embora a ideia de substância exista
em mim, uma vez que sou uma substância, não teria, entretanto, a ideia de uma
substância in�nita, eu que sou um ser �nito, se tal ideia não tivesse sido colocada
em mim por alguma substância que não fosse verdadeiramente in�nita.

E, não devo imaginar que tal concepção de in�nito não seja uma verdadeira ideia,
mas somente resultado da negação do que é �nito, da mesma maneira que compre-
endo o repouso e as trevas pela negação do movimento e da luz: isso porque vejo
claramente que existe mais realidade na substância in�nita do que na substância
�nita e, em consequência, tenho em mim a noção de in�nito e de Deus antes da no-
ção de �nito e de mim mesmo. Pois, como seria possível que eu pudesse saber que
duvido e que desejo, isto é, que me falta algo e que não sou perfeito, se não tivesse
em mim a ideia de um ser mais perfeito do que o meu ser, em comparação com o
qual eu pudesse ter o conhecimento dos defeitos de minha natureza? (DESCARTES
apud ROUX-LANIER; et al., 1995, p. 224, tradução nossa).

O fenômeno da vontade: temos todos uma vontade ilimita-


da porque fomos criados à imagem e semelhança de Deus
E, sobre o fenômeno da vontade, Descartes conclui:
Não há senão a vontade que experimento em mim ser tão grande, que não concebo
nenhuma outra mais ampla e mais extensa: de maneira que é ela principalmente
que me faz saber que trago em mim a imagem e a semelhança de Deus. Pois, ainda
que ela seja incomparavelmente maior em Deus do que em mim, seja em razão do
conhecimento e do poder, que nele se encontram unidos, tornando-a mais �rme e
mais e�caz, seja em razão do objeto, uma vez que ela se refere e se estende a um
número in�nitamente maior de coisas, ela não me parece, entretanto, maior, se eu a
considero formalmente e precisamente nela mesma. Pois ela consiste tão somente
no fato de que podemos fazer algo, ou não (isto é, a�rmar ou negar, perseguir ou fu-
gir) ou, antes, apenas a�rmar ou negar, perseguir ou fugir das coisas que o entendi-
mento nos propõe, sem sentir que alguma força exterior nos obrigue (DESCARTES
in ROUX-LANIER, 1995, p. 225, tradução nossa).

A questão da vontade e do entendimento: o erro


Vimos, no texto anteriormente citado, que a vontade humana é concebida por
Descartes como sendo análoga à vontade divina. Descartes a�rma, nesse tex-
to, a “in�nitude” da vontade humana quando diz que, embora a vontade divina
seja “incomparavelmente mais �rme e mais e�caz” do que a vontade humana,
quando considerada em si mesma, em sua forma, a vontade divina “não me
parece maior”. Isso signi�ca que a nossa vontade é ilimitada como a vontade
divina.

Mas, e o entendimento?

Em sua terceira máxima, como vimos, Descartes a�rma que o mundo é regido
por leis imutáveis, acima de nosso alcance. Portanto, nosso entendimento é li-
mitado.

Desse confronto entre uma vontade ilimitada e um entendimento limitado


surgiria a possibilidade de errar. Erramos, não porque nossas ideias sejam fal-
sas: o erro não estaria na ideia ou na pura representação do objeto, mas no jul-
gamento pelo qual a�rmamos ou negamos que o objeto seja isso ou aquilo. E a
vontade é justamente essa capacidade de a�rmar ou negar algo. Como a von-
tade é ilimitada e o entendimento, limitado, o ser humano é capaz de não ape-
nas julgar sobre o que ele pode reconhecer com certeza, mas também aceitar
como válido um conhecimento duvidoso, podendo, dessa maneira, cair no er-
ro. O erro decorre de um ato de nossa vontade quando esta não é mantida nos
limites do entendimento. O poder de dizer sim ou não é in�nito e nos permite
pronunciar mesmo quando não temos clareza de entendimento. Portanto, o
conhecimento deve sempre preceder à determinação da vontade, se não qui-
sermos errar.

No que concerne à conduta moral, nem sempre há certe-


zas absolutas, e sim apenas probabilidades
Embora toda conduta correta e verdadeiramente livre consista em se basear
em conhecimentos claros e evidentes, devemos, na ausência de maiores co-
nhecimentos, seguir as condutas mais equilibradas, sensatas e de maior pro-
babilidade de acerto, porque nem sempre temos o tempo necessário para che-
gar a conhecimentos claros a respeito de uma situação. É o que a�rma o �ló-
sofo, como vimos em sua primeira e segunda máximas.

Há, segundo Descartes, que “ir alcançando gradualmente conhecimentos �r-


mes sobre a correta natureza das coisas”, reconstruindo opiniões de acordo
com esses conhecimentos, por meio da vivência com os outros.
E, como esperava chegar melhor ao cabo dessa tarefa conversando com os homens
do que prosseguindo por mais tempo encerrado no quarto aquecido, onde me havi-
am ocorrido esses pensamentos, recomecei a viajar quando o inverno ainda não
acabara. E, em todos os nove anos seguintes, não �z outra coisa senão rolar pelo
mundo, daqui para ali, procurando ser mais espectador do que ator em todas as co-
médias que nele se representam; e, efetuando particular re�exão, em cada matéria,
sobre o que podia torná-la suspeita e dar ocasião de nos equivocarmos, desenraiza-
va, entrementes, do meu espírito todos os erros que até então nele se houvessem in-
sinuado. Não que imitasse, para tanto, os céticos, que duvidam apenas por duvidar
e afetam ser sempre irresolutos: pois, ao contrário, todo o meu intuito tendia tão-
somente a me certi�car e remover a terra movediça e a areia, para encontrar a ro-
cha ou a argila. O que consegui muito bem, parece-me, tanto mais que, procurando
descobrir a falsidade ou a incerteza das proposições que examinava, não por fracas
conjeturas, mas por raciocínios claros e seguros, não me deparava com quaisquer
tão duvidosa que delas não tirasse sempre alguma conclusão bastante certa, quan-
do mais não fosse a de que não continha nada de certo. E, como, ao demolir uma
velha casa, reservam-se comumente os escombros para servir à construção de ou-
tra nova, assim, ao destruir todas as minhas opiniões que julgava mal fundadas, fa-
zia diversas observações e adquiria muitas experiências, que me serviram depois
para estabelecer outras mais certas (DESCARTES in ROUX-LANIER, 1995, p. 225,
tradução nossa).

A liberdade está fundada no conhecimento, e não na von-


tade: a liberdade não é uma escolha aleatória e indiferente,
não depende da vontade, pois esta é indiferente, mas se
funda em conhecimentos claros e evidentes
A indiferença é o mais baixo grau de liberdade, é a carência de conhecimento.
Se tivéssemos sempre um conhecimento claro daquilo que julgamos, seríamos
completamente livres. A vontade é livre quando não há limite externo, ou seja,
quando está sujeita a uma determinação interior ou quando se sente inclinada
por um conhecimento certo e distinto ou, ainda, por uma graça divina.
Pois para que eu seja livre, não é necessário que eu seja indiferente a escolher um
ou outro de dois contrários; mas quanto mais tendo para um, seja porque conheço
de maneira evidente que nele se encontram o bem e o verdadeiro, seja porque Deus
assim dispõe o interior de meu pensamento, mais livremente faço a escolha e a as-
sumo. E, certamente, a graça divina e o conhecimento natural, longe de diminuir
minha liberdade, a aumentam e a forti�cam. De maneira que esta indiferença que
sinto, quando não tendo nem para um lado nem para o outro, por força de alguma
razão, é o grau mais baixo de liberdade, assemelhando-se mais a um defeito do co-
nhecimento do que a uma perfeição da vontade; pois se conheço sempre claramen-
te o que é verdadeiro e o que é bom, jamais teria di�culdade em deliberar qual julga-
mento e qual escolha deveria fazer; e assim eu seria inteiramente livre sem jamais
ser indiferente (DESCARTES in ROUX-LANIER, 1995, p. 225, tradução nossa).

A Alma: todo conhecimento se fundamenta na identidade


“una” da alma
A alma é uma “substância pensante” (do latim res cogitans). A substância da
alma é o pensamento, somos uma substância cuja essência e natureza consis-
te em pensar. Deve ser atribuído a nossa alma tudo o que existe em nós e que
não concebemos como passível de pertencer a um corpo, como os pensamen-
tos.

A alma é “una”, não extensa, indissolúvel e simples


É o que diz Descartes na obra Regras para a orientação do espírito (Regra 1):
Os homens têm o hábito, cada vez que descobrem uma semelhança entre duas coi-
sas, de atribuir tanto a uma quanto à outra, mesmo naquilo que as distingue, o que
reconheceram como sendo verdadeiro em uma delas. Assim, fazendo uma compa-
ração falsa entre ciências, que se encontram inteiramente no conhecimento que
tem o espírito, e as artes, que requerem certo exercício e certa disposição do corpo,
e vendo, por outro lado, que todas as artes não poderiam ser aprendidas ao mesmo
tempo pelo mesmo homem, mas que aquele que cultiva uma única arte torna-se
mais facilmente um excelente artista, porque as mesmas mãos não podem cultivar,
ao mesmo tempo, os campos e tocar citara, ou cultivar várias artes diferentes tão
facilmente quanto uma só, acreditaram que o mesmo se passaria também com as
ciências e as distinguiram umas das outras de acordo com a diversidade de seus
objetos, pensaram que se fazia necessário cultivar cada uma à parte, sem se ocupar
de todas as outras. E, nisto, se enganaram. Pois, tendo em vista que todas as ciênci-
as não são outra coisa que sabedoria humana, que permanece una e sempre a mes-
ma, por mais diferentes que sejam os objetos aos quais ela se aplique, e que não é
modi�cada pela mudança de seus objetos mais do que a luz do sol o é pela varieda-
de das coisas que ela ilumina, não há necessidade de impor limites ao espírito: o
conhecimento de uma verdade não nos impede de descobrir outra, como o exercí-
cio de uma arte nos impede de aprender outra arte, mas, pelo contrário, nos ajuda
(DESCARTES in ROUX-LANIER, 1995, p. 219-220, tradução nossa).

A união da alma e do corpo


A união da alma e do corpo resultaria, segundo Descartes, de um ato de vonta-
de de Deus e foge a uma compreensão clara e evidente. Embora possamos co-
nhecer separadamente a alma e o corpo, da união entre eles só existem, diz o
�lósofo, ideias confusas. Quando sentimos dor, fome, sede, por exemplo, não
percebemos essa dor, fome e sede pelo entendimento, de fora para dentro, mas
via sentimentos que são modos de pensar confusos, porque procedem e de-
pendem de uma interação de movimentos entre a alma e o corpo.

Diferentemente de Aristóteles, Descartes concebe a alma e o corpo como duas


substâncias de natureza diferente: uma é não extensa (a alma) a outra é exten-
sa (o corpo). Portanto, a união da alma e do corpo, que em Aristóteles era es-
sencial, passa a não ser essencial em Descartes. São distintas, pois, de um la-
do, tenho uma ideia clara de mim mesmo como uma coisa pensante e não ex-
tensa e, de outro, tenho uma ideia também clara de que sou um corpo, uma
coisa extensa que não pensa. Meu eu, isto é, minha alma, pela qual eu sou o
que sou, é inteiramente distinta de meu corpo, podendo existir sem ele.
Os pensamentos são atribuídos pelo �lósofo à alma; o movimento e o calor, na
medida em que não dependem do pensamento, são atribuídos ao corpo. O cor-
po é concebido como uma máquina que obedece às leis da natureza. Todos os
movimentos que fazemos que não dependam de nossa vontade, como andar,
respirar, comer, en�m, todas as ações que são comuns a nós e aos animais de-
pendem da conformação de nossos membros e do que chamou de “espíritos
animais”, entendendo por isso as partes mais sutis e voláteis do sangue (os
circuitos elétricos de hoje, talvez), seguindo para o cérebro via nervos e mús-
culos, tal como o movimento de um relógio, movimento esse produzido exclu-
sivamente pela força da mola do relógio e da forma de suas rodas.

A união da alma e do corpo é de tal maneira íntima, que a ação de um é sem-


pre referente ao- outro, porém não consiste em uma ação “direta”, porque a al-
ma e o corpo permanecem duas substâncias completas e opostas. O corpo hu-
mano, afetado pelos eventos externos, faz com que a alma sinta, perceba.
Assim, as percepções, os conhecimentos em nós não são feitos pela alma; são
recebidos das coisas e representados pela alma, por meio de suas ideias.

Descartes dá um exemplo, que se tornou célebre. Em Meditações (Meditação


2), diz:
Tomemos como exemplo este pedaço de cera que acaba de ser retirado da colmeia:
ele ainda não perdeu a doçura do mel que continha, continua a apresentar o odor
das �ores das quais foi recolhido; sua cor, sua �gura, seu tamanho são aparentes; é
duro, frio, pode ser tocado e se nele batermos emitirá um som. En�m, tudo que nos
permite constatar a existência de um corpo nele se encontra.

Mas, eis que, enquanto falo, aproximo-o do fogo: o que nele restava de sabor se exa-
la, o odor desaparece, sua cor muda, ele esquenta, mal posso tocá-lo e, embora nele
bata, não emitirá mais nenhum som. Trata-se da mesma cera, após essa mudança?
É preciso admitir que permanece o mesmo pedaço de cera, ninguém pode negar. O
que, então, neste pedaço de cera é conhecido como tal? Certamente nada do que foi
constatado pelos sentidos, uma vez que tudo aquilo que veio pelo paladar, pelo olfa-
to, pela vista, pelo tato ou pelo ouvido se encontra modi�cado e, no entanto, a cera
permanece a mesma. Talvez, penso agora, a cera não era nem essa doçura do mel,
nem esse agradável odor das �ores, nem essa brancura, nem essa �gura, nem esse
som, mas somente um corpo que um pouco antes me era dado sob essas formas e
que agora se apresenta sob outras formas. Mas, o que exatamente imagino, quando
a concebo dessa maneira? Consideremos a cera atentamente, afastando tudo o que
não lhe pertence, e vejamos o que resta. O que é certo é que não resta senão algo ex-
tenso, �exível e mutável. Ora, o que é isto: �exível e mutável? Não seria o fato de
que imagino que esta cera, sendo redonda, pode vir a ser quadrada e passar de qua-
drada a uma �gura triangular? Não, certamente, não seria isso, pois a concebo ca-
paz de receber uma in�nidade de semelhantes mudanças, mas não seria, entretan-
to, capaz de percorrer essa in�nidade de mudanças com a minha imaginação, o
que me faz concluir que essa concepção que tenho da cera não se dá por meio da
faculdade de imaginar (DESCARTES in ROUX-LANIER, 1995, p. 223-224, tradução
nossa).

A a�rmação da permanência da cera nas diferentes modi�cações percebidas


não resultaria nem da imaginação, pois somos incapazes de percorrer com a
imaginação a in�nidade de mudanças passíveis de serem recebidas pela cera,
e nem da percepção, uma vez que toda percepção é contemporânea do que
percebe (cada modi�cação da cera é objeto de uma percepção) e a todo instan-
te ultrapassamos cada percepção de uma modi�cação, a�rmando a perma-
nência da cera. A a�rmação da permanência da cera nas diferentes modi�ca-
ções recebidas resultaria das representações pela alma dessas modi�cações
mediante uma ideia, a de extensão.

Em outras palavras, todo corpo é conhecido como corpo, (aquilo que permane-
ce a despeito de modi�cações e variações), por meio de uma ideia ou julga-
mento: a ideia de extensão, ideia essa de um sujeito conhecedor, a alma. Só a
ideia de extensão torna possível a representação de um corpo como tal. Em
outras palavras, o que temos é a representação de um corpo, graças a uma
ideia, a ideia de extensão e esta, como já foi dito, é produto da alma.

Ações e paixões
Quando a alma busca imaginar o que não existe ou concebe algo puramente
inteligível, estaríamos diante de “ações”, ou seja, de percepções dependentes
principalmente da vontade. As “paixões”, diferentemente, se situariam no do-
mínio da união da alma e do corpo.

As paixões

Os eventos externos causam na alma as paixões, que são, assim, a mediação


entre as duas substâncias: corpo e alma, responsáveis pela comunicação entre
elas. Paixões seriam, portanto, percepções, sentimentos ou emoções que vêm
à alma pelos nervos (podem também vir, segundo Descartes, do movimento
dos “espíritos animais”). As que são vinculadas a objetos exteriores se referem
ao conhecimento das coisas exteriores que afetam nossos sentidos, fazendo
com que a alma os sinta. As que são vinculadas ao corpo, como a fome, a sede,
a dor etc., sentimos em nossos próprios membros e não em corpos externos.
Há ainda um terceiro tipo de percepções, sentimentos e emoções que vincula-
mos à própria alma, como alegria, tristeza, cólera etc.

As paixões, segundo Descartes, são inseparáveis das ações que as provocam;


assim, o seu estudo também é inseparável do estudo do corpo que é o agente
dessas ações

Descartes elege a glândula pineal (situada entre os olhos) como a sede da al-
ma, por ser a única parte do corpo conhecida na época que não seria dupla. Os
olhos são duplos, os ouvidos são duplos, mas o pensamento não é; por isso, a
glândula pineal seria a sede do pensamento ou da alma. Essa glândula é cer-
cada de pequenas rami�cações das carótidas (as principais artérias do pesco-
ço), que trariam os “espíritos animais” ao cérebro.

O poder da vontade, ilimitado quanto à própria capacidade de querer, não seria


ilimitado com relação ao corpo e às percepções da alma, porque a natureza es-
tabelece uma ligação entre cada vontade e o movimento da glândula com base
na conservação da união, não no arbítrio. Um exemplo é o fato de que, se qui-
sermos ver algo de perto, haverá uma redução da pupila, porém, se simples-
mente quisermos reduzi-la só por querer, a redução não se dará.

As seis paixões primitivas

Descartes, na segunda parte de seu Tratado das Paixões da Alma, enumera,


segundo o efeito dos objetos em nós, seis paixões que considera como primiti-
vas: admiração, amor, ódio, desejo, alegria e tristeza.

• : constitui-se de uma súbita surpresa da alma. É causada pe-


la impressão que se tem no cérebro representando o objeto como raro e
extraordinário. Ocorre antes de sabermos se o objeto é conveniente ou
não. É a primeira paixão, pois, sem uma admiração inicial, isto é, sem um
contemplar com surpresa e comoção, não seria possível surgirem pai-
xões. A admiração é positiva quando nos leva à aquisição de conheci-
mento; pode, porém, ser nociva quando em excesso, como o “espanto”. No
espanto, percebemos apenas a primeira face apresentada pelo objeto, o
que nos impede de adquirir conhecimentos mais profundos. Por essa ra-
zão, seria aconselhável, segundo Descartes, nos exercitar na considera-
ção das coisas que nos parecem estranhas.
• : tais paixões envolveriam o “unir-se ou separar-se volun-
tariamente”. No amor, unimo-nos ao que amamos, como um todo do qual
seríamos uma parte e a coisa amada seria a outra parte. No ódio, dá-se o
contrário, nos consideramos um todo totalmente separado da coisa que
repudiamos.
• essa paixão se manifesta quando desejamos que se apresentem
em nosso futuro aquilo que nos é conveniente e que não o temos, como
aquilo que nos é conveniente e temos no presente. Além disso, essa pai-
xão também se manifesta quando desejamos que um mal atualmente
existente não venha a continuar, como algum mal eventual que possa vir
a ocorrer no futuro.
• : a alegria é o gozo do bem presente; a tristeza é o
sentimento de algo incômodo que buscamos repelir.

Todas essas paixões servem, segundo Descartes, à conservação e ao aperfei-


çoamento do corpo. A alma só é advertida das coisas que a prejudicam pelo
sentimento da dor que inicialmente a entristece, em seguida a faz odiar e, �-
nalmente, leva-a a desejar se livrar daquele mal, repelindo o que a pode des-
truir.

Assim, para Descartes, todas as paixões são boas em si mesmas. No entanto, é


preciso e é possível regulamentá-las para não pervertê-las. Como foram insti-
tuídas pela natureza, faz-se necessário conhecer as leis dessa instituição para
poder agir sobre elas. Busca, portanto, explorar racionalmente este obscuro
campo da união que são as paixões.

As paixões e a vida moral

Segundo Descartes, a vida moral se situa na união da alma e do corpo, pois é


por causa dessa união que a avaliação do que é ou não bom é perturbada pelas
paixões. As paixões são moralmente relevantes porque in�uenciam nossas
ações por meio do desejo, pelo qual regulam nossos costumes. A função da
moral seria regrar e controlar o desejo. Portanto, a moral cartesiana se funda-
menta no melhor conhecimento possível e no correto manejo das paixões ou
controle do “desejo”.

As paixões dispõem a alma a querer as coisas para as quais preparam o corpo.


A vida moral colocará em questão certas ações assim corroboradas pelas pai-
xões, exigindo um redirecionamento destas pela razão. E, para tanto, é preciso
distinguir as coisas que dependem inteiramente de nós daquelas que não de-
pendem. Portanto, segundo o �lósofo, é preciso rejeitar a a�rmação comum de
que existe fora de nós uma espécie de sorte que faz com que as coisas venham
ou não a nós a seu bel prazer. Tudo é conduzido pela providência divina e na-
da acontece que não seja necessário. Desejar que acontecesse de outra forma é
cometer um erro. É necessário, pois, limitar o campo do possível, regulando o
desejo pelo conhecimento verdadeiro não do bem em geral, mas do bem que
depende de nós. É o que vimos em essência na terceira máxima da moral pro-
visória.

Ainda segundo Descartes, a alma pode dominar as paixões menores, desvian-


do o corpo para outros objetos. Nas paixões muito violentas, não há como
superá-las, porém pode-se suspender os movimentos a que elas dispõem o
corpo, por exemplo: não consigo deixar de sentir medo, mas, posso conter-me
e não correr.

O conceito de “virtude”
Por “virtude” entende o �lósofo o hábito da alma que a orienta para determina-
dos pensamentos, pensamentos esses gerados pela alma e muitas vezes forta-
lecidos por movimentos dos “espíritos”, o que faz com que sejam, ao mesmo
tempo, “virtudes” e “paixões”. Trata-se da �rme resolução de não nos desviar-
mos, pelo desejo, em direção ao que não depende de nós.

As almas fortes são virtuosas, têm poder sobre as paixões com armas própri-
as, ou seja, com “juízos �rmes e determinados sobre o conhecimento do bem e
do mal”, à luz dos quais decidiu conduzir suas ações.

A ação moral, para Descartes, não deve estar fundada apenas no conhecimen-
to possível, mas, também, no correto controle das paixões, pois são elas que,
pelo “desejo”, comandam a passagem do pensamento à ação e esse comando,
quando voltado para o possível, dando-se à luz do livre-arbítrio, é a própria
“virtude”, operando por meio da “generosidade”.

Na terceira parte do Tratado sobre as Paixões da Alma, Descartes apresenta as


paixões derivadas das primitivas. Dentre essas paixões, destaca-se a da “gene-
rosidade”.

Virtude e hábito: a “generosidade”

A generosidade é o hábito que leva a alma a pensar no sentido e na grandiosi-


dade do “livre-arbítrio, gerando a �rme resolução de usá-lo corretamente”.

O homem cartesiano é o homem generoso, que valoriza a sua liberdade, que


soube descobrir em si o poder de duvidar, que assume a responsabilidade pe-
los seus erros, que sabe agir diante da obscuridade da vida (ROUX-LANIER,
1995, p. 218).

Podemos desenvolver, segundo Descartes, as virtudes. Seriam as próprias pai-


xões, segundo o �lósofo, que indicariam de si mesmas a maneira segundo a
qual podemos agir sobre elas.

Diz ele:

Nossas paixões [...] não podem ser provocadas nem eliminadas por nossa vontade,
mas podem ser indiretamente, pela representação das coisas que habitualmente
costumam se associar às paixões que queremos ter e que são contrárias às que que-
remos rejeitar (DESCARTES in ROUX-LANIER, 1995, p. 228, tradução nossa).

Assim, embora não possamos combater diretamente as paixões, é possível


fazê-lo indiretamente, criando hábitos baseados nas ideias contrárias a deter-
minadas paixões. Poderíamos, por exemplo, desenvolver a generosidade, bus-
cando o que habitualmente costuma representá-la, como a sabedoria de que
todo louvor ou recriminação se refere unicamente ao uso que fazemos do bem
e do mal e o fato de, sentindo-nos capazes de ações virtuosas, acreditarmos
que, assim como nós, todos os outros também são capazes, pois isso não de-
pende de circunstâncias alheias, mas somente da boa vontade. É o que diz
Descartes:
Assim, creio que a verdadeira generosidade, que faz com que um homem se estime
no mais alto grau possível de se estimar de maneira legítima, consiste simples-
mente: em parte no fato de saber que nada verdadeiramente lhe pertence a não ser
essa livre disposição de suas vontades, que não existe outra razão para ser louvado
ou recriminado a não ser pelo uso que faz do bem ou do mal, e, em parte, no fato de
sentir, em si mesmo, um poder de decisão, �rme e constante, de fazer bom uso de
suas capacidades, isto é, de nunca falhar na vontade de empreender e executar to-
das as coisas que julgar serem as melhores; isto é seguir perfeitamente a virtude.

Aqueles que têm esse conhecimento e sentimento de si mesmos são facilmente


convencidos de que todos os outros homens os têm igualmente, porque não há na-
da em tal situação que dependa do outro. É, por isso, que jamais desprezam alguém,
e que, embora vejam frequentemente os outros cometerem erros que revelam a sua
fraqueza, tendem, entretanto, a desculpá-los em vez de recriminá-los, e a acreditar
que é mais por desconhecimento do que por falta de vontade que cometem tais fal-
tas; e, como não pensam serem inferiores aos que possuem mais bens ou honras,
ou têm mais espírito, mais saber, mais beleza, ou os superam em algumas outras
perfeições, não se consideram, da mesma maneira, superiores aos que ultrapas-
sam, porque todas essas coisas lhes parecem de pouco valor, em comparação com
o fato de se ter boa vontade, única qualidade que possui, para eles, valor, qualidade
que supõem também existir ou, pelo menos, poder existir, em todos os homens
(DESCARTES in ROUX-LANIER, 1995, p. 228, tradução nossa).

Dentro da orientação básica do presente estudo, distinguindo essencialmente


o ético do moral, gostaríamos de enfatizar, as di�culdades do �lósofo francês
em abarcar a questão da consciência moral em sua totalidade, mediante o mé-
todo por ele proposto.

De fato, encontramos, em Descartes, os pilares da constituição do que entende-


mos por “moral”. São estes pilares: a noção de uma razão generalizante cuja
meta é o individual e o geral (as máximas), os hábitos ou costumes e a noção
de “bom senso”. Inspirado, segundo alguns, sobretudo em Aristóteles, concebe
a criação do hábito, como vimos, como uma das realidades fundamentais no
que concerne à conduta moral.

Porém, embora con�gurando uma moral racional, não chega Descartes a uma
moral cientí�ca. Começa por distinguir pensamento da ação: podemos pensar
de uma maneira e agir de outra. É na ação, porém, que residiria a dimensão
moral da conduta. Em contrapartida, podemos ser virtuosos mesmo não pos-
suindo um conhecimento claro e distinto, pois os juízos morais podem não ser
absolutamente certos, embora devam ser os melhores possíveis. A virtude, ba-
se de toda conduta moral, consistiria no esforço para compreender o melhor
possível e, de acordo com isso, agir o melhor possível.

Reconhece, portanto, Descartes as di�culdades em estabelecer uma moral de-


�nitiva fundada na verdade e na ciência. As decisões morais, segundo ele, es-
tão baseadas em ideias confusas, uma vez que a união da alma e do corpo foge
às nossas possibilidades de conhecimento. O conhecimento da consciência
moral é obscuro, embora acredite o �lósofo que seja possível melhorar esse co-
nhecimento gradualmente, estimulando o entendimento.

Trabalharemos, a seguir, o cartesiano Spinoza, que irá tomar, diante das di�-
culdades presentes no pensamento de Descartes, sobretudo no que diz respeito
ao problema da consciência moral, uma direção totalmente nova, optando por
considerá-la em sua dimensão eminentemente ética.

Veremos, com Spinoza, que, embora tudo pareça indicar não ser possível a
construção de uma moral baseada em um conhecimento exato, como é o co-
nhecimento cientí�co, pode ser possível pensar a consciência moral em sua
dimensão ética, via um saber rigoroso, que é o saber “compreensivo”, rigoroso
porque busca considerar todas as nuances possíveis constituintes do objeto,
trabalhado na sua “singularidade”.

4. Baruch Spinoza (1632-1677)


Consta que Spinoza, como pessoa, era gentil, apaixonado pelo conhecimento e
pela cultura e cultivador de amizades. Sabe-se que foi perseguido e expulso da
comunidade judaica, principalmente por criticar o conceito judaico de Deus.

Dominava várias línguas, inclusive o português, idioma falado correntemente


nas ruas de Amsterdam na época, onde havia uma grande comunidade judai-
ca de origem portuguesa.

Grande conhecedor do Velho Testamento, publicou, em vida, duas obras: Os


princípios da �loso�a de Descartes, em 1663, e Tractatus Theologico-Politicus,
em 1670, obra que projetou Spinoza fora de seu país.

A obra Ética, de Spinoza, da qual trataremos neste estudo, foi escrita por
Spinoza durante sua estadia em Rijinsburg, perto de Leyde (cidade situada na
Holanda do Sul), onde possuía muitos amigos. Foi editada após a sua morte.
Sobre ela, encontramos o seguinte texto de uma carta de Spinoza escrita em
1665 para Guillaume de Blyenberg:

Entendo por um homem justo aquele que deseja constantemente que cada um pos-
sua o que lhe é devido e demonstro em minha Ética (não ainda editada) que esse
desejo nos homens piedosos tem necessariamente sua origem no conhecimento
claro que possuem tanto de si mesmos quanto de Deus (SPINOZA, 1965, prefácio,
tradução nossa).

A escolha da Geometria como linguagem


O discurso de Spinoza, ao desenvolver sua concepção de Ética, é o da
Geometria. A linguagem geométrica é a linguagem do “imaginário”. O imagi-
nário é um dado da re�exão, como se pode dizer da Filoso�a da Matemática.
Foi trabalhado por Gauss, que demonstrou sua importância na fundamenta-
ção da Geometria.

Na linguagem do imaginário, a atenção e o interesse se concentram não mais


na diversidade do efetivamente dado, mas na maneira segundo a qual os ele-
mentos procedem uns dos outros ou se relacionam uns com os outros. Tal lin-
guagem não se fecha nas limitações da representação, mas �xa-se na dedu-
ção dos princípios que regem o encadeamento das condições ordenadoras do
que é percebido, de maneira que os juízos e enunciados que decorrem desse
processo de dedução constituem projeções, em estado puro, das relações nas
quais se funda o que é observado.

Spinoza constrói seu discurso sob o modelo da Geometria, mediante proposi-


ções seguidas rigorosamente das respectivas demonstrações, explicações,
axiomas etc. Deduz, assim fundamentando, a existência de Deus como subs-
tância única e singular; a beatitude como terceiro gênero de conhecimento (o
conhecimento libertador); a alma, o corpo; o segundo gênero de conhecimento,
que se dá pelas ideias comuns; o primeiro gênero de conhecimento, constituí-
do de ideias abstratas e da imaginação.

Ética e razão intuitiva


Se quiséssemos sintetizar, em um único princípio, o pensamento de Spinoza
sobre a questão da Ética, talvez pudéssemos fazê-lo repetindo suas próprias
palavras: “O esforço para compreender é a primeira e única base da virtude”.

O que é compreender segundo Spinoza?

Compreender é chegar ao conhecimento libertador, mediante uma razão intui-


tiva. É o que denomina de “beatitude” e classi�ca como o terceiro gênero de
conhecimento. Consiste essencialmente em uma visão de toda existência co-
mo inseparável da substância in�nita e eterna, Deus. Em outras palavras, a
beatitude é um perceber a si mesmo, a tudo e a todos como “parte integrante e
necessária da natureza de Deus”. Essa percepção intuitiva de que somos par-
tes integrantes dessa substância única e singular, que é Deus, é a compreen-
são de que fazemos parte da essência de Deus e, como tal, somos uma exten-
são da potência divina.

Deus é uma substância singular e única


A substância, segundo Spinoza, não possui causa fora de si; é uma causa não
causada, ou seja, uma causa em si. A substância é em si e é concebida por si,
cujo conceito não é formado por outro conceito.

Por substância compreendo aquilo que existe em si mesmo e que por si mesmo é
concebido, isto é, aquilo cujo conceito não exige o conceito de outra coisa do qual
deva ser formado (SPINOZA, 2008, p. 13).

A substância, portanto, é a ponto de não poder ser concebida por ou-


tra coisa que não ela mesma. Como não pode ser produzida por outra substân-
cia, não existe nada que a limite, sendo ela, portanto, in�nita. Trata-se de uma
substância cuja essência é existir, pois, se pudesse não existir, haveria uma di-
visão e seria, então, limitada por outra. Essa substância única e absolutamente
in�nita é Deus ou a Natureza.

Não há, pois, “criação”, mas produção imanente de uma única substância:
Deus ou a Natureza. Em outras palavras, não existe a obra de um Deus trans-
cendente, separado do mundo.

A beatitude ou compreensão libertadora


Essa compreensão intuitiva que é a “Beatitude” não é uma experiência místi-
ca. O estado de beatitude é conseguido por meio de um esforço árduo, contí-
nuo e dedicado ao exercício de uma captação pela razão intuitiva, por meio da
qual vamos além da percepção limitada da unidade dos sentidos e das ima-
gens, para nos perceber universais.

Para Spinoza, o mundo de Deus ou da Natureza é essencialmente um mundo


de rigor matemático. Vejamos, na quinta parte da Ética, o discurso de Spinoza
sobre a beatitude, inspirado nos princípios do discurso da Geometria.
Proposição 42. A beatitude não é o prêmio da virtude, mas a própria virtude; e não a
desfrutamos porque refreamos os apetites lúbricos, mas, em vez disso, podemos re-
frear os apetites lúbricos porque a desfrutamos.

Demonstração. A beatitude consiste no amor para com Deus (pela prop. 36, junta-
mente com seu esc.), o qual provém, certamente, do terceiro gênero de conheci-
mento (pelo corol. da prop. 32). Por isso, esse amor (pelas prop. 56 e 3 da p. 3) deve
estar referido à mente, à medida que esta age, e, portanto (pela def. 8 da p. 4), ele é a
própria virtude. Era este o primeiro ponto. Por outro lado, quanto mais a mente des-
fruta desse amor divino ou dessa beatitude, tanto mais compreende (pela prop. 32),
isto é (pelo corol. da prop. 3), tanto maior é o seu poder de refrear os afetos e (pela
prop. 38) tanto menos ela padece dos afetos que são maus. Assim, porque a mente
desfruta desse amor divino ou dessa beatitude, ela tem o poder de refrear os apeti-
tes lúbricos. E como a potência humana para refrear os afetos consiste exclusiva-
mente no intelecto, ninguém desfruta, pois, dessa beatitude porque refreou os afe-
tos, mas, em vez disso, o poder de refrear os apetites lúbricos é que provém da bea-
titude. C. Q. D.

. [...] Torna-se, com isso, evidente o quanto vale o sábio e o quanto ele é supe-
rior ao ignorante, que se deixa levar apenas pelo apetite lúbrico. Pois o ignorante,
além de ser agitado, de muitas maneiras, pelas causas exteriores, e de nunca gozar
da verdadeira satisfação de ânimo, vive, ainda, quase inconsciente de si mesmo, de
Deus e das coisas, e tão logo deixa de padecer, deixa também de ser. Por outro lado,
o sábio, enquanto considerado como tal, di�cilmente tem o ânimo perturbado. Em
vez disso, consciente de si mesmo, de Deus e das coisas, em virtude de uma certa
necessidade eterna, nunca deixa de ser, mas desfruta, sempre, da verdadeira satis-
fação do ânimo. Se o caminho, conforme já demonstrei, que conduz a isso parece
muito árduo, ele pode, entretanto, ser encontrado. E deve ser certamente árduo
aquilo que tão raramente se encontra. Pois se a salvação estivesse à disposição e
pudesse ser encontrada sem maior esforço, como explicar que ela seja negligencia-
da por quase todos? Mas tudo o que é precioso é tão difícil como raro (SPINOZA,
2008, p. 411).

Essa busca das diferentes direções do tema considerado (no caso, a beatitude)
consiste essencialmente em um processo rigoroso de produção de novas pos-
sibilidades. Ao exercer esse terceiro gênero de conhecimento, o homem
constitui-se a si mesmo a partir de forças que vêm de dentro do próprio movi-
mento de todas as coisas existentes, à maneira de Deus ou da Natureza e só
nessa condição é livre.
A alma e o corpo
Continuando seu discurso dedutivo, diz Spinoza: não sofrendo o conceito de
“substância”, em princípio, nenhuma limitação, compreende uma in�nidade
de atributos, dos quais cada um, não podendo ser limitado senão por ele mes-
mo, é in�nito em seu gênero. O atributo “é aquilo que, da substância, o intelecto
percebe como constituindo a sua essência” (SPINOZA, 2008, p. 23). O entendi-
mento percebe, assim, a substância como ela é na realidade (Ética, Primeira
Parte, Proposição 10, Demonstração). Desses atributos, nosso entendimento,
segundo Spinoza, só pode conhecer o “pensamento” e a “extensão”.

Em contrapartida, da mesma maneira que as propriedades do triângulo decor-


rem geometricamente de sua essência, dos atributos da substância divina de-
corre uma in�nidade de “modos”, que são, segundo Spinoza, modi�cações ou
afecções da substância que se apresentam no real.

Por modo compreendo as afecções de uma substância, ou seja, aquilo que existe em
outra coisa, por meio da qual é também concebido (SPINOZA, 2008, p. 13).

Essas modi�cações da substância ou “modos” são classi�cadas por Spinoza


em cinco categorias:

1. Os modos in�nitos imediatos do pensamento que é todo o entendimento


absolutamente in�nito (o próprio intelecto de Deus).
2. Os modos in�nitos da extensão: que são as leis universais imutáveis.
3. Os modos in�nitos mediatos que são a essência do mundo físico.
4. Os modos �nitos do pensamento que são as ideias, mentes, almas.
5. Os modos �nitos da extensão que são todo o universo material: corpos,
movimento, repouso.

A alma humana e o corpo humano são, pois, dois “modos” de Deus, dois efeitos
da substância única e in�nita que é Deus. A alma se refere ao atributo pensa-
mento, o corpo ao atributo extensão. Não podemos formar a ideia da alma hu-
mana senão nos referindo ao atributo do pensamento, e a ideia do corpo hu-
mano senão nos referindo ao atributo da extensão. Por isso, embora substan-
ciais (porque se referem a atributos da substância), alma e corpo não são duas
substâncias distintas (contrariando aqui Descartes).

A união da alma e do corpo


A união da alma e do corpo não consistiria nem em uma mistura, nem em
uma ação recíproca de um sobre o outro. Diferentemente do que a�rma
Descartes, Spinoza nega que possa haver alguma forma de controle da mente
sobre o corpo. Mente e corpo não podem ser concebidos e nem existem um
sem o outro (Ética, Parte 3, Proposição 2, Escólio). Isso porque um é a manifes-
tação mesma do outro: nada afeta o corpo que a mente não capte.

Ainda que a natureza das coisas não permita duvidar sobre esta questão, creio, en-
tretanto, que a menos que se dê desta verdade uma con�rmação experimental, os
homens di�cilmente serão levados a examinar esse ponto com um espírito de isen-
ção; de tal maneira estão persuadidos que o Corpo ora se mexe, ora cessa de se mo-
ver por um simples comando da Alma, e que realiza um grande número de atos que
dependem unicamente da vontade da alma e de sua arte de pensar. Ninguém, é
verdade, determinou até o presente momento o que pode o Corpo, isto é, a experiên-
cia não ensinou a ninguém até o momento o que, unicamente pelas leis da
Natureza, considerada enquanto corporal, o Corpo pode fazer e o que não pode fazer
a não ser determinado pela Alma. Ninguém de fato conhece tão exatamente a es-
trutura do Corpo que fosse capaz de explicar todas as suas funções, para não falar
do que se observa inúmeras vezes nos animais que ultrapassa de muito a sagacida-
de humana, e do que fazem frequentemente os sonâmbulos durante o sono que não
ousariam fazer quando acordados e isso mostra su�cientemente que o Corpo pode,
só pelas leis de sua natureza, fazer muitas coisas que causam surpresa à sua Alma.
Ninguém sabe, por outro lado, em qual condição ou por quais meios a Alma move o
Corpo, nem quantos graus de movimento ela pode lhe impor e com qual rapidez ela
pode movê-lo. De onde se conclui que, quando os homens dizem que tal ou tal ação
do Corpo vem da Alma, a qual tem um domínio sobre o Corpo, não sabem o que di-
zem e não fazem mais do que confessar em uma linguagem especial sua ignorân-
cia da verdadeira causa de uma ação que não provoca neles espanto (SPINOZA in
ROUX-LANIER, 1995, 137-138, tradução nossa).

É preciso, para compreender a união da alma e do corpo, considerar a unicida-


de da potência divina, exprimindo-se por meio de cada um de seus atributos.
A potência divina implica, de um lado, uma perfeita identidade entre a ordem
e a conexão das coisas e, de outro, a ordem e a conexão das ideias. A alma não
é assim mais do que a ideia do corpo, o corpo nada mais é do que o objeto da
alma: é o que se chama “paralelismo” da alma e do corpo.

Enquanto ideia do corpo existindo no tempo e no espaço, a alma é, pela sua


existência, uma parte perecível do entendimento de Deus; enquanto ideia da
essência eterna desse corpo, ela é, por sua essência, uma parte eterna do en-
tendimento de Deus. A parte perecível da alma é constituída por sua imagina-
ção e percepção do que sofre o corpo humano em seus encontros com outros
corpos humanos. A parte eterna da alma é constituída pelo seu entendimento,
lugar do conhecimento verdadeiro.

No que concerne ao corpo, segundo Spinoza, ele se individualizaria não em


função de uma substância particular, mas por meio do tempo e da mudança,
devido ao movimento e ao repouso, à velocidade e à lentidão. Em outras pala-
vras, como identidade individual, o corpo resultaria de um processo de manu-
tenção de suas partes em uma determinada proporção de movimento e repou-
so, proporção essa que o corpo humano conseguiria manter ao passar por uma
série de modi�cações (afecções e afetos) impostas pelo movimento e repouso
de outros corpos.

Na parte sobre a natureza e a origem da alma de sua obra Ética, Spinoza apre-
senta os seguintes postulados sobre o corpo:
I. O Corpo humano é composto de um grande número de indivíduos (de natureza
diversa) e cada indivíduo é também composto.

II. Dos indivíduos dos quais o Corpo humano é composto alguns são �uidos, alguns
são moles, alguns, en�m, são duros.

III. Os indivíduos que compõem o Corpo humano são afetados, e consequentemente


o Corpo humano é ele próprio afetado, de inúmeras maneiras diferentes advindas
de corpos exteriores.

IV. O Corpo humano tem necessidade, para se conservar, de um grande número de


outros corpos, por meio dos quais ele é continuamente conservado.

V. Quando uma parte �uida do Corpo humano é afetada por um corpo exterior de
maneira a tocar frequentemente uma parte mole, ela muda a superfície desta e im-
prime nela, por assim dizer, certos vestígios do corpo exterior que a afeta.

VI. O Corpo humano pode mover de várias maneiras e dispor os corpos exteriores
de inúmeras formas (SPINOZA, 1965, p. 91, tradução nossa).

Uma ética da alegria


Alegria e tristeza são afecções ou afetos. A alegria é o afeto que aumenta a ca-
pacidade do corpo de manter a sua potência de agir e pensar e, quando associ-
ada a uma causa exterior, transforma-se em “amor”. A tristeza, ao contrário, é
sempre destrutiva e, quando associada a uma causa exterior, transforma-se
em “ódio”. Por essa razão, a ética de Spinoza é denominada de “ética da ale-
gria”.

Os indivíduos se esforçam para ter alegria, buscando manter sua existência


tanto quanto possível. Esse esforço é denominado, por Spinoza, de “desejo” ou
conatus (palavra do latim que signi�ca esforço ou determinação para sobrevi-
ver).

O segundo gênero de conhecimento: as noções comuns ou


ideias adequadas
Dentro desse contexto de pensamento sobre Deus, a alma e o corpo, Spinoza
classi�ca como segundo gênero de conhecimento as noções comuns ou ideias
adequadas. Aqui se inicia o exercício da razão enquanto conhecimento do que
está fora de nós, daquilo que existe.

Dessa maneira, devemos compreender nossos afetos e os dos demais seres


humanos por meio de noções comuns, obtidas pela razão. Para tanto, faz-se
necessário, de acordo com Spinoza, viver em um meio humano buscando o
útil em comum.

Nada mais útil ao homem do que o homem; os homens, digo, não podem desejar
nada de maior valor para a conservação de seu ser do que concordarem todos sobre
todas as coisas de maneira que as Almas e os Corpos de todos componham uma só
Alma e um só Corpo, nada de maior valor do que se esforçarem todos em conjunto
para conservar seu ser e procurar tudo o que lhes é útil em comum; do que se con-
clui que os homens que são governados pela Razão, isto é, aqueles que procuram o
que lhes é útil conduzindo-se pela Razão, não desejam para eles mesmos nada que
não desejem também para os outros homens, e são justos, de boa fé e honestos.

Tais são os comandos da Razão que tinha me proposto dar a conhecer aqui, em
poucas palavras, antes de começar a demonstrá-los em ordem, de maneira mais
prolixa, e o meu motivo para fazê-lo foi o de chamar, se possível, a atenção daqueles
que creem que este princípio: cada um deve procurar o que lhe é útil, é a origem da
imoralidade, não da virtude e da moralidade. Depois de ter mostrado brevemente
que é exatamente o contrário, continuo demonstrando-o com os mesmos argumen-
tos apresentados até aqui em nosso caminhar (SPINOZA in ROUX-LANIER, 1995, p.
259, tradução nossa).

Spinoza, em seu Tratado Político, dá como exemplo desse segundo gênero de


conhecimento pelas ideias comuns, conquistadas pela razão, o “poder” da “ci-
dade”. O poder da “cidade” vem do fato de que nela os homens têm desejos co-
muns e ela só conserva esse poder na medida em que consegue unir os dese-
jos dos homens. A dimensão social da cidade oferece às paixões individuais
um lugar de coexistência, em que os homens podem evitar os efeitos negati-
vos da tristeza e do ódio.
Como no estado natural cada um é seu próprio mestre, enquanto não sofrer a opres-
são de outro, e no qual sozinho se esforça para se proteger de todos, enquanto o di-
reito natural humano for determinado pelo poder de cada um, este direito na reali-
dade será inexistente, ou pelo menos não terá senão uma existência puramente
teórica, pois não se tem nenhum meio seguro de conservá-lo. É certo também que
cada um tem menos poder e consequentemente menos direito na medida em que
tiver mais razões de temer. Acrescentemos que sem auxílio mútuo os homens não
podem manter sua vida e cultivar sua alma. Chegamos, pois, a esta conclusão: o di-
reito natural, no que concerne propriamente ao gênero humano, di�cilmente pode
ser concebido a não ser quando os homens têm direitos comuns, terras que podem
habitar e cultivar juntos, quando podem velar pela manutenção de seu poder,
proteger-se, repelir toda violência e viver de acordo com uma vontade comum a to-
dos. Quanto maior for o número dos que assim se reunirem, mais direito terão em
comum (SPINOZA in ROUX-LANIER, 1995, p. 260, tradução nossa).

E, um pouco mais adiante naquela mesma obra:


Conhece-se facilmente qual é a condição de qualquer Estado considerando o �m
em vista do qual um estado civil é fundado; esse �m não é outro senão a paz e a se-
gurança da vida. Consequentemente, o melhor governo é aquele sob o qual os ho-
mens passam sua vida na concórdia e cujas leis são observadas sem violação. É
certo, de fato, que as revoltas, as guerras e o desprezo ou transgressões das leis são
imputáveis não tanto à malícia das pessoas, mas a um vício do regime instituído.
Os homens, de fato, não nascem cidadãos, mas tornam-se. As afecções naturais
que se encontram são, além disso, as mesmas em todo país; se, pois, uma malícia
maior reina em uma cidade e se ali se cometem pecados em maior número do que
em outras, isso provém do fato de ela não ter obtido concórdia su�ciente, de suas
instituições não serem su�cientemente prudentes e de não ter, consequentemente,
estabelecido em absoluto um direito civil. [...]

Se em uma cidade as pessoas tomam armas porque estão sob o império do terror,
deve-se dizer não que ali a paz não reina, mas que ali a guerra não reina. A paz, efe-
tivamente, não é a ausência de guerra, é uma virtude que tem sua origem na força,
pois a obediência é uma vontade constante da alma de fazer o que, de acordo com o
direito comum da Cidade, deve ser feito. Uma cidade é preciso ainda dizer, onde a
paz é um efeito da inércia de sujeitos conduzidos como um rebanho e educados
unicamente para servir, merece o nome de deserto em vez de cidade.

Quando dizemos que o melhor Estado é aquele em que os homens vivem na con-
córdia, entendo que eles vivem uma vida propriamente humana, uma vida que não
se de�ne pela circulação do sangue e pela realização das outras funções comuns a
todos os outros animais, mas que se de�ne principalmente pela razão, pela virtude
da alma e pela vida verdadeira (SPINOZA in ROUX-LANIER, 1995, p. 261, tradução
nossa).

Segundo Spinoza, quanto mais a alma conhece à maneira do terceiro gênero


de conhecimento (beatitude) e desse segundo gênero de conhecimento (no-
ções comuns e adequadas), mais ela segue unicamente a necessidade de sua
natureza.

O primeiro gênero de conhecimento: as ideias gerais e a


imaginação não nos permitem chegar ao conhecimento li-
bertador
Os homens, observa o �lósofo, partem das percepções sensíveis e, incapazes
de considerá-las isoladamente por não entenderem que as coisas se produzem
de si mesmas (imanência divina), formam “ideias gerais” daquilo que se repe-
te frequentemente. Baseados na mesma ignorância da natureza divina, os ho-
mens exercem a imaginação, que consiste em estabelecer uma distância entre
o “ser” e o “dever ser”, desconhecendo que não há nenhum “dever ser” que pos-
sa ser aplicado ao plano do ser, pois esse é o plano, repetimos, da imanência
divina.

Constituem ambas, as ideias gerais e a imaginação, o que Spinoza denomina


de conhecimento inadequado. Uma das consequências desse conhecimento
inadequado seriam as paixões. Ao entendermos “inadequadamente” nossas
afecções ou afetos, estes se transformam em paixões. A paixão é “desapropria-
ção de si”, ou seja, alienação. Isso acontece, segundo Spinoza, por não compre-
endermos o “desejo” como sendo o efeito em nós do poder eterno e in�nito de
Deus, acreditando tratar-se de uma carência. Daí a absorção do espírito na
busca do prazer, da riqueza e da honra para suprir essa carência enganosa.
As ocorrências mais frequentes na vida, aquelas que os homens, como transpare-
cem em todas as suas obras, tomam como sendo o soberano bem, se referem de fa-
to a três objetos: riqueza, honra, prazer dos sentidos. Ora, cada um destes distrai o
espírito de todo pensamento relativo a um outro bem; no prazer a alma é suspensa
como se ela tivesse encontrado um bem no qual pudesse descansar; ela se encon-
tra no mais alto ponto impedida de pensar em um outro bem: após o prazer, por ou-
tro lado, vem uma extrema tristeza que, se não suspende o pensamento, o perturba
e o enfraquece. A busca da honra e da riqueza não absorve menos o espírito: a da ri-
queza, sobretudo quando é buscada por si mesma, pois que lhe é dado um grau de
soberano bem; quanto à honra, absorve o espírito de uma maneira ainda bem mais
exclusiva, porque nunca se deixa de considerá-la uma coisa boa em si mesma, e
como um �m último em direção ao qual vão todas as ações. Além disso, a honra e a
riqueza não são seguidas de arrependimento como o prazer; ao contrário, quanto
mais se possui seja uma seja outra, mais a satisfação que se experimenta é maior,
daí a consequência de se sentir cada vez mais levado a aumentá-las; mas, se em al-
guma ocasião nos enganamos em nossa esperança, então surge uma tristeza extre-
ma. A honra, en�m, é ainda um grande impedimento pelo fato de que para atingi-la
é necessário dirigir a própria vida de acordo com a maneira de ver dos homens, isto
é, fugir do que comumente eles fogem e buscar o que eles buscam. A servidão pas-
sional nasce, assim, da ignorância e a alimenta, dividindo o mundo em coisas boas
e coisas más, acreditando saber quais nos convêm e quais não nos convêm. Trata-
se de um pseudoconhecimento das “causas �nais”, o que leva à superstição religio-
sa com a ideia de um Deus arbitrário distribuindo intencionalmente o bem e o mal,
em função do culto que lhe rendemos (SPINOZA in ROUX-LANIER, 1995, p. 251, tra-
dução nossa).

Consequências do conhecimento inadequado


O preconceito natural ou crença nas causas �nais é o princípio de todos os
nossos erros, diz Spinoza

Se tudo o que existe é emanação de uma substância única e ilimitada, Deus


como causa imanente da natureza, identi�cando-se, nesse sentido, com ela,
estando totalmente nela presente, não depende a natureza da a�rmação ou
negação de nenhuma vontade outra, de nenhum princípio transcendente para
ser o que ela é (sua substancialidade).

Não há, pois, “vontade” entendida como o poder de a�rmar ou negar o que é
verdadeiro ou o que é falso, assim como não há “�nalidade” ou “causas �nais”,
uma vez que não há uma essência imóvel e transcendente em vista da qual
foram as coisas criadas.

É su�ciente no momento colocar em princípio o que todos devem reconhecer: que


todos os homens nascem sem nenhum conhecimento das causas das coisas, e que
todos são levados a buscar o que lhes é útil e do qual têm consciência. Daí se segue
que: 1° os homens se imaginam livres, porque têm consciência de seus desejos e do
que lhes apetece e não pensam, nem em sonho, sobre as causas que os levam a de-
sejar e a querer, não tendo sobre isso nenhum conhecimento. Daí se segue: 2° que
os homens agem sempre em vista de um �m, saber o útil que os apetece. Disso re-
sulta que se esforçam sempre unicamente no sentido de conhecer as causas �nais
das coisas realizadas e descansam quando são informados sobre elas, não existin-
do para eles mais nenhuma razão de se inquietar. [...] Como, por outro lado, encon-
tram em si mesmos e fora de si mesmos um grande número de meios que contribu-
em grandemente para atingir o útil, assim, por exemplo, os olhos para ver, os den-
tes para mastigar, as ervas e os animais para a alimentação, o sol para clarear, o
mar para alimentar os peixes, passam a considerar todas essas coisas como sendo
meios para seu uso. Sabendo ter encontrado esses meios, mas não os tendo procu-
rado, concluem que alguém os providenciou para o seu uso. Não podem, de fato,
após considerar as coisas como meios, acreditar que elas se produzem de si mes-
mas, mas, tirando sua conclusão dos meios que costumam utilizar, se persuadem
de que existem um ou mais condutores da natureza, dotados da liberdade humana,
que suprem a todos as suas necessidades, fazendo tudo para sua utilização
(SPINOZA in ROUX-LANIER, 1995, p. 255, tradução nossa).

Ao ignorar, assim, as razões ou causas das coisas, passamos a ter do mundo


uma visão fundada em milagres: crença em deuses que conduzem a natureza
para satisfazer nossos desejos; crença de que as coisas naturais foram criadas
tendo em vista o homem. Como a experiência não valida tais crenças, os ho-
mens são levados às superstições, buscando adivinhos para interpretar os
fenômenos.

Por sua vez, essa servidão a causas �nais


[...] favorece as “paixões tristes”, o ódio da vida, a amargura com relação a tudo o
que é. [...] levando os homens a confrontar o real com um ideal ilusório, proíbe amar
o que é e conhecê-lo na alegria. Acreditando na realidade do mal, lastimam sua
sorte, pensam que a perfeição não é deste mundo e que a verdadeira vida está em
outro lugar. Essa extensão da tristeza multiplica as ocasiões de ódio entre os ho-
mens, os ódios os mais terríveis como os que inspiram as diferentes superstições
religiosas (SPINOZA in ROUX-LANIER, 1995, p. 251, tradução nossa).

Não há livre arbítrio ou liberdade nas coisas e nos homens. Só Deus é livre

Outra consequência do conhecimento inadequado seria a crença no livre arbí-


trio. Vejamos o que diz Spinoza:
Chamo livre, no que me concerne, algo que é e age unicamente segundo a necessi-
dade da natureza: coagido é aquele que é determinado por outro a existir e a agir de
certa maneira determinada. Deus, por exemplo, existe livremente, ainda que neces-
sariamente, porque existe unicamente em função da necessidade de sua natureza.
Também Deus conhece a si mesmo e todas as coisas livremente, porque decorre de
sua própria natureza de Deus conhecer todas as coisas. Veja bem, não concebo a li-
berdade consistindo em um livre decreto, mas em uma necessidade livre.

Mas, desçamos às coisas criadas que são todas determinadas a existir e a agir de
certa maneira de�nida. Para tornar isso claro e inteligível, concebamos algo muito
simples: uma pedra, por exemplo, recebe certa quantidade de movimento de uma
causa exterior que a move e, cessando o impulso da causa exterior, ela continuará a
se mover necessariamente. Essa persistência da pedra em seu movimento é uma
coerção, não por necessidade, mas se de�ne como um impulso de uma causa exte-
rior. E o que é verdadeiro com relação à pedra deve sê-lo no que se refere a toda coi-
sa singular, qualquer que seja a complexidade que se queira lhe atribuir, não impor-
tando quão numerosas forem suas aptidões, porque toda coisa singular é necessa-
riamente determinada a existir e a agir de certa maneira determinada por uma
causa exterior.

Concebamos agora que a pedra, enquanto continua a se mover, pensa e sabe que ela
faz esforço, tanto quanto pode, para se mover. Essa pedra seguramente, pois que ela
tem somente consciência de seu esforço e que ela não é de maneira alguma indife-
rente, acreditará que é muito livre e que não persevera em seu movimento porque
não quer. Tal é essa liberdade humana de que todos se vangloriam de possuir e que
consiste unicamente no fato de que os homens têm consciência de seus apetites e
ignoram as causas que os determinam (SPINOZA in ROUX-LANIER, 1995, p. 261,
tradução nossa).

Segundo Spinoza, tanto a decisão da mente quanto o apetite e a determinação


do corpo são uma só e mesma coisa: “as decisões da mente nada mais são do
que os próprios apetites” (Ética, Parte 3, Proposição 2, Escólio).
Um homem embriagado também acredita que é pela livre decisão de sua mente
que fala aquilo sobre o qual, mais tarde, já sóbrio, preferiria ter-se calado.
Igualmente, o homem que diz loucuras, a mulher que fala demais, a criança e mui-
tos outros do mesmo gênero acreditam que assim se expressam por uma livre deci-
são da mente, quando, na verdade, não são capazes de conter o impulso que os leva
a falar. Assim, a própria experiência ensina, não menos claramente que a razão,
que os homens se julgam livres apenas porque são conscientes de suas ações, mas
desconhecem as causas pelas quais são determinados. Ensina também que as de-
cisões da mente nada mais são do que os próprios apetites: elas variam, portanto,
de acordo com a variável disposição do corpo. Assim, cada um regula tudo de acor-
do com o seu próprio afeto e, além disso, aqueles que são a�igidos por afetos opos-
tos não sabem o que querem, enquanto aqueles que não têm nenhum afeto são, pelo
menor impulso, arrastados de um lado para outro. Sem dúvida, tudo isso mostra
claramente que tanto a decisão da mente, quanto o apetite e a determinação do cor-
po são, por natureza, coisas simultâneas, ou melhor, são uma só e mesma coisa, que
chamamos decisão quando considerada sob o atributo do pensamento e explicada
por si mesma, e determinação, quando considerada sob o atributo da extensão e de-
duzida das leis do movimento e do repouso [...] (SPINOZA, 2008, p. 171).

A obra de Spinoza se destaca das demais obras do século 17 em que viveu. É


considerada uma admirável sistematização do saber, o que é característico da
Modernidade.

Da obra de Spinoza, diz o professor Marcos André Gleizer:

A �loso�a de Baruch Espinosa (1632-1677) é uma das mais extraordinárias produ-


ções do espírito humano. Sua obra principal, a "Ética Demonstrada à Maneira dos
Geômetras", ocupa uma posição ímpar na história da �loso�a. Sua forma dedutiva
constitui a exempli�cação mais perfeita do ideal de sistematização do saber, carac-
terístico da modernidade. Seu conteúdo, encadeado rigorosamente ao longo das
cinco partes que a compõem, constrói um espaço teórico inovador que rompe radi-
calmente com o universo conceitual da tradição metafísico-moral judaico-cristã.
Partindo do conhecimento de Deus e de sua relação imanente com a natureza, a
"Ética" pretende "conduzir-nos, como que pela mão, ao conhecimento da alma hu-
mana e de sua beatitude suprema" (GLEIZER, 2004).

Em contrapartida, como observam alguns estudiosos de sua obra, Spinoza


contraria princípios fundamentais que regeram o pensamento moderno, como
sua opção por temáticas referentes, hoje, às áreas da , Psicologia,
Sociologia, Pedagogia e Política, em detrimento dos domínios pertencentes à
Física, à Metafísica e à Lógica.

Depois de sua morte, Spinoza foi, como observam seus biógrafos, um dos �ló-
sofos mais comentados e pouco lidos. Para muitos, como John Locke e David
Hume (que estudaremos a seguir), as ideias ateias de Spinoza eram tolas. O �-
lósofo Immanuel Kant o ignorou.

Foi apenas após Goethe (1749-1832, pensador e escritor alemão), seu admira-
dor, que suas obras passaram a ser lidas com o devido cuidado.

Spinoza teve grande in�uência sobre o chamado Idealismo Alemão, também


denominado de Idealismo Absoluto, que é um movimento de pensamento do
século 18, segundo o qual o mundo se identi�ca com o pensamento objetivo e
não com o �uxo da experiência, ou com o fenômeno de pensamento de cada
indivíduo. A in�uência de Spinoza se fez no sentido de dar a esse movimento
a direção de um monismo imanentista. Monismo imanentista porque, como
vimos, concebe Deus e a natureza como sendo a mesma realidade (monismo),
um todo imanente e não transcendente: tudo que existe, existe em Deus, é par-
te essencial de Deus. O mundo é uma expressão necessária e absoluta de Deus
(imanentismo).

A in�uência de Spinoza, não só sobre �lósofos, mas igualmente sobre artistas


e poetas, se estende até os dias de hoje. Recentemente foi lançado o livro de
Roberto Leon Ponczek (professor da UFBA) intitulado Deus ou seja a natureza
– Spinoza e os novos paradigmas da física (2009), em que, entre outros assun-
tos, é descrita a grande in�uência de Spinoza sobre Albert Einstein. Na contra-
capa desse livro, lê-se:
Certa vez, quando lhe perguntaram se acreditava em Deus, Einstein teria respondi-
do: “Sim, o Deus no qual eu acredito é o Deus de Spinoza”. De fato, Einstein entendeu
como ninguém que o Deus ou seja a Natureza de Spinoza, se re�ete do mais ín�mo
spin eletrônico às mais extensas galáxias do universo. Para Einstein, a ciência não
poderia ser apenas uma útil conta de chegada às aplicações tecnológicas, mas de-
veria ter uma dimensão quase religiosa. Para ambos, Deus é a Natureza inteligente
e autoconsciente sempre muito mais ampla do que qualquer coisa que possa ser di-
ta ou descrita por números. Deus é o jardim que não carece de jardineiro, pois se faz
por Si próprio. O ser humano é tão somente um pequenino arbusto de limitada exis-
tência plantado neste Jardim in�nito que a ele se desvela com mistério e espanto
(PONCZEK, 2009, contracapa).

Sugerimos que faça a leitura de Deus ou seja a natureza: Spinoza e os novos paradigmas da
física, (https://repositorio.ufba.br/ri/bitstream/ufba/207/1/Deus%20ou%20seja%20a%20natu-
reza.pdf)de Roberto Leon Ponczek.

No que se refere à orientação básica dada a esta obra, segundo a qual o ético
distingue-se essencialmente do moral, a Ética de Spinoza exempli�ca admira-
velmente, em muitos aspectos, o que se espera de um discurso que se situe na
instância do “singular” e que seria eminentemente o discurso ético,
distinguindo-o radicalmente do moral. De fato, Spinoza se ocupa fundamen-
talmente do ético. Diríamos que, quanto à moral, a saber “regras” e “dever nor-
mativo” com base em ideias gerais e no “dever ser” imaginativo, o �lósofo en-
tende que só imperarão, na medida em que essa razão intuitiva (fundante, a
nosso ver, da instância ética) ainda não dominar.

Embora os limites da presente obra não nos permita desenvolver su�ciente-


mente o que seria esse pensamento do “singular”, solo, a nosso ver, do fenôme-
no ético, uma vez que para isso seria necessário recorrer ao pensamento con-
temporâneo, não objeto deste nosso trabalho, faremos aqui apenas a seguinte
observação: encontramos, na �loso�a de Spinoza, várias características bási-
cas de um pensamento do “singular”, tais como uma visão à luz do “imaginá-
rio” (discurso da Geometria) e o fato de ser um discurso interessado em um
pensamento objetivo das “possibilidades” de um objeto, ação ou situação, e
que, no caso de Spinoza, tratou-se de uma substância única e singular (Deus);
uma concepção do “entendimento” como “compreensão”, isto é, como capta-
ção da unidade, a partir de seu próprio sentido ou direção, considerando o não
expresso ou subentendido, em vez de julgá-lo de fora e, �nalmente, uma con-
cepção da razão como intuitiva.

 Leitura complementar

O próximo material indicado é do autor Fernando Sepe (2013), intitulado


Spinoza, Crítico de Descartes: uma Ética dos Afetos como alternativa à
Moral (https://dialnet.unirioja.es/descarga/articulo/4451068.pdf), o qual
você deverá realizar a .

 Vídeo complementar

Além da leitura anterior, indicamos também os seguintes vídeos:

• Filoso�a da Educação – Descartes (https://www.youtube.com/wat-


ch?v=M3oLEGlzs6k&t=2s)
• Espinosa, apóstolo da razão. Título original: Gênero: biogra�a, drama
(https://www.youtube.com/watch?v=pVpEcMqDbUc)
• Baruch Espinosa: como pensar através das emoções? 49ª edição do
Café Filosó�co com Will Goya (https://www.youtube.com/wat-
ch?v=y5AR4Jn4MuE)

5. Éticas Empiristas
O empirismo, enquanto movimento �losó�co, defende que a origem das ideias
são provenientes da experiência ou das percepções sensoriais, não existindo,
assim, nada que justi�que a possibilidade de ideias inatas. Nada originário
chega ao intelecto sem passar anteriormente pelos sentidos. Dentre os autores
empiristas, estudaremos mais de perto Thomas Hobbes e John Locke.

O empirismo de Thomas Hobbes (1588-1679) pode ser compreendido como


uma espécie de “corporeísmo mecanicista”, uma vez que tenta explicar todas
as coisas a partir de dois elementos apenas: “corpo” e “movimento”. Portanto,
para Hobbes, a Filoso�a tem por objeto não as causas metafísicas e transcen-
dentais, os silogismos conjecturais, muito menos se ocupa de Deus e da
Teologia – que cabe à fé –, mas, se volta unicamente para a investigação dos
corpos, de suas causas e propriedades. Trata-se, portanto, da “�loso�a dos cor-
pos” – e foi justamente essa concepção que orientou Hobbes a escrever as três
partes de seu Elementa Philosophie (Elementos da Filoso�a): a) De Corpore
(sobre os princípios geométricos e físicos dos corpos inanimados); b) De
Homine (sobre os princípios psicológicos e antropológicos que regem os cor-
pos animados); c) De Cive (sobre os princípios políticos que regem os corpos
arti�ciais).

(https://mdm.claretiano.edu.br/eti-gp0061-2021-01-grad-ead-p/wp-content
/uploads/sites/792/2019/12/C3-F1.png) : Reale e Antisere (2005, p. 76).
Figura 1 Filoso�a - ciência dos corpos.

Do ponto de vista de sua ética, o pensamento de Hobbes também segue a pre-


missa do “corporeísmo mecanicista”. Enquanto o “corpo” é a causa de todas as
sensações, o “movimento” é a causa principal da qual nascem todas as coisas
naturais, isto é, os corpos inanimados, humanos e políticos (REALE;
ANTISERE, 2005). Tudo é corpo em movimento: tanto os processos físicos co-
mo os cognitivos resultam da mecânica do movimento e dos nexos causais,
inclusive os sentimentos, as paixões e a racionalidade. Logo, as paixões, os
sentimentos e ações não são regidas pelo princípio do bem e do mal, mas pela
lógica da autopreservação do indivíduo, que reage de acordo com as circuns-
tâncias ao seu redor.
É nesse aspecto que Hobbes justi�ca, inclusive, a formação do corpo político,
do contrato e do Estado. Pelo fato de as ações humanas estarem necessaria-
mente vinculadas ao movimento mecanicista da autopreservação e da satis-
fação imediata dos desejos, a vida coletiva estaria fadada à guerra de todos
contra todos. Esse estado natural do ser humano, que compreende o outro co-
mo um rival, só pode ser contido pela mediação de um terceiro corpo – um
corpo arti�cial (Estado), um representante despersonalizado, que, após a for-
malização do pacto social, todos os indivíduos concordam entre si em transfe-
rir para as mãos desta Autoridade o direito de se autogovernarem. Com isso,
detém a soberania (ou ganha o nome de Soberano) aquele que for o portador
desta Pessoa Representativa, constituindo assim, de�nitivamente, o Estado ou
a República (o Leviatã), como a multidão unida numa só Pessoa criada arti�ci-
almente:

Isto é mais do que consentimento ou concórdia, é uma verdadeira unidade de todos


eles, numa só e mesma Pessoa, realizada por um pacto de cada homem com todos
os homens, de um modo que é como se cada homem dissesse a cada homem:
Autorizo e trans�ro o meu direito de me governar a mim mesmo a este homem, ou
a esta assembleia de homens, com a condição de transferires para ele o teu direito,
autorizando de uma maneira semelhante todas as suas ações. Feito isto, à multidão
assim unida numa só pessoa se chama República, em latim Civitas (HOBBES, 2003,
p. 147).

John Locke (1632-1704), outro representante do empirismo, também propõe


uma ética dentro do contexto do contrato político e da preservação dos direi-
tos naturais. Assim como em Hobbes, Locke também a�rma um estado natu-
ral na história das coletividades; nesse estado vigora a lei natural (iluminada
pela razão) que governa e ensina os homens a serem iguais, independentes e
livres. No entanto, pelo fato de todos serem iguais e de livre direito, nem todos
respeitam a lei natural.

Segundo Locke, para evitar uma situação de guerra, os homens criaram então
a existência de um representante comum, que tinha como função responder
em nome dos direitos de todos. Esse representante, que possui soberania e que
personi�ca em sua ação os interesses de todos, recebe o nome de Governo
Civil. Desta maneira, os homens submetem-se à autoridade e proteção do
Governo Civil, transferindo espontaneamente o autogoverno dos seus direitos
naturais, através da existência de um Contrato de interesse comum.

No entanto, segundo Locke, não são todos os direitos naturais que são transfe-
ridos ao Governo Civil: a vida, a liberdade e a propriedade privada, mesmo de-
pois da criação do Governo Civil, continuam sendo de posse única e inaliená-
vel do indivíduo. A �nalidade do Governo seria: a) evitar e remediar as incon-
veniências do Estado de Natureza, no qual cada homem é juiz em causa pró-
pria; b) por não ser soberano supremo de todos os direitos naturais, também
deve garantir a preservação da vida, da liberdade e da propriedade privada dos
indivíduos.

Nesse ambiente liberal, Locke também enfatiza a importância da tolerância


religiosa como �o condutor da vida social, especialmente na sua Carta sobre a
Tolerância. As premissas deste texto seguem um teor ético-moral, não somen-
te porque questiona o caráter etnocêntrico e dogmático da religião, como tam-
bém porque defende a liberdade espiritual como direito ético e um benefício
para a sociedade e para o Estado.

6. Thomas Hobbes (1588-1679)


O empirista Hobbes não apela para modelos a priori a serem imitados, não in-
voca entidades metafísicas. Sua concepção de moral não tem por base um
transcendente, ou seja, um Deus ou uma concepção metafísica do ser, mas es-
tá fundamentada no que se poderia de�nir como a virtude da prudência, con-
quistada pela experiência ao longo dos tempos pelos seres humanos.
Prudência que leva a humanidade a passar do Direito Natural, ou seja, da liber-
dade que cada ser humano tem de usar o próprio poder para a conservação da
vida, para a instituição do chamado Direito Positivo ou Contrato Social.
Hobbes é considerado um dos fundadores da teoria moderna do Estado, que é
a da passagem do Estado de Natureza ao Estado Civil, do Estado Apolítico ao
Estado Político.

Ao contrário da tradição aristotélica e tomista que situa o fundamento da


Ética e da Filoso�a Política na Cosmologia e na Teologia, Hobbes procura esse
fundamento na Antropologia. Nossa felicidade não estaria na satisfação de
um Soberano Bem, mas na satisfação contínua do próprio desejo.
Por costumes não entendo aqui boas maneiras, por exemplo, a maneira como deve-
mos saudar uns aos outros, lavar a boca e escovar os dentes perto dos outros, e to-
das as outras regras do “saber viver”, mas as qualidades dos homens que interes-
sam a uma coabitação pací�ca e a reunião dos mesmos. Nessa perspectiva é preci-
so considerar que a felicidade nesta vida não consiste no repouso de um espírito
satisfeito. Pois não existem, na realidade, nem “�nis últimus” (ou meta �nal) nem
este “summum bonum” (ou bem supremo) de que falam as obras dos antigos mora-
listas. Aquele cujos desejos atingiram seu �m não viverá mais do que aquele no
qual cessaram toda sensação e toda imaginação. A felicidade é uma marcha contí-
nua diante do desejo, de um objeto a outro, sendo a satisfação do primeiro o cami-
nho que leva ao segundo. A razão disso é que o desejo do homem não é o de usu-
fruir uma única vez e durante um só instante, mas o de assegurar o caminho de
seu desejo futuro. Da mesma maneira as ações voluntárias e as inclinações de to-
dos os homens não buscam somente uma vida de satisfação, mas também garanti-
la. Diferem somente no caminho que tomam: as que decorrem da diversidade das
paixões nos diferentes indivíduos e as que decorrem da diferença no que diz res-
peito ao conhecimento ou opinião que cada um tem das causas que produzem o
efeito desejado.

Assim, coloco no primeiro plano, a título de inclinação geral de toda a humanidade,


um desejo perpétuo e sem trégua de adquirir poder e mais poder, desejo que não
cessa senão com a morte. A causa nem sempre é a de se esperar um prazer mais
intenso do que aquele que já se obteve, ou de não se contentar com um poder mode-
rado: mas a causa é que não se pode tornar seguro, a não ser adquirindo mais, o po-
der ou os meios dos quais dependem o bem-estar que se possui no presente
(HOBBES, 1983, p. 95-96, tradução nossa).

Essa satisfação contínua dos próprios desejos leva os homens, em seu estado
natural, a viver em guerra uns com os outros. Vivem em constante angústia
com o temor da morte violenta pelos outros. Guerreiam entre si porque a natu-
reza os fez iguais e essa igualdade os leva a entender que cada um pode ter o
que o outro possui. As diferenças naturais entre os homens são insigni�cantes
e, portanto, insu�cientes para levar o mais fraco a pensar em poder derrotar o
mais forte.

No capítulo XIII de sua obra Leviatã, Hobbes diz:


A natureza fez os homens tão iguais nas faculdades de corpo e mente a ponto que,
embora possa se encontrar algumas vezes um homem de corpo manifestamente
mais forte, ou de mente mais rápida que outro, quando se leva em conta todo o con-
junto, a diferença entre um homem e outro não é tão considerável a ponto de que
um deles possa, com base nela, reclamar para si algum benefício ao qual o outro
não possa pretender tanto quanto ele (HOBBES, 1996, p. 86-87, tradução nossa).

A boa ação, segundo Hobbes, não é julgada pela boa inten-


ção, mas pela sua utilidade em trazer felicidade ao maior
número de pessoas possível
Essa felicidade do maior número possível de pessoas só será viável, diz
Hobbes, com a repressão da animalidade natural, o que só será possível a par-
tir do momento em que cada um abrir mão de seu direito natural em favor de
um terceiro, um Soberano (um representante de todos ou uma assembleia de
representantes).

A única maneira de erigir tal poder comum, apto a defender as pessoas do ataque
de estranhos, e do mal que poderiam fazer uns aos outros, e, desse modo, protegê-
las de forma que, pelo seu trabalho e produção da terra, pudessem se alimentar e
viver satisfeitos, é con�ar todo seu poder e toda sua força a um só homem, ou a
uma única assembleia, que pudesse reunir suas vontades, pela regra da maioria,
em uma só vontade. O que signi�ca dizer: designar um homem ou uma assembleia,
para assumir sua personalidade; e que cada um confesse e se reconheça como au-
tor de tudo que tal homem terá feito ou ordenar que se faça no que diz respeito às
coisas que concernem à paz e segurança comum [...] que cada um, consequente-
mente, submeta sua vontade e seu julgamento à vontade e ao julgamento desse ho-
mem ou assembleia. Isso vai além do consenso e da concórdia: trata-se de uma
unidade real de todos em uma só e mesma pessoa, unidade realizada por meio de
um acordo de cada um com cada um, feito de tal maneira que seria como se cada
um dissesse a cada um: “autorizo este homem ou esta assembleia, e eu con�ro a
eles meu direito de me governar, com a condição que abandone seu direito e autori-
ze todas as suas ações da mesma maneira”. Feito isso, a multidão assim unida em
uma só pessoa é chamada de “república”, em latim “civitas”. Tal é a geração deste
grande Leviatã, ou falando com mais reverência, deste “deus mortal”, ao qual deve-
mos, sob o “deus imortal”, nossa paz e proteção (HOBBES, 1983, p. 177-178, tradução
nossa).
A construção do Estado ou contrato social
É mediante um contrato social que uma multidão de homens passa a consti-
tuir um corpo de Estado. O Estado representa cada um de nós, decidindo e
agindo por nós e, em consequência, devemos nos reconhecer como responsá-
veis e coautores de tudo o que ele faz.

A civilização nasce desse contrato social. Essa nova situação, entretanto, só


pode ser mantida com a existência de um . Leviatã é o nome de um
animal monstruoso descrito em detalhes no livro de Jó, que se expressa prefe-
rencialmente na �gura de um rei que gera em todos o medo da punição, ga-
rantindo assim a continuidade do Estado civil. A obra em que Hobbes compa-
ra o poder absoluto de um comandante supremo à �gura de um Leviatã
intitula-se Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e
Civil, publicada em 1651.

O poder soberano, baseado no contrato social, é absoluto e inviolável. O


Soberano (homem ou assembleia) é uma criação nossa. Nós o obedecemos
não por ser ele o mais forte, mas para dar-lhe a força para manter a paz. É na
obediência a um terceiro que os homens cessam de formar uma multidão e se
tornam um povo ou o corpo de um Estado, tendo por alma o Soberano.

Esse absolutismo de Hobbes, enfatizam vários autores, não signi�ca apologia


da monarquia absoluta ou defesa de um sistema político. O “deus mortal”, o
Leviatã, como vimos, pode ser um homem, um conselho ou uma assembleia. O
que interessa é a essência do poder, a obediência. A prosperidade de um povo
não depende da forma de seu governo, mas da concórdia e obediência de to-
dos.

Em contrapartida, como o poder político não pode atender a todos os aspectos


da vida, naquilo que a lei civil não se pronuncia, existe, segundo Hobbes, espa-
ço onde a liberdade das pessoas pode se realizar. O que conta não é a extensão
do poder, mas o seu caráter imperioso de imposição.

Quais seriam os recursos da humanidade para chegar à


constituição desse contrato social?
O homem, diz Hobbes, tem acesso ao tempo por meio dos “sinais” que lhe per-
mitem a memória e a antecipação do futuro. A linguagem dos sinais torna, as-
sim, possível a razão e, consequentemente, a ciência, que é o conhecimento
das sucessões, associações e concatenações de sinais.

[...] a razão não nasce conosco como a sensação e a lembrança, e também não se
adquire só pela experiência, como a prudência, mas se adquire pelo trabalho, pri-
meiro atribuindo corretamente as denominações, e em seguida indo, graças à aqui-
sição de um método correto e ordenado, a partir dos elementos que são as denomi-
nações, até as asserções, formadas pela colocação de uma denominação em rela-
ção com uma outra; e daí aos silogismos que são a colocação em relação de uma
asserção com uma outra, para chegar ao conhecimento de todas as consecuções de
denominações que concernem o tema considerado; é isso que os homens chamam
“ciência”. Enquanto a sensação e a lembrança não são senão um conhecimento do
fato, que é uma coisa passada e irrevogável, a “ciência” é o conhecimento das con-
secuções, da dependência de um fato de um outro fato; é por meio dessa dependên-
cia que, a partir do que nós podemos produzir presentemente, sabemos como pro-
duzir algo de outro se quisermos, ou repetir algo semelhante mais uma vez, pois,
vendo como uma coisa é produzida, por quais causas e de que maneira, percebe-
mos, no caso de causas semelhantes se darem, como fazê-las produzir efeitos se-
melhantes (HOBBES, 1983, p. 42-43, tradução nossa).

Tornando possível, assim, a razão e a ciência, a linguagem tornaria igualmen-


te possíveis os contratos sociais e o Estado – en�m, todos os recursos huma-
nos de que trata a Filoso�a Política.

Em sua concepção de moral, Hobbes, observa Yara Adario Frateschi (2005), em


seu trabalho Filoso�a da Natureza e Filoso�a Moral em Hobbes, concebia a
Filoso�a Moral como fazendo parte da Filoso�a Natural, tal como a Física. Sua
visão do comportamento humano seria inspirada na teoria mecânica do mo-
vimento. Isso signi�ca, basicamente, que, segundo Hobbes, o homem tende a
manter-se em movimento, buscando não �ns, mas meios para continuar vivo.
O discurso de Hobbes caracterizar-se-ia pela explicação mecânica: as paixões
adviriam automaticamente das reações do homem às circunstâncias em que
se encontra, prevalecendo sempre a inclinação natural à autopreservação. Em
outras palavras, Hobbes visualiza os costumes e hábitos humanos não à luz de
uma doutrina do bem e do mal, do justo ou do injusto, mas sim à luz das leis
naturais e da vontade humana.
A questão moral em Hobbes se encontra voltada essencialmente para a ins-
tância do Direito e, nesse sentido, sua obra tem particular importância na área
jurídica.

Sua obra tem sido muito trabalhada nesses últimos tempos, no que concerne
particularmente à questão da justiça. Alguns exemplos dessas discussões são:

• Segundo Hobbes, seria a natureza a fonte de um Direito e de um Estado


ideal e mais justo? Em outras palavras, a obra de Hobbes leva-nos a a�r-
mar a existência de uma ordem ou sistema ético subordinado a um con-
junto de leis universais e necessárias, decorrentes diretamente da nature-
za humana, sendo o Direito expressão dessa ordem? Isso é o que defen-
dem os adeptos da corrente doutrinária em Filoso�a do Direito chamada
“jusnaturalismo”.
• Hobbes considera que os homens, independentemente de sua natureza,
criam normas para reger uma determinada sociedade, em uma determi-
nada época, visando à validade dessas mesmas normas como decorren-
tes, não de leis naturais, mas do próprio processo de ordenamento dessas
normas, o que signi�caria que a lei não é natural, mas de natureza “posi-
tiva” (escrita, gravada, codi�cada). Nesse caso, estaria Hobbes fundamen-
tando outra posição em Filoso�a do Direito, denominada “justapositivis-
mo”.

Essa discussão persiste até os dias de hoje.

7. John Locke (1632-1704)


John Locke viveu em �ns do século 17 e início do século 18. É sua a famosa
frase: “a mente é uma tábua rasa” (em que só a experiência escreve). É classi�-
cado como empirista por alguns e por outros como não propriamente um em-
pirista, uma vez que admite a existência de dois tipos de experiência: a experi-
ência externa e a experiência interna, assim como três tipos de conhecimento:

• o direto, ou intuitivo, que garantiria um grau máximo de certeza;


• o indireto, ou demonstrativo, como a Lógica e a Matemática;
• o sensível, que seria o conhecimento da existência de objetos exteriores.
Por sua vez, distingue um mundo em si, fundamentado nas chamadas quali-
dades primárias (a solidez, a extensão etc.) e o mundo para nós, baseado nas
qualidades secundárias (cores, sons, etc.).

O moral dentro de um contexto político


Como Hobbes, Locke concebe o moral em um contexto politicamente consti-
tuído. Parte do mesmo ponto de Hobbes: o estado da natureza seguido do sur-
gimento da sociedade via um “contrato social”. Porém, a posição de Locke di-
verge, essencialmente, da de Hobbes no que concerne ao entendimento do que
seja esse estado da natureza.

Enquanto, para Hobbes, como vimos, o estado de direito é algo feito para coibir
a violência do estado da natureza, não sendo o viver em sociedade uma dispo-
sição inata ao ser humano, mas surgindo quando o homem se vê ameaçado,
buscando, então o acordo de um contrato social, e gerando, assim, a constitui-
ção do Estado, para Locke, diferentemente, o homem adquire direitos a partir
do momento mesmo em que passa a existir. O estado de natureza é o estado
dos direitos naturais. O homem, mesmo no estado da natureza, é dotado de ra-
zão, é senhor de si mesmo, não sendo subordinado a ninguém.

O crescimento demográ�co e a escassez de terra, segundo Locke, tornaram


necessário estabelecer leis, além da lei da natureza. Unindo-se uns aos outros
para preservar vidas e a liberdade de usufruto e conservação de propriedades
conseguidas pelo trabalho, os homens constituíram a sociedade civil. A socie-
dade civil se faz necessária quando a lei moral ou da natureza não é mais res-
peitada. Constitui-se, assim, um “pacto de conscientização” para preservar os
direitos que já existiam no estado da natureza.
Os homens tendo nascido iguais, como está provado, em uma “liberdade” perfeita, e
com o direito de usufruir tranquilamente e sem contradição de todos os direitos e
de todos os privilégios das “leis da natureza”; cada um tem, pela natureza, o poder,
não somente de conservar seus próprios bens, isto é, sua vida, sua “liberdade” e su-
as riquezas, contra todas as ações, todos os atentados dos outros; mas ainda de jul-
gar e de punir aqueles que violam as “leis da natureza”, quando considerar que a
ofensa merece, de punir mesmo com a morte, no caso de se tratar de algum crime
hediondo, que julgar merecer a morte. Ora, porque não pode haver “sociedade polí-
tica”, e sobreviver se ela não tem poder de conservar o que lhe pertence, e, por essa
razão, punir as faltas de seus membros; só existe “sociedade pública”, quando cada
um dos membros “abdicarem de seu poder, colocando-o nas mãos da sociedade,
para que ela possa dispor dele em todas as espécies de causas, o que não impede de
recorrer às leis estabelecidas por ela”. Através desse meio, todo julgamento de par-
ticulares estando excluído, a “sociedade” adquire o direito de soberania; e as leis
sendo estabelecidas, e certos homens autorizados pela comunidade para executá-
las, acabam todas as diferenças que possam existir entre os membros da sociedade
em questão, referente a qualquer matéria de direito, e punem-se as faltas cometidas
por algum membro contra a “sociedade” em geral, ou contra alguém pertencente ao
corpo de juízes, conforme as penas estabelecidas pelas leis (LOCKE, 1992, p. 206,
tradução nossa).

O contrato social
O contrato social, para Locke, diferentemente da visão de Hobbes a respeito,
não implica submissão ao governo. Este é obrigado a respeitar as leis estabe-
lecidas, tanto quanto cada indivíduo. O povo tem direito de rebelião contra o
abuso de poder das autoridades e, uma vez mantidos os direitos naturais, re-
sultado de um consenso, todo governo é limitado.
Um poder arbitrário e absoluto e um governo sem leis estabelecidas e estáveis não
seriam capazes de atender aos “�ns” da sociedade e do governo. De fato, os homens
deixariam a liberdade do “estado natural” para se submeter a um governo no qual
suas vidas, suas liberdades, seu descanso, seus bens não teriam segurança? Não
nos é possível supor que tenham a intenção, ou mesmo o direito de conceder a um
homem ou a vários um poder absoluto e arbitrário sobre si mesmos e seus bens, e
de permitir ao magistrado ou ao príncipe fazer, em relação a eles, tudo o que quises-
sem, arbitrariamente e sem limites, o que seria seguramente se colocar em uma si-
tuação muito pior do que aquela do estado natural, no qual se tem a liberdade de
defender seu direito contra as injúrias de outro, e de se manter, no caso de se pos-
suir força su�ciente, contra a invasão do outro ou de um grupo. De fato, na suposi-
ção de nos entregar ao poder absoluto e à vontade arbitrária de um legislador, esta-
ríamos desarmando a nós mesmos e armando esse legislador, de maneira que
aqueles que lhe são submissos tornam-se sua presa, e são tratados como ele assim
o desejar (LOCKE, 1992, p. 245-246, tradução nossa).

O princípio constitutivo do Estado: Deus


Na obra de Locke, diferentemente da de Hobbes, há um princípio constitutivo
da moral e do Estado: Deus. Segundo a teoria dos mandamentos divinos, a ver-
dade ou falsidade dos juízos morais dependem da vontade de Deus, o que sig-
ni�ca dizer que os fatos éticos e morais são simples convenções estabelecidas
por Deus. Para Locke, os direitos naturais (o direito à vida, à liberdade e à pro-
priedade) estão fundados no fato de que a vida é obra divina e pertence a Deus.
Por exemplo:

• : Deus criou os homens como iguais e independentes e,


por isso, é proibida toda agressão à vida humana – daí o direito à autode-
fesa.
• : se os homens nasceram iguais, nenhum tem direito
sobre o outro. Porém, existem limites legítimos que impedem que os ho-
mens sejam sempre livres. São os decretos naturais, como o direito se-
gundo o qual a liberdade não pode violar o direito à propriedade, pois, se
Deus criou os homens iguais, todos têm a mesma chance de conquistar
terras e de cultivá-las.

Neste sentido, a�rma:


O “estado de Natureza” é regido por um direito natural que se impõe a todos, e com
respeito à razão, que é este direito, toda a humanidade aprende que, sendo todos
iguais e independentes, ninguém deve lesar o outro em sua vida, sua saúde, sua li-
berdade ou seus bens; todos os homens são obra de um único Criador todo-
poderoso e in�nitamente sábio, todos servindo a um único senhor soberano, envia-
dos ao mundo por sua ordem e a seu serviço; são portanto sua propriedade, daquele
que os fez e que os destinou a durar segundo sua vontade e de mais ninguém.
Dotados de faculdades similares, dividindo tudo em uma única comunidade da na-
tureza, não se pode conceber que exista entre nós uma “hierarquia” que nos autori-
zaria a nos destruir uns aos outros, como se tivéssemos sido feitos para servir de
instrumento às necessidades uns dos outros, da mesma maneira que as ordens in-
feriores da criação são destinadas a servir de instrumento às nossas (LOCKE, 2015,
p. 36).

Do ponto de vista da distinção entre o moral e o ético, encontramos, na obra de


Locke, além das normas de conduta moral e de cidadania, a preocupação do �-
lósofo com o ético propriamente dito, na medida em que escreveu várias obras
em defesa do “princípio de tolerância” como intrínseco ao que é singularmente
próprio à questão da “liberdade”. Trata-se especi�camente da tolerância religi-
osa, pois, em sua época, eram comuns as guerras e perseguições religiosas.

Desenvolveu sua teoria da tolerância por meio de debates com o teólogo de


Oxford Jonas Proast, que defendia a tese contrária. Escreveu a respeito, sob o
pseudônimo de “Philanthropus”, principalmente as chamadas Segunda Carta
e Terceira Carta, publicadas respectivamente em 1690 e 1692.

Sua teoria da tolerância é eminentemente ética, na medida em que procura es-


tabelecer o sentido de uma liberdade espiritual irrestrita. Em sua busca pela
compreensão dos fundamentos da opção religiosa, Locke expressa não apenas
sua posição sobre os limites da atividade do Estado, mas ainda procede a uma
investigação da estrutura epistêmica do dogma religioso.

Para Locke, a tolerância é um bem para a sociedade e para a própria religião,


porque traz a paz e a ordem, tarefas do Estado. Segundo o �lósofo, “não temos
outro guia que não seja a razão e esta não aceita submissão cega à vontade e
às ordens de outrem”.
Para se aprofundar neste assunto, assista ao vídeo Contratualismo: Thomas
Hobbes (Leviatã) e John Locke (Segundo Tratado sobre o Governo Civil).

8. O empirismo ético de David Hume


Por �m, outro �lósofo empirista de destaque na Ética é David Hume
(1711-1776), que levou o empirismo a conclusões mais extremas. Conforme a
tradição empirista, ele apresenta o método de investigação, que consiste na
observação e na generalização.

Segundo Hume, o conhecimento tem início com as percepções individuais,


que podem ser: percepções originárias que se apresentam à
consciência com maior vivacidade, como as sensações (ouvir, ver, dor ou pra-
zer etc.); percepções derivadas, cópias pálidas das impressões e, por-
tanto, mais fracas, como a re�exão. A diferença entre impressões e ideias de-
pende apenas de duas coisas: Pela força ou vivacidade pelas quais as per-
cepções atingem a mente: a impressão é mais vívida do que a ideia. Pela
ordem ou sucessão temporal com que as percepções se apresentam à mente: a
impressão é sempre anterior à ideia; e a ideia é sempre depende de uma im-
pressão. Ou seja, o sentir (impressão) distingue-se do pensar (ideia) pelo grau
de intensidade e pela ordem.

Com isso, Hume põe um termo �nal sobre a questão das ideias inatas, pois o
indivíduo só pode ter ideias depois de ter impressões. Somente as impressões
são originárias; as ideias são sempre derivadas. “As ideias produzem imagens
de si mesmas em novas ideias; mas, como supomos que as primeiras são deri-
vadas de impressões, continua sendo verdade que todas as nossas ideias sim-
ples procedem, mediata ou imediatamente, de suas impressões corresponden-
tes” (HUME, 2009, p. 31).
Das impressões originárias surgem, portanto, as ideias simples; e da combina-
ção, associação e generalização de ideias simples, gravadas na memória, re-
sultam as ideias complexas. Mas como ocorre essa associação de diferentes
ideias simples em complexas? A combinação e associação de ideias comple-
xas são realizadas tanto pela imaginação, como também por meio de princípi-
os universais que regem o processo de associação das ideias. Noutras pala-
vras, a imaginação apresenta-se como um feixe de percepções unidas e com-
binadas por associação, a partir de três princípios básicos do intelecto huma-
no:

• : princípio pelo qual passamos com muita facilidade de uma


ideia a outra por conta de uma determinada semelhança existente entre
elas. Por exemplo: uma fotogra�a ou imagem nos faz vir à mente inúme-
ras percepções semelhantes que originariamente foram memorizadas em
outros momentos.
• : princípio pelo qual passamos também com muita facilida-
de de uma ideia a outra que habitualmente se apresenta a nós como liga-
da à primeira no espaço e no tempo. Por exemplo: a ideia de uma sala de
aula nos recorda a ideia (imagem espacial) das salas vizinhas; ou a ideia
de levantar uma âncora suscita a ideia (sucessão temporal) da partida de
um navio.
• : princípio pelo qual combinamos com muita facilidade aque-
las ideias que estão vinculadas pela relação de causa e efeito. Por exem-
plo: quando pensamos no fogo, inevitavelmente sou levado a pensar no
calor ou na fumaça que dele se desprende.

Desta forma, tais relações e princípios não podem ser observados como parte
da experiência, pois não pertencem aos objetos, mas sim a uma associação da
imaginação. As associações entre ideias (semelhança, contiguidade e causali-
dade) não existem nas coisas materiais; são apenas modos pelos quais passa-
se de um objeto a outro, de um termo a outro, de uma ideia particular a outra.

Hume nega, portanto, a validade universal do princípio de causalidade e da


noção de necessidade a ele associada. O que observamos é a sucessão de fatos
ou a sequência de eventos e não o nexo causal entre esses mesmos fatos ou
eventos. É o hábito criado pela observação de casos semelhantes que nos faz
ultrapassar o dado e a�rmar mais do que a experiência pode alcançar. A partir
desses casos, supomos – isto é, adotamos uma crença – que o fato atual se
comportará de forma análoga ao anterior.

Na tirinha a seguir, podemos observar a aplicação do conceito de “hábito” e


“crença” de Hume à constatação da lei da gravidade:

(https://mdm.claretiano.edu.br/eti-gp0061-2021-01-grad-ead-p/wp-content
/uploads/sites/792/2019/12/C3-F2.png) : ZIRALDO. Bichinho da Maçã. Folha de S. Paulo, de 27 de julho de
1991.

Figura 2 Lei da gravidade.

A partir deste ceticismo empirista Hume fundamenta sua ética: retomando de


Spinoza, nesse caso, o aspecto originário dos afetos, para Hume as paixões são
elementos originários e inerentes à natureza humana e, por isso, não depen-
dem da razão, muito menos podem ser governadas por ela. A centralidade da
moral está nas paixões: por um lado, as paixões são impressões resultantes de
outras impressões mais originárias; por outro lado, são as paixões que deter-
minam a “vontade”, a base para a qualquer escolha moral.

É apenas a paixão, derivada da formação e estrutura originais da natureza, que atri-


bui valor ao mais insigni�cante dos objetos. [...] Ao experimentar o sentimento de
censura ou aprovação, declarando disforme e odioso um dado objeto, e declarando
belo e apreciável um outro; sustento que, mesmo neste caso, essas qualidades não
se encontram realmente nos objetos, pertencendo inteiramente aos sentimentos do
espírito que censura ou aprova (HUME, 1985, p. 163).

Se razão não tem gerência alguma sobre a vontade – e a vontade é a base da


moral –, então, os atos morais também não estão situados na racionalidade,
mas nos sentimentos (paixões) de aprovação, reprovação, prazer, dor, remorso
etc., que decorrem das ações humanas. Enquanto a razão se ocupa dos juízos
de fato (o que é falso ou verdadeiro), os atos morais se voltam para os juízos de
valor (o que é bom ou mau).

A moralidade se desenvolve, portanto, pelo sentimento de aprovação das


ações (prazer moral); e o prazer moral, por sua vez, assenta-se sobre o critério
do maior cálculo possível de aprovação. Logo, a moral de Hume também é uti-
litarista, uma vez que se fundamenta na convicção de que quanto maior a in-
tensidade do bem, maior será o grau de satisfação dos atos morais. Conforme
veremos no ciclo seguinte, essa questão será importante para a compreensão
das teorias éticas deontológicas e teleológicas.

A utilidade é apenas uma tendência à obtenção de um certo �m, e é uma contradi-


ção em termos que alguma coisa agrade como meio para um certo �m se esse pró-
prio �m não nos afeta de modo algum. Assim, se a utilidade é uma fonte do senti-
mento moral, e se essa utilidade não é invariavelmente considerada apenas em re-
ferência ao próprio sujeito, segue-se que tudo o que contribui para a felicidade da
sociedade recomenda-se diretamente à nossa aprovação e afeto. Eis aqui um prin-
cípio que explica em grande medida a origem da moralidade. Que necessidade te-
mos, então, de buscar sistemas remotos e abstratos, quando já se tem à mão um que
é tão óbvio e natural? (HUME, 1995, p. 84).

9. David hume (1711-1776)


Nascido em Edimburgo (Escócia), Hume lutou, desde o início, para poder se
dedicar à literatura e à Filoso�a, opondo-se à própria família, que desejava vê-
lo seguir a carreira jurídica. Também o sucesso demorou a acontecer.

Com o sucesso, porém, sua �loso�a é ainda hoje considerada como uma das
grandes in�uências sobre o pensamento contemporâneo, tanto no que concer-
ne à chamada Filoso�a Analítica (que reduz a Filoso�a a uma pesquisa sobre a
linguagem) quanto no que se refere a �loso�as como a Fenomenologia de
Edmund Husserl, que busca levar a atitude de Descartes às suas últimas con-
sequências, visando a uma fundação radical do conhecimento.
A primeira e mais detalhada explicação da teoria moral de Hume encontra-se
no livro 3, intitulado “Da Moral’, de sua obra Tratado da natureza humana.

O fenômeno da moralidade, segundo Hume, surge no relacionamento dos indi-


víduos entre si. Para Hume, não é concebível que todos os atos das pessoas se-
jam tidos como moralmente equivalentes, que todos os atos sejam igualmente
dignos de estima e consideração. As distinções morais são para ele uma reali-
dade. Seu objetivo é descobrir quais são os princípios universais dos quais de-
riva toda censura ou aprovação e quais tipos de percepções nos permitem fa-
zer distinções morais, como entre o bem e o mal, entre o certo e o errado etc.
Busca, igualmente, saber em quais circunstâncias essas percepções surgem.

Hume entende a questão moral como uma questão de leis e regras de funcio-
namento da natureza humana: nenhuma ação pode ser virtuosa ou moral-
mente boa, a menos que haja na natureza humana algum motivo que a produ-
za.

A teoria moral de Hume não tem, pois, como referência um transcendente in-
dependente da experiência dos sentidos, como a vontade de Deus ou uma ra-
zão a priori. Volta sua re�exão para a interioridade pura, pressupondo que a al-
ma seja um campo de percepções, impressões e ideias. Para o �lósofo, nada
existe previamente no nosso pensamento. Tudo vem da experiência e é, por-
tanto, de natureza sensível.

A questão moral está fundada no movimento emotivo ou


“emoção” e não no entendimento
A primeira questão colocada por Hume é a de saber se as distinções morais
são derivadas da razão. Entende a razão como um puro cálculo de meios, ca-
paz apenas de avaliar os melhores meios para um determinado �m, mas sem
o poder de demonstrar o caráter desejável ou não desses �ns em si mesmos.
Uma ação não é virtuosa ou viciosa pelo fato de obedecer à razão, mas pelo fa-
to de nos proporcionar uma sensação agradável ou desagradável.

Ao entender a razão teórica como um puro cálculo de meios, Hume postula


uma moral fundada inteiramente em uma capacidade “emotiva”, ou seja, na
capacidade humana de agir impulsionada por um “motivo”, por “algo que mo-
ve”, ou “que causa ou dá origem a algo”.

Para Hume, a ação é apenas um sinal externo, pois a avaliação moral diz res-
peito ao motivo que produziu a ação. A ação moralmente correta, segundo o �-
lósofo, seria aquela na qual o agente age movido por um motivo virtuoso, mes-
mo no caso de não realização da ação em razão de outras causas. É o que vere-
mos no texto do �lósofo a seguir:

2. É evidente que, quando elogiamos uma determinada ação, consideramos apenas


os motivos que a produziram, e tomamos a ação como signo ou indicador de certos
princípios da mente e do caráter. A realização externa não tem nenhum mérito.
Temos de olhar para o interior da pessoa para encontrar a qualidade moral. Ora, co-
mo não podemos fazê-lo diretamente, �xamos nossa atenção na ação, como signo
externo. Mas a ação é considerada apenas um signo; o objeto último de nosso elo-
gio e aprovação é o motivo que a produziu.

3. Do mesmo modo, sempre que exigimos que uma pessoa realize uma ação, ou a
censuramos por não realizá-la, estamos supondo que alguém nessa situação deve-
ria ser in�uenciado pelo motivo próprio dessa ação, e consideramos vicioso que o
tenha desconsiderado. Se após investigarmos melhor a situação, descobrimos que
o motivo virtuoso estava presente em seu coração, embora sua operação tenha sido
impedida por alguma circunstância que nos era desconsiderada, retiramos nossa
censura e passamos a ter pela pessoa a mesma estima que teríamos se houvesse
de fato realizado a ação que dela exigíamos (HUME, 2009, Livro III, Parte 2, Seção 1).

Segundo Hume, portanto, a razão tem apenas um papel instrumental, o papel


de ser apenas guia da ação: a razão não diz quais devem ser os nossos objeti-
vos, apenas o que devemos fazer para atingi-los; pode nos dizer em que acre-
ditamos, mas não pode nos dizer no que devemos acreditar.

A aprovação moral, logo, não é um juízo da razão sobre conceitos ou fatos. Em


outras palavras, não basta conhecer o caráter de virtude de uma ação, o senti-
do de sua dimensão moral; é necessário agir movido por um motivo virtuoso.
A ação moralmente virtuosa não é aquela em que o agente é simplesmente
movido pelo caráter de virtude da ação, mas, aquela em que o agente é movido
por um motivo virtuoso.
Veja um texto de Hume a esse respeito:

4. Vemos, portanto, que todas as ações virtuosas derivam seu mérito unicamente
de motivos virtuosos, sendo tidas apenas como signos desses motivos. Desse prin-
cípio, concluo que o primeiro motivo virtuoso, que confere mérito a uma ação, nun-
ca pode ser uma consideração pela virtude dessa ação, devendo ser antes algum
outro motivo ou princípio natural. Supor que a mera consideração pela virtude da
ação possa ser o primeiro motivo que produziu a ação e a tornou virtuosa é um ra-
ciocínio circular. Pra que possamos ter tal consideração, a ação tem de ser real-
mente virtuosa; e essa virtude tem de ser derivada de algum motivo virtuoso; con-
seqüentemente, o motivo virtuoso precisa ser diferente da consideração pela virtu-
de da ação. É preciso um motivo virtuoso para que uma ação se torne virtuosa.
Uma ação tem de ser virtuosa para que possamos ter consideração por sua virtude.
Portanto, algum motivo virtuoso tem de anteceder essa consideração. [...]

7. Em resumo, podemos estabelecer como uma máxima indubitável que nenhuma


ação pode ser virtuosa ou moralmente boa, a menos que haja na natureza humana
algum motivo que a produza, distinto do sentido de sua moralidade (HUME, 2009,
Livro III, Parte 2, Seção 1).

Hume dá como exemplo uma ação de honestidade, e faz a distinção entre o


simples conhecimento do caráter de virtude de uma ação de honestidade e a
existência ou não de um motivo virtuoso propriamente dito. Mostra que não é
simplesmente o agir por considerar a honestidade uma virtude que torna a
ação honesta, mas o motivo virtuoso presente ou não no interior da natureza
do agente.
9. Agora apliquemos tudo isso ao caso presente. Suponhamos que uma pessoa te-
nha me emprestado uma soma em dinheiro, sob a condição de que eu lhe restituís-
se essa soma em alguns dias; suponhamos também que, no �m do prazo combina-
do, ela me peça o dinheiro de volta. Pergunto: que razão ou motivo tenho para
devolver-lhe o dinheiro? Dir-se-á, talvez, que meu respeito pela justiça e minha re-
pulsa à vilania e à desonestidade são para mim razões su�cientes, se possuo um
mínimo de honestidade ou sentido do dever e da obrigação. Sem dúvida, essa res-
posta é correta e satisfatória para o homem em seu estado de civilização, e quando
formado segundo certa disciplina e educação. Mas, em sua condição rude e mais
natural (se quereis chamar de natural tal condição), essa resposta seria rejeitada
como completamente ininteligível e sofística. Pois uma pessoa que se encontrasse
nessa situação imediatamente vos perguntaria: em que consiste essa honestidade e
justiça que encontrais na restituição de um empréstimo e na abstenção da proprie-
dade alheia? Certamente não está na ação externa. Por conseguinte, tem de estar
no motivo de que essa externa foi derivada. Esse motivo nunca poderia ser a consi-
deração pela honestidade da ação, pois é uma clara falácia dizer que é preciso um
motivo virtuoso para tornar uma ação honesta, e ao mesmo tempo em que a consi-
deração pela honestidade é o motivo da ação. Só podemos ter consideração pela
virtude de uma ação se a ação for de antemão virtuosa. Ora, uma ação só pode ser
virtuosa se procede de um motivo virtuoso. Um motivo virtuoso, portanto, deve an-
teceder a consideração pela virtude; é impossível que o motivo virtuoso e a consi-
deração pela virtude sejam a mesma coisa (HUME, 2009, Livro III, Parte 2, Seção 1).

Quando o motivo de uma ação for tão somente o sentido da moralidade ou do


dever, ela pode estar expressando uma carência. É o que diz Hume:

8. Mas será que o sentido da moralidade ou do dever não pode produzir uma ação
sem qualquer outro motivo? Respondo que sim, mas que isso não constitui uma ob-
jeção à presente doutrina. Quando um motivo ou princípio virtuoso é comum na
natureza humana, uma pessoa que sente seu coração desprovido desse motivo po-
de odiar a si mesma por essa razão, e pode realizar a ação sem o motivo, apenas
por certo sentido do dever, ao menos para disfarçar para si mesma, tanto quanto
possível, sua carência. Um homem que não sente de fato nenhuma gratidão em seu
íntimo pode, apesar disso, ter prazer em praticar certos atos de gratidão, pensando
desse modo ter realizado o seu dever. As ações inicialmente são consideradas so-
mente como signos de motivos; mas o que costuma ocorrer, nesse caso e em todos
os demais, é que acabamos �xando nossa atenção apenas nos signos, negligenci-
ando em parte a coisa signi�cada (HUME, 2009, Livro III, Parte 2, Seção 1).

E Hume conclui:
10. É preciso encontrar, portanto, para os atos de justiça e honestidade, algum moti-
vo distinto de nossa consideração pela honestidade; e é nisso que está a grande di-
�culdade. Porque se disséssemos que a preocupação com nosso interesse privado
ou com a nossa reputação é o motivo legítimo de todas as ações honestas, seguir-
se-ia que sempre que cessa tal preocupação, a honestidade não poderia mais ter lu-
gar. Mas, é certo que o amor a si próprio, quando age livremente em vez de nos le-
var a ações honestas, é fonte de toda injustiça e violência; e ninguém pode corrigir
esses vícios sem corrigir e restringir os movimentos naturais desse apetite (HUME,
2009, Livro III, Parte 2, Seção 1).

Essa capacidade “emotiva” que propicia ações moralmente


virtuosas é, para Hume, uma “percepção”
Por in�uência da “teoria do senso comum” dos moralistas ingleses e escoce-
ses, Hume concebe essa capacidade emotiva como sendo uma faculdade de
percepção moral, imediata e desinteressada, similar às faculdades de percep-
ção sensorial, uma faculdade que detectaria qualidades morais em pessoas,
ações, comportamentos e situações, tal como nossos sentidos externos cap-
tam qualidades nos objetos externos. Ao examinar o que nos motiva a agir de
certa maneira, podemos determinar a natureza de uma virtude, especi�ca-
mente se ela é natural ou arti�cial.

Virtudes naturais e arti�ciais


As virtudes naturais seriam aquelas “naturalmente” aprovadas: a benevolên-
cia, a humildade, a caridade, a generosidade.

As virtudes arti�ciais, por sua vez, seriam as mais necessárias, porque, segun-
do Hume, os valores morais mais importantes são uma questão de convenção
social. São elas: a justiça, o cumprimento de promessas, a lealdade, a modéstia
etc.

No homem, observa-se uma conjunção antinatural de fra-


gilidade e de necessidade
Hume a�rma:
2. De todos os animais que povoam nosso planeta, à primeira vista parece ser o ho-
mem aquele contra o qual a natureza foi mais cruel, dadas as inúmeras carências e
necessidades com que o cobriu e os escassos meios que lhe fornece para aliviar es-
sas necessidades. Em outras criaturas, esses dois pontos em geral se compensam
mutuamente. Se considerarmos que o leão é um animal voraz e carnívoro, desco-
briremos que é cheio de necessidades; mas se prestarmos atenção em sua consti-
tuição e temperamento, sua agilidade, sua coragem, suas armas e sua força, vere-
mos que nele as vantagens são proporcionais às carências. O carneiro e o boi care-
cem de todas essas vantagens, mas seus apetites são moderados e seu alimento é
fácil de obter. Apenas no homem se pode observar, em toda a sua perfeição, essa
conjunção antinatural de fragilidade e necessidade. Não somente o alimento ne-
cessário para sua subsistência escapa a seu cerco e aproximação, ou, ao menos,
exige trabalho para ser produzido, como, além disso, o homem precisa de roupas e
abrigo para se defender das intempéries. Entretanto, considerado apenas em si
mesmo, ele não possui armas, força ou qualquer outra habilidade natural que seja
em algum grau condizente com as necessidades (HUME, 2009, Livro III, Parte 2,
Seção 2).

Pela sociedade e pela formação da família, o homem se


torna superior às demais criaturas
Para o �lósofo:
3. Somente pela sociedade ele é capaz de suprir suas de�ciências, igualando-se às
demais criaturas, e até mesmo adquirindo uma superioridade sobre elas. Pela soci-
edade, todas as suas debilidades são compensadas; embora, nessa situação, suas
necessidades se multipliquem a cada instante, suas capacidades se ampliam ainda
mais, deixando-o, em todos os aspectos, mais satisfeito e mais feliz do que jamais
poderia se tornar em sua condição selvagem e solitária. Quando cada indivíduo
trabalha isoladamente, e apenas para si mesmo, sua força é limitada demais para
executar qualquer obra considerável; tem de empregar seu trabalho para suprir as
mais diferentes necessidades, e sua força e seu sucesso não são iguais o tempo to-
do, a menor falha em um dos dois deve inevitavelmente trazer a ruína e a infelici-
dade. A sociedade fornece um remédio para esses três inconvenientes. A conjun-
ção de forças amplia nosso poder; a divisão de trabalho aumenta nossa capacidade;
e o auxílio mútuo nos deixa menos expostos à sorte e aos acidentes. É por essa for-
ça, capacidade e segurança adicionais que a sociedade se torna vantajosa.

4. Mas para que a sociedade se forme, não basta que ela seja vantajosa; os homens
também têm de se dar conta de suas vantagens. Entretanto, em seu estado selva-
gem e inculto [...] é impossível que os homens alguma vez cheguem a adquirir esse
conhecimento. Felizmente, junto com essas necessidades cujos remédios são re-
motos e obscuros existe uma outra necessidade, que, por ter um remédio mais ime-
diato e evidente, pode ser legitimamente considerada o princípio primeiro e origi-
nal da sociedade humana. Essa necessidade não é outra senão aquele apetite natu-
ral que existe entre os sexos, unindo-os e preservando sua união até o surgimento
de um outro laço, ou seja, a preocupação com sua prole comum. Essa nova preocu-
pação também se torna um princípio de união entre os pais e os �lhos, formando
uma sociedade mais numerosa, em que os pais governam em virtude da superiori-
dade de sua força e sabedoria, e, ao mesmo tempo, têm o exercício de sua autorida-
de limitado pela afeição natural que sentem por seus �lhos. Em pouco tempo, o
costume e o hábito, agindo sobre as tenras mentes dos �lhos, tornam-nos sensíveis
às vantagens que podem extrair da sociedade, além de gradualmente formá-los pa-
ra essa sociedade, aparando as duras arestas e afetos adversos que impedem sua
coalizão (HUME, 2009, Livro III, Parte 2, Seção 2).

O poder das paixões pode ser um obstáculo ao exercício da


generosidade advinda do convívio social
Hume diz:
6. Entretanto, embora devamos reconhecer, em honra da natureza humana, a exis-
tência dessa generosidade, podemos ao mesmo tempo observar que essa paixão tão
nobre, em vez de preparar os homens para a vida em sociedades, é quase tão con-
trária a estas quanto o mais acirrado egoísmo. Pois, enquanto cada pessoa amar a
si mesma mais que a qualquer outro, e, em seu amor pelos demais, sentir maior
afeição por seus parentes e amigos, essa situação deve necessariamente produzir
uma oposição de paixões e, consequentemente, uma oposição de ações; e, para uma
união recém-estabelecida, isso só pode ser perigoso.

7. Note-se, entretanto, que essa contrariedade de paixões seria pouco perigosa se


não coincidisse com uma peculiaridade nas circunstâncias externas, que dá a ela
oportunidade de se exercer. Os bens que possuímos podem ser de três espécies di-
ferentes: a satisfação interior do espírito, as qualidades exteriores de nosso corpo e
a fruição dos bens que adquirimos com o nosso trabalho e nossa boa sorte.
Podemos usufruir dos primeiros com plena segurança, os segundos podem nos ser
tomados, mas não bene�ciam em nada a quem deles nos priva. Apenas os últimos
podem ser transferidos sem sofrer alguma perda ou alteração; além disso, não exis-
tem em quantidade su�ciente para suprir os desejos e as necessidades de todas as
pessoas. Por isso, assim como o aperfeiçoamento desses bens é a principal vanta-
gem da sociedade, assim também a instabilidade de sua posse, justamente com a
sua escassez, é seu maior impedimento (HUME, 2009, Livro III, Parte 2, Seção 2).

A solução são as virtudes arti�ciais: a necessidade de uma


convenção social
O �lósofo a�rma:
9. O remédio, portanto, não vem da natureza, mas do artifício; ou, mais corretamen-
te falando, a natureza fornece, no juízo e no entendimento, um remédio para o que
há de irregular e inconveniente nos afetos. Porque quando os homens, em sua pri-
meira educação na sociedade, tornam-se sensíveis às in�nitas vantagens que dela
resultam, e, além disso, adquiriram um novo gosto pelo convívio e pela conversa-
ção; e quando observam que a principal perturbação da sociedade se deve a esses
bens que denominamos externos, a sua mobilidade e à facilidade com que se trans-
mitem de uma pessoa a outra, então precisam buscar um remédio que ponha esses
bens, tanto quanto possível, em pé de igualdade com as vantagens �rmes e cons-
tantes da mente e do corpo. Ora, o único meio de realizar isso é por uma convenção,
de que participam todos os membros da sociedade, para dar estabilidade à posse
desses bens externos, permitindo que todos gozem paci�camente daquilo que pu-
deram adquirir por trabalho ou boa sorte. Desse modo, cada qual sabe aquilo que
pode possuir com segurança e as paixões têm restringidos seus movimentos parci-
ais e contraditórios. Tal restrição não é contrária às paixões; se o fosse, jamais po-
deria ser feita, nem mantida. É contrária apenas a seu movimento cego e impetuo-
so. Em vez de abrir mão de nossos interesses próprios, ou do interesse de nossos
amigos mais próximos, abstendo-nos dos bens alheios, não há melhor meio de
atender a ambos que por essa convenção, porque é desse modo que mantemos a so-
ciedade, tão necessária a seu bem-estar e subsistência, como também aos nossos
(HUME, 2009, Livro III, Parte 2, Seção 2).

A ideia de justiça é uma virtude arti�cial, porque é obtida


por uma convenção social e funda e explica as ideias de
propriedade, de direito e de obrigação
Hume prossegue:
11. Uma vez �rmada essa convenção sobre a abstinência dos bens alheios, e uma
vez todos tendo adquirido uma estabilidade em suas posses, surgem imedia-
tamente as idéias de justiça e de injustiça, bem como as de propriedade, direi-
to e obrigação. Essas últimas são absolutamente ininteligíveis sem a compre-
ensão das primeiras. Nossa propriedade não é senão aqueles bens cuja posse
constante é estabelecida pelas leis da sociedade, isto é, pelas leis da justiça.
Portanto, aqueles que utilizam as palavras propriedade, direito ou obrigação
sem ter antes explicado a origem da justiça, ou que fazem uso daquelas para
explicar essa última, estão cometendo uma falácia grosseira, mostrando-se
incapazes de raciocinar sobre um fundamento sólido. A propriedade de uma
pessoa é um objeto a ela relacionado; essa relação não é natural, mas moral, e
fundada na justiça. É absurdo, portanto, imaginar que podemos ter uma idéia
de propriedade sem compreender completamente a natureza da justiça e
mostrar sua origem no artifício e na invenção humana. A origem da justiça
explica a da propriedade. Ambas são geradas pelo mesmo artifício. Como
nosso primeiro e mais natural sentimento moral está fundado na natureza de
nossas paixões, e dá preferência a nós e a nossos amigos sobre estranhos, é
impossível que exista naturalmente algo como um direito ou uma proprieda-
de estabelecida, enquanto as paixões opostas dos homens impelem em dire-
ções contrárias e não são restringidas por nenhuma convenção ou acordo
(HUME, 2009, Livro III, Parte 2, Seção 2).

Um ato isolado de justiça não atinge a sua �nalidade por-


que, sendo isolado e único, é frequentemente contrário ao
interesse público
Sendo a justiça produto de uma convenção social, tem como �m o interesse
público. Portanto, um ato isolado e privado de justiça não atingiria a sua �nali-
dade.
22. Quando um homem de mérito, dado à caridade restitui uma grande fortuna a
um avaro ou a um enganador desleal, ele agiu de maneira justa e louvável, mas o
grupo sofrerá as conseqüências. Todo ato isolado de justiça, considerado separada-
mente, não contribui nem ao interesse privado nem ao interesse público e podere-
mos facilmente conceber de que maneira alguém pode empobrecer em conseqüên-
cia de um caso isolado de integridade e em razão de desejar que por um só ato, as
leis da justiça sejam, em todo o universo, suspensas por um instante. Mas, embora
os atos isolados de justiça sejam contrários ao interesse público e privado, é certo
que um plano ou esquema de vários atos contribuem altamente, através da verda-
de, e são absolutamente necessários à sustentação da sociedade e um benefício pa-
ra cada indivíduo. É impossível separar o bem do mal. [...] Ainda que um grupo so-
fra em determinado caso, este mal temporário é grandemente compensado pela
obediência constante à regra e pela paz e ordem que ela institui na sociedade
(HUME, 1991, p. 98-99).

Finalizando, gostaríamos de assinalar que o afastamento de uma razão abs-


trata e conceitual como fonte ética da ação moral conduz Hume na direção do
que entendemos como sendo uma das facetas essenciais do ético propriamen-
te dito, tal como o estamos compreendendo nesta obra, e que consiste em con-
templar o caráter intencional, singular de cada ato, comportamento e situa-
ção. Contemplar o caráter intencional de uma ação, comportamento ou situa-
ção é contemplar sua “morada interior” e não a “morada exterior”, ou o fato da
ação em si: “A realização externa não tem nenhum mérito”, diz Hume.

Vimos como o �lósofo descreve essa “morada interior”, fundamentando-a na


“motivação”. O que importa é o caráter “emotivo” da ação, aquilo que a move e
que a distingue da “morada exterior”, que é a ação apenas como puro sinal.

No tópico seguinte a este, trabalharemos a posição do �lósofo Immanuel Kant,


cujas re�exões sobre a moral receberam, como ele mesmo diz, grande in�uên-
cia do pensamento de Hume, a quem atribui o despertar do “sono dogmático”
em que se encontrava.

Agora, assista ao vídeo O fundamento da Moral em David Hume – Filoso�a


Moderna – História da Filoso�a.
Passemos agora para mais um momento de aprendizagem. Leia com atenção
e responda a questão a seguir.

10. Considerações
Neste terceiro ciclo de aprendizagem, estudamos as propostas éticas raciona-
listas e empiristas, que se desenvolveram nos séculos XVII e XVIII. O raciona-
lismo e o empirismo foram importantes para as futuras contribuições da
Filoso�a, especialmente com Immanuel Kant, com sua tentativa de concilia-
ção da Filoso�a com suas três “Críticas”: Crítica da Razão Pura (Ciência),
Crítica da Razão Prática (Ética) Crítica da Juízo (Estética). O próximo ciclo, no
que diz respeito à Ética, abordará as questões relativas às éticas de “meios”
(deontológicas), com Kant, e ética de �ns (teleológicas), com o utilitarismo éti-
co de Bentham e Stuart Mill. Preparado(a)?
(https://md.claretiano.edu.br/eti-gs0123-

fev-2023-grad-ead/)

Ciclo 4 – Éticas Deontológicas e Teleológicas

Telma Apparecida Donzelli

Objetivos
• Analisar a concepção de moral no criticismo de Immanuel Kant.
• Compreender o conceito de imperativo categórico.
• Conhecer as propostas utilitaristas de Jeremy Bentham e John Stuart
Mill.

Conteúdos
• Éticas deontológicas e éticas teleológicas.
• O pensamento criticista de Immanuel Kant.
• Diferença entre imperativos hipotéticos e imperativo categórico
• O Utilitarismo de Jeremy Bentham e John Stuart Mill.

Problematização
Kant é um autor muito importante no estudo da ética, qual a característica
inovadora principal de seu pensamento sobre a ética para a modernidade?
Em que medida o utilitarismo se distingue da ética kantiana? Como julgar
uma ação: pelas convicções ou pelas �nalidades?

1. Introdução
De acordo com alguns autores (DURANT, 2003; BORGES, DALL'AGNOL E
DUTRA, 2002; PALMER, 2002; NERI, 2004), em seu desenvolvimento histórico -
enquanto questionamento, sistema e prática - a Ética ganhou certas especi�-
cidades que acabaram formando algumas correntes fundamentais que indi-
cam a predominância de um determinado tipo de re�exão ética. Com isso, tais
autores, de modo geral e com algumas pequenas diferenças conceituais, cos-
tumam identi�car três campos principais do estudo da Ética:

• : que se ocupa em estudar a signi�cação dos termos morais


(ou seja, a lógica entre os termos morais), podendo ser subdividida em: a)
Naturalismo Ético; b) Não-naturalismo Ético; c) Não-cognitivismo Ético.
• : que avalia quais normas devem ser aceitas como
moralmente corretas e suas razões, organizada em torno de dois grupos
de teorias: a) Teorias Éticas Teleológicas (egoísmo psicológico, egoísmo
ético e utilitarismo; b) Teorias Éticas Deontológicas (intuicionismo moral,
contratualismo moral, imperativo categórico).
• : que se volta para a análise de situações especí�cas e
precisas, privilegiando, com isso, a sua resolução e aplicação prática, po-
de ser subdividida em: a) Bioética; b) Ética Ambiental; c) Ética
Pro�ssional.

Nesse quarto ciclo de aprendizagem, estudaremos as variantes da Ética


Normativa, mais especi�camente, as teorias éticas deontológicas (Kant) e as
teorias éticas teleológicas (utilitarismo). Para saber um pouco mais sobre cada
uma das modalidades éticas da Metaética e Ética Aplicada (que não serão
abordadas especi�camente), consulte o Glossário de conceitos.

2. Ética Normativa
A Ética Normativa tem a função de apresentar o modo como é decidido um
dentre vários princípios, como também a escolha de qual deles é o mais ade-
quado. Beauchamp e Childrens (2002, p. 18) identi�cam a Ética Normativa co-
mo aquele estudo que visa responder alguns questionamentos, como: "quais
normas gerais para a orientação e avaliação da conduta devem ser moralmen-
te aceitas e por quê razões?".

Borges, Dall'Agnol e Dutra (2002, p. 7) também apresentam a Ética Normativa


como aquela re�exão que almeja responder perguntas como: "o que devemos
fazer? [...] Qual a melhor forma de viver bem". Para Palmer (2002, p. 18), a Ética
Normativa serve justamente para tentar estabelecer padrões ou regras que au-
xiliem o indivíduo em distinguir ações certas das ações erradas.

En�m, como é possível perceber, todas estas de�nições sobre a Ética


Normativa possuem um elemento comum: as respostas tendem a recorrer à
determinação da ação ou da regra correta, ou então, à determinação mais
abrangente de um caráter moral.

Pelo fato de ser um questionamento amplo, Palmer (2002) e Neri (2004) a�r-
mam que a Ética Normativa pode ser organizada em dois grupos de teorias: a)
Teorias Éticas Deontológicas; b) Teorias Éticas Teleológicas. Vejamos em que
consistem cada uma delas.,

3. Éticas Deontológicas: Kant


Diferentemente das teorias teleológicas, a deontológicas não são consequenci-
alistas, pois o que será ético, neste tipo de teoria, vai depender de princípios
existentes por si mesmos e não pelas consequências das ações. Portanto, para
as teorias deontológicas, a qualidade moral, como a�rma Neri (2004), depende
de um fator intrínseco à própria ação:

A ideia central desse tipo de ética [deontológica] é que existem ações intrinseca-
mente certas ou erradas, ou, melhor, características ou propriedades que tornam
certas ou erradas as ações nas quais ocorrem, independentemente da consideração
de qualquer outro fator, como as intenções ou as consequências. Matar, por exem-
plo, é uma característica que torna erradas todas as ações con�guráveis como atos
de morte (NERI, 2004, p. 53).

Segundo Borges, Dall'Agnol e Dutra (2002), as teorias éticas deontológicas po-


dem ser caracterizadas por:

: esta rami�cação das teorias éticas deontológicas


fundamenta-se no fato de que existe inerente às pessoas um conhecimento
imediato sobre o que é certo ou errado, como uma espécie de intuição prévia.
Todavia, a di�culdade de justi�cação desta teoria no campo da moralidade es-
tá no fato de concentrar-se radicalmente na intuição - e não na razão
(BORGES; DALL'AGNOL; DUTRA, 2002, p. 12).

Na tirinha de Mafalda a seguir, é possível perceber como a questão do intuici-


onismo moral se apresenta como a conhecida "voz da consciência":

(https://mdm.claretiano.edu.br/eti-gp0061-2021-01-grad-ead-p/wp-content
/uploads/sites/792/2019/12/C3-F3.jpg) : Quino (2020).
Figura 1 Tirinha Mafalda

: esta modalidade de ética tem como idealizador John


Rawls. O ponto de partida de Rawls é identi�car exatamente os princípios mo-
rais que poderão consolidar uma sociedade democrática. Para isso, Rawls par-
te da teoria de que os princípios da justiça para a estrutura fundamental de
uma sociedade estão ancorados num contrato original. Em outras palavras, a
determinação de tais regras morais concretiza-se a partir de um contrato ori-
ginal hipotético, �rmado entre as partes do acordo, capaz de decidir, com isso,
qual deve ser a regra moralmente correta (BORGES; DALL'AGNOL; DUTRA,
2002, p. 13).

No entanto, dentre as teorias deontológicas, uma das mais in�uentes é a pro-


posta por Immanuel Kant (1724-1804), com o seu imperativo categórico.

Para Kant, o objetivo da Ética é demonstrar a existência de um princípio obje-


tivo que assegure o cumprimento do dever em si mesmo, fazendo com que a
vontade não precise recorrer aos seus efeitos práticos e contingentes para a
legitimação de ato moral. E Kant demonstra a existência desta lei objetiva
mostrando a impossibilidade de ela ser derivada da experiência: "Na realida-
de, é absolutamente impossível encontrar na experiência com perfeita certeza
um único caso em que a máxima de uma acção, de resto conforme ao dever, se
tenha baseado puramente em motivos morais e na representação do dever"
(KANT, 2007, p. 40).

Logo, pelo fato de ser a posteriori, é evidente que, para Kant, nenhuma experi-
ência empírica pode ser capaz de oferecer uma lei como princípio a priori de
moralidade. Por outro lado, somente uma razão puramente formal também
não daria conta de ser um princípio universal para toda e qualquer ação con-
tingente. Desta maneira, para sair deste problema, Kant propõe que a razão se-
ja ao mesmo tempo pura e prática: a razão é pura porque consegue determinar
a priori a universalidade e a necessidade das ações, porém, também é prática
porque determina a vontade a conformar tal princípio como regra geral para
todos os casos particulares e contingentes: "age de tal modo que a máxima de
tua vontade possa valer como princípio de uma legislação universal" (KANT,
2006, p. 40).

É justamente isto que consiste a ética kantiana, isto é, uma metafísica que está
acima de toda e qualquer antropologia ou física e se fundamenta no dado �lo-
só�co abstraído da razão pura e prática, que age de acordo com princípios pu-
ros e anteriores a qualquer experiência empírica:

No entanto, pelo fato de o sujeito estar inserido na praticidade e na contingên-


cia, como também pelo fato de estar constantemente tentado por sua subjeti-
vidade, sua vontade também �ca constantemente in�uenciada pelo que é con-
tingente e subjetivo (KANT, 2007, p. 47-48). Desta forma, como a razão não é
su�cientemente capaz de determinar a vontade de modo a priori, necessário e
universal, é preciso então que se considere em conformidade com a razão o
conceito de obrigação ou imperativo (KANT, 2007, p. 48).

Os imperativos, de modo geral, mostram a inter-relação existente ou os meios


de se exprimir a relação entre uma lei moral objetiva e universal e as imper-
feições de uma vontade subjetiva guiada pela lei: "todos os imperativos se ex-
primem pelo verbo dever (sollen), e mostram assim a relação de uma lei objec-
tiva da razão para uma vontade que segundo a sua constituição subjectiva não
é por ela necessariamente determinada (uma obrigação)" (KANT, 2007, p. 48).
Os imperativos podem ser: a) hipotéticos: ocorre quando uma ação é boa so-
mente como meio para se chegar a um determinado �m; b) implica uma ação
como boa em si mesma, ou seja, expressa uma ação como meio de atingir um
resultado em si mesmo, sem relação alguma com seu �m, mostrando, nesse
caso, a determinação de uma vontade a priori (KANT, 2007).

Tanto o imperativo hipotético como o categórico possuem princípios que o re-


gem. O imperativo hipotético baseia-se no princípio problemático-prático,
quando a�rma que uma ação é boa ou má em vista de um propósito possível;
mas também se baseia no princípio assertórico-prático, quando a�rma que
ação é boa ou má em vista de um propósito efetivo ou real: "o imperativo hipo-
tético diz, pois, apenas que a acção é boa em vista de qualquer intenção possí-
vel ou real. No primeiro caso é um princípio problemático, no segundo um
princípio assertórico-prático" (KANT, 2007, p. 50).

Já o imperativo categórico não se baseia na determinação de um meio para


atingir um �m, mas, prescindindo de qualquer elemento a posteriori,
fundamenta-se no princípio apodítico-prático, que a�rma que uma ação é boa
em si mesma por ser, necessariamente, objetiva e por possuir um caráter uni-
versal: "o imperativo categórico, que declara a acção como objectivamente ne-
cessária por si, independentemente de qualquer intenção, quer dizer sem qual-
quer outra �nalidade, vale como princípio apodíctico (prático)" (KANT, 2007, p.
51).

Por �m, é conhecido em Kant a diferença existente entre "autonomia da von-


tade" e "heteronomia da vontade".

A autonomia da vontade é o princípio formal supremo do dever determinado


pela razão que orienta a vontade para o cumprimento de uma lei. Assim, a au-
tonomia da vontade constitui-se uma lei em si mesma, independentemente
dos objetos que venham a fazer parte desta vontade. A característica funda-
mental da autonomia da vontade é que as suas máximas devem valer para to-
dos - isto é, a escolha por
, e não como meio para outras �nalidades. Tal princípio está organi-
zado no Reino dos Fins (KANT, 2007, p. 75).
Já a heteronomia da vontade é o princípio que a�rma que a vontade não deve
basear-se na lei, mas sim a lei que deve se determinar pelas vontades. Com is-
so, segundo Kant, �ca claro a heteronomia da vontade como origem de todos
os princípios ilegítimos da Moralidade, pois a lei que a determina não está ba-
seada com um �m em si mesma, mas
. Tal princípio está organizado no Reino dos Meios (KANT,
2007, p. 75).

Por isso, a heteronomia da vontade coloca-se na posição oposta ao imperativo


categórico, que, em sua universalidade, confere dignidade ao ser racional, per-
mitindo que o princípio supremo da moralidade tenha forma e determinação
em si mesmo: "mas um ser racional pertence ao reino dos �ns como seu
membro quando é nele em verdade legislador universal, estando, porém, tam-
bém submetido a estas leis. Pertence-me como chefe quando, como legislador,
não está submetido à vontade de um outro" (KANT, 2007, p. 76).

A ideia de autonomia e de universalidade da lei moral leva a um outro concei-


to: o da dignidade humana, e, portanto, do ser humano como �m e não como
meio para o que quer que seja. De acordo com Kant: "Age de tal maneira que
uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro,
sempre e simultaneamente como �m e nunca simplesmente como meio"
(KANT, 2007, p. 69).

4. Immanuel kant (1724-1804)


Kant nasceu, viveu e morreu em Königsberg (Prússia Oriental, atual
Alemanha). Nasceu em uma família de poucos recursos �nanceiros. Recebeu
uma educação, particularmente de sua mãe, fundada nos princípios do pietis-
mo (corrente radical do protestantismo prussiano, originário de um movimen-
to da Igreja Luterana alemã do século 18), lutou sempre com di�culdades tanto
materiais quanto no que se refere à compreensão de sua proposta �losó�ca
inovadora. Manteve-se, porém, �rme em seu trabalho de grande rigor.

A época em que viveu Kant, o século 18, é chamada de Século das Luzes ou
Iluminismo, ou ainda, Era da Razão, época da qual é um dos maiores represen-
tantes e que tinha por objetivo principal reformar a sociedade contra a intole-
rância da Igreja e do Estado.

Kant não nega a importância da religião, que tem, segundo ele, sua razão de
ser, uma vez que existe todo um mundo que escapa às capacidades da razão.
Porém, quer mostrar que o fundamento do conhecimento e da moral pode ser
encontrado fora da religião, que até então dominara.

Segundo Kant, não podemos pretender conhecer realidades transcendentes,


às quais não temos acesso. Devemos nos limitar a buscar conhecer a realida-
de que é objeto de experiência para nós. E, para tanto, faz-se necessário escla-
recer qual seria a estrutura de nossas capacidades cognitivas, aquelas que não
decorrem de experiências individuais e particulares, mas que dizem respeito a
toda a humanidade como tal.

A conclusão a que chega é que as duas fontes do conhecimento (sensibilidade


e entendimento) estão no sujeito e não no mundo.

Kant e a moral
As quatro principais obras de Kant em que a moral é tratada mais longamente
são:

• Fundamentação da metafísica dos costumes (1785);


• Crítica da razão prática (1788);
• Crítica da faculdade de julgar (1790);
• A paz perpétua: um projeto �losó�co (1795).

A teoria da “boa vontade”


Kant começa a�rmando que a única coisa que merece a denominação de
“bem” e de “bom” é o que chamou de “boa vontade”. A “boa vontade” é, no dizer
de Kant, o que é possível conceber no ou fora do mundo como bom, sem restri-
ção. Os diversos talentos do espírito, como inteligência, capacidade de julgar,
coragem, decisão, perseverança e temperança, serão coisas boas ou ruins, de-
pendendo das disposições próprias ou do “caráter” da vontade que os esteja
usando. Poderíamos dizer o mesmo de dons como poder, riqueza, felicidade.
Tais talentos ou dons trazem, segundo o �lósofo, uma con�ança em si que, fre-
quentemente, na ausência de uma boa vontade, se convertem em presunção.

NÃO É POSSÍVEL conceber coisa alguma no mundo, ou mesmo fora do mundo, que
sem restrição possa ser considerada boa, a não ser uma só: uma BOA VONTADE. A
inteligência, o dom de apreender as semelhanças das coisas, a faculdade de julgar,
e os demais talentos do espírito, seja qual for o nome que se lhes dê, ou a coragem, a
decisão, a perseverança nos propósitos, como qualidades do temperamento, são
sem dúvida, sob múltiplos respeitos, coisas boas e apetecíveis; podem, entretanto,
estes dons da natureza tornar-se extremamente maus e prejudiciais, se não for boa
vontade que deles deve servir-se e cuja especial disposição se denomina caráter. O
mesmo se diga dos dons da fortuna. O poder, a riqueza, a honra, a própria saúde e o
completo bem-estar e satisfação do próprio estado, em resumo o que se chama feli-
cidade, geram uma con�ança em si mesmo que muitas vezes se converte em pre-
sunção, quando falta a boa vontade para moderar e fazer convergir para �ns uni-
versais tanto a imprudência que tais dons exercem sobre a alma como também o
princípio da ação. Isto, sem contar que um espectador razoável e imparcial nunca
lograria sentir satisfação em ver que tudo corre ininterruptamente segundo os de-
sejos de uma pessoa que não ostenta nenhum vestígio de verdadeira boa vontade;
donde parece que a boa vontade constitui a condição indispensável para ser feliz
(KANT, 1994, p. 4).

A boa vontade é boa em si mesma, não está condicionada a circunstâncias. O


homem é regido por ele mesmo, é criador de valores morais. Essa consciência
moral não é nem instintiva nem emotiva. É a própria razão.

Kant e Hume
Para Kant, a razão não tem apenas um papel instrumental, como para Hume.
Toda moralidade funda sua autoridade apenas na razão. Só a razão determina
se uma ação é boa ou má, independentemente de nossos desejos.

Enquanto seres sensíveis, estamos submissos ao mecanismo natural, porém,


como seres dotados de inteligência, somos capazes de pensar, conhecer a nós
mesmos e emitir juízos morais, o que nos torna capazes de escapar ao deter-
minismo da natureza.

Apenas em alguns casos, nossas ações podem ser produzidas por desejos e
crenças. Isso acontece quando agimos por inclinação. Quando nossas ações
são guiadas por considerações morais, a razão determina não apenas os mei-
os, mas também os �ns de nossas ações. A questão que se coloca é, então, a
seguinte: que razão é essa que, por si mesma, ordena “o que deve” acontecer,
independentemente de todo e qualquer fenômeno e, portanto, universalmente,
a todo ser humano?

Propõe Kant a si, então, a tarefa de circunscrever os limites de possibilidade


tanto da razão responsável pelo conhecimento (a especulativa) quanto da ra-
zão responsável pela moral.

A razão responsável pela moral é a razão prática


Ao tentar fundamentar a moral, Kant é levado à proposição de uma razão dis-
tinta da razão especulativa. É a razão que denominou de “prática”. A consciên-
cia moral é a razão prática, segundo Kant. Como observa García Morente, em
Fundamentos da �loso�a (1980), Kant vai buscar em Aristóteles essa denomi-
nação, em cuja também a moral signi�ca “razão prática”. Razão prática quer
dizer que, na consciência moral, atua algo que se assemelha à razão, mas não
é a razão especulativa.

A consciência moral ou razão prática contém princípios racionais, em virtude


dos quais nós, seres humanos, regemos nossa vida. É a razão aplicada à ação.
Essa razão prática contém quali�cativos como bom, mal, moral, imoral etc.
Não tendo a razão prática (como tem a razão especulativa, que rege o conheci-
mento) por meta determinar a essência das coisas, seus quali�cativos não se
aplicam a coisas (as coisas não são boas ou más, morais ou imorais), mas só
se aplicam ao homem. Os quali�cativos morais se aplicam ao que o homem
“quer fazer”, ou seja, ao exercício da vontade. Assim, por exemplo, se alguém
comete um erro involuntariamente, não podemos quali�cá-lo nem de bom,
nem de mau, nem de moral, nem de imoral, porque o ato não foi cometido no
exercício de sua vontade.

As três grandes dimensões da consciência moral ou razão


prática
Trabalharemos a noção de razão prática ou consciência moral em Kant, a par-
tir de três grandes dimensões a ela conferidas pelo �lósofo. São elas: a dimen-
são da universalidade, a dimensão da autonomia e a dimensão da liberdade.

A dimensão da universalidade: a razão pura prática ou consciência moral de-


termina a vontade a partir de imperativos

O critério fundamental racional para quali�car uma ação como ação moral, is-
to é, como ação universalmente válida, seria, segundo Kant, a existência dessa
razão pura prática capaz de estabelecer uma universalidade no que se refere à
moral, assim como a razão pura especulativa ou teórica estabelece uma uni-
versalidade no que diz respeito ao conhecimento. Temos, então, uma razão pu-
ra universal que se diferencia em razão pura especulativa e razão pura práti-
ca. A razão pura especulativa possuiria a capacidade de determinar a priori o
conhecimento do sujeito cognoscitivo e a razão pura prática possuiria essa
mesma capacidade de determinar a priori a vontade do sujeito agente.

A razão pura prática daria à vontade de cada um (vontade subjetiva particular)


ordenamentos objetivos. Esses ordenamentos seriam “imperativos”. Diz Kant:

A representação de um princípio objectivo, enquanto obrigante para uma vontade,


chama-se um mandamento (da razão), e a fórmula do mandamento chama-se im-
perativo (KANT, 1960, p. 48).

Em outras palavras, todo ato voluntário se apresenta à razão na forma de um


imperativo, ou seja, todo ato, ao se realizar, aparece à consciência à maneira
de um mandamento (faça isto; não aja assim).

Os imperativos, diz Kant, podem ser hipotéticos ou categóricos. Os imperati-


vos hipotéticos sujeitam o mandamento em questão a uma condição (se que-
res obter x, faça y). Nos imperativos categóricos, ao contrário, o mandamento
não está sob nenhuma condição, impera de maneira absoluta. Vejamos, a res-
peito, um texto de Kant:
Ora todos os imperativos ordenam ou hipotética ou categoricamente. Os hipotéti-
cos representam a necessidade prática de uma acção possível como meio de alcan-
çar qualquer outra coisa que se quer (ou que é possível que se queira). O imperativo
categórico seria aquele que nos representasse uma acção como objectivamente ne-
cessária por si mesma, sem relação com qualquer outra �nalidade (KANT, 1960, p.
48-51).

O imperativo da moralidade é um imperativo categórico

Toda ação moral indica que a referida ação é objetivamente necessária e boa
em si mesma; portanto, o imperativo da “moralidade” é um imperativo categó-
rico.

Há por �m um imperativo que, sem se basear como condição em qualquer outra in-
tenção a atingir por um certo comportamento, ordena imediatamente este compor-
tamento. Este imperativo é . Não se relaciona com a matéria da acção e
com o que dela deve resultar, mas com a forma e o princípio de que ela mesma de-
riva; e o essencialmente bom na acção reside na disposição Gesinnung, seja qual
for o resultado. Este imperativo pode-se chamar o imperativo da
(KANT, 1960, p. 52, grifo nosso).

A lei moral, enquanto imperativo categórico, é universal

O imperativo categórico é universal porque contém, ao mesmo tempo, a lei e o


princípio da necessidade de se conformar com essa lei. Como não há condição
que limite a lei, todo imperativo categórico é universal.

Vejamos o texto de Kant a esse respeito:


Quando penso um imperativo hipotético em geral, não sei de antemão o que ele po-
derá conter. Só o saberei quando a condição me seja dada. Mas se pensar um impe-
rativo categórico, então sei imediatamente o que é que ele contém. Porque, não con-
tendo o imperativo, além da lei, senão a necessidade da máxima que manda
conformar-se com esta lei, e não contendo a lei nenhuma condição que a limite,
nada mais resta senão a universalidade de uma lei em geral à qual a máxima da
acção // deve ser conforme, conformidade essa que só o imperativo nos representa
propriamente como necessária (KANT, 1960, p. 58-59).

Consequentemente, a vontade divina e a vontade santa não são passíveis de


imperativos

Querer o bem ou a busca do bem não poderia, portanto, segundo Kant, fazer
parte da moralidade, pois o princípio moral é, por sua própria natureza, inde-
pendente de crenças, culturas e tradições. Fundamenta-se em algo universal,
a lei. Assim, uma vontade perfeitamente boa, como seriam a vontade divina e
a vontade santa, não são passíveis de imperativos, não se apresentam como
obrigadas a leis. Diz Kant que:

Uma vontade perfeitamente boa estaria, portanto, igualmente submetida a leis ob-
jectivas (do bem), mas não se poderia representar como obrigada a acções confor-
mes à lei, pois que pela sua constituição subjectiva ela só pode ser determinada pe-
la representação do bem. Por isso os imperativos não valem para a vontade divina
nem, em geral, para uma vontade santa; o dever (Sollen) não está aqui no seu lugar,
porque o querer coincide já por si necessariamente com a lei (KANT, 1960, p. 48-51).

A dimensão da autonomia: toda ação moral é uma ação autônoma

As leis morais seriam, segundo Kant, destituídas de todo valor moral se seu
princípio determinante tivesse outra origem que não fosse a lei que traz nela
mesma essa certeza apodítica (certeza evidente).

Assim, ao contrário da ação heterônoma, que é instintiva e não decorre da


vontade do agente, como seria o caso da moral aristocrática, que depende de
ideais transcendentes e da moral utilitarista (que depende de ideais que ema-
nam de coisas), a ação moral, segundo Kant, é uma ação autônoma.
Esse princípio de autonomia da ação moral consiste no fato de as regras ou
máximas serem compreendidas como leis universais, que não advêm da ex-
periência, que são absolutamente independentes e necessárias, que coman-
dam apoditicamente (de maneira necessariamente verdadeira), opondo-se ao
empírico (o que vem da experiência), que é contingente e generalizável.

O indivíduo deve estar livre para agir, ou seja, não obedecer a outra lei senão
àquela que ele mesmo simultaneamente se dá, enquanto possuidor de uma
vontade, e não em virtude de qualquer outro motivo prático ou de qualquer
vantagem futura. Por essa razão, o princípio que rege a ação de uma vontade
livre legisladora universal, que é a ação moral, é, como vimos, um imperativo
categórico que, por ser universal, não se funda em nenhuma condição, em ne-
nhuma hipótese.

Assim o princípio, segundo o qual toda a vontade humana seria uma vontade legis-
ladora universal por meio de todas as suas máximas, se fosse seguramente estabe-
lecido, conviria perfeitamente ao imperativo categórico no sentido de que, exacta-
mente por causa da idéia da legislação universal, ele se não funda em nenhum in-
teresse, e portanto, de entre todos os imperativos possíveis, é o único que pode ser
incondicional; ou, melhor ainda, invertendo a proposição: se há um imperativo ca-
tegórico (i. é uma lei para a vontade de todo o ser racional), ele só pode ordenar que
tudo se faça em obediência à máxima de uma vontade que simultaneamente se
possa ter a si mesma por // objecto como legisladora universal; pois só então é que
o princípio prático e o imperativo a que obedece podem ser incondicionais, porque
não têm interesse algum sobre que se fundem (KANT, 1960, p. 74).

Trata-se de uma Ética “deontológica”

A Ética de Kant é, portanto, “deontológica”, ou seja, defende que o valor moral


de uma ação reside na própria ação e não em suas consequências. É o que ve-
remos, mais claramente, a seguir a partir da noção kantiana de “Dever”.

Deontologia é um termo criado pelo �lósofo inglês Jeremy Bentham


(1748-1832) e se refere à ética como tendo por objeto de estudo os fundamentos
do dever e das normas enquanto decorrentes de uma ação considerada em si
mesma. Compreende, por exemplo, o conjunto de princípios e regras de con-
duta ou deveres decorrentes de uma determinada ação pro�ssional. O primei-
ro Código de Deontologia foi da área da medicina e foi feito nos Estados
Unidos da América do Norte. A palavra é formada por “deon” (dever, obrigação
em grego) e logos (ciência).

O Dever

Este agir sem qualquer motivação, livre de interesses, subordinando a vontade


a uma legislação universal, eis o “dever”. Diz Kant:

Pois o dever deve ser a necessidade prática-incondicionada da acção; tem de valer


portanto para todos os seres racionais (os únicos aos quais se pode aplicar sempre
um imperativo), e só por isso pode ser lei também para toda a vontade humana.
(KANT, 1960, p. 64).

Na moralidade, o “dever” não é, porém, a mera conformidade com o que pres-


creve a lei

Na moralidade, o dever é essencialmente impulso para o dever, o dever pelo


dever, inexiste qualquer outro motivo. O valor moral de um ato funda-se na
pureza de intenção, na medida em que ela independe de qualquer outro moti-
vo que não seja o cumprimento do dever pelo dever.

Vejamos o que diz Kant:

É na verdade conforme ao dever que o merceeiro não suba os preços ao comprador


inexperiente, e, quando o movimento do negócio é grande, o comerciante esperto
também não faz semelhante coisa, mas mantém um preço �xo geral para toda a
gente, de forma que uma criança pode comprar na sua mercearia tão bem como
qualquer outra pessoa. É-se, pois, servido honradamente; mas isso ainda não é bas-
tante para acreditar que o comerciante tenha assim procedido por dever e princípi-
os de honradez; o seu interesse assim o exigia; mas não é de aceitar que ele além
disso tenha tido uma inclinação imediata para os seus fregueses, de maneira a não
fazer, por amor deles, preço mais vantajoso a um do que a outro. A acção não foi,
portanto, praticada nem por dever nem por inclinação imediata, mas somente com
intenção egoísta (KANT, 1960, p. 27).
E isto porque uma ação só é moral quando realizada “por dever” e não “confor-
me ao dever”

Diz Kant:

Pelo contrário, conservar cada qual a sua vida é um dever, e é além disso uma coisa
para que toda a gente tem inclinação imediata. Mas por isso mesmo é que o cuida-
do, por vezes ansioso, que a maioria dos homens lhe dedicam não tem nenhum va-
lor intrínseco e a máxima que o exprime nenhum conteúdo moral. Os homens con-
servam a sua vida conforme // ao dever, sem dúvida, mas não por dever. Em con-
traposição, quando as contrariedades e o desgosto sem esperança roubaram total-
mente o gosto de viver; quando o infeliz, com fortaleza de alma, deseja a morte, e
conserva contudo a vida sem a amar, não por inclinação ou medo, mas por dever,
então a sua máxima tem conteúdo moral (KANT, 1960, p. 27).

Fazer a caridade não por inclinação, mas “por dever”

O �lósofo alemão a�rma:


Ser caritativo quando se pode sê-lo é um dever, e há além disso muitas almas de
disposição tão compassiva que, mesmo sem nenhum outro motivo de vaidade ou
interesse, acham íntimo prazer em espalhar alegria à sua volta e se podem alegrar
com o contentamento dos outros, enquanto este é obra sua. Eu a�rmo porém que
neste caso uma tal acção, por conforme ao dever, por amável que ela seja, não tem
contudo nenhum verdadeiro valor moral, mas vai emparelhar com outras inclina-
ções, por exemplo o amor das honras que, quando por feliz acaso topa aquilo que
efectivamente é de interesse geral e conforme ao dever, é consequentemente hon-
roso e merece louvor e estímulo, mas não estima; pois à sua máxima falta o conteú-
do moral que manda que tais acções se pratiquem, não por inclinação, mas por de-
ver. Admitindo, pois, que o ânimo desse �lantropo estivesse velado pelo desgosto
pessoal que apaga toda // a compaixão pela sorte alheia, e que ele continuasse a ter
a possibilidade de fazer bem aos desgraçados, mas que a desgraça alheia o não to-
cava porque estava bastante ocupado com a sua própria; se agora, que nenhuma in-
clinação o estimula já, ele se arrancasse a esta mortal insensibilidade e praticasse
a acção sem qualquer inclinação, simplesmente por dever, só então é que ela teria o
seu autêntico valor moral. Mais ainda: – Se a natureza tivesse posto no coração
deste ou daquele homem pouca simpatia, se ele (homem honrado de resto) fosse
por temperamento frio e indiferente às dores dos outros por ser ele mesmo dotado
especialmente de paciência e capacidade de resistência às suas próprias dores e
por isso pressupor e exigir as mesmas qualidades dos outros; se a natureza não ti-
vesse feito de um tal homem (que em boa verdade não seria o seu pior produto) pro-
priamente um �lantropo, – não poderia ele encontrar ainda dentro de si um ma-
nancial que lhe pudesse dar um valor muito mais elevado do que o dum tempera-
mento bondoso? Sem dúvida! – É exactamente aí é que começa o valor do carácter,
que é moralmente sem qualquer comparação o mais alto, e que consiste em fazer o
bem, não por inclinação, mas por dever (KANT, 1960, p. 28).

Portanto, a essência do cumprimento “por dever” estaria na capacidade da


vontade de contrariar as tendências naturais, não se deixando causar por fato-
res externos, mas atender a imperativos como:

Essa autonomia da razão prática ou consciência moral é o fundamento da dig-


nidade da natureza humana e de toda natureza racional, tornando-as um �m e
não um meio

Diz Kant:
Ora digo eu: – O homem, e, duma maneira geral, todo o ser racional, existe como
�m em si mesmo, não só como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vonta-
de. Pelo contrário, em todas as suas acções, tanto nas que se dirigem a ele mesmo
como nas que se dirigem // a outros seres racionais, ele tem sempre de ser conside-
rado simultaneamente como �m (KANT, 1960, p. 68).

O imperativo é: aja de tal maneira que a humanidade seja tratada tão bem na
nossa pessoa como na pessoa de qualquer outro e sempre como um �m e nun-
ca como meio.

A terceira dimensão da ação moral: a da “liberdade”

A possibilidade da moral, segundo Kant, não depende nem da ciência, nem da


religião, nem da metafísica; ela está fundada na ideia de uma vontade livre.

A vontade, segundo Kant, é um “poder agir” ou um “poder causar”, ou, ainda,


um “poder querer” livres, porque possui justamente esta propriedade de ser a
sua própria lei, uma vez que não é determinada por causas estranhas, como
in�uências e interesses sensíveis; do contrário, não se trataria de um ato de
vontade.

A liberdade, portanto, embora não seja uma propriedade da vontade segundo


leis naturais (na natureza, nos seres irracionais, impera e domina a necessi-
dade), é propriedade da vontade nos seres racionais.

Sobre a vontade enquanto “poder causador”, próprio aos seres racionais, e a li-
berdade como propriedade desse mesmo “poder causador”, independentemen-
te de causas estranhas, diz Kant:

[...] é uma espécie de causalidade dos seres vivos, enquanto racionais, e


seria a propriedade desta causalidade, pela qual ela pode ser e�ciente, independen-
temente de causas estranhas que a ; assim como a necessidade é a pro-
priedade dos seres irracionais de serem determinados à atividade pela in�uência
de causas estranhas (KANT, 1960, p. 93-94, grifo nosso).

Mas a liberdade, enquanto propriedade da vontade, não seria desprovida de lei


A liberdade não seria desprovida de lei, pois é a propriedade de um “poder
causador” (vontade), ou seja, de uma relação de causa e efeito e, como tal, é ba-
seada em leis imutáveis.

Diz Kant:

Como o conceito de uma causalidade traz consigo o de leis segundo as quais, por
meio de uma coisa a que chamamos causa, tem de ser posta outra // coisa que se
chama efeito, assim a liberdade, se bem que não seja uma propriedade da vontade
segundo leis naturais, não é por isso desprovida de lei, mas tem antes de ser uma
causalidade segundo leis imutáveis, ainda que de uma espécie particular; pois de
outro modo uma vontade livre seria absurdo (KANT, 1960, p. 93-94).

Isso porque uma vontade só é livre quando regida por leis imutáveis, indepen-
dentes de circunstâncias particulares.

Trata-se, portanto, de uma “liberdade transcendental”, segundo a expressão de


Kant, em que o “poder querer” ou a vontade antecede a experiência e indepen-
de dela.

A moral kantiana é uma moral não eudaimônica, ou seja, não tem por meta a
“felicidade”

: palara de origem grega (eu = bem + daimon = espírito), signi�cando “felicida-


de” não no sentido de uma emoção ou de uma visão utilitarista, mas no sentido em que foi
empregada no pensamento grego antigo: “bem-viver”, “prosperidade”.

Embora Kant considere que o �m do homem seja a procura da felicidade (co-


mo Platão e Aristóteles), distingue felicidade de moralidade. A razão prática
não nos pode ensinar e nem de�nir o que é a felicidade, apesar desta ser a �-
nalidade dos seres racionais.

Observa que, embora “estar bem” não se oponha a “fazer bem”, o fato de “se es-
tar bem”, não signi�ca “fazer bem”. A moral nos ensina ou nos leva a ser mere-
cedores da felicidade, porém não nos torna felizes.
O caminho para a felicidade, segundo Kant, é o dever. O cumprimento do de-
ver, embora consista em obediência incondicional, não signi�ca renunciar à
felicidade, porém também não signi�ca subordinação à procura da felicidade.

Na obra Crítica da Razão Prática, Kant observa que a felicidade não seria o ob-
jetivo e fundamento da moralidade, pois é um conceito empírico, consistindo
em um sentimento do agente. Para Kant, a felicidade provém da satisfação dos
nossos desejos, e, por essa razão, ela não depende de nós, uma vez que esse sa-
tisfazer nossos desejos se subordina a circunstâncias externas à nossa vonta-
de. O homem é um ser que pertence à natureza, sua felicidade escapa à sua
vontade. E, se escapa à vontade do agente, como poderia ser um objetivo da
moralidade?

Relacionada à alegria e aos prazeres, a felicidade não distingue entre prazeres


superiores e inferiores. Em outras palavras, não é possível de�nir racional-
mente a felicidade, independentemente da experiência. A felicidade de cada
um depende de sua sensibilidade aos diferentes prazeres da vida. Assim,
pode-se ser feliz com a riqueza, beleza, inteligência etc.

Não há conexão necessária no homem entre a moralidade e a felicidade, uma


vez que a felicidade é dependente de bens contingentes. O cumprimento das
exigências da lei moral não nos concederá, por si só, nenhuma felicidade, a
não ser em uma situação absolutamente contingente. Diz Kant:

na totalidade da sua existência, tudo corre segundo o seu desejo e a sua vontade e
funda-se, pois, na harmonia da natureza com o �m integral desse ser e igualmente
com o principio determinante essencial da sua vontade. Ora, a lei moral, enquanto
lei da liberdade, ordena por princípios determinantes que devem ser totalmente in-
dependentes da natureza e da sua harmonia com a nossa faculdade de desejar (co-
mo móbeis); mas o ser racional agente no mundo não é, contudo, simultaneamente
causa do mundo e da própria natureza. Portanto, não existe na lei moral a menor
conexão necessária entre moralidade e felicidade a ela proporcionada de um ser
que, fazendo parte do mundo e, portanto, dele dependendo, não pode por isso mes-
mo ser pela sua vontade causa desta natureza e fazê-la por suas próprias forças
coadunar-se inteiramente [...] (KANT, 1994, p. 143).

A razão é contrária à felicidade


Segundo Kant, podemos mesmo dizer que a razão é contrária à felicidade.

[...] quanto mais uma razão cultivada se consagra ao gozo da vida e da felicidade,
tanto mais o homem se afasta do verdadeiro contentamento; e daí provém que em
muitas pessoas, e nomeadamente nas mais experimentadas no uso da razão, se
elas quiserem ter a sinceridade de o // confessar, surja um certo grau de misologia,
quer dizer de ódio à razão. E isto porque, uma vez feito o balanço de todas as vanta-
gens que elas tiram, não digo já da invenção de todas as artes do luxo vulgar, mas
ainda das ciências (que a elas lhes parecem no �m e ao cabo serem também um lu-
xo do entendimento), descobrem contudo que mais se sobrecarregaram de fadigas
do que ganharam em felicidade, e que por isso �nalmente invejam mais do que
desprezam os homens de condição inferior que estão mais próximos do puro ins-
tinto natural e não permitem à razão grande in�uência sobre o que fazem ou dei-
xam de fazer (KANT, 1960, p. 24-26).

En�m, o supremo destino da razão prática é a fundação de uma vontade e não


da felicidade

Kant a�rma:
[...] Portanto, se a razão não é apta bastante para guiar com segurança a vontade no
que respeita aos seus objectos // e à satisfação de todas as nossas necessidades
(que ela mesma – a razão – em parte multiplica), visto que um instinto natural ina-
to levaria com muito maior certeza a este �m, e se, no entanto, a razão nos foi dada
como faculdade prática, isto é, como faculdade que deve exercer in�uência sobre a
vontade, então o seu verdadeiro destino deverá ser produzir uma vontade, não só
boa quiçá como meio para outra intenção, mas uma vontade boa em si mesma, pa-
ra o que a razão era absolutamente necessária, uma vez que a natureza de resto
agiu em tudo com acerto na repartição das suas faculdades e talentos. Esta vontade
não será na verdade o único bem nem o bem total, mas terá de ser contudo o bem
supremo e a condição de tudo o mais, mesmo de toda a aspiração de felicidade. E
neste caso é fácil de conciliar com a sabedoria da natureza o facto de observarmos
que a cultura da razão, que é necessária para a primeira e incondicional intenção,
de muitas maneiras restringe, pelo menos nesta vida, a consecução da segunda,
que é sempre condicionada, quer dizer, da felicidade, e pode mesmo reduzi-la a me-
nos de nada, sem que com isto a natureza falte à sua �nalidade, porque a razão, que
reconhece o seu supremo destino prático na fundação duma boa vontade, ao alcan-
çar esta intenção é capaz duma só satisfação conforme à sua própria índole, isto é a
que pode achar ao atingir um �m que só ela (a razão) // determina, ainda que isto
possa estar ligado a muito dano causado aos �ns da inclinação (KANT, 1960, p.
24-26).

Kant e o Iluminismo
Em seu texto sobre o Iluminismo, respondendo, em 1784, à pergunta de uma
revista alemã de Berlim, Kant expõe seu ideal de apelo ao exercício autônomo
da razão aqui descrito.

Re�ete sobre o momento social e político de sua época, visando à elevação do


homem à sua condição singular e única de ser livre. Cada um é responsável
por essa liberação da “menoridade”. Somente cada um, com liberdade, pode
dela se livrar. Essa liberação só é possível com o esclarecimento do próprio
pensar, esclarecimento que deve ser contínuo, de maneira a poder ver o mun-
do com outros olhos, livres de conceitos e normas estabelecidos.

A liberdade de fazer uso público do pensar esclarecido permite, por sua vez, a
discussão e o intercâmbio de ideias, o qual fundamentará a realização da ação
transformadora.
Ético é, pois, para Kant, conquistar deliberadamente a própria liberdade incon-
dicionada, servindo-se de sua capacidade racional. Este seria o caráter singu-
lar e único de toda ação humana.

: a palavra alemã Aufklärung é traduzida por esclarecimento, ilustração,


Iluminismo.

Diz Kant (2015, p. 1-2):

lluminismo é a saída do homem da sua menoridade de que ele próprio é culpado. A


menoridade é a incapacidade de se servir do entendimento sem a orientação de ou-
trem. Tal menoridade é por culpa própria, se a sua causa não residir na carência de
entendimento, mas na falta de decisão e de coragem em se servir de si mesmo, sem
a guia de outrem. Sapere aude! Tem a coragem de te servires do teu próprio enten-
dimento! Eis a palavra de ordem do Iluminismo.

A preguiça e a cobardia são as causas de os homens em tão grande parte, após a


natureza os ter há muito libertado do controle alheio (naturaliter maiorennes), [482]
continuarem, todavia, de bom grado menores durante toda a vida; e também de a
outros se tornar tão fácil assumir-se como seus tutores. É tão cómodo ser menor. Se
eu tiver um livro que tem entendimento por mim, um director espiritual que em
vez de mim tem consciência moral, um médico que por mim decide da dieta, etc.,
então não preciso de eu próprio me esforçar. Não me é forçoso pensar, quando pos-
so simplesmente pagar; outros empreenderão por mim essa tarefa aborrecida.
Porque a imensa maioria dos homens (inclusive todo o belo sexo) considera a pas-
sagem à maioridade difícil e também muito perigosa é que os tutores de bom grado
tomaram a seu cargo a superintendência deles. Depois de terem, primeiro, embru-
tecido os seus animais domésticos e evitado cuidadosamente que estas criaturas
pací�cas ousassem dar um passo para fora da carroça em que as encerraram,
mostram-lhes em seguida o perigo que as ameaça, se tentarem andar sozinhas.
Ora, este perigo não é assim tão grande, pois acabariam por aprender muito bem a
andar. Só que um tal exemplo intimida e, em geral, gera pavor perante todas as ten-
tativas ulteriores.

É, pois, difícil a cada homem desprender-se da menoridade que para ele se tomou
[483] quase uma natureza. Até lhe ganhou amor e é por agora realmente incapaz de
se servir do seu próprio entendimento, porque nunca se lhe permitiu fazer seme-
lhante tentativa.
Regras e fórmulas “são laços de uma menoridade eterna”:

Preceitos e fórmulas, instrumentos mecânicos do uso racional, ou antes, do mau


uso dos seus dons naturais são os grilhões de uma menoridade perpétua. Mesmo
quem deles se soltasse só daria um salto inseguro sobre o mais pequeno fosso, por-
que não está habituado ao movimento livre. São, pois, muito poucos apenas os que
conseguiram mediante a transformação do seu espírito arrancar-se à menoridade
e encetar então um andamento seguro (KANT, 2015, p. 2).

Com liberdade é possível sair do estado de “menoridade”:

Mas é perfeitamente possível que um público a si mesmo se esclareça. Mais ainda,


é quase inevitável, se para tal lhe for concedida a liberdade. Sempre haverá, de fac-
to, alguns que pensam por si, mesmo entre os tutores estabelecidos da grande mas-
sa que, após terem arrojado de si o jugo da menoridade, espalharão à sua volta o es-
pírito de uma estimativa racional do próprio valor e da vocação de cada homem pa-
ra pensar por si mesmo. Importante aqui é que o público, antes por eles sujeito a es-
te jugo, os obriga doravante a permanecer sob ele quando por alguns dos seus tuto-
res, pessoalmente incapazes de qualquer ilustração, é a isso [484] incitado. Semear
preconceitos é muito danoso, porque acabam por se vingar dos que pessoalmente,
ou os seus predecessores foram os seus autores. Por conseguinte, um público só
muito lentamente consegue chegar à ilustração. Por meio de uma revolução talvez
se possa levar a cabo a queda do despotismo pessoal e da opressão gananciosa ou
dominadora, mas nunca uma verdadeira reforma do modo de pensar. Novos pre-
conceitos, justamente como os antigos, servirão de rédeas à grande massa destituí-
da de pensamento (KANT, 2015, p. 2).

A liberdade em que se funda a ação moral é aquela que faz uso público da pró-
pria razão em todos os campos.
Mas, para esta ilustração [leia-se esclarecimento], nada mais se exige do que a li-
berdade; e, claro está, a mais inofensiva entre tudo o que se pode chamar liberdade,
a saber, a de fazer um uso público da sua razão em todos os elementos. Agora, po-
rém, de todos os lados ouço gritar: não raciocines! Diz o o�cial: não raciocines, mas
faz exercícios! Diz o funcionário de Finanças: não raciocines, paga! E o clérigo: não
raciocines, acredita! (Apenas um único senhor no mundo diz: raciocinai tanto
quanto quiserdes e sobre o que quiserdes, mas obedecei!) Por toda a parte se depara
com a restrição da liberdade. Mas qual é a restrição que se opõe ao Iluminismo?
Qual a restrição que o não impede, antes o fomenta?

Respondo: o uso público da própria razão deve sempre ser livre e só ele pode, entre
os homens, levar a cabo a ilustração [485]; mas o uso privado da razão pode, muitas
vezes, coarctar-se [restringir-se] fortemente sem que, no entanto, se entrave assim
notavelmente o progresso da ilustração (KANT, 2015, p. 3).

Kant (2015, p. 3-4) distingue o uso público do uso privado da razão:


Por uso público da própria razão entendo aquele que qualquer um, enquanto erudi-
to, dela faz perante o grande público do mundo letrado. Chamo uso privado àquele
que alguém pode fazer da sua razão num certo cargo público ou função a ele con�-
ado. Ora, em muitos assuntos que têm a ver com o interesse da comunidade, é ne-
cessário um certo mecanismo em virtude do qual alguns membros da comunidade
se comportarão de um modo puramente passivo com o propósito de, mediante uma
unanimidade arti�cial, serem orientados pelo governo para �ns públicos ou de, pe-
lo menos, serem impedidos de destruir tais �ns. Neste caso, não é decerto permiti-
do raciocinar, mas tem de se obedecer. Na medida, porém, em que esta parte da
máquina se considera também como elemento de uma comunidade total, e até da
sociedade civil mundial, portanto, na qualidade de um erudito que se dirige por es-
crito a um público em entendimento genuíno, pode certamente raciocinar sem que
assim sofram qualquer dano os negócios a que, em parte, como membro passivo, se
encontra sujeito. Seria, pois, muito pernicioso se um o�cial, a quem o seu superior
ordenou algo, quisesse em serviço so�smar em voz alta [486] acerca da inconveni-
ência ou utilidade dessa ordem; tem de obedecer, mas não se lhe pode impedir de
um modo justo, enquanto perito, fazer observações sobre os erros do serviço militar
e expô-las ao seu público para que as julgue. O cidadão não pode recusar-se a pagar
os impostos que lhe são exigidos; e uma censura impertinente de tais obrigações,
se por ele devem ser cumpridas, pode mesmo punir-se como um escândalo (que
poderia causar uma insubordinação geral). Mas, apesar disso, não age contra o de-
ver de um cidadão se, como erudito, ele expuser as suas idéias contra a inconveni-
ência ou também a injustiça de tais prescrições. Do mesmo modo, um clérigo está
obrigado a ensinar os instruídos de catecismo e a sua comunidade em conformida-
de com o símbolo da Igreja, a cujo serviço se encontra, pois ele foi admitido com es-
ta condição. Mas, como erudito, tem plena liberdade e até a missão de participar ao
público todos os seus pensamentos cuidadosamente examinados e bem-
intencionados sobre o que de erróneo há naquele símbolo, e as propostas para uma
melhor regulamentação das matérias que respeitam à religião e à Igreja. Nada aqui
existe que possa constituir um peso na consciência. Com efeito, o que ele ensina
em virtude da sua função, como ministro da Igreja, expõe-no como algo em relação
[487] ao qual não tem o livre poder de ensinar segundo a sua opinião própria, mas
está obrigado a expor segundo a prescrição e em nome de outrem. Dirá: a nossa
Igreja ensina isto ou aquilo; são estes os argumentos comprovativos de que ela se
serve. Em seguida, ele extrai toda a utilidade prática para a sua comunidade de pre-
ceitos que ele próprio não subscreveria com plena convicção, mas a cuja exposição
se pode, no entanto, comprometer, porque não é de todo impossível que neles resida
alguma verdade oculta. De qualquer modo, porém, não deve neles haver coisa algu-
ma que se oponha à religião interior, pois se julgasse encontrar aí semelhante con-
tradição, então não poderia em consciência desempenhar o seu ministério; teria de
renunciar. Por conseguinte, o uso que um professor contratado faz da sua razão pe-
rante a sua comunidade é apenas um uso privado, porque ela, por maior que seja, é
sempre apenas uma assembleia doméstica; e no tocante a tal uso, ele como sacer-
dote não é livre e também o não pode ser, porque exerce uma incumbência alheia.
Em contrapartida, como erudito que, mediante escritos, fala a um público genuíno,
a saber, ao mundo, por conseguinte, o clérigo, no uso público da sua razão, goza de
uma liberdade ilimitada de se servir da própria razão e de falar em seu nome pró-
prio.

O avanço progressivo no esclarecimento é uma determinação original da na-


tureza humana e um sagrado direito da humanidade.

A pedra de toque [489] de tudo o que se pode decretar como lei sobre um povo resi-
de na pergunta: poderia um povo impor a si próprio essa lei? Seria decerto possível,
na expectativa, por assim dizer, de uma lei melhor, por um determinado e curto
prazo, para introduzir uma certa ordem. Ao mesmo tempo, facultar-se-ia a cada ci-
dadão, em especial ao clérigo, na qualidade de erudito, fazer publicamente, isto é,
por escritos, as suas observações sobre o que há de erróneo nas instituições anteri-
ores; entretanto, a ordem introduzida continuaria em vigência até que o discerni-
mento da natureza de tais coisas se tivesse de tal modo difundido e testado publi-
camente que os cidadãos, unindo as suas vozes (embora não todas), poderiam apre-
sentar a sua proposta diante do trono a �m de protegerem as comunidades que, de
acordo com o seu conceito do melhor discernimento, se teriam coadunado numa
organização religiosa modi�cada, sem todavia impedir os que quisessem ater-se à
antiga. Mas é de todo interdito coadunar-se numa constituição religiosa pertinaz,
por ninguém posta publicamente em dúvida, mesmo só durante o tempo de vida de
um homem e deste modo aniquilar, por assim dizer, um período de tempo no pro-
gresso da humanidade para o melhor e torná-lo infecundo e prejudicial para a pos-
teridade. Um homem, para a sua pessoa, [490] e mesmo então só por algum tempo,
pode, no que lhe incumbe saber, adiar a ilustração; mas renunciar a ela, quer seja
para si, quer ainda mais para a descendência, signi�ca lesar e calcar aos pés o sa-
grado direito da humanidade. O que não é lícito a um povo decidir em relação a si
mesmo menos o pode ainda um monarca decidir sobre o povo, pois a sua autorida-
de legislativa assenta precisamente no facto de na sua vontade uni�car a vontade
conjunta do povo. Quando ele vê que toda a melhoria verdadeira ou presumida
coincide com a ordem civil, pode então permitir que em tudo o mais os seus súbdi-
tos façam por si mesmos o que julguem necessário fazer para a salvação da sua al-
ma. Não é isso que lhe importa, mas compete-lhe obstar a que alguém impeça à
força outrem de trabalhar segundo toda a sua capacidade na determinação e fo-
mento da mesma (KANT, 2015, p. 5).

Vimos que Kant, ao se ocupar do fundamento da moral, é levado a postular ou-


tra razão distinta da razão teórica ou especulativa (própria do conhecimento
cientí�co), razão que chamou de “razão prática”. A moralidade não decorreria
das regras de um código de conduta, não se limitaria em agir de acordo com
normas. Para Kant, regras morais se identi�cam facilmente com causas exte-
riores à razão. São do domínio das leis enquanto convenções sociais e do
Direito positivo. Variam segundo as culturas e épocas.

Não são os hábitos de conduta e de comportamento que nos levam a optar pe-
lo cumprimento do dever ou decisões conduzidas pela boa vontade. Em outras
palavras, não são a transmissão e o respeito a um código de conduta que nos
levarão a um comportamento moral.

Propõe, assim, uma moralidade autônoma, fundada na teoria dos imperativos


categóricos essencialmente universais. Daí o nome de “universalismo ético”,
dado à posição kantiana. Uma moralidade dependente inteiramente de uma
razão prática, ou seja, independente de condicionamentos externos, sejam eles
históricos, étnicos, sociais etc.

A razão prática é a razão que guia a ação. É uma forma pura que pode ser apli-
cada a qualquer situação. Tem a validade universal das leis que regem a natu-
reza. Assumida como algo absoluto, não pode ser exercida sob condições. Sua
inteligibilidade pode ser alcançada, porém não pela razão teórica.

A razão prática não depende de nada, a não ser de si mesma, é absolutamente


livre e nisso é o contrário da natureza: esta atua segundo leis; a razão prática,
que é a vontade racional humana, “atua segundo a ideia de lei”, ultrapassando
tudo o que seja sensível para ser ela mesma. Causa incondicionada de si mes-
ma, é a manifestação da “razão” como tal, em toda a sua força e superioridade.

Embora considere as leis morais semelhantes às leis cientí�cas, porque, como


estas, são igualmente universais e impessoais (não se referem a pessoas, luga-
res ou épocas), Kant assinala uma diferença essencial entre esses dois tipos
de leis: enquanto o conceito cientí�co se funda em uma universalidade “medi-
ata”, ou seja, é construído “mediante” uma generalização de conteúdos advin-
dos da experiência empírica, a máxima em que se baseia a lei moral não de-
corre de nenhum processo de generalização, não contém conteúdo empírico,
mas é de natureza imediata.
Reencontramos aqui o que temos buscado mostrar, por meio do pensamento
de diferentes �lósofos, a presença de uma dimensão ética propriamente dita,
não passível de ser trabalhada à luz da razão especulativa generalizante. Um
saber daquela “morada interior” singular e única, e nem por isso menos uni-
versal, provida de uma inteligibilidade pura, isenta de conteúdos sensíveis, sa-
ber que nos põe em contato com uma dimensão humana não cognoscitiva,
mas de natureza “valorizadora”.

Assista também ao vídeo a seguir:

5. Éticas Teleológicas: utilitarismo


As éticas teleológicas (ou consequencialistas) são regidas de acordo com uma
�nalidade que se queira atingir. Palmer (2002, p. 18) irá enfatizar que a ética te-
leológica é aquela que a�rma que os julgamentos morais devem se basear in-
teiramente nos efeitos produzidos por uma ação.

Trata-se, portanto, da ética de "�ns" tão combatida pelo imperativo categórico


de Kant. Com isso, para esta modalidade de ética (voltada para �ns), não é
aceitável princípios absolutos e rígidos, acreditando que a moral não deve ser
orientada unicamente para a �delidade aos deveres e levando em conta o seu
impacto na vida prática e as consequências das ações. É por este motivo que
Neri, numa posição mais esclarecedora, a�rma que a ética teleológica não dei-
xa de ser também uma ética consequencialista:
Para essas éticas [teleológicas], uma ação não é justa em si ou pelas intenções das
quais deriva, mas se torna justa com base nas consequências concretas que pro-
duz. Tais consequências são avaliadas com base na doutrina axiológica preferida e,
portanto, existem tantos tipos de éticas teleológicas quantas são as organizações
axiológicas possíveis, as quais podem ser monísticas ou pluralistas, ou seja, confor-
me preveem uma só coisa como intrinsecamente boa, ou uma pluralidade de bens
(NERI, 2004, p. 50).

Segundo Palmer (2002), nas teorias éticas teleológicas é possível perceber as


seguintes variantes:

• : baseia-se em uma teoria psicológica do comporta-


mento humano que declara que o ser humano é psicologicamente inca-
paz de fazer qualquer coisa que não seja vantajoso ao seu próprio interes-
se. Segundo Palmer (2002, p. 27), a grande crítica ao egoísmo psicológico
é que, de fato, não se trata de uma doutrina ética e sim de uma teoria mo-
tivacional do ser humano, pois ela não sugere normas e atitudes (como é
próprio de uma Ética Normativa), mas apenas informa como os seres hu-
manos são como agem.
• : baseia-se não num egocentrismo injusti�cado e psicológi-
co, mas na crença cada coisa boa realizada ao outro deve ser convertida,
anteriormente, como uma ação bené�ca para si mesmo e para servir aos
seus próprios interesses, efetivando com isso, um mundo mais feliz tam-
bém para si mesmo. Assim, segundo Palmer (2002, p. 30), as ações mo-
rais, como por exemplo, ser honesto, não roubar, ajudar o próximo etc.,
não são aceitas porque são boas em si mesmas, mas porque produzem
benefícios para quem as faz. No entanto, na medida em que o egoísmo
ético limita o valor da norma moral apenas para benefício próprio, tam-
bém acaba criando sérias contradições. É Palmer que mais uma vez faz
as seguintes críticas:
Uma crítica importante é que ele tem uma contradição interna: alegar que todos os
homens e mulheres devem cuidar de si mesmos se o resultado disso for eu não cui-
dar de mim mesmo. Por exemplo, suponhamos que Jonas e eu temos uma determi-
nada doença e que iremos morrer se não recebermos uma vacina especí�ca, da
qual só há uma disponível. Se sou egoísta ético, preciso não só tentar conseguir a
vacina exclusivamente para mim, mas também se me perguntarem, recomendar
que Jonas faça o mesmo: em outras palavras, preciso recomendar que Jonas sirva
a seus interesses, não os meus. Se faço isso, porém, contradigo o princípio básico
do egoísmo ético, já que claramente eu não serviria aos meus melhores interesses
ao dar esse conselho a Jonas [...]. Chegamos a uma situação peculiar, na qual meus
interesses como egoísta ético serão melhor servidos se eu proclamar que o egoísmo
ético é uma falsa doutrina (PALMER, 2002, p. 31).

A seguir, na tirinha de Jim Davis, observamos o dilema conceitual do egoísmo


ético e psicológico na postura de Gar�eld:

(https://mdm.claretiano.edu.br/eti-gp0061-2021-01-grad-ead-p/wp-content
/uploads/sites/792/2019/12/C3-F4.png) : Davis (2020).
Figura 2 Tirinha Jim Davis.

Todavia, a teoria teleológica que �cou mais conhecida nos debates éticos foi o
utilitarismo. Enquanto no egoísmo ético o homem age segundo seus próprios
benefícios, no utilitarismo que o homem deve agir em função do interesse de
todos. Assim, o princípio do utilitarismo pode ser identi�cado da seguinte ma-
neira: uma ação é moralmente correta quando produz o maior bem possível
para o maior número de pessoas possível (ou também quando produz o menor
mal possível para o menor número de pessoas possível). De acordo com este
princípio, o indivíduo, sempre que tiver a possibilidade de escolha, deve esco-
lher aquela alternativa que, no seu conjunto, consiga trazer o melhor e o maior
bem para todos os envolvidos. Os defensores mais conhecidos da teoria utili-
tarista são Jeremy Bentham e Stuart Mill.
Em oposição ao Direito Natural, Jeremy Bentham (1748-1832) entende que a fe-
licidade geral é alcançada pelo cálculo hedonístico. Com isso, desenvolve uma
teoria da utilidade da ação, comprovável na experiência. Suas ideias princi-
pais podem então ser pensadas a partir do prazer e da dor:

A natureza colocou o gênero humano sob o domínio de dois senhores: a dor e o pra-
zer. Somente a eles compete apontar o que devemos fazer, bem como determinar o
que na realidade faremos. Ao trono desses dois senhores está vinculada, por uma
parte, a norma que distingue o que é reto do que é errado, e, por outra, a cadeia das
causas e dos efeitos (BENTHAM, 1974, p. 9).

A partir deste princípio, Bentham a�rma o direito da livre discussão e crítica


das ações e instituições, como condição da confecção de uma legislação que
promova a maior felicidade para o maior número de pessoas: a função do le-
gislador, portanto, é fazer leis que proporcionem o bem mais extensivo, uma
vez que "a missão dos governantes consiste em promover a felicidade da soci-
edade, punindo e recompensando" (BENTHAM, 1974, p. 25). Que sentimentos
então devem ser preferidos? Objetivamente, o prazer, segundo sua intensidade,
duração, proximidade, certeza, fecundidade e pureza. Quais os motivos do
agir? Bons são os que levam à harmonia; maus os que levam ao desequilíbrio.

Dentre seus seguidores de Bentham, com certeza, John Stuart Mill foi um dos
mais notáveis, que brilhantemente sistematizou a concepção utilitarista e ex-
pandiu as questões propostas por Bentham. Na obra Utilitarismo, Stuart Mill
apresenta a ideia principal da teoria da seguinte maneira: imaginar a possibi-
lidade de um determinado estado de coisas no qual todas as pessoas sejam tão
felizes quanto possível:

O Princípio da Maior Felicidade, [...] o �m último, com referência ao qual e por causa
do qual todas as outras coisas são desejáveis (quer estejamos considerando nosso
próprio bem ou o de outras pessoas), é uma existência isenta tanto quanto possível
da dor, e tão rica quanto possível em deleites, seja do ponto de vista da quantidade
como da qualidade. O teste de qualidade [...] é a preferência manifestada pelos que,
em razão das oportunidades proporcionadas por sua experiência, em razão tam-
bém de terem o hábito de tomar consciência de si e de praticar a introspecção, de-
têm os melhores meios de comparação (MILL, 2000, p. 144-145).
Desta maneira, a regra central da moralidade pode ser representada de uma
forma bem simples: agir de modo a realizar este estado de coisas, na medida
em que seja possível. Em síntese, Stuart Mill a�rma que a concepção de utili-
dade está essencialmente ligada à de felicidade como seu maior princípio, ca-
paz de ser não só aquilo derivado do útil, mas principalmente em ser a refe-
rência orientadora que de�ne as ações corretas das ações incorretas:

A utilidade ou o princípio da maior felicidade como a fundação da moral sustenta


que as ações são corretas na medida em que tendem a promover a felicidade, e er-
radas conforme tendam a produzir o contrário da felicidade. Por felicidade se en-
tende prazer e ausência de dor; por infelicidade, dor e privação de prazer [...] o pra-
zer e a imunidade à dor são as únicas coisas desejáveis como �ns, e que todas as
coisas desejáveis [...] são desejáveis quer pelo prazer inerente a elas mesmas, quer
como meios para alcançar o prazer e evitar a dor (MILL, 2000, 187).

Partindo então das bases do utilitarismo de Bentham, Stuart Mill faz o seguin-
te questionamento: quando toda necessidade for sanada, qual será a ação que
trará a felicidade? A reposta a esta pergunta Mill encontrou exatamente na
busca pela felicidade dos outros como condição de uma felicidade pessoal: o
útil então para a felicidade pessoal também deve ser para a felicidade do ou-
tro.

Com isso, Stuart Mill expande mais claramente a questão da utilidade para
�ns coletivos: o útil não pode ser tomado no sentido egoísta, não pode ser per-
cebido como o que seja bené�co e útil apenas para atender aos interesses indi-
viduais. Se levar em consideração única e exclusivamente o bem individual,
pessoal, o indivíduo é então levado a uma posição egoísta. Porém, por outro la-
do, se o indivíduo pratica ações que sempre levem em consideração o bem dos
outros, sem renunciar ao seu próprio bem, então, agirá moralmente do ponto
de vista do utilitarismo. Assim, o que é útil para um indivíduo, mas não o é
igualmente para a sociedade ou, pelo menos, para algumas pessoas, não é re-
almente bom e útil.

 Leitura complementar
Sobre as teorias teleológicas, em especial o utilitarismo, faça a leitura do
texto de Maria Cristina Longo Cardoso Dias (2014) - A concepção de ética
no utilitarismo de John Stuart Mill (https://www.revistas.usp.br/discur-
so/article/view/89097/91988).

Além da leitura, assista também ao vídeo a seguir:

Em síntese, as éticas deontológicas e teleológicas propõem o dilema dos meios


e �ns morais: quais os critérios que justi�cariam uma ação ética? Pelo dever
ou pelos �ns? Em que situações o cálculo das �nalidades (imperativo hipotéti-
co) torna-se legítimo? Em que contexto a convicção dos valores deve prescin-
dir das �nalidades previstas? Na tirinha a seguir, veremos como a questão dos
meios e dos �ns é abordada pelo autor Bill Watterson:
(https://mdm.claretiano.edu.br/eti-gp0061-2021-01-grad-ead-p/wp-content
/uploads/sites/792/2019/12/C3-F5.png) : Watterson (1997, v. 1, p. 78).
Figura 3 Tirinha Calvin e Haroldo.

Sugerimos, agora, que você dê uma pausa na sua leitura e re�ita sobre sua
aprendizagem respondendo à questão a seguir.

6. Considerações
O ciclo 4 de aprendizagem apresentou-nos a discussão em torno das éticas de-
ontológicas e teleológicas, seus critérios de legitimação da ação moral e limi-
tes. No próximo ciclo, esses conteúdos estarão relacionados com propostas
éticas contemporâneas, em especial com as ideias dos autores Schopenhauer
e Nietzsche. Além disso, também re�etiremos sobre alguns desa�os éticos na
contemporaneidade e sua importância na área das ciências humanas.
(https://md.claretiano.edu.br/eti-gs0123-

fev-2023-grad-ead/)

Ciclo 5 – Contribuições Contemporâneas para a Ética


e Seus Desa�os

Telma Apparecida Donzelli

Objetivos
• Veri�car a acentuação da preocupação ética em detrimento da moral no
pensamento de Schopenhauer e Nietzsche.
• Re�etir sobre as principais provocações do mundo hodierno para o pro-
blema da ética e as novas formas e modalidades que a ética apresenta
na atualidade.

Conteúdos
• A ética da compaixão em Arthur Schopenhauer.
• O problema da valoração moral em Nietzsche e suas principais contri-
buições para a Ética.
• Dilemas e desa�os éticos na contemporaneidade.

Problematização
Quais novidades Nietzsche e Schopenhauer apresentam no pensamento éti-
co e sua relação com a cultura e o ser humano? De que forma Nietzsche utili-
za sua genealogia da moral no âmbito da Ética. O que é a ética da compaixão
para Schopenhauer? Qual o papel da Ética frente aos problemas sociais atu-
ais? Quais as formas de abordagens éticas podemos entender na contempo-
raneidade?
Orientação para o estudo
A aprendizagem em Filoso�a, em muitos casos, apresenta-se como complexa
e extensa, dada a abrangência e o alcance dos conceitos desenvolvidos.
Neste último ciclo de aprendizagem orientamos recapitular, por meio de re-
sumos, mapas mentais/conceituais, esquemas etc., a trajetória da disciplina.

1. Introdução
Ao longo da história das teorias éticas, observamos que elas se fundamenta-
ram na virtude (Sócrates, Platão), na felicidade (Aristóteles), na tranquilidade
da alma (epicurismo e estoicismo), no livre-arbítrio (Agostinho, Tomás de
Aquino), na racionalidade (Descartes), nos afetos e nos sentimentos (Spinoza e
Hume), na experiência (Hobbes e Locke), no dever (Kant), na utilidade
(Bentham e Stuart Mill), entre outros aspectos. Em sua maioria, com exceção
de Hume e Spinoza, ainda percebemos uma certa proeminência da razão co-
mo protagonista do processo moral.

Os autores deste ciclo de aprendizagem, Schopenhauer e Nietzsche, formali-


zam suas teorias em direção contrária: não é a racionalidade que governa a
moralidade, mas a vontade. Nesse sentido, seguindo a esteira conceitual das
propostas éticas de Spinoza e Hume, Schopenhauer e Nietzsche promovem
uma revolução na re�exão ética. No conjunto destas re�exões, também reser-
varemos parte desse ciclo para pensarmos sobre alguns desa�os da Ética hoje.
Preparados?

2. Schopenhauer: a Ética da "vontade"


Podemos a�rmar que Arthur Schopenhauer (1788-1860) conseguiu anexar em
sua teoria as in�uências de dois pensadores antagônicos: Platão e Kant. "A �-
loso�a de Kant, portanto, é a única cuja familiaridade íntima é requerida para
o que aqui será exposto. Se, no entanto, o leitor já frequentou a escola do divino
Platão, estará ainda mais preparado e receptivo para me ouvir"
(SCHOPENHAUER, 2005, p. 23).
Segundo Schopenhauer, o ponto de convergência entre ambos (Platão e Kant)
está localizado exatamente no dualismo expresso pelos conceitos de "aparên-
cia" e "essência". Ou seja, a divisão feita por Platão de "mundo das ideias" e
"mundo sensível" seria similar à divisão proposta por Kant entre "fenômeno"
(phainoumenon) e "coisa em si" (noumenon). Sendo assim, para
Schopenhauer, enquanto o fenômeno está relacionado ao "mundo como repre-
sentação", a "coisa em si" (essência) é referente ao "mundo como vontade".

Com relação ao "mundo como representação", para Schopenhauer, nenhuma


verdade é mais absoluta do que essa: a matéria não tem existência indepen-
dente da percepção mental. Ou seja, a existência e a percepção são termos
conversíveis entre si: existe o que é percebido.

'O mundo é minha representação'. Esta é uma verdade que vale em relação a cada
ser que vive e conhece, embora apenas o homem possa trazê-la à consciência re�e-
tida e abstrata. E de fato o faz. Então nele aparece a clarividência �losó�ca. Torna-
se-lhe claro e certo que não conhece sol algum e terra alguma, mas sempre apenas
um olho que vê um sol, uma mão que toca uma terra. Que o mundo a cercá-lo existe
apenas como representação, isto é, tão-somente em relação a outrem, aquele que
representa, ou seja, ele mesmo (SCHOPENHAUER, 2005, p. 43).

O mundo como representação, no entanto, tem duas partes essenciais, neces-


sárias e inseparáveis: sujeito e objeto. O sujeito da representação (o que tudo
conhece, sem ser conhecido por ninguém) é a condição universal de todo
fenômeno e de todo objeto: "tudo o que existe, existe para o sujeito"
(SCHOPENHAUER, 2005, p. 45). Já o objeto da representação (o que é conheci-
do) é condicionado pelas formas a priori do espaço e do tempo - isto é, todo ob-
jeto que existe, só existe no espaço e no tempo: "O objeto [...] encontra-se, como
todos os objetos da intuição, nas formas de todo conhecer, no tempo e no espa-
ço, mediante os quais se dá a pluralidade" (SCHOPENHAUER, 2005, p. 45).

Enquanto o objeto só existe no espaço e no tempo, o sujeito, ao contrário, está


fora do espaço e do tempo. O sujeito é inteiro e individual; ou melhor, é a con-
dição do representar: "O sujeito, não se encontra no espaço nem no tempo, pois
está inteiro e indiviso em cada ser que representa. [...]. Contudo, caso aquele
único ser desaparecesse, então o mundo como representação não mais existi-
ria" (SCHOPENHAUER, 2005, p. 46).

Já no que diz respeito ao "mundo como vontade", de acordo com


Schopenhauer, estaríamos adentrando na esfera da essência. Se o mundo co-
mo vontade é essência, então - retomando aqui os textos sagrados dos Vedas,
como também autores como Platão, Píndaro, Sófocles entre outros -, o mundo
como representação (fenomênico) não seria outra coisa senão uma ilusão.

Nesse sentido Schopenhauer concorda com Kant, ao a�rmar que o "mundo co-
mo representação" não é a "coisa em si", mas o fenômeno, ou seja, "um objeto
para o sujeito". No entanto, contrariando Kant, nega a ideia do fenômeno como
uma realidade que não pode captar o noumenon (coisa em si). Enquanto para
Kant o fenômeno é a única realidade cognoscível, para Schopenhauer o fenô-
meno é apenas a ilusão e a aparência, que camu�a a essência autêntica e pri-
meira das coisas (SCHOPENHAUER, 2005).

Ora, se para Schopenhauer a essência do mundo, a "coisa em si", pode ser cap-
tada - ao contrário de Kant -, convém então perguntar: como? Para o autor, em-
bora a essência do mundo não seja percebida em sua imediaticidade, é possí-
vel, no entanto, acessá-la por meio de atalhos secretos. Dentre esses atalhos,
Schopenhauer identi�ca o corpo, que se apresenta ao sujeito cognoscente de
dois modos diversos: a) por um lado, o corpo é concebido como representação,
como objeto entre objetos que está submetido as suas leis; b) porém, por outro,
é apreendido como algo imediatamente conhecido de cada um e que o autor
designou pelo nome de "vontade" (SCHOPENHAUER, 2005).

É impossível não constatar que todo querer ou ato volitivo do sujeito, ao mes-
mo tempo, também é uma manifestação corporal. Todo ato real da vontade do
sujeito também é, inexoravelmente, movimento de seu corpo. O corpo é, por-
tanto, a "vontade" tornada visível: se olharmos nosso corpo e falarmos dele co-
mo de qualquer outro objeto, nesse caso, ele é fenômeno; mas, se observarmos
nosso corpo por meio do que sentimos e vivemos, pelo modo como experi-
mentamos o prazer e a dor, pelo jeito como percebemos o anseio de viver e o
impulso de conservação de nossa vida, então, nesse caso, ele é manifestação
da vontade (REALE; ANTISERE, 2005b).
A consciência e o sentimento de nosso "corpo como vontade" levam-nos a re-
conhecer que toda a universalidade dos fenômenos, embora tão diversos em
suas manifestações, tem uma só e idêntica essência: a vontade, aquela que co-
nhecemos mais intimamente e melhor do que qualquer outra coisa.

Reconhecerá a mesma vontade como essência mais Íntima não apenas dos fenô-
menos inteiramente semelhantes ao seu, ou seja, homens e animais, porém, a re�e-
xão continuada o levará a reconhecer que também a força que vegeta e palpita na
planta, sim, a força que forma o cristal, que gira a agulha magnética para o polo
norte, que irrompe do choque de dois metais heterogêneos, que aparece nas a�ni-
dades eletivas dos materiais como atração e repulsão, sim, a própria gravidade que
atua poderosamente em toda matéria, atraindo a pedra para a terra e a terra para o
sol, tudo isso é diferente apenas no fenômeno, mas conforme sua essência em si é
para se reconhecer como aquilo conhecido imediatamente de maneira tão íntima e
melhor que qualquer outra coisa e que, ali onde aparece do modo mais nítido,
chama-se vontade (SCHOPENHAUER, 2005, p. 162).

Por não estar limitada à representação do intelecto, a vontade é livre, cega,


sem objetivo e irracional. A vontade é, portanto, a insaciabilidade e a eterna
insatisfação, que, por sua vez, promove uma disputa entre os seres pelo domí-
nio das forças da natureza (SCHOPENHAUER, 2005).

Essa luta sem �m provocada pela vontade aguça-se mais ainda na ação cons-
ciente do homem, subjugando e explorando a natureza, por um lado, e no cruel
con�ito entre os diversos egoísmos indomáveis, por outro. Surge aqui o princí-
pio da individuação: a vontade como força que se disfarça nos egoísmos dos
vários indivíduos - egoísmos estes que não passam de uma manifestação par-
cial da Vontade.

Para Schopenhauer, a vida e a existência humana oscila necessariamente en-


tre a dor e o tédio. Por trás da dor encontra-se a necessidade da vontade: uma
vez que a essência do mundo é a vontade, então quer dizer que o mundo é ge-
renciado pela necessidade insaciável e pelo querer contínuo e sem �m. Ora, se
o querer é permanente, então o con�ito e o sofrimento que decorrem desta ne-
cessidade insaciável também não têm �m.
Portanto, à proporção que o conhecimento atinge a distinção e que a consciência se
eleva, aumenta o tormenta, que, conseguintemente, alcança seu grau supremo no
homem, e tanto mais, quanto mais ele conhece distintamente, sim, quanto mais in-
teligente é. O homem no qual o gênio vive é quem mais sofre (SCHOPENHAUER,
2005, p. 399-400).

O mundo como fenômeno é representação; porém, em sua essência, é vontade


cega e irrefreável, perenemente insatisfeita, dilacerando-se entre forças con-
trastantes. Todavia, quando o homem, aprofunda-se em seu próprio íntimo e
consegue compreender isso (que a realidade é vontade e que ele próprio é von-
tade), então está pronto para sua redenção, que só pode ocorrer "com o deixar
de querer".

Mas como deixar de querer? Na opinião de Schopenhauer, só podemos nos li-


bertar da dor e do tédio e, com isso, sair da cadeia in�nita da vontade, através
da arte e da ascese.

Com relação à arte, o indivíduo separa-se das cadeias da vontade, afasta-se de


seus desejos e anula suas necessidades, deixando de olhar os objetos em fun-
ção do que eles podem ser úteis ou nocivos. Ou melhor, na experiência estéti-
ca, o homem aniquila-se como vontade, transformando-se em puro olho do
mundo, que o faz mergulhar inteiramente no objeto e esquecer-se de si mesmo
e de sua dor.

A arte, portanto, é libertadora. Entretanto, somente a arte não basta, pois esses
momentos felizes da contemplação estética (nos quais nos sentimos libertos
da tirania furiosa da vontade) são instantes breves e raros. Consequentemente,
a libertação da dor da vida e a redenção total do homem devem ocorrer por
outro caminho, que é o da ascese.

A ascese signi�ca que a libertação do homem em relação ao alternar-se fatal


da dor e do tédio só pode se realizar suprimindo em nós mesmos a raiz do
mal, isto é, a vontade de viver. Para a supressão total da dor e do tédio,
Schopenhauer apresenta três passos: a justiça, a bondade e a ascese.

Redenção pela justiça


O primeiro passo, o da realização da justiça, acontece mediante o reconheci-
mento dos outros como iguais a nós mesmos. No entanto, apenas a realização
da justiça não basta: de fato, justiça golpeia o egoísmo, porém, leva-me a con-
siderar os outros como distintos e diferentes de mim, o que, neste caso, ainda
não acaba com o princípio da individuação, que fundamenta meu egoísmo e
me contrapõe aos outros.

Com isso, para suprimir a dor e o tédio e, por isso, vencer o egoísmo individua-
do, é preciso ultrapassar a justiça e ter a coragem de eliminar toda distinção
entre nossa individualidade e a dos outros, abrindo os olhos para o fato de que
todos nós estamos envolvidos na mesma desventura (dor e tédio).

Redenção pela bondade


Para isso, o segundo passo é o da bondade, ou seja, o amor desinteressado para
com seres que carregam o mesmo peso e vivem o mesmo destino trágico.
Bondade, portanto, é a compaixão; ou seja, sentir a dor do outro por meio da
compreensão de nossa própria dor. Todavia, a bondade também carrega limi-
tações, pois o compadecer, ainda é padecer, isto é, sofrer. Para erradicar total-
mente a vontade de viver e, portanto, a dor, é preciso tomar o caminho da as-
cese, a exemplo dos sábios hindus e dos santos ascetas do cristianismo.

Redenção pela ascese


A ascese é o horror que experimentamos pela essência de um mundo cheio de
dor, que para chegar em sua perfeição (negação completa da vontade). A asce-
se arranca o homem da vontade de vida e do vínculo com os objetos,
permitindo-o aquietar-se. "Só quando o sofrimento assume a forma do simples
e puro conhecer, e este, como quietivo da vontade, produz a resignação, é que
se acha o caminho da redenção, sendo, pois, digno de reverência"
(SCHOPENHAUER, 2005, p. 502). Quando a voluntas (vontade) tornar-se nolun-
tas (nulidade de si mesmo), o homem estará então totalmente redimido.

A modernidade preparou uma espécie de otimismo em relação ao desenvolvi-


mento da ciência e, atrelado a ele, a crença de que a ciência seria responsável
por uma constante melhoria da situação existencial da vida humana. De
Descartes a Kant, temos uma valorização da razão que se pretende como a
única capaz de levar a cabo o projeto de uma humanidade esclarecida. Tal
projeto encarna-se como movimento histórico do chamado “século das luzes”
com o Iluminismo. No entanto, sorrateiramente, a mesma modernidade vai fa-
zendo brotar uma compreensão pessimista com relação a esse mesmo projeto
futurístico, uma descon�ança de que os rumos traçados pela razão não leva-
rão ao �m desejado.

Os valores iluministas, a crença na razão, acabam levando a um esgotamento


de suas possibilidades. A metafísica racional chega ao seu ápice com o pensa-
mento de Hegel, para o qual “todo o real é racional” e, ao mesmo tempo, esgota
suas possibilidades. Schopenhauer e Nietzsche, mais do que �lósofos que inte-
gram, em suas �loso�as, a questão do irracional, da vontade, do pessimismo
etc., são os �lósofos que deixam emergir os problemas que apareciam como
questões de segunda ordem na modernidade, e vislumbram novas possibili-
dades de �losofar mesmo disparando duros golpes à razão. A questão ética, “o
caráter”, começa a aparecer no primeiro plano das preocupações desses �lóso-
fos, enquanto o problema moral vai perdendo espaço. Assim, convidamos vo-
cê a acompanhar os pensamentos desses dois grandes expoentes da Filoso�a.
Vamos lá?

3. Arthur Schopenhauer (1788-1860)


Schopenhauer pertencia a uma família de ricos comerciantes e estava desti-
nado a se dedicar ao comércio. Das inúmeras viagens na companhia de seu
pai, �ca-lhe a certeza do caráter trágico da vida humana. Decide, então, mer-
gulhar no estudo das obras de Kant.

Inscreve-se na Universidade alemã de Göttingen para estudar Medicina e


Ciências Exatas, porém seu interesse pela Filoso�a é maior. Assiste, em
Berlim, aos cursos de Fichte (discípulo de Kant, cujo entendimento do criticis-
mo kantiano consiste em um idealismo imanentista, ou seja, movimento de
pensamento para o qual as coisas não existem em si; todo conhecimento é re-
presentação).

Retira-se para Rudolstadt (cidade alemã fundada em 776), onde medita e es-
creve durante cinco anos. Sua obra O mundo como vontade e como represen-
tação é publicada em Leipzig em 1818. Após tentar e não conseguir se dedicar
ao ensino na Universidade de Berlim, instala-se em 1831 na cidade de
Frankfurt.

Com a publicação, em 1851, da obra Parerga e paralipomena, que signi�ca tra-


balhos menores e que consiste em uma série de pensamentos ordenados so-
bre diversos assuntos, inclusive os famosos Aforismos para a sabedoria e vi-
da, torna-se conhecido.

Uma Ética da compaixão


O fundamento da moral em Schopenhauer é a “compaixão” – do latim “com-
passione”, que signi�ca uma compreensão do estado emocional de outrem,
colocando-se no seu lugar, buscando minorar o seu sofrimento. O princípio
ético fundamental para Schopenhauer é: ,
.

Dentro do contexto do pensamento de Schopenhauer, a compaixão implicaria


a negação do “querer viver” (nichtwollen). Vejamos o porquê no próximo tópi-
co.

Vontade e representação
Para Schopenhauer, tudo no mundo é vontade e representação.

Vontade

Toda existência seria a manifestação de um “querer” essencial. O conceito de


vontade tem, no pensamento do �lósofo, uma extensão muito mais ampla do
que aquela em que é comumente entendido, pois a vontade é, para
Schopenhauer, o que funda toda a realidade. Conhecida de imediato, nada é
mais bem compreendido por nós do que a vontade, diz o �lósofo.

Na segunda parte de sua obra O mundo como vontade e como representação,


Schopenhauer diz que a solução do enigma do mundo deve ser buscada no ho-
mem, uma vez que é a experiência interior que nos levará à essência do mun-
do. Na re�exão sobre si mesmo, o sujeito surge como “querer” e não como en-
tendimento. A vontade não é como o conhecimento, comandada pelo cérebro;
é uma força original que cria e mantém o corpo com suas funções conscientes
e inconscientes.

A vontade é o que está na origem de todas as forças inorgânicas da natureza.


“Substância” íntima e original, é idêntica quanto à matéria em todas as mu-
danças e movimentos dos corpos, em todas as suas variações, nos minerais,
nos vegetais, nos animais e nos humanos. Faz germinar e crescer a planta, dá
a forma regular ao cristal, manifesta-se na matéria mais bruta sob a forma de
peso. Embora todas essas coisas se deem a nós distintas umas das outras, na
realidade são individuações de uma mesma vontade. O mundo em si, desde o
inorgânico ao ser humano, seria um “querer viver”, um �uxo perpétuo e eterno
de a�rmação da vida, sua origem e seu �m.

Continuando, o �lósofo diz que o conhecimento preciso e imediato nos é for-


necido pelos movimentos de nosso próprio corpo e a isso chamamos vontade.
A força que age e move a natureza e se manifesta nos fenômenos de maneira
cada vez mais perfeita eleva-se bastante alto para que o conhecimento a es-
clareça por meio de uma luz direta. Em outras palavras, essa força que age e
move a natureza apresenta-se de maneira cada vez mais perfeita, até se tornar
passível de conhecimento. Chegada essa força ao estado de consciência de si,
revela-se propriamente como “vontade”, noção da qual temos conhecimento
preciso e que, por isso mesmo, longe de ser explicada por qualquer outro ele-
mento estranho, explica-se a si mesma.

A “vontade” é, pois, o que se expressa das mais variadas maneiras, em tudo o


que existe no mundo; é a essência do mundo e a substância de todos os fenô-
menos.

Representação

Por sua vez, o mundo existe apenas como “representação”, ou seja, na relação
com um ser que percebe. A realidade (seja ela o que for) não seria separável
das formas de apreensão de um sujeito, formas como:

• a do tempo (responsável pela �nitude do mundo);


• a do espaço (responsável pela multiplicidade);
• a da causalidade (responsável pela necessidade).

A vontade, diferentemente do mundo dos fenômenos ou do mundo como “re-


presentação”, não seria determinada pelas três formas a priori citadas, pois a
vontade não depende do tempo, porque é eterna; nem do espaço, porque é una;
nem da causalidade, porque é livre. En�m, a base ou fundamento constitutivo
de toda realidade se inscreve na falta de determinação temporal, espacial e
causal.

Segundo o �lósofo, o mundo fenomênico ou da representação é o espelho da


vontade de vida.

A Vontade que, considerada puramente em si, destituída de conhecimento é apenas


um ímpeto cego e irresistível – como a vemos entrar em cena na natureza inorgâ-
nica e na natureza vegetal, assim como na parte vegetativa da nossa própria vida –
atinge, pela entrada em cena do mundo como representação desenvolvida para o
seu serviço, o conhecimento de sua volição e daquilo que ela quer, a saber, nada se-
não este mundo, a vida, justamente como esta existe. Por isso denominamos o
mundo fenomênico seu espelho, sua objetidade; // e, como o que a Vontade sempre
quer é a vida, precisamente porque esta nada é senão a exposição daquele querer
para a representação, é indiferente e tão somente um pleonasmo se, em vez de sim-
plesmente dizermos “a Vontade”, dizemos “a Vontade de vida”. [...]

Onde existe Vontade, existirá vida, mundo. Portanto, à Vontade de vida a vida é cer-
ta, e pelo tempo em que estivermos preenchidos de Vontade de vida, não precisa-
mos temer por nossa existência, nem pela visão da morte (SCHOPENHAUER, 2005,
p. 358).

O fundo de todas as formas vivas é, assim, constituído desse esforço incessan-


te, o qual, ao alcançar o ponto alto de suas manifestações objetivas, seu princí-
pio verdadeiro e mais geral, revela-se a si mesmo como vontade encarnada
em um corpo que lhe impõe suas leis, tornado este corpo a própria vontade de
viver.

O “querer” é a condição do surgimento do “eu”


Os atos de nosso corpo ocorrem no tempo e no espaço, ligados pela lei da cau-
salidade. Ao surgir nossa condição de sujeitos cognoscentes, devido ao princí-
pio de individuação (como distintos uns dos outros), passamos a nos perceber
imediatamente como sujeitos volitivos. O sujeito cognoscente ilumina o sujei-
to volitivo, e o primeiro sinal de consciência de nossa existência surge como o
“querer”, pois, no momento em que queremos, temos consciência de que “o ser
que conhece” é o mesmo “ser que quer”. Portanto, o querer é a condição do sur-
gimento do “eu”. O “querer” não é “substância” autônoma, individual, mas é o
próprio corpo e suas ações.

A condição humana: todo querer tem por princípio uma


necessidade, uma carência e, portanto, uma dor
Schopenhauer descreve a existência humana como trágica e dolorosa, como
um pêndulo que oscila, sem cessar, entre o sofrimento e o tédio. Seu horizonte
é a morte. Já na matéria bruta, encontramos um esforço contínuo, sem �m e
sem repouso, os animais e os homens apresentam uma sede insaciável de
querer. Somos todos prisioneiros da dor pela própria natureza, pois todo querer
tem por princípio uma necessidade, uma carência, portanto, uma dor. Se a
vontade não é satisfeita ou o desejo não é atendido, os homens caem no tédio
e suas existências tornam-se intoleráveis.

Sendo o homem a mais perfeita das formas objetivas da vontade, é também de


todos os seres o mais atormentado pelas necessidades de se manter vivo. Ele é
inteiramente “vontade”, colocado na Terra, incerto de tudo, salvo de sua escra-
vidão às necessidades, necessidades estas difíceis de satisfazer e, a cada vez,
renovadas.

Há ainda outra necessidade trazida pela exigência de conservação da vida e


que é a perpetuação da espécie. Para a grande maioria dos homens, a vida é
um combate perpétuo pela sobrevivência. De acordo com o �lósofo, o que faz o
ser humano lutar não é propriamente o amor à vida, mas a angústia e o medo
da morte, sempre à espreita em qualquer lugar e em qualquer tempo.
Se a nossa existência não tem por �m imediato a dor, pode dizer-se que não tem ra-
zão alguma de ser no mundo. Porque é absurdo admitir que a dor sem �m, que nas-
ce da miséria inerente à vida e enche o mundo, seja apenas um puro acidente, e não
o próprio �m. Cada desgraça particular parece, é certo, uma exceção, mas a desgra-
ça geral é a regra. [...]

Assim como um regato corre sem ímpetos, enquanto não encontra obstáculos, do
mesmo modo na natureza humana, como na natureza animal, a vida corre incons-
ciente e cuidadosa, quando coisa alguma se lhe opõe à vontade. Se a atenção des-
perta, é porque a vontade não era livre e se produziu algum choque. Tudo o que se
ergue em frente da nossa vontade, tudo o que a contraria ou a resiste, isto é, tudo o
que há desagradável e de doloroso, sentimo-lo ato contínuo e muito nitidamente.
Não atentamos na saúde geral do nosso corpo, mas notamos o ponto ligeiro onde o
sapato nos molesta; não apreciamos o conjunto próspero dos nossos negócios, e só
pensamos numa ninharia insigni�cante que nos desgosta. – O bem-estar e a felici-
dade são, portanto, negativos, só a dor é positiva (SCHOPENHAUER, s/d., p. 21-22).

A experiência do desejo, a morte e a vontade de viver


Em sua obra O mundo como vontade e como representação, Schopenhauer diz
que a experiência do desejo é a ausência de algo que falta, e a vida consiste em
tentar preencher essa falta. Corre-se de objeto em objeto, em uma perseguição
insaciável, indo da privação (sofrimento) para a experiência do tédio, após a
posse ou realização do desejo. En�m, aos seres vivos pesam suas naturezas e
suas existências de maneira intolerável. As angústias do medo da morte, os
sofrimentos e as mágoas chegam a tal grau, que a morte se torna desejável.

Esse esforço incessante que constitui o fundo de todas as formas visíveis, re-
vestidas de vontade, chegando ao ponto mais alto de suas manifestações obje-
tivas, encontra seu princípio verdadeiro e mais geral. A vontade, então, se re-
vela a ela mesma em um corpo vivo, que lhe impõe uma lei de ferro, o de se
alimentar, e esse corpo passa a ser a própria vontade de viver encarnada.

Quais motivos nos levam a transformar um “querer” em “ação”

O é, segundo Schopenhauer, a potência mais determinante do agir


humano. Caracteriza-se por privilegiar a realização do querer individual. É a
potência moral intrínseca à vontade de viver.
Faz parte da natureza da vontade dominar, se apropriar, buscar o próprio pra-
zer e isso signi�ca provocar dor no outro. O bem-estar de alguns, diz o �lósofo,
signi�ca o mal-estar de outros: o lucro desmedido de patrões custa suor e lá-
grimas de outros; em benefício de alguns, impõe-se trabalho duro a crianças, e
há ainda a escravidão do ser humano pelo próprio ser humano; acrescenta-se
a isso o fato da alimentação da espécie humana custar a morte de outros ani-
mais, e assim por diante.

Outro motivo que nos leva a transformar um “querer” em “ação” é a .


Enquanto, no egoísmo, agimos com vistas ao nosso próprio bem, na crueldade,
agimos visando ao mal do outro, seja um ser humano ou outros seres, como o
animal, por exemplo.

A pior feição da natureza humana permanece sendo o deleite pela desgraça alheia,
porque estreitamente aparentada à crueldade, se distingue propriamente desta ape-
nas como a teoria da prática, e localizando-se precisamente onde deveria ser o lu-
gar da compaixão, que, como seu oposto, constitui a verdadeira fonte de toda genuí-
na justiça e amor pela humanidade (SCHOPENHAUER, 1974, p. 104).

A (Mitleid) seria um terceiro motivo para agir – nesse caso, agir


pelo bem do outro. No ser humano, o egoísmo e a crueldade superam em mui-
to a compaixão.

Na compaixão, negamos essa pulsão da vontade, esse nosso “querer viver”,


agindo pelo bem de outrem; diminuímos a distância entre nós mesmos e o ou-
tro, nos identi�cando com ele. Esse é, segundo Schopenhauer, o nosso único
ato de liberdade expresso no mundo da representação, pois, compreendendo
que o outro sou eu, eliminamos as ilusões do mundo da representação: a in�-
nitude e a liberdade. , ,
, .

Liberdade e negação do livre-arbítrio


A posição de Schopenhauer sobre a liberdade é essencialmente original.
Segundo ele, as ações humanas são regidas por rigoroso determinismo, deter-
minismo esse que se deve à ação, vimos, dos “motivos” (do egoísmo, da cruel-
dade) sobre o caráter.

Tendo em vista esse determinismo, o uso prático da razão não é decisivo na


moralidade. Em outras palavras, o fundamento de toda moral é a vontade, um
suprassensível inatingível por uma razão prática.

A autêntica bondade de disposição, a virtude desinteressada e a pureza não se ori-


ginam do conhecimento abstrato, embora sem dúvida se originem do conhecimen-
to, a saber, de um conhecimento imediato e intuitivo que não pode ser adquirido ou
eliminado via raciocínio. Ora, precisamente por não ser abstrato, não pode ser co-
municado mas tem de brotar em cada um de nós (SCHOPENHAUER, 2005, p.
470-471).

A justiça e a caridade
As virtudes da justiça e da caridade são as manifestações do ato de negar a
pulsão da vontade, pois são movimentos que contrariam o sentido fundamen-
tal do “querer viver” que, como vimos, é essencialmente um voltar-se para si
mesmo, para o próprio bem-estar.

[...] quem reconhece e aceita voluntariamente o limite moral entre o justo e o injus-
to, mesmo ali onde o Estado ou outro poder não se imponha, quem, conseqüente-
mente [...] jamais, na a�rmação da própria vontade, vai até a negação da vontade
que se expõe em outro indivíduo – é JUSTO. Portanto, não in�igirá sofrimento a ou-
trem para aumentar o próprio bem-estar, vale dizer, não cometerá crimes, respeita-
rá o direito e a propriedade alheios. [...]

Vimos que a justiça voluntária tem sua origem mais íntima num certo grau de vi-
são através do principii individuationis; enquanto o injusto, ao contrário, permane-
ce completamente envolto neste princípio. Um tal olhar-através-de se dá não ape-
nas no grau exigido pela justiça, mas também em graus mais elevados, os quais
impulsionam à benevolência, à bene�cência positiva, à caridade: e isso é algo que
pode acontecer não importa o quão vigorosa e enérgica é em si mesma a vontade
que aparece em um semelhante indivíduo (SCHOPENHAUER, 2005, p. 471-473).

Todos os seres vivos somos a expressão de uma única


vontade de viver
Todo indivíduo, sentindo a vontade de viver intensamente, tende a se conside-
rar como o centro do mundo e, assim, há tantos centros do mundo quanto há
indivíduos, centros esses que se afrontam mutuamente. É a luta de todos con-
tra todos.

No entanto, tal luta é uma agressão a si mesmo, uma vez que “todos” é a ex-
pressão de uma única e mesma vontade de viver. Quando o véu de Maya (o
que representa, no pensamento hindu, a aparência ilusória que esconde a rea-
lidade propriamente dita) é levantado diante dos olhos de um ser humano, es-
te não faz mais nenhuma distinção entre si mesmo e o outro. É, então, capaz
de tomar as dores do outro como suas e sacri�car sua pessoa pelo outro.

Reconhece a si mesmo em cada ser, considera as in�nitas dores de todo ser


vivo como sendo suas próprias dores, tomando para si a miséria do mundo.
Para tal homem, não existe mais essa alternância de bem e de mal, na qual
consiste a visão da grande maioria dos homens, ainda escravos do egoísmo.
Tal homem passa a conhecer a essência de todas as coisas e perceber que elas
consistem em um �uxo perpétuo, em um esforço estéril, em uma contradição
íntima e em um sofrimento contínuo.

Schopenhauer, então, pergunta: como, conhecendo assim o mundo, pode tal


homem, por meio de incessantes atos de vontade, a�rmar a vida, ligando-se a
ela cada vez mais estreitamente, aliviando o seu peso? O �lósofo responde que,
quando isso acontece, a vontade se desliga da vida e tal homem alcança o es-
tado de abnegação voluntária, resignando-se e vivenciando a verdadeira cal-
ma e o término do querer.
Se, como exceção rara, encontramos um homem dotado de uma considerável fortu-
na, mas que usufruiu muito pouco dela, doando todo o resto aos necessitados, en-
quanto ele mesmo renuncia a muitos gozos, ao conforto, se, a partir disso, tentamos
elucidar para nós mesmos o seus atos, notaremos que, tirante no todo os dogmas
pelos quais ele mesmo quer tornar concebível seus atos à sua razão, em verdade, a
expressão simples e geral e o caráter essencial de sua conduta é que ele
ESTABELECE MENOS DIFERÊNÇA DO QUE A USUALMENTE ESTABELECIDA
ENTRE SI MESMO E OS OUTROS. Se esta diferença mesma, aos olhos de muitos, é
tão grande que o sofrimento alheio se torna para o malvado uma alegria imediata e
para o injusto um meio bem-vindo ao próprio bem-estar; e, ainda, se o homem //
justo se furta a provocar semelhante sofrimento; por �m, se em geral a maioria dos
homens sabe e conhece em sua proximidade inumeráveis sofrimentos de outros
seres sem entretanto se decidirem a aliviá-los, visto que assim sofreriam alguma
privação; se portanto, em todos esses casos, parece instituir-se em diferença pode-
rosa entre o eu pessoal e o eu alheio – ao contrário, naquele homem nobre que te-
mos em mente tal diferença é insigni�cante. O principii individuationis, a forma do
fenômeno não mais o enreda tão �rmemente, mas o sofrimento visto em outros o
afeta quase tanto como se fosse seu; procura, então, restabelecer o equilíbrio: re-
nuncia aos gozos, aceita provações para aliviar o sofrimento alheio. O homem no-
bre nota que a diferença entre si e outrem, que para o mau é um grande abismo,
pertence apenas a um fenômeno passageiro e ilusório; reconhece imediatamente,
sem cálculos, que o Em-si do seu fenômeno é também o Em-si do fenômeno alheio,
a saber, aquela Vontade de vida constitutiva da essência de qualquer coisa, que vive
em tudo; sim, que ela se estende até mesmo aos animais e à toda a natureza, logo,
ele também não causará tormento a animal algum (SCHOPENHAUER, 2005, p.
473-474).

A completa inversão da negação da vontade: o suicídio


O suicídio é, para Schopenhauer, a inversão completa dessa negação da vonta-
de descrita anteriormente.
§ 69

Nada mais difere tão amplamente da negação da Vontade de vida exposta su�cien-
temente nos limites do nosso modo de consideração, e que constitui o único ato de
liberdade da Vontade a entrar em cena no fenômeno, [...] do que a afetiva supressão
de seu fenômeno individual, na efetividade, pelo SUICÍDIO. [...] O suicida quer a vida;
porém está insatisfeito com as condições sob as quais a vive. Quando destrói o
fenômeno individual, ele de maneira alguma renuncia à Vontade de vida, mas tão-
somente à vida. Ele ainda quer a vida, quer a existência e a a�rmação sem obstácu-
los do corpo, porém, como a combinação das circunstâncias não o permite, o resul-
tado é um grande sofrimento. O suicídio, em realidade, é a obra-prima de Maia na
forma do mais gritante índice de contradição da Vontade de vida consigo mesma.
[...] O sofrimento se aproxima e, enquanto tal, abre-lhe a possibilidade de negação
da Vontade, porém ele a rejeita ao destruir o fenômeno da Vontade, o corpo, de tal
forma que a Vontade permanece inquebrantável (SCHOPENHAUER, 2005, p. 504).

O único caminho de salvação é conhecer a própria essên-


cia da vontade para suprimi-la
A salvação só se daria com a supressão da vontade, pois esta é a razão do so-
frimento e da dor. E, para suprimi-la, é necessário que a vontade apareça livre-
mente como tal. Livremente e não por violência. Isso só acontece quando a
vontade alcança o conhecimento de si mesma, libertando-se do mundo dos
fenômenos e de toda motivação, veri�cando-se, assim, o que os cristãos cha-
mam de recebimento da “Graça” e renascimento. Esse estado, em que “o desejo
se detém e se cala”, Schopenhauer chama de “bem absoluto” e seria o único
que nos liberta.
A Vontade não pode ser suprimida por nada senão o CONHECIMENTO. Por isso o
único caminho de salvação é este: que a Vontade apareça livremente, a �m de, nes-
te fenômeno, CONHECER a sua essência. Só em conseqüência deste conhecimento
pode suprimir a si mesma e, assim, também pôr �m ao sofrimento inseparável de
seu fenômeno. Isso, entretanto, não é possível por violência, como a destruição do
embrião, a morte do recém-nascido, o suicídio. A natureza conduz a Vontade à luz,
porque só na luz a Vontade pode encontrar a sua redenção. Eis por que se deve fo-
mentar de todas as formas os �ns da natureza, desde que a Vontade de vida, o seu
íntimo, tenha decidido (SCHOPENHAUER, 2005, p. 506).

§ 70

Pois exatamente aquilo que os místicos cristãos denominam EFEITO DA GRAÇA e


RENASCIMENTO é para nós a única e imediata exteriorização da LIBERDADE DA
VONTADE. Esta só entra em cena quando a Vontade, após alcançar o conhecimento
de sua essência em si, obter dele um QUIETIVO, quando então é removido o efeito
dos MOTIVOS, os quais residem em outro domínio de conhecimento cujos objetos
são apenas fenômenos. (SCHOPENHAUER, 2005, p. 515-516).

Só o conhecimento da essência do mundo como vontade permite a resigna-


ção, o desprendimento e a serenidade. O ódio e a maldade partem do egoísmo
e este advém da sujeição da inteligência ao princípio da individuação. O crité-
rio de uma ação verdadeiramente boa, dotada de valor moral seria a ausência
de toda motivação egoísta.

Em um grau superior de desenvolvimento, a justiça, a doçura e a generosida-


de, no que elas têm de mais elevado, se originam na inteligência, que compre-
ende o princípio de que, suprimindo toda diferença entre nós como indivíduos
e os outros, torna-se possível a intenção perfeitamente boa.

Na medida em que se dá a compreensão desse princípio, diz Schopenhauer,


nossa in�uência sobre a vontade cresce. O desvelamento do princípio de indi-
viduação libera o homem da distinção egoísta entre ele e o outro. Esse homem
que reconhece em cada ser o que há de mais íntimo e verdadeiro em si mesmo
é capaz de tomar para si a miséria do mundo inteiro. A partir de então, ne-
nhum sofrimento lhe é alheio e desconhecido. Todas as dores dos outros, to-
dos os sofrimentos que ele vê e que raramente pode sanar, todos os sofrimen-
tos que ele sabe possíveis pesam sobre seu coração como se fossem seus.
Tudo o toca de perto. Passa a perceber a essência das coisas como sendo o
perpétuo desenrolar do sofrimento contínuo de uma humanidade miserável e
de um universo que desaparece se transformando.

A Vontade então se desliga da vida, o homem chega “ao estado de abnegação


voluntária, de resignação, de verdadeira calma e de parada total e absoluta do
‘querer’”. (SCHOPENHAUER, 1956, p. 203-204).

A negação e a supressão do “querer” abririam uma passa-


gem para o nada
A supressão do “querer” levaria ao nada, entendendo por nada, como observa
Schopenhauer, não uma negação absoluta, mas uma negação relativa ao mun-
do como representação, mundo este que é o espelho da vontade, e que é nós
mesmos e tudo o que existe. Não mirando mais a vontade nesse seu espelho
que é o mundo, a vontade se perde no nada.
Após a nossa consideração �nalmente ter chegado ao ponto em que a negação e
supressão do querer apresentam-se diante de nossos olhos de um mundo cuja exis-
tência inteira se apresenta como sofrimento, daí se abriria uma passagem para o
NADA vazio. // Mas, sobre isso, tenho antes de observar que o conceito de NADA é
essencialmente relativo e sempre se refere a algo determinado, que ele nega. [...]
Porém, numa consideração mais acurada, não existe o nada absoluto, não existe o
nihil negativum propriamente dito, nem sequer ele é pensável; mas, de qualquer
nada deste gênero, considerado de um ponto de vista superior, ou subsumido em
um conceito mais amplo, é sempre apenas o nihil privativum. Qualquer nada o é
apenas quando pensado em relação a outro. Até mesmo uma contradição lógica é
um nada relativo: embora não seja um pensamento da razão, nem por isso é um
nada absoluto. Trata-se ali de uma combinação de palavras, de um exemplo do não
pensável, necessariamente requerido na lógica para demonstrar as leis do pensa-
mento [...].// O universalmente tomado como positivo, o qual denominamos SER, e
cuja negação é expressa pelo conceito NADA na sua signi�cação mais geral, é exa-
tamente o mundo como representação, que demonstrei como a objetividade, o espe-
lho da Vontade. Esta Vontade e este mundo são justamente nós mesmos, e ele per-
tence a representação em geral como um de seus lados. A forma desta representa-
ção é espaço e tempo; e assim, deste ponto de vista, tudo o que existe tem de estar
em algum lugar, num dado tempo. Negação, supressão, viragem da Vontade é tam-
bém supressão e desaparecimento do mundo, seu espelho. Se não miramos mais a
Vontade neste espelho, então perguntamos debalde para que direção ela se virou, e
em seguida, já não há mais onde e quando, lamentamos que ela se perdeu no nada
(SCHOPENHAEUR, 2005, p. 515-517).

O recurso à arte e à contemplação estética


Schopenhauer vê, na contemplação estética, a oportunidade de um desapego
das coisas do mundo, do egoísmo e do desejo, uma vez que o conhecimento do
belo é uma representação que não está submissa ao princípio da razão. Trata-
se de um saber intuitivo, não empírico, desvinculado de qualquer conheci-
mento interessado.

Em sua obra, já citada, O mundo como vontade e como representação e na


obra Metafísica do belo, Schopenhauer expõe sua �loso�a da arte.

Vimos que, para o �lósofo, os objetos do mundo são representações e, como


tais, estão sujeitas às formas do princípio da razão su�ciente, ou seja, o tempo,
o espaço e a causalidade, representações que são elaboradas pelo sujeito. O
próprio corpo é um objeto e os órgãos dotados de sensibilidade são os objetos
imediatos.

Vimos, também, que a Vontade é a coisa-em-si, cuja existência não depende


do sujeito e que todos os objetos são manifestações da vontade. O acesso à na-
tureza da coisa-em-si é feito pelo sujeito e não pelos objetos.

O primeiro estágio de objetivação da vontade, em que ela se manifesta como


fenômeno, é, segundo Schopenhauer, constituído do que Platão denominou
“ideias”, ou seja, os arquétipos eternos de tudo o que existe no mundo. A arte
seria a representação dessas ideias. Assim, a arquitetura representa as leis fí-
sicas, a pintura as formas dos objetos.

Em alguns homens, o conhecimento pode libertar-se da escravidão da vonta-


de, permanecendo ele mesmo, independentemente de todo alvo voluntário, co-
mo puro e claro espelho do mundo. Esses são os homens capazes de produzir
arte. A genialidade do artista consiste em reproduzir a ideia por trás de um ob-
jeto do mundo; assim, um retrato representa a ideia única e eterna do caráter
da pessoa.

A obra de arte permite que as pessoas comuns percebam essas ideias eternas,
mesmo não tendo a genialidade do artista. O saber do artista procede da von-
tade e pertence à essência dos graus mais elevados de seu processo de objeti-
vação. Compara a existência da maior parte dos homens a uma espera tola,
plena de sofrimentos inúteis, “uma marcha titubeante pelas quatro idades de
vida, funcionam sem saber por que”. A arte possuiria o poder de suprimir, ain-
da que por um tempo limitado, essa submissão do conhecimento à vontade.
Na experiência estética, absorvido em contemplação profunda, o sujeito, antes
dominado pelo querer, torna-se “sujeito puro do conhecer”, isento de vontade.

O princípio de individuação torna-se, então, inoperante; esquecemo-nos de


nossa individualidade, de nossa vontade e subsistimos como puro sujeito, co-
mo claro espelho do objeto, como se só o objeto existisse, sem ninguém que o
percebesse, sujeito e intuição confundindo-se no mesmo ser.

O sujeito, na obra de arte, forma com os objetos representados uma unidade da


essência comum de que compartilham, a vontade. A vontade passa a ser uma
só no indivíduo e no objeto contemplado. Ao elevar-se a tal contemplação, dá-
se a consciência de si mesmo como puro sujeito, tornando-se a vontade que se
conhece a si mesma.

O conhecimento, originariamente servidor da vontade, passa a ser desinteres-


sado, pois, com a supressão da individualidade, a vontade renuncia a seus
�ns.

O “belo” é, para Schopenhauer, tudo o que na arte e na natureza é capaz de cau-


sar um estado contemplativo que escape à ditadura do “querer”. Todo objeto
pode se tornar belo, caso um gênio veja nele suas ideias, �xando-as em sua
obra, tornando-as acessíveis aos demais. O grande gênio da arte é um profes-
sor de resignação, um mestre a guiar a humanidade no caminho do conheci-
mento e da renúncia à vontade tirânica.

O gênio da arte é um contemplador das ideias eternas, libertando o conheci-


mento originariamente submisso à vontade. A essência do gênio é essa apti-
dão para a contemplação absorvida no objeto, exigindo esquecimento comple-
to da personalidade e de suas relações, aptidão que permite manter-se na in-
tuição pura, aí se perdendo, libertando o conhecimento originariamente sub-
misso à vontade.

O objeto é belo quando consegue despertar no observador um estado contem-


plativo, de intuição pura, durante o qual se calam temores, esperanças, ânsias
e preocupações. Dentre as artes, a música é, para Schopenhauer, a que melhor
pode preencher essa função; é a linguagem universal que penetra a intimida-
de do indivíduo.

: existem excelentes trabalhos acessíveis na internet sobre essa relação da Ética


e da estética em Schopenhauer. Dentre outros, citamos o de João Coviello, intitulado O vín-
culo entre Ética e estética no pensamento de Schopenhauer com um olhar especial sobre a
arte contemporânea (http://www.biblioteca.pucpr.br/tede//tde_busca/arqui-
vo.php?codArquivo=477).

Schopenhauer, hinduísmo e budismo


Três são as principais in�uências recebidas por Schopenhauer, e por ele reco-
nhecidas, na elaboração de seu pensamento: os Upanishads (uma das partes
do Vedanta), Platão e Kant.

A �loso�a de KANT, portanto, é a única cuja familiaridade íntima é requerida para o


que aqui será exposto. – Se, no entanto, o leitor já freqüentou a escola do divino
PLATÃO, estará ainda mais preparado e receptivo para me ouvir. Mas se, além dis-
so, iniciou-se no pensamento dos Veda (cujo acesso permitido pela Upanixad, aos
meus olhos, é a grande vantagem que este século ainda jovem tem a mostrar aos
anteriores, pois penso que a in�uência da literatura sânscrita não será menos im-
pactante que o renascimento da literatura grega no século XV), e se recebeu e assi-
milou o espírito da milenar sabedoria indiana, então estará preparado da melhor
maneira possível para ouvir o que tenho a dizer. Não lhe soará, como a muitos, es-
tranho ou mesmo hostil. Gostaria até de a�rmar, caso não soe muito orgulhoso, que
cada aforismo isolado e disperso que constitui as Upanixad pode ser deduzido co-
mo conseqüência do pensamento comunicado por mim, embora este, inversamen-
te, não esteja lá de modo algum contido (SCHOPENHAUER, 2005, p. 23).

O pensamento de Schopenhauer se estrutura dentro daquele contexto do pen-


samento oriental hindu, fundamentado na meta do encontro de uma sabedo-
ria que se de�ne essencialmente como um “mergulhar” em si mesmo, em bus-
ca do princípio mesmo de nossos desejos, sofrimentos, prazeres (karma) e vir-
tudes (Dharma). Uma sabedoria que “transforma”, Uma sabedoria que não po-
de ser atingida pelo esforço intelectual.

Schopenhauer tomou contato com os Upanishads por meio da leitura da obra


em latim Oupnek’hat. Pode-se dizer que Schopenhauer é o único grande �ló-
sofo ocidental a assimilar ideias do pensamento oriental em seu sistema �lo-
só�co.

Diz Schopenhauer:

Os leitores da minha Ética sabem que para mim o fundamento da moral repousa
em última instância sobre aquela verdade que está expressa no Veda e Vedanta pe-
la fórmula mística tat twam asi (isto és tu), que é a�rmada com referência a todo
ser vivo, seja homem ou animal, denominando-se então o Mahavakya, o grande
verbo (SCHOPENHAUER, 1974, p. 107).
“Vedas” é uma palavra sânscrita (o sânscrito é uma das línguas o�ciais da
Índia, usada por várias religiões) que signi�ca “conhecimento”. Os Vedas são
constituídos dos livros sagrados do Hinduísmo. Vedanta, por sua vez, signi�ca
o último dos Vedas e é a essência do que entendemos, hoje, por Hinduísmo.

Sobre a frase tat twam asi (“isto és tu”), alguns dos maiores especialistas no
pensamento da Índia, como Zimmer, assim interpreta o seu signi�cado:

• “tat” signi�caria a essência eterna, ilimitada e imutável do universo;


• “twam” (ou tvam) signi�ca “tu”, é o indivíduo, ser limitado, temporal e
mutável;
• “asi” (és) verbo.

Trata-se da a�rmação da unidade do universo. A essência do pensamento dos


Vedas seria, segundo Zimmer, a busca dessa “unidade” na “multiplicidade”.
Zimmer (1991, p. 18) diz que:

A principal motivação da �loso�a védica, desde o período dos mais remotos hinos
�losó�cos (preservados nas partes mais recentes do Rig-Veda) tem sido, sem alte-
ração, a busca de uma unidade básica que fundamente a multiplicidade.

Essa teimosa persistência em buscar uma unidade na multiplicidade dos se-


res do universo vem de uma consciência mística de que tudo e todos perten-
cem, em essência, a algo Uno, gerador de toda multiplicidade. Um sentir-se
parte do Cosmo, uma experiência de si mesmo como presença e não simples-
mente como presente, ou seja, a sensibilidade ao fato de, apesar das diferenças
dos seres entre si, estarmos todos presentes, ao mesmo tempo, em comunhão
existencial.

No indivíduo limitado, temporal e mutável, encontra-se o Ãtman (o Eu, não o


ego), fundado na eterna imutabilidade que comanda o universo. O texto a se-
guir ilustra essa ideia da unidade na multiplicidade no pensamento védico:
Diz o velho sábio brâmane Aruni a seu �lho:

[...] Traze-me um �go de lá.

Aqui está, senhor.

Divide-o.

Está dividido.

Que vês aí?

Estas sementes muito pequenas.

Divide uma delas, por favor.

Está dividida.

Que vês, aí?

Absolutamente nada, senhor.

Então, disse-lhe, [o pai]: Em verdade, meu querido, esta sutilíssima essência que tu
não percebes, em verdade, meu querido, dessa sutilíssima essência é que surge esta
grande �gueira sagrada.

Acredita-me, meu querido – disse ele – isso que é a essência mais sutil, este mundo
inteiro tem isso como seu Eu. Isso é a Realidade. Isso é ãtman. Aquilo és tu.

Poderias, senhor, poderias instruir-me ainda mais!

Assim seja, meu querido – disse ele. Coloca este sal na água. Pela manhã vem ter
comigo.

Assim o fez.

Então disse-lhe o pai: O sal que puseste na água ontem à noite, traga-me aqui, por
favor.
Então ele quis pegá-lo, mas não o encontrou porque estava completamente dissol-
vido.

Por favor, sorve a água deste lado – disse-lhe {o pai}. Como está?

Salgada.

Sorve deste lado – disse-lhe. Como está?

Salgada.

Deixe-a de lado. Logo, vem ter comigo.

Ele assim o fez, dizendo: Ela é sempre a mesma!

Então, disse-lhe {o pai}: Em verdade, na realidade, meu querido, tu não podes perce-
ber o Ser aqui. Em verdade, na realidade, meu querido, Ele está aqui.

Aquilo que é a essência sutilíssima, este mundo inteiro tem

Aquilo como seu Eu. Aquilo é a Realidade. Aquilo é ãtman.

Tu, Svetaketu, és Aquilo (ZIMMER, 1991, p. 239-240).

Schopenhauer dá a essa máxima da unidade imutável e única uma dimensão


ética e moral. Para ele, ela expressa a ideia de compaixão, já vista por nós, por-
que, compreendendo que a essência do universo é única, o homem passa a
amar seu próximo, pois ambos são um só.

Conceitos do hinduísmo e do budismo surgem em toda a obra do �lósofo. No


segundo parágrafo de sua obra Parerga e paralipomena, diz:
Eis Sansara, e tudo em seu interior o anuncia: mais do que tudo, porém, o mundo
dos homens, em que moralmente dominam a maldade e a infâmia, intelectualmen-
te a incapacidade e a estupidez, em medidas assustadoras. Contudo nela se apre-
sentam, embora esporadicamente, mas sempre de novo a nos surpreender, mani-
festações da franqueza, da bondade e mesmo da generosidade, e também do enten-
dimento abrangente, do espírito pensante, e mesmo do gênio. Estas nunca se extin-
guem completamente: brilham ao nosso encontro quais pontos luminosos isolados
da grande massa obscura. Devemos tomá-las como garantia de que existe um prin-
cípio bom e redentor neste Sansara, que pode atingir o rompimento, e preencher e
libertar o todo (SCHOPENHAUER, 1974, p. 106-107).

“Sansara” signi�ca, em sânscrito, “perambulação” ou o �uxo de renascimentos


através dos mundos materiais. No Vedanta, é a transmigração do “Ãtman” (al-
ma individual ou verdadeiro “Eu”, o mais elevado princípio humano, a
Essência divina) na matéria. O ego ignorante e iludido, considerando-se dis-
tinto de tudo e de todos, peregrina por várias existências até compreender que,
na verdade, ele e a Essência divina são “Um só”.

Ao falar da Vontade de vida, diz Schopenhauer:

A Vontade de vida aparece // tanto na morte auto-imposta (Shiva), quanto no prazer


da conservação pessoal (Vishinu) e na volúpia da procriação (Brahma). Essa é a
signi�cação íntima da UNIDADE DO TRIMURTI, que cada homem é por inteiro, em-
bora no tempo seja destacada ora uma, ora outra de suas três cabeças
(SCHOPENHAUER, 2005, p. 504).

O “Trimurti” é a Trindade hindu. É constituída de:

• “Brahma”: primeira divindade do Trimurti. É o Deus (energia) de todos os


seres, tem o poder de criar por emanação. É a origem, a causa, a essência
de todo o universo.

• “Vishinu”: segunda divindade do Trimurti. É o Deus (energia) redentor,


preservador e mantenedor do universo.

• “Shiva”: terceira divindade do Trimurti. É a energia destruidora e, ao mes-


mo tempo, construtora, pois a destruição aqui é uma exigência da própria
criação. A dança de Shiva, bastante conhecida, representa as cinco ativi-
dades divinas: a criação, a conservação, a destruição, a encarnação e a li-
beração das almas.

Outra in�uência do hinduísmo no pensamento de Schopenhauer é certamente


a noção de Maya (Deusa da ilusão). Nos textos indianos mais antigos, Maya
signi�ca “arte, sabedoria, poder extraordinário”. Nos textos indianos mais re-
centes, adquiriu os signi�cados de ilusão, irrealidade, magia, imagem ilusória
e se torna o maior obstáculo para o desapego das seduções do mundo sensori-
al. Maya é a base do mundo objetivo criado pelo Absoluto (Brachman), mas de-
le se distingue.

Vimos que Schopenhauer concebe o mundo fenomênico, da representação, co-


mo ilusório. Para o �lósofo, o mundo representado pode criar a ilusão de que a
causa última dos fenômenos ou a essência do mundo representado esteja na
própria representação e que, consequentemente, nada mais existe além da re-
presentação. Cria-se, assim, uma realidade ilusória. Porém, como o caráter ilu-
sório da representação dela não advém, mas sim da vontade que governa tudo
o que existe (da vontade, vimos, advém toda objetividade, aparência, o mundo
como representação), o homem poderá romper com essa ilusão e re�etir sobre
a Vontade. Portanto, é Maya acreditar que se possa cessar o desejo que ator-
menta e traz dor, consumando-o, ou seja, objetivando-o.
§ 68

Se aquele Véu de Maia, o principii individuationis, é de tal maneira retirado aos


olhos de um homem que este não faz mais diferença egoística entre a sua pessoa e
a de outrem, no entanto compartilha em tal intensidade dos sofrimentos alheios
como se fossem os seus próprios e assim é não apenas benevolente no mais eleva-
do grau, mas está até mesmo pronto a sacri�car o próprio indivíduo tão logo muitos
outros precisem ser salvos; então, daí, segue-se automaticamente que esse homem
reconhece em todos esses seres o próprio íntimo, o seu verdadeiro si-mesmo, e des-
se modo tem de considerar também os sofrimentos in�nitos de todos os seres vi-
ventes como se fossem seus: assim toma para si mesmo as dores de todo o mundo;
nenhum sofrimento lhe é estranho.

[...] o homem que vê através do principii individuationis e reconhece a essência em


si das coisas, portanto o todo, não é mais suscetível a um semelhante consolo. Vê a
si em todos os lugares ao mesmo tempo, e se retira. – Sua Vontade se vira; ela não
mais a�rma a própria essência espelhada no fenômeno, mas a nega. O aconteci-
mento, pelo qual isso se anuncia, é a transição da virtude à ASCESE. [...] não mais
adianta amar os outros como a si mesmo, por eles fazer tanto, como se fosse por si,
mas nasce uma repulsa pela essência da qual seu fenômeno é expressão, vale dizer,
uma repulsa pela Vontade de vida, núcleo e essência de um mundo reconhecido
como povoado de penúrias (SCHOPENHAUER, 2005, p. 481-482).

Schopenhauer e Kant
São vários os temas e posições que Schopenhauer herda de Kant sobre a temá-
tica da moral. Começa por elogiar Kant por ter “puri�cado a ética de todo eu-
demonismo” (eudemonismo ou eudaimonismo, do grego eudaimonia, signi�ca
felicidade – os �lósofos da Antiguidade concebiam a felicidade como meta e
critério supremo da Ética).

Diz Schopenhauer:
O grande mérito de Kant na ética foi tê-la puri�cado de todo Eudemonismo. A ética
dos antigos era eudemonista, e a dos modernos, na maioria das vezes, uma doutri-
na da salvação. Os antigos queriam demonstrar virtude e felicidade como idênti-
cas; estas, porém, eram como duas �guras que não se recobrem, não importa o mo-
do como as coloquemos. Os modernos querem colocá-las numa ligação, não de
acordo com o princípio de identidade, mas com o de razão su�ciente, fazendo, por-
tanto da felicidade a conseqüência da virtude. No que, entretanto, tiveram de recor-
rer, quer a um outro mundo que não conhecido de modo possível, quer a so�smas.
Apenas Platão faz exceção entre os antigos: sua ética não é eudemonista, por isso,
contudo torna-se mística. Em contrapartida, até mesmo a ética dos cínicos e dos
estóicos é tão-somente um eudemonismo de tipo especial (SCHOPENHAUER, 1995,
p. 17).

No que diz respeito à questão da Ética e da moral, Schopenhauer, à semelhan-


ça de Kant, sentiu a necessidade de manter uma instância transcendental (a
instância de um princípio “a priori”). Segundo Kant, o determinismo da ciên-
cia é incompatível com a responsabilidade moral; esta só poderia ser pensada
via um saber transcendental.

Para Kant, sabemos, só podemos conhecer a coisa em nós, não a coisa-em-si.


Esta é “independente do conhecimento que temos dela”, desligada de qualquer
subjetividade. Distingue o fenômeno (a coisa em nós, a interpretação, o mundo
da representação) e a coisa-em-si. Schopenhauer assimila a noção kantiana
de coisa em si.

A instância da coisa em si seria, em ambos, a instância transcendental.


Buscaram, dessa maneira, salvaguardar a independência da dimensão ética e
moral de toda ingerência da Teologia e do conhecimento especulativo, pen-
sando a realidade do mundo e a idealidade (conhecimento especulativo) como
distintas entre si, uma vez que, com o conceito de “coisa-em-si”, mantém-se a
existência de um real distinto da instância da ideia e, consequentemente, de
todo conhecimento especulativo. Por sua vez, o conceito de “coisa-em-si” pos-
sibilitaria limitar o conhecimento ao fenômeno, abrindo espaço para a morali-
dade, isto é, para a possibilidade de postular a liberdade (Kant) ou de negá-la
(Schopenhauer).

Reencontramos, pois, em Schopenhauer o que já vimos em Kant: a presença


de uma dimensão ética propriamente dita, uma dimensão transcendental, não
passível de ser trabalhada à luz de uma razão abstrata generalizante, o que vi-
ria a corroborar, mais uma vez, a linha mestra desta obra, que é mostrar a
existência de uma distinção essencial entre o ethos com “e” longo que de�ne a
instância de uma “morada interior” da realidade, de nível transcendental, do
ethos com “e” breve, referente à “morada exterior”, dos fenômenos e fatos.

Porém, Schopenhauer irá discordar de Kant em pontos fundamentais. Assim,


por exemplo, vimos que Kant procurou mostrar que existe, no campo trans-
cendental, uma ordem superior capaz de responder pela dimensão ética e mo-
ral do ser humano e que essa ordem é a de uma razão prática. Tal razão é autô-
noma e independente de qualquer capacidade cognitiva, não necessitando
igualmente dos dados da sensibilidade. Sendo o princípio da moral puro, a pri-
ori, não se apoiando em nada empírico ou em algo objetivo do mundo exterior
ou mesmo subjetivo (sentimento, impulso ou inclinação), Kant fundamenta a
lei moral na sua própria forma, que é a da legalidade, universal para todos.

Embora Schopenhauer concorde com a distinção kantiana entre fenômeno e


coisa-em-si, essa concepção kantiana da dimensão transcendental como sen-
do a de uma razão prática, porém, signi�cará para Schopenhauer uma recaída
no dogmatismo. Segundo ele, o imperativo categórico, base da razão prática
ou moral em Kant, não contemplaria o sentido moral da ação humana, uma
vez que a razão não é fator decisivo na moralidade, ou seja, ser dotado de razão
e utilizá-la adequadamente não é ser necessariamente moral. Muitos indiví-
duos, observa, usam corretamente a razão e, no entanto, cometem ações não
morais. Para Schopenhauer, a razão, pelo contrário, aprimora os recursos imo-
rais, por meio dos quais os homens abusam e exploram uns aos outros.

Ainda, em sua crítica à Kant, Schopenhauer observa que cabe à re�exão �lo-
só�ca sobre o ético buscar o esclarecimento do dado, isto é, daquilo que o com-
portamento ou a ação éticos são e não de como deveriam ser, como o faz Kant.
O “próton pseudós” [primeiro passo em falso de Kant] está no seu conceito da pró-
pria ética que encontramos exposto de modo mais claro (p. 62): “numa �loso�a prá-
tica não se trata de dar fundamentos daquilo que acontece, mas leis daquilo que de-
ve acontecer, mesmo que nunca aconteça”. Isto já é uma “petitio principii” [petição
de princípio] decisiva. Quem nos diz que há leis às quais nossas ações devem
submeter-se? Quem vos diz que deve acontecer o que nunca acontece? O que vos dá
o direito de antecipá-lo e logo impor uma ética na forma legislativo-imperativa co-
mo a única para nós possível? Digo, contrapondo-me a Kant, que em geral tanto o
ético quanto o �losó�co têm de contentar-se com o esclarecimento do dado, portan-
to com o que é, com o que acontece realmente, para chegarem ao seu entendimento,
e que eles aí têm muito o que fazer, muito mais do que foi feito desde há séculos até
hoje. De acordo com a acima citada “petitio principii” kantiana, admite-se no
Prefácio referente ao tema, antes de qualquer investigação, que existem leis morais
puras; depois, tal suposição continua �rme e é a mais profunda fundamentação de
todo o sistema. No entanto, queremos antes investigar o conceito de uma lei. O seu
signi�cado próprio e originário limita-se à lei civil (“lex”, “nomos”), uma instituição
humana que repousa sobre o arbítrio humano. O conceito de lei tem um signi�cado
segundo, tropológico (�gurativo) e metafórico, quando aplicado à natureza, cujos
modos de proceder conhecidos em parte “a priori”, em parte dela apreendidos “a
posteriori”, que se mantêm sempre constantes, nós os chamamos metaforicamente
leis da natureza. É apenas uma parte bem pequena dessas leis da natureza que se
dá a ver “a priori”, e é isto que constitui o que Kant isolou de modo perspicaz e exce-
lente e reuniu sob o nome de Metafísica da natureza. Para a vontade humana existe
também por certo uma lei, desde que o homem pertence à natureza, e mesmo uma
lei estritamente demonstrável, inviolável, sem exceções, irrevogável, que não traz
consigo nenhuma necessidade “vel quase” (de uma certa maneira) como o impera-
tivo categórico, mas uma necessidade efetiva (SCHOPENHAUER, 1995, §4, p. 23).

É essencial à Ética como �loso�a manter uma atitude contemplativa e não


prática, inquirindo e não prescrevendo regras ou buscando moldar o caráter.
§ 53

Na minha opinião, contudo, toda a �loso�a é sempre teórica, já que lhe é sempre es-
sencial manter uma atitude puramente contemplativa [...], e sempre inquirir, em
vez de prescrever regras. Tornar-se prática, conduzir a ação, moldar o caráter: eis aí
pretensões antigas que uma intelecção mais perspicaz fará por �m a �loso�a
abandoná-las. Pois aqui, quando se trata do valor ou da ausência de valor da exis-
tência, da salvação ou da perdição, os mortos não decidem, e sim a essência mais
íntima do homem: seu demônio que o conduz e que ele mesmo escolheu (como diz
Platão) em vez de ser escolhido, seu caráter inteligível, como // Kant se expressa. A
virtude é tão pouco ensinada quanto o gênio; sim, para ela o conceito é tão infrutí-
fero quanto para a arte e em ambos os casos deve ser usado apenas como instru-
mento. Por conseguinte, seria tão tolo esperar que nossos sistemas morais e éticos
criassem caracteres virtuosos, nobres e santos, quanto que nossas estéticas produ-
zissem poetas, artistas plásticos e músicos (SCHOPENHAUER, 2005, p. 354).

Schopenhauer foi um dos mais in�uentes pensadores, sobretudo até a segun-


da metade do século 20. Porta-voz do irracionalismo (corrente �losó�ca que
sustenta que, quanto mais supera os limites do racional, mais o homem é ca-
paz de apreender a realidade), combateu o racionalismo absoluto do idealismo
de Hegel (1770-1831), segundo o qual a contradição entre racional e irracional
não é senão aparente, pois a razão se realiza no e pelo seu contrário, o irracio-
nal.

Alguns se referem a Schopenhauer como o “�lósofo sem público”. De fato, o re-


conhecimento de sua obra demorou bastante a chegar. Talvez essa demora se
deva ao fato de que sua obra, como muitos observam, não se enquadra em ne-
nhuma das �loso�as vigentes. Porém, sua in�uência foi grande:

• Freud (1856-1939, médico neurologista judeu-austríaco) reconheceu que a


análise da repressão (processo de fuga e condenação de impulsos do ins-
tinto no consciente) fora feita antes dele por Schopenhauer;
• nas artes, particularmente na música, o famoso Richard Wagner
(1813-1883, compositor alemão) declarou ter escrito a ópera Tristão e
Isolda como reação à leitura de Schopenhauer;
• na literatura, in�uenciou Léon Tolstoi (1828-1910, escritor russo), Anton
Tcheckov (1860-1904, escritor russo), Émile Zola (1840-1902, escritor fran-
cês) e outros, inclusive o nosso Machado de Assis, no que concerne sobre-
tudo ao sentimento de uma inexorabilidade do destino, como observa
Eugênio Gomes (1897-1972, crítico literário brasileiro).

E Nietzsche, o �lósofo que estudaremos a seguir, disse tornar-se �lósofo devi-


do à leitura de Schopenhauer, a quem chamava de “cavaleiro solitário”.

Além dessa leitura, assista também ao vídeo a seguir:

4. A Ética de Nietzsche: a transvaloração dos


valores
Fascinado pela leitura de Schopenhauer, Friedrich Nietzsche (1844-1900) vê a
vida como irracionalidade cruel e cega, destruição e dor. Por isso, acredita que
apenas a arte possa oferecer ao indivíduo força e capacidade para enfrentar a
dor, fazendo-o dizer sim à vida. No entanto, quando percebe a solução ofereci-
da por Schopenhauer para a redenção da dor - a inibição da vontade e do que-
rer -, Nietzsche se afasta do seu pensamento: para ele, o pensamento de
Schopenhauer apresenta a resignação e a renúncia mais como fuga da vida do
que como "vontade de tragicidade" (ou vontade de potência). Ou seja, ao renun-
ciar à vontade através da ascese, Schopenhauer também acabou negando a
vida e tornando-se apenas mais um herdeiro da interpretação cristã.

Como alternativa, seguiu adiante em seu projeto de potencializar, e não supri-


mir a vontade. Para tanto, o critério adotado foi o "critério da vida". O que ele
signi�ca? Questionar e identi�car que valores atribuídos às coisas fortalecem
nosso "querer-viver" e quais o degeneram. O objetivo é justamente questionar
os valores para saber o que nos fortalece vitalmente e o que nos enfraquece.

Como método de decifração, Nietzsche propõe a Genealogia da Moral, que bus-


ca entender o processo de formação de uma determinada verdade eterna ou
metafísica, como também os interesses que estavam em jogo no momento de
sua origem. Ou seja, a genealogia tenta descobrir (no processo de formação de
uma ideia) aquilo que não foi dito e que permitiu transformar determinados
conceitos em verdades absolutas e eternas.

A questão da imposição dogmática do discurso não implica apenas na evidên-


cia de uma pretensa verdade, mas também no abafamento de outras possíveis
verdades concorrentes. Nesse sentido, pelo fato da visão unitária da moral e
da metafísica colocar-se como correta, sua versão idealizada acaba imediata-
mente banindo todas as interpretações restantes, rotulando-as como errada
ou heréticas.

Prevalece assim, na formação da cultura ocidental, a questão do 'dogma da es-


sência', usada estrategicamente para sufocar outras concepções contrastantes
de mundo. No texto Verdade e Mentira no Sentido Extramoral, Nietzsche é
bem claro quando a�rma que a verdade é, portanto, uma interpretação que
perdeu o status de circunstancial e, no lugar, atribuiu-se um caráter eterno:

O que é, portanto, a verdade? Uma multidão móvel de metáforas, metonímias e an-


tropomor�smos; em resumo, uma soma de relações humanas que foram realçadas,
transpostas e ornamentadas pela poesia e pela retórica e que, depois de um longo
uso, pareceram estáveis, canônicas e obrigatórias aos olhos de um povo: as verda-
des são ilusões das quais se esqueceu que são, metáforas gastas que perderam a
sua força sensível, moeda que perdeu sua efígie e que não é considerada mais co-
mo tal, mas apenas como metal (NIETZSCHE, 2001, p. 13).

Por isso, a genealogia da moral não é simplesmente a busca do ponto inicial


da questão do ressentimento, mas o mapeamento de uma con�guração (ou jo-
go de forças) que, ao longo da história, modi�cou o signi�cado de um conceito
e assumiu, consequentemente, uma 'protoidentidade', no caso, ilegítima e in-
versa daquilo que era constituída em sua origem (NIETZSCHE, 2010, p. 12).
Para Nietzsche, a criação das grandes ideologias (como por exemplo a moral
religiosa) só serviram para dar ao homem a condição de "escravo", impondo
regras transcendentais em detrimento da própria natureza humana. Para
Nietzsche o que importa é a Vontade de potência do ser humano.

Desta forma, a tarefa da �loso�a passa a ser então a de interpretar os interes-


ses e os valores que estão ocultos atrás das verdades que se dizem eternas.
Conferir sentidos também é conferir valores. Por isso, o conhecimento é uma
interpretação feita a partir de uma determinada escala de valores que ser pro-
mover ou ocultar (ARANHA; MARTINS, 2009).

5. Wilhelm Friedrich Nietzsche (1844-1900)


Nietzsche nasceu de uma família de clérigos, sendo seu pai ministro protes-
tante; �cou órfão de pai ainda bem jovem e foi educado por sua mãe e por sua
irmã mais velha.

Aos 25 anos, após estudos brilhantes de Filologia e Teologia, é nomeado pro-


fessor na Universidade de Basiléia (Suíça), na fronteira com a Alemanha e
França, onde lecionou de 1869 a 1879.

Dois acontecimentos in�uenciaram grandemente Nietzsche em sua maneira


de pensar: a leitura, quando estudante, da obra O mundo como vontade e como
representação, de Schopenhauer, e sua amizade com o grande compositor
Richard Wagner.

Segundo estudiosos, Schopenhauer in�uenciou Nietzsche de diversas manei-


ras – por exemplo, no sentido de:

• buscar uma nova maneira de ver o mundo, diferente dos valores morais
escravos de uma visão metafísica;
• pensar sob o modelo da vida;
• subordinar o intelecto à vontade;
• considerar a vontade como cega e arbitrária e, em consequência, o mun-
do como caótico e despojado de todo e qualquer caráter divino;
• considerar a arte como sendo, em sua essência, uma liberação ou afasta-
mento de todo processo racional.

Alguns autores observam, ainda, que o fato de Schopenhauer, como os gregos


antigos, estabelecer uma relação entre o gênio e a loucura levará Nietzsche a
uma atitude particular com relação à sua própria condição de doente com dis-
túrbios mentais. Possuía uma visão de toda doença como sendo apenas um
exagero dos fenômenos normais da vida. Não haveria, dessa maneira, diferen-
ça de essência entre o normal e o patológico – a diferença seria apenas de
grau. Chega a conceber como consequência de sua vivência de distúrbios
mentais sua visão da vida como “vontade de potência”.

Para Schopenhauer, vimos, a capacidade de captar o essencial e torná-lo obje-


to da arte é uma característica do gênio. Associa essa capacidade ao fato do
intelecto sair do âmbito das coisas particulares e apreender o universal no que
existe (O mundo como vontade e como representação, Tomos I e II). Essa ca-
racterística do gênio seria contrária à própria natureza humana, na qual, se-
gundo Schopenhauer, a razão ou intelecto está a serviço da vontade e, por essa
razão, o gênio seria muito mais susceptível a um desequilíbrio diante dos afe-
tos e paixões.

Nietzsche e a questão da moral


Em sua obra La généalogie de la morale (1971, p. 56, tradução nossa), Nietzsche
expressa o quanto considera importante e central a questão da moral para os
�lósofos e cientistas.
Observação. Aproveito a ocasião que me dá esta dissertação para formular publica-
mente e expressar um desejo que não expus até o momento presente senão eventu-
almente em meus diálogos com os cientistas: que uma faculdade de Filoso�a ad-
quire mérito ao encorajar, por meio de concursos acadêmicos, os estudos de histó-
ria da moral: quem sabe este livro possa dar um rigoroso impulso nesse sentido.
Em vista de tal eventualidade, proponho a questão seguinte, merecedora da aten-
ção não apenas dos �lósofos propriamente ditos, mas também dos �lólogos e histo-
riadores.

Quais indicações a linguística e, sobretudo, a etimologia nos fornecem para a histó-


ria da avaliação dos conceitos morais?

Por outro lado, não é certamente menos interessante obter a participação de �siolo-
gistas e de médicos no estudo desses problemas (concernentes ao valor das avalia-
ções que se deram até o momento presente). [...] De fato todo o repertório de valores,
todos os “tu deves” que a história ou a etnologia conhecem teriam necessidade an-
tes de mais nada de ser esclarecidos e interpretados pela �siologia mais ainda do
que pela psicologia; todos reclamam também a crítica das ciências médicas. A
questão de saber o que vale tal ou tal lista de valores, esta ou aquela moral, deman-
da que sejam colocadas sob as perspectivas as mais diversas; principalmente, não
se analisará com su�ciente escrúpulo a questão “bom por quê?”. [...] O bem-estar da
maioria e o bem-estar da minoria são critérios de avaliação opostos: acreditar que o
primeiro possui em si um valor superior é o que deixaremos à ingenuidade dos bio-
logistas ingleses. Todas as ciências a partir de agora têm a preparar a tarefa do �ló-
sofo, entendendo por esta tarefa o seguinte: ao �lósofo cabe resolver o problema do
valor, cabe determinar a hierarquia dos valores.

O “espírito histórico” escaparia aos historiadores e aos �lósofos

Nietzsche acusa a �loso�a de até então considerar a realidade desprovida da


dimensão histórica, do “vir a ser”. Desconsiderando a dimensão histórica, tor-
nam a realidade uma “sub specie aeterni” (uma subespécie do eterno). Toda
mudança é por eles refutada, diz o �lósofo, “o que é não vem a ser; o que vem a
ser não é”.

Tomando como exemplo o conceito de “bom”, Nietzsche procura mostrar que a


origem do conceito moral de “bom”, apresentada por historiadores e �lósofos,
contém sinais de reações pessoais ou características dos psicólogos ingleses,
os quais atribuem à “utilidade”, ao “esquecimento”, ao “hábito” e ao “erro” a
condição de base de um valor, no caso, o valor moral “bom”.
Na origem, decretam eles, as ações desinteressadas foram louvadas e denominadas
boas por aqueles em favor dos quais elas tinham sido realizadas, consequentemen-
te para aqueles aos quais tinham sido úteis; mais tarde, esquecendo que tinham
provindo do elogio, simplesmente sentiu-se como boas as ações não egoístas por-
que tinham sido por hábito sempre louvadas como tais, como se elas fossem algo
de bom em si (NIETZSCHE, 1971, p. 21, tradução nossa).

Argumenta que tal teoria vai buscar onde não se encontra a verdadeira mora-
da do conceito de “bom”, geneticamente falando.

[...] o julgamento de “bom” não vem daquilo com relação ao qual manifesta-se a
“bondade”. São os próprios “bons”, isto é, os nobres, os poderosos, os homens de
condição superior e de alma elevada, que se sentiram eles mesmos bons e conside-
raram seus atos bons, ou seja, de primeira ordem, em oposição a tudo que é baixo,
mesquinho, comum e vulgar (NIETZSCHE, 1971, p. 21, tradução nossa).

A formação universitária básica de Nietzsche foi a Filologia (ciência que estu-


da uma língua, literatura, cultura ou civilização sob uma visão histórica). Para
ele, o verdadeiro método para encontrar o surgimento dos conceitos de “bom”
e “mau” é o da etimologia. Referindo-se às expressões de bom e mau em diver-
sas línguas, diz:

[...] encontrei que todas remetem à mesma transformação dos conceitos, em todas
elas “distinto”, “nobre”, no sentido de classe social, é o conceito fundamental de on-
de nascem e se desenvolvem necessariamente as ideias de “bom” signi�cando “al-
ma distinta” e “nobre” no sentido de “alma superior”, de “alma privilegiada”. Essa
evolução se faz paralelamente àquela que acaba por transformar as ideias de “co-
mum”, “popular”, “vil”, na de “mau” (NIETZSCHE, 1971, p. 24, tradução nossa).

Diante de tais fatos que mostram a origem de julgamentos de valor destinados


a estabelecer hierarquias, falar de utilidade, conclui Nietzsche, seria apresen-
tar a sensibilidade pobre de uma inteligência calculadora.
Como acabo de dizer, o pathos da nobreza e da distância, sentimento geral tão fun-
damental, tão preponderante, tão vivaz em uma espécie superior e dominante em
suas relações com uma espécie inferior, com algo “embaixo” – eis a origem da opo-
sição entre “bom” e “mau” (NIETZSCHE, 1971, p. 22, tradução nossa).

: pathos é uma palavra grega que signi�ca paixão, assujeitamento. Esse concei-
to foi cunhado por Descartes para designar algo que acontece ou o que é passivo de um
acontecimento. Nietzsche quer signi�car, com essa palavra, a distância e o domínio que
acontece entre a classe nobre e a classe baixa e inferior dos seres humanos.

Na origem da oposição “bom e mau”, portanto, não haveria, “a priori”, ligação


necessária entre a palavra “bom” e as ações não egoístas, como querem os ge-
nealogistas da moral. É apenas quando os julgamentos de valor aristocráticos
declinam que se impõe, pouco a pouco, a famosa oposição “egoísta”/“não
egoísta”.

Não há fatos morais, todo julgamento moral é falso

De sua análise etimológica de valores como a origem do “bom” e do “mau”,


Nietzsche conclui que não existem fatos morais, porém todo julgamento moral
é um “sintoma” – sintoma aqui não no sentido médico da palavra, mas no sen-
tido de um signi�cante (o que signi�ca) sem nenhum signi�cado �xo. Cabe ao
�lósofo situar-se além do bem e do mal, colocar-se acima da ilusão do julga-
mento moral. O julgamento moral e o religioso têm em comum o fato de cre-
rem em realidades que não existem.
Sabe-se o que exijo do �lósofo: colocar-se além do bem e do mal – colocar abaixo a
ilusão do julgamento moral. Essa exigência é o resultado de um exame que realizei
pela primeira vez: cheguei à conclusão de que “não há fatos morais”. O juízo moral
tem em comum com o juízo religioso crer em realidades que não existem. A moral
não é senão a interpretação de certos fenômenos, mas uma falsa interpretação. O
juízo moral pertence, como o juízo religioso, a um grau de ignorância em que a no-
ção de realidade, a distinção entre o geral e o imaginário nem mesmo existem; de
maneira que, em um tal grau, a “verdade” designa coisas que chamamos hoje de
“imaginação”. Eis porque o juízo moral não deve nunca ser tomado ao pé da letra:
literalmente ele seria sempre um contrassenso. Mas como “linguagem” permanece
inestimável: revela, pelo menos para aquele que sabe, as realidades mais preciosas
sobre culturas e talentos de gênio que não “sabiam” o bastante para “compreender”
a eles mesmos. A moral não é senão a linguagem dos sinais, uma sintomatologia: é
preciso saber do “que” se trata para poder se bene�ciar (NIETZSCHE, 1952a, §17, p.
126, tradução nossa).

Não há consciência moral, toda consciência nada mais é do que um acidente

Segundo Descartes, a consciência é o centro do “eu”, seu núcleo substancial, e


o “eu” subjetivo é o “eu” pensante. A consciência, para Nietzsche, é um aciden-
te, não é o essencial da subjetividade. De acordo com Nietzsche, nós nos deixa-
mos enganar quando achamos que é o nosso “eu” que pensa e, mais, que o su-
jeito da frase “eu penso” seja uma substância ou algo em si. Em seu livro Além
do bem e do mal, observa que um pensamento não vem senão quando quer e
não porque é o eu quem quer: “Alguma coisa pensa, mas acreditar que esta
coisa seja o ‘eu’ é pura suposição”.

Além disso, observa que o caráter “geral” do conceito não é capaz de expressar
a singularidade da subjetividade e esta, por sua vez, jamais coincide com ela
mesma: quando digo “eu”, expresso o que tenho em comum com todos os ou-
tros “eu”.

De fato, o projeto genealógico de Nietzsche destrói a noção do “eu” como sujei-


to autoconsciente e uno (ver, no tópico E-referências, o texto A noção da disso-
lução do sujeito em Nietzsche, de Ângela Zamora).

Investigando a história da humanidade, Nietzsche procura mostrar que o sur-


gimento da autoconsciência, do pensamento e da linguagem é de natureza
histórica. Para sobreviver, o ser humano teve que se reunir a outros seres hu-
manos, formando agrupamentos. Surgiu, então, a necessidade de se comuni-
car com o outro e, para tanto, faz-se necessário saber quem se é, o que se quer.
É dessa relação do humano com o humano que decorreriam a consciência, o
pensamento e a linguagem.

Consequentemente, a consciência faz parte da existência em comunidade, da


existência à maneira “de rebanho” e a subjetividade não mais se identi�ca
com uma natureza humana imutável; pelo contrário, o processo de conscienti-
zação no homem está em constante mobilidade, sendo que essa conscientiza-
ção é cada vez maior.

O critério para a busca de valores é a “vida” e a vida é “von-


tade de poder”
Os valores reais, para Nietzsche, não decorrem de algo, são “inventados”. Há
que buscá-los em seu emergir, em sua proveniência através da história e o cri-
tério é a “vida” e a vida é “vontade de poder”. Uma vontade de poder que é or-
gânica e própria a todo ser vivo, uma busca constante por mais vida, por
apropriar-se, dominar.

Uma vontade de poder que se estrutura em uma relação de mandar e obede-


cer. A vida é apropriação e sujeição daquele que é o mais fraco. É opressão, du-
reza, exploração. Todo comportamento humano é motivado pela busca do po-
der e tal poder se manifesta como independência, criatividade e originalidade
no “além-do-homem”, super-homem, conforme expressão criada pelo �lósofo.
A vida é um jogo de forças, é vontade de poder, desejo permanente de intensi�ca-
ção, de ultrapassagem em direção a mais poder, seja na oposição entre duas forças,
seja no interior de uma mesma força. Essa vontade de crescimento não se reduz ao
instinto de conservação, pois a a�rmação de sua força pode levar um ser vivo a co-
locar em causa sua própria conservação, o que Nietzsche interpreta como uma li-
mitação da vontade de viver. Dentre essas forças, umas são ativas, capazes de se
a�rmar sem se opor a outras forças, outras são reativas, só se opõem mutilando as
demais. O ideal de Nietzsche consiste em a�rmar seus valores sem a preocupação
de justi�cação. Sócrates, ao contrário, é o protótipo do homem reativo, pois que ao
erro opõe o verdadeiro; ao mal, o bem, etc. (ROUX-LANIER, 1995, p. 473, tradução
nossa).

Nenhum juízo pró ou contra a vida pode ser verdadeiro.

Juízos, apreciações pró ou contra a vida, não podem em última instância ser verda-
deiros: não têm outro valor senão o de ser sintomas, não contam senão como sinto-
mas – em si tais juízos são estupidez. É preciso alcançar esta “sutileza” de compre-
ender que “o valor da vida não pode ser apreciado”. Nem por aquele dotado de vida,
porque ele é parte, é mesmo objeto de litígio e não de julgamento: nem por um mor-
to, por outra razão. Da parte de um �lósofo, ver um problema no “valor” da vida con-
siste em uma contradição, em um ponto de interrogação com relação ao seu saber,
uma falta de sabedoria. Como? E todos estes grandes sábios – teriam eles sido não
somente “decadentes”, mas ainda teriam eles sido verdadeiramente sábios?
(NIETZSCHE, 1952a, p. 96-98, tradução nossa).

Contra toda dialética


Em sua obra Crepúsculo dos ídolos, Nietzsche ataca a forma de pensamento
que predominou no pensamento ocidental e que se inicia com Sócrates.
Sócrates, para Nietzsche, é o inventor do homem teórico ou dialético, que se
contrapõe ao aristocrata grego cuja nobreza se impunha de si mesma, sem
justi�cativa. O homem dialético reclama sempre a prova de tudo que se a�r-
ma.

Toda deliberação argumentada é condenada pelo �lósofo, porque nela se daria


o desaparecimento da solidariedade tradicional, instintiva nos antigos hele-
nos (gregos), responsável por sua força e saúde. A origem dessa decadência
que leva ao mundo moderno estaria na vitória da dialética socrática sobre o
sentido do trágico dos antigos gregos. Vitória de Sócrates que Nietzsche atri-
bui ao triunfo das forças reativas sobre as forças ativas. É, portanto, um sinto-
ma da decadência. Antes de Sócrates, observa, a sociedade grega considerava
falta de boas maneiras buscar, justi�car, argumentando dialeticamente, pois o
que precisa ser demonstrado não têm valor. Aquele que, em vez de comandar,
usa da dialética para demonstrar suas razões seria, segundo Nietzsche, um
“polichinelo”, isto é, alguém que não é levado a sério. “Sócrates foi o polichine-
lo que se tomou a sério”.

Com Sócrates, a tendência do pensamento grego se altera em favor da dialética: o


que é que se passa exatamente? Antes de mais nada trata-se de uma vitória sobre
uma tendência nobre; com a dialética o povo alcança a posição mais alta. Antes de
Sócrates, discursos dialéticos eram eliminados da boa sociedade: eram considera-
dos como capazes de corromper a juventude. Descon�avam também de todos aque-
les que argumentassem de tal maneira. [...] O que precisa ser demonstrado, não vale
grande coisa. Em todo lugar onde a autoridade ainda está de acordo com as normas
sociais, em todo lugar onde não se “discute”, mas se comanda, aquele que exerce a
dialética é uma espécie de polichinelo; é motivo de riso, não é tomado a sério –
Sócrates foi o polichinelo que “conseguiu ser tomado a sério” (NIETZSCHE, 1952a, p.
96-98, tradução nossa).

A moral vigente corresponde ao instinto de rebanho no indivíduo

Os valores tradicionais representam, para Nietzsche, uma moralidade escrava,


uma moralidade criada por indivíduos fracos e ressentidos que, por interesse,
estimularam comportamentos bondosos.

Nietzsche distingue duas classes de seres humanos: a dos senhores e a dos es-
cravos. A classe dos senhores compreende a dos guerreiros (aristocrática) e a
sacerdotal. A classe sacerdotal deriva da classe guerreira ou aristocrática,
caracterizando-se, porém, pela impotência: em vez de praticar as virtudes do
corpo, como a classe aristocrática, inventa virtudes.

Da rivalidade destas duas classes surgem dois tipos de moral: a dos senhores
e a dos escravos. A classe dos guerreiros é dominante, a sacerdotal é débil e
enferma. A classe sacerdotal reage invertendo os valores aristocráticos, crian-
do uma moral escrava que teve início com o povo judeu e foi herdada e assu-
mida pelo cristianismo.
É a moral surgida do ressentimento, segundo a qual a força que o forte, sendo
livre, exterioriza, é algo ruim, pois destrói os mais fracos. Nesse processo de
“transvalorização”, transformam impotência em bondade; baixeza em humil-
dade; covardia em paciência; miséria em prova bem-aventurada dos eleitos e
cria-se a noção de “justiça”. A “invenção” da moral foi uma defesa contra os
poderosos.

Os valores tradicionais representam, assim, para Nietzsche, uma moralidade


escrava, uma moralidade criada por indivíduos fracos e ressentidos que, por
interesse, estimularam comportamentos bondosos.

O mundo chamado pela �loso�a de “verdadeiro” não passa de uma ilusão de


ordem moral

Estamos habituados, diz Nietzsche, a considerar como verdadeiro só o estável,


o que permanece uno, idêntico a si mesmo. Dá como exemplo Platão, que situa
a verdadeira realidade no domínio inteligível, o mundo das Ideias, em oposi-
ção à diversidade sensível, sempre mutante, considerando esta como aparên-
cia.

Essa determinação da essência da verdade, que se apresenta como evidente,


não o é, diz Nietzsche; supõe uma separação e uma avaliação (julgamento mo-
ral) que implica uma rejeição do sensível e do múltiplo, ou seja, da vida em to-
da a sua riqueza.

O problema da ciência é um problema moral


Em sua obra A Gaia Ciência, Nietzsche diz que, no domínio da ciência, as con-
vicções não têm lugar. Só quando assumem a forma de hipótese experimental
conseguem acessar o domínio do conhecimento. Isso signi�caria dizer que a
convicção só adquire o direito de pertencer à ciência quando deixa de ser uma
convicção. Acontece, observa o �lósofo, que a ciência ou disciplina do espírito
começa sempre a partir de convicções. Podemos concluir que a própria ciên-
cia se baseia em uma crença, a da necessidade de postular, e a necessidade de
se fazer ciência se funda em outro postulado: “nada é mais necessário do que a
verdade”.
Mas, “o que é esta vontade absoluta de verdade”? Querer a verdade, observa
Nietzsche, pode ser secretamente querer a morte; quem quer intensamente a
verdade, a�rmando sua fé na ciência, a�rma por isso mesmo a existência de
outro mundo que não é o da vida, o da natureza e o da história, o que signi�ca-
ria necessariamente negá-los. O problema da ciência seria, então, um proble-
ma moral.

É dito com justa razão que no domínio da ciência as convicções não têm direito de
ser consideradas, somente quando submetidas às formas provisórias da hipótese,
do ponto de vista experimental, da �cção reguladora, podemos conceder-lhes aces-
so ao domínio do conhecimento e reconhecer nelas um certo valor – com a condi-
ção de que permaneçam, porém, sob vigilância policial, sob o controle da suspeita.
Mas, isso não signi�ca no fundo dizer que é unicamente quando a convicção “ces-
sa” de ser convicção, que ela pode adquirir direito de cidadania na ciência? A disci-
plina do espírito cientí�co não começaria somente com a recusa de toda convic-
ção? [...] É provável; resta saber se a existência de uma convicção não é indispensá-
vel para que essa disciplina possa ela mesma começar, e se a existência de uma
convicção não seja tão imperiosa, tão absoluta que obrigue todas as outras a se sa-
cri�car a ela? Vê-se, por isso, que a própria ciência se baseia em uma crença; não
há ciência sem postulado. “A ciência é necessária?”. É preciso, para que ela pudesse
vir a existir, que essa questão fosse antes respondida não apenas a�rmativamente,
mas a�rmativa a tal ponto que ela expressasse este princípio, esta fé, esta convic-
ção: “Nada é mais necessário do que o verdadeiro”; nada, em seu valor, tem impor-
tância senão secundária. “O que é esta vontade absoluta de verdade?”. [...]

“Querer o verdadeiro” poderia ser, secretamente, querer a morte. [...] Sem nenhuma
dúvida, quem vê o verdadeiro, no sentido intrépido e supremo que supõe a fé na ci-
ência, “a�rma por esta mesma vontade outro mundo” que não o da vida, da nature-
za, da história; e na medida em que a�rma este “outro mundo” não nega necessari-
amente, por este fato mesmo, o seu antípoda: este mundo, o nosso? (NIETZSCHE,
1950, § 344, p. 286-289, tradução nossa).

A crítica ao cristianismo e à democracia


Ao criticar toda argumentação, Nietzsche se opõe igualmente à democracia.
Segundo ele, esse regime político seria a última etapa da decadência histórica
que se iniciou com Sócrates e, conduzida pelo judaísmo e pelo cristianismo,
chega às ideias presentes na Revolução Francesa.
Na obra Crepúsculo dos ídolos, o �lósofo elabora uma crítica do cristianismo
como origem da democracia. A ideia de imortalidade pessoal destrói toda ra-
zão e toda natureza do instinto, ou seja, tudo que é vital. O cristianismo deve
sua vitória a essa lamentável adulação da vaidade pessoal: a “salvação da al-
ma”, isto é, “o mundo gira ao redor de mim”. A doutrina cristã da igualdade de
direitos, de que a salvação é para todos, consiste, para Nietzsche, no maior e
mais malvado atentado contra a humanidade “nobre”. Ninguém mais tem co-
ragem de reivindicar privilégios e o poder de dominação.

Transmitida ao longo das gerações a partir de Sócrates e via cristianismo, os


direitos dos homens, o liberalismo e o socialismo, essa preocupação de igual-
dade é uma vontade reativa que mutila a vida, negando as diferenças.
Quando o centro de gravidade da vida é colocado, não nela mesma, mas no “além”
– no nada –, então se retirou da vida o seu centro de gravidade. A grande mentira
da imortalidade pessoal destrói toda razão, todo instinto natural – tudo que há nos
instintos que seja bené�co, vivi�cante, que assegure o futuro, agora é causa de des-
con�ança. Viver de modo que a vida não tenha sentido: agora esse é o “sentido” da
vida [...] Para que o espírito público? Para que se orgulhar pela origem e antepassa-
dos? Para que cooperar, con�ar, preocupar-se com o bem-estar geral e servir a ele?
[...] Outras tantas “tentações”, outros tantos desvios do “bom caminho”. – “Somente
uma coisa é necessária” [...] Que todo homem, por possuir uma “alma imortal”, te-
nha tanto valor quanto qualquer outro homem; que na totalidade dos seres a “salva-
ção” de todo indivíduo possa reivindicar uma importância eterna; que beatos insig-
ni�cantes e desequilibrados possam imaginar que as leis da natureza são constan-
temente transgredidas em seu favor – não há como expressar desprezo su�ciente
por tamanha intensi�cação de toda espécie de egoísmos ad in�nitum, até a inso-
lência. E, contudo, o cristianismo deve o seu triunfo precisamente a essa deplorável
bajulação de vaidade pessoal – foi assim que seduziu ao seu lado todos os malogra-
dos, os insatisfeitos, os vencidos, todo o refugo e vômito da humanidade. A “salva-
ção da alma” – em outras palavras: “o mundo gira ao meu redor” [...] A venenosa
doutrina dos “direitos iguais para todos” foi propagada como um princípio cristão: a
partir dos recônditos mais secretos dos maus instintos o cristianismo travou uma
guerra de morte contra todos os sentimentos de reverência e distância entre os ho-
mens, ou seja, contra o primeiro pré-requisito de toda evolução, de todo desenvolvi-
mento da civilização – do ressentimento das massas forjou sua principal arma
contra nós, contra tudo que é nobre, alegre, magnânimo sobre a terra, contra nossa
felicidade na Terra [...] Conceder a “imortalidade” a qualquer Pedro e Paulo foi a
maior e mais viciosa afronta à humanidade nobre já perpetrada. – E não subesti-
memos a funesta in�uência que o cristianismo exerceu mesmo na política!
Atualmente ninguém mais possui coragem para os privilégios, para o direito de do-
minar, para os sentimentos de veneração por si e seus iguais – para o pathos da
distância [...] Nossa política está debilitada por essa falta de coragem! – Os senti-
mentos aristocráticos foram subterraneamente carcomidos pela mentira da igual-
dade das almas; e se a crença nos “privilégios da maioria” faz e continuará a fazer
revoluções – é o cristianismo, não duvidemos disso, são as valorações cristãs que
convertem toda revolução em um carnaval de sangue e crime! (NIETZSCHE, 1989, §
LXIII).

É necessário, entretanto, observar que Nietzsche, em muitos momentos de sua


obra, distingue com clareza a mensagem de Jesus de Nazaré do cristianismo.
Vejamos, a respeito, alguns extratos da obra O anticristo:
[...] toda a história do cristianismo – da morte na cruz em diante – é a história de
uma incompreensão progressivamente grosseira de um simbolismo original. Com
toda a difusão do cristianismo entre massas mais vastas e incultas, até mesmo in-
capazes de compreender os princípios dos quais nasceu, surgiu a necessidade de
torná-lo mais vulgar e bárbaro – absorveu os ensinamentos e rituais de todos cul-
tos subterrâneos do imperium Romanum e as absurdidades engendradas por todo
tipo de raciocínio doentio (NIETZSCHE, 1989, § XXXVII).

Mais adiante, naquela mesma obra, diz:

Farei uma pequena regressão para explicar a autêntica história do cristianismo. A


própria palavra “cristianismo” é um mal-entendido – no fundo só existiu um cris-
tão, e ele morreu na cruz. O “Evangelho” morreu na cruz. O que desse momento em
diante, chamou-se “Evangelho” era exatamente o oposto do que ele viveu: “más no-
vas”, um Dysangelium (NIETZSCHE, 1989, § XXXIX).

: um dos muitos neologismos de Nietzsche. Ele compõe esse vocábulo de “an-


gelium” (cuja origem vem do grego e que signi�ca “nova”, “notícia”), fazendo oposição com
os pre�xos “dys” (mau, infeliz – “notícia má”) e “eu” (bom, feliz – “boa nova”, “boa notícia”).

E, mais adiante:

E a partir desse momento surgiu um problema absurdo: “Como pôde Deus permiti-
lo?”. Para o qual a perturbada lógica da pequena comunidade formulou uma res-
posta assustadoramente absurda: Deus deu seu �lho em sacrifício para a remissão
dos pecados. De uma vez acabaram com o Evangelho! O sacrifício pelos pecados, e
em sua forma mais obnóxia e bárbara: o sacrifício do inocente pelo pecado dos cul-
pados! Que paganismo apavorante! – O próprio Jesus havia suprimido o conceito de
“culpa”, negava a existência de um abismo entre Deus e o homem; ele viveu essa
unidade entre Deus e o homem, que era precisamente a sua “boa nova” [...]
(NIETZSCHE, 1989, § XLI).

A crença é sinal de vontade fraca

De acordo com Nietzsche, em A Gaia Ciência, a fé surge quando falta vontade,


pois a vontade, sendo a energia do comando, é o sinal da dominação e da for-
ça. Quanto menos sabemos comandar, mais aspiramos por um ser, seja um
deus, um príncipe, uma classe, um dogma etc.

O budismo e o cristianismo teriam nascido de uma extraordinária “anemia da


vontade”. Levaram os homens ao fanatismo, dando-lhes uma nova possibili-
dade de querer. O fanatismo é a “força de vontade” própria dos fracos.
Hipnotiza todo o sistema sensitivo e intelectual das pessoas com um único
ponto de vista, que, no caso dos cristãos, é a fé. Quando alguém se convence de
que deve ser comandado, ele se torna um crente. Um espírito livre, ao contrá-
rio, experimenta o prazer de se governar, de rejeitar, segundo sua vontade, toda
necessidade de certeza.

É sempre lá onde mais falta vontade que a fé é mais desejada, mais necessária: pois
a vontade, sendo a energia do comando, é o sinal diferenciador do domínio e da for-
ça. Quanto menos se sabe comandar, mais se aspira ao ser, e ao ser rigorosamente,
seja ele um deus, um príncipe, uma classe, um médico, um confessor, um dogma,
uma consciência de partido. O que autorizaria a concluir que as duas grandes reli-
giões do mundo, o budismo e o cristianismo, poderiam ter nascido de uma extraor-
dinária “anemia da vontade”, que explicaria ainda melhor a rapidez de sua propa-
gação. E de fato assim é: essas duas religiões encontraram uma necessidade impe-
rativa exaltada até a loucura, o desespero, pela anemia da vontade; todas as duas
ensinaram o fanatismo em uma época de apatia, e propuseram a uma multidão in-
calculável um ponto de apoio, uma nova possibilidade de querer, um prazer a ser
realizado. O fanatismo é de fato a única “força de vontade” a qual é possível atribuir
aos fracos e indecisos, pois ele hipnotiza todo o sistema sensitivo e intelectual em
benefício da assimilação abundante de um só ponto de vista, de um sentimento
único – o cristão o chama sua fé – o qual, a partir de então, hipertro�ado, domina.
Quando um homem se convence de que “deve” ser comandado, ele é “crente”; ao
contrário, pode-se imaginar certo prazer de se governar, certo poder no exercício do
predomínio individual, certa liberdade de querer que permitam a um espírito rejei-
tar, de acordo com sua vontade, toda fé, toda necessidade de certeza; pode-se
imaginá-lo viver mantido pelas correntes as mais leves, pelas possibilidades as
mais diminutas, a dançar até às bordas dos abismos. Este seria “o espírito livre” por
excelência (NIETZSCHE, 1950, § 347, p. 294-295, tradução nossa).

O ideal do ascetismo

Em sua obra, já citada, A genealogia da moral, Nietzsche pergunta: “Por que


sofrer?”. O homem não rejeita o sofrimento em si, ele até busca o sofrimento,
desde que lhe seja mostrado a razão deste. A ausência de sentido da dor é “a
maldição que tem pesado sobre a humanidade”. O “ideal ascético lhe dá um
sentido!”. Graças a ele, o sofrimento é explicado, o vazio imenso parece preen-
chido. Porém, a interpretação que se dá à vida, nesse caso, traria um novo so-
frimento, “mais profundo, mais íntimo, mais envenenado, mais mortal”, o so-
frimento do castigo por causa do “pecado”.

“Por que sofrer?” – O homem, o mais valente, o mais apto ao sofrimento de todos os
animais, não rejeita o sofrimento em si: ele o procura mesmo, desde que lhe seja
mostrada a razão de ser deste, o “porquê” deste sofrimento. A ausência de sentido
da dor e não a própria dor é a maldição que até hoje pesou sobre a humanidade –
“ora, o ideal ascético lhe deu um sentido!”. Era até então o único sentido que lhe foi
dado; não importa qual seja o sentido, este vale mais do que nenhum sentido; o ide-
al ascético não era, sob todo ponto de vista, senão a “ausência de um sentido me-
lhor”, e “por excelência”, a sua única peculiaridade. Graças a ele o sofrimento foi ex-
plicado: o vazio imenso parecia preenchido, a porta se fechava diante de toda espé-
cie de niilismo, de todo o desejo de acabamento. A interpretação que se dava à vida
levava inconfundivelmente a um novo sofrimento, mais profundo, mais íntimo,
mais envenenado, mais mortal: fez ver todo sofrimento como o castigo de um “pe-
cado” [...] Mas, apesar de tudo, trazia ao homem a “salvação”, o homem tinha um
“sentido”, não era mais a folha arrastada pelo vento, o jogo sem razão, da “ausência
de sentido”, ele poderia a partir de então querer algo – não importando o que qui-
sesse: “a própria vontade estava pelo menos salva” (NIETZSCHE, 1968, p. 244-246,
tradução nossa).

O mundo é um caos: visão perspectivista


O mundo é um caos eterno; sobre ele podemos ter múltiplas perspectivas, ou
seja, ele é passível de uma in�nidade de interpretações. A partir da “morte de
Deus”, a ideia de mundo, segundo Nietzsche, desaparece, ou como diz o �lóso-
fo: “o mundo torna-se novamente in�nito”.
Deus está morto! Deus permanece morto! E quem o matou fomos nós! Como havere-
mos de nos consolar, nós os algozes dos algozes? O que o mundo possuiu, até agora,
de mais sagrado e mais poderoso sucumbiu exangue aos golpes das nossas lâmi-
nas. Quem nos limpará desse sangue? Qual a água que nos lavará? Que solenidades
de desagravo, que jogos sagrados haveremos de inventar? A grandiosidade desse
ato não será demasiada para nós? Não teremos de nos tornar nós próprios deuses,
para parecermos apenas dignos dele? Nunca existiu ato mais grandioso, e quem
quer que nasça depois de nós passará a fazer parte, mercê desse ato, de uma histó-
ria superior a toda a história até hoje! (NIETZSCHE, 1950, §125, tradução nossa).

O que Nietzsche quer signi�car com a famosa frase: “Deus está


 morto”?

"Deus está morto" é talvez uma das frases mais mal interpretadas de toda
a �loso�a. Entendê-la literalmente, como se Deus pudesse estar �sica-
mente morto, ou como se fosse uma referência à morte de Jesus Cristo
na cruz, ou ainda como uma simples declaração de ateísmo são ideias
oriundas de uma análise descontextualizada da frase, que se acha pro-
fundamente enraizada na obra nietzscheana. O dito anuncia o �m dos
fundamentos transcendentais da existência, de Deus como justi�cativa e
fonte de valoração para o mundo, tanto na civilização quanto na vida das
pessoas – segundo o �lósofo, mesmo que estas não o queiram admitir.
Nietzsche não se coloca como o assassino de Deus, como o tom provoca-
dor pode dar a entender: o �lósofo enfatiza um acontecimento cultural, e
diz "fomos nós que o matamos".

A frase não é nem uma exaltação nem uma lamentação, mas uma cons-
tatação a partir da qual Nietzsche traçará o seu projeto �losó�co de supe-
rar Deus e as dicotomias assentes em preconceitos metafísicos que jul-
gam o nosso mundo – na opinião do �lósofo, o único existente – a partir
de um outro mundo superior e além deste. A morte de Deus metaforiza o
facto de os homens não mais serem capazes de crer numa ordenação
cósmica transcendente, o que os levaria a uma rejeição dos valores abso-
lutos e, por �m, à descrença em quaisquer valores. Isso conduziria ao nii-
lismo, que Nietzsche considerava um sintoma de decadência associada
ao facto de ainda mantermos uma "sombra", um trono vazio, um lugar re-
servado ao princípio transcendente agora destruído, que não podemos
voltar a ocupar. Para isso ele procurou, com o seu projecto da "transmuta-
ção dos valores", reformular os fundamentos dos valores humanos em
bases, segundo ele, mais profundas do que as crenças do cristianismo
(WIKIPEDIA, 2012).

A ideia metafísica de mundo desaparece, dando lugar a uma in�nidade de


perspectivas. Nietzsche pergunta, ainda em sua obra A Gaia Ciência, até onde
vai o caráter perspectivo da existência. Há uma “existência” sem razão? Toda
existência não é essencialmente explicativa? Não há análise do intelecto, por
mais cuidadosa que seja, que possa decidir isso, porque o espírito humano não
pode deixar de ver à luz de sua própria perspectiva.

[...] uma existência sem explicação, sem “razão” não se torna uma “loucura”? Por
outro lado, toda existência não é essencialmente passível de “explicação”? É o que
não conseguem decidir as análises mais cuidadas do intelecto, as mais pacientes e
minuciosas introspecções: pois, o espírito do homem, em suas análises, não pode
se impedir de se ver segundo sua própria perspectiva e não pode se ver “senão” e de
acordo com ela. Não podemos ver a não ser com nossos olhos; é uma curiosidade
sem esperança de sucesso buscar saber quais outras espécies de intelectos e de
perspectivas podem existir; se, por exemplo, existem seres que sentem passar o
tempo em outro sentido, ou sucessivamente em direção para frente e para trás (o
que mudaria a direção da vida e inverteria a concepção da causa e do efeito).
Espero, entretanto, que estejamos hoje longe da ridícula pretensão de decretar que
nosso pequeno ângulo de visão seja o único do qual se tem o direito de ter uma
perspectiva. Ao contrário, o mundo para nós voltou a ser in�nito, no sentido de que
não podemos lhe recusar a possibilidade de ser disponível a uma in�nidade de in-
terpretações (NIETZSCHE in ROUX-LANIER, 1995, p. 477, tradução nossa).

A solução, segundo Nietzsche, não é recuar para o estado de pré-modernidade,


mas ir além da modernidade: o eterno retorno.

Tudo o que acontece, segundo Nietzsche, já aconteceu em um número in�nito


de vezes e acontecerá novamente in�nitas vezes. É o seu célebre conceito do
“eterno retorno”. O aforismo 341 de sua obra A Gaia Ciência é frequentemente
citado:
E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão
e te dissesse: "Esta vida, assim como tu a vives agora e como a viveste, terás de
vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes; e não haverá nela nada de novo, ca-
da dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indizivelmen-
te pequeno e de grande em tua vida há de retornar, e tudo na mesma ordem e
sequência – e do mesmo modo esta aranha e este luar entre as árvores, e do mes-
mo modo este instante e eu próprio. A eterna ampulheta da existência será sempre
virada outra vez – e tu com ela, poeirinha da poeira!". Não te lançarias ao chão e
rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te falasse assim? Ou viveste al-
guma vez um instante descomunal, em que responderias: "Tu és um deus, e nunca
ouvi nada mais divino!". Se esse pensamento adquirisse poder sobre ti, assim como
tu és, ele te transformaria e talvez te triturasse; a pergunta, diante de tudo e de cada
coisa: "Quero isto ainda uma vez e ainda inúmeras vezes?". Pesaria como o mais
pesado dos pesos sobre teu agir! Ou então, como terias de �car de bem contigo mes-
mo e com a vida, para não desejar nada mais do que essa última, eterna con�rma-
ção e chancela? (NIETZSCHE apud WIKIPEDIA, 2015).

É preciso esclarecer que a noção de “eterno retorno” não corresponde a uma


concepção cíclica do tempo, pois o conceito de história do �lósofo não é o de
um tempo cíclico. O “eterno retorno” diz respeito, observam vários estudiosos,
ao fato de estarmos sempre vivenciando um número determinado de aconte-
cimentos que se repetiram no passado, se repetem no presente e se repetirão
no futuro, como guerras, crises econômicas, epidemias etc. Isso porque o mun-
do é uma realidade múltipla, mas única, que não tem meta ou �nalidade.

Com o Eterno Retorno Nietzsche questiona a ordem das coisas. Indica um mundo
não feito de pólos opostos e inconciliáveis, mas de faces complementares de uma
mesma – múltipla, mas única – realidade. Logo, bem (http://pt.wikipedia.org/wi-
ki/Bem) e mal (http://pt.wikipedia.org/wiki/Mal), angústia (http://pt.wikipedia.org
/wiki/Ang%C3%BAstia) e prazer (http://pt.wikipedia.org/wiki/Prazer), são instânci-
as complementares da realidade (http://pt.wikipedia.org/wiki/Realidade) – instân-
cias que se alternam eternamente. Como a realidade não tem objetivo, ou �nalidade
(pois se tivesse já a teria alcançado), a alternância nunca �nda. Ou seja,
considerando-se o tempo in�nito e as combinações de forças em con�ito que for-
mam cada instante �nitas, em algum momento futuro tudo se repetirá in�nitas ve-
zes. Assim, vemos sempre os mesmos fatos retornarem inde�nidamente.
(WIKIPEDIA, 2015).

Nessa doutrina do “eterno retorno”, o mundo não resultaria de uma intenção e


nem perseguiria um �m. Nega-se o sujeito humano como origem dos aconte-
cimentos. Toda ideia de corrigir um período passado (no caso, o pensamento
moderno) não poderia ser entendida como um retorno ao passado, mas seria a
própria evolução da modernidade e de suas conquistas, que trariam as condi-
ções de um retorno ao universo tradicional.

O caminho do “grande estilo”


Esse retorno ao universo tradicional não consiste, segundo Nietzsche, em vol-
tar à “aristocracia natural” dos habitantes da Grécia Antiga, denominada
Hélade, os chamados grandes helenos, mas, para além do caminho ascético
inaugurado por Sócrates e continuado pelo cristianismo, o qual consiste em
submeter as forças instintivas à tirania da razão e da verdade, mutilando a vi-
da, abre-se uma outra possibilidade.

Ela não consiste em negar os instintos, mas em hierarquizar o conjunto des-


sas forças vitais, inclusive as forças da razão e da lógica desenvolvidas por
Sócrates e seus discípulos. Esse caminho, representado pelos antigos helenos,
enriquecido com aquisições da modernidade, é o que Nietzsche chama de
“grande estilo”. Essa hierarquização e, apenas ela, nos permitirá escapar do as-
cetismo de maneira não reativa. Apenas negar a razão nos deixaria ainda pri-
sioneiros da atitude reativa inaugurada por Sócrates. A hierarquização harmo-
niosa de todas as forças vitais, inclusive da razão, nos permitiria uma intensi-
�cação da vida.

O Retorno eterno integra, no decorrer de seu ciclo, as forças que a vida desenvolveu
progressivamente. Os grandes helenos eram, no fundo, inconscientes de sua nobre-
za moral. Como diz Nietzsche, eles eram espontaneamente virtuosos “sem se per-
guntar por quê”. Representavam um tipo de humanidade frágil, destinada a sucum-
bir sob as interrogações de Sócrates (ROUX-LANIER, 1995, p. 475, tradução nossa).

O “grande estilo”, portanto, é o estilo clássico que expressa um imenso �uir e


re�uir de paixão sublime, sobre-humana, que liberta os “instintos capitais” e a
“vontade de potência” e nos capacita a “dominar o caos que nós somos”.

: NASSER, E. O romantismo em Nietzsche enquanto um problema tem-


poral, estético e ético. Revista Trágica: estudos sobre Nietzsche, v. 2, n. 2, p. 31-46, 2009.
Disponível em: <http://tragica.org/artigos/04/03-eduardo.pdf>. Acesso em: 4 set. 2015.

A �loso�a como estética


Muito mais verdadeira do que a ciência e a �loso�a, para Nietzsche, seria a ar-
te. Isso porque se adéqua à multiplicidade da vida e ao seu processo constante
de diferenciação. O artista é o único que não possui a pretensão de expressar
uma verdade absoluta, mas sua obra se limita a uma “perspectiva”. Por essa
razão, Nietzsche acreditava que o �lósofo e a �loso�a deveriam se transformar
em estética.

O professor Miguel Angel de Barrenechea observa, em seu artigo Nietzsche e o


discurso �losó�co: uma “linguagem pessoal” (2011), que o Nietzsche jovem
buscava, em sua obra O nascimento da tragédia, “uma metafísica de artista”.
Trata-se de uma explicação estética do universo, assim como do próprio devir
da cultura. Orienta-se pelas imagens da tradição helênica, valorizando parti-
cularmente a tragédia e a música, que considerava como expressões da pró-
pria essência da realidade. Sob a inspiração de Schopenhauer e do compositor
Richard Wagner, desenvolve, naquela obra, uma visão da realidade onde ainda
se mantém ligado aos dualismos da tradição �losó�ca, tais como: fenômeno e
coisa-em-si; aparência e essência; vontade e representação. É assim que, na-
quela obra, Nietzsche vê, nas �guras de Apolo (divindade da mitologia greco-
romana identi�cado como o sol e como a luz da verdade) e de Dionísio (em
Nietzsche, simbolizando a vontade de viver) representantes, respectivamente,
do aspecto fenomenal da realidade e das forças provindas de um fundo pri-
mordial, da essência do mundo. Posteriormente, ao escrever Assim falava
Zaratrusta, Nietzsche vai à busca de uma linguagem essencialmente não con-
ceitual, mas artística e literária, por meio de imagens e metáforas.

O professor Jelson Oliveira, da PUC do Rio de Janeiro, em seu artigo intitulado


A grande Ética de Nietzsche, propõe que se possa falar de uma “grande Ética”
em Nietzsche. Diz ele:
Trataremos de avaliar a possibilidade de pensar o problema da ética em Nietzsche
a partir da compreensão do uso instrumental do adjetivo grosse (grande). [...]
Consideraremos, a título de exemplo, o uso feito pelo �lósofo do adjetivo grosse em
expressões como “grande saúde”, “grande política”, “grande razão” e “grande ho-
mem”, pelo qual se pode descobrir “pistas” que remetem às noções de auto-
supressão, diferença, con�ito e hierarquia. Essas noções se ligam à idéia de uma
grande ética, cuja referência passa a ser o pathos e não mais simplesmente o ethos
(OLIVEIRA, 2011a, p. 1).

Observa que o terreno dessa “grande Ética” seria o “pathos”, ao contrário do


terreno da moral vigente, a do “ethos”, fundado na conduta guiada pela univer-
salidade dos imperativos, ligado ao duradouro via a racionalidade. Pathos é
entendido por Nietzsche como aquilo que diz respeito à conduta do “nobre”, ou
seja, a de um distanciamento gerador da diferença, do con�ito e da hierarquia,
terreno de uma ética que não se fundamenta em princípios universais à luz de
uma “vontade de sistema”.

Como características dessa “grande Ética”, desse “ir além” de toda moralidade
vigente, Nietzsche fala de uma ética “aristocrática” e de uma ética da “amiza-
de”. Uma ética aristocrática, uma vez que, segundo Nietzsche, só o nobre seria
capaz de vivenciar esse “ir além”, essa “transvalorização”, esse recriar e rein-
ventar valores, por meio de um jogo de perspectivas, sem de�nhar. Uma ética
da amizade signi�ca, no caso, uma “revalorização dos afetos”.

No prefácio ao livro Para uma ética da amizade em Nietzsche, do professor


Jelson Oliveira, Oswaldo Giacóia Junior diz, citando Nietzsche:
É certo que Nietzsche, mesmo em cerrada oposição ao seu mestre Arthur
Schopenhauer, não se propõe a depor completamente uma ética da compaixão,
substituindo-a por um ethos da felicidade compartilhada, pura e simplesmente, em
termos de uma oposição absoluta; mas não é menos certo que, tal como constata-
mos na citação abaixo transcrita, ele contrapõe Mitfreude (alegrar-se com) a
Mitleiden (compaixão). E esse sentimento positivo de alegrar-se com só é plena-
mente possível entre amigos. “Aqueles que podem sentir alegria conosco, são mais
elevados e próximos do que aqueles que sofrem conosco. Alegria compartilhada faz
o ‘amigo’ (aquele que se alegra-com); compaixão faz o companheiro de sofrimento.
– Uma ética da compaixão carece de um complemento por meio de uma ética da
amizade, ainda mais elevada” (NIETZSCHE, F. Fragmento póstumo numerado como
19 [9]. In: Nachgelassene Fragmente. In: Kritische Studienausgabe (ksa). Ed. G. Colli
e M. Montinari. Berlin, New York, München: de Gruyter, dtv. 1980, vol. 8, p. 333).
Nietzsche faz aqui um jogo de palavras, irresgatável em português, entre ‘Freude’
(alegria) e ‘Freunde’ (amigo); transitando entre alegria e amizade, ele opõe amigo-
alegria (por meio dos verbos freuen [alegrar-se] e do neologismo cunhado por ele
mesmo freuenden [alegrar-se amistosamente]) a uma ética da compaixão (Mitleid
– sofrer com). A ética da amizade seria, ao mesmo tempo, uma complementação
(Ergänzung) e um patamar ético mais elevado que a ética da compaixão (GIACÓIA
JR., in OLIVEIRA, 2011b).

Quanto à Ética, conforme a estamos considerando nesta obra, ou seja, como


saber do singular, distinguindo-se da moral na medida em que esta se funda
em um saber abstrato, generalizante, podemos dizer que ela literalmente se
manifesta de maneira “explosiva” no pensamento de Nietzsche.

Isso porque, como vimos, ao tratar a moral vigente no pensamento ocidental


como algo falso e ilusório, por ter por fundamento uma razão abstraída da vi-
da, coloca a nu um domínio de saber que é o de uma universalidade não do
“geral”, não do “igual”, mas do “singular”, da “diferença”.

E, nesse sentido, várias são as questões de ordem �losó�ca polêmicas no que


concerne ao pensamento do �lósofo alemão, com implicações no tema da
Ética. Assim, por exemplo, para não citar senão algumas: a questão da exis-
tência no pensamento de Nietzsche de um transcendental não transcendente;
a de um saber da “singularidade”; a da distinção entre “singularidade” e “indi-
vidualidade”; a da “subjetividade”.

Relembremos que os sentidos de transcendental, de transcendente e de ima-


nente assumem nuances diversas no pensamento de alguns �lósofos. Aqui,
estamos entendendo como transcendental a concepção de um princípio da re-
alidade que pode ser visto como transcendente, no caso de signi�car a exis-
tência de uma ordem especial de realidades que não se encontram no nível
dos sentidos (é o caso de uma posição metafísica) ou pode ser concebido como
imanente, no caso de signi�car a existência de uma causa do mundo real fe-
chada no próprio universo, não regulada por um princípio superior, distinto e
exterior.

São questões debatidas atualmente, dentro de visões muitas vezes paradigma-


ticamente diferentes e que compõem o quadro de re�exões contemporâneas
sobre o tema da ética – questões que se situam além dos limites estritos da
presente obra.

 Leitura complementar

Você deverá ler, também, o texto Verdade e Mentira no Sentido


Extramoral, que pode ser acessado clicando aqui (http://imediata.org
/asav/nietzsche_verdade_mentira.pdf), e assistir aos dois vídeos indica-
dos a seguir.

 
6. Desa�os da Ética na contemporaneidade
A prática democrática, em qualquer âmbito humano, sempre signi�cou uma
virtude inquestionável. De fato, desde o nascimento deste termo, na antiguida-
de grega, até a sua transformação conceitual, na política moderna, a democra-
cia ganhou um espaço cativo nos debates sociopolíticos: a liberdade conquis-
tada pela isonomia dos direitos também pressupõe a igualdade de deveres.
Habermas já havia mencionado essa inter-relação entre igualdade e liberdade
em sua Ética da Discussão e Discussão da Verdade: "uma pessoa só pode ser
livre se todas as demais o forem igualmente" (HABERMAS, 2004, p. 13).

Ora, se tal questão é a pedra de toque da democracia moderna, então, faz senti-
do a amarração teórica defendida por Rousseau em seu Contrato Social: se por
um lado os indivíduos perdem parte de sua liberdade particular frente às exi-
gências do Contrato (que prevê a igualdade de direitos e deveres), por outro la-
do, o corpo social, do qual os indivíduos fazem parte (vontade geral), ganha
uma máxima liberdade até então nunca gozada pela coletividade ocidental
moderna (ROUSSEAU, 1999).

Dentro deste contexto surge com toda vitalidade a re�exão ética e a questão
dos valores morais. A�nal de contas, para que outra �nalidade serviria a ética
e a moral senão para a orientação das nossas ações no âmbito do relaciona-
mento intersubjetivo e para o reconhecimento da alteridade?

Dentre os muitos desa�os da ética na contemporaneidade, o reconhecimento


da alteridade, a rea�rmação dos direitos sociais, o combate ao ódio e à violên-
cia e o respeito pela diversidade, sem dúvida alguma, estão entre eles. Embora
a moral seja o conjunto de regras de como deve ser o comportamento dos indi-
víduos de um grupo, também leva em consideração a existência de uma acei-
tação livre e consciente destas mesmas normas. Isso quer dizer que, a simples
massi�cação das normas ou individualismo radical para não seguir nenhuma
não caracteriza o sujeito moral.

Ou seja, em hipótese alguma a norma moral e a re�exão ética devem estar à


serviço dos estigmas e estereótipos. Mas, embora tenha clareza de que o pre-
conceito e a estigmatização ferem uma ética humanista, por que então práti-
cas antidemocráticas e autoritárias ainda existem em pleno século 21? Isso
prova que, apenas pensar sobre a barbárie arquitetada no passado não nos
protege, na atualidade, de possíveis retornos a outras formas de barbárie.

A formação de uma mentalidade autoritária - bem como a implementação de


práticas segregacionistas e preconceituosas -, podem ganhar espaço ideológi-
co em diversos contextos ou momentos históricos, provando que a natureza
da barbárie não está limitada a eventos especí�cos, mas também se justi�ca a
partir das bases psicossociais, como por exemplo, o conceito freudiano do
unheimlich (inquietante).

Traduzido na língua portuguesa como "inquietante", o termo unheimlich -


apresentado por Freud em seu texto O Inquietante - reserva uma ambiguidade
conceitual que representa, ao mesmo tempo, tudo aquilo que é estranho e que
causa horror e desprezo, como também manifesta algo que é demasiadamente
trivial e costumeiro - uma repulsão que se fortalece por ser, simultaneamente,
empática, ainda que inconsciente por parte do indivíduo. "O inquietante
[unheimlich] é aquela espécie de coisa assustadora que remonta ao que é
[aquilo] há muito conhecido, ao bastante familiar" (FREUD, 2010a, p. 331).

De fato, o conceito de "inquietante" favorece uma elucidação convincente de


algumas estruturas latentes: o ódio e a estigmatização ao diferente - estranho
- tem suas origens em pulsões internas familiares e reprimidas, que, na condi-
ção de desconhecidas, são projetadas agressivamente para minorias étnicas,
culturais e sexuais. É justamente da repressão inconsciente dos desejos fami-
liares que surge a aversão e o preconceito ao que foi conscientemente eleito
como estranho.

O próprio Freud menciona essa implicação ao a�rmar que a "origem do inquie-


tante" reside exatamente "no familiar reprimido" que fora obrigado se revelar
(FREUD, 2010a, p. 368). Logo, a não aceitação ou compreensão dos próprios
conteúdos pulsionais - bem como o ódio que daí decorre - leva o indivíduo a
projetar no outro, como um tipo de mecanismo de defesa, todas as insatisfa-
ções latentes que não ousaria assumir no campo da consciência. Ou seja, ao
invés de aceitar o que lhe causa vergonha, o Eu prefere transferir para pessoas
e grupos a responsabilização por aquilo que volta a lhe aterrorizar.

Segundo, se tal for realmente a natureza secreta do inquietante, compreendemos


que o uso da linguagem faça o heimlich converter-se no seu oposto, o unheimlich,
pois esse unheimlich não é realmente algo novo ou alheio, mas algo há muito fami-
liar à psique, que apenas mediante o processo da repressão alheou-se dela. O víncu-
lo com a repressão também nos esclarece agora a de�nição de Schelling, segundo a
qual o inquietante é algo que deveria permanecer oculto, mas apareceu (FREUD,
2010a, p. 360).

A ideia daquilo "que deveria permanecer oculto, mas apareceu", conforme o


trecho acima, diz muito sobre a atitude segregacionista e desumana: a mani-
festação de desejos reprimidos nutre uma representação cruel do outro, que
passa a ser visto como inferior, imoral e nocivo. A segregação que daí decorre
também é compreendida como um resultado previsível de uma estrutura
mental ainda maior: "o inquietante das vivências produz-se quando comple-
xos infantis reprimidos são novamente avivados, ou quando crenças primiti-
vas superadas parecem novamente con�rmadas" (FREUD, 2010a, p. 371).

A rejeição das diferenças advinda do "inquietante" amolda um per�l autoritá-


rio incapaz de qualquer autocrítica direcionada à alteridade, uma vez que suas
frustrações reais - outrora reprimidas - foram exatamente blindadas por uma
compensação imaginária, de cunho narcisista, que o faz sentir-se melhor e su-
perior a qualquer pessoa que não compartilha de seus ideais. Para o indivíduo
autoritário, a diferença é então transformada em ameaça. Isso possibilita a
existência de um obstáculo di�cilmente transponível, que desabilita no indiví-
duo qualquer noção autocrítica quanto às causas do preconceito: "qualquer ti-
po de crítica ou de autoconsciência é ressentida como perda narcisista e inci-
ta fúria" (ADORNO, 2015, p. 177).

No entanto, o ódio pelo diferente não ativa somente as tendências antidemo-


cráticas no indivíduo, mas aciona igualmente uma esfera de identi�cação gru-
pal. Em Psicologia das Massas e Análise do Eu, Freud (2011) estabelece uma
caracterização importante do grupo como canal de exteriorização de insatis-
fações individuais e inconscientes; ou seja, na massa o indivíduo perde sua
autoconsciência individual e passa a delimitar a sua ação/reação a partir da-
quilo que chamou de "alma coletiva".

A imposição da moralidade das massas - em detrimento da autocrítica do in-


divíduo - também pode ser analisado à luz do conceito de unheimlich. Sobre
isso, em Mal-estar na Civilização¸ Freud (2010b, p. 81) chama a atenção para
aquilo que ele mesmo deu o nome de "narcisismo das pequenas diferenças".
Para o autor, a supervalorização das pequenas diferenças promove uma autos-
sugestão que enfatiza o "grupo do outro" (exogrupo) como nocivo, transferên-
cia essa que não apenas sugere o descarregamento de pulsões agressivas in-
contidas, como também permite para o "grupo do eu" (endogrupo) o fortaleci-
mento de laços ideológicos de identi�cação. Não é por acaso que, de acordo
com Freud (2010b, p. 80-81), "sempre é possível ligar um grande número de
pessoas pelo amor, desde que restem outras para que se exteriorize a agressi-
vidade".

Para uma cultura ética que possa fazer frente a esse tipo de "de-formação", ur-
ge pensar no papel da ética também no campo das relações interpessoais e
grupais, especialmente voltadas para a rea�rmação de valores que fortalecem
a alteridade e a potência do "querer viver bem", consigo mesmo, com os outros
e com a natureza.

(https://mdm.claretiano.edu.br/eti-gp0061-2021-01-grad-ead-p/wp-content
/uploads/sites/792/2019/12/C5-F1.jpg) : Quino (2020).
Figura 1 Ética.
Como sugestão de leitura, indicamos o texto de Sueli Damergian, intitulado Para além da
barbárie civilizatória: o amor e a ética humanista. São Paulo. Casa do Psicólogo, 2009.
Disponível na Biblioteca Virtual Pearson.

Neste momento, re�ita sobre sua aprendizagem respondendo a questão a se-


guir.

7. Considerações
As considerações especí�cas deste ciclo versaram sobre autores que funda-
mentaram suas teorias éticas sobre o conceito de "vontade", bem como sobre
os desa�os da ética na contemporaneidade. Esperamos que tais contribuições
possam ressoar signi�cativamente em nossa re�exão ética, ajudando-nos a
construir uma personalidade mais democrática, inclusiva e humana.

8. Considerações Finais
Chegamos ao �m dos estudos da disciplina Ética.

Estudamos autores ímpares que apontaram caminhos para a relação interpes-


soal, no desenvolvimento de habilidades e competências capazes de atribuir
ao âmbito das relações uma destemida necessidade comunicacional do bem
viver e da justiça.

A ética (ethos) na coletividade aparece como costume e no individual como


hábito; desta maneira, o exercício da ética na vida, nos valores, traduz aos cos-
tumes um comportamento mais consciente e responsável, o que atribui ao su-
jeito moral uma condição de dignidade, enquanto pessoa humana, assim co-
mo habilita-o a ter criatividade em suas leituras de mundo e de si mesmo, ma-
nifestando ressigni�cação da realidade.

Desejamos que a partir desse estudo você também, como autor de sua realida-
de, cultive essa criatividade e possibilidade de ressigni�cação de vida, por
meio da re�exão e vivência da ética (ethos) em sua vida.

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