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Ética e Serviço Público

Módulo 01

1. Objetivos Específicos

Ao final deste módulo, você deverá ser capaz de:

 Contextualizar perspectivas teórico-filosóficas sobre Ética;


 Identificar os conceitos atribuídos à Ética, segundo perspectivas teórico-filosóficas;
 Relacionar e distinguir ética, política e direito;
 Explicar a importância da educação ética para o servidor público.

Neste módulo você terá contato com os diferentes sentidos de ética e alguns conceitos
importantes, como autonomia e responsabilidade, além da relação entre ética, política e direito.

Os assuntos abordados aqui serão:

 Por que estamos discutindo ética?


 Diferentes sentidos de "ética".
 Primeiro sentido: conjunto de normas e valores de uma tradição social.
 Segundo sentido: a Ética como área de estudo.
 O relativismo ético - um pouco de história.
 Aristóteles e a ética como própria da natureza humana.
 Kant e o bem como decorrente da intenção que move a conduta.
 Stuart Mill e o bem como decorrente das consequências da ação.
 Terceiro Sentido de Ética: conduta racionalmente justificável.
 Ética e Justificação Racional.
 O que as pessoas, de fato, fazem e o que elas deveriam fazer.
 Ética, Política e Direito.
 Educação Ética.

2. Por que estamos discutindo ética?

Do Moralismo à Ética

Durante as décadas de 1960 e 1970, o discurso político que enfatizava a moral e os bons
costumes vinha associado a ideias conservadoras. Defendê-los era defender valores
sedimentados na sociedade, tidos como essenciais à manutenção da ordem estabelecida.

Por outro lado, os que abraçavam ideias progressistas ou de mudança social tendiam a
entender essa ênfase como um moralismo antiquado, sem muito propósito e, especialmente,
como uma forma de controle ideológico da contestação.

Essa polarização deixava pouco espaço para se pensar a ética como uma importante
dimensão da existência humana.
Vivemos hoje um contexto bem diferente. De certa forma, as instituições que eram
criticadas por seu conservadorismo e pela defesa de um moralismo rígido foram capazes de
absorver parte das práticas e dos significados da crítica social daquele período, ainda que um
tanto esvaziados de seu conteúdo.

Pode-se dizer que as sociedades contemporâneas, independentemente das inclinações


político-ideológicas de seus cidadãos, têm demonstrado uma inédita abertura para refletir
seriamente sobre os pressupostos éticos da ação humana, problematizando, dessa maneira,
seus costumes, regras formais e práticas informais.

Embora certas práticas sociais inovadoras tenham ganhado terreno, e a própria ideia de
"contestação" tenha conquistado ampla aceitação social, isso não representou um estado de
amoralidade ou descrédito do discurso ético. Assiste-se hoje a uma forte preocupação com a
dimensão ética da vida social em todos os campos, especialmente na interação entre economia
e política, e no exercício das funções públicas.

Por sua vez, observa-se uma sensibilidade cada vez maior na sociedade brasileira em
relação aos padrões éticos de conduta dos servidores públicos. A imprensa e a opinião pública
têm constantemente apontado escândalos na administração do Estado e exigido que seus
representantes eleitos ou que os servidores de carreira se conduzam segundo normas e valores
que de fato façam justiça ao conceito de um serviço público.

Essa abertura acaba repercutindo nas instituições públicas, tanto nas de representação
quanto nas de administração. Como resultado, vemos os representantes eleitos e os
profissionais da administração pública preocupados em atender as demandas de ordem ética da
sociedade.

É muito adequado, portanto, a quem pretende aprimorar sua atuação profissional nos
diversos setores do serviço público, identificar e compreender o que significa ética e a relação
desta com a atividade do Estado.

Assim, no curso que estamos iniciando, você vai conhecer, no Módulo 3, códigos de
conduta ética e normas específicas de orientação das ações do servidor público. O Módulo 2
tratará da fundamentação desses códigos na ideia de Estado democrático e de direito, voltado
para o interesse público e não apenas de grupos particulares. Para melhor compreensão desses
tópicos, o Módulo 1 apresentará os conceitos básicos de ética e um esboço de suas relações
com a política e o direito.
É para esse estudo que convidamos você agora...

3. Diferentes sentidos de "ética"

Para auxiliar nessa reflexão, que pode ter tantos efeitos na atividade profissional do
servidor público, é importante esclarecermos os sentidos do termo "ética".

4. Primeiro sentido: conjunto de normas e valores de uma tradição social

Às vezes, a história de uma palavra, sua etimologia, ajuda a entender seu sentido. "Ética"
vem do termo grego ethos, que tem dois significados diferentes, mas que podem ser
relacionados. Um primeiro significado é o de casa ou morada. O segundo é de hábito ou
comportamento que resulta da repetição constante.

O que têm a ver esses dois sentidos etimológicos de ethos? Como isso pode nos ajudar
a entender o que é ética?

Pode-se dizer que a casa do ser humano é algo que o separa do mundo natural, é o lugar
que o abriga das ameaças e desafios do mundo (chuva, animais ferozes etc.). Nesse sentido, a
ética tem a ver com algo que é próprio de todo ser humano, enquanto um ser que se distingue
do restante da natureza.

O outro sentido de ethos complementa aquele na medida em que o hábito ou costume


são resultados de uma ação repetitiva, mas que não é meramente instintiva como no caso dos
animais não humanos. Pelo hábito, o ser humano acumula e põe em prática um conhecimento
que vem da sua própria experiência e de outros. Assim, casas são feitas pelos seres humanos
com base no conhecimento acumulado há muitas gerações, que é fruto da experiência pessoal
e coletiva refletidas racionalmente.

Ao mesmo tempo, essa ação é feita para responder a um desafio do mundo (a proteção
contra ameaças, por exemplo) ou a um desejo por beleza e conforto. Nessa ação, que responde
a um desafio, temos importante elemento do ethos: os valores.

Em outras palavras, beleza, segurança e conforto são bens ou finalidades valiosas que
orientam a ação de quem constrói uma casa. Assim, o ethos é a morada humana, fruto do hábito
que deriva da experiência acumulada pelo indivíduo e a tradição, e que se faz de modo planejado
para atingir certos fins ou valores.
O primeiro sentido de ética, portanto, é de conjunto de valores e normas consolidados por
uma tradição ou hábito socialmente reforçados, transmitidos e controlados.

Nesse sentido, não existe sociedade humana (uma nação, uma cidade, um grupo
específico) que não tenha uma ética, que não tenha um conjunto de normas e valores que
pretenda guiar a conduta dos seus membros. Sendo assim, não existe ser humano sem ética.

5. Segundo sentido: a Ética como área de estudo

Considerada como ação conduzida por normas e valores sociais, a ética se mostra algo
próprio de todo o ser humano, pois não existe sociedade humana sem uma ética.

Um problema surge, porém, quando se percebe que há diferentes valores e normas


derivados de diferentes tradições. Como saber qual o modo certo de agir se há tantas tradições
diferentes?

6. O relativismo ético – um pouco de história

Se diferentes sociedades têm diferentes normas e valores, por que não pensar que não
há nenhum valor bom ou norma justa realmente, que tudo é relativo? Por que não pensar que
tudo vale?

A essa idéia geralmente se dá o nome de "relativismo ético", que, apesar de parecer muito
razoável e verdadeiro, é bastante problemático. Se aceitarmos o relativismo, corremos um
grande perigo de perda da força de qualquer norma e valor. Qualquer indivíduo poderá alegar
que sua ação é eticamente correta simplesmente porque ele pensa assim e, desse modo, não
haveria mais nenhuma norma ou valor que pudesse guiar a conduta das pessoas (como um
todo).

A morada humana, o ethos, ficaria totalmente confusa ou, pior ainda, acabaria
prevalecendo o uso da força física, como no mundo natural.

Em outras palavras, levado às últimas consequências, o relativismo ético representa o fim


da própria ética como forma propriamente humana de existir.

A constatação da diversidade de éticas sociais não deixa de ser um problema. Foi como
resposta a esse problema que surgiu a Ética como área de estudo da Filosofia na Grécia antiga,
com Sócrates e seu discípulo mais famoso, Platão.
Um livro muito interessante e fácil de ler, que mostra bem os primeiros passos da Ética
como área de estudos, é um diálogo de Platão chamado Críton ou O dever.

Nele, temos a seguinte situação: Sócrates está preso, condenado pelas autoridades de
Atenas por uma conduta considerada tão séria que sua pena era a morte. Nos últimos momentos
em que aguardava a execução da sentença, Sócrates recebe a visita de um amigo influente
chamado Críton. Este propõe a Sócrates a fuga da prisão e o exílio em outra cidade, de modo
que ele pudesse preservar sua vida.

O que se segue é um diálogo entre Sócrates e Críton, em que se mostra pela primeira vez
uma alternativa ao relativismo ético, postulado pela Ética como área de estudo. Uma norma,
valor ou conduta devem ser aceitos se forem baseados na razão, tida como uma capacidade
presente em todos os seres humanos e, portanto, não sujeita às variações da história, das
culturas e sociedades.

Embora a Ética como disciplina tenha, em termos gerais, dado uma resposta satisfatória
ao relativismo ético, a tentativa de basear a conduta humana na razão teve de lidar com a
complexidade própria de um assunto que envolve noções como "bem", "racionalidade",
"responsabilidade", entre outras.

A perigosa tese de que "tudo vale" foi bem respondida, mas implicou um esforço enorme
para dar conteúdo a noções como as indicadas acima, o que gerou um grande número de
abordagens ao longo da história da Filosofia.

Em pouco tempo, a Ética se tornou uma área de estudo complexa, sendo hoje em dia
dividida em dois problemas fundamentais: a ética normativa (que se ocupa em elucidar que
ações são corretas e que ações são erradas) e a metaética (que discute o sentido dos termos
éticos, se as normas morais são objetivas ou subjetivas, entre outras questões). Em nosso curso,
veremos principalmente a parte normativa da ética, embora venhamos a tocar em alguns tópicos
de metaética também.

Dentre as abordagens de ética normativa, cabe destacar três particularmente influentes e


que podem nos ajudar a entender de uma maneira mais rica o conceito de ética.

7. Aristóteles e a ética como própria da natureza humana


Aristóteles viveu no século IV a. C. na Grécia e foi discípulo de Platão. Sua abordagem
parte da ideia de que o ser humano é, por natureza, um animal político, que necessita participar
de uma sociedade para se realizar como indivíduo.

No entanto, diferente de outros animais que vivem em sociedade (abelhas, formigas e


zebras, por exemplo), o homem tem a possibilidade de agir racionalmente. A ação racional se
distingue da guiada por instintos porque é livre. A liberdade humana se deve ao fato de que, por
sermos dotados de razão, podemos escolher entre opções de forma consciente.

A melhor opção será aquela que melhor conduzir à realização do bem. Segundo
Aristóteles, pode-se entender "bem" de várias maneiras, mas é possível classificá-lo de acordo
com sua importância. O bem supremo seria a felicidade, entendida como realização das
potencialidades do indivíduo como ser humano.

Para a felicidade, entendida dessa maneira, vários bens podem ser importantes, tais como
o prazer ou alegria, a riqueza material e o reconhecimento ou fama. No entanto, eles são bens
secundários, que só fazem sentido em vista de um bem maior. Para Aristóteles, o que realmente
realiza o homem e o faz feliz é a posse ativa da sabedoria prática, ou seja, daquela razão que
permite agir do modo certo na situação adequada.

Agir do modo certo na situação adequada implica discernimento e lucidez, que são os
maiores bens que as pessoas deveriam buscar. São propriamente humanos (não como o prazer,
que também é usufruído por animais não humanos), não podem ser tirados de nós, podem ser
acumulados de acordo com nossas vontades (diferentemente da riqueza material) e não
dependem dos outros para terem valor (ao contrário da fama, que precisa necessariamente dos
outros para existir).

A pessoa de discernimento é aquela que mostra na prática uma forma sábia de viver,
chamada por Aristóteles o equivalente em português ao que chamamos de "virtuosa". Assim, a
pessoa mais feliz, mais realizada, é a pessoa mais virtuosa e não a rica, mais alegre ou famosa.

Embora cada situação exija um discernimento próprio quanto ao modo correto de agir,
Aristóteles defendia que, em geral, o modo correto de agir é o que evita extremos ou, como se
diz popularmente, "nem tanto ao mar nem tanto à terra".

Assim, por exemplo, o virtuoso não é nem o covarde, que tem medo excessivo de se
expor, nem o temerário, que se expõe demais, mas o corajoso, que enfrenta o perigo de forma
ativa, mas com prudência. A sabedoria prática está em encontrar a justa medida para cada ação,
de modo a se poder avaliar que aquela foi eticamente correta.

8. Kant e o bem como decorrente da intenção que move a conduta

Immanuel Kant foi um filósofo de língua alemã que viveu no século XVIII, bem depois de
Aristóteles. Sua abordagem em ética possui pontos em comum com a do filósofo grego, mas
apresenta algumas diferenças fundamentais.

Para Kant, uma ação só é eticamente correta se for movida exclusivamente por uma boa
intenção. O bem mais importante a ser buscado na conduta humana é agir a partir da consciência
do que deve ser feito. Em outras palavras, agir bem é agir com base no dever.

Por estranho que possa parecer, para Kant, agir com base no dever é a única maneira de
agir livremente. Isso porque o indivíduo só é livre quando não se submete a nenhuma condição
externa à sua própria vontade.

A vontade não deve ser confundida com o desejo, que é um impulso natural em nós para
a satisfação de necessidades naturais. A vontade é uma capacidade de agir segundo a razão
consciente. Assim, agir com base na vontade é agir com base na razão e não se submeter nem
mesmo aos apelos do desejo.

Nesse sentido, só uma ação a partir da vontade livre é eticamente correta para Kant. Ser
livre é agir conforme o que manda a consciência incondicionalmente, é não permitir que nada
além daquilo que sabemos ser correto interfira em nossa conduta.

Assim, quando mentimos sabemos que isso é eticamente errado, mas o fazemos porque
somos movidos por algum impulso que se sobrepõe à razão, como o medo ou o desejo de levar
alguma vantagem. Nossa ação nesse caso não foi livre, porque não fomos capazes de fazer o
que sabíamos ser certo.

A responsabilidade só é possível quando somos capazes de responder plenamente por


nossos atos. Responder pelos próprios atos supõe que somos nós mesmos que determinamos,
a partir da razão, as normas de nossa ação, ou seja, supõe autonomia.

Por outro lado, responsabilidade supõe também liberdade e capacidade de assumir


consequências da conduta assumida.
Para se avaliar se uma ação é moralmente correta, Kant propunha que se avaliasse o
quanto ela poderia ser universalizada, ou seja, o agente deve imaginar se sua ação seria boa
para todos que a praticassem. A esse critério ele chamou de "imperativo categórico", pois se
tratava de um mandamento (imperativo) e que deveria ser obedecido de forma incondicional (de
forma categórica e não hipotética, como se dependesse de alguma condição).

Uma das formas do imperativo categórico era assim: "aja de modo tal que a regra
específica da sua ação concreta possa ser tomada como lei universal para todos". Desse modo,
a mentira não pode ser considerada uma ação eticamente correta porque não pode ser
universalizada. Eu não posso querer que todos mintam, porque o resultado vai ser uma situação
insustentável, na qual ninguém mais poderá confiar no que o outro diz, uma situação na qual a
comunicação ficará impossível.

Desse modo, para Kant, agir eticamente é agir por dever e seu motivo é a realização do
bem geral e não da vantagem de um indivíduo ou de um grupo particular.

9. Stuart Mill e o bem como decorrente das consequências da ação

Stuart Mill foi um filósofo inglês do século XIX, que foi considerado o pensador mais
importante de uma abordagem em Ética chamada de "utilitarismo". Para o utilitarismo, o bem de
uma ação depende não tanto da intenção, mas das consequências que ela tem.

Uma conduta só pode ser avaliada como boa se for útil, no sentido de fazer bem ao maior
número possível de pessoas e mal ao menor número possível. Uma ação pode ser muito bem-
intencionada, mas ela será ruim se acabar sendo prejudicial aos outros, ou seja, como se diz
popularmente, "de boas intenções o inferno está cheio".

O utilitarismo tem a vantagem de tornar bem claro quando uma ação é eticamente boa ao
permitir uma avaliação bem objetiva de uma conduta por meio das consequências que ela traz e
do número de pessoas que são beneficiadas ou prejudicadas.

"Beneficiar alguém" para o utilitarismo quer dizer aumentar a quantidade de prazer e


diminuir a quantidade de dor que essa pessoa sente. "Prejudicar" é o contrário: diminuir o prazer
e aumentar a dor.

Assim, para saber se uma ação é eticamente boa, basta medir o quanto de prazer ela traz
para o maior número e o quanto de dor ela implica para a maioria.
Por outro lado, o prazer de que fala o utilitarismo não é a mera fruição de sensações
físicas, comuns a animais não humanos também. Embora seja importante a satisfação das
necessidades a elas correspondentes (por isso a fome é eticamente condenável para o
utilitarismo), os prazeres mais importantes são os propriamente humanos, como a busca do
conhecimento, a ocupação com as grandes questões públicas e a fruição das artes de alto
padrão de beleza.

Cada indivíduo deve agir não conforme seu próprio prazer pessoal, mas levando em conta
a felicidade (medida em termos de prazer e dor) do maior número. Nenhum indivíduo pode ser
feliz se a coletividade da qual ele faz parte é infeliz, ou seja, o bem comum é condição para a
plenitude do bem individual.

10. Terceiro Sentido de Ética: conduta racionalmente justificável

O rápido estudo dessas três abordagens influentes em história da Ética nos permite falar
de um terceiro sentido de "ética", empregado quando avaliamos que, mesmo uma ação sendo
socialmente estabelecida, ela pode ser eticamente condenável.

Em outras palavras, mesmo que uma conduta seja habitual e frequentemente praticada
numa sociedade, ainda assim podemos dizer que ela é antiética.

Furar fila e empregar parentes em funções públicas sem concurso, por exemplo, podem
ser condutas muito comuns num grupo social. Nem por isso as consideramos eticamente
corretas.

Isso significa que o que é ético no primeiro sentido (conduta baseada em normas e valores
socialmente sancionados) pode não ser ético nesse terceiro sentido.

Para esse terceiro sentido, uma ação é considerada eticamente correta se for justificada
racionalmente. Isso quer dizer que alegar que "todo mundo faz assim" não significa que esteja
correto eticamente.

Dizer que todo mundo fura fila pode até explicar por que eu estou fazendo a mesma coisa,
ou seja, porque se trata de um comportamento frequente e que, de tão comum, eu acabei
assimilando instintivamente à minha conduta. No entanto, posso ainda assim considerá-lo sem
justificação, ou seja, antiético.
Nesse sentido, a expressão "explica, mas não justifica" nos ajuda a elucidar um pouco
mais esse terceiro sentido de "ética". Ética aqui tem a ver não com a explicação de como as
pessoas de fato agem ou de como as coisas acontecem frequentemente, mas com o modo como
as pessoas devem agir, com a justificação racional do que se faz.

É por isso que podemos avaliar uma conduta como socialmente difundida ou
psicologicamente compreensível e rejeitá-la como inaceitável do ponto de vista ético.

Em outras palavras, podemos compreender o comportamento criminoso, ou seja,


podemos entender que há uma explicação sociológica para o crime com base no ambiente de
violência no qual viveram alguns criminosos ou numa cultura que banaliza a agressão. No
entanto, podemos dizer que, embora isso explique, não torna justificável a ação criminosa.

Podemos, então, entender ética nesse terceiro sentido como a conduta justificada
racionalmente.

Embora "ética" e "moral" sejam palavras de raízes históricas diferentes (ética, como vimos,
vem do grego ethos e moral vem do latim mores), elas têm etimologicamente um sentido comum,
o de hábito ou costume. No entanto, para facilitar nossa comunicação, podemos fazer como
alguns filósofos e reservar "moral" para o primeiro sentido de ética visto aqui, ou seja, a conduta
baseada em normas e valores estabelecidos e difundidos socialmente, e reservar "ética" para a
conduta justificável racionalmente.

O segundo sentido de "ética" (a área de estudo da Filosofia) fica, então, denominado Ética
com "e" maiúsculo, tal como se escreve o nome de uma área do conhecimento em português,
que podemos chamar também de "filosofia moral".

Assim, quando falarmos de ética na administração pública, neste curso, vamos nos referir
ao tipo de conduta racionalmente justificável que se espera de um conjunto de indivíduos. Uma
conduta que pode coincidir ou não com a moral de fato vigente entre a maioria das pessoas que
pertencem a essa categoria, ou seja, com o modo pelo qual, de fato, se comportam os servidores
públicos.

Vamos, a seguir, explorar alguns conceitos que podem ser úteis para a avaliação ética da
conduta do servidor público.

11. Ética e Justificação Racional


Quando dizemos que ética é a conduta justificada racionalmente, pressupomos
certamente o conceito de "racionalidade". É muito comum, quando nos indignamos com alguma
ação que consideramos antiética, que chamemos aquele comportamento de "absurdo" ou "sem
cabimento".

O conceito de racionalidade é bastante difícil e não cabe nesse curso aprofundá-lo demais.
Para o propósito de introdução geral ao tema da ética, de modo a aperfeiçoar a conduta do
servidor público, podemos nos restringir a dois elementos de justificação que, de certo modo,
estavam presentes desde os primeiros textos da filosofia moral.

No Críton - diálogo de Platão que citamos anteriormente - Sócrates reage à proposta de


seu amigo com base em dois princípios de racionalidade.

Ao primeiro, podemos chamar de princípio da coerência, segundo o qual é irracional agir


contrariamente ao que se afirmou anteriormente ser a conduta certa. Assim, Sócrates rejeita a
proposta de fuga de Críton porque anteriormente havia defendido que os cidadãos de Atenas
deveriam respeitar as leis e instituições atenienses, coisa que ele próprio sempre fizera ao longo
da vida.

Assim, fugir da prisão depois de ter sido condenado, mesmo que injustamente a seu ver,
não seria coerente e, portanto, não seria uma conduta justificável.

O segundo princípio é o da universalização, que vimos na ética de Kant.

Por esse princípio, se não posso concordar que todos façam o mesmo que eu, então
minha conduta não é universalizável e, portanto, não se justifica racionalmente.

Em outras palavras, se tomo meu ato como uma exceção, que eu não concordaria que
fosse repetido por outras pessoas, então tenho aqui um claro sinal de que se trata de um ato
injustificável.

No caso de Sócrates, o argumento que ele apresentou a Críton era de que as leis e as
instituições ficariam totalmente desmoralizadas caso todos as desrespeitassem, como seu amigo
estava propondo que ele fizesse. Embora a simples fuga individual de Sócrates não fosse ter
todo esse impacto, se todos seguissem seu exemplo, o enfraquecimento institucional e normativo
da sociedade seria uma consequência bastante certa.
De certo modo, a irracionalidade da conduta que fere o princípio de universalização tem a
ver também com as consequências da ação para o indivíduo e o grupo. A ideia de que haveria
um efeito ruim para o próprio indivíduo que a realizou, caso todos agissem como ele agiu, se
aproxima bastante da ética utilitarista, que também fala do tipo de consequência como parâmetro
para avaliar uma conduta.

É certo que o problema da racionalidade de uma ação é um tema complexo e não se


esgota com essa abordagem introdutória. No entanto, esses dois princípios, coerência e
universalização, parecem incluir dois importantes elementos para se avaliar se uma conduta é
justificável e podem ser bastante úteis para se julgar se uma determinada ação de um servidor
público é eticamente aceitável.

12. O que as pessoas, de fato, fazem e o que elas deveriam fazer

O conceito de ética proposto aqui - conduta racionalmente justificável - foi apresentado a


partir de uma distinção entre o que as pessoas fazem e o que elas devem fazer. Essa distinção
pode ser expressa também da seguinte maneira: a ética diz respeito ao que é "de direito" e não
ao que é "de fato". Pelo fato de ser relativa a como deve ser a conduta humana, uma ação para
ser ética, nesse sentido, precisa ser justificável racionalmente.

Uma dificuldade com essa concepção de ética é que, muitas vezes, as pessoas são
levadas a agir de um modo determinado pelos seus desejos e condicionamentos sociais. Fazer
qualquer juízo ético sobre seu comportamento parece esquecer que as "pessoas são de carne
e osso".

É claro que não podemos esquecer que ninguém é perfeito, mas o que teríamos se
abríssemos mão do julgamento ético?

Em primeiro lugar, se a compreensão de nossos atos se esgota nas causas e


condicionamentos externos à vontade, então nós nos tornamos seres cujo comportamento pode
ser inteiramente dirigido por quem quer que detenha o conhecimento e o controle desses
mecanismos.

Se não temos, em princípio, uma vontade que se baseie numa decisão racional e livre,
mas, ao contrário, que é sempre condicionada por conveniências pessoais e motivos
psicossociais, então não há como se justificar o tratamento diferenciado que se dá entre uma
máquina, que se usa como instrumento, e um indivíduo humano, que julgamos digno de ser
tratado como fim em si mesmo, não como um joguete. Em outras palavras, a possibilidade de
sermos responsabilizados pelo que fazemos é um elemento fundamental que nos caracteriza
como seres humanos.

Em segundo lugar, a redução do âmbito ético à esfera das causas e desejos tornaria difícil
a compreensão de atos como a indignação moral, a resistência à influência predominante no
meio e o comportamento conscientemente desviante do normalmente esperado.

Nem todo alemão no período nazista aceitou passivamente a ideologia racista, muitos se
opuseram e resistiram, pondo em risco a própria vida. Mesmo que eu me sinta injustiçado ou
perceba que os espertos têm tido sucesso material, posso me recusar a entrar para a
criminalidade ou a agir desonestamente. Muitos de nós somos capazes de renunciar a uma
conveniência pessoal em função do que consideramos correto.

Se é verdade que abrir mão do julgamento moral acarreta sérias consequências do ponto
de vista da liberdade e da dignidade humanas, e se é verdade que as explicações oferecidas
pelas ciências sociais e humanas não implicam o desaparecimento do âmbito especificamente
ético, ainda nos resta um segundo problema a ser brevemente analisado neste tópico: o
problema do conflito de valores numa análise especificamente ética de uma determinada
conduta.

O que fazer quando mais de uma obrigação ética parece estar envolvida numa ação?

Um belo exemplo desse problema está num famoso texto do filósofo francês Jean-Paul
Sartre, intitulado O Existencialismo é um Humanismo. Sartre apresenta o caso de um jovem
que se vê na difícil situação de optar por defender a pátria na guerra ou cuidar de sua mãe doente
que o tem como única alternativa de ajuda. Ambas opções parecem eticamente justificáveis,
ambas passam pelo critério de universalização e coerência enunciados acima.

Por outro lado, nenhuma das escolhas possíveis está fundada em qualquer motivação
externa à vontade movida racionalmente. O caso em questão é o de alguém tentando se guiar
pelo que racionalmente parece o caminho mais correto. Assim, o que temos aqui é uma situação
na qual o julgamento ético fica indeterminado, pois qualquer uma das decisões é passível de
justificação racional.

Nos casos onde critérios puramente éticos não permitem um julgamento conclusivo da
correção de uma ação, podemos recorrer a padrões próximos ao da ética, como os da política
ou do direito.
Assim, podemos hierarquizar os valores envolvidos no conflito conforme a justiça e a
legalidade do ato. Em outras palavras, podemos considerar os benefícios e malefícios que nosso
ato implica para a coletividade na qual estamos inseridos e o grau de consistência de nossa ação
com o código positivo de regras estabelecido por essa coletividade a fim de julgarmos qual a
melhor maneira de agir.

Em todo caso, o que Sartre queria com esse exemplo era defender a idéia de que, nas
situações concretas de nossas vidas, no mais das vezes, não temos em que nos apoiar e que o
rumo que damos para nossas existências depende, no fundo, de nossas decisões e não de
qualquer essência universal que sirva de guia infalível para nossos atos.

Para Sartre, ao mesmo tempo em que não dispomos de parâmetros de julgamentos gerais
que sempre decidam conclusivamente sobre a correção ética de uma ação, devemos encarar
nossa conduta concreta como se fosse um exemplo para toda a humanidade, como se
estivéssemos construindo a própria essência do ser humano a cada decisão que tomamos.
Trata-se de uma versão existencialista do princípio de universalização.

Aprofundemos um pouco mais o tópico da relação entre ética, política e direito.

13. Ética, Política e Direito

A questão do conflito de valores vista ao final do último tópico serve para nos mostrar que
o julgamento ético nem sempre permite uma conclusão clara, embora possa ser de grande ajuda
em muitas situações em que queremos avaliar se o que estamos fazendo é certo ou errado.

A sugestão apresentada foi de que, nesses casos, devemos combinar a avaliação ética
com valores e normas presentes na política e no direito.

Há muitas definições de política, mas é possível entendê-la, para os propósitos de


relacioná-la com o âmbito da ética (que se refere à ação de um indivíduo), como a ação de uma
coletividade em vista de um fim que não pode ser alcançado por um único indivíduo. Estradas,
escolas, hospitais são exemplos de obras coletivas, que servem a necessidades humanas
importantes e que não poderiam ser realizadas por pessoas isoladas.

Para que os indivíduos possam agir conjuntamente, é preciso haver acordo entre eles.
Esse acordo se faz por meio do direito, que pode ser entendido como o conjunto de normas e
leis positivas vigentes num país e que têm força coercitiva.
Tanto a ética, a política e o direito dizem respeito a valores, dizem respeito ao que é
considerado um bem. O bem da política é que se chama de justiça, entendida como o bem
comum a ser atingido pela ação coletiva.

A justiça se manifesta também no modo como é distribuído esse bem comum, conforme
princípios como o mérito (é justo que cada um tenha o que fez por merecer), a equanimidade (é
justo que os bens sejam distribuídos de modo que todos tenham as mesmas oportunidades) e a
isonomia (é justo que todos sejam tratados do mesmo modo pelas instituições públicas e as leis).

Diferentemente da ética, a ação política sempre leva em conta o que de fato é possível
fazer, dado que se trata de uma conduta que resulta do acordo e da pressão de grupos e
indivíduos com pontos de vista diferentes.

O direito tem a ver com a norma garantida, em último caso, pelo recurso à força pelo
Estado. Se eu não cumpro uma lei, sou passível de punição por instituições públicas. No caso
da ética, é a própria consciência do indivíduo que fala, ou seja, que o censura ou elogia.

Como vimos acima, uma ação tem valor ético quando é feita de forma autônoma, por
iniciativa própria. Quando dizemos que alguém é responsável pelo que faz, estamos
pressupondo que ele tem autonomia para agir.

Em suas ações, o servidor público é passível de julgamento ético, como qualquer pessoa,
mas também pode ser avaliado conforme a justiça da conduta que tomou (ou seja, o quanto esta
atende ao interesse público) e, principalmente, no quanto sua ação está de acordo com a
legislação vigente.

14. Educação Ética

A importância da educação ética do servidor público está no fato de que sua iniciativa, no
sentido de aperfeiçoar o serviço público, é fundamental para o aperfeiçoamento do Estado
brasileiro, para que haja mais justiça na distribuição dos bens.

É claro que ela não resolve tudo, que sempre é necessário aperfeiçoar as instituições e
aplicar bem as leis vigentes, mas não se pode negar que o aprimoramento do discernimento
ético do servidor público tem grande papel na melhoria do serviço público em nosso país.
É com esse propósito que se justifica o curso que estamos fazendo. Trata-se aqui de
apresentar ideias e argumentos que ajudem cada servidor a discernir melhor seu próprio modo
de agir em seu trabalho no dia a dia e aperfeiçoar sua conduta.

Se pudermos contribuir para esse propósito, já teremos feito algo muito importante.

Continuemos nosso curso com o módulo 2, referente à aplicação desses conceitos éticos
à administração pública mais concretamente.

Módulo 02

1. Objetivos Específicos

Ao final deste módulo, espera-se que você seja capaz de:

1. Justificar a importância da Ética no exercício da função pública, particularmente no que se refere aos
valores que devem nortear a conduta dos servidores públicos e garantir, consequentemente, o respeito à coisa pública
e o foco no cidadão;
2. Distinguir a esfera pública da esfera privada com atenção voltada para os valores e princípios que regem
as condutas nesses dois universos;
3. Definir "democracia", considerando os conceitos de representação e igualdade, bem como a noção de
cidadania;
4. Contextualizar a cidadania no Brasil, observando os aspectos históricos do país e os desafios para o
futuro em vista da responsabilidade pública.

Neste módulo, será estudada a relação entre ética e a dimensão pública da conduta do
indivíduo, tratando especialmente da ação do servidor público como agente do Estado, o modo
como os valores próprios da cidadania se concretizaram na ação do Estado brasileiro e os desafios
que se põem para a conduta do servidor público diante dessa história.

Os assuntos abordados aqui são:

 Por que falar em ética da vida pública?


 A Vida Pública e a Esfera Privada: O Estado.
 Democracia e cidadania.
 Cidadania no Brasil.
 Serviço Público e desafios do Estado contemporâneo no Brasil.
 Responsabilidade pública (Accountability).

2. Por que falar em ética da vida pública?

A Natureza da Política

Vimos que a ética diz respeito, principalmente, à ação do indivíduo: aos valores e normas
implícitos em sua conduta, permitindo que esta seja julgada como correta ou incorreta, como ética
ou antiética. Embora a ética trate também de ações que o indivíduo realize em relação a si mesmo,
normalmente ela se refere àquilo que as pessoas fazem para outras pessoas.

Um dos traços mais característicos dos seres humanos é que eles vivem em coletividades
e precisam da convivência com outros seres humanos para se realizarem como pessoas.

A ação de uma coletividade é o assunto principal da política. Trata-se de uma dimensão


essencial de nossas vidas porque sabemos que a maioria das grandes coisas de que precisamos
e podemos fazer jamais seria feita apenas por nós mesmos isoladamente ou mesmo por um
pequeno grupo de indivíduos. Elas dependem do amplo concerto e da sólida união de um grupo
bastante numeroso.

Esse fazer coletivo, porém, não resulta apenas em grandes coisas. Embora nem sempre o
percebamos, muito de nossos próprios pequenos sucessos individuais depende também do
sucesso de nossa coletividade. E isso é obra da política.

Em política temos também que deliberar e fazer escolhas, como na ética. Não haveria
política se não houvesse alternativas, se não houvesse espaço para a decisão efetiva acerca de
que rumo tomar, se tudo fosse submetido à necessidade férrea ou ao absolutamente casual,
conceitos que estudamos no Módulo 1.

A política é uma atividade inteligente. Sua marca é intervir no mundo segundo uma intenção
premeditada, para conservar ou mudar um estado de coisas. Além disso, as alternativas políticas
não são neutras em relação aos valores morais, pois elas dificilmente escapam a uma ponderação
sobre o mérito ou demérito da ação: sua justiça, correção, prudência, coragem, magnanimidade...

Aquilo que na ação individual é precedido por uma reflexão introspectiva e silenciosa, no
âmbito político se torna um processo visível, interpessoal e, às vezes, bem barulhento, que vai de
um simples intercâmbio de opiniões até uma discussão acalorada, uma pomposa assembleia ou
um debate na televisão em rede nacional.

Mas, se a política é assim tão importante e tão útil, por que muita gente diz ter aversão
a ela? A resposta a essa questão nos remete a um segundo elemento fundamental da natureza
da política. Além de ser a união de indivíduos empenhados em resolver problemas que só
coletivamente podem ser resolvidos, a política é também a atividade de conquista e manutenção
do poder que permite resolver esses problemas.
O que vemos numa eleição, num debate entre parlamentares de partidos opostos ou num
golpe de Estado, por exemplo, são ações tipicamente políticas porque se referem à disputa pelo
poder. Esse elemento de conflito e tensão, que envolve ações nem sempre muito apreciáveis do
ponto de vista ético, talvez seja a principal causa para muitas pessoas terem um sentimento
negativo em relação à política.

Assim, a natureza da política envolve não apenas o trabalho coletivo na busca de solucionar
problemas comuns a todos (segurança, saúde, transporte, educação etc.), mas também a disputa
pelo poder que possibilita resolver esses problemas. Uma grande questão a ser resolvida pela
atividade e pelas instituições políticas é como fazer com que a disputa pelo poder não inviabilize
ou mesmo coloque em segundo plano o objetivo maior de se buscar o bem comum.

3. A vida pública e a esfera privada: o Estado

A política, por ser uma ação coletiva, precisa de um ambiente onde se dão os acordos e
conflitos entre seus membros: a vida pública. Esta se define por sua distinção da vida privada.

Embora se possa falar de poder nas relações interpessoais (entre cônjuges, amigos ou
familiares, por exemplo), o mais apropriado é pensar que o que está envolvido no poder político é
um âmbito de relações que se regula por normas impessoais e válidas para todos.

Em outras palavras, enquanto na esfera privada fazemos legitimamente distinções entre


amigos e inimigos, e nos permitimos agir de modo especialmente favorável em relação a quem
nos é familiar, isso não cabe na vida pública de modo legítimo.

Embora a disputa pelo poder político frequentemente oponha indivíduos em grupos


antagônicos distintos, a busca de objetivos comuns que caracteriza a política exige que tratemos
a todos os envolvidos na vida pública de maneira igual e que ajamos não conforme nossos gostos
ou inclinações pessoais, mas conforme valores e regras comuns a todos.

O Estado

A distinção entre público e privado é fundamental para se entender melhor a aplicação da


ética ao campo de atuação do servidor público. Como veremos a seguir, ela permite entender e
avaliar com mais clareza fenômenos como a corrupção e o clientelismo.

No entanto, essa distinção precisa levar em conta um elemento importante no entendimento


do campo de atuação do servidor público. Além de ser distinta da esfera das relações
interpessoais (familiares, de amizade, de grupos de amigos ou de interesse particular), a vida
pública de um servidor público se dá dentro de um espaço definido também. Esse espaço de
atuação pública segundo regras e valores comuns a todos é o definido pela jurisdição de um
Estado.

O espaço público delimitado pela jurisdição de um Estado é também o que define a


cidadania. Cidadão é aquele que tem determinados direitos e deveres perante a ordem jurídica
definida por um Estado. Aprofundaremos o conceito de cidadania mais adiante.

Um Estado é tanto a estrutura política e jurídica de uma nação quanto o conjunto das
instituições que administram um país. Classicamente, um Estado se caracteriza por ter um povo,
um governo e um território. Assim, o âmbito no qual se dá o tratamento igual aos membros de
uma coletividade política e as relações impessoais mediadas por regras comuns,
independentemente de inclinações e preferências pessoais, é aquele abrangido pelo Estado ao
qual o indivíduo pertence.

Outro conceito clássico no entendimento do Estado moderno é que ele detém o monopólio
do uso legítimo da força. Em outros termos, só o Estado, lançando mão de um aparato policial e
de forças armadas, tem legitimidade para usar a força física para levar alguém a agir de uma
determinada maneira.

Afora as ações de legítima defesa (definidas também em lei), os cidadãos não podem usar
a força uns contra os outros. Quando o fazem, o Estado tem o dever de intervir e punir esse ato.

É exatamente nessa possibilidade exclusiva de convencimento, a ser usado em caso


extremo, que consiste em o poder principal do Estado. Esse é um instrumento poderoso para
conjugar os esforços individuais num sentido comum e é um recurso fundamental, objeto de cobiça
por quem se dispõe a disputar o poder político.

Por outro lado, além do aparato policial, das forças armadas e do sistema judiciário, o
Estado atualmente é também dotado de várias instituições que objetivam realizar serviços
considerados importantes para a concretização de finalidades comuns, tais como saúde,
educação, transporte etc.

Obviamente, os recursos e mecanismos envolvidos na realização dos serviços públicos são


outro componente fundamental do poder do Estado, e seu domínio é mais uma razão da busca
pela conquista do poder político.
É preciso lembrar, porém, que vários serviços de interesse público são prestados por
instituições que não estão sob o controle do Estado. Por outro lado, há dentro do Estado
instituições que servem de apoio a ações do próprio Estado, sem contar as ações e iniciativas nas
quais o Estado se envolve no interesse de sua própria manutenção ou crescimento. Isso significa
que o Estado não coincide com a esfera pública, pois há agentes não estatais que participam dela
ativamente e nem sempre o interesse do Estado é um interesse público, mas do próprio Estado
como ente autônomo. Essa distinção será uma base importante para a avaliação ética de certos
casos envolvendo a conduta do servidor público.

Estado Moderno e Estado Contemporâneo

Para entendermos melhor os critérios de avaliação da conduta do servidor público no Brasil,


é importante levarmos em conta algumas informações sobre o papel e os desafios do Estado
historicamente falando.

O chamado Estado Moderno surge na Europa a partir do século XIII em resposta a desafios
de segurança e de necessidade de expansão econômica. A fragmentação dos feudos medievais
e a pouca especialização de sua administração não permitiam atender a demandas por maior
segurança tanto interna quanto externa. A centralização do poder político nas mãos de um
soberano, diminuindo o papel das aristocracias feudais, foi o modo de responder a essa exigência.
O monarca absoluto de um território unificado podia arregimentar forças armadas mais eficientes
na defesa contra inimigos externos, além de garantir melhor a ordem interna e a prestação de
justiça para a resolução de conflitos entre os cidadãos.

Por outro lado, junto com a centralização do poder político em torno do soberano absoluto,
o Estado Moderno foi aos poucos substituindo as associações pessoais familiares do feudo
medieval, que eram guiadas pela tradição, por instituições impessoais e especializadas, regidas
por padrões de racionalidade.

Em outras palavras, o Estado Moderno criou uma estrutura organizativa formal destinada a
administrar a vida pública, possibilitando a consecução de objetivos não só sociais e políticos
(segurança e resolução de conflitos), mas também econômicos.

Em Portugal, por exemplo, foi importantíssimo o papel do Estado no empreendimento que


resultou na expansão marítima e permitiu a colonização de territórios em outros continentes, como
foi o caso do Brasil.
A exclusividade do uso legítimo da força, a organização de um exército estável de base
territorial definida, de um sistema policial e de um sistema judiciário, bem como o apoio a projetos
econômicos de grande alcance, foram papéis desempenhados pelo Estado Moderno e que se
mantêm no Estado Contemporâneo.

Com o Estado Moderno, começam a se instaurar direitos civis básicos como o de ir e vir,
que não era acessível ao servo feudal; o direito à propriedade, fundamental para o novo modo de
vida econômico que surgia, e o direito à justiça e segurança pessoal.

Embora a aristocracia ainda desempenhasse papel importante, aos poucos foi crescendo
a importância de grupos de plebeus que estavam à frente de empreendimentos econômicos
importantes, ligados ao comércio e à manufatura, e que buscavam maior influência nas decisões
do Estado. Devido ao fato de que esses grupos habitavam os burgos - cidades que começavam
a reaparecer por toda a Europa - eles passaram a ser conhecidos como "burgueses".

Ao mesmo tempo em que ia crescendo a importância dos burgueses, o poder absoluto do


soberano ia também sofrendo limitações. Além de morar na cidade e não no campo, o burguês
não era, como o servo feudal, preso à terra na qual trabalhava em troca de seus meios de
subsistência.

Aos poucos, vai ganhando força um tipo de relação de trabalho mais livre, na qual o
trabalhador é remunerado por seu serviço em moeda, o salário.

Todas essas alterações vão significar mudanças importantes no papel do Estado e no


alcance do poder a ser desempenhado pelo soberano. Os interlocutores do Estado vão deixando
de ser as famílias aristocráticas de senhores feudais e passam a ser os indivíduos. Em outros
termos, vai surgindo um conjunto de valores articulados em torno da noção de liberdade individual,
coerente com a importância crescente da iniciativa econômica dos burgueses em seus negócios
privados.

A limitação do poder absoluto do soberano se torna necessária para permitir a ampliação


dos direitos civis e a posterior criação dos direitos políticos.

A Revolução Gloriosa na Inglaterra, ao final do século XVII, e a Francesa, ao final do século


XVIII, vão indicar o fim do poder absoluto dos reis e a transferência do poder político do Estado
para instituições, que gradativamente foram passando para as mãos do povo.
No campo civil, o cidadão passou a ter direito à liberdade religiosa e de expressão de suas
ideias. Os direitos políticos de organização em partidos e eleição direta de governantes ou
representantes vão aparecer na Europa no século XIX.

Associado ao crescimento da importância do indivíduo e da liberdade, o poder do Estado


vai deixando de ser ligado ao da pessoa do soberano. Aos poucos, o poder político vai se
institucionalizando, ao invés do império das pessoas, vai se firmando a noção de império da lei, à
qual mesmo o governante deve se submeter.

O aparato administrativo do Estado deixa de depender exclusivamente do monarca e passa


a ter cada vez mais independência em relação às vontades pessoais do governante, podendo se
dedicar a atender os direitos que aos poucos vão sendo conquistados pelo cidadão.

No entanto, a autonomia do aparelho administrativo também vai implicar problemas, que


vão ser objeto de críticas e discussões até hoje. De um lado, o Estado contemporâneo vai ser
criticado por se tornar um fim em si mesmo, não mais se importando com o desempenho das
finalidades públicas para as quais foi criado e é mantido. Por outro lado, o Estado atualmente vai
ser criticado porque se ocupa muito mais dos interesses dos grandes grupos econômicos
capitalistas e não com os problemas e demandas da maioria dos cidadãos.

O Estado Contemporâneo surge, então, como resultado de um lento processo no qual a


noção de direitos do cidadão vai se ampliando e o poder político vai deixando de estar ligado à
pessoa do soberano e passando para o império da lei. Tem-se a instauração do estado de direito
e a crescente igualdade de participação do cidadão nas decisões do Estado. Surge o que se
chama de democracia moderna.

4. Democracia e Cidadania

No Estado Contemporâneo, surgido das revoluções burguesas dos séculos XVII e XVIII, a
participação política foi elemento fundamental para a consolidação do império da lei e o
atendimento às demandas de um número cada vez maior de cidadãos.

A primeira experiência democrática foi na Grécia Antiga, em Atenas. Todos os cidadãos


atenienses podiam votar nas assembleias, onde se decidiam os rumos do Estado, e podiam ser
escolhidos, por sorteio, para o desempenho de cargos públicos. Esse tipo de democracia foi
bastante criticado por vários pensadores ao longo da história porque não dava importância para o
conhecimento necessário ao bom governo do Estado, que ficava sujeito aos interesses dos mais
fortes, disfarçados pela demagogia.
Além disso, eram considerados cidadãos apenas os adultos do sexo masculino, nascidos
em Atenas e que fossem livres. Isso excluía a maior parte da população, ou seja, as mulheres, os
escravos e os estrangeiros, além das crianças.

Por outro lado, mesmo entre os adultos do sexo masculino a participação era baixa, pois a
maioria não tinha tempo para se dedicar a atividades políticas. No fim das contas, havia pouca
diferença entre a democracia grega e um tipo de oligarquia, onde os mais ricos é que realmente
decidiam os rumos do Estado.

A democracia moderna buscou preservar a ideia de governo do povo, mas evitando os


problemas da democracia grega. No questionamento do absolutismo monárquico do Estado
Moderno, vários pensadores defenderam a ideia de que a fonte primeira de legitimação do poder
político é a vontade popular.

Assim, um primeiro sentido da democracia moderna foi o de ser uma forma de governo
oposta a todo tipo de despotismo e autocracia. Em outras palavras, numa democracia, decisões
devem ser tomadas não por um pretenso iluminado que dita o que deve ser feito, mas por
instituições colegiadas, sujeitas ao controle e à eleição popular.

A democracia moderna se baseia fortemente no conceito de representação. Ao invés de


supor que todo cidadão vai participar diretamente das decisões do Estado, os regimes
democráticos modernos vão dar aos cidadãos o direito de eleger representantes e controlar o
modo como estes exercem o poder em seu nome. Desse modo, em tese, poderiam ser escolhidas
pessoas mais preparadas e interessadas em se dedicar aos assuntos públicos. São necessários,
então, mecanismos de eleição que espelhem a vontade popular, de informação do modo como a
representação é exercida e de acompanhamento das atividades e posicionamentos do
representante.

Outro conceito fundamental da democracia moderna é o de igualdade de todos os cidadãos


que tenham atingido a maioridade. Por conta da circunscrição territorial da noção de Estado, há
em geral limites à participação de estrangeiros. No entanto, pouco a pouco, foram sendo
eliminadas restrições de sexo, renda e escolaridade para a participação no processo eleitoral.
Mesmo uma flexibilização do conceito de maioridade foi sendo feita ao longo do tempo, com uma
gradual diminuição da idade mínima para se votar e ser votado.

Por outro lado, a democracia representativa moderna é criticada por se restringir à


igualdade formal de todo cidadão como eleitor. Para esses críticos, não adianta nada dar a todos
o direito de votar quando o acesso à educação e a bens de necessidade básica é desigual a ponto
de inviabilizar uma participação consciente e bem informada na escolha dos representantes e no
controle das atividades do Estado. Em suma, a democracia deveria incluir não apenas a igualdade
eleitoral, mas também condições para o exercício da cidadania.

No século XX, surge a noção de direitos sociais, a serem atendidos pelo Estado também.
A participação política exigia informação e capacidade de discernir sobre os rumos que o Estado
deveria tomar. Com isso, surge o direito à educação gratuita, para todos os cidadãos. Além da
educação, aos poucos vão se instaurando outros direitos sociais, como à previdência e
aposentadoria, à saúde, à moradia, à alimentação e à renda mínima.

A noção de cidadania, então, vai se ampliando desde o início da Idade Moderna. Aos
poucos, cidadão deixa de ser aquele que tem direitos civis apenas (à justiça, ao direito de ir e vir,
à expressão livre de suas ideias, à propriedade, à liberdade de crença religiosa), baseados na
ideia de igualdade perante a lei, que garantem a vida em sociedade. Por conta de pressões de
grupos organizados, reformas políticas e revoluções, o cidadão foi adquirindo também direitos
políticos, de determinar pelo voto quem vai exercer o poder no Estado e controlar o modo como
seus representantes eleitos o exercem. Por fim, a cidadania incorporou direitos sociais, que
garantem a participação na riqueza coletiva, de modo a diminuir a desigualdade econômica e
social entre os indivíduos e permitir a participação real de todos.

5. Cidadania no Brasil

Segundo José Murilo de Carvalho em seu livro Cidadania no Brasil: o Longo Caminho
(2001), a conquista de direitos de cidadania em nosso país seguiu curso diferente do que
aconteceu em outros países de economia desenvolvida. Mais do que isso, os elementos básicos
da cidadania, a igualdade de todos perante a lei e o acesso de todos à justiça, ainda não são uma
realidade para os brasileiros.

Temos ainda uma situação na qual há o que Carvalho (2001) chama de cidadãos de
primeira, segunda e terceira classe. Os de primeira classe, que estão entre os 5% mais ricos do
país, estão acima da lei, no sentido de que raramente são condenados por alguma infração e,
quando o são, conseguem escapar de punição graças à contratação de bons advogados. Para
estes, a lei só vale quando os beneficia e possibilita que consigam favores do Estado, por meio
dos contatos que têm nas diferentes esferas do poder público.
Segundo a Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios do IBGE, em 2003, os
cidadãos com renda entre um e dez salários mínimos seriam a maioria da população. Na
classificação de Carvalho (2001), eles são os cidadãos de segunda classe, que estão sujeitos
tanto aos rigores quanto aos benefícios da lei, mas de maneira incerta e incompleta.

Devido à demora e aos custos de uma ação na justiça, à falta de informação e ao medo de
ações arbitrárias das autoridades policiais e judiciárias, os cidadãos de segunda classe raramente
exigem seus direitos.

Cidadãos de terceira classe seriam os que ganham até um salário mínimo mensal, algo em
torno de 25% da população brasileira. Eles formam a maioria da população que habita a periferia
das grandes cidades brasileiras. Na sua maior parte, são pardos ou negros, com grau de instrução
baixo ou mesmo analfabetos. Não se sentem protegidos pela lei ou pelo Estado. Seu contato com
as autoridades policiais ou judiciárias não é o de demanda por seus direitos individuais, mas como
vítimas de violência arbitrária e repressão.

Em outras palavras, a cidadania no Brasil ainda enfrenta o desafio de universalizar os


direitos civis e fazer valer o Estado de Direito, com a igualdade de todos perante a lei. Quanto aos
direitos políticos, houve avanço notável, especialmente depois da Constituição Federal de 1988,
com a livre organização partidária e as eleições diretas para prefeitos, governadores e presidente,
além dos cargos legislativos. No campo dos direitos sociais, houve avanço também, com a
universalização da previdência e aposentadoria, com a quase universalização da educação
básica, com o aumento do acesso das classes mais pobres a moradia própria e com programas
de renda mínima como o "Bolsa Família".

Não se pode negar que houve avanços, mas ainda há muito que fazer.

6. Serviço público e desafios do Estado contemporâneo no Brasil

O estudo da história da cidadania no Brasil mostra que, na maior parte do tempo, o poder
do Estado não foi usado para fins públicos como a atenção aos direitos civis de todos os cidadãos
e a ampliação dos direitos sociais, com vistas à diminuição das desigualdades.

O Estado brasileiro tem sido, na maior parte de sua história, privatizado em benefício dos
mais poderosos.
A esse fenômeno, os sociólogos dão o nome de "patrimonialismo clientelista". Vejamos a
seguir o que quer dizer essa expressão e como o entendimento dela permite compreender o grave
problema da corrupção.

Patrimonialismo

Segundo o sociólogo alemão Max Weber, patrimonialismo é uma forma de organização da


sociedade inspirada na economia doméstica e baseada numa autoridade fortalecida pela tradição.
O termo original é do latim, patrimonium, e significa o conjunto de bens paternos, a herança
familiar. Em outras palavras, no patrimonialismo, o poder do Estado está na mão de determinadas
famílias, que se servem dos recursos públicos como se fossem propriedade privada sua e exercem
o poder não com base na lei, mas no próprio interesse dessas famílias dominantes, que se
estabeleceram no passado e foram se mantendo poderosas ao longo dos anos.

No Brasil, o patrimonialismo foi o modo como se organizou a sociedade antes do


fortalecimento do Estado, da sua maior presença no cotidiano. Aos poucos, os interesses pessoais
de famílias poderosas e seu arbítrio foram sendo substituídos por mecanismos mais impessoais
de acesso aos bens, e decisões tomadas com base na lei. Porém, valores tipicamente patrimoniais
como a lealdade, o compadrio e o tráfico de influência, em suma, a cultura do "você sabe com
quem está falando", parecem ainda muito presentes no Estado brasileiro.

Clientelismo

Um fenômeno estreitamente vinculado ao patrimonialismo é o clientelismo. Enquanto o


patrimonialismo é o modo como se organiza a sociedade (em torno de famílias que detêm um
grande patrimônio e são consagradas pela tradição), o clientelismo é a faceta política do
patrimonialismo e se define por um modo de relacionamento entre o poderoso e os que dele
dependem, os seus clientes. Na Roma antiga, a clientela era uma relação de dependência
econômica e política entre um patrono, que oferecia seu poder de proteção e influência, e o cliente,
que lhe prestava lealdade, serviço militar e, em circunstâncias especiais, pagava-lhe tributo.
Tratava-se, portanto, de uma relação de dependência pessoal, de natureza vertical, ou seja, há
no clientelismo um superior e um subordinado.

Ainda hoje subsistem relações de clientelismo no Estado brasileiro. Embora a sociedade


moderna não se organize mais em torno de famílias poderosas, mas de um Estado burocrático,
relações políticas clientelistas se mantêm na troca de favores entre o político profissional e os que
o apoiam, por exemplo. Aquele oferece a estes todo tipo de ajuda pública (verbas, lotes, licenças,
contratos, empregos, funções no Estado etc.) em troca de votos e suporte em períodos eleitorais.
Trata-se de um fenômeno de personalização do poder, ou seja, o Estado é tomado como parte do
patrimônio pessoal do político e não como coisa pública, um caso de confusão entre a esfera
pública e a esfera privada. Um caso típico desse tipo de dificuldade é a corrupção.

Corrupção

Corrupção significa, em termos gerais, deterioração, adulteração das características


originais de algo. Em termos da administração pública, corrupção é o fenômeno pelo qual o
funcionário público age de modo diferente da lei, favorecendo interesses particulares em troca de
recompensa. O peculato (desvio ou apropriação de recursos públicos para uso privado) e o
nepotismo (favoritismo em relação a parentes) são exemplos de corrupção pública. Trata-se de
um comportamento que se define principalmente pela confusão entre a esfera pública e a esfera
privada, entendidos dentro dos limites da lei no Estado.

Por outro lado, embora se possa esperar menos corrupção num Estado com menos
recursos (pois a esfera pública é menor), o que realmente parece determinar a possibilidade de
corrupção, do ponto de vista jurídico, é a falta de mecanismos institucionais claros e operacionais
de controle e responsabilização pública do uso dos recursos públicos. Por outro lado, a corrupção
tem também a ver com a falta de disseminação da cultura que distingue o domínio público do
domínio privado e que valoriza o Estado como instituição que deve estar a serviço de todos, de
forma impessoal e não de interesses individuais.

Assim, do ponto de vista ético, a corrupção é antes de tudo um problema derivado da falta
de separação entre a esfera pública e a privada, ou seja, o fato de o servidor público tomar os
recursos do Estado como se fossem seus ou do grupo ao qual está ligado.

O Estado impessoal, que está a serviço de todos, baseia-se em relações políticas


horizontais, ou seja, não entre superiores e subordinados, mas entre cidadãos e servidores
públicos, com direitos e deveres estabelecidos em lei e da vontade consagrada pelo voto, e não
dependentes da vontade arbitrária de indivíduos ou famílias poderosas.

No livro A Gramática Política do Brasil - Clientelismo e Insulamento Burocrático (1997),


Edson Nunes chama a esse modo de proceder do Estado, com base em normas democráticas e
válidas para todos, de "universalismo de procedimentos".

Embora sua concretização plena ainda seja um desafio a ser vencido, o estabelecimento
do concurso público como critério único para ingresso nas carreiras de servidor do Estado, previsto
na Constituição Federal de 1988, é um grande impulso nesse sentido. Desse modo, o servidor
concursado não depende mais de um benfeitor que lhe concedeu o emprego e lhe exige lealdade.
Seu compromisso passa a ser com o cidadão que paga os impostos e não com um "poderoso de
plantão" ou com o grupo político que o pôs no cargo.

Além do clientelismo, que seria o modo mais comum de relação entre Estado e sociedade
no Brasil, tal como vimos acima, Nunes (1997) indica outro padrão de procedimento, que se tornou
mais comum no Brasil a partir de 1930: o "insulamento burocrático".

Trata-se de um modo de proceder do serviço público que é imune às ingerências do


clientelismo e que pretende se guiar exclusivamente por critérios técnicos nas decisões e
iniciativas. Foi particularmente importante durante a ditadura do Estado Novo, quando foram
criados vários órgãos públicos destinados a aumentar a eficiência do serviço público, e no período
da ditadura militar instaurada em 1964. Apesar de não ser clientelista, o insulamento burocrático
é criticável porque se trata de um Estado e um serviço público voltados para si mesmos e não
para atender os direitos do cidadão, criando-se uma burocracia isolada das demandas sociais.

7. Responsabilidade pública (Accountability)

Para finalizar essa reflexão sobre ética e a conduta do servidor público, é importante
pensarmos um pouco sobre a noção de responsabilidade pública, uma tradução possível do termo
inglês accountability.

Em seu artigo "Accountability: Quando poderemos traduzi-la para o português?", Anna


Maria Campos coloca em questão exatamente a possibilidade de traduzir a palavra inglesa para
o português, devido à diferença nas culturas de serviço público existentes no Brasil e nos Estados
Unidos.

Segundo ela, a comparação revela alguns problemas graves de nossa administração


pública. Por um lado, observa-se a desconsideração pelo cidadão a ser atendido e pelos recursos
públicos a serem usados, o formalismo e a falta de transparência. Por outro, a passividade diante
da corrupção e do desrespeito, e a desinformação acerca dos próprios direitos por parte do
cidadão no Brasil são também impressionantes para quem compara os dois países quanto à
relação entre Estado e sociedade.

Embora o controle interno, conduzido pelos superiores hierárquicos, possa ajudar no


aperfeiçoamento do caráter público do serviço prestado pelo Estado, ele não é suficiente para
garantir a qualidade e a relevância no atendimento das demandas dos cidadãos.
Faz-se necessário um tipo de controle mais direto do serviço público, por meio da mídia,
por exemplo, e outros modos de exercício ativo da cidadania. Nesse sentido, a prestação de um
serviço público mais adequado precisa de uma sociedade civil mais bem organizada e do
fortalecimento da democracia.

Em suma, fica o desafio de aproximar o desempenho do serviço público brasileiro às


necessidades do cidadão, colocando as demandas públicas acima dos interesses privados de
quem está ocupando um cargo público e acima da politicagem de grupos que usam a máquina do
Estado para fins exclusivos de sua perpetuação no poder. Em outras palavras, o desafio é tornar
o serviço público realmente voltado para o interesse público e o respeito aos direitos do cidadão.
O desafio é aumentar o grau de responsabilidade pública do Estado.

Por fim, há também o grande desafio de enraizar na cultura brasileira as noções de:

1. Igualdade fundamental de todo cidadão perante a lei e as instituições;


2. Respeito às normas como condição para a democracia e a proteção dos direitos de todos.

Assim, um grande desafio que se coloca entre nós em favor da ética na vida pública é o de
trocar o proverbial "você sabe com quem está falando?", que é expressão da desigualdade
antidemocrática arraigada em nossa cultura, pelo "quem você pensa que é?", que exprime a noção
oposta, de igualdade democrática. Esta última mostra uma reação cidadã contra uma conduta de
quem se pretende acima dos outros, pois exige o respeito dos direitos e protesta contra quem se
considera fora do alcance da lei. Mas esse já não é um desafio apenas para o serviço público, e
sim para todos os cidadãos brasileiros.

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