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br/eti-gs0123-
fev-2023-grad-ead/)
1. Introdução
Seja bem-vindo(a) à disciplina de . Ao longo da história da Filoso�a, três
grandes questões se apresentam incessantemente. A primeira delas refere-se
à questão do conhecimento do “ser” e do que é possível conhecer (metafísica,
lógica e epistemologia). A segunda, se dedica a analisar como podemos convi-
ver e criar regras de convivência e acordos comunicativos com coletivos hu-
manos e a sociedade (�loso�a política e da linguagem). Já a terceira, refere-se
ao desa�o de se pensar como a vida deve ser vivida, quais atitudes, valores e
decisões devem ser implementadas para que nossas vidas sejam signi�cati-
vas, na relação que mantemos internamente para com a nossa subjetividade e,
externamente, para com o Outro.
Ocorre na Ética as investigações sobre essa terceira grande questão e nela se-
rão abordados as inúmeras teorias normativas que foram produzidas ao longo
da história da �loso�a e que, até hoje, suscitam debates acalorados e recebem
atenção incessante da sociedade – isto porque, as decisões éticas que toma-
mos podem vir a impactar positiva ou negativamente a todos. Para esse �m,
teremos nessa disciplina a investigação sobre os fundamentos da ética, as
inúmeras teorias éticas que foram produzidas ao longo do tempo e as interre-
lações que essas teorias possuem com o conhecimento e a política.
Objetivo Geral
Re�etir sobre as principais teorias éticas da história ocidental (antiga, medie-
val, moderna e contemporânea) para o desenvolvimento de habilidades e
competências que capacitem a formação pedagógica do pro�ssional em
Filoso�a, auxiliando-o a quali�car suas relações e deliberações intersubjetivas
de modo humano, autônomo, crítico e justo.
Objetivos Especí�cos
• Compreender os mecanismos estruturais e epistêmicos da Ética.
• Entender quais são os objetos e �nalidades da Ética.
• Apreender os principais segmentos �losó�cos do pensamento ocidental,
entre eles, a ética grega, a ética greco-romana, a ética medieval, a renas-
centista, os pressupostos das éticas eudaimonistas, teleológicas e, por
�m, deontológicas.
• Desenvolver habilidades interpretativas para re�etir sobre as principais
questões que movimentam (telos) a vida humana, em suas posturas in-
terpessoais.
• Aplicar os conteúdos estudados criativa e criticamente na prática educa-
cional/ pro�ssional.
(https://md.claretiano.edu.br/eti-gs0123-
fev-2023-grad-ead/)
Objetivos
• Entender os fundamentos conceituais da Ética e sua relação com o con-
ceito da Moral.
• Compreender o objeto material e o objeto formal da Ética.
• Apreender as doutrinas éticas fundamentais que se desenvolveram na
Antiguidade: so�stas, Sócrates, Platão, Aristóteles, epicurismo e estoicis-
mo.
Conteúdos
• A Ética como a dimensão da Filoso�a que oportunamente se dedica à re-
�exão sobre os problemas morais.
• Diferenças entre Ética e Moral.
• O problema da Moral e a relação producente entre a ética normativa e o
fenômeno moral.
• A tradição �losó�ca de Sócrates e Platão, e o desenvolvimento do con-
ceito do Bem como princípio norteador da justiça.
• A Ética dos so�stas como convenção social: o papel pedagógico do nó-
mos.
• As virtudes éticas e dianoéticas (areté) em Aristóteles.
• O telos (�nalidade) da vida ética em Aristóteles: a busca pela felicidade
como eudaimonia (carência de estruturas).
• As propostas éticas do epicurismo e do estoicismo.
Problematização
O que é a Ética e qual a sua relação com a moral, encontros e desencontros?
Qual a causa de seu surgimento e o contexto social parturiente? O que se en-
tende e como podemos gerir os problemas da ética normativa e dos fenôme-
nos morais? Quais as divergências e proximidades entre a ética de Platão e
Aristóteles? Estoicos e Epicuristas apresentam propostas �losó�cas que ori-
entam a questão da ética no contexto helênico: o que isso acarreta ao contex-
to histórico e à vida humana?
1. Introdução
Neste primeiro ciclo de aprendizagem veremos não somente os fundamentos
da Ética e sua relação com a Moral, como também conheceremos as princi-
pais doutrinas éticas da Filoso�a grega, especialmente com os So�stas,
Sócrates, Platão, Aristóteles, Epicurismo e Estoicismo. É fundamental visitar-
mos as origens da Ética na Antiguidade para que possamos então compreen-
der o desenvolvimento do pensamento ético posterior: no mundo medieval,
moderno e contemporâneo.
Bons estudos!
2. O que é Ética?
Do ponto de vista etimológico, o termo “Ética” vem de duas palavras gregas: a)
Ēthos (ἦθος – com “eta”), que signi�ca “morada”, “abrigo”, “lugar onde se habi-
ta” etc.; b) Éthos (ἔθος – com “épsilon”), que signi�ca “costume”, “hábito”, “uso”
etc. Do primeiro termo (ēthos) decorre, enquanto raiz semântica, o signi�cado
do segundo (éthos): ou seja, é justamente da realização daqueles comporta-
mentos que se repetem no “lugar onde se habita” que nascem os “costumes” e
os “hábitos”, que moldam, por sua vez, a personalidade e o caráter dos indiví-
duos e dos grupos. De acordo com Menezes (2010, p. 6),
esses termos estão relacionados entre si, uma vez que um [ēthos] é o ponto de parti-
da para algumas normas de comportamento, enquanto o outro [éthos] é o resultado
de comportamentos que se transformaram em costumes. Um produz o outro que,
por sua vez, é fonte do outro.
Do ponto de vista �losó�co, a Ética seria aquela área que tem por objetivo o juí-
zo de apreciação que distingue o “bem” e o “mal”, o comportamento correto do
incorreto, em suas mais diversas linhas e correntes. Segundo Vázquez (1995, p.
12), “ética é a ciência do comportamento moral dos homens em sociedade. Ou
seja, é a ciência de uma forma especí�ca de comportamento humano”. Para
Vaz (1999, p. 61), trata-se de “uma ciência dos costumes transmitidos na socie-
dade, dos estilos permanentes do agir dos indivíduos (hábitos), bem como da
comprovação crítica dos novos valores que a evolução da sociedade faz sur-
gir”.
Mas a ética pode ser considerada uma ciência? De acordo com Menezes
(2010), por possuir tanto um objeto material, como um objeto formal, a Ética
pode ser considerada uma ciência: enquanto objeto material, volta-se para a
análise da moralidade dos “atos humanos”; enquanto objeto formal, utiliza-se
dos métodos sintético-indutivo e analítico-dedutivo. Para Maýnez (1944, p. 14,
tradução nossa),
Vásquez (2007, p. 19) diz que os problemas éticos se caracterizam por sua ge-
neralidade e se diferenciam dos problemas morais da vida cotidiana, que são
os que têm relação com as situações concretas. A Ética, como Filoso�a moral,
serve para fundamentar ou justi�car a forma de comportamento moral. A mo-
ral diz sobre o modo de comportar-se do ser humano, que, por natureza, é his-
tórico, ele é um ser de liberdade e responsabilidade ética. É um ser que não
nasce perfeito, tem como característica produzir-se e aperfeiçoar-se mediante
suas ações. O ser humano vive como uma pessoa quando é senhor de si mes-
mo; sem liberdade de escolha lhe é impossível a responsabilidade ética. A mo-
ral está presente em toda coletividade na forma de regulamento do comporta-
mento social, ela tem uma dimensão social, mas essa realidade não para no
binômio homem/sociedade; o ser humano tem interesses pessoais além dos
coletivos. A moral, nesse sentido, deve estar baseada na responsabilidade pes-
soal.
Para conceituar o termo moral, devemos partir da ideia de que existe uma sé-
rie de morais concretas com características históricas, todas elas compostas
de regras que orientam o comportamento, sendo, portanto, normativas. Essas
regras fazem referências a ações concretas: não mentir, não roubar, não enga-
nar, não desrespeitar os pais, os maiores etc. E, como contrapartida, estão as
ações morais, que fazem referência às normas: ser solidário com quem preci-
sa, não jogar lixo na rua, não perturbar o descanso dos vizinhos com sons al-
tos ou gritos, dar bons exemplos aos menores etc., o que, muitas vezes, supera
o alcance da norma. As normas impõem um comportamento moral e esses
atos devem estar em consonância com elas.
Também devemos considerar que a Ética não cria a moral; ela procura deter-
minar a essência da moral. A Ética é concebida como a ciência da moral.
Diferença de moral e moralidade
Segundo Vásquez (2007, p. 66), existe uma distinção entre moral e moralidade:
Figura 1 Astreia, divindade que difundia entre os homens sentimentos de justiça e de virtude.
Astreia, �lha de Zeus e Têmis. “Segundo Grimal (1997, p. 51), ‘ela espalhava entre os homens os sentimen-
tos de justiça e de virtude. Isto passava-se na tempo da Idade de Ouro. Mas depois que os mortais degene-
raram e a inclinação para o mal se espalhou pelo mundo, Astreia subiu de novo ao céu’” (SUPREMO
TRIBUNAL FEDERAL, 2012).
Também é normal ouvir a palavra “amoral”. Esse termo reúne o pre�xo “a”
(acéfalo, privação) e a palavra “moral” (o termo se refere aos campos da con-
duta humana e tem a ver com os princípios que orientam a conduta do ho-
mem), ser amoral signi�ca não possuir um código moral. Cuidado, essa pala-
vra não é sinônimo de imoral. A conduta dos animais é amoral, ou seja, não
tem relação com a moralidade que rege a sociedade de seres humanos, em que
são moralmente maduros, cada um é senhor de seus atos e é responsável por
sua conduta moral. A invenção da bomba atômica é em si um descobrimento
cientí�co amoral. O uso no caso do bombardeio americano ao Japão foi imo-
ral. Um tem relação com o desenvolvimento de um princípio físico e o outro
com o uso destruidor desse princípio, com a intenção de matar e destruir.
Pessoas imorais são aquelas que, reconhecendo a validade das normas e dos
valores da sociedade, os infringem, priorizando seu próprio interesse.
Outro termo de uso frequente que tem relação com moral é: “ter a moral bem
alta”; nesse caso, refere-se à con�ança, à coragem que tem o indivíduo para fa-
zer frente a um determinado desa�o. A moral deixa de ser um dever para re-
�etir uma determinada atitude.
Atos morais
Os atos morais são atos essencialmente humanos. Neles distinguimos três
elementos: objeto, �m e circunstâncias.
São motivados por uma eleição relacionada com a pergunta “por quê?”, suce-
dida pela indagação “para quê?”, relacionada à �nalidade do referido ato. A
consciência das possíveis consequências de nossos atos é importante para a
valoração moral. Os atos morais devem ser realizados de forma voluntária, po-
dendo escolher realizá-los ou não.
Como disse o Papa João Paulo II (2013): “Nenhum homem pode esquivar-se às
perguntas fundamentais: Que devo fazer? Como discernir o bem do mal?”.
Moral e religião
Toda crença religiosa leva, implícita, uma determinada concepção moral e
uma visão de mundo ou cosmovisão. As grandes religiões, como o
Cristianismo, Budismo e Islamismo, possuem um corpo doutrinar moral, em
geral muito bem elaborado, que o crente deve observar para orientar suas
ações. Nele detalham-se valores, objetivos, normas e virtudes que servirão pa-
ra orientar a ação. Entretanto, a religião não compreende só um código moral;
é uma forma de relacionar-se com o transcendente e ordenador.
A obrigatoriedade moral
A realização da moral é um fato individual, porém a moral responde aos inte-
resses da sociedade, formada pelos indivíduos e sua vida econômica, política,
espiritual e social.
Como diz Frankena (1969, p. 29), o teologista pode assumir qualquer posição
com relação ao que é o bem no sentido não moral. Frequentemente os teolo-
gistas têm sido hedonistas, relacionando o bem ao prazer. Em Aristóteles
(2002), a Ética teria um caráter propriamente teleológico e não deontológico, e
esclarece, na Ética a Nicômaco, que só pode ser bom aquele que é orientado
para o bem em seus afetos e em suas inclinações.
Ao tomarmos nota das possíveis distinções entre ética e moral, também per-
ceberemos o quanto esses dois conceitos estão interconectados: versam sobre
o binômio “teoria/prática” e tentam nos lembrar que um se completa no outro.
Enquanto a ética é o princípio de toda e qualquer conduta, a moral é a conduta
do princípio. Na tirinha a seguir, de Bill Watterson, observamos uma síntese
interessante sobre a aplicabilidade dos conceitos de Ética e Moral:
(https://mdm.claretiano.edu.br/eti-gp0061-2021-01-grad-ead-p/wp-content
/uploads/sites/792/2020/01/C1-F1.jpg) Figura 4 Calvin and Hobbes.
Agora, para entender melhor a relação entre ética e moral, acompanhe os ví-
deos a seguir:
O ser político, o viver numa polis, signi�cava que tudo era decidido mediante pala-
vras e persuasão, e não através de força e violência. Para os gregos, forçar alguém
mediante violência, ordenar ao invés de persuadir, eram modos pré-políticos de li-
dar com as pessoas, típicos da vida fora da pólis (ARENDT, 1999, p. 35-36).
Por isso, a Filoso�a Moral ou Ética tem como objetivo esclarecer os juízos mo-
rais, e serve, em última instância, de orientação moral.
A Filoso�a Moral compreende tanto a Ética como a moral. Ética tem relação
com o “bem”; moral com o “justo”, que impulsiona o conjunto de regras que �-
xam condições de convivência.
Os saberes práticos são aqueles que servem para orientar a vida de forma boa
e justa, que nos auxiliam na hora de agir, contribuindo para adotar a atitude
mais correta ante cada situação particular. Estes são normativos, nos mos-
tram como conduzir a vida de forma justa.
Uma tem a ver com o caráter objetivo, corresponde à capacidade do ser huma-
no de enxergar as essências por trás das formas individuais, e possibilita agir
de acordo com esse conhecimento. Chamaram-na de razão especulativa; por
meio da análise da coisa apreendida se chega à verdade.
A segunda fase da razão tem relação com o agir e o fazer segundo a arte (belo)
e a técnica (o útil). Uma das mais importantes dimensões da razão é sua capa-
cidade ética, com ela organizamos nosso comportamento no mundo, ela serve
para indicar a linha reta.
Antes de Sócrates, não existia na Grécia uma re�exão organizada sobre o “ho-
mem moral” a não ser a posição relativista dos so�stas. Ele inicia a re�exão
sobre a Ética, e por isso é chamado “Pai da Ética”. Contudo, devemos apontar o
fato de que, nos períodos anteriores, sempre houve uma de�nição perfeita do
que era o bem comum e o bem individual.
Tanto para Platão como para Sócrates, só o conhecimento do que é virtude po-
de tornar o homem virtuoso. Platão a�rma que só o “sábio” é virtuoso, porque
unicamente conhecendo o que é virtude, ou seja, conhecendo a ideia de virtu-
de é possível ser virtuoso. Hoje essa a�rmação seria no mínimo ingênua, mas
devemos considerá-la no contexto do Mundo das Ideias na Filoso�a platônica
para entender esse raciocínio. Sugerimos a releitura do Mito ou Alegoria da
caverna (PLATÃO, 2006, livro VII, p. 267) para entender melhor o “sábio”, que é
aquele que está em contato com o Mundo das Ideias. Na Ética, como na
platônica, devemos pensar em um bem absoluto, um Bem com
“B” maiúsculo.
Logo no período socrático, Platão começa a trabalhar sua teoria das formas ou
das ideias, colocando a forma do Bem agathós como a forma metafísica supre-
ma. Platão (1999, p. 149) diz que “a alma quando está em si mesma e analisa as
coisas por si mesmas, sem se valer do corpo, encaminha-se para o que é puro,
eterno, imortal, imutável [...]”. Dando continuidade ao pensamento:
Há algum sentido corporal por meio do qual chegaste a apreciar as coisas de que te
falo como a nobreza, a sanidade, a força, em resumo, a essência de todas as coisas,
isto é, aquilo que são nelas mesmas?
Não, o conseguirá claramente quem examine as coisas apenas com o pensamento,
sem pretender aumentar sua meditação com a vista, nem sustentar seu raciocínio
por nenhum outro sentido corporal; aquele que se servir do pensamento sem ne-
nhuma mistura procurará encontrar a essência pura e verdadeira sem o auxílio dos
olhos ou ouvidos e, por assim dizê-lo, completamente isolado do corpo (PLATÃO,
1999, p. 127).
É muito clara a distinção metafísica entre corpo e alma: o corpo é visto como
um cárcere da alma, e o prazer e os sentidos são extremamente desvaloriza-
dos.
Os �lósofos, ao verem sua alma presa ao corpo são obrigados a apreciar as coisas
por intermédio do corpo, como se fosse através de uma cerca ou prisão. Ao senti-
rem que a força dessa ligação corporal consiste em paixões que fazem com que a
alma acorrentada ajude a apertar seus ferros [...]. Consolam-se e a advertem para
não utilizar os sentidos mais do que exige a necessidade, aconselhando-a recolher-
se e encerrar-se em si mesma, a não crer em nenhum testemunho que não seja o
seu próprio (PLATÃO, 1999, p. 149).
A felicidade, eudaimonia
Eudaimonia é um termo formado por o pre�xo “eu” que signi�ca “bem dispos-
to” e “daimon”, “com um poder divino”; “eudaimon” é o adjetivo para “feliz”. No
pensamento grego antigo, ser feliz signi�ca poder usufruir os dons divinos.
Para Platão, a felicidade é produto da sabedoria. O sábio que acede ao mundo
das ideias é então eudaímon: feliz. Contrariamente a esse pensamento, para
Aristóteles a felicidade é uma atividade acessível ao ser virtuoso que respeita
os valores morais.
Esse tema foi comentado por Platão nas obra A República, (2006, 354a) e As
Leis (http://www.�loinfo.bem-vindo.net/plotinus/taxonomy/term/4896) (1991,
livro 5) e citado por Aristóteles (http://www.�loinfo.bem-vindo.net/plotinus
/taxonomy/term/167) em Ética a Nicômaco (2002, livro 1).
A proposta platônica também é diferente da defendida pelo estoicismo
(http://www.�loinfo.bem-vindo.net/plotinus/taxonomy/term/5144); para os
seguidores dessa doutrina, a felicidade (http://www.�loinfo.bem-vindo.net
/plotinus/taxonomy/term/4268) resulta da vida (http://www.�loinfo.bem-
vindo.net/plotinus/taxonomy/term/4404) harmoniosa, mas não é um �m (te-
los (http://www.�loinfo.bem-vindo.net/plotinus/taxonomy/term/5136)), e sim
um estado concomitante. Porém, tanto para Platão como para Aristóteles, a fe-
licidade é o �m da ação humana.
A virtude, aretê
Figura 5 A escola de Atenas (1509-1510), quadro de Rafael, que mostra Platão ao centro.
Talvez o que mais chame a atenção da teoria ética de Platão seja sua insistência na
noção de um bem absoluto e objetivo – o Bem com maiúscula – que, em sua quali-
dade de Idéia Suprema no mundo das Ideias, constitui a razão última de tudo o que
existe e de toda possibilidade de conhecimento. [...]
Aristóteles inicia a Ética a Nicômaco a�rmando que toda ação humana se rea-
liza visando um �m; o �m que impulsiona a ação coincide com o bem, se iden-
ti�ca com o bem. Ainda assim, alerta o pensador, muitas das ações que o indi-
víduo executa são “instrumentos” para possibilitar a realização do �m. Por
exemplo, o fato de submeter-se aos cuidados da Medicina preventiva tende a
evitar futuras intervenções mais complexas e perigosas, possibilitando um
�m que não é o imediato. Alimentar-nos de forma racional sem cometer ex-
cessos para ter boa saúde também visa a um �m não imediato. A correta ali-
mentação é um instrumento, como a Medicina preventiva, para ter boa saúde,
que é o �m último da ação.
Aqui surge a pergunta: existe algum �m que não seja um instrumento para al-
cançar outro bem mais cobiçado? Aristóteles diz nessa obra que a felicidade é
o bem último. A felicidade é aquele estado a que todos aspiraram por natureza.
A felicidade é um conceito que está identi�cado com a boa vida. O problema é
que não são todos os homens que concebem de forma clara o que é a verdadei-
ra felicidade, muitos, procurando a felicidade, se entregam ao prazer, procu-
ram acumular riquezas materiais, cargos de reconhecimento, honras, enquan-
to a verdadeira felicidade é viver de forma virtuosa, sem cometer excessos.
Quanto maior for o número de virtudes que o indivíduo pratica, mais virtuoso
ele será, e a prática consciente da virtude está diretamente ligada à felicidade.
A felicidade é então o maior dos bens, é um bem em si (ARISTÓTELES, 2002,
livro 1, 1).
Ninguém pode buscar a felicidade pela felicidade; a felicidade não é uma coisa
que pode ser adquirida. Muitos imaginam que, adentrando no mundo dos pra-
zeres, das posses materiais, do poder, podem “comprar“ a felicidade, mas esta
é um bem absoluto, é considerada um bem em si mesmo. Só podemos alcan-
çar a felicidade como consequência de uma vida reta e virtuosa.
Aristóteles, com relação às ações humanas, determina que existem três aspec-
tos principais presentes nelas: a volição, a deliberação e a decisão.
Sobre a primeira, a vontade, Aristóteles a�rma que está orientada para o bem.
Portanto, a preocupação não é sobre o que queremos, e sim sobre que cami-
nhos escolhemos para alcançar o bem, que já está determinado na própria na-
tureza humana. O segundo aspeto sim é fundamental: a deliberação, como e o
quê fazer; este inspira o terceiro, a decisão.
Mas como a felicidade é uma certa atividade da alma em conformidade com a vir-
tude perfeita, é mister examinar natureza da virtude por isto provavelmente nos
ajudará em nossa investigação da natureza da felicidade. Acresça-se que aprece
que o verdadeiro estadista é alguém que realizou um estudo especial da virtude,
visto ser sua meta tornar os cidadãos indivíduos virtuosos e respeitadores da lei.
A virtude que temos que considerar é a virtude humana, visto que o bem e a felici-
dade que nos dispomos a buscar foram o bem humano e a felicidade humana. Mas
a felicidade humana signi�ca, a nosso ver, excelência da alma, não excelência do
corpo; em coerência com isso de�nimos a felicidade como uma atividade da alma
[...].
A ética deve importar particularmente a alguns seres humanos – aqueles que não
estão sob protecção imediata dos deuses. Mas este conjunto de seres a que a ética
diz respeito é intersectado por um outro, respeitante aos animais, aos quais
Aristóteles aplica o termo êthos.
[...]
Segundo Guthrie (1995, p. 57), o termo “nomo”, “norma escrita”, para os pensa-
dores do século 5 a.C. é alguma coisa em que se acredita, que se pratica e se
aceita por certa. Assim é aceito que povos diferentes tenham diferentes no-
mis.
Segundo Heráclito, as leis humanas são sustentadas pelas leis divinas (nó-
mos-physis); para os so�stas elas dependem de costumes e hábitos.
a) Os cínicos (400 a.C.), que cultivavam a ideia de que ser feliz dependia
de se liberar das coisas transitórias. Para esses pensadores, a felicidade é
um bem que pode ser alcançado por todos, pois ela não consiste em luxú-
ria, poder político ou boa saúde, e sim em se libertar disso tudo.
b) Os estoicos, cujo fundador é Zenão, e os epicuristas, escola fundada por
Epicuro. Ambos os grupos acreditavam que a Ética e as questões morais
eram mais importantes do que as questões teóricas. Baseavam sua
Filoso�a em um individualismo moral. Os estoicos, em geral, pregavam
uma vida austera, mas os epicuristas defendiam o prazer (hedoné), só que
o prazer que procede do exercício do lógos. No campo da moral proclama-
vam viver conforme a natureza, sendo a natureza o lógos, ou seja, deveria
se viver em concordância com a razão.
c) O neoplatonismo, que conserva traços do movimento inspirado pelos
pré-socráticos, Demócrito e Heráclito de Éfeso.
Ainda segundo Comparato (2006), os estoicos defendem que existe uma ordem
universal superior. Por isso é possível dizer que, para os estoicos, natureza
(physis) e razão (logos) se confundem. A natureza possui um princípio racio-
nal que é responsável por organizar as estruturas do mundo, a vida, em todos
seis níveis, inclusive a humana e a verdade ética. Motivado por esta ideia,
Zenão divide a Filoso�a em: Lógica, Física e Ética. Para ele a virtude consiste
em viver em concordância com a natureza.
Aristóteles (2005) escreve na obra Retórica que existem leis particulares dos
povos e leis comuns ao gênero humano. As últimas são conforme à natureza,
pois existe algo que todos, de certo modo, percebemos ser.
Aristóteles (2005, p. 114) cita a a�rmação de Antígona de que tais leis “não são
de hoje nem de ontem, senão que sempre existiram”.
Segundo Comparato (2006), a Ética estoica difundida por Cícero e trazida para
Roma por Panécio se destaca pelos seguintes princípios:
a) A lei natural está acima dos costumes e das leis dos povos, ela não depende da
vontade popular;
b) Viver em harmonia com a natureza;
c) Saber conformar seu próprio interesse com o interesse da coletividade, obser-
vando o bem comum e as leis que emanam da ordem natural;
d) Respeitar ao próximo pelo fato de ser pessoa humana de acordo com a lei natu-
ral implica em não atentar contra os direitos alheios;
e) Só o respeito pela lei natural resguarda as virtudes (amor à pátria, piedade, von-
tade de fazer o bem etc.);
f) O termo Lex toma em Cícero o sentido geral e abstrato de princípio, tal como a pa-
lavra “nómos” na �loso�a grega. A lei se de�ne como “a razão fundamental, ínsita
na natureza, que ordena o que se deve fazer e proíbe o contrário”. A lei verdadeira é,
portanto, a expressão da razão e da justiça. Segue-se que um mandamento injusto,
ainda que revestido de aparência legal, não é lei, senão corrupção dela; assim como
uma receita médica que induz a morte do paciente não é uma verdadeira receita
em essência. Um mandamento pernicioso, votado pelo povo, é tão pouco uma lei
quanto aquele promulgado por uma assembléia de bandidos (CÍCERO apud
COMPARATO, 2006, p. 112-113).
Para viver em harmonia com a natureza, o ser humano, que é um, não pode
ser dividido em alma e corpo como substâncias diferentes desde o ponto de
vista hierárquico como supusera Platão; deve controlar as paixões (a dor, o
medo, o desejo sexual, o prazer pelo prazer). Para alcançar o estágio de sábio, o
ser humano deve controlar sua conduta sendo indiferente, apático aos fatos
exteriores sobre os quais não tem poder nenhum (morte, dores pelo corpo, be-
leza ou feiura de seus traços, riqueza material ou pobreza, condição social
etc.). Para os helênicos, viver em concordância com a natureza consiste, em
última instância, em viver em harmonia consigo mesmo, a�rma Comparato
(2006, p. 110).
A phýsis se apresenta aos olhos estoicos como algo sagrado, evocando a soma
daquilo que é permanente e essencial nos fenômenos naturais, não no sentido
de um Deus criador como o do cristianismo, e sim como princípio de raciona-
lidade que se encontra em todas as coisas, em especial no homem, que con-
tém em si o logoi spermatikoi, ou seja, a capacidade de racionalidade equiva-
lente.
Cícero (2012) sustenta que a beleza e a complexidade do mundo, onde tudo es-
tá em equilíbrio e se ajusta perfeitamente, são provas ontológicas da existên-
cia de uma inteligência superior que tudo governa e ordena. Não foram áto-
mos acidentais os forjadores do mundo como pensaram os epicuristas. Viver
de acordo com a natureza signi�ca respeitar o princípio que opera nela.
Essa concepção de Direito Natural defendida pelos estoicos teve uma grande
in�uência sobre o ulterior desenvolvimento do Direito; está presente no pensa-
mento dos Padres da Igreja, in�uenciou as instituições jurídicas do Direito
Romano que foi legado para os povos do Ocidente, primeiramente, para logo se
universalizar.
Para Comparato (2006, p. 111-112), Cícero, por exemplo, explicou que o Direito
Civil é simplesmente a manifestação humana da Lei Natural. O verdadeiro
Direito não pode ser diferente em Atenas e Roma por ser de aplicação univer-
sal, imutável, eterna e obrigatória para todos os povos. Observemos o que diz
Comparato (2006, p. 116-117):
A partir do �nal da Segunda Guerra Púnica (218-201 a.C.), inicia-se o chamado pe-
ríodo helenístico da história jurídica romana, em que os jurisconsultos passam a
aplicar o método dialético grego na análise do Direito.
[...] Uma vez formulados os conceitos, o segundo passo da análise dialética consis-
tia em descobrir os princípios ou explicações racionais da realidade. Uma breve
narração das coisas (brevis rerum narration).
Mas a contribuição dos estóicos para a criação da ciência jurídica não se limita à
introdução do método da análise dialética da realidade jurídica. Eles trouxeram
também para Roma uma visão ética do mundo, expressa em um sistema de princí-
pios.
Não podemos encerrar o tema dos estoicos sem falar de um de seus fundado-
res, Epicuro, que tem uma reputação até um pouco injusta por parte de alguns
�lósofos cristãos, pois o consideram estimulador da autoindulgência e da su-
premacia da alegria. Talvez porque nos jardins (comunidade dos discípulos de
Epicuro) reinava a alegria por sobre as outras práticas educativas, a vida sim-
ples guiada pelo sensível desconsiderando a imortalidade da alma no sentido
platônico. No que respeita à moral, esse pensador defende a Regra de Ouro: é
impossível viver uma vida prazerosa sem viver sabiamente e é impossível vi-
ver bem e com prudência (evitando a dor, o perigo, a doença etc.) sem se viver
uma vida agradável. Em realidade, buscava mais a extinção do sofrimento do
que propriamente o prazer.
O mérito de Epicuro está em ter compreendido que havia alguma coisa que recla-
mava um grande número de espíritos e em ter-lhes dado satisfação de uma forma
admirável. Muitos homens, com efeito, preocupam-se acima de tudo em ser felizes;
a felicidade é o último termo das suas aspirações; mas, como são inteligentes, não
podem recusar o terem em conta as exigências do seu espírito; não poderiam ser
completamente felizes se não dessem uma razão plausível da sua regra de procedi-
mento; sentem a necessidade de conceber uma explicação do espetáculo que apre-
sentam os seres e os fenômenos do mundo, mas não apresentam muitas di�culda-
des, não são muito exigentes em matéria de explicação; contentam-se de boa von-
tade com a primeira teoria que lhes propõem, que julgam compreender e que acei-
tam com con�ança; não se dão ao trabalho de a complicar, de a aprofundar; se as
suas doutrinas apresentam algumas contradições, não dão por isso ou não se in-
quietam com a sua resolução. O epicurismo trazia-lhes precisamente aquilo que
eles pediam: “Ó aberta e simples e direta via”, diz Cícero (JOYAU, in Os Pensadores,
1985).
A Lei moral, inspirada no Direito Natural impresso por Deus no homem, deve
ser aplicada na vida cotidiana. O homem deve controlar as paixões (amor, ad-
miração, ódio, tristeza, alegria e desejo) e encaminhar-se para uma vida justa.
Segundo Agostinho (2000), como o homem possui uma vontade livre, é res-
ponsável ante Deus e ante si mesmo por sua vida.
Sócrates, o patrono da Filoso�a Moral, nos últimos dias de sua vida deixa, co-
mo está retratado na obra Críton de Platão, um grande ensinamento sobre o
que é bom, virtuoso, justo e sobre como atuar corretamente ante as desaven-
ças, injustiças etc.
Além das leituras, também sugerimos que assista aos seguintes vídeos:
13. Considerações
Neste ciclo, estudamos os aspectos conceituais em torno dos termos “ética” e
“moral”, que foram importantes para a compreensão da área de atuação da éti-
ca (objeto formal e material), sua organização e relação com a moral. Além
disso, também passamos pelas propostas éticas de alguns �lósofos e movi-
mentos da antiguidade (so�stas, Sócrates, Platão, Aristóteles, epicurismo e es-
toicismo) com o objetivo de delinear as origens da ética, bem como em que
sentido essa área da �loso�a foi alterada ou complementada pelos autores da
Filoso�a Medieval e do Renascimento.
(https://md.claretiano.edu.br/eti-gs0123-
fev-2023-grad-ead/)
Objetivos
• Perceber e examinar criticamente as principais questões éticas deriva-
das da Filoso�a e da Religião cristã.
• Reconhecer os principais representantes da Filoso�a cristã medieval e
suas propostas éticas: Agostinho e Tomás de Aquino.
• Conhecer e compreender as características fundamentais do pensa-
mento �losó�co da Renascença, a partir das mudanças relacionadas a
uma visão do mundo e do homem.
• Conhecer as concepções sobre o ético e o moral de alguns importantes e
representativos pensadores da época renascentista: Pico Della
Mirandola, Machiavel, Paracelso e Montaigne.
Conteúdos
• Os fundamentos da ética medieval: baseada no cristianismo e em suas
construções teóricas e dogmáticas, trazendo à luz temas éticos de pro-
fundo signi�cado, entre eles: a pessoa humana, a razão, a liberdade e a
virtude.
• O pensamento ético de Santo Agostinho e São Tomás de Aquino.
• O Renascimento como um momento ímpar da história do pensamento
humano e os conceitos éticos de alguns de seus principais representan-
tes: Pico Della Mirandola, Machiavel, Paracelso e Montaigne.
Problematização
O cristianismo reitera a ética greco-romana ou propõe novas bases do pensa-
mento ético? Como se dá a construção da ética com base no pensamento reli-
gioso? O renascimento traz elementos culturais novos que movimentam a
hermenêutica social, de que maneira isso se dá e como é aceito pelos repre-
sentantes intelectuais desse período, também conhecimento como humanis-
mo? Quais as principais colaborações de Pico Della Mirandola e Machiavel
para a ética no período do renascimento? A partir de uma investigação �losó-
�ca, como podemos inferir a respeito da ética na renascença, nas propostas
de Paracelso e Montaigne?
1. Introdução
O segundo Ciclo de Aprendizagem abordará as propostas éticas provenientes
do contexto medieval, especialmente com dois representantes, Agostinho e
Tomás de Aquino, como também apresentará as teorias éticas dos autores do
Renascimento, tais como Pico Della Mirandola, Machiavel, Paracelso e
Montaigne. Tais contribuições serão essenciais para a continuidade do estudo
de Ética, uma vez que estabelecerão problemas éticos e morais até então não
tratados pela Filoso�a antiga.
Bons estudos!
Mas o que essa questão tem a ver com a ética e a moral medieval? Em decor-
rência dessa concepção cristã do ser humano, a Filoso�a precisou enfrentar
novos problemas: uma vez que somos considerados seres maculados pelo pe-
cado original ("decaídos"), como poderemos conhecer a verdade? Com a sepa-
ração radical entre homem e Deus, como a criatura, em sua �nitude, poderá
conhecer a verdade in�nita e divina?
O pecado, portanto, não é algo necessário (ou seja, algo determinado), mas
contingente: resulta não de Deus, mas da vontade do homem - isto é, de seu
livre-arbítrio, ou do mau uso de sua liberdade.
Não é pelo fato de uma pessoa poder se servir da vontade também para pecar, que é
preciso supor que Deus no-la tenha concedido nessa intenção. Há, pois, uma razão
su�ciente para ter sido dada, já que sem ela o homem não poderia viver retamente.
Ora, que ela tenha sido concedida para esse �m pode-se compreender logo, pela
única consideração que se alguém se servir dela para pecar, recairão sobre ele os
castigos da parte de Deus. Ora, seria isso uma injustiça, se a vontade livre fosse da-
da não somente para se viver retamente, mas igualmente para se pecar. Na verda-
de, como poderia ser castigado, com justiça, aquele que se servisse de sua vontade
para o �m mesmo para o qual ela lhe fora dada? (AGOSTINHO, 1995, p. 74-75).
Por "verdades de razão" compreende-se o conhecimento que a razão humana é capaz de al-
cançar por si mesma; já por "verdades de fé" entende-se o conhecimento que só alcança-
mos por meio de uma revelação divina. E mais: as verdades que dependem da revelação di-
vina são aquelas que nossa razão �nita e imperfeita não só não pode alcançar sozinha, co-
mo também são, sobretudo, aquelas que só podemos aceitar sem compreender. Portanto, as
verdades de fé são "mistérios".
Entretanto, visto que as verdades - tanto a de razão como a de fé - têm sua ori-
gem na sabedoria e inteligência de Deus, chegamos ao seguinte termo: a ver-
dade, que para o homem é dividida em duas, na realidade, é indivisível e única
em si mesma, pois provém unicamente de Deus. "Uma vez que em Deus há du-
as espécies de verdades, algumas das quais são acessíveis à nossa inteligên-
cia e outras ultrapassam completamente a nossa capacidade, é justo que Deus
proponha como objetos de fé tanto umas como outras" (AQUINO, 1990, p. 24).
A alma julga todas as coisas, não segundo qualquer verdade, mas, segundo a verda-
de primeira, enquanto esta nela se re�ete, como num espelho, por meio dos princí-
pios primeiros. Donde se segue, que a verdade primeira é maior que a alma.
Contudo, também a verdade criada, existente em nosso intelecto, é maior que a al-
ma, não absolutamente, mas de certo modo, enquanto é a perfeição dela. Assim co-
mo também podemos dizer que a ciência é maior do que a alma. Mas, é verdade
que nada de subsistente é maior que a mente racional, exceto Deus (AQUINO, 2001,
p. 229, tradução nossa).
(https://mdm.claretiano.edu.br/eti-gp0061-2021-01-grad-ead-p/wp-content
/uploads/sites/792/2019/11/C2-F1.jpg)
: Thaves (2008).
O apóstolo S. Paulo o recorda: "Quem ama o outro cumpriu a lei. De fato, os preceitos
'não cometerás adultério, não matarás, não furtarás, não cobiçarás' e todos os
Outros se resumem nesta sentença: amarás o teu próximo como a ti mesmo. A cari-
dade não pratica o mal contra o próximo. Portanto a caridade é a plenitude da lei"
(Rm 13, 8-10). (CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA, 1993, §2196, p. 449).
A moralidade para os cristãos não é criada de forma arbitrária por Deus; pro-
vém do caráter inato de Deus, que é bom, portanto não pode ser aceito pecado
ou ruptura com a ordem divina. A lei moral é obra da sabedoria divina:
A Ética de Jesus está contida nos seus ensinamentos e é ilustrada pela sua vi-
da. O Sermão da Montanha, uma das melhores sínteses da Ética cristã, apre-
senta as bases éticas de Jesus, caracterizada pela humildade, misericórdia, in-
tegridade e veracidade, a busca da justiça e da paz, pelo perdão, a generosida-
de e, acima de tudo, pelo amor a Deus que se desprende do amor ao próximo.
Figura 3 Lápide sepulcral com peixes e âncora.
5. Pessoa humana
Apoiada na declaração do Livro do Gênesis, que diz que o ser humano foi cria-
do à imagem e semelhança de Deus (Gn 1, 26-27), a Bíblia eleva à condição de
dignidade “todos os seres humanos” por participarem da condição divina.
7. Agostinho de Hipona
Como explicam Cortina e Martínez (2005, p. 63-64) a obra de Agostinho per-
tence cronologicamente ao período romano, mas seu conteúdo inaugura uma
série de temas que serão discutidos ao longo da Idade Média. A Ética cristã de
Santo Agostinho é inspirada, como todo o seu pensamento, na Filoso�a greco-
platônica-estoica, matizada pela visão bíblica. Tanto Santo Agostinho como
São Boaventura se apoiam na Filoso�a de Plotino (204-270), que possui carac-
terísticas neoplatônicas, mas ambos se contrapõem ao racionalismo ético dos
pensadores gregos.
Esse raciocínio nos afasta um pouco do caminho que a Ética vinha traçando,
na medida em que os conteúdos da fé não podem ser apresentados com o
mesmo valor de verdade para todos os seres racionais, mas, como dizem
Cortina e Martínez (2005, p. 64):
[...] as éticas religiosas são realmente éticas, sempre que ofereçam sua correspon-
dente explicação da moral, mas são éticas “de máximos”, pois contêm elementos de
convite à felicidade que não podem razoavelmente ser impostos a todo ser racio-
nal. No entanto, com a adoção de muitas dessas éticas de máximos é possível coin-
cidir com outras éticas em conteúdos (alguns “mínimos” comuns) que permitiriam
uma convivência harmoniosa.
Assim, o mal não está na criação, e sim no mau uso que o homem faz dela. A
pergunta de Evódio: “como é possível que Deus conceda ao homem o livre-
arbítrio uma vez que é certeza que podia pecar?” é respondida por Agostinho
(2004) da seguinte forma: não é por que o homem tem a vontade livre para pe-
car que se deve supor que Deus a concedeu para isso. Sem ela o homem não
teria oportunidades de viver e agir corretamente; se o homem não fosse dota-
do de livre-arbítrio, não existiria esse bem que consiste na realização da justi-
ça por meio da condenação da ação moralmente errada e a premiação pela
ação da ação correta.
Segundo Marcondes (2007, p. 58-59), nas Con�ssões (livro VII, capítulo 12),
Agostinho diz que o mal deve ser entendido como diminuição ou privação do
bem, já que, sendo Deus sumamente bom, teria criado bens bons. No capítulo
16 (AGOSTINHO apud Marcondes, 2007) da mesma obra, o pensador conclui
que o mal não é substância, pois as coisas são boas; ele é produto do desvio de
conduta.
Você pode ampliar seus conhecimentos sobre esse tema lendo a obra O livre-arbítrio
(http://sumateologica.�les.wordpress.com/2009/07/santo_agostinho_-_o_livre-arbi-
trio.pdf), de Santo Agostinho.
Agostinho é um autor preocupado com a Ética, se bem que não escreveu uma
obra especí�ca sobre este tema no texto intitulado Sobre o sermão do senhor
da montanha (2003), tratou , quando ainda era bispo em Hipona, sobre a Ética
do Sermão da Montanha, considerado um dos grandes tratados éticos antigos.
Escrito em uma linguagem �gurada, ensina aquilo que o homem deve ser.
Para entender melhor sobre este tema, sugerimos que leia O Sermão da Montanha
(http://www.estudosdabiblia.net/som.pdf), de Paul Earnhart.
A moral para Santo Tomás é a ciência que dirige os atos humanos para seu
�m último. Esses atos humanos devem estar ordenados segundo a razão que
apreende as leis da natureza. Assim, a razão estará em concordância com a lei
natural, que é comum a todos os povos. Ainda existem os costumes, que são
particulares de cada povo; nesse sentido, a educação moral, que consiste no
ordenamento dos hábitos e dos costumes, fará com que o homem alcance a fe-
licidade na ordem do cumprimento de sua própria natureza (AQUINO, 2004, p.
19-21).
A felicidade total não é possível para o homem nesta vida; só pode ser alcan-
çada na vida de�nitiva junto ao Criador. Para isso, o homem deve atuar em
concordância com as virtudes para aperfeiçoar sua vida. Segundo Marcondes
(2007, p 61-63), o conceito de virtude em Santo Tomás provém de Aristóteles,
só que, para o pensador medieval, a virtude já não está relacionada ao concei-
to de polis, como no universo grego, e sim às virtudes teologais, enquanto uni-
das à caridade (amor ao próximo) que dá forma aos atos das virtudes. O con-
ceito de felicidade, que, para Aristóteles, coincidia com eudaimonia, está rela-
cionado à beatitude.
Para Tomás de Aquino, a vida prática deve ser organizada por meio dos prin-
cípios fornecidos pela sindérese e pela consciência moral. A sindérese, como
habitus, apreende e formula os dois grandes princípios da vida moral: fazer o
bem e evitar o mal. A palavra latina “habitus” signi�ca “um estado de corpo e
alma”, ou seja, “a maneira de ser da pessoa humana”. Assim, “habitus”, que, pa-
ra Aristóteles, é a primeira categoria predicamental (hexis), é um agir relacio-
nado com o concreto, com a inteligência, dispensando os instintos, dispen-
sando a ação da dimensão vegetativa da alma. Esse termo simboliza um dese-
jo re�etido. Sendo as virtudes habitus, pode se dizer que o homem virtuoso
age bem, em concordância com seu ser (AQUINO, 2004, IV, I-II, p. 45). Porém,
como está expresso no prólogo do volume 5 da Suma Teológica (2004, p. 45): “A
moral em generalidades é pouco útil, já que as ações se realizam em situações
particulares”. Esses princípios são sempre confrontados com a realidade pes-
soal. Para que isso seja possível, necessitamos da intervenção da consciência
moral, que é um ato da razão prática que engloba a sindérese, o conhecimento
moral, a experiência, as convicções etc.
A moral é uma ciência prática, isto é, uma ciência do ato humano tal como existe
onde quer que seja exercido. Não basta ter estudado os princípios gerais da moral: o
�m do homem; a felicidade eterna, depois os atos das paixões que podem conduzir
à felicidade. Para maior utilidade de aquele que age, é preciso retomar em “particu-
lar”. [...] Não podemos conceber todo “pensamento, palavra ou ato” que, estando re-
lacionados a um mesmo objeto, sejam da mesma espécie. Não podemos tampouco
pensar em determinar a norma, ou a medida de toda ação concreta. Esta depende
tanto de circunstâncias, tempo, lugar, humor, ou simplesmente de fraqueza ou for-
ça, de ignorância ou ciência (AQUINO, 2004, p. 43).
Entretanto, como diz Santo Tomás (2004), para agir bem, é necessário que a ra-
zão esteja bem disposta pelo hábito da virtude intelectual, e que a potência
apetitiva atue em relação ao hábito da virtude moral em conformidade com a
razão. Tal como o apetite se distingue da razão, assim também a virtude moral
se distingue da intelectual. As virtudes morais são vivenciadas na afetividade
humana, em relação ao costume.
Tanto as virtudes morais como as intelectuais têm como objeto algo que a ra-
zão humana pode compreender. Só as virtudes teologais podem relacionar-
nos à aventurança sobrenatural (AQUINO, 2004).
Para Santo Tomás, a fonte de toda lei é a vontade divina (plano de Deus para o
governo de suas criaturas), expressa na criação, que se evidencia no conheci-
mento do homem que está situado no tempo e na história. A partir do pensa-
mento divino chega a lei eterna que vai determinando as leis mais contingen-
tes, que são as terrenas. A Nova Lei ou lei de Cristo é a própria Graça, presença
dinâmica do amor de Deus (AUBERT in AQUINO, 2004).
Os quatro tipos de leis, para Santo Tomás, são: a lei eterna, que é a razão de
Deus; a lei natural, que é a "participação da lei eterna na criatura racional”; a
lei humana, que se deriva da lei natural e que norma a vida social; e a lei divi-
na, que é dada ao homem para que possa orientar-se para seu �m último que é
a vida. Vejam que, para Santo Tomás, a vida na terra é importante e faz parte
do plano de salvação do homem.
Para saber mais sobre esse pensador, sugerimos que leia a obra de Patrícia Calvário, O
Governo da Cidade no De Regno de Tomás de Aquino. (http://www.lusoso�a.net/textos/cal-
vario_patricia_o_governo_cidade_no_de_regno_de_tomas_de_aquino.pdf)
Além dos textos, para complementar a sua formação sobre ética medieval, as-
sista aos seguintes vídeos:
9. O contexto do Renascimento
Cada época tem a sua especi�cidade e singularidade em vista de seus diver-
sos condicionamentos e in�uências (sociais, econômicas, políticas, religiosas,
culturais e outros) que ajudaram a direcionar a História da Filoso�a. Por
exemplo: na antiguidade o povo grego formou numerosas perspectivas �losó-
�cas, tais como as de Parmênides, Heráclito, Sócrates, Protágoras, Demócrito,
Platão, Aristóteles, Epicuro, Zenão, Plotino etc. O mesmo pode-se dizer das so-
ciedades cristãs da Idade Média: elas também, embora profundamente preo-
cupadas com o aspecto religioso (relação do homem com Deus, com a vida fu-
tura e com a salvação eterna), elaboraram teorias e interpretações �losó�cas
bastante diversi�cadas, como as de Agostinho, Boécio, Anselmo, Abelardo,
Bernardo, Boaventura, Tomás de Aquino, Duns Scott, Ockham e outros.
Neste impulso de síntese entre contexto histórico e �losó�co nasceu o
"Renascimento", movimento intelectual iniciado na Itália entre os séculos XIV
e XV, cuja característica fundamental é a preocupação em resgatar e retomar a
cultura clássica que havia sido excluída durante toda a Idade Média
(BOTELHO, 2013, p. 45).
Porém, este período de transição da Idade Média para a época Moderna foi,
sem dúvida, complexo e repleto de acontecimentos históricos que foram capa-
zes de mudar radicalmente as estruturas sociais, a mentalidade e o comporta-
mento do homem medieval. De acordo com alguns autores (BOTELHO, 2010;
MONDIN, 1982; REALE; ANTISERE, 2004), veja alguns destes eventos e mudan-
ças que in�uenciaram o contexto do Renascimento:
Não te �zemos celeste nem terreno, nem mortal nem imortal, a �m de que tu, árbi-
tro e soberano artí�ce de ti mesmo, te plasmasses e te informasses, na forma que
tivesses seguramente escolhido. Poderás degenerar até aos seres que são as bestas,
poderás regenerar-te até às realidades superiores que são divinas, por decisão do
teu ânimo (MIRANDOLA, 1989, p. 57).
A um príncipe, portanto, não é necessário ter de fato todas as qualidades [...], mas é
indispensável parecer tê-las. Aliás, ousarei dizer que, se as tiver e utilizar sempre,
serão danosas, enquanto, se parecer tê-las, serão úteis. Assim, deves parecer cle-
mente, �el, humano, íntegro, religioso - e sê-lo, mas com a condição de estares com
o ânimo disposto e, quando necessário, não o seres, de modo que possas e saibas
como tornar-te o contrário. É preciso entender que um príncipe, sobretudo um prín-
cipe novo, não pode observar todas aquelas coisas pelas quais os homens são con-
siderados bons, sendo-lhe frequentemente necessário, para manter o poder, agir
contra a fé, contra a caridade, contra a humanidade e contra a religião. Precisa, por-
tanto, ter o espírito preparado para voltar-se para onde lhe ordenarem os ventos da
fortuna e as variações das coisas e, como disse acima, não se afastar do bem, mas
saber entrar no mal, se necessário (MACHIAVEL, 2001, p. 84-85).
Cabe ao homem, dentro de uma perspectiva ética, reconhecer que tudo está li-
gado a tudo e, por isso, compreender que a sua liberdade se legitima na sub-
missão e participação da vontade divina, que está em todas as coisas.
Por �m, a proposta ética de Michel de Montaigne (1533-1592) está voltada para
o ideal da "arte de viver" conforme a natureza. De vertente cética, Montaigne
despreza as idealizações metafísicas do contexto medieval e se pauta por um
pensamento humanista, que ensina ao indivíduo a reconhecer-se como "hu-
mano" em todas as suas virtudes e defeitos. Portanto, encarar a vida como ela
"é", em seus benefícios ou di�culdades, é o primeiro passo para uma legítima
realização de si, uma vez que suas expectativas de vida não estão atro�adas
pelo ressentimento passado, mas por uma otimista compreensão do presente:
É também vaidade desejarmos ser diferentes do que somos; um tal desejo não leva
a nada; contradiz-se e traz em si o obstáculo à sua realização. Quem deseja que o
homem se faça anjo, não trabalha por si; se seu desejo se realizasse, não o aprovei-
taria, pois não mais existindo não poderia regozijar-se com a transformação e sen-
tir seus efeitos (MONTAIGNE, 1984, p. 168).
Essa compreensão naturalista do ser humano reorienta os limites e os critéri-
os da re�exão moral em Montaigne: não convém ao sujeito culpar-se por aqui-
lo que pertence ao campo da condição humana; o que lhe cabe, nesse caso, é
fazer das experiências - boas ou más - um guia para suas escolhas futuras.
Pico della Mirandola de�ne o homem como meio de equilíbrio de todas as coi-
sas criadas: pela força do espírito e do intelecto, é o homem capaz de unir e
harmonizar os elementos da natureza.
Apesar de ter falecido aos 31 anos de idade, Pico della Mirandola é um dos re-
presentantes mais signi�cativos dessa visão, que coloca o homem como o
centro do universo. Ao lado do papel preponderante do homem na Criação
Divina e sua consequente miséria com a “queda” advinda do “pecado original”,
tão lembrada e descrita na visão religiosa, há que se enfatizar, segundo ele, a
dignidade que advém ao homem com o exercício da liberdade.
Esforçava-se Pico della Mirandola por estabelecer uma nova fé cristã funda-
mentada no desenvolvimento das capacidades humanas por meio de uma ex-
celente formação intelectual pelo estudo de correntes as mais diversas e mes-
mo opostas. O sincretismo, tendência a reunir doutrinas ou teorias diversas
ensinadas como verdadeiras seja por um autor, seja por vários autores, é uma
das características de sua obra. Propunha-se a estudar um tema sob o maior
número de pontos de vista, tentando chegar à visão ou ideia mais próxima
possível da realidade observada.
Do ponto de vista de uma “Ética”, a obra de Giovanni Pico della Mirandola re-
presenta o que Henri Gouhier (�lósofo francês de inspiração cristã, historiador
de Filoso�a e crítica dramática, autor, entre outras obras, de L’Anti-
humanisme du XVII siècle) denominou de “misticismo da nobreza humana”.
Trata-se de valorizar o poder de escolha situado no íntimo de cada ser huma-
no – nisso consistindo sua dignidade: “somos dignos porque somos livres”.
Esse poder de escolha, a liberdade, seria uma potencialidade do homem – po-
tencialidade que o liberta do dogma determinista religioso ou astrológico (a
astrologia tinha grande autoridade na época, no que concerne à determinação
do destino de cada indivíduo) e que reduzia o homem a um mero instrumento
de luta entre forças opostas. O poder de escolher torna-se um instrumento po-
sitivo de ação sobre a realidade. O ser humano é um ser imperfeito, mas cuja
possibilidade de perfeição é ilimitada, podendo alcançar o grau de moralidade
e intelectualidade que desejar.
Como todo pensador de sua época, Machiavel rompe com o poder da Igreja e,
em consequência, com a tradição ética cristã trazida da Idade Média. Volta-se
para os historiadores da Antiguidade e se impõe a tarefa de esclarecer, de ma-
neira rigorosa, as práticas políticas de seu tempo. Da mesma maneira que se
procuram leis que dessem conta do comportamento da natureza, Machiavel
busca as regras que regulam os comportamentos sociais e políticos.
En�m, fundamentar a ação política por uma concepção �losó�ca do dever éti-
co é, segundo Machiavel, correr o risco de perder o que deve ser conservado (o
poder) e com ele toda a possibilidade de governar. A verdade em política é que,
para se atingir um bem como a paz e a prosperidade, todo meio é legítimo. É o
que o mundo real exige e o mundo, segundo Machiavel, é imutável.
A imutabilidade do mundo
Em sua obra Discurso sobre a primeira década de Tito Lívio, Machiavel apre-
senta o mundo como imutável, pois, se o mundo não fosse constante, não seria
possível estabelecer suas leis.
Re�etindo sobre o andamento das coisas humanas, concluo que o mundo perma-
nece na mesma situação através dos tempos; que há sempre a mesma quantidade
de bem e de mal; mas que este mal e este bem não fazem nada mais do que percor-
rer diferentes lugares, diversos países.
Segundo o que conhecemos dos antigos impérios, vimos todos se deteriorarem uns
após os outros na medida em que seus costumes são modi�cados ou alterados.
Sei que alguns pensaram e pensam que os negócios deste mundo são de tal manei-
ra governados por Deus e pelo destino que os homens, com toda a sua sabedoria,
não podem mudar e não encontram para isso remédio; assim, poderiam julgar que
suar sangue e água para dominá-los seria em vão, em vez de se deixar governar pe-
lo destino. Esse ponto de vista foi retomado em nossa época por causa das grandes
revoluções que se tem visto e que se veem todos os dias, e que excedem toda con-
jectura por parte dos homens. Se bem que, algumas vezes eu mesmo, pensando so-
bre isso, me deixei levar, em parte, por essa visão. No entanto, nosso livre arbítrio
não pode ser negado, estimo que possa ser verdadeiro que a sorte seja a senhora de
metade de nossas obras, mas que também ela nos deixa governar aproximadamen-
te a outra metade. Comparo o destino com um desses torrenciais que, em sua cóle-
ra, inundam as planícies ao redor, destroem árvores e casas, roubam a terra de um
lado para levá-la para outro; todos fogem diante deles, todo mundo cede ao seu fu-
ror, sem poder impedi-los com diques e aterros mais elevados. Apesar disso, os ho-
mens, em tempos amenos, não deixam de ter a liberdade de construir diques e ater-
ros de maneira que, se o rio subir novamente, suas águas desembocarão em um ca-
nal, ou sua fúria não será tão livre e tão destruidora. O mesmo acontece com a
Fortuna, que mostra seu poder onde não há construção que possa resisti-la, e que
ataca onde sabe que não há diques nem pontes para enfrentá-la (MACHIAVEL,
1995b, p. 177-178, tradução nossa).
A necessidade leva a �ns que a razão desconhece. Esse fato explica os aciden-
tes da história e sua aparência caótica. Inimiga do homem de ação, a Fortuna
pode vir a ser um seu auxiliar, com a condição de que ele saiba dominá-la por
meio da política. E nisto consiste a “virtù”, ou seja, na capacidade de adapta-
ção aos acontecimentos políticos e de consequente permanência no poder.
Segundo Machiavel, a tendência dos seres humanos é manter sempre a con-
duta que deu certo, atitude que levaria à perda do poder. Os grandes homens
políticos, que criam novas situações por sua virtù, são os “virtuosi”.
Machiavel apresenta uma teoria cíclica da sucessão dos governos,
inspirando-se no historiador grego Políbio (202-120 a.C.) e na República de
Platão. Segundo essa teoria, existe um ciclo determinado que se apresenta de
maneira regular, tornando possível a observação histórica. O ciclo é o seguin-
te:
Para falar de ética, também é necessária uma alusão a Max Weber e sua teoria das
duas éticas. Weber, depois da Primeira Guerra Mundial, distingue a ética de princí-
pios, em que se aplicam valores já estabelecidos, da ética da responsabilidade, que
é a ética do estadista. Esta modalidade aponta para a necessidade de pensar nos
resultados possíveis de uma determinada ação. De modo geral, a ética da responsa-
bilidade é uma retomada de Machiavel; ela representa a interferência da política na
ética. [...]
Assim, por exemplo, quando Machiavel escreve que o príncipe deve ter as qua-
lidades que ele aparenta, estaria enunciando uma condição fundamental da
política como ela era em seu tempo e continua a ser até os dias de hoje, que é
“se desenrolar na aparência”; quando Machiavel diz que o príncipe tem que ter
domínio de si para poder desenvolver posições contrárias no caso de ser ne-
cessário, isso signi�caria que, no campo da política, não há lugar para os valo-
res de uma moral abstrata. En�m, a verdade na política é aquela de quem tem
o poder e que não vê a própria imagem passada aos outros.
Uma visão ética é sempre uma visão concreta, o que signi�ca uma visão com-
pleta tanto da “morada interior”, ou seja, tanto dos fenômenos em si mesmos,
quanto da “morada exterior”, ou dos fatos em si. A visão de Machiavel perma-
nece na “morada exterior”, ou seja, nos fatos. E a pergunta �nal é:
De fato, a posição de Paracelso sobre o homem e a Ética expressa uma das ca-
racterísticas básicas do Renascimento, que, contrariamente à separação entre
a natureza e o Divino (que se deu na Idade Média), busca reaproximá-los.
Podemos dizer, a partir do que aqui vimos, que o transcendental que funda o
ético e o moral, em Paracelso, é a vontade divina. A liberdade estaria no reco-
nhecimento de nossa submissão à vontade divina. O ético e o moral se situari-
am nesse “dever” de se realizar a si mesmo, mediante a obediência à vontade
divina, tendo em vista o que caracteriza o homem, tornando-o único: o seu
realizar-se está subordinado a uma instância superior que o ultrapassa, mas
que se impõe a ele incondicionalmente. Deus �xa, na natureza do homem, a
sua medida por meio dos dez mandamentos. A liberdade do homem está em
decidir sobre os meios para obedecer ou não a essa vontade.
Quando tudo o que aqui foi falado não for considerado, que haja um certo respeito e
um dever geral de humanidade nos ligando não apenas aos animais que têm vida e
sentimento, mas também às próprias árvores e às plantas. Nós devemos justiça aos
homens e a graça da clemência às outras criaturas capazes de bondade. [...] os tur-
cos dão esmolas e têm hospitais para os animais. Os Romanos têm um cuidado pú-
blico com o alimento das corujas, seu Capitólio foi salvo graças à vigilância das co-
rujas; os atenienses ordenaram que as mulas e os jumentos que tivessem auxiliado
a construção do templo chamado Hecatompedon fossem deixados livres e para
pastar, sem impedimento, em qualquer lugar. [...] Os egípcios enterravam os lobos,
os ursos, os crocodilos, os cães e os gatos em lugares sagrados, embalsamando
seus corpos e guardando luto (MONTAIGNE, 1995, p. 190-191, tradução nossa).
Chamo sempre razão esta aparência de raciocínio que cada um forja em si; essa ra-
zão com relação à qual podem existir outras contrárias sobre o mesmo tema é um
instrumento de chumbo e de cera, prorrogável, maleável e acomodada a qualquer
viés e a todas as medidas, não resta senão a capacidade de contorná-la. Seja qual
for o plano bem intencionado que tenha um juiz, se ele não se ouve no seu íntimo,
coisa que poucos gostam de fazê-lo, a inclinação à amizade, ao parentesco, à beleza
e à vingança, e não somente a sentimentos tão dominantes, mas ainda a este ins-
tinto fortuito que nos faz favorecer mais a um do que a outro, e que, na escolha de
temas semelhantes, mesmo estando presente a razão [...], podem se insinuar insen-
sivelmente em seu julgamento favorecer ou desfavorecer [...].
Eu que me vejo de mais perto, que tenho os olhos incessantemente voltados para
mim [...], mal ousaria dizer a vaidade e a fraqueza que encontro em mim. Eu ando
tão instável e tão mal assentado, eu me acho tão susceptível de escorregar e de me
desequilibrar, e minha visão tão confusa, a ponto de quando em jejum me sentir ou-
tro do que após me alimentar; se tenho algo que me espeta os dedos do pé, eis me
carrancudo, de mau humor e inacessível (MONTAIGNE, 1995, p. 302-303, tradução
nossa).
Com relação a grupos humanos muito diferentes dos europeus, os quais tem-
se o hábito de denominar de “selvagens” ou de “bárbaros”, Montaigne faz uma
re�exão sobre a precariedade de tais julgamentos sobre o que é civilizado e o
que não é.
Penso, voltando aos meus propósitos, que não existe nada de bárbaro nem de selva-
gem naquilo que me relataram, senão que cada um chama de bárbaro o que não
corresponde a um costume seu; verdadeiro também parece dizer que não temos ou-
tra visão da verdade e da razão além daquela das opiniões e costumes do país em
que vivemos. No nosso país a religião é perfeita, a polícia é perfeita, o uso de todas
as coisas é perfeito. São selvagens da mesma maneira que consideramos selvagens
os frutos que a natureza produz de si mesma e em seu desenvolvimento natural: na
verdade, são aqueles frutos que alteramos arti�cialmente, impedindo-os de se de-
senvolverem naturalmente, que deveriam ser denominados selvagens. Nos primei-
ros, estão vivas e vigorosas as verdadeiras e as mais úteis e naturais virtudes e pro-
priedades, as quais nós degeneramos e adaptamos de acordo com o nosso paladar
corrompido [...]. Não há por que a arte ser mais considerada do que a mãe Natureza.
Nós sobrecarregamos de tal maneira a beleza e a riqueza das obras da natureza que
a sufocamos (MONTAIGNE, 1995, p. 305-306, tradução nossa).
Agora, como ocorreu no ciclo anterior, chegou o momento de re�etir sobre sua
aprendizagem respondendo à questão a seguir:
14. Considerações
Neste ciclo, estudamos algumas das principais teorias éticas da Filoso�a
Medieval e do Renascimento. Dentre as principais ideias da ética medieval,
salientamos a questão do livre-arbítrio e da consciência moral - enquanto no-
ção de que cada indivíduo pode optar livremente em se aproximar ou se afas-
tar de Deus, o sumo Bem e o critério para a vida moral. No Renascimento ob-
servamos uma ética antropocêntrica, pautada em ideais humanistas, natura-
listas e na autonomia humana. Essas concepções serão fundamentais para
compreendermos as éticas modernas, que nasceram de projetos epistemológi-
cos em torno do questionamento acerca dos limites e das condições do conhe-
cimento.
fev-2023-grad-ead/)
Objetivos
• Conhecer as mudanças epistemológicas da Modernidade e relacioná-las
com as propostas da moral e da Ética do racionalismo e do empirismo
modernos.
• Compreender a proposta ética de René Descartes.
• Analisar os desdobramentos, na proposta de Spinoza, de uma Ética pu-
ramente racional-intuitiva.
• Conhecer a moral e o estado de direito em Thomas Hobbes e John
Locke.
• Compreender o empirismo e o início de uma moral utilitarista com John
Locke.
• Compreender a proposta do empirista David Hume sobre a moral.
Conteúdos
• As novas perspectivas éticas do período moderno e suas respectivas
metodologias de re�exão, dentre os quais encontraremos René
Descartes, Baruch Spinoza, Thomas Hobbes e John Locke.
• O empirismo como método em David Hume.
• A moral empirista de David Hume.
Problematização
A modernidade nasce pela ênfase no pensamento racional, na relevância
do cogito, orientando o valor do aspecto subjetivo: como isso impactou o pen-
samento sobre a ética? No período moderno houve divergências na concep-
ção de ética? Como se apresenta a proposta ética de Hume, quais suas carac-
terísticas e contribuições ao pensamento ético? Qual a relevância de Hume
para o pensamento de Kant?
1. Introdução
Como tentativa de superação de várias propostas do ceticismo moderno
(https://www.youtube.com/watch?v=xATfYuuVCC8), que duvidavam da capa-
cidade da razão humana para conhecer a realidade exterior (Deus, mundo e o
próprio homem), alguns �lósofos, a partir do séc. XVII, propuseram questionar
os limites e as fontes do conhecimento. Ou seja, antes mesmo de a�rmar a na-
tureza do “ser” e da essência das coisas (homem, mundo e Deus), conforme fez
a Filoso�a Antiga e Medieval, pensaram que seria mais adequado investigar a
possibilidade do conhecimento – isto é, o que a razão humana realmente é ca-
paz de conhecer.
Se alguém quiser investigar a sério a verdade das coisas, não deve escolher uma ci-
ência particular: estão todas unidas entre si e dependentes umas das outras; mas
pense apenas em aumentar a luz natural da razão, não para resolver esta ou aquela
di�culdade de escola, mas para que, em cada circunstância da vida, o intelecto
mostre à vontade o que deve escolher. Em breve �cará espantado de ter feito pro-
gressos muito superiores aos de quantos se dedicam a estudos particulares, e de ter
obtido não só tudo o que os outros desejam, mas ainda coisas mais elevadas do que
as que podem esperar (DESCARTES, 1985, p. 13).
Desta maneira, a concepção cartesiana sobre a relação entre corpo e alma está
vinculada ao controle racional das paixões corporais através de um comporta-
mento moral virtuoso; a ética para uma vida feliz depende do maior ou do me-
nor uso da reta razão. Portanto, a essência do homem consiste na res cogitans
(pensamento e razão), que refreia a potencialidade dos erros e das opiniões ad-
vinda da res extensa (sentidos e paixões corporais) – conforme ilustrado nas
máximas de sua moral provisória.
Embora a segunda de�nição sirva para resolver o problema criado pela pri-
meira, é inegável a ambiguidade em torno do conceito de substância: trata-se
daquilo que “depende” e, ao mesmo tempo, “não depende” de outra coisa para
existir. Ao perceber essa contradição conceitual, Spinoza conclui que a única
maneira de resolver essa aporia seria considerar a existência de uma substân-
cia só, de modo unívoco e radical, como causa sui (causa de si mesma): “por
substância compreendo aquilo que existe em si e que por si mesmo é concebi-
do” (SPINOZA, 2016, p. 13). Portanto, para o autor, só Deus pode ser causa de si
mesmo: “por Deus compreendo [...] uma substância que consiste de in�nitos
atributos, cada um dos quais exprime uma essência eterna e in�nita”
(SPINOZA, 2016, p. 13).
Se Deus é a única realidade que pode ser identi�cada como substância, o que
seria então o pensamento e a matéria? Segundo Spinoza, pensamento e maté-
ria não seriam substâncias, mas atributos in�nitos de uma única substância:
“o atributo é aquilo que, da substância, o intelecto percebe como constituindo a
sua essência” (SPINOZA, 2016, p. 18). Na realidade, a substância (Deus) possui
in�nitos atributos constitutivos de sua essência; no entanto, a �nitude do inte-
lecto humano concebe apenas dois: o pensamento e a extensão (materialida-
de).
Agora, pois, que meu espírito está livre de todos os cuidados, e que consegui um re-
pouso assegurado numa pací�ca solidão, aplicar-me-ei seriamente e com liberdade
a destruir em geral todas minhas antigas opiniões. Ora, não será necessário, para
alcançar esse desígnio, provar que todas elas são falsas, o que talvez nunca levasse
a cabo; mas, uma vez que a razão já me persuade de que não devo menos cuidado-
samente impedir-me de dar crédito às coisas que não são inteiramente certas e in-
dubitáveis, do que às que parecem manifestamente ser falsas, o menor motivo de
dúvida que eu nelas encontrar, bastará para me levar a rejeitar todas (DESCARTES,
1973a, p. 93).
A primeira máxima
A vida de cada um deve ser não apenas conforme os desígnios divinos, que
seriam os mais justos, mas, ainda, conforme a conduta daqueles que seguem
as leis e os costumes de seu país e que são os moderados e sensatos.
A primeira era obedecer às leis e aos costumes de meu país, retendo constante-
mente a religião em que Deus me concedeu a graça de ser instruído desde a infân-
cia, e governando-me, em tudo o mais, segundo as opiniões mais moderadas e as
mais distanciadas do excesso, que fossem comumente acolhidas em prática pelos
mais sensatos daqueles com os quais teria de viver. Pois, começando desde então a
não contar para nada com minhas próprias opiniões, porque eu as queria submeter
todas a exame, estava certo de que o melhor a fazer era seguir as dos mais sensa-
tos. E, embora haja talvez, entre os persas e chineses, homens tão sensatos como
entre nós, parecia que o mais útil seria pautar-me por aqueles entre os quais teria
de viver (DESCARTES, 1973a, p. 49-50).
Mas confesso que é preciso um longo adestramento e uma meditação amiúde reite-
rada para nos acostumarmos a olhar por este ângulo todas as coisas; e creio que é
principalmente nisso que consistia o segredo desses �lósofos, que puderam outrora
subtrair-se ao império da fortuna e, malgrado as dores e a pobreza, disputar felici-
dade aos seus deuses. Pois, ocupando-se incessantemente em considerar os limites
que lhes eram impostos pela natureza, persuadiram-se tão perfeitamente de que
nada estava em seu poder além dos seus pensamentos, que só isso bastava para
impedi-los de sentir qualquer afecção por outras coisas; e dispunham deles tão ab-
solutamente, que tinham neste particular certa razão de se julgarem mais ricos,
mais poderosos, mais livres e mais felizes que quaisquer outros homens, que, não
tendo esta �loso�a, por mais favorecidos que sejam pela natureza e pela fortuna, ja-
mais dispõem assim de tudo quanto querem (DESCARTES, 1973a, p. 51).
Entendo por Deus uma substância in�nita, eterna, imutável, independente, puro co-
nhecimento, puro poder, pelo qual eu próprio e tudo o que existe (se é verdade que
há algo existente) foi criado e produzido. Ora, tais vantagens são tão grandes e ad-
miráveis que quanto mais atentamente eu as considero, mais me convenço de que
a ideia de Deus não pode se originar unicamente de mim. E, consequentemente, se
faz necessário concluir que Deus existe: pois, embora a ideia de substância exista
em mim, uma vez que sou uma substância, não teria, entretanto, a ideia de uma
substância in�nita, eu que sou um ser �nito, se tal ideia não tivesse sido colocada
em mim por alguma substância que não fosse verdadeiramente in�nita.
E, não devo imaginar que tal concepção de in�nito não seja uma verdadeira ideia,
mas somente resultado da negação do que é �nito, da mesma maneira que compre-
endo o repouso e as trevas pela negação do movimento e da luz: isso porque vejo
claramente que existe mais realidade na substância in�nita do que na substância
�nita e, em consequência, tenho em mim a noção de in�nito e de Deus antes da no-
ção de �nito e de mim mesmo. Pois, como seria possível que eu pudesse saber que
duvido e que desejo, isto é, que me falta algo e que não sou perfeito, se não tivesse
em mim a ideia de um ser mais perfeito do que o meu ser, em comparação com o
qual eu pudesse ter o conhecimento dos defeitos de minha natureza? (DESCARTES
apud ROUX-LANIER; et al., 1995, p. 224, tradução nossa).
Mas, e o entendimento?
Em sua terceira máxima, como vimos, Descartes a�rma que o mundo é regido
por leis imutáveis, acima de nosso alcance. Portanto, nosso entendimento é li-
mitado.
Mas, eis que, enquanto falo, aproximo-o do fogo: o que nele restava de sabor se exa-
la, o odor desaparece, sua cor muda, ele esquenta, mal posso tocá-lo e, embora nele
bata, não emitirá mais nenhum som. Trata-se da mesma cera, após essa mudança?
É preciso admitir que permanece o mesmo pedaço de cera, ninguém pode negar. O
que, então, neste pedaço de cera é conhecido como tal? Certamente nada do que foi
constatado pelos sentidos, uma vez que tudo aquilo que veio pelo paladar, pelo olfa-
to, pela vista, pelo tato ou pelo ouvido se encontra modi�cado e, no entanto, a cera
permanece a mesma. Talvez, penso agora, a cera não era nem essa doçura do mel,
nem esse agradável odor das �ores, nem essa brancura, nem essa �gura, nem esse
som, mas somente um corpo que um pouco antes me era dado sob essas formas e
que agora se apresenta sob outras formas. Mas, o que exatamente imagino, quando
a concebo dessa maneira? Consideremos a cera atentamente, afastando tudo o que
não lhe pertence, e vejamos o que resta. O que é certo é que não resta senão algo ex-
tenso, �exível e mutável. Ora, o que é isto: �exível e mutável? Não seria o fato de
que imagino que esta cera, sendo redonda, pode vir a ser quadrada e passar de qua-
drada a uma �gura triangular? Não, certamente, não seria isso, pois a concebo ca-
paz de receber uma in�nidade de semelhantes mudanças, mas não seria, entretan-
to, capaz de percorrer essa in�nidade de mudanças com a minha imaginação, o
que me faz concluir que essa concepção que tenho da cera não se dá por meio da
faculdade de imaginar (DESCARTES in ROUX-LANIER, 1995, p. 223-224, tradução
nossa).
Em outras palavras, todo corpo é conhecido como corpo, (aquilo que permane-
ce a despeito de modi�cações e variações), por meio de uma ideia ou julga-
mento: a ideia de extensão, ideia essa de um sujeito conhecedor, a alma. Só a
ideia de extensão torna possível a representação de um corpo como tal. Em
outras palavras, o que temos é a representação de um corpo, graças a uma
ideia, a ideia de extensão e esta, como já foi dito, é produto da alma.
Ações e paixões
Quando a alma busca imaginar o que não existe ou concebe algo puramente
inteligível, estaríamos diante de “ações”, ou seja, de percepções dependentes
principalmente da vontade. As “paixões”, diferentemente, se situariam no do-
mínio da união da alma e do corpo.
As paixões
Descartes elege a glândula pineal (situada entre os olhos) como a sede da al-
ma, por ser a única parte do corpo conhecida na época que não seria dupla. Os
olhos são duplos, os ouvidos são duplos, mas o pensamento não é; por isso, a
glândula pineal seria a sede do pensamento ou da alma. Essa glândula é cer-
cada de pequenas rami�cações das carótidas (as principais artérias do pesco-
ço), que trariam os “espíritos animais” ao cérebro.
O conceito de “virtude”
Por “virtude” entende o �lósofo o hábito da alma que a orienta para determina-
dos pensamentos, pensamentos esses gerados pela alma e muitas vezes forta-
lecidos por movimentos dos “espíritos”, o que faz com que sejam, ao mesmo
tempo, “virtudes” e “paixões”. Trata-se da �rme resolução de não nos desviar-
mos, pelo desejo, em direção ao que não depende de nós.
As almas fortes são virtuosas, têm poder sobre as paixões com armas própri-
as, ou seja, com “juízos �rmes e determinados sobre o conhecimento do bem e
do mal”, à luz dos quais decidiu conduzir suas ações.
A ação moral, para Descartes, não deve estar fundada apenas no conhecimen-
to possível, mas, também, no correto controle das paixões, pois são elas que,
pelo “desejo”, comandam a passagem do pensamento à ação e esse comando,
quando voltado para o possível, dando-se à luz do livre-arbítrio, é a própria
“virtude”, operando por meio da “generosidade”.
Diz ele:
Nossas paixões [...] não podem ser provocadas nem eliminadas por nossa vontade,
mas podem ser indiretamente, pela representação das coisas que habitualmente
costumam se associar às paixões que queremos ter e que são contrárias às que que-
remos rejeitar (DESCARTES in ROUX-LANIER, 1995, p. 228, tradução nossa).
Porém, embora con�gurando uma moral racional, não chega Descartes a uma
moral cientí�ca. Começa por distinguir pensamento da ação: podemos pensar
de uma maneira e agir de outra. É na ação, porém, que residiria a dimensão
moral da conduta. Em contrapartida, podemos ser virtuosos mesmo não pos-
suindo um conhecimento claro e distinto, pois os juízos morais podem não ser
absolutamente certos, embora devam ser os melhores possíveis. A virtude, ba-
se de toda conduta moral, consistiria no esforço para compreender o melhor
possível e, de acordo com isso, agir o melhor possível.
Trabalharemos, a seguir, o cartesiano Spinoza, que irá tomar, diante das di�-
culdades presentes no pensamento de Descartes, sobretudo no que diz respeito
ao problema da consciência moral, uma direção totalmente nova, optando por
considerá-la em sua dimensão eminentemente ética.
Veremos, com Spinoza, que, embora tudo pareça indicar não ser possível a
construção de uma moral baseada em um conhecimento exato, como é o co-
nhecimento cientí�co, pode ser possível pensar a consciência moral em sua
dimensão ética, via um saber rigoroso, que é o saber “compreensivo”, rigoroso
porque busca considerar todas as nuances possíveis constituintes do objeto,
trabalhado na sua “singularidade”.
A obra Ética, de Spinoza, da qual trataremos neste estudo, foi escrita por
Spinoza durante sua estadia em Rijinsburg, perto de Leyde (cidade situada na
Holanda do Sul), onde possuía muitos amigos. Foi editada após a sua morte.
Sobre ela, encontramos o seguinte texto de uma carta de Spinoza escrita em
1665 para Guillaume de Blyenberg:
Entendo por um homem justo aquele que deseja constantemente que cada um pos-
sua o que lhe é devido e demonstro em minha Ética (não ainda editada) que esse
desejo nos homens piedosos tem necessariamente sua origem no conhecimento
claro que possuem tanto de si mesmos quanto de Deus (SPINOZA, 1965, prefácio,
tradução nossa).
Por substância compreendo aquilo que existe em si mesmo e que por si mesmo é
concebido, isto é, aquilo cujo conceito não exige o conceito de outra coisa do qual
deva ser formado (SPINOZA, 2008, p. 13).
Não há, pois, “criação”, mas produção imanente de uma única substância:
Deus ou a Natureza. Em outras palavras, não existe a obra de um Deus trans-
cendente, separado do mundo.
Demonstração. A beatitude consiste no amor para com Deus (pela prop. 36, junta-
mente com seu esc.), o qual provém, certamente, do terceiro gênero de conheci-
mento (pelo corol. da prop. 32). Por isso, esse amor (pelas prop. 56 e 3 da p. 3) deve
estar referido à mente, à medida que esta age, e, portanto (pela def. 8 da p. 4), ele é a
própria virtude. Era este o primeiro ponto. Por outro lado, quanto mais a mente des-
fruta desse amor divino ou dessa beatitude, tanto mais compreende (pela prop. 32),
isto é (pelo corol. da prop. 3), tanto maior é o seu poder de refrear os afetos e (pela
prop. 38) tanto menos ela padece dos afetos que são maus. Assim, porque a mente
desfruta desse amor divino ou dessa beatitude, ela tem o poder de refrear os apeti-
tes lúbricos. E como a potência humana para refrear os afetos consiste exclusiva-
mente no intelecto, ninguém desfruta, pois, dessa beatitude porque refreou os afe-
tos, mas, em vez disso, o poder de refrear os apetites lúbricos é que provém da bea-
titude. C. Q. D.
. [...] Torna-se, com isso, evidente o quanto vale o sábio e o quanto ele é supe-
rior ao ignorante, que se deixa levar apenas pelo apetite lúbrico. Pois o ignorante,
além de ser agitado, de muitas maneiras, pelas causas exteriores, e de nunca gozar
da verdadeira satisfação de ânimo, vive, ainda, quase inconsciente de si mesmo, de
Deus e das coisas, e tão logo deixa de padecer, deixa também de ser. Por outro lado,
o sábio, enquanto considerado como tal, di�cilmente tem o ânimo perturbado. Em
vez disso, consciente de si mesmo, de Deus e das coisas, em virtude de uma certa
necessidade eterna, nunca deixa de ser, mas desfruta, sempre, da verdadeira satis-
fação do ânimo. Se o caminho, conforme já demonstrei, que conduz a isso parece
muito árduo, ele pode, entretanto, ser encontrado. E deve ser certamente árduo
aquilo que tão raramente se encontra. Pois se a salvação estivesse à disposição e
pudesse ser encontrada sem maior esforço, como explicar que ela seja negligencia-
da por quase todos? Mas tudo o que é precioso é tão difícil como raro (SPINOZA,
2008, p. 411).
Essa busca das diferentes direções do tema considerado (no caso, a beatitude)
consiste essencialmente em um processo rigoroso de produção de novas pos-
sibilidades. Ao exercer esse terceiro gênero de conhecimento, o homem
constitui-se a si mesmo a partir de forças que vêm de dentro do próprio movi-
mento de todas as coisas existentes, à maneira de Deus ou da Natureza e só
nessa condição é livre.
A alma e o corpo
Continuando seu discurso dedutivo, diz Spinoza: não sofrendo o conceito de
“substância”, em princípio, nenhuma limitação, compreende uma in�nidade
de atributos, dos quais cada um, não podendo ser limitado senão por ele mes-
mo, é in�nito em seu gênero. O atributo “é aquilo que, da substância, o intelecto
percebe como constituindo a sua essência” (SPINOZA, 2008, p. 23). O entendi-
mento percebe, assim, a substância como ela é na realidade (Ética, Primeira
Parte, Proposição 10, Demonstração). Desses atributos, nosso entendimento,
segundo Spinoza, só pode conhecer o “pensamento” e a “extensão”.
Por modo compreendo as afecções de uma substância, ou seja, aquilo que existe em
outra coisa, por meio da qual é também concebido (SPINOZA, 2008, p. 13).
A alma humana e o corpo humano são, pois, dois “modos” de Deus, dois efeitos
da substância única e in�nita que é Deus. A alma se refere ao atributo pensa-
mento, o corpo ao atributo extensão. Não podemos formar a ideia da alma hu-
mana senão nos referindo ao atributo do pensamento, e a ideia do corpo hu-
mano senão nos referindo ao atributo da extensão. Por isso, embora substan-
ciais (porque se referem a atributos da substância), alma e corpo não são duas
substâncias distintas (contrariando aqui Descartes).
Ainda que a natureza das coisas não permita duvidar sobre esta questão, creio, en-
tretanto, que a menos que se dê desta verdade uma con�rmação experimental, os
homens di�cilmente serão levados a examinar esse ponto com um espírito de isen-
ção; de tal maneira estão persuadidos que o Corpo ora se mexe, ora cessa de se mo-
ver por um simples comando da Alma, e que realiza um grande número de atos que
dependem unicamente da vontade da alma e de sua arte de pensar. Ninguém, é
verdade, determinou até o presente momento o que pode o Corpo, isto é, a experiên-
cia não ensinou a ninguém até o momento o que, unicamente pelas leis da
Natureza, considerada enquanto corporal, o Corpo pode fazer e o que não pode fazer
a não ser determinado pela Alma. Ninguém de fato conhece tão exatamente a es-
trutura do Corpo que fosse capaz de explicar todas as suas funções, para não falar
do que se observa inúmeras vezes nos animais que ultrapassa de muito a sagacida-
de humana, e do que fazem frequentemente os sonâmbulos durante o sono que não
ousariam fazer quando acordados e isso mostra su�cientemente que o Corpo pode,
só pelas leis de sua natureza, fazer muitas coisas que causam surpresa à sua Alma.
Ninguém sabe, por outro lado, em qual condição ou por quais meios a Alma move o
Corpo, nem quantos graus de movimento ela pode lhe impor e com qual rapidez ela
pode movê-lo. De onde se conclui que, quando os homens dizem que tal ou tal ação
do Corpo vem da Alma, a qual tem um domínio sobre o Corpo, não sabem o que di-
zem e não fazem mais do que confessar em uma linguagem especial sua ignorân-
cia da verdadeira causa de uma ação que não provoca neles espanto (SPINOZA in
ROUX-LANIER, 1995, 137-138, tradução nossa).
Na parte sobre a natureza e a origem da alma de sua obra Ética, Spinoza apre-
senta os seguintes postulados sobre o corpo:
I. O Corpo humano é composto de um grande número de indivíduos (de natureza
diversa) e cada indivíduo é também composto.
II. Dos indivíduos dos quais o Corpo humano é composto alguns são �uidos, alguns
são moles, alguns, en�m, são duros.
V. Quando uma parte �uida do Corpo humano é afetada por um corpo exterior de
maneira a tocar frequentemente uma parte mole, ela muda a superfície desta e im-
prime nela, por assim dizer, certos vestígios do corpo exterior que a afeta.
VI. O Corpo humano pode mover de várias maneiras e dispor os corpos exteriores
de inúmeras formas (SPINOZA, 1965, p. 91, tradução nossa).
Nada mais útil ao homem do que o homem; os homens, digo, não podem desejar
nada de maior valor para a conservação de seu ser do que concordarem todos sobre
todas as coisas de maneira que as Almas e os Corpos de todos componham uma só
Alma e um só Corpo, nada de maior valor do que se esforçarem todos em conjunto
para conservar seu ser e procurar tudo o que lhes é útil em comum; do que se con-
clui que os homens que são governados pela Razão, isto é, aqueles que procuram o
que lhes é útil conduzindo-se pela Razão, não desejam para eles mesmos nada que
não desejem também para os outros homens, e são justos, de boa fé e honestos.
Tais são os comandos da Razão que tinha me proposto dar a conhecer aqui, em
poucas palavras, antes de começar a demonstrá-los em ordem, de maneira mais
prolixa, e o meu motivo para fazê-lo foi o de chamar, se possível, a atenção daqueles
que creem que este princípio: cada um deve procurar o que lhe é útil, é a origem da
imoralidade, não da virtude e da moralidade. Depois de ter mostrado brevemente
que é exatamente o contrário, continuo demonstrando-o com os mesmos argumen-
tos apresentados até aqui em nosso caminhar (SPINOZA in ROUX-LANIER, 1995, p.
259, tradução nossa).
Se em uma cidade as pessoas tomam armas porque estão sob o império do terror,
deve-se dizer não que ali a paz não reina, mas que ali a guerra não reina. A paz, efe-
tivamente, não é a ausência de guerra, é uma virtude que tem sua origem na força,
pois a obediência é uma vontade constante da alma de fazer o que, de acordo com o
direito comum da Cidade, deve ser feito. Uma cidade é preciso ainda dizer, onde a
paz é um efeito da inércia de sujeitos conduzidos como um rebanho e educados
unicamente para servir, merece o nome de deserto em vez de cidade.
Quando dizemos que o melhor Estado é aquele em que os homens vivem na con-
córdia, entendo que eles vivem uma vida propriamente humana, uma vida que não
se de�ne pela circulação do sangue e pela realização das outras funções comuns a
todos os outros animais, mas que se de�ne principalmente pela razão, pela virtude
da alma e pela vida verdadeira (SPINOZA in ROUX-LANIER, 1995, p. 261, tradução
nossa).
Não há, pois, “vontade” entendida como o poder de a�rmar ou negar o que é
verdadeiro ou o que é falso, assim como não há “�nalidade” ou “causas �nais”,
uma vez que não há uma essência imóvel e transcendente em vista da qual
foram as coisas criadas.
Não há livre arbítrio ou liberdade nas coisas e nos homens. Só Deus é livre
Mas, desçamos às coisas criadas que são todas determinadas a existir e a agir de
certa maneira de�nida. Para tornar isso claro e inteligível, concebamos algo muito
simples: uma pedra, por exemplo, recebe certa quantidade de movimento de uma
causa exterior que a move e, cessando o impulso da causa exterior, ela continuará a
se mover necessariamente. Essa persistência da pedra em seu movimento é uma
coerção, não por necessidade, mas se de�ne como um impulso de uma causa exte-
rior. E o que é verdadeiro com relação à pedra deve sê-lo no que se refere a toda coi-
sa singular, qualquer que seja a complexidade que se queira lhe atribuir, não impor-
tando quão numerosas forem suas aptidões, porque toda coisa singular é necessa-
riamente determinada a existir e a agir de certa maneira determinada por uma
causa exterior.
Concebamos agora que a pedra, enquanto continua a se mover, pensa e sabe que ela
faz esforço, tanto quanto pode, para se mover. Essa pedra seguramente, pois que ela
tem somente consciência de seu esforço e que ela não é de maneira alguma indife-
rente, acreditará que é muito livre e que não persevera em seu movimento porque
não quer. Tal é essa liberdade humana de que todos se vangloriam de possuir e que
consiste unicamente no fato de que os homens têm consciência de seus apetites e
ignoram as causas que os determinam (SPINOZA in ROUX-LANIER, 1995, p. 261,
tradução nossa).
Depois de sua morte, Spinoza foi, como observam seus biógrafos, um dos �ló-
sofos mais comentados e pouco lidos. Para muitos, como John Locke e David
Hume (que estudaremos a seguir), as ideias ateias de Spinoza eram tolas. O �-
lósofo Immanuel Kant o ignorou.
Foi apenas após Goethe (1749-1832, pensador e escritor alemão), seu admira-
dor, que suas obras passaram a ser lidas com o devido cuidado.
Sugerimos que faça a leitura de Deus ou seja a natureza: Spinoza e os novos paradigmas da
física, (https://repositorio.ufba.br/ri/bitstream/ufba/207/1/Deus%20ou%20seja%20a%20natu-
reza.pdf)de Roberto Leon Ponczek.
No que se refere à orientação básica dada a esta obra, segundo a qual o ético
distingue-se essencialmente do moral, a Ética de Spinoza exempli�ca admira-
velmente, em muitos aspectos, o que se espera de um discurso que se situe na
instância do “singular” e que seria eminentemente o discurso ético,
distinguindo-o radicalmente do moral. De fato, Spinoza se ocupa fundamen-
talmente do ético. Diríamos que, quanto à moral, a saber “regras” e “dever nor-
mativo” com base em ideias gerais e no “dever ser” imaginativo, o �lósofo en-
tende que só imperarão, na medida em que essa razão intuitiva (fundante, a
nosso ver, da instância ética) ainda não dominar.
Leitura complementar
Vídeo complementar
5. Éticas Empiristas
O empirismo, enquanto movimento �losó�co, defende que a origem das ideias
são provenientes da experiência ou das percepções sensoriais, não existindo,
assim, nada que justi�que a possibilidade de ideias inatas. Nada originário
chega ao intelecto sem passar anteriormente pelos sentidos. Dentre os autores
empiristas, estudaremos mais de perto Thomas Hobbes e John Locke.
(https://mdm.claretiano.edu.br/eti-gp0061-2021-01-grad-ead-p/wp-content
/uploads/sites/792/2019/12/C3-F1.png) : Reale e Antisere (2005, p. 76).
Figura 1 Filoso�a - ciência dos corpos.
Segundo Locke, para evitar uma situação de guerra, os homens criaram então
a existência de um representante comum, que tinha como função responder
em nome dos direitos de todos. Esse representante, que possui soberania e que
personi�ca em sua ação os interesses de todos, recebe o nome de Governo
Civil. Desta maneira, os homens submetem-se à autoridade e proteção do
Governo Civil, transferindo espontaneamente o autogoverno dos seus direitos
naturais, através da existência de um Contrato de interesse comum.
No entanto, segundo Locke, não são todos os direitos naturais que são transfe-
ridos ao Governo Civil: a vida, a liberdade e a propriedade privada, mesmo de-
pois da criação do Governo Civil, continuam sendo de posse única e inaliená-
vel do indivíduo. A �nalidade do Governo seria: a) evitar e remediar as incon-
veniências do Estado de Natureza, no qual cada homem é juiz em causa pró-
pria; b) por não ser soberano supremo de todos os direitos naturais, também
deve garantir a preservação da vida, da liberdade e da propriedade privada dos
indivíduos.
Essa satisfação contínua dos próprios desejos leva os homens, em seu estado
natural, a viver em guerra uns com os outros. Vivem em constante angústia
com o temor da morte violenta pelos outros. Guerreiam entre si porque a natu-
reza os fez iguais e essa igualdade os leva a entender que cada um pode ter o
que o outro possui. As diferenças naturais entre os homens são insigni�cantes
e, portanto, insu�cientes para levar o mais fraco a pensar em poder derrotar o
mais forte.
A única maneira de erigir tal poder comum, apto a defender as pessoas do ataque
de estranhos, e do mal que poderiam fazer uns aos outros, e, desse modo, protegê-
las de forma que, pelo seu trabalho e produção da terra, pudessem se alimentar e
viver satisfeitos, é con�ar todo seu poder e toda sua força a um só homem, ou a
uma única assembleia, que pudesse reunir suas vontades, pela regra da maioria,
em uma só vontade. O que signi�ca dizer: designar um homem ou uma assembleia,
para assumir sua personalidade; e que cada um confesse e se reconheça como au-
tor de tudo que tal homem terá feito ou ordenar que se faça no que diz respeito às
coisas que concernem à paz e segurança comum [...] que cada um, consequente-
mente, submeta sua vontade e seu julgamento à vontade e ao julgamento desse ho-
mem ou assembleia. Isso vai além do consenso e da concórdia: trata-se de uma
unidade real de todos em uma só e mesma pessoa, unidade realizada por meio de
um acordo de cada um com cada um, feito de tal maneira que seria como se cada
um dissesse a cada um: “autorizo este homem ou esta assembleia, e eu con�ro a
eles meu direito de me governar, com a condição que abandone seu direito e autori-
ze todas as suas ações da mesma maneira”. Feito isso, a multidão assim unida em
uma só pessoa é chamada de “república”, em latim “civitas”. Tal é a geração deste
grande Leviatã, ou falando com mais reverência, deste “deus mortal”, ao qual deve-
mos, sob o “deus imortal”, nossa paz e proteção (HOBBES, 1983, p. 177-178, tradução
nossa).
A construção do Estado ou contrato social
É mediante um contrato social que uma multidão de homens passa a consti-
tuir um corpo de Estado. O Estado representa cada um de nós, decidindo e
agindo por nós e, em consequência, devemos nos reconhecer como responsá-
veis e coautores de tudo o que ele faz.
[...] a razão não nasce conosco como a sensação e a lembrança, e também não se
adquire só pela experiência, como a prudência, mas se adquire pelo trabalho, pri-
meiro atribuindo corretamente as denominações, e em seguida indo, graças à aqui-
sição de um método correto e ordenado, a partir dos elementos que são as denomi-
nações, até as asserções, formadas pela colocação de uma denominação em rela-
ção com uma outra; e daí aos silogismos que são a colocação em relação de uma
asserção com uma outra, para chegar ao conhecimento de todas as consecuções de
denominações que concernem o tema considerado; é isso que os homens chamam
“ciência”. Enquanto a sensação e a lembrança não são senão um conhecimento do
fato, que é uma coisa passada e irrevogável, a “ciência” é o conhecimento das con-
secuções, da dependência de um fato de um outro fato; é por meio dessa dependên-
cia que, a partir do que nós podemos produzir presentemente, sabemos como pro-
duzir algo de outro se quisermos, ou repetir algo semelhante mais uma vez, pois,
vendo como uma coisa é produzida, por quais causas e de que maneira, percebe-
mos, no caso de causas semelhantes se darem, como fazê-las produzir efeitos se-
melhantes (HOBBES, 1983, p. 42-43, tradução nossa).
Sua obra tem sido muito trabalhada nesses últimos tempos, no que concerne
particularmente à questão da justiça. Alguns exemplos dessas discussões são:
Enquanto, para Hobbes, como vimos, o estado de direito é algo feito para coibir
a violência do estado da natureza, não sendo o viver em sociedade uma dispo-
sição inata ao ser humano, mas surgindo quando o homem se vê ameaçado,
buscando, então o acordo de um contrato social, e gerando, assim, a constitui-
ção do Estado, para Locke, diferentemente, o homem adquire direitos a partir
do momento mesmo em que passa a existir. O estado de natureza é o estado
dos direitos naturais. O homem, mesmo no estado da natureza, é dotado de ra-
zão, é senhor de si mesmo, não sendo subordinado a ninguém.
O contrato social
O contrato social, para Locke, diferentemente da visão de Hobbes a respeito,
não implica submissão ao governo. Este é obrigado a respeitar as leis estabe-
lecidas, tanto quanto cada indivíduo. O povo tem direito de rebelião contra o
abuso de poder das autoridades e, uma vez mantidos os direitos naturais, re-
sultado de um consenso, todo governo é limitado.
Um poder arbitrário e absoluto e um governo sem leis estabelecidas e estáveis não
seriam capazes de atender aos “�ns” da sociedade e do governo. De fato, os homens
deixariam a liberdade do “estado natural” para se submeter a um governo no qual
suas vidas, suas liberdades, seu descanso, seus bens não teriam segurança? Não
nos é possível supor que tenham a intenção, ou mesmo o direito de conceder a um
homem ou a vários um poder absoluto e arbitrário sobre si mesmos e seus bens, e
de permitir ao magistrado ou ao príncipe fazer, em relação a eles, tudo o que quises-
sem, arbitrariamente e sem limites, o que seria seguramente se colocar em uma si-
tuação muito pior do que aquela do estado natural, no qual se tem a liberdade de
defender seu direito contra as injúrias de outro, e de se manter, no caso de se pos-
suir força su�ciente, contra a invasão do outro ou de um grupo. De fato, na suposi-
ção de nos entregar ao poder absoluto e à vontade arbitrária de um legislador, esta-
ríamos desarmando a nós mesmos e armando esse legislador, de maneira que
aqueles que lhe são submissos tornam-se sua presa, e são tratados como ele assim
o desejar (LOCKE, 1992, p. 245-246, tradução nossa).
Com isso, Hume põe um termo �nal sobre a questão das ideias inatas, pois o
indivíduo só pode ter ideias depois de ter impressões. Somente as impressões
são originárias; as ideias são sempre derivadas. “As ideias produzem imagens
de si mesmas em novas ideias; mas, como supomos que as primeiras são deri-
vadas de impressões, continua sendo verdade que todas as nossas ideias sim-
ples procedem, mediata ou imediatamente, de suas impressões corresponden-
tes” (HUME, 2009, p. 31).
Das impressões originárias surgem, portanto, as ideias simples; e da combina-
ção, associação e generalização de ideias simples, gravadas na memória, re-
sultam as ideias complexas. Mas como ocorre essa associação de diferentes
ideias simples em complexas? A combinação e associação de ideias comple-
xas são realizadas tanto pela imaginação, como também por meio de princípi-
os universais que regem o processo de associação das ideias. Noutras pala-
vras, a imaginação apresenta-se como um feixe de percepções unidas e com-
binadas por associação, a partir de três princípios básicos do intelecto huma-
no:
Desta forma, tais relações e princípios não podem ser observados como parte
da experiência, pois não pertencem aos objetos, mas sim a uma associação da
imaginação. As associações entre ideias (semelhança, contiguidade e causali-
dade) não existem nas coisas materiais; são apenas modos pelos quais passa-
se de um objeto a outro, de um termo a outro, de uma ideia particular a outra.
(https://mdm.claretiano.edu.br/eti-gp0061-2021-01-grad-ead-p/wp-content
/uploads/sites/792/2019/12/C3-F2.png) : ZIRALDO. Bichinho da Maçã. Folha de S. Paulo, de 27 de julho de
1991.
Com o sucesso, porém, sua �loso�a é ainda hoje considerada como uma das
grandes in�uências sobre o pensamento contemporâneo, tanto no que concer-
ne à chamada Filoso�a Analítica (que reduz a Filoso�a a uma pesquisa sobre a
linguagem) quanto no que se refere a �loso�as como a Fenomenologia de
Edmund Husserl, que busca levar a atitude de Descartes às suas últimas con-
sequências, visando a uma fundação radical do conhecimento.
A primeira e mais detalhada explicação da teoria moral de Hume encontra-se
no livro 3, intitulado “Da Moral’, de sua obra Tratado da natureza humana.
Hume entende a questão moral como uma questão de leis e regras de funcio-
namento da natureza humana: nenhuma ação pode ser virtuosa ou moral-
mente boa, a menos que haja na natureza humana algum motivo que a produ-
za.
A teoria moral de Hume não tem, pois, como referência um transcendente in-
dependente da experiência dos sentidos, como a vontade de Deus ou uma ra-
zão a priori. Volta sua re�exão para a interioridade pura, pressupondo que a al-
ma seja um campo de percepções, impressões e ideias. Para o �lósofo, nada
existe previamente no nosso pensamento. Tudo vem da experiência e é, por-
tanto, de natureza sensível.
Para Hume, a ação é apenas um sinal externo, pois a avaliação moral diz res-
peito ao motivo que produziu a ação. A ação moralmente correta, segundo o �-
lósofo, seria aquela na qual o agente age movido por um motivo virtuoso, mes-
mo no caso de não realização da ação em razão de outras causas. É o que vere-
mos no texto do �lósofo a seguir:
3. Do mesmo modo, sempre que exigimos que uma pessoa realize uma ação, ou a
censuramos por não realizá-la, estamos supondo que alguém nessa situação deve-
ria ser in�uenciado pelo motivo próprio dessa ação, e consideramos vicioso que o
tenha desconsiderado. Se após investigarmos melhor a situação, descobrimos que
o motivo virtuoso estava presente em seu coração, embora sua operação tenha sido
impedida por alguma circunstância que nos era desconsiderada, retiramos nossa
censura e passamos a ter pela pessoa a mesma estima que teríamos se houvesse
de fato realizado a ação que dela exigíamos (HUME, 2009, Livro III, Parte 2, Seção 1).
4. Vemos, portanto, que todas as ações virtuosas derivam seu mérito unicamente
de motivos virtuosos, sendo tidas apenas como signos desses motivos. Desse prin-
cípio, concluo que o primeiro motivo virtuoso, que confere mérito a uma ação, nun-
ca pode ser uma consideração pela virtude dessa ação, devendo ser antes algum
outro motivo ou princípio natural. Supor que a mera consideração pela virtude da
ação possa ser o primeiro motivo que produziu a ação e a tornou virtuosa é um ra-
ciocínio circular. Pra que possamos ter tal consideração, a ação tem de ser real-
mente virtuosa; e essa virtude tem de ser derivada de algum motivo virtuoso; con-
seqüentemente, o motivo virtuoso precisa ser diferente da consideração pela virtu-
de da ação. É preciso um motivo virtuoso para que uma ação se torne virtuosa.
Uma ação tem de ser virtuosa para que possamos ter consideração por sua virtude.
Portanto, algum motivo virtuoso tem de anteceder essa consideração. [...]
8. Mas será que o sentido da moralidade ou do dever não pode produzir uma ação
sem qualquer outro motivo? Respondo que sim, mas que isso não constitui uma ob-
jeção à presente doutrina. Quando um motivo ou princípio virtuoso é comum na
natureza humana, uma pessoa que sente seu coração desprovido desse motivo po-
de odiar a si mesma por essa razão, e pode realizar a ação sem o motivo, apenas
por certo sentido do dever, ao menos para disfarçar para si mesma, tanto quanto
possível, sua carência. Um homem que não sente de fato nenhuma gratidão em seu
íntimo pode, apesar disso, ter prazer em praticar certos atos de gratidão, pensando
desse modo ter realizado o seu dever. As ações inicialmente são consideradas so-
mente como signos de motivos; mas o que costuma ocorrer, nesse caso e em todos
os demais, é que acabamos �xando nossa atenção apenas nos signos, negligenci-
ando em parte a coisa signi�cada (HUME, 2009, Livro III, Parte 2, Seção 1).
E Hume conclui:
10. É preciso encontrar, portanto, para os atos de justiça e honestidade, algum moti-
vo distinto de nossa consideração pela honestidade; e é nisso que está a grande di-
�culdade. Porque se disséssemos que a preocupação com nosso interesse privado
ou com a nossa reputação é o motivo legítimo de todas as ações honestas, seguir-
se-ia que sempre que cessa tal preocupação, a honestidade não poderia mais ter lu-
gar. Mas, é certo que o amor a si próprio, quando age livremente em vez de nos le-
var a ações honestas, é fonte de toda injustiça e violência; e ninguém pode corrigir
esses vícios sem corrigir e restringir os movimentos naturais desse apetite (HUME,
2009, Livro III, Parte 2, Seção 1).
As virtudes arti�ciais, por sua vez, seriam as mais necessárias, porque, segun-
do Hume, os valores morais mais importantes são uma questão de convenção
social. São elas: a justiça, o cumprimento de promessas, a lealdade, a modéstia
etc.
4. Mas para que a sociedade se forme, não basta que ela seja vantajosa; os homens
também têm de se dar conta de suas vantagens. Entretanto, em seu estado selva-
gem e inculto [...] é impossível que os homens alguma vez cheguem a adquirir esse
conhecimento. Felizmente, junto com essas necessidades cujos remédios são re-
motos e obscuros existe uma outra necessidade, que, por ter um remédio mais ime-
diato e evidente, pode ser legitimamente considerada o princípio primeiro e origi-
nal da sociedade humana. Essa necessidade não é outra senão aquele apetite natu-
ral que existe entre os sexos, unindo-os e preservando sua união até o surgimento
de um outro laço, ou seja, a preocupação com sua prole comum. Essa nova preocu-
pação também se torna um princípio de união entre os pais e os �lhos, formando
uma sociedade mais numerosa, em que os pais governam em virtude da superiori-
dade de sua força e sabedoria, e, ao mesmo tempo, têm o exercício de sua autorida-
de limitado pela afeição natural que sentem por seus �lhos. Em pouco tempo, o
costume e o hábito, agindo sobre as tenras mentes dos �lhos, tornam-nos sensíveis
às vantagens que podem extrair da sociedade, além de gradualmente formá-los pa-
ra essa sociedade, aparando as duras arestas e afetos adversos que impedem sua
coalizão (HUME, 2009, Livro III, Parte 2, Seção 2).
10. Considerações
Neste terceiro ciclo de aprendizagem, estudamos as propostas éticas raciona-
listas e empiristas, que se desenvolveram nos séculos XVII e XVIII. O raciona-
lismo e o empirismo foram importantes para as futuras contribuições da
Filoso�a, especialmente com Immanuel Kant, com sua tentativa de concilia-
ção da Filoso�a com suas três “Críticas”: Crítica da Razão Pura (Ciência),
Crítica da Razão Prática (Ética) Crítica da Juízo (Estética). O próximo ciclo, no
que diz respeito à Ética, abordará as questões relativas às éticas de “meios”
(deontológicas), com Kant, e ética de �ns (teleológicas), com o utilitarismo éti-
co de Bentham e Stuart Mill. Preparado(a)?
(https://md.claretiano.edu.br/eti-gs0123-
fev-2023-grad-ead/)
Objetivos
• Analisar a concepção de moral no criticismo de Immanuel Kant.
• Compreender o conceito de imperativo categórico.
• Conhecer as propostas utilitaristas de Jeremy Bentham e John Stuart
Mill.
Conteúdos
• Éticas deontológicas e éticas teleológicas.
• O pensamento criticista de Immanuel Kant.
• Diferença entre imperativos hipotéticos e imperativo categórico
• O Utilitarismo de Jeremy Bentham e John Stuart Mill.
Problematização
Kant é um autor muito importante no estudo da ética, qual a característica
inovadora principal de seu pensamento sobre a ética para a modernidade?
Em que medida o utilitarismo se distingue da ética kantiana? Como julgar
uma ação: pelas convicções ou pelas �nalidades?
1. Introdução
De acordo com alguns autores (DURANT, 2003; BORGES, DALL'AGNOL E
DUTRA, 2002; PALMER, 2002; NERI, 2004), em seu desenvolvimento histórico -
enquanto questionamento, sistema e prática - a Ética ganhou certas especi�-
cidades que acabaram formando algumas correntes fundamentais que indi-
cam a predominância de um determinado tipo de re�exão ética. Com isso, tais
autores, de modo geral e com algumas pequenas diferenças conceituais, cos-
tumam identi�car três campos principais do estudo da Ética:
2. Ética Normativa
A Ética Normativa tem a função de apresentar o modo como é decidido um
dentre vários princípios, como também a escolha de qual deles é o mais ade-
quado. Beauchamp e Childrens (2002, p. 18) identi�cam a Ética Normativa co-
mo aquele estudo que visa responder alguns questionamentos, como: "quais
normas gerais para a orientação e avaliação da conduta devem ser moralmen-
te aceitas e por quê razões?".
Pelo fato de ser um questionamento amplo, Palmer (2002) e Neri (2004) a�r-
mam que a Ética Normativa pode ser organizada em dois grupos de teorias: a)
Teorias Éticas Deontológicas; b) Teorias Éticas Teleológicas. Vejamos em que
consistem cada uma delas.,
A ideia central desse tipo de ética [deontológica] é que existem ações intrinseca-
mente certas ou erradas, ou, melhor, características ou propriedades que tornam
certas ou erradas as ações nas quais ocorrem, independentemente da consideração
de qualquer outro fator, como as intenções ou as consequências. Matar, por exem-
plo, é uma característica que torna erradas todas as ações con�guráveis como atos
de morte (NERI, 2004, p. 53).
(https://mdm.claretiano.edu.br/eti-gp0061-2021-01-grad-ead-p/wp-content
/uploads/sites/792/2019/12/C3-F3.jpg) : Quino (2020).
Figura 1 Tirinha Mafalda
Logo, pelo fato de ser a posteriori, é evidente que, para Kant, nenhuma experi-
ência empírica pode ser capaz de oferecer uma lei como princípio a priori de
moralidade. Por outro lado, somente uma razão puramente formal também
não daria conta de ser um princípio universal para toda e qualquer ação con-
tingente. Desta maneira, para sair deste problema, Kant propõe que a razão se-
ja ao mesmo tempo pura e prática: a razão é pura porque consegue determinar
a priori a universalidade e a necessidade das ações, porém, também é prática
porque determina a vontade a conformar tal princípio como regra geral para
todos os casos particulares e contingentes: "age de tal modo que a máxima de
tua vontade possa valer como princípio de uma legislação universal" (KANT,
2006, p. 40).
É justamente isto que consiste a ética kantiana, isto é, uma metafísica que está
acima de toda e qualquer antropologia ou física e se fundamenta no dado �lo-
só�co abstraído da razão pura e prática, que age de acordo com princípios pu-
ros e anteriores a qualquer experiência empírica:
A época em que viveu Kant, o século 18, é chamada de Século das Luzes ou
Iluminismo, ou ainda, Era da Razão, época da qual é um dos maiores represen-
tantes e que tinha por objetivo principal reformar a sociedade contra a intole-
rância da Igreja e do Estado.
Kant não nega a importância da religião, que tem, segundo ele, sua razão de
ser, uma vez que existe todo um mundo que escapa às capacidades da razão.
Porém, quer mostrar que o fundamento do conhecimento e da moral pode ser
encontrado fora da religião, que até então dominara.
Kant e a moral
As quatro principais obras de Kant em que a moral é tratada mais longamente
são:
NÃO É POSSÍVEL conceber coisa alguma no mundo, ou mesmo fora do mundo, que
sem restrição possa ser considerada boa, a não ser uma só: uma BOA VONTADE. A
inteligência, o dom de apreender as semelhanças das coisas, a faculdade de julgar,
e os demais talentos do espírito, seja qual for o nome que se lhes dê, ou a coragem, a
decisão, a perseverança nos propósitos, como qualidades do temperamento, são
sem dúvida, sob múltiplos respeitos, coisas boas e apetecíveis; podem, entretanto,
estes dons da natureza tornar-se extremamente maus e prejudiciais, se não for boa
vontade que deles deve servir-se e cuja especial disposição se denomina caráter. O
mesmo se diga dos dons da fortuna. O poder, a riqueza, a honra, a própria saúde e o
completo bem-estar e satisfação do próprio estado, em resumo o que se chama feli-
cidade, geram uma con�ança em si mesmo que muitas vezes se converte em pre-
sunção, quando falta a boa vontade para moderar e fazer convergir para �ns uni-
versais tanto a imprudência que tais dons exercem sobre a alma como também o
princípio da ação. Isto, sem contar que um espectador razoável e imparcial nunca
lograria sentir satisfação em ver que tudo corre ininterruptamente segundo os de-
sejos de uma pessoa que não ostenta nenhum vestígio de verdadeira boa vontade;
donde parece que a boa vontade constitui a condição indispensável para ser feliz
(KANT, 1994, p. 4).
Kant e Hume
Para Kant, a razão não tem apenas um papel instrumental, como para Hume.
Toda moralidade funda sua autoridade apenas na razão. Só a razão determina
se uma ação é boa ou má, independentemente de nossos desejos.
Apenas em alguns casos, nossas ações podem ser produzidas por desejos e
crenças. Isso acontece quando agimos por inclinação. Quando nossas ações
são guiadas por considerações morais, a razão determina não apenas os mei-
os, mas também os �ns de nossas ações. A questão que se coloca é, então, a
seguinte: que razão é essa que, por si mesma, ordena “o que deve” acontecer,
independentemente de todo e qualquer fenômeno e, portanto, universalmente,
a todo ser humano?
O critério fundamental racional para quali�car uma ação como ação moral, is-
to é, como ação universalmente válida, seria, segundo Kant, a existência dessa
razão pura prática capaz de estabelecer uma universalidade no que se refere à
moral, assim como a razão pura especulativa ou teórica estabelece uma uni-
versalidade no que diz respeito ao conhecimento. Temos, então, uma razão pu-
ra universal que se diferencia em razão pura especulativa e razão pura práti-
ca. A razão pura especulativa possuiria a capacidade de determinar a priori o
conhecimento do sujeito cognoscitivo e a razão pura prática possuiria essa
mesma capacidade de determinar a priori a vontade do sujeito agente.
Toda ação moral indica que a referida ação é objetivamente necessária e boa
em si mesma; portanto, o imperativo da “moralidade” é um imperativo categó-
rico.
Há por �m um imperativo que, sem se basear como condição em qualquer outra in-
tenção a atingir por um certo comportamento, ordena imediatamente este compor-
tamento. Este imperativo é . Não se relaciona com a matéria da acção e
com o que dela deve resultar, mas com a forma e o princípio de que ela mesma de-
riva; e o essencialmente bom na acção reside na disposição Gesinnung, seja qual
for o resultado. Este imperativo pode-se chamar o imperativo da
(KANT, 1960, p. 52, grifo nosso).
Querer o bem ou a busca do bem não poderia, portanto, segundo Kant, fazer
parte da moralidade, pois o princípio moral é, por sua própria natureza, inde-
pendente de crenças, culturas e tradições. Fundamenta-se em algo universal,
a lei. Assim, uma vontade perfeitamente boa, como seriam a vontade divina e
a vontade santa, não são passíveis de imperativos, não se apresentam como
obrigadas a leis. Diz Kant que:
Uma vontade perfeitamente boa estaria, portanto, igualmente submetida a leis ob-
jectivas (do bem), mas não se poderia representar como obrigada a acções confor-
mes à lei, pois que pela sua constituição subjectiva ela só pode ser determinada pe-
la representação do bem. Por isso os imperativos não valem para a vontade divina
nem, em geral, para uma vontade santa; o dever (Sollen) não está aqui no seu lugar,
porque o querer coincide já por si necessariamente com a lei (KANT, 1960, p. 48-51).
As leis morais seriam, segundo Kant, destituídas de todo valor moral se seu
princípio determinante tivesse outra origem que não fosse a lei que traz nela
mesma essa certeza apodítica (certeza evidente).
O indivíduo deve estar livre para agir, ou seja, não obedecer a outra lei senão
àquela que ele mesmo simultaneamente se dá, enquanto possuidor de uma
vontade, e não em virtude de qualquer outro motivo prático ou de qualquer
vantagem futura. Por essa razão, o princípio que rege a ação de uma vontade
livre legisladora universal, que é a ação moral, é, como vimos, um imperativo
categórico que, por ser universal, não se funda em nenhuma condição, em ne-
nhuma hipótese.
Assim o princípio, segundo o qual toda a vontade humana seria uma vontade legis-
ladora universal por meio de todas as suas máximas, se fosse seguramente estabe-
lecido, conviria perfeitamente ao imperativo categórico no sentido de que, exacta-
mente por causa da idéia da legislação universal, ele se não funda em nenhum in-
teresse, e portanto, de entre todos os imperativos possíveis, é o único que pode ser
incondicional; ou, melhor ainda, invertendo a proposição: se há um imperativo ca-
tegórico (i. é uma lei para a vontade de todo o ser racional), ele só pode ordenar que
tudo se faça em obediência à máxima de uma vontade que simultaneamente se
possa ter a si mesma por // objecto como legisladora universal; pois só então é que
o princípio prático e o imperativo a que obedece podem ser incondicionais, porque
não têm interesse algum sobre que se fundem (KANT, 1960, p. 74).
O Dever
Diz Kant:
Pelo contrário, conservar cada qual a sua vida é um dever, e é além disso uma coisa
para que toda a gente tem inclinação imediata. Mas por isso mesmo é que o cuida-
do, por vezes ansioso, que a maioria dos homens lhe dedicam não tem nenhum va-
lor intrínseco e a máxima que o exprime nenhum conteúdo moral. Os homens con-
servam a sua vida conforme // ao dever, sem dúvida, mas não por dever. Em con-
traposição, quando as contrariedades e o desgosto sem esperança roubaram total-
mente o gosto de viver; quando o infeliz, com fortaleza de alma, deseja a morte, e
conserva contudo a vida sem a amar, não por inclinação ou medo, mas por dever,
então a sua máxima tem conteúdo moral (KANT, 1960, p. 27).
Diz Kant:
Ora digo eu: – O homem, e, duma maneira geral, todo o ser racional, existe como
�m em si mesmo, não só como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vonta-
de. Pelo contrário, em todas as suas acções, tanto nas que se dirigem a ele mesmo
como nas que se dirigem // a outros seres racionais, ele tem sempre de ser conside-
rado simultaneamente como �m (KANT, 1960, p. 68).
O imperativo é: aja de tal maneira que a humanidade seja tratada tão bem na
nossa pessoa como na pessoa de qualquer outro e sempre como um �m e nun-
ca como meio.
Sobre a vontade enquanto “poder causador”, próprio aos seres racionais, e a li-
berdade como propriedade desse mesmo “poder causador”, independentemen-
te de causas estranhas, diz Kant:
Diz Kant:
Como o conceito de uma causalidade traz consigo o de leis segundo as quais, por
meio de uma coisa a que chamamos causa, tem de ser posta outra // coisa que se
chama efeito, assim a liberdade, se bem que não seja uma propriedade da vontade
segundo leis naturais, não é por isso desprovida de lei, mas tem antes de ser uma
causalidade segundo leis imutáveis, ainda que de uma espécie particular; pois de
outro modo uma vontade livre seria absurdo (KANT, 1960, p. 93-94).
Isso porque uma vontade só é livre quando regida por leis imutáveis, indepen-
dentes de circunstâncias particulares.
A moral kantiana é uma moral não eudaimônica, ou seja, não tem por meta a
“felicidade”
Observa que, embora “estar bem” não se oponha a “fazer bem”, o fato de “se es-
tar bem”, não signi�ca “fazer bem”. A moral nos ensina ou nos leva a ser mere-
cedores da felicidade, porém não nos torna felizes.
O caminho para a felicidade, segundo Kant, é o dever. O cumprimento do de-
ver, embora consista em obediência incondicional, não signi�ca renunciar à
felicidade, porém também não signi�ca subordinação à procura da felicidade.
Na obra Crítica da Razão Prática, Kant observa que a felicidade não seria o ob-
jetivo e fundamento da moralidade, pois é um conceito empírico, consistindo
em um sentimento do agente. Para Kant, a felicidade provém da satisfação dos
nossos desejos, e, por essa razão, ela não depende de nós, uma vez que esse sa-
tisfazer nossos desejos se subordina a circunstâncias externas à nossa vonta-
de. O homem é um ser que pertence à natureza, sua felicidade escapa à sua
vontade. E, se escapa à vontade do agente, como poderia ser um objetivo da
moralidade?
na totalidade da sua existência, tudo corre segundo o seu desejo e a sua vontade e
funda-se, pois, na harmonia da natureza com o �m integral desse ser e igualmente
com o principio determinante essencial da sua vontade. Ora, a lei moral, enquanto
lei da liberdade, ordena por princípios determinantes que devem ser totalmente in-
dependentes da natureza e da sua harmonia com a nossa faculdade de desejar (co-
mo móbeis); mas o ser racional agente no mundo não é, contudo, simultaneamente
causa do mundo e da própria natureza. Portanto, não existe na lei moral a menor
conexão necessária entre moralidade e felicidade a ela proporcionada de um ser
que, fazendo parte do mundo e, portanto, dele dependendo, não pode por isso mes-
mo ser pela sua vontade causa desta natureza e fazê-la por suas próprias forças
coadunar-se inteiramente [...] (KANT, 1994, p. 143).
[...] quanto mais uma razão cultivada se consagra ao gozo da vida e da felicidade,
tanto mais o homem se afasta do verdadeiro contentamento; e daí provém que em
muitas pessoas, e nomeadamente nas mais experimentadas no uso da razão, se
elas quiserem ter a sinceridade de o // confessar, surja um certo grau de misologia,
quer dizer de ódio à razão. E isto porque, uma vez feito o balanço de todas as vanta-
gens que elas tiram, não digo já da invenção de todas as artes do luxo vulgar, mas
ainda das ciências (que a elas lhes parecem no �m e ao cabo serem também um lu-
xo do entendimento), descobrem contudo que mais se sobrecarregaram de fadigas
do que ganharam em felicidade, e que por isso �nalmente invejam mais do que
desprezam os homens de condição inferior que estão mais próximos do puro ins-
tinto natural e não permitem à razão grande in�uência sobre o que fazem ou dei-
xam de fazer (KANT, 1960, p. 24-26).
Kant a�rma:
[...] Portanto, se a razão não é apta bastante para guiar com segurança a vontade no
que respeita aos seus objectos // e à satisfação de todas as nossas necessidades
(que ela mesma – a razão – em parte multiplica), visto que um instinto natural ina-
to levaria com muito maior certeza a este �m, e se, no entanto, a razão nos foi dada
como faculdade prática, isto é, como faculdade que deve exercer in�uência sobre a
vontade, então o seu verdadeiro destino deverá ser produzir uma vontade, não só
boa quiçá como meio para outra intenção, mas uma vontade boa em si mesma, pa-
ra o que a razão era absolutamente necessária, uma vez que a natureza de resto
agiu em tudo com acerto na repartição das suas faculdades e talentos. Esta vontade
não será na verdade o único bem nem o bem total, mas terá de ser contudo o bem
supremo e a condição de tudo o mais, mesmo de toda a aspiração de felicidade. E
neste caso é fácil de conciliar com a sabedoria da natureza o facto de observarmos
que a cultura da razão, que é necessária para a primeira e incondicional intenção,
de muitas maneiras restringe, pelo menos nesta vida, a consecução da segunda,
que é sempre condicionada, quer dizer, da felicidade, e pode mesmo reduzi-la a me-
nos de nada, sem que com isto a natureza falte à sua �nalidade, porque a razão, que
reconhece o seu supremo destino prático na fundação duma boa vontade, ao alcan-
çar esta intenção é capaz duma só satisfação conforme à sua própria índole, isto é a
que pode achar ao atingir um �m que só ela (a razão) // determina, ainda que isto
possa estar ligado a muito dano causado aos �ns da inclinação (KANT, 1960, p.
24-26).
Kant e o Iluminismo
Em seu texto sobre o Iluminismo, respondendo, em 1784, à pergunta de uma
revista alemã de Berlim, Kant expõe seu ideal de apelo ao exercício autônomo
da razão aqui descrito.
A liberdade de fazer uso público do pensar esclarecido permite, por sua vez, a
discussão e o intercâmbio de ideias, o qual fundamentará a realização da ação
transformadora.
Ético é, pois, para Kant, conquistar deliberadamente a própria liberdade incon-
dicionada, servindo-se de sua capacidade racional. Este seria o caráter singu-
lar e único de toda ação humana.
É, pois, difícil a cada homem desprender-se da menoridade que para ele se tomou
[483] quase uma natureza. Até lhe ganhou amor e é por agora realmente incapaz de
se servir do seu próprio entendimento, porque nunca se lhe permitiu fazer seme-
lhante tentativa.
Regras e fórmulas “são laços de uma menoridade eterna”:
A liberdade em que se funda a ação moral é aquela que faz uso público da pró-
pria razão em todos os campos.
Mas, para esta ilustração [leia-se esclarecimento], nada mais se exige do que a li-
berdade; e, claro está, a mais inofensiva entre tudo o que se pode chamar liberdade,
a saber, a de fazer um uso público da sua razão em todos os elementos. Agora, po-
rém, de todos os lados ouço gritar: não raciocines! Diz o o�cial: não raciocines, mas
faz exercícios! Diz o funcionário de Finanças: não raciocines, paga! E o clérigo: não
raciocines, acredita! (Apenas um único senhor no mundo diz: raciocinai tanto
quanto quiserdes e sobre o que quiserdes, mas obedecei!) Por toda a parte se depara
com a restrição da liberdade. Mas qual é a restrição que se opõe ao Iluminismo?
Qual a restrição que o não impede, antes o fomenta?
Respondo: o uso público da própria razão deve sempre ser livre e só ele pode, entre
os homens, levar a cabo a ilustração [485]; mas o uso privado da razão pode, muitas
vezes, coarctar-se [restringir-se] fortemente sem que, no entanto, se entrave assim
notavelmente o progresso da ilustração (KANT, 2015, p. 3).
A pedra de toque [489] de tudo o que se pode decretar como lei sobre um povo resi-
de na pergunta: poderia um povo impor a si próprio essa lei? Seria decerto possível,
na expectativa, por assim dizer, de uma lei melhor, por um determinado e curto
prazo, para introduzir uma certa ordem. Ao mesmo tempo, facultar-se-ia a cada ci-
dadão, em especial ao clérigo, na qualidade de erudito, fazer publicamente, isto é,
por escritos, as suas observações sobre o que há de erróneo nas instituições anteri-
ores; entretanto, a ordem introduzida continuaria em vigência até que o discerni-
mento da natureza de tais coisas se tivesse de tal modo difundido e testado publi-
camente que os cidadãos, unindo as suas vozes (embora não todas), poderiam apre-
sentar a sua proposta diante do trono a �m de protegerem as comunidades que, de
acordo com o seu conceito do melhor discernimento, se teriam coadunado numa
organização religiosa modi�cada, sem todavia impedir os que quisessem ater-se à
antiga. Mas é de todo interdito coadunar-se numa constituição religiosa pertinaz,
por ninguém posta publicamente em dúvida, mesmo só durante o tempo de vida de
um homem e deste modo aniquilar, por assim dizer, um período de tempo no pro-
gresso da humanidade para o melhor e torná-lo infecundo e prejudicial para a pos-
teridade. Um homem, para a sua pessoa, [490] e mesmo então só por algum tempo,
pode, no que lhe incumbe saber, adiar a ilustração; mas renunciar a ela, quer seja
para si, quer ainda mais para a descendência, signi�ca lesar e calcar aos pés o sa-
grado direito da humanidade. O que não é lícito a um povo decidir em relação a si
mesmo menos o pode ainda um monarca decidir sobre o povo, pois a sua autorida-
de legislativa assenta precisamente no facto de na sua vontade uni�car a vontade
conjunta do povo. Quando ele vê que toda a melhoria verdadeira ou presumida
coincide com a ordem civil, pode então permitir que em tudo o mais os seus súbdi-
tos façam por si mesmos o que julguem necessário fazer para a salvação da sua al-
ma. Não é isso que lhe importa, mas compete-lhe obstar a que alguém impeça à
força outrem de trabalhar segundo toda a sua capacidade na determinação e fo-
mento da mesma (KANT, 2015, p. 5).
Não são os hábitos de conduta e de comportamento que nos levam a optar pe-
lo cumprimento do dever ou decisões conduzidas pela boa vontade. Em outras
palavras, não são a transmissão e o respeito a um código de conduta que nos
levarão a um comportamento moral.
A razão prática é a razão que guia a ação. É uma forma pura que pode ser apli-
cada a qualquer situação. Tem a validade universal das leis que regem a natu-
reza. Assumida como algo absoluto, não pode ser exercida sob condições. Sua
inteligibilidade pode ser alcançada, porém não pela razão teórica.
(https://mdm.claretiano.edu.br/eti-gp0061-2021-01-grad-ead-p/wp-content
/uploads/sites/792/2019/12/C3-F4.png) : Davis (2020).
Figura 2 Tirinha Jim Davis.
Todavia, a teoria teleológica que �cou mais conhecida nos debates éticos foi o
utilitarismo. Enquanto no egoísmo ético o homem age segundo seus próprios
benefícios, no utilitarismo que o homem deve agir em função do interesse de
todos. Assim, o princípio do utilitarismo pode ser identi�cado da seguinte ma-
neira: uma ação é moralmente correta quando produz o maior bem possível
para o maior número de pessoas possível (ou também quando produz o menor
mal possível para o menor número de pessoas possível). De acordo com este
princípio, o indivíduo, sempre que tiver a possibilidade de escolha, deve esco-
lher aquela alternativa que, no seu conjunto, consiga trazer o melhor e o maior
bem para todos os envolvidos. Os defensores mais conhecidos da teoria utili-
tarista são Jeremy Bentham e Stuart Mill.
Em oposição ao Direito Natural, Jeremy Bentham (1748-1832) entende que a fe-
licidade geral é alcançada pelo cálculo hedonístico. Com isso, desenvolve uma
teoria da utilidade da ação, comprovável na experiência. Suas ideias princi-
pais podem então ser pensadas a partir do prazer e da dor:
A natureza colocou o gênero humano sob o domínio de dois senhores: a dor e o pra-
zer. Somente a eles compete apontar o que devemos fazer, bem como determinar o
que na realidade faremos. Ao trono desses dois senhores está vinculada, por uma
parte, a norma que distingue o que é reto do que é errado, e, por outra, a cadeia das
causas e dos efeitos (BENTHAM, 1974, p. 9).
Dentre seus seguidores de Bentham, com certeza, John Stuart Mill foi um dos
mais notáveis, que brilhantemente sistematizou a concepção utilitarista e ex-
pandiu as questões propostas por Bentham. Na obra Utilitarismo, Stuart Mill
apresenta a ideia principal da teoria da seguinte maneira: imaginar a possibi-
lidade de um determinado estado de coisas no qual todas as pessoas sejam tão
felizes quanto possível:
O Princípio da Maior Felicidade, [...] o �m último, com referência ao qual e por causa
do qual todas as outras coisas são desejáveis (quer estejamos considerando nosso
próprio bem ou o de outras pessoas), é uma existência isenta tanto quanto possível
da dor, e tão rica quanto possível em deleites, seja do ponto de vista da quantidade
como da qualidade. O teste de qualidade [...] é a preferência manifestada pelos que,
em razão das oportunidades proporcionadas por sua experiência, em razão tam-
bém de terem o hábito de tomar consciência de si e de praticar a introspecção, de-
têm os melhores meios de comparação (MILL, 2000, p. 144-145).
Desta maneira, a regra central da moralidade pode ser representada de uma
forma bem simples: agir de modo a realizar este estado de coisas, na medida
em que seja possível. Em síntese, Stuart Mill a�rma que a concepção de utili-
dade está essencialmente ligada à de felicidade como seu maior princípio, ca-
paz de ser não só aquilo derivado do útil, mas principalmente em ser a refe-
rência orientadora que de�ne as ações corretas das ações incorretas:
Partindo então das bases do utilitarismo de Bentham, Stuart Mill faz o seguin-
te questionamento: quando toda necessidade for sanada, qual será a ação que
trará a felicidade? A reposta a esta pergunta Mill encontrou exatamente na
busca pela felicidade dos outros como condição de uma felicidade pessoal: o
útil então para a felicidade pessoal também deve ser para a felicidade do ou-
tro.
Com isso, Stuart Mill expande mais claramente a questão da utilidade para
�ns coletivos: o útil não pode ser tomado no sentido egoísta, não pode ser per-
cebido como o que seja bené�co e útil apenas para atender aos interesses indi-
viduais. Se levar em consideração única e exclusivamente o bem individual,
pessoal, o indivíduo é então levado a uma posição egoísta. Porém, por outro la-
do, se o indivíduo pratica ações que sempre levem em consideração o bem dos
outros, sem renunciar ao seu próprio bem, então, agirá moralmente do ponto
de vista do utilitarismo. Assim, o que é útil para um indivíduo, mas não o é
igualmente para a sociedade ou, pelo menos, para algumas pessoas, não é re-
almente bom e útil.
Leitura complementar
Sobre as teorias teleológicas, em especial o utilitarismo, faça a leitura do
texto de Maria Cristina Longo Cardoso Dias (2014) - A concepção de ética
no utilitarismo de John Stuart Mill (https://www.revistas.usp.br/discur-
so/article/view/89097/91988).
Sugerimos, agora, que você dê uma pausa na sua leitura e re�ita sobre sua
aprendizagem respondendo à questão a seguir.
6. Considerações
O ciclo 4 de aprendizagem apresentou-nos a discussão em torno das éticas de-
ontológicas e teleológicas, seus critérios de legitimação da ação moral e limi-
tes. No próximo ciclo, esses conteúdos estarão relacionados com propostas
éticas contemporâneas, em especial com as ideias dos autores Schopenhauer
e Nietzsche. Além disso, também re�etiremos sobre alguns desa�os éticos na
contemporaneidade e sua importância na área das ciências humanas.
(https://md.claretiano.edu.br/eti-gs0123-
fev-2023-grad-ead/)
Objetivos
• Veri�car a acentuação da preocupação ética em detrimento da moral no
pensamento de Schopenhauer e Nietzsche.
• Re�etir sobre as principais provocações do mundo hodierno para o pro-
blema da ética e as novas formas e modalidades que a ética apresenta
na atualidade.
Conteúdos
• A ética da compaixão em Arthur Schopenhauer.
• O problema da valoração moral em Nietzsche e suas principais contri-
buições para a Ética.
• Dilemas e desa�os éticos na contemporaneidade.
Problematização
Quais novidades Nietzsche e Schopenhauer apresentam no pensamento éti-
co e sua relação com a cultura e o ser humano? De que forma Nietzsche utili-
za sua genealogia da moral no âmbito da Ética. O que é a ética da compaixão
para Schopenhauer? Qual o papel da Ética frente aos problemas sociais atu-
ais? Quais as formas de abordagens éticas podemos entender na contempo-
raneidade?
Orientação para o estudo
A aprendizagem em Filoso�a, em muitos casos, apresenta-se como complexa
e extensa, dada a abrangência e o alcance dos conceitos desenvolvidos.
Neste último ciclo de aprendizagem orientamos recapitular, por meio de re-
sumos, mapas mentais/conceituais, esquemas etc., a trajetória da disciplina.
1. Introdução
Ao longo da história das teorias éticas, observamos que elas se fundamenta-
ram na virtude (Sócrates, Platão), na felicidade (Aristóteles), na tranquilidade
da alma (epicurismo e estoicismo), no livre-arbítrio (Agostinho, Tomás de
Aquino), na racionalidade (Descartes), nos afetos e nos sentimentos (Spinoza e
Hume), na experiência (Hobbes e Locke), no dever (Kant), na utilidade
(Bentham e Stuart Mill), entre outros aspectos. Em sua maioria, com exceção
de Hume e Spinoza, ainda percebemos uma certa proeminência da razão co-
mo protagonista do processo moral.
'O mundo é minha representação'. Esta é uma verdade que vale em relação a cada
ser que vive e conhece, embora apenas o homem possa trazê-la à consciência re�e-
tida e abstrata. E de fato o faz. Então nele aparece a clarividência �losó�ca. Torna-
se-lhe claro e certo que não conhece sol algum e terra alguma, mas sempre apenas
um olho que vê um sol, uma mão que toca uma terra. Que o mundo a cercá-lo existe
apenas como representação, isto é, tão-somente em relação a outrem, aquele que
representa, ou seja, ele mesmo (SCHOPENHAUER, 2005, p. 43).
Nesse sentido Schopenhauer concorda com Kant, ao a�rmar que o "mundo co-
mo representação" não é a "coisa em si", mas o fenômeno, ou seja, "um objeto
para o sujeito". No entanto, contrariando Kant, nega a ideia do fenômeno como
uma realidade que não pode captar o noumenon (coisa em si). Enquanto para
Kant o fenômeno é a única realidade cognoscível, para Schopenhauer o fenô-
meno é apenas a ilusão e a aparência, que camu�a a essência autêntica e pri-
meira das coisas (SCHOPENHAUER, 2005).
Ora, se para Schopenhauer a essência do mundo, a "coisa em si", pode ser cap-
tada - ao contrário de Kant -, convém então perguntar: como? Para o autor, em-
bora a essência do mundo não seja percebida em sua imediaticidade, é possí-
vel, no entanto, acessá-la por meio de atalhos secretos. Dentre esses atalhos,
Schopenhauer identi�ca o corpo, que se apresenta ao sujeito cognoscente de
dois modos diversos: a) por um lado, o corpo é concebido como representação,
como objeto entre objetos que está submetido as suas leis; b) porém, por outro,
é apreendido como algo imediatamente conhecido de cada um e que o autor
designou pelo nome de "vontade" (SCHOPENHAUER, 2005).
É impossível não constatar que todo querer ou ato volitivo do sujeito, ao mes-
mo tempo, também é uma manifestação corporal. Todo ato real da vontade do
sujeito também é, inexoravelmente, movimento de seu corpo. O corpo é, por-
tanto, a "vontade" tornada visível: se olharmos nosso corpo e falarmos dele co-
mo de qualquer outro objeto, nesse caso, ele é fenômeno; mas, se observarmos
nosso corpo por meio do que sentimos e vivemos, pelo modo como experi-
mentamos o prazer e a dor, pelo jeito como percebemos o anseio de viver e o
impulso de conservação de nossa vida, então, nesse caso, ele é manifestação
da vontade (REALE; ANTISERE, 2005b).
A consciência e o sentimento de nosso "corpo como vontade" levam-nos a re-
conhecer que toda a universalidade dos fenômenos, embora tão diversos em
suas manifestações, tem uma só e idêntica essência: a vontade, aquela que co-
nhecemos mais intimamente e melhor do que qualquer outra coisa.
Reconhecerá a mesma vontade como essência mais Íntima não apenas dos fenô-
menos inteiramente semelhantes ao seu, ou seja, homens e animais, porém, a re�e-
xão continuada o levará a reconhecer que também a força que vegeta e palpita na
planta, sim, a força que forma o cristal, que gira a agulha magnética para o polo
norte, que irrompe do choque de dois metais heterogêneos, que aparece nas a�ni-
dades eletivas dos materiais como atração e repulsão, sim, a própria gravidade que
atua poderosamente em toda matéria, atraindo a pedra para a terra e a terra para o
sol, tudo isso é diferente apenas no fenômeno, mas conforme sua essência em si é
para se reconhecer como aquilo conhecido imediatamente de maneira tão íntima e
melhor que qualquer outra coisa e que, ali onde aparece do modo mais nítido,
chama-se vontade (SCHOPENHAUER, 2005, p. 162).
Essa luta sem �m provocada pela vontade aguça-se mais ainda na ação cons-
ciente do homem, subjugando e explorando a natureza, por um lado, e no cruel
con�ito entre os diversos egoísmos indomáveis, por outro. Surge aqui o princí-
pio da individuação: a vontade como força que se disfarça nos egoísmos dos
vários indivíduos - egoísmos estes que não passam de uma manifestação par-
cial da Vontade.
A arte, portanto, é libertadora. Entretanto, somente a arte não basta, pois esses
momentos felizes da contemplação estética (nos quais nos sentimos libertos
da tirania furiosa da vontade) são instantes breves e raros. Consequentemente,
a libertação da dor da vida e a redenção total do homem devem ocorrer por
outro caminho, que é o da ascese.
Com isso, para suprimir a dor e o tédio e, por isso, vencer o egoísmo individua-
do, é preciso ultrapassar a justiça e ter a coragem de eliminar toda distinção
entre nossa individualidade e a dos outros, abrindo os olhos para o fato de que
todos nós estamos envolvidos na mesma desventura (dor e tédio).
Retira-se para Rudolstadt (cidade alemã fundada em 776), onde medita e es-
creve durante cinco anos. Sua obra O mundo como vontade e como represen-
tação é publicada em Leipzig em 1818. Após tentar e não conseguir se dedicar
ao ensino na Universidade de Berlim, instala-se em 1831 na cidade de
Frankfurt.
Vontade e representação
Para Schopenhauer, tudo no mundo é vontade e representação.
Vontade
Representação
Por sua vez, o mundo existe apenas como “representação”, ou seja, na relação
com um ser que percebe. A realidade (seja ela o que for) não seria separável
das formas de apreensão de um sujeito, formas como:
Onde existe Vontade, existirá vida, mundo. Portanto, à Vontade de vida a vida é cer-
ta, e pelo tempo em que estivermos preenchidos de Vontade de vida, não precisa-
mos temer por nossa existência, nem pela visão da morte (SCHOPENHAUER, 2005,
p. 358).
Assim como um regato corre sem ímpetos, enquanto não encontra obstáculos, do
mesmo modo na natureza humana, como na natureza animal, a vida corre incons-
ciente e cuidadosa, quando coisa alguma se lhe opõe à vontade. Se a atenção des-
perta, é porque a vontade não era livre e se produziu algum choque. Tudo o que se
ergue em frente da nossa vontade, tudo o que a contraria ou a resiste, isto é, tudo o
que há desagradável e de doloroso, sentimo-lo ato contínuo e muito nitidamente.
Não atentamos na saúde geral do nosso corpo, mas notamos o ponto ligeiro onde o
sapato nos molesta; não apreciamos o conjunto próspero dos nossos negócios, e só
pensamos numa ninharia insigni�cante que nos desgosta. – O bem-estar e a felici-
dade são, portanto, negativos, só a dor é positiva (SCHOPENHAUER, s/d., p. 21-22).
Esse esforço incessante que constitui o fundo de todas as formas visíveis, re-
vestidas de vontade, chegando ao ponto mais alto de suas manifestações obje-
tivas, encontra seu princípio verdadeiro e mais geral. A vontade, então, se re-
vela a ela mesma em um corpo vivo, que lhe impõe uma lei de ferro, o de se
alimentar, e esse corpo passa a ser a própria vontade de viver encarnada.
A pior feição da natureza humana permanece sendo o deleite pela desgraça alheia,
porque estreitamente aparentada à crueldade, se distingue propriamente desta ape-
nas como a teoria da prática, e localizando-se precisamente onde deveria ser o lu-
gar da compaixão, que, como seu oposto, constitui a verdadeira fonte de toda genuí-
na justiça e amor pela humanidade (SCHOPENHAUER, 1974, p. 104).
A justiça e a caridade
As virtudes da justiça e da caridade são as manifestações do ato de negar a
pulsão da vontade, pois são movimentos que contrariam o sentido fundamen-
tal do “querer viver” que, como vimos, é essencialmente um voltar-se para si
mesmo, para o próprio bem-estar.
[...] quem reconhece e aceita voluntariamente o limite moral entre o justo e o injus-
to, mesmo ali onde o Estado ou outro poder não se imponha, quem, conseqüente-
mente [...] jamais, na a�rmação da própria vontade, vai até a negação da vontade
que se expõe em outro indivíduo – é JUSTO. Portanto, não in�igirá sofrimento a ou-
trem para aumentar o próprio bem-estar, vale dizer, não cometerá crimes, respeita-
rá o direito e a propriedade alheios. [...]
Vimos que a justiça voluntária tem sua origem mais íntima num certo grau de vi-
são através do principii individuationis; enquanto o injusto, ao contrário, permane-
ce completamente envolto neste princípio. Um tal olhar-através-de se dá não ape-
nas no grau exigido pela justiça, mas também em graus mais elevados, os quais
impulsionam à benevolência, à bene�cência positiva, à caridade: e isso é algo que
pode acontecer não importa o quão vigorosa e enérgica é em si mesma a vontade
que aparece em um semelhante indivíduo (SCHOPENHAUER, 2005, p. 471-473).
No entanto, tal luta é uma agressão a si mesmo, uma vez que “todos” é a ex-
pressão de uma única e mesma vontade de viver. Quando o véu de Maya (o
que representa, no pensamento hindu, a aparência ilusória que esconde a rea-
lidade propriamente dita) é levantado diante dos olhos de um ser humano, es-
te não faz mais nenhuma distinção entre si mesmo e o outro. É, então, capaz
de tomar as dores do outro como suas e sacri�car sua pessoa pelo outro.
Nada mais difere tão amplamente da negação da Vontade de vida exposta su�cien-
temente nos limites do nosso modo de consideração, e que constitui o único ato de
liberdade da Vontade a entrar em cena no fenômeno, [...] do que a afetiva supressão
de seu fenômeno individual, na efetividade, pelo SUICÍDIO. [...] O suicida quer a vida;
porém está insatisfeito com as condições sob as quais a vive. Quando destrói o
fenômeno individual, ele de maneira alguma renuncia à Vontade de vida, mas tão-
somente à vida. Ele ainda quer a vida, quer a existência e a a�rmação sem obstácu-
los do corpo, porém, como a combinação das circunstâncias não o permite, o resul-
tado é um grande sofrimento. O suicídio, em realidade, é a obra-prima de Maia na
forma do mais gritante índice de contradição da Vontade de vida consigo mesma.
[...] O sofrimento se aproxima e, enquanto tal, abre-lhe a possibilidade de negação
da Vontade, porém ele a rejeita ao destruir o fenômeno da Vontade, o corpo, de tal
forma que a Vontade permanece inquebrantável (SCHOPENHAUER, 2005, p. 504).
§ 70
A obra de arte permite que as pessoas comuns percebam essas ideias eternas,
mesmo não tendo a genialidade do artista. O saber do artista procede da von-
tade e pertence à essência dos graus mais elevados de seu processo de objeti-
vação. Compara a existência da maior parte dos homens a uma espera tola,
plena de sofrimentos inúteis, “uma marcha titubeante pelas quatro idades de
vida, funcionam sem saber por que”. A arte possuiria o poder de suprimir, ain-
da que por um tempo limitado, essa submissão do conhecimento à vontade.
Na experiência estética, absorvido em contemplação profunda, o sujeito, antes
dominado pelo querer, torna-se “sujeito puro do conhecer”, isento de vontade.
Diz Schopenhauer:
Os leitores da minha Ética sabem que para mim o fundamento da moral repousa
em última instância sobre aquela verdade que está expressa no Veda e Vedanta pe-
la fórmula mística tat twam asi (isto és tu), que é a�rmada com referência a todo
ser vivo, seja homem ou animal, denominando-se então o Mahavakya, o grande
verbo (SCHOPENHAUER, 1974, p. 107).
“Vedas” é uma palavra sânscrita (o sânscrito é uma das línguas o�ciais da
Índia, usada por várias religiões) que signi�ca “conhecimento”. Os Vedas são
constituídos dos livros sagrados do Hinduísmo. Vedanta, por sua vez, signi�ca
o último dos Vedas e é a essência do que entendemos, hoje, por Hinduísmo.
Sobre a frase tat twam asi (“isto és tu”), alguns dos maiores especialistas no
pensamento da Índia, como Zimmer, assim interpreta o seu signi�cado:
A principal motivação da �loso�a védica, desde o período dos mais remotos hinos
�losó�cos (preservados nas partes mais recentes do Rig-Veda) tem sido, sem alte-
ração, a busca de uma unidade básica que fundamente a multiplicidade.
Divide-o.
Está dividido.
Está dividida.
Então, disse-lhe, [o pai]: Em verdade, meu querido, esta sutilíssima essência que tu
não percebes, em verdade, meu querido, dessa sutilíssima essência é que surge esta
grande �gueira sagrada.
Acredita-me, meu querido – disse ele – isso que é a essência mais sutil, este mundo
inteiro tem isso como seu Eu. Isso é a Realidade. Isso é ãtman. Aquilo és tu.
Assim seja, meu querido – disse ele. Coloca este sal na água. Pela manhã vem ter
comigo.
Assim o fez.
Então disse-lhe o pai: O sal que puseste na água ontem à noite, traga-me aqui, por
favor.
Então ele quis pegá-lo, mas não o encontrou porque estava completamente dissol-
vido.
Por favor, sorve a água deste lado – disse-lhe {o pai}. Como está?
Salgada.
Salgada.
Então, disse-lhe {o pai}: Em verdade, na realidade, meu querido, tu não podes perce-
ber o Ser aqui. Em verdade, na realidade, meu querido, Ele está aqui.
Schopenhauer e Kant
São vários os temas e posições que Schopenhauer herda de Kant sobre a temá-
tica da moral. Começa por elogiar Kant por ter “puri�cado a ética de todo eu-
demonismo” (eudemonismo ou eudaimonismo, do grego eudaimonia, signi�ca
felicidade – os �lósofos da Antiguidade concebiam a felicidade como meta e
critério supremo da Ética).
Diz Schopenhauer:
O grande mérito de Kant na ética foi tê-la puri�cado de todo Eudemonismo. A ética
dos antigos era eudemonista, e a dos modernos, na maioria das vezes, uma doutri-
na da salvação. Os antigos queriam demonstrar virtude e felicidade como idênti-
cas; estas, porém, eram como duas �guras que não se recobrem, não importa o mo-
do como as coloquemos. Os modernos querem colocá-las numa ligação, não de
acordo com o princípio de identidade, mas com o de razão su�ciente, fazendo, por-
tanto da felicidade a conseqüência da virtude. No que, entretanto, tiveram de recor-
rer, quer a um outro mundo que não conhecido de modo possível, quer a so�smas.
Apenas Platão faz exceção entre os antigos: sua ética não é eudemonista, por isso,
contudo torna-se mística. Em contrapartida, até mesmo a ética dos cínicos e dos
estóicos é tão-somente um eudemonismo de tipo especial (SCHOPENHAUER, 1995,
p. 17).
Ainda, em sua crítica à Kant, Schopenhauer observa que cabe à re�exão �lo-
só�ca sobre o ético buscar o esclarecimento do dado, isto é, daquilo que o com-
portamento ou a ação éticos são e não de como deveriam ser, como o faz Kant.
O “próton pseudós” [primeiro passo em falso de Kant] está no seu conceito da pró-
pria ética que encontramos exposto de modo mais claro (p. 62): “numa �loso�a prá-
tica não se trata de dar fundamentos daquilo que acontece, mas leis daquilo que de-
ve acontecer, mesmo que nunca aconteça”. Isto já é uma “petitio principii” [petição
de princípio] decisiva. Quem nos diz que há leis às quais nossas ações devem
submeter-se? Quem vos diz que deve acontecer o que nunca acontece? O que vos dá
o direito de antecipá-lo e logo impor uma ética na forma legislativo-imperativa co-
mo a única para nós possível? Digo, contrapondo-me a Kant, que em geral tanto o
ético quanto o �losó�co têm de contentar-se com o esclarecimento do dado, portan-
to com o que é, com o que acontece realmente, para chegarem ao seu entendimento,
e que eles aí têm muito o que fazer, muito mais do que foi feito desde há séculos até
hoje. De acordo com a acima citada “petitio principii” kantiana, admite-se no
Prefácio referente ao tema, antes de qualquer investigação, que existem leis morais
puras; depois, tal suposição continua �rme e é a mais profunda fundamentação de
todo o sistema. No entanto, queremos antes investigar o conceito de uma lei. O seu
signi�cado próprio e originário limita-se à lei civil (“lex”, “nomos”), uma instituição
humana que repousa sobre o arbítrio humano. O conceito de lei tem um signi�cado
segundo, tropológico (�gurativo) e metafórico, quando aplicado à natureza, cujos
modos de proceder conhecidos em parte “a priori”, em parte dela apreendidos “a
posteriori”, que se mantêm sempre constantes, nós os chamamos metaforicamente
leis da natureza. É apenas uma parte bem pequena dessas leis da natureza que se
dá a ver “a priori”, e é isto que constitui o que Kant isolou de modo perspicaz e exce-
lente e reuniu sob o nome de Metafísica da natureza. Para a vontade humana existe
também por certo uma lei, desde que o homem pertence à natureza, e mesmo uma
lei estritamente demonstrável, inviolável, sem exceções, irrevogável, que não traz
consigo nenhuma necessidade “vel quase” (de uma certa maneira) como o impera-
tivo categórico, mas uma necessidade efetiva (SCHOPENHAUER, 1995, §4, p. 23).
Na minha opinião, contudo, toda a �loso�a é sempre teórica, já que lhe é sempre es-
sencial manter uma atitude puramente contemplativa [...], e sempre inquirir, em
vez de prescrever regras. Tornar-se prática, conduzir a ação, moldar o caráter: eis aí
pretensões antigas que uma intelecção mais perspicaz fará por �m a �loso�a
abandoná-las. Pois aqui, quando se trata do valor ou da ausência de valor da exis-
tência, da salvação ou da perdição, os mortos não decidem, e sim a essência mais
íntima do homem: seu demônio que o conduz e que ele mesmo escolheu (como diz
Platão) em vez de ser escolhido, seu caráter inteligível, como // Kant se expressa. A
virtude é tão pouco ensinada quanto o gênio; sim, para ela o conceito é tão infrutí-
fero quanto para a arte e em ambos os casos deve ser usado apenas como instru-
mento. Por conseguinte, seria tão tolo esperar que nossos sistemas morais e éticos
criassem caracteres virtuosos, nobres e santos, quanto que nossas estéticas produ-
zissem poetas, artistas plásticos e músicos (SCHOPENHAUER, 2005, p. 354).
• buscar uma nova maneira de ver o mundo, diferente dos valores morais
escravos de uma visão metafísica;
• pensar sob o modelo da vida;
• subordinar o intelecto à vontade;
• considerar a vontade como cega e arbitrária e, em consequência, o mun-
do como caótico e despojado de todo e qualquer caráter divino;
• considerar a arte como sendo, em sua essência, uma liberação ou afasta-
mento de todo processo racional.
Por outro lado, não é certamente menos interessante obter a participação de �siolo-
gistas e de médicos no estudo desses problemas (concernentes ao valor das avalia-
ções que se deram até o momento presente). [...] De fato todo o repertório de valores,
todos os “tu deves” que a história ou a etnologia conhecem teriam necessidade an-
tes de mais nada de ser esclarecidos e interpretados pela �siologia mais ainda do
que pela psicologia; todos reclamam também a crítica das ciências médicas. A
questão de saber o que vale tal ou tal lista de valores, esta ou aquela moral, deman-
da que sejam colocadas sob as perspectivas as mais diversas; principalmente, não
se analisará com su�ciente escrúpulo a questão “bom por quê?”. [...] O bem-estar da
maioria e o bem-estar da minoria são critérios de avaliação opostos: acreditar que o
primeiro possui em si um valor superior é o que deixaremos à ingenuidade dos bio-
logistas ingleses. Todas as ciências a partir de agora têm a preparar a tarefa do �ló-
sofo, entendendo por esta tarefa o seguinte: ao �lósofo cabe resolver o problema do
valor, cabe determinar a hierarquia dos valores.
Argumenta que tal teoria vai buscar onde não se encontra a verdadeira mora-
da do conceito de “bom”, geneticamente falando.
[...] o julgamento de “bom” não vem daquilo com relação ao qual manifesta-se a
“bondade”. São os próprios “bons”, isto é, os nobres, os poderosos, os homens de
condição superior e de alma elevada, que se sentiram eles mesmos bons e conside-
raram seus atos bons, ou seja, de primeira ordem, em oposição a tudo que é baixo,
mesquinho, comum e vulgar (NIETZSCHE, 1971, p. 21, tradução nossa).
[...] encontrei que todas remetem à mesma transformação dos conceitos, em todas
elas “distinto”, “nobre”, no sentido de classe social, é o conceito fundamental de on-
de nascem e se desenvolvem necessariamente as ideias de “bom” signi�cando “al-
ma distinta” e “nobre” no sentido de “alma superior”, de “alma privilegiada”. Essa
evolução se faz paralelamente àquela que acaba por transformar as ideias de “co-
mum”, “popular”, “vil”, na de “mau” (NIETZSCHE, 1971, p. 24, tradução nossa).
: pathos é uma palavra grega que signi�ca paixão, assujeitamento. Esse concei-
to foi cunhado por Descartes para designar algo que acontece ou o que é passivo de um
acontecimento. Nietzsche quer signi�car, com essa palavra, a distância e o domínio que
acontece entre a classe nobre e a classe baixa e inferior dos seres humanos.
Além disso, observa que o caráter “geral” do conceito não é capaz de expressar
a singularidade da subjetividade e esta, por sua vez, jamais coincide com ela
mesma: quando digo “eu”, expresso o que tenho em comum com todos os ou-
tros “eu”.
Juízos, apreciações pró ou contra a vida, não podem em última instância ser verda-
deiros: não têm outro valor senão o de ser sintomas, não contam senão como sinto-
mas – em si tais juízos são estupidez. É preciso alcançar esta “sutileza” de compre-
ender que “o valor da vida não pode ser apreciado”. Nem por aquele dotado de vida,
porque ele é parte, é mesmo objeto de litígio e não de julgamento: nem por um mor-
to, por outra razão. Da parte de um �lósofo, ver um problema no “valor” da vida con-
siste em uma contradição, em um ponto de interrogação com relação ao seu saber,
uma falta de sabedoria. Como? E todos estes grandes sábios – teriam eles sido não
somente “decadentes”, mas ainda teriam eles sido verdadeiramente sábios?
(NIETZSCHE, 1952a, p. 96-98, tradução nossa).
Nietzsche distingue duas classes de seres humanos: a dos senhores e a dos es-
cravos. A classe dos senhores compreende a dos guerreiros (aristocrática) e a
sacerdotal. A classe sacerdotal deriva da classe guerreira ou aristocrática,
caracterizando-se, porém, pela impotência: em vez de praticar as virtudes do
corpo, como a classe aristocrática, inventa virtudes.
Da rivalidade destas duas classes surgem dois tipos de moral: a dos senhores
e a dos escravos. A classe dos guerreiros é dominante, a sacerdotal é débil e
enferma. A classe sacerdotal reage invertendo os valores aristocráticos, crian-
do uma moral escrava que teve início com o povo judeu e foi herdada e assu-
mida pelo cristianismo.
É a moral surgida do ressentimento, segundo a qual a força que o forte, sendo
livre, exterioriza, é algo ruim, pois destrói os mais fracos. Nesse processo de
“transvalorização”, transformam impotência em bondade; baixeza em humil-
dade; covardia em paciência; miséria em prova bem-aventurada dos eleitos e
cria-se a noção de “justiça”. A “invenção” da moral foi uma defesa contra os
poderosos.
É dito com justa razão que no domínio da ciência as convicções não têm direito de
ser consideradas, somente quando submetidas às formas provisórias da hipótese,
do ponto de vista experimental, da �cção reguladora, podemos conceder-lhes aces-
so ao domínio do conhecimento e reconhecer nelas um certo valor – com a condi-
ção de que permaneçam, porém, sob vigilância policial, sob o controle da suspeita.
Mas, isso não signi�ca no fundo dizer que é unicamente quando a convicção “ces-
sa” de ser convicção, que ela pode adquirir direito de cidadania na ciência? A disci-
plina do espírito cientí�co não começaria somente com a recusa de toda convic-
ção? [...] É provável; resta saber se a existência de uma convicção não é indispensá-
vel para que essa disciplina possa ela mesma começar, e se a existência de uma
convicção não seja tão imperiosa, tão absoluta que obrigue todas as outras a se sa-
cri�car a ela? Vê-se, por isso, que a própria ciência se baseia em uma crença; não
há ciência sem postulado. “A ciência é necessária?”. É preciso, para que ela pudesse
vir a existir, que essa questão fosse antes respondida não apenas a�rmativamente,
mas a�rmativa a tal ponto que ela expressasse este princípio, esta fé, esta convic-
ção: “Nada é mais necessário do que o verdadeiro”; nada, em seu valor, tem impor-
tância senão secundária. “O que é esta vontade absoluta de verdade?”. [...]
“Querer o verdadeiro” poderia ser, secretamente, querer a morte. [...] Sem nenhuma
dúvida, quem vê o verdadeiro, no sentido intrépido e supremo que supõe a fé na ci-
ência, “a�rma por esta mesma vontade outro mundo” que não o da vida, da nature-
za, da história; e na medida em que a�rma este “outro mundo” não nega necessari-
amente, por este fato mesmo, o seu antípoda: este mundo, o nosso? (NIETZSCHE,
1950, § 344, p. 286-289, tradução nossa).
E, mais adiante:
E a partir desse momento surgiu um problema absurdo: “Como pôde Deus permiti-
lo?”. Para o qual a perturbada lógica da pequena comunidade formulou uma res-
posta assustadoramente absurda: Deus deu seu �lho em sacrifício para a remissão
dos pecados. De uma vez acabaram com o Evangelho! O sacrifício pelos pecados, e
em sua forma mais obnóxia e bárbara: o sacrifício do inocente pelo pecado dos cul-
pados! Que paganismo apavorante! – O próprio Jesus havia suprimido o conceito de
“culpa”, negava a existência de um abismo entre Deus e o homem; ele viveu essa
unidade entre Deus e o homem, que era precisamente a sua “boa nova” [...]
(NIETZSCHE, 1989, § XLI).
É sempre lá onde mais falta vontade que a fé é mais desejada, mais necessária: pois
a vontade, sendo a energia do comando, é o sinal diferenciador do domínio e da for-
ça. Quanto menos se sabe comandar, mais se aspira ao ser, e ao ser rigorosamente,
seja ele um deus, um príncipe, uma classe, um médico, um confessor, um dogma,
uma consciência de partido. O que autorizaria a concluir que as duas grandes reli-
giões do mundo, o budismo e o cristianismo, poderiam ter nascido de uma extraor-
dinária “anemia da vontade”, que explicaria ainda melhor a rapidez de sua propa-
gação. E de fato assim é: essas duas religiões encontraram uma necessidade impe-
rativa exaltada até a loucura, o desespero, pela anemia da vontade; todas as duas
ensinaram o fanatismo em uma época de apatia, e propuseram a uma multidão in-
calculável um ponto de apoio, uma nova possibilidade de querer, um prazer a ser
realizado. O fanatismo é de fato a única “força de vontade” a qual é possível atribuir
aos fracos e indecisos, pois ele hipnotiza todo o sistema sensitivo e intelectual em
benefício da assimilação abundante de um só ponto de vista, de um sentimento
único – o cristão o chama sua fé – o qual, a partir de então, hipertro�ado, domina.
Quando um homem se convence de que “deve” ser comandado, ele é “crente”; ao
contrário, pode-se imaginar certo prazer de se governar, certo poder no exercício do
predomínio individual, certa liberdade de querer que permitam a um espírito rejei-
tar, de acordo com sua vontade, toda fé, toda necessidade de certeza; pode-se
imaginá-lo viver mantido pelas correntes as mais leves, pelas possibilidades as
mais diminutas, a dançar até às bordas dos abismos. Este seria “o espírito livre” por
excelência (NIETZSCHE, 1950, § 347, p. 294-295, tradução nossa).
O ideal do ascetismo
“Por que sofrer?” – O homem, o mais valente, o mais apto ao sofrimento de todos os
animais, não rejeita o sofrimento em si: ele o procura mesmo, desde que lhe seja
mostrada a razão de ser deste, o “porquê” deste sofrimento. A ausência de sentido
da dor e não a própria dor é a maldição que até hoje pesou sobre a humanidade –
“ora, o ideal ascético lhe deu um sentido!”. Era até então o único sentido que lhe foi
dado; não importa qual seja o sentido, este vale mais do que nenhum sentido; o ide-
al ascético não era, sob todo ponto de vista, senão a “ausência de um sentido me-
lhor”, e “por excelência”, a sua única peculiaridade. Graças a ele o sofrimento foi ex-
plicado: o vazio imenso parecia preenchido, a porta se fechava diante de toda espé-
cie de niilismo, de todo o desejo de acabamento. A interpretação que se dava à vida
levava inconfundivelmente a um novo sofrimento, mais profundo, mais íntimo,
mais envenenado, mais mortal: fez ver todo sofrimento como o castigo de um “pe-
cado” [...] Mas, apesar de tudo, trazia ao homem a “salvação”, o homem tinha um
“sentido”, não era mais a folha arrastada pelo vento, o jogo sem razão, da “ausência
de sentido”, ele poderia a partir de então querer algo – não importando o que qui-
sesse: “a própria vontade estava pelo menos salva” (NIETZSCHE, 1968, p. 244-246,
tradução nossa).
"Deus está morto" é talvez uma das frases mais mal interpretadas de toda
a �loso�a. Entendê-la literalmente, como se Deus pudesse estar �sica-
mente morto, ou como se fosse uma referência à morte de Jesus Cristo
na cruz, ou ainda como uma simples declaração de ateísmo são ideias
oriundas de uma análise descontextualizada da frase, que se acha pro-
fundamente enraizada na obra nietzscheana. O dito anuncia o �m dos
fundamentos transcendentais da existência, de Deus como justi�cativa e
fonte de valoração para o mundo, tanto na civilização quanto na vida das
pessoas – segundo o �lósofo, mesmo que estas não o queiram admitir.
Nietzsche não se coloca como o assassino de Deus, como o tom provoca-
dor pode dar a entender: o �lósofo enfatiza um acontecimento cultural, e
diz "fomos nós que o matamos".
A frase não é nem uma exaltação nem uma lamentação, mas uma cons-
tatação a partir da qual Nietzsche traçará o seu projeto �losó�co de supe-
rar Deus e as dicotomias assentes em preconceitos metafísicos que jul-
gam o nosso mundo – na opinião do �lósofo, o único existente – a partir
de um outro mundo superior e além deste. A morte de Deus metaforiza o
facto de os homens não mais serem capazes de crer numa ordenação
cósmica transcendente, o que os levaria a uma rejeição dos valores abso-
lutos e, por �m, à descrença em quaisquer valores. Isso conduziria ao nii-
lismo, que Nietzsche considerava um sintoma de decadência associada
ao facto de ainda mantermos uma "sombra", um trono vazio, um lugar re-
servado ao princípio transcendente agora destruído, que não podemos
voltar a ocupar. Para isso ele procurou, com o seu projecto da "transmuta-
ção dos valores", reformular os fundamentos dos valores humanos em
bases, segundo ele, mais profundas do que as crenças do cristianismo
(WIKIPEDIA, 2012).
[...] uma existência sem explicação, sem “razão” não se torna uma “loucura”? Por
outro lado, toda existência não é essencialmente passível de “explicação”? É o que
não conseguem decidir as análises mais cuidadas do intelecto, as mais pacientes e
minuciosas introspecções: pois, o espírito do homem, em suas análises, não pode
se impedir de se ver segundo sua própria perspectiva e não pode se ver “senão” e de
acordo com ela. Não podemos ver a não ser com nossos olhos; é uma curiosidade
sem esperança de sucesso buscar saber quais outras espécies de intelectos e de
perspectivas podem existir; se, por exemplo, existem seres que sentem passar o
tempo em outro sentido, ou sucessivamente em direção para frente e para trás (o
que mudaria a direção da vida e inverteria a concepção da causa e do efeito).
Espero, entretanto, que estejamos hoje longe da ridícula pretensão de decretar que
nosso pequeno ângulo de visão seja o único do qual se tem o direito de ter uma
perspectiva. Ao contrário, o mundo para nós voltou a ser in�nito, no sentido de que
não podemos lhe recusar a possibilidade de ser disponível a uma in�nidade de in-
terpretações (NIETZSCHE in ROUX-LANIER, 1995, p. 477, tradução nossa).
Com o Eterno Retorno Nietzsche questiona a ordem das coisas. Indica um mundo
não feito de pólos opostos e inconciliáveis, mas de faces complementares de uma
mesma – múltipla, mas única – realidade. Logo, bem (http://pt.wikipedia.org/wi-
ki/Bem) e mal (http://pt.wikipedia.org/wiki/Mal), angústia (http://pt.wikipedia.org
/wiki/Ang%C3%BAstia) e prazer (http://pt.wikipedia.org/wiki/Prazer), são instânci-
as complementares da realidade (http://pt.wikipedia.org/wiki/Realidade) – instân-
cias que se alternam eternamente. Como a realidade não tem objetivo, ou �nalidade
(pois se tivesse já a teria alcançado), a alternância nunca �nda. Ou seja,
considerando-se o tempo in�nito e as combinações de forças em con�ito que for-
mam cada instante �nitas, em algum momento futuro tudo se repetirá in�nitas ve-
zes. Assim, vemos sempre os mesmos fatos retornarem inde�nidamente.
(WIKIPEDIA, 2015).
O Retorno eterno integra, no decorrer de seu ciclo, as forças que a vida desenvolveu
progressivamente. Os grandes helenos eram, no fundo, inconscientes de sua nobre-
za moral. Como diz Nietzsche, eles eram espontaneamente virtuosos “sem se per-
guntar por quê”. Representavam um tipo de humanidade frágil, destinada a sucum-
bir sob as interrogações de Sócrates (ROUX-LANIER, 1995, p. 475, tradução nossa).
Como características dessa “grande Ética”, desse “ir além” de toda moralidade
vigente, Nietzsche fala de uma ética “aristocrática” e de uma ética da “amiza-
de”. Uma ética aristocrática, uma vez que, segundo Nietzsche, só o nobre seria
capaz de vivenciar esse “ir além”, essa “transvalorização”, esse recriar e rein-
ventar valores, por meio de um jogo de perspectivas, sem de�nhar. Uma ética
da amizade signi�ca, no caso, uma “revalorização dos afetos”.
Leitura complementar
6. Desa�os da Ética na contemporaneidade
A prática democrática, em qualquer âmbito humano, sempre signi�cou uma
virtude inquestionável. De fato, desde o nascimento deste termo, na antiguida-
de grega, até a sua transformação conceitual, na política moderna, a democra-
cia ganhou um espaço cativo nos debates sociopolíticos: a liberdade conquis-
tada pela isonomia dos direitos também pressupõe a igualdade de deveres.
Habermas já havia mencionado essa inter-relação entre igualdade e liberdade
em sua Ética da Discussão e Discussão da Verdade: "uma pessoa só pode ser
livre se todas as demais o forem igualmente" (HABERMAS, 2004, p. 13).
Ora, se tal questão é a pedra de toque da democracia moderna, então, faz senti-
do a amarração teórica defendida por Rousseau em seu Contrato Social: se por
um lado os indivíduos perdem parte de sua liberdade particular frente às exi-
gências do Contrato (que prevê a igualdade de direitos e deveres), por outro la-
do, o corpo social, do qual os indivíduos fazem parte (vontade geral), ganha
uma máxima liberdade até então nunca gozada pela coletividade ocidental
moderna (ROUSSEAU, 1999).
Dentro deste contexto surge com toda vitalidade a re�exão ética e a questão
dos valores morais. A�nal de contas, para que outra �nalidade serviria a ética
e a moral senão para a orientação das nossas ações no âmbito do relaciona-
mento intersubjetivo e para o reconhecimento da alteridade?
Para uma cultura ética que possa fazer frente a esse tipo de "de-formação", ur-
ge pensar no papel da ética também no campo das relações interpessoais e
grupais, especialmente voltadas para a rea�rmação de valores que fortalecem
a alteridade e a potência do "querer viver bem", consigo mesmo, com os outros
e com a natureza.
(https://mdm.claretiano.edu.br/eti-gp0061-2021-01-grad-ead-p/wp-content
/uploads/sites/792/2019/12/C5-F1.jpg) : Quino (2020).
Figura 1 Ética.
Como sugestão de leitura, indicamos o texto de Sueli Damergian, intitulado Para além da
barbárie civilizatória: o amor e a ética humanista. São Paulo. Casa do Psicólogo, 2009.
Disponível na Biblioteca Virtual Pearson.
7. Considerações
As considerações especí�cas deste ciclo versaram sobre autores que funda-
mentaram suas teorias éticas sobre o conceito de "vontade", bem como sobre
os desa�os da ética na contemporaneidade. Esperamos que tais contribuições
possam ressoar signi�cativamente em nossa re�exão ética, ajudando-nos a
construir uma personalidade mais democrática, inclusiva e humana.
8. Considerações Finais
Chegamos ao �m dos estudos da disciplina Ética.
Desejamos que a partir desse estudo você também, como autor de sua realida-
de, cultive essa criatividade e possibilidade de ressigni�cação de vida, por
meio da re�exão e vivência da ética (ethos) em sua vida.