Você está na página 1de 26

ÉTICA, PRAZER E RELIGIÃO,

UMA REFLEXÃO FILOSÓFICA NAS RAÍZES DA ANTIGÜIDADE

Prof. Ms. Ocir de Paula Andreata1

RESUMO

Este artigo, em forma de breve ensaio, pretende refletir sobre o tema do prazer e suas
implicações na ética e na religião, sob as raízes da Antigüidade, tendo como proposição
que é lá, entre os helênicos, onde nasce o pensamento moral ocidental sobre a
sexualidade e pressupondo a hipótese de que esta moral, quer em sua vertente na
tradição filosófica grega, quer na vertente da tradição moral religiosa judaico-cristã,
fundou-se iminentemente negativa com respeito ao corpo, ao desejo e,
consequentemente, ao prazer, negando-lhe um lugar de positividade e chegando mesmo
a estabelecer posteriormente uma batalha de castidade, cujo legado serve ainda de
motivações ao debate atual.

Palavras-chaves: sexualidade, moralidade, prazer e religião.

INTRODUÇÃO

A vida humana na Antigüidade, em acordo à visão de Jean-Pierre Vernant


(2003, p.88), ganha uma dimensão cosmológica, a partir do redimensionamento
da organização social da polis (cidade), onde a areté (virtude) passa a ser o
ponto de apoio da reflexão moral. Esta “organização do cosmos humano” (p.87),
diz respeito tanto à compreensão que o homem passa a ter de si mesmo, como
também de seu lugar na ordem e harmonia do universo existente, pelo qual
estabelece a eudaimonia (felicidade) como télos (fim), que se dá na eu zen (vida
boa), sendo esta, essencialmente, vida moral.

1
Prof. OCIR DE PAULA ANDREATA , há 32 anos é obreiro da Igreja Evangélica AD e Presbítero, desde
1993; é teólogo, formado pela Faculdade Teológica Batista do Paraná, desde 1993; psicólogo, pela
Universidade Tuiuti do Paraná (UTP), com atividade em atendimento clínico, desde 2000; sexólogo, com
Especialização em Sexualidade Humana, pela UTP, desde 2002; mestre em filosofia, pela Universidade
Gama Filho/RJ, desde 2006; Professor do Curso de Teologia da Faculdade Evangélica do Paraná (FEPAR).

1
Assim, por toda a extensão da Antigüidade, até Agostinho, o agir humano
passa a ser enquadrado por éticas cosmológicas, como bem mostra Pierre Hadot
(2004, p.18), sendo a própria filosofia vista “como um modo de vida” e “escolha
de vida moral”, uma “vida virtuosa” regida por “exercícios espirituais” (p.103).
Nesta tradição grega de “ética das virtudes”, como observa Canto-Sperber
(2003, V.1, p.95), desde pré-socráticos como Heráclito e Xenócrates, a
concepção de justiça já é vista como vida de acordo com a “ordem e harmonia”
no cosmos e o bem da alma como “ordem e harmonia interior”. Logo, o mal
passa a ser relacionado à “desarmonia e deficiência” (endéia) na natureza moral
do sujeito, causado pelos “movimentos da alma” (kínesis), na direção das
paixões.
Logo, é a tradição de um lugar de mal ao prazer, como o mostra Platão:
“O supremo mal, o maior e mais extremo dos males, é ser afetado
excessivamente pelo prazer...” (Fédon, 83c).
Ao longo de sua história o homem tem buscado respostas à questão da
correta conduta humana, condição social, moral e religiosa de sua existência.
Toda sociedade busca manter sua identidade, coerência e continuidade
através de conjuntos de regras, valores e costumes que constituem sua tradição
moral. Ao dependerem uns dos outros nas relações sociais, os seres humanos
aprendem a regular seu egoísmo próprio dentro de normas de justiça que digam
respeito a todos. Tradições morais e religiosas buscam colocar os homens sob
modelos de comportamento que sirvam de pontos de referência e ideais.
A partir do momento em que o homem passa a posicionar-se diante dos
fenômenos e fatos da vida, que desafiam sua capacidade de compreensão e
explicação, com uma atitude mais critica e reflexiva, descobre a racionalidade
como instrumento próprio para dar significado e sentido à vida.
O tema do prazer está no cerne do debate da razão do ser humano da
Antigüidade, contrapondo-se ora às concepções de felicidade e vida boa
ensejadas pelo pensamento ético, ora à moralidade social religiosa.
Ao buscar-se compreender o conceito de prazer numa evolução histórica,
toca-se na questão da ética ou moral e na relação destes com a cultura dos povos
e seu ethos histórico. As religiões, como fenômeno integrante da cultura, sempre
se colocaram nas questões da consciência do bem e do mal moral.

2
Sobre estas questões fundamentais da história do pensamento Ocidental é
que nos propomos refletir neste breve ensaio.
1. ÉTICA: o homem moral que reflete.

Podemos pensar, dentro de uma visão histórica, como sugere o historiador


de religiões Franz König (1998, p.204), que os primeiros sistemas morais das
sociedades humanas foram estabelecidos essencialmente pelo pensamento e
sentimento religioso. O ser humano, ao perguntar-se sobre “o que devemos fazer,
e como agir?”, frente a situações de decisão que ultrapassavam os recursos de
seus hábitos, costumes e padrões familiares de comportamento, sempre recorreu
à concepção de um ser ou seres divinos, a quem deviam a vontade da ação justa
e certa. Tal recorrência consolidou normas de conduta baseadas em sistemas de
princípios e crenças, valores e atitudes estabelecidas pelas concepções do
sagrado, através das divindades e mitologias.
Para a visão crítica teológica de Jean-Yves Lacoste (2004, p.272), a ética é
considerada estudo sistemático da moral, por, de forma normativa e descritiva,
pretender sistematizar as regras, obrigações, valores e virtudes de uma
sociedade, colocando-as no contexto de suas tradições históricas.
A expressão “ética”, segundo o Dicionário de Filosofia de José Ferrater
Mora (2001, Tomo II, p.931)2, vem da raiz semântica de “ethos”: ta êthé (os
costumes, em grego) e mores (hábitos, em latim), isto é, à idéia de costumes,
hábitos, modos de agir.
O termo “ethos” também é referido em duas grafias com significados
diferentes: êthos (com êta inicial), designando o conjunto de costumes normativos
da vida de um grupo social, como ainda, morada, caverna, no sentido de estudo
do ser vivo em seu êthos-habitat; e a forma éthos (com épsilon), referindo-se à
constância do comportamento, ao hábito gerado pela práxis, ou as condições do
agir prático do indivíduo na vida cotidiana regida pelo éthos-costume. Ambas
falam da realidade histórico-social dos costumes humanos.
Num sentido histórico cultural, conforme Spinelli (2006, p.41) 3, o termo
grego éthos (épsilon) foi difundido a partir de Ésquilo, indicando
fundamentalmente a tradição, o costumeiro, o usual ou o habitual. Já o êthos
2
MORA, J. F., Ética, In: Dicionário de Filosofia, Tomo II (E-J), SP,Loyola, 2001, p.931-937.
3
SPINELLI, Miguel, em O Daimónion de Sócrates, artigo na Revista Hypnos Nº 16, 2006, p.32-61, cita
Aristóteles na Ética a Nicômaco, II, 1,1103a 17-18, como referência a esta diferenciação e origem da éthike.

3
(êta), remonta a Homero, como significação mais abstrata do hábito, o costume e
o uso, não propriamente como modo humano natural de ser, mas no sentido de
um modo “construído” de viver.
O conceito de ética (éthike)4 se estabelece a partir de Sócrates e Platão,
mas é em Aristóteles que ganha status de sistema filosófico, como filosofia da
ação (éthike pragmatéia) e reflexão sobe a conduta humana.
A ética, como disciplina da filosofia, propõe-se compreender os critérios e
os valores que orientam o julgamento da ação humana, procurando esclarecer
como é possível determinada forma de conduta ser moralmente erra ou correta.
A avaliação de uma ação correta varia conforme a escola filosófica que o
postula e a razão por que uma ação deve ou não ser aceita em certo tempo e em
determinada sociedade. As noções de certo e errado que norteiam o juízo da ação
humana e sua justificação depende, assim, do conjunto do pensamento filosófico
de quem propõe, analisa e defende tal ação.
Para o Dicionário Aurélio(1988, p.280), ética é o estudo dos juízos de
apreciação referentes à conduta humana suscetível de qualificação do ponto de
vista do bem e mal, seja relativo a determinada sociedade ou de modo absoluto.
Ética ou moral? O conceito vem da mesma raiz semântica: ta êthé (os
costumes, em grego) e mores (hábitos, em latim), isto é, à idéia de costumes,
hábitos, modos de ação e uso das coisas.
De modo geral os filósofos não fazem diferenciação entre os conceitos de
“ética” e “moral”. Porém, alguns moralistas e teólogos preferem fazer distinção no
significado dos termos, a fim de que a ética fique voltada para uma dimensão mais
elevada, mais teórica, reflexiva e crítica dos fundamentos que levam à ação; e a
moral, mais especificamente voltada para a ação em si e às regras de conduta
dos grupos locais, dentro da fenomenologia da existência cotidiana.
Uma das comentadoras de filosofia que trabalha tal diferença é Jacqueline
Russ (1999, p.7,8), quando diz que a ética se esforça por desconstruir as regras
de conduta que formam a moral, os juízos de bem e mal que se reúnem no seio
da moral. Neste sentido, a ética é uma “metamoral”, uma doutrina fundadora, que
se situa além da moral.

4
LIMA VAZ, Henrique C., em Escritos de Filosofia IV, Introdução à Ética Filosófica 1, SP, Loyola, 2002,
faz diferenciação entre “ética” e “moral” (p.12-13), seguindo o conceito hegeliano de desenvolvimento
histórico do “ethos” , a partir da evolução do conceito desde um certo “saber ético” produzido pelos hábitos
e costumes culturais de um povo, até um sentido lato de “ética” como sistema racional (p.57-66).

4
Epistemologicamente o conceito da éthike adquiriu significado no
transcurso do desenvolvimento do pensamento grego, ganhando conteúdo e
legitimidade ao longo da história de seus pensadores, sistemas e escolas, no
sentido de um certo saber sobre a conduta humana individual e social que aspira
à felicidade humana.
Quando surge nas praças gregas (ágora), debatendo com os sofistas,
Sócrates (469-399) aC estabelece a virtude (areté) como objeto e fim (télos) da
ética, implicada na busca da felicidade (eudaimonia) para a vida.
Sócrates inaugura a própria filosofia através da reflexão ética, centrando-se
na possibilidade por ele encontrada de extrair a “essência da verdade” (alethéia)
de dentro da própria alma (psyquê) do sujeito, através da dialética do “discurso de
confrontação” (aporia), pelo “contínuo questionamento” (maiêutica).
Platão (427-347) aC, herdeiro de Sócrates, liga esta ênfase socrática da
ética como interiorização do princípio moral a uma visão transcendente da origem
da alma humana, onde a vida terrena é encarada como uma pré-vida eterna,
tornando o télos da ética na possibilidade de se alcançar a verdadeira sabedoria
e, consequentemente, a imortalidade, através do exercício da areté e da
“educação para a virtude” (paidéia)5. Assim, a ética socrático-platônica enfatiza a
virtude, a justiça e a sabedoria como a desejada “vida boa” ou “bem viver” (eu
zen), determinando o que seja o bem ou os bens que caracterizam a vida feliz.
Para Lima Vaz (idem, p.12), entretanto, o adjetivo éthike se disseminou a
partir de Aristóteles, por ter sido o primeiro a defini-lo com exatidão como um
sistema, inaugurando um novo campo na filosofia. Na Metafísica (II, 1, 993 b19-23),
a éthike pragmatéia ou ética prática é vida virtuosa, pelo exercício constante das
virtudes morais e investigação ou reflexão metódica sobre os costumes (éthea).
Para Aristóteles (384-322) aC a philosophia já não é concebida tanto como
sabedoria inata do mundo das idéias, preconizada por Platão, mas como ciência
ou conhecimento produzido pela razão humana (episthême). Para ele a Filosofia
tem três grandes áreas: Física (physike), Lógica (lógike) e Ética (éthike), divisão
que perdura até a Idade Média. O télos da éthike é “ação ética” feita pelo um
“agente moral” (phronymós), o homem virtuoso, que pratica virtudes como a
5
Podemos encontrar a idéia de sotéria (salvação) em Platão, dentro deste sistema: a encarnação do nous
(alma espiritual) ao corpo (soma), través da metempsicose (transmigração), ficando restrita e defeituosa
(endéia) por causa da condição humana, presa ao “túmulo do corpo” (sêma – soma), do qual precisa se
libertar, através da sabedoria (philosophia), possível na educação da vida pela virtude (paidéia ta areté). É
neste processo que se dá aquisição da imortalidade e o retorno ao Uno e Absoluto, como diz no Fédon.

5
prudência (phrônesis). A natureza essencial da ética continua radicada na virtude.
Dedica três obras à ética: Ética a Eudemo, Ética a Nicômaco e Magna Moralia.
Após estes clássicos, a Ética também se desenvolve depois nos filósofos
chamados helênicos: estóicos, com Zenão de Cicio (332-262 aC); epicuristas, com
Epicuro (341-270 aC); céticos, com Pirro de Elis (360-270 aC), entre outros.
Nos séculos II-I aC, dentro do contexto do helenismo, filósofos chamados
alexandrinos, da tradição filosófica de Alexandria, no Egito, como Fílon, fizeram
ponte entre a filosofia grega e a teologia judaica, no espírito jurídico, pragmático e
de ecletismo do mundo romano.
No interstício dos clássicos à era cristã, conforme Marcondes (2001, p.50),
a ética atravessa decadências e ressurgimentos em novos sistemas e
elaborações. A escola aristotélica peripatética (Liceu) pende progressivamente ao
declínio. A Academia platônica se desenvolve em três evoluções posteriores até o
surgimento do neoplatonismo na escola greco-judaico de Alexandria. O
neoplatonismo será destaque no cenário dos séculos II e III AD, com Plotino e
Porfírio, influenciando a formação da ética cristã, acentuadamente em Agostinho.
A ética cristã tem suas raízes na moralidade da religião hebraico-judaica,
como descrita no texto do Antigo Testamento, dentro da evolução do ethos bíblico,
e também dos ensinamentos de Cristo, vividos e propagados por seus discípulos,
a partir do primeiro século de nossa era, conforme descrito no Novo Testamento.
Mas também tem a influência da filosofia helênica, por que recepcionou elementos
das éticas gregas, principalmente do sistema platônico e estóico, que em muitos
aspectos serviu de base racional para corroborar as doutrinas cristãs.
No debate que se estabeleceu na Patrística, a partir do século II, para
defender o cristianismo, com os pensadores teólogos chamados Pais da Igreja, o
encontro com a ética filosófica grega é importante na busca de um sistema
consistente e coerente de idéias e valores para dar sustentação ao cristianismo.
Neste momento histórico, a ética ocidental passa se estabelecer através de
verdades universais, atrelada à religião cristã, serva da teologia. As idéias de bem
e mal, sua análise e julgamento, implicados na distinção de valores para a
conduta humana, estão no cerne dos temas da ética. A conduta do prazer sexual
é central nas reflexões dos pensadores desde os gregos até Agostinho.

2. PRAZER: negação de virtude à corporeidade.

6
O prazer é um conceito essencialmente subjetivo, por que definido a partir
de um sentimento ou afeto, cujo julgamento moral acaba recaindo sobre os
objetos do prazer. Muitos pensadores na Antigüidade buscaram compreender e
descrever este estado de alma, fonte de motivação de conduta humana.
A reflexão sobre o prazer como sexualidade toca num conceito complexo,
pois evoca a necessidade de idéias correlatas sobre a natureza humana, como
corpo, sexo, gênero e suas motivações, como desejo, paixão e amor; e, ainda, a
avaliação do valor destes, como vício ou virtude.
Nas éticas gregas a felicidade da vida é tomada como critério para o valor
e importância buscada para o uso das coisas. Mas este critério crescentemente
qualificou os chamados prazeres intelectuais, em detrimento aos prazeres
corporais. Logo, o lugar do prazer sexual, passa da desconfiança à negação.
O télos da ética não inclui a hedoné, os prazeres corporais, pois são maus:

O fim da moral é a alegria, que não é a mesma coisa que o prazer, como
alguns acreditam de forma absurda, mas a serenidade e o equilíbrio que a
alma conhece de forma durável e que não são perturbados por nenhum medo,
nenhuma superstição e nenhuma outra paixão. Demócrito dá a esse estado o
nome de bem-estar. (Diógenes L., Vidas, IX, 45; Cf. Lagrée, 2004, p.112).

A principal idéia dos clássicos sobre o corpo não recai sobre o juízo do ato
sexual em si, mas na motivação deste: o desejo (epithymia), ou melhor, a fruição
do prazer das “coisas do amor” sexual (aphrodysiai). O ideal ético de vida, em
todas as correntes de pensamento, cresce de forma a exaltar a busca dos bens
do espírito e desencorajar a realização dos prazeres corporais.
A sexualidade é “afecto” do próprio modo de ser do homem e imprime sua
marca a toda a atividade humana. É o elemento geral que distingue na
consciência do humano sua identidade de gênero, sua condição de masculino ou
feminino no agir. Esta consciência de sexualidade, provinda das profundezas do
desejo e esculpida na materialidade do próprio corpo, é uma das características
específicas do humano, tal como a historicidade, a transcendência, a
sociabilidade e a religiosidade. É um princípio ontológico que traz um sentido de
plenitude à consciência do devir humano, através da genitalidade.

7
Etimologicamente a sexualidade não se expressa por um único termo na
língua grega, mas através de uma gama de termos correlatos: prazer (hedoné),
paixões (pathós), sensualidade (aphrodysia), desejo (epithymia) e corpo (soma).
Antes da filosofia, os elementos e fenômenos da vida humana eram
explicados pela via do mito (mythós), a religião mitológica. As religiões antigas,
de modo geral, concebiam uma visão sagrada e mítica da sexualidade, através
da hierogamia. Os deuses eram concebidos como seres sexuados que se
misturavam com os homens. O êxtase sexual com pessoa consagrada ao culto
garantia a comunhão com a divindade nos cultos de fertilidade. Este era o caso
das culturas religiosas dos povos orientais que circundavam a Palestina ao tempo
da instalação da religião mosaica ao longo do período bíblico, como veremos.
Na Grécia antiga podem-se notar, desde os clássicos, idéias da
sexualidade racionalizadas a partir de um substrato religioso herdado, que
acentuava uma separação dualista entre matéria (physis, soma, etc.) e espírito
(nous, psyquê, etc.), operando sob a égide do bem e do mal, a capricho dos
deuses do Olimpo, como podemos ver nas cosmogonias de Homero e Hesíodo.
Na cultura religiosa grega, como na cosmogonia de Hesíodo, há o medo
da razão ser prejudicada pela emoção e a lógica vencida pela paixão: “(Eros)
aquele que rompe os membros, e que, no peito de todo deus como de todo
homem, doma o coração”. (Hesíodo, Teogonia, 120; In: Canto-Sperber, p.575).
Sexualidade e religião mantiveram-se associadas ao longo de toda a
racionalidade operada pelo lógos da filosofia ocidental, apesar de alguns filósofos
terem buscado uma diferenciação, como Aristóteles e os epicuristas.
Sócrates, segundo Gottlieb (1999, p.36), já afirmava que os valores morais
não podiam simplesmente ser derivados de considerações acerca do que os
deuses desejavam, uma vez que isso despojaria os deuses de qualquer
autoridade distintamente moral. Ao estimular a prática da virtude, Sócrates
buscava uma vida ideal. Quanto à sexualidade, como gozo dos prazeres
corporais, ele não via nenhuma razão para não desfrutar das boas coisas da
vida, desde que elas não interferissem na busca das virtudes. Como outros
moralistas, sustentava que se deveria estar atento a não se tornar um escravo
dos próprios prazeres, acima de tudo porque a vida virtuosa era o télos de sua
ética.

8
Tem razão Giulia Sissa (1999, p.7-9), quando diz que a tradição ocidental,
desde os gregos, nunca cessou de trabalhar contra a sensação (aisthésis),
desconfiando do corpo (sôma) e vendo como mau o sentimento do desejo, do
gozo e do prazer, legando uma análise negativa do corpo e da sexualidade,
fazendo a filosofia ocidental fundar-se essencialmente ascética à sexualidade.
Para Platão a natureza dos sentidos é ilusória. Ele desacredita as
sensações como fontes confiáveis da percepção da verdade sobre a natureza. A
razão (lógos) é a que alcança o espírito (nous), capaz de tocar nas formas (eidós)
perfeitas no mundo das idéias.
Todavia, Platão dedica o diálogo Banquete ao tema do amor (éros), onde
aborda a estética de belo nas formas do corpo como o espelho da própria
perfeição do mundo das idéias.
O prazer do corpo é negado no âmbito da ética filosófica, mas plenamente
cultuado na cultura social grega, na medida em que é contemplado, desejado,
seduzido e esculpido, nas escolas de arte e nos ginásios de ginástica.
Mas, quanto à moral do uso do corpo nas relações com seus objetos de
desejo, Platão desqualifica o corpo e o sexo como perturbadores da alma.

...enquanto tivermos corpo e nossa alma estiver absorvida nessa corrupção,


jamais possuiremos o objeto de nossos desejos, isto é, a verdade. Porque o corpo
oferece mil obstáculos pela necessidade que temos de sustentá-lo, e as
enfermidades perturbam nossas investigações. Em primeiro lugar nos enche de
amores, paixões, receios, de mil ilusões e de toda classe de tolices, de modo que
nada é mais certo do que aquilo que se diz corretamente: que o corpo nunca nos
conduz a algum pensamento sensato. Quem faz as guerras, as revoltas e os
combates? Nada mais que o corpo, com todas as suas paixões (Fédon, p.127).

O corpo é perturbador na medida em que é obstáculo de distração ao


conhecimento e à prática da virtude.

Eis por que, se analisarmos a profissão de fé dos verdadeiros filósofos que


Platão pôs na boca de Sócrates (Fédon, 66b-67b), o corpo é apresentado como
elemento perturbador e o pior obstáculo ao conhecimento, como realidade
obscura e rebelde, e como lugar de afetos e doenças, paixões e ilusões
(Marzano-Parisoli, 2003, p.356).

O clássico dualismo grego entre corpo e alma é apresentado nos diálogos


platônicos Fédon e Fedro, baseado na teoria da existência de dois mundos em

9
oposição: o mundo das Idéias (mundo inteligível) e o mundo das sombras
(mundo sensível). Ao vir do perfeito mundo das formas ao mundo das sombras,
pela encarnação ao nascer, é exatamente o corpo (soma), natureza orgânica
sensível, que se torna “prisão” (sêma) da alma (psique), do qual tem que se
libertar pelo exercício da virtude.
A qualidade da relação entre alma e corpo6 implica na plenitude da vida de
felicidade e na espiritualidade do indivíduo em busca da imortalidade da alma.
Por isso, Platão propõe uma educação para o corpo e também para a alma: “uma
boa educação consiste naquela já encontrada ao longo dos anos pelos antigos:
ginástica para o corpo e a música para a alma” (República, 376 e).
Embora seja mais ameno que Platão em sua crítica aos prazeres do corpo,
Aristóteles corrobora a excelência da vida virtuosa e estimula a abstinência.
O prazer ou o sofrimento superveniente às nossas ações é um indício de
nossas distinções morais; efetivamente, as pessoas que se abstém dos prazeres
do corpo e se alegram com a abstenção, são moderadas exatamente por
procederem assim. (Ética a Nicômaco, II, 3, 5-10, p.29).

Este dualismo entre corpo e alma, sensação e razão, impôs-se no


pensamento ético grego e foi repetido como o dualismo entre “espírito” (pneuma)
e “carne” (sarx), tão caro à ética estóica, tornando-se parte do seu “ideal do
sophós (sábio)” e que tão bem servirá à doutrina moral cristã em Paulo, para o
qual o “justo” vive “no espírito” abandonando as “obras da carne”.
A história da moral ocidental, na forma como a sexualidade é tratada,
quase se apresenta como uma história de guerra às paixões, cuja conotação é
totalmente negativa. Todavia, são também as paixões (pathé) as mais poderosas
motivações do comportamento humano, tanto para as guerras, aos arroubos dos
amores, como para os ideais filosóficos e políticos e mesmo ao fervor religioso.
A paixão (pathós) é um sentimento que vem da ordem da thymós (humor,
emoção) e que a ética precisou expressar também por outros vocábulos, como:
páthema (apaixonamento), epithymia (desejo) e aphrodysia (coisas do amor), no
grego; affectus (afeto), desidérium (desejo), concupiscentia e libido, no latim.
6
SANTOS, José Gabriel Trindade, no artigo A função da alma na percepção, nos diálogos platônicos, In:
Revista Hypnos Nº 13, SP, 2004, p.27-39, sintetiza a relação de percepção corpo-alma, em Platão:
“Podemos, pois, concluir que ao contato anterior da alma descarnada com as Formas (Mén.81c-d;
Fedr.247d-e, 249b-d) devemos a capacidade de estruturar a experiência sensível, que a alma (76a), agora
encerrada num corpo, deve estruturar: primeiro, através da linguagem (78e-79a, 102a-b; vide R X 596a;
Parm.130e), depois pelo pensamento (Teet.184b-186c, 189e-190a), por fim pela reminiscência (Féd.79c-d)”
(p.30).

10
Como vemos, é da raíz deste termo que vêm, traduzidos por Cícero, os
correspondentes latinos da concupiscência, mais diretamente relacionado ao
“desejo” e libido, mais correlacionado à “paixão”, termos usados pelos autores
neotestamentários e por Agostinho, quando este conceitua os prazeres e que
demonstra a conotação negativa dada aos impulsos do corpo e do sexo.
Ao que parece, pelos relatos posteriores de seus discípulos, Sócrates não
aborda diretamente a questão do prazer-paixão (Kambouchner (2003, p.279).
A primeira formulação se deve a Platão e acabou por sintetizar a visão
clássica da ética grega: as paixões são contra a razão!; as paixões são perigosas
e inevitáveis! São elas que perturbam a ordem social e podem destruir a ordem
política estabelecida na pólis. (Timeu, 69 d; República, 439 ds).
Platão pensa a paixão como um tipo de sentimento que brota de alguma
parte obscura da alma, como força vulcânica irresistível, que domina toda a
personalidade e direciona o agir humano. Ele as divide em duas categorias:
paixões coléricas ou irascíveis (thumoeidés), e paixões desejosas ou
concupiscíveis (ephithymetikón). No Fédon, pela boca de Sócrates, coloca toda a
ênfase da sabedoria em desqualificar o corpo e afastar a alma das paixões.

E, contudo, Ó Símias, a maioria dos homens crê que quem não procura o
prazer e as comodidades corporais não sabe viver e que quem não goza dessas
voluptuosidades está mais próximo da morte que da vida. (...) o comedimento, do
qual a maioria conhece apenas o nome, essa virtude que significa não ser escravo
das paixões, mas sim impor-se a elas e viver com prudência, não convém àqueles
que desprezam seus corpos e vivem na filosofia? (Fédon, p.125, grifo meu).

Já para Aristóteles as paixões são sentimentos normais da natureza do


“animal racional”, por isso, passíveis de julgamento e controle pela razão.

Devemos considerar agora o que é a virtude. Visto que na alma se encontram


três tipos de coisas: paixões, faculdades e disposições de caráter... Por paixões
entendo os apetites, a cólera, o medo, a audácia, a inveja, a alegria, a amizade, o
ódio, o desejo, a emulação, a compaixão, e em geral os sentimentos que são
acompanhados de prazer ou dor; ...Ora, nem as virtudes nem os vícios são paixões,
porque ninguém nos chama bons ou maus devido às nossas paixões, e sim devido
às nossas virtudes ou vícios... mas pelas nossas virtudes e vícios somos
efetivamente louvados ou censurados (Ética a Nicomaco, II,5,20-1106, grifo meu).7

7
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco, Trad. L. Vallandro e G. Bornheim, SP, Nova Cultural, 1987, V.II.

11
Aristóteles vê uma dualidade complementar entre prazer e dor, que faz
uma justa (porque natural) balança para se alcançar a excelência moral. E, pelo
critério do “justo meio” (sophrosyne), o homem pode gozar dos prazeres, desde
que saiba bem julgar a natureza das escolhas, sem cair nos excessos.

Devemos tomar como sinais indicativos do caráter o prazer ou a dor que


acompanham os atos; porque o homem que se abstém de prazeres corporais e se
deleita nessa própria abstenção é temperante, enquanto o que se aborrece com
ela é intemperante. (...) Com efeito, a excelência moral relaciona-se com prazeres
e dores; é por causa do prazer que praticamos más ações, e por causa da dor que
nos abstemos de ações nobres. (Ética a Nicômaco, II, 3, 5 a, p.29).

Como dissemos, logo depois, os filósofos estóicos retomam de Platão


fundamentos para um ideal de rígida educação moral pela virtude e separação
dos vícios pela ascese da vontade, pois a felicidade está em o sábio alcançar a
ataraxia, o estado de “imperturbabilidade” ou total ausência de desprazer.
Os epicuristas, apesar de defenderem a hedoné, propondo uma “ética do
prazer”, contudo não estimulam o livre gozo do prazer como sexualidade, ao
contrário, propõem a felicidade na aponía, o desejado estado de “ausência de
dor”, pois o gozo do prazer sexual traz a dor da perda.
Descobrimos, então, entre os gregos um elo muito importante, vital até,
que liga a idéia de corpo e sexualidade das correntes filosóficas antigas às
concepções adotadas pela corrente teológico-filosófica cristã, que sedimenta esta
clássica desqualificação dos prazeres do sexo e da corporeidade!
Michel Foucault (1982, p.25), ao comentar um texto do século V sobre
exortação à virgindade e abstinência, de João Cassiano, refere-se a luta que
crescentemente a cultura cristã desenvolveu contra o corpo e o sexo, a partir da
Patrística, como um “combate da castidade”.
A sexualidade, assim, passa a ser mal vista. Logo, o piso para a edificação
da episteme e da práxis cristã com relação à sexualidade, como uso do corpo, é
lançado séculos antes, com os gregos. Agostinho, no século IV, o lugar do
prazer é de negação, chegando à uma obsessão e perseguição na Idade Média.

12
3. RELIGIÃO: a fé vinculada à moralidade.

Como dissemos, a ética cristã é, primeiramente, uma moralidade que se


elabora a partir de raízes da cultura religiosa judaica 8, desde os tempos de sua
fundação histórica, que precisa ser encontrada nos textos bíblicos. É este legado
de moralidade, constantemente reelaborado, com elementos recepcionados da
filosofia grega, que se mescla às doutrinas da fé cristã desde os autores
sagrados do primeiro século, ganhando a hermenêutica da Patrística e
começando a fixar-se como ortodoxia já no pensamento de Agostinho, no séc. IV.
Lima Vaz (2002, p.45-66) considera como “ética” propriamente dita
somente aquele saber epistemologicamente organizado como um sistema, a
exemplo das éticas gregas, que surgiram e se impuseram a partir da pura
reflexão filosófica, pelo uso da razão. Neste sentido, considera que, antes de
Agostinho, não se tem ainda propriamente uma “ética cristã”.
Na avaliação que este autor faz do processo de nascimento da ética,
apropriadamente distinguindo a origem das éticas gregas advindas da reflexão,
também coloca a origem da ética religiosa judaico-cristã advinda diretamente da
moralidade do ethos sócio-cultural que se desenvolve ao longo da história bíblica.
Neste sentido, as normas de conduta que temos nos textos bíblicos, e que mais
profundamente se desenvolvem na Patrística, consideração como produção de
um certo “saber ético” 9.
São, pois, inteiramente inadequadas expressões como “Ética do Antigo
Testamento” ou “Ética do Novo Testamento”... A tradição bíblica
veterotestamentária oferece-nos, na verdade, um saber ético de grande
riqueza e, muitas vezes, de profunda originalidade com relação a outras
tradições éticas do mundo antigo (Lima Vaz, idem, p.169).

Esta distinção entre a moralidade vivida pela cultura do ethos, como uma
ética pré-elaborada ou saber ético, e que progride através da evolução do
pensamento até atingir o status de ética sistematizada, serve para mostrar a
ligação intrínseca entre moralidade e cultura religiosa emanada da sociedade.

8
Usamos o termo “cultura religiosa judaica”, na verdade, como expressão para sintetizar toda a moralidade
da “cultura bíblica do Antigo Testamento”, por uma questão de economia na discussão do tema, todavia
precisamos considerar a diferenciação que a história da religião faz entre “religião hebraica” e “religião
judaica”. A “religião judaica ou judaísmo” é propriamente a cultura religiosa desenvolvida no período pós-
exílico e pré-cristão, do Séc.VI aC ao Séc.I; “hebraica ou hebraísmo”, diz respeito às raízes mais semíticas.
9
LIMA VAZ, Henrique, em Escritos de Filosofia IV: introd. à ética filosófica, no Cap. 2: Natureza e
Formas do Saber Ético e ainda no Cap. 3: Do Saber Ético à Ética (p.45-66), desenvolve esta diferenciação
que achamos importante do ponto de vista do processo histórico-social de construção da ética.

13
Segundo esta compreensão, o homem não age senão através de um
prévio conhecimento, que não é somente representação do real, mas um
processo de assimilação, que se efetua pela capacidade cognitiva do ser
humano, através da acumulação qualitativa de conhecimentos. Este
conhecimento, acumulado de forma qualitativa e organizada, assume a forma de
saber. E este saber é um construto intrínseco do ethos (Idem, p.170).
Assim, com esta visão, podemos perceber que a moralidade cristã é uma
ética formada a partir da fenomenologia do ethos e que a formação deste “saber
ético” se dá entre os pólos da subjetividade e da objetividade da práxis de
conduta da comunidade ao longo de sua existência.
Consideramos ainda, com Lima Vaz, que tal “saber ético” progride para um
sistema ético, na medida em que a subjetividade da ação torna-se elemento
reflexivo e passa a ser um conhecimento de razão, como procedeu Sócrates na
filosofia grega, voltando-se para o sujeito, sob o foco do “conhece-te a ti mesmo”.
E, a partir da reflexão, ganha objetividade pela instrumentalidade da linguagem,
oral ou escrita, tornando-se lei social (nomos), evocando o senso de
responsabilidade no homem como ser social moral.
A consciência de responsabilidade, como senso de dever ético, forma-se
da combinação de um sujeito que é portador de “hábitos” (hexis) e seu modo de
“agir” (práxis) em conformidade com o “conhecimento” (episteme) que produz.
Historicamente podemos notar que a religião, como fenômeno original de
organização social, participa ativamente em todo este processo ético. Todas as
formas de religiões sempre comportam algum sistema moral de conduta social.
Seguindo esta hermenêutica podemos distinguir a grandeza da ruptura
operada pela sapiência grega clássica, quando passa a diferenciar a fé da moral.
A partir do momento em que o homem descobre a capacidade da razão, de
“operar” seu próprio modo de agir, conforme o conhecimento de si mesmo, pelo
“julgar sabiamente” (phronein), através de medidas como a do “justo meio”
(sophrosyne), desenvolve um consciência moral independente da crença.
A partir desta “consciência moral” o sujeito julga o mal e classifica o bem,
para si como indivíduo e para os outros, como coletividade. Assim nasce o senso
de dever e de obrigação, implicados na administração do direito e da justiça,
“senso” que vem das experiências subjetivas de remorso e arrependimento,
como das possibilidades reais de punição, defesa e regeneração do sujeito.

14
A religião é o fenômeno cultural mais antigo, confundindo-se até mesmo
com a própria origem da cultura do ethos, por reunir as crenças, ritos, práticas
litúrgicas e normas de conduta dos fiéis. O estudo das relações entre o ethos e a
religião tem sido objeto de pesquisa de parte da moderna Antropologia. A
moralidade social difunde-se por todas as formas da cultura e por diversas
formas de manifestação do fenômeno cultural da sociedade, formando um tecido
de tradições que da sustentação ao ethos.
É neste sentido que podemos considerar a importância da moralidade
religiosa expressa nas culturas orientais, como por exemplo, a riqueza moral da
chamada sabedoria de vida ou a “sabedoria” dos “sábios” (sophós, grego; hakam,
hebraico), presente na literatura sapiencial bíblico-hebraica, onde o sábio torna-
se também paradigma de conduta e exemplar de ética para o povo.
O papel desempenhado pelo sophós/hakam nas culturas do Oriente Médio
e do Mediterrâneo, descrito em suas literaturas sapienciais, é equivalente ao
filósofo grego, com relevante função social e política. Todavia, é uma sabedoria
descrita como fruto da observação reflexiva da natureza e do ser humano, escrita
em forma de enigmas, provérbios, fábulas, parábolas, diálogos e poesia.
Nas culturas do Oriente Médio o sábio torna-se progressivamente figura
proeminente entre o povo como conselheiro. É o que podemos ver na tradição
veterotestamentária dos livros sapienciais da Bíblia como Jó, Provérbios e
Eclesiastes. Esta literatura bíblica de modo geral é muito semelhante à de seus
vizinhos, que, ao mesmo tempo, produzem uma rica literatura humanística.
Na tradição grega, o sábio é primeiramente o homem portador oracular
dos deuses como descrevem as literaturas mitológicas de Homero e Hesíodo.
Depois, a partir de Sócrates, é o filósofo que se torna o sábio por excelência,
como modelo ético do homem prudente (phrónimos), até distinguir-se no ideal
estóico de sábio, com o pretenderam Cícero e Sêneca.
Diferentemente, na tradição cristã o ideal do sábio repousa, primeiramente,
no modelo singular e fundador de Jesus Cristo, tomado como revelação pessoal
de Deus e paradigma da ética, com sua regra de ouro da reciprocidade: “Tudo o
que quiserdes que os homens vos façam, fazei-o também a eles” (Mt. 7,12).
O sábio cristão também é um homem prudente, nos moldes do justo do
Antigo Testamento, corroborado pelos “frutos do espírito” (Gl 5,22-6; 2 Pe 1,3-8).

15
Assim, se a cultura é a base da produção do saber ético, através da
moralidade vivida pela sociedade, é a religião o principal fenômeno cultural de
controle individual e social. A razão faz crítica aos fundamentos das crenças
religiosas e motiva mudanças em seus paradigmas, mas a religião dogmatiza.
A ética e a religião buscam, numa visão universal, definir conjuntos de
valores da conduta humana entre os dois pólos opostos e complementares: a lei
(restrição, controle) e a liberdade (desejo e decisão), na vida pessoal e social.
Marciano Vidal (1978, p.28) corrobora esta concepção ao afirmar que, na
atitude religiosa, ética e religião estão intimamente unidas. Comparando-se os
paradigmas morais das diversas religiões primitivas, mitológicas e o monoteísmo
judaico-cristão, salienta que a atitude religiosa do monoteísmo judaico-cristão é,
assim, um fundamento adequado ao ethos, pois, quando trata, por exemplo, da
questão da ética sexual, a religião estimula o respeito à dignidade da pessoa,
pelo controle ao ímpeto da paixão e pela obediência a uma ordem estabelecida.
Ao abordar a moral do prazer nas religiões das civilizações antigas, como
os povos da Mesopotâmia, Síria, Canaã e Egito, o autor diz que a idéia da
sexualidade segue dois planos complementares: a compreensão que têm da
sexualidade como sagrada, e sua representação no ambiente em que é vivida. A
sexualidade é uma realidade sagrada, já que reproduz uma série de arquétipos
ou histórias divinas no tempo mítico. Assim, encontram-se nestas culturas mitos e
ritos da fecundidade, do amor passional e do matrimônio, como também sua
representação nos modelos da paixão e do casamento, onde a sexualidade é
vivenciada no cotidiano era vista como sagrada (Idem, p.31,32).
Esta visão também é considerada por William Cole (1967, p.133-138),
quando mostra que as atitudes de salvação nas religiões das culturas orientais se
representam no corpo e em objetos, e opina que estas influenciaram a era
helenística, através de quatro representações: o culto do destino, que pressupõe
dependência cega ao mito; os cultos astrais, com a deificação de estrelas e
planetas; a deificação do homem-líder, como representante dos deuses perante o
povo; e os cultos mistéricos, na mitologia e magia, como os cultos dionisíacos, à
Cibele, a Mitra, etc. Estas formas de crenças teriam invadido o ocidente greco-
romano e se misturado a outras crenças locais na expansão da cultura helênica.

16
Feitas estas considerações, podemos visualizar com nitidez a interligação
intrínseca entre estes temas do prazer, da moral e da religião. A fé cristã
ocidental, necessariamente, organiza-se e se estrutura usando como base a
moral, conforme se desenvolve o espírito histórico em cada época.
Todavia, quanto mais desenvolvemos nossa capacidade de racionalidade,
com mais clareza podemos separar a moral da fé religiosa, em duas dimensões
distintas e diferentes, porém podendo ser complementares, dentro de um
princípio de eqüidade, onde vícios do desejo e virtudes da razão, gozo dos
prazeres corporais e abstinência da ascese religiosa se equilibrem.
Onde estaria a virtude se nada dependesse de nós? É absolutamente
necessário que, antes de toda ação, haja uma representação e um assentimento a
essa representação. Dessa forma, negar a representação ou o assentimento é
retirar toda a atividade da vida.10

Notadamente, desde o século V aC, o mundo da Antigüidade, tanto na


ética grega como na moralidade religiosa judaico-cristã, recebe crescente ênfase
para a moral. A felicidade vem da ação moral e a ascese torna-se elemento
pedagógico de virtude, tanto para a filosofia moral quanto para a fé religiosa.
Quando, depois de ter conhecido as virtudes e ter percebido as belezas, a alma
tiver renunciado a suas débeis complacências pelo corpo, quando ela tiver sufocado
a volúpia que é um perigo para a sua beleza, quando ela tiver banido todo medo da
morte e da dor, quando ela tiver formado com seus próximos uma sociedade ligada
pelo amor...; quando ela abraçar na sua pureza o culto e a religião dos deuses;
quando ela tiver tornado mais penetrante... a virtude que do ato de prever é
chamada prudência; poder-se-á exprimir ou pensar um estado mais feliz?11

Pais da Igreja, como Clemente de Alexandria e Tertuliano, radicalizaram


na busca de espiritualidade a partir da abstinência sexual e negação aos apetites
corporais, como a conhecida auto-castração de Orígenes no esforço de alcançar
a idealizada santificação da concupiscência carnal.
O ideal humano da continência , ou seja, o que é estabelecido pelos filósofos
gregos, ensina-nos a resistir à paixão, para que não nos tornemos subservientes a
ela, e a treinar os instintos para que busquem metas racionais12.

Portanto, este é o terreno ético para a milenar luta entre a fé e o sexo,


entre o gozo do prazer e a restrição da moral, nas raízes históricas do Ocidente.

10
Jacqueline LAGRÉE, no artigo O estoicismo grego e romano: coerência, maestria de si e vida feliz, In:
Hist. Arg. da Fil. Moral e Política, RS, UNISINOS, 2004, cita CÍCERO, no Acadêmicos, II, xii, (p.39).
11
CÍCERO. Leis, I, 23, Cf. citado por Jacqueline Lagrée, Op. Cit., p.101.
12
CLEMENTE, Stromata, 3.7.57; cf. Peter Brown, em “Corpo e Sociedade”, RJ, Zahar, 1990, p.36.

17
CONCLUSÃO: fé, reflexão e direito ao prazer.

A vida atual, apesar de interligada num mundo cada vez mais global, vê-se
muitas vezes desnorteada pelo intenso relativismo da sociedade pós-moderna.
Neste fenômeno de globalidade alguns intelectuais têm tentado formar uma sala
de debates, uma grande comunidade de informação, estimulando uma ação
comunicativa global. No entanto, ainda não tem se mostrado eficaz para efetivar
um diálogo ético mundial inter-religioso, como o pretende Hans Küng 13, ficando as
grandes reflexões recortadas a cada cultura e encerradas dentro dos bastiões de
cada religião.
Entretanto a emergência de grandes questões como o uso parcimonioso
dos recursos da natureza, a biodiversidade, o uso das informações do genoma
humano e das possibilidades das células tronco, temas da bioética atual, trazem à
mesa dos debates o retorno da filosofia, como estimulo à reflexão.
A questão da moralidade também tem se apresentado à emergência do
debate ético no mundo atual, conturbado, principalmente, pela escalada da
violência social, das repressões sexuais ou, de outro lado, o descaso nas
relações interpessoais e sociais pela falta de limites que estimula a libertinagem.
No âmbito das grandes religiões, apesar do aparente confronto entre o
ocidente cristão e o oriente islâmico, e a decisiva entrada do budismo no cenário
mundial, realmente se mostra espaço apropriado para o debate ético.
O tema do prazer, que traz em si a reivindicação ao pleno direito a todas
as formas de gozo, também deve incluir o necessário lugar da interdição ao
desejo, que possibilite aumentar o respeito à fidelidade e aos direito do outro.
É deste lugar de delimitação do desejo e da liberdade de ação, que devem
partir as ações na dinâmica individual, familiar e social, buscando conciliar o
direito ao prazer à necessidade de fé e a consciência de bem e de mal aos
direitos da pessoa.

13
Hans KÜNG é um dos eminentes teólogos da atualidade, que busca a possibilidade de uma ética mundial
ecumênica mediada por um amplo diálogo inter-religioso. Ver: Projeto de Ética Mundial: uma moral
ecumênica em vista da sobrevivência humana, SP, Paulinas, 1993, entre outros.

18
Alain Badiou (2004, p.11-19)14 questiona o sentido e o lugar atual da ética,
quando discute a consciência do mal, exatamente no que concerne à concepção
da “ética” como protetora aos “direitos do homem”, ou os direitos do ser vivo.
O mundo atual, como ele caracteriza, não gosta da revolta nem da crítica,
não gosta da lógica nem da coerência racional, não gosta da universalidade, e
também, não gosta da aposta, do risco e do engajamento. Correntes de
pensamento no século XX combateram estes aspectos naturais da vida,
principalmente negando um sentido de universalidade à ética. Neste sentido,
afirma, a exigência dogmática que se faz hoje de defesa dos “direitos do homem”
(como a liberdade de expressão, de escolha e de defesa), em nome da “ética”,
não é mais que um lugar particular de ética de processos.
Admitimos, com Badiou, que o homem é um ser que se identifica como
singular, afirmativo e imortal, com uma capacidade positiva para o bem. Mas a
ética não tem a tarefa de determinar o que seja o bem; antes, porém, pode
distinguir e determinar o que seja o mal, o que é destrutivo e pernicioso aos
direitos do ser humano. É a religião que lida com a consciência de imortalidade e
esta implica no trato do bem e do mal que cada indivíduo tem o dever de julgar e
administrar para si, para o outro e para a coletividade.
Podemos discernir o bem identificando o mal, ou ainda, pensar o mal a
partir daquilo de que se dispõe o bem nesta vida, assim, os direitos humanos
são, na verdade, direitos ao não-mal.
Discernir o bem identificando o mal, em termos de direitos à alteridade do
outro, também está no cerne do pensamento ético grego, onde a ação autárquica
do sujeito que é livre para fazer escolhas, também evoca-lhe o dever de agente
moral, responsável pela ordem e harmonia da coletividade.
Este modelo de pensamento pode servir de base para a reflexão do lugar
que podemos dar ao tema da sexualidade e suas exigências de direito ao prazer.
A sexualidade é motor da vida. As paixões, combatidas desde a Antigüidade
tanto pela filosofia como pela religião, estão no cerne das motivações humanas.
Por isso o tema do prazer retorna com a emergência das discussões atuais sobre
os direitos da pessoa, incluindo-se também na agenda teológica.

14
BADIOU, Alain, em Ética: um ensaio sobre consciência do mal, p.10-31, e em Para uma nova teoria do
sujeito, pela RJ/ Relume Dumará, 2004, faz uma ampla discussão sobre a crise do mundo atual, em suas
diversas implicações, como uma crise da ética, evocando um retorno desta como sustentáculo do direito.

19
Evidência recente disto está no recente lançamento da primeira Encíclica
Papal, de Bento XVI, Deus Caritas Est (Deus é Amor)15, que, como autoridade
religiosa, tem projeção e audiência em todos os segmentos do cristianismo atual,
bem como a outras religiões e a sociedade global. Nela, o Papa atualiza o debate
sobre o tema do amor, evocando as raízes teológico-filosóficas ocidentais.
Para falar do amor de Deus, o Papa principia por abrir a conceituação do
“amor”, revisitando os filósofos gregos e os três termos mais usados: eros, philia e
agápe. Confronta o amor como descrito no texto bíblico de Antigo e Novo
Testamento, mostrando que o Novo só faz menção à “ágape”, mas que, apesar
da histórica dualidade, éros e ágape, têm diferença e unidade (2006, Cap.3, p.5).
Ao tratar do tema do prazer e da sexualidade, Bento XVI critica a ética
grega, quando diz que os gregos “viram no eros, sobretudo, o inebriamento, a
subjugação da razão por parte duma ‘loucura divina’, que arranca o homem das
limitações da sua existência e, neste estado de transtorno por uma força divina,
faz-lhe experimentar a mais alta beatitude”. Critica também o uso do amor erótico
pelas religiões como “perversão religiosa” nos “ritos de fertilidade”. E cita a
acusação de Nietzsche, de que “o cristianismo teria dado veneno a beber ao éros,
que, embora não tivesse morrido, daí teria recebido o impulso para degenerar em
vício” (Cap.4-5, p.6). Reapresenta a clássica tradição católica sobre o amor
cáritas como verdadeiro prazer, reafirmando o pensamento de Agostinho, mas
reconhecendo a negatividade que esta ortodoxia trouxe sobre o tema.

Hoje não é raro ouvir censurar o cristianismo do passado por ter sido
adversário da corporeidade; a realidade é que sempre houve tendências neste
sentido. Mas o modo de exaltar o corpo, que assistimos hoje, é enganador. O
éros degradado a puro “sexo”, torna-se mercadoria, torna-se simplesmente uma
“coisa”, que se pode comprar e vender; antes, o próprio homem torna-se
mercadoria. (...) A aparente exaltação do corpo pode bem depressa converter-
se em ódio à corporeidade. Ao contrário, a fé cristã sempre considerou o
homem com um ser uni-dual, em que espírito e matéria se compenetram
mutuamente... Sim, o éros quer-nos elevar “em êxtase” para o Divino,
conduzindo-nos para além de nós mesmos, mas, por isso mesmo, requer um
caminho de ascese, renúncias, purificações e saneamentos. (2006, Cap.5, p.7).

15
BENTO XVI, Carta Encíclica, Deus Caritas Est, conforme Tradução e Edição por Thaise Rodrigues, de
Libreria Editrice Vaticana, Roma, 2005 e On Line Editora, SP, 2006.

20
A filósofa francesa Monique Canto-Sperber16, pressupõe a necessidade de
um “retorno aos antigos”, como fonte de reflexão capaz de servir de contraponto
ao “individualismo individualizante” do espírito da pós-modernidade.
Para ela o pensamento grego parece o único exemplo de uma outra
compreensão da moralidade diferente da moralidade de deveres e obrigações
religiosas, centrada no dever do bem do outro, pois para os gregos antes de tudo
é uma moralidade do sujeito, considerando primeiro o bem do agente, como ética
do agente moral e cidadão (2002, p.1).
Na visão de Peter Baelz17, a compreensão moderna de moralidade, apesar
de rupturas feitas pelo ressurgimento da razão a partir do iluminismo, ainda é
produto da moralidade cristã que, por sua vez, tem raízes na tradição bíblica e na
religião judaica. A ética judaica, tinha as mesmas preocupações dos gregos, mas
com ênfase na realização da vida como projeto familiar. Toda esta tradição moral
religiosa do judaísmo já miscigenada a elementos da filosofia grega no período
helenístico, serviu de quadro conceitual aos primeiros teólogos cristãos. A
questão central é que a ética cristã, que resulta da patrística, continua uma ética
não fundada na razão, sem deixar de ser racional, mas que parte sempre da fé,
que se baseia na revelação e cujo fim é teleológico centrado na vida eterna.
A ética de Agostinho, por exemplo, mescla elementos destas duas
tradições de pensamento, a grega e a judaico-cristã. Como Aristóteles, Agostinho
também postula que todos os seres humanos buscam a felicidade (De Civitate
Dei, X,11). Mas como Platão, e isto através do sistema de Plotino, por serem os
homens criados por Deus e para Deus, o Uno e Absoluto, a verdadeira felicidade,
como beatitude, só pode se dar pelo retorno da alma a Deus, que é o único que
pode satisfazer o profundo anseio do desejo humano (Confissões, XIII, 3,4; 4,5).
Agostinho postula uma ética centrada numa ordo amoris, isto é, a ordem
mantida pelo amor-cáritas, que suplanta as inclinações naturais do amor-
cupiditas, que conduz ao pecado. Esta ética agostiniana pressupõe também uma
experiência subjetiva de conversão do sujeito, que o insere no reino de Cristo,
cuja vida moral passa a desenvolver-se pela espiritualidade resultante da
iluminação da alma e da interioridade, pela contemplação, meditação e ascese.

16
Referimo-nos ao artigo Os Antigos Conosco, de Monique CANTO-SPERBER, Trad. Edson Resende,
Paris, Revista Esprit, nº 289, Novembro de 2002 (p.8-15); RJ, UGF, 2004.
17
Cf. Ética, de Peter BAELZ, em LACOSTE, J-Y; Dic. Crítico de Teologia, SP, Paulinas, 2004, (p.67-676).

21
Logo, nesta ética de espiritualidade, o prazer, enquanto sexual, não cabe.
Há o prazer no compartilhamento da vida conjugal, mas conduzido mais pela
philia que propriamente pelo éros, já que o cristianismo, desde Paulo, entendeu o
amor-éros como unicamente restrito ao erótico, ao corporal. A sexualidade não é
vista como má e pecaminosa em si, enquanto parte da “boa” criação de Deus, por
isso, perfeitamente permitida para o fim destinado no Gênesis, à procriação, e só.
Tanto que Agostinho, em face ao confronto com o maniqueísmo contrário ao
casamento e com o purismo espiritual do gnosticismo e donatismo, legislou sobre
os “bens do matrimônio”. Todavia, a questão definidora de um não-lugar para o
prazer sexual é a concepção do desejo (apetitus, libido), como “causa” do mal na
corporeidade e “sinal” do pecado original, pecalizando todo tipo de sensualidade!
Mas, o que descobrimos com a busca de raízes históricas ao pensamento
é que a falta de um lugar de positividade do prazer sexual na eudaimonia do
sujeito cristão não é invenção de Paulo, nem da Patrística, muito menos ainda de
Jesus, mas pode ser visto já como legado da racionalidade grega.
As éticas gregas, sem exceção, desde Sócrates e principalmente com
Platão e os estóicos, e mesmo a dos epicuristas, desqualificaram o corpo dentro
do programa de felicidade, como prisão da alma, onde as inclinações da
sensualidade (aphrodysia), do desejo (epithymia) e das paixões (pathé) são
forças imanentes que o arrastam o homem à corrupção.
Desse modo, a felicidade, que de alguma forma é voltar-se para as “coisas
que são superiores”, é alcançável pela prática da virtude, uma das quais é o trato
com os “movimentos da alma” e com as “inclinações do corpo”. Para Platão este
“trato” é a total submissão do desejo pela virtude. Para os estóicos, a completa
eliminação deste pelo controle da razão. Aristóteles e Epicuro viam a
possibilidade de uma gestão do prazer, como parte integrante da natureza
humana, através da virtude da moderação.
Todavia, podemos perceber que esta concepção grega do prazer sexual,
principalmente de Platão e dos estóicos, fez casamento com a moralidade da
cultura religiosa do judaísmo-cristianismo, amalgamada no período pré-cristão
desde o séc.II aC até o final do séc.I dC, especialmente no que concerne em mal-
ver o desejo como fonte de ruína humana e não como motor da vida e veículo de
espiritualidade, como as religiões orientais a viam. Este aspecto é, de certa forma,
lembrado pelo Papa na Encíclica Deus Caritas Est.

22
Porém, antes de encerrarmos a reflexão deste breve ensaio, vale lembrar
que nem toda a Bíblia é anti-sexual e que esta idéia pode ser vista como evolução
gradual principalmente do Novo Testamento.
O exame simples e natural do texto bíblico mostra a existência de uma
sexualidade pujante, presente e até mesmo estimulada no ambiente do Antigo
Testamento, nos clássicos namoros patriarcais, nos casais de amantes, como no
modelo de Davi e nos haréns de Salomão, nos conselhos aos jovens casais nos
livros sapienciais, como o livro exclusivamente de erótica: o Cântico dos Cânticos!
Uma pergunta então se impõe: o que houve neste ínterim do Antigo para o
Novo Testamento, com relação ao gozo do prazer sexual?
A resposta remonta ao encontro da teologia com a filosofia, que o zeitgeist,
o “espírito da época”, marcou neste tempo de sínteses e elaborações.
A moralidade patrística e agostiniana, e depois pela Idade Média, foi
apenas continuidade de um programa de negação e falta, que cada vez mais se
concretizou e consolidou no Ocidente, em parte justificada nas origens pela luta
da moral judaico-cristã contra o liberalismo da sociedade greco-romana.
Todavia, como muito bem mostra Giulia Sissa, em O Prazer e o Mal, esta
“negação”, que tornou o desejo em “falta” na economia da psique humana, foi
reforçada pela história de repressão ao prazer e tornou-se, na realidade, em
sintoma que retorna por todo tipo de vício e droga a que o homem moderno lança
sua obsessiva procura de completude, até mesmo na demasiada religião.
Bento XVI toca nesta ferida do ego ocidental, quando destaca as
“degradações do éros” (p.7), mas sem analisar profundamente estes “sintomas”.
Agostinho teve grande importância na montagem do pensamento cristão
ocidental, por ter feito brilhante síntese deste processo de amálgama histórico
entre gregos, judeus e cristãos, servindo de piso para o cristianismo edificar suas
práticas e levantar sua cultura com relação ao prazer.
Agostinho nos dá ainda o legado da espiritualidade da interioridade, a
exemplo de seus Solilóquios e Confissões, como lembra Hannah Arendt:
As Confissões testemunham o outro império, o império cristão, que, no fim
da Antigüidade, Santo Agostinho abriu para os séculos seguintes: o reino da
interioridade. A alma não foi pensada como interioridade pelos Gregos. A alma
representava a essência do homem, mas não eram os horizontes cheios de mistério
e de desconhecido da própria interioridade... Mas, em Agostinho,... nossa própria
vida tem importância apenas na medida em que não é apenas terrestre, porque
nela se decide a proximidade ou o afastamento de Deus... (Arendt, 1997, p.175).

23
Finalmente, devemos avaliar ainda o tema do prazer, como bem mostra
Paul Ricoeur18, pela subjetividade da culpa, que se implica na ética e na religião.
Michael Foucault já havia apontado para o fato de que, com o cristianismo,
e as Confissões de Agostinho como modelo, ocorreu importante mudança na
moral da sociedade ocidental, pois o homem cristão ocidental tornou-se
iminentemente um “ser confessante”, que confessa suas faltas, confessa seus
crimes nos tribunais, confessa seus bens ao Estado, confessa seu amor e, ainda,
confessa-se à religião. (1980, p.35, vol.1).
Realmente, como demonstra Maria Luiza M. de Araújo 19, a figura do
confessionário, já a partir do século VII, tornou-se símbolo da mais proeminente
prática católica que catalisou o prazer e o sexo como sintoma da moralidade da
Idade Média, na busca obsessiva pela motivação do prazer na subjetividade mais
íntima e pessoal do sujeito, possibilitando a catalogação destes motivos como
novas formas de nefandos pecados a combater nos “Manuais Penitenciais”, que,
contudo, só desvelavam o impulso e vontade de transgressão. (1997, p.27-43).
Na observação de Ricoeur, a significação da confissão aponta para o
desvelamento da culpa, que a literatura penitencial bem sintetiza, a partir da
“confissão dos pecados”. Parece concordar que a culpa é o sentimento primal
inato do ser humano, que demonstra a produção do efeito da lei sobre a
configuração da consciência humana, cristalizando o “erro”, a “transgressão”, o
“pecado” como elemento objetivo, de forma pública e notória, na vida social.
Assim, o prazer está diretamente relacionado ao sentimento de culpa e
dois discursos tentam lidar com ela desde a Antigüidade: a religião e a ética. O
discurso da religião vincula o mal à liberdade, buscando afirmar a liberdade
colocando em alguém ou algo a origem do mal e a necessidade de expiar a culpa.
A dimensão religiosa é a dimensão primeira do homem em busca de justificação e
expiação. Já o discurso da ética vincula tanto o mal como a liberdade ao sujeito;
assim, não há o mal como ser, mas apenas o mal feito pelo agente responsável.

18
A propósito desta discussão é próprio o artigo de Paul RICOEUR, Culpa, Ética e Religião, Trad. A.N.S.G,
na Concilium 1970/6, Revista Internacional de Teologia, RJ, Vozes, p.679-692.
19
Maria Luiz M. de ARAÚJO, fez tese de doutorado na Univ. Gama Filho, onde explora este tema com rica
documentação; Sexo e Moralidade: o prazer como transgressão ao pensam. católico, Londrina, UEL, 1997.

24
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Trad. Ivone C. Benedetti. SP,


Martins Fontes, 2000.
2. AGOSTINHO. As Confissões. Trad. J. Oliveira Santos e A.Ambrósio de Pina.
SP, Abril Cultural, 1973.
3. __________. A Cidade de Deus. Introdução Riolando Azzi, Trad. Oscar P.
Leme. SP, Edameris, 1964, Vol1, 2 e 3.
4. ARENDT, Hannah. O Conceito de Amor em Santo Agostinho: ensaio de
interpretação filosófica. Lisboa, Instituto Piaget, 1997.
5. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. Leonel Vallandro e Gerd Bornheim,
da versão inglesa de W. D. Ross. SP, Nova Cultural, 1987, Vol.II.
6. BROW, Peter. Corpo e Sociedade: o homem, a mulher e a renúncia sexual
no início do cristianismo. Trad. Vera Ribeiro. RJ, J.Zahar, 1990.
7. CANTO-SPERBER, M. Os Antigos Conosco. Trad. Edson Resende. Paris,
Revista Esprit, nº 289, 2002/2005.
8. __________. Amor, In: Dicionário de Ética e Fil. Moral. Trad. Paulo Neves,
São Leopoldo/RS, UNISINOS, 2003, V.1, p.63-75.
9. __________. Antigüidade, In: Dicionário de Ética e Fil. Moral. Trad. Paulo
Neves, São Leopoldo/RS, UNISINOS, 2003, V.1, p.94-106.
10. __________. A Inquietude Moral e a Vida Humana. Trad. Nicolas Nyimi
Campanário. São Paulo, Loyola, 2005.
11. DOVERE, Elio, O Discurso Jurídico e Moral da Utilitas em Roma, In:
História Argumentada da Filosofia Política, Trad. Alessandro Zir, Alain
Caillé (org.), São Leopoldo, UNISINOS, 2004, V.1, p.105-112.
12. FERREIRA, Aurélio B. H. Novo Dic. da L. Portuguesa. RJ, N. Fronteira, 1988.
13. GAZOLLA, Rachel, Os caminhos complexos do prazer e da dor, Resenha
de The comples ways of pleasure and pain, de Francisco Bravo; In:
Revista Hypnos, Ano 9, Nº13, SP, 2004, p.112-116.
14. GOTTLIEB, Anthony. Sócrates. Trad. Irley F. Franco. SP, UNESP, 1999.
15. HADOT, Pierre. O que é a filosofia antiga? 2.ed. Trad. Dion Davi Macedo.
São Paulo, Loyola, 2004.
16. LAGRÉE, Jacqueline. O Estoicismo Grego e Romano, In: História
Argumentada da Filosofia Política, Trad. Alessandro Zir, Alain Caillé
(org.), São Leopoldo, UNISINOS, 2004, V.1, p.91-104.
17. LIMA VAZ, Henrique C. Escritos de Filosofia IV: introdução à ética
filosófica 1. 2.ed. SP, Loyola, 2002.
18. KAMBOUCHNER, Denis, Paixões, In: Dic. de Ética e Fil. Moral. Trad. A. M.
Ribeiro-Althoff, São Leopoldo/ RS, UNISINOS, 2003, V.2, p.279-284.
19. MARCONDES, Danilo. Iniciação à História da Filosofia: dos pré-
socráticos a Wittgenstein. RJ, Jorge Zahar, 2002.

25
20. MARZANO-PARISOLI, Maria-Michela, Corpo, In: Dic. de Ética e Fil. Moral.
Trad. Pulo neves, São Leopoldo/ RS, UNISINOS, 2003, V.2, p.279-284.
21. MORA, José Ferrater. Dicionário de Filosofia. Tomo II (E-J). Trad. Maria S.
Gonçalves, et al. SP, Loyola, 2001.
22. NIETZSCHE, F. W. Para além do bem e mal. 4.ed. Trad. Rubens Rodrigues
Torres Filho, São Paulo, Nova Cultural, 1987 (Os Pensadores).
23. Os Pensadores- Sócrates. Platão: Apologia de Sócrates; Xenofonte: Ditos e
Feitos Memoráveis de Sócrates. Trad. Enrico Corvisieri e Mirtes
Coscodai. SP, Nova cultural, 1999.
24. PLATÃO. Fédon. Trad. Janice Florido. Pensadores. SP, Nova Cultual, 1999.
25. _______. Banquete. Trad. José C. de Souza. SP, Nova Cultural, 1991.
26. RICOEUR, Paul. Culpa, Ética e Religião. Revista Concilium, Nº 56, RJ,
Vozes, 1970/6.
27. RUSS, Jacqueline. Pensamento Ético Contemporâneo. Trad. Constança M.
César. SP, Paulus, 1999.
28. SISSA, Giulia. O Prazer e o Mal: filosofia da droga. Trad. Marcos de
Castro. RJ, Civilização Brasileira, 1999.
29. SPINELLI, Miguel, O Daimónion de Sócrates, In: Revista Hypnos, Ano 11,
Nº16, SP, 2006, 32-61.
30. VERNANT, Jean-Pierre. As Origens do Pensamento Grego. Trad. Ísis
Borges B. da Fonseca. 13.ed. RJ, Difel, 2003
31. VIDAL, Marciano. Moral de Atitudes: ética da pessoa. Trad. Ivo
Montanhese. SP, Santuário, 1978, Vol. 2.
32. BENTO XVI. Deus é Amor. Carta Encíclica do Papa. Thaise Rodrigues,
Editora. SP, On Line, 2006.
33. BIBLIA DE JERUSALÉM (BJ). SP, Paulinas, 1989.
34. KÖNIG, F. Léxico das Religiões. Trad. Luís Sander, et al, RJ, Vozes, 1998.
35. KÜNG, Hans. Projeto de Ética Mundial: uma moral ecumênica em vista da
sobrevivência humana. SP, Paulinas, 1993.
36. LACOSTE, Jean-Yves. Dicionário Crítico de Teologia. Trad. Paulo
Meneses, et al. SP, Loyola, 2004.
37. ARAÚJO, Maria Luiza M. Sexo e Moralidade: o prazer como transgressão
ao pensamento católico. Londrina, UEL, 1997.
38. COLE, William G. Sexo e Amor na Bíblia. Trad. Aydano Arruda. SP, Ibrasa,
1967.
39. FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade: a vontade de saber. Trad.
Maria T. C. Albuquerque. 9.ed. RJ, Graal, 1984, Vol. 1.
40. __________. O Combate da Castidade, Trad. Suely Bastos, In:
Sexualidades Ocidentais, SP, Brasiliense, 1985, p.25-38.

26

Você também pode gostar