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MICHEL TROPER

A FILOSOFIA DO DIREITO

Tradução
ANA DEIRÓ

marçihs"
Martins Fontes
O original desta 'Õbra foi publicado em Francês
com o titulo La p/Jílosop/az'e du droir.
© 2003, Presses Universitaires de France.
© 2008, Martins Editoraxlloliifrävrfa Ltda., São Paulo, para a
presente edição.

Produção editorial
Eliane de Abreu Santoro

Capa e projeto gráfico


Renata Miyabe Ueda

Preparação
Adriane Gozzo

Revisão
Huendel Viana
Dinarte Zorzanelli da Silva

Produção gráfica
Demétrio Zanin

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Troper, Michel
A filosofia do direito f Michel Troper; [tradução de Ana Deiró]. - São
Paulo:
Martins, 2008. - (Coleção Tópicos Martins)

Titulo original: 1.a philosophie du droit.


Bibliografia.
lSBN 97885-99102-56-5

1. Direito - Filosofia 1. Título. ll. Série.

08-0623?7 CDU-340.12
Índices para catálogo sistemático:
1. Direito: Filosofia 340.12
2. Filosofia do direito 340.12

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Sumário

INTRODUÇÃO ......................................................... 7

cAPÍTULO 1 - O QUE É FILOSOFIA DO DIREITO? ............ 13

I. Pilosofia do direito e teoria geral do direito ........................ 14

II. Filosofia do direito dos filósofos e filosofia do direito dos


juristas................................................................ 17

III. Direito natural e positivismo jurídico... . ..._.... .........f_........ 20

IV. Estado da disciplina ................................................. 28

cAPíTULO :z _ A cIENcIA DO DIREITO ......................... 35

I. Distinção entre direito e ciência do direito ........................ 34

II. Objeto da ciência do direito e definição do direito ............... 55

III. Funções da ciência do direito ....................................... 70

cAPíTULO 5 _ A ESTRUTURA DO DIREITO .................... 85

I. Normas jurídicas .................................................... 85

II. Hierarquia das normas ............................................. 96

III. Criação do direito . ._ ................................................. 104


123
123
140

155
TO....................
CAPITULO 4 - O RACIOC INIOEMDIREI

REFE RENCIAS BIBLIOG RAFICAS......

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l. Interpretação.............._
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ll. Lógica. .

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Introdução

Vivemos sob o império do direito. Desde o nascimento, é


obrigatório registrar a criança, e o nome que ela terá lhe se-
rá atribuído conforme certas regras, bem como outras de»
terminarão que seja matriculada em uma escola. Quando
compramos o mais simples objeto ou pegamos um ônibus,
isso ocorre pela aplicação de um contrato. Nós nos casa-
mos, trabalhamos e nos tratamos de acordo com o direito.
Contudo, por mais que sejamos conscientes dessa onipre»
sença do direito e capazes de aplicar ou de produzir regras,
muitas vezes temos dificuldade em defini-lo.
Mas por que uma definição seria necessária? Como
em outros fenômenos, a busca por definição ressalta o ques-
tionamento sobre a natureza ou a essência do direito. Mas
é também indispensável ao l.prftíprio trabalho dos juristas.
Com freqüência, observamos quetos físicos não tardam em
definir a física, nem os químicos, a química. Da mesma for-
8 l A FirosoriA Do DiREITo

'E

ma, os juristas não podem dispensar a definição do direito.


Isso ,se deve, sobretudošizi'ao V'fato de que não se pode aplicar
uma regra antes de tê-la identificado como regra de direito.
Qual é a diferença entre a ordem dada pelo ladrão e
aquela dada pelo cobrador de impostos? Ambos exigem que
lhes seja entregue dinheiro, e, nos dois casos, uma recu-
sa nos deixaria expostos a conseqüências desagradáveis. No
entanto, dizemos que somos forçados, coagidos a obedecer
ao ladrão enquanto temos o dever de acatar a ordem do co-
brador de impostos. Em outras palavras, identificamos co-
mo jurídico o dever de obedecer ao cobrador de impostos
de acordo com a definição do direito. Essa definição não
tem nada de filosófica. É o próprio direito que determina o
caráter do que é jurídico e do que, como a exigência do la-
drão, não passa de violação do direito. Basta, portanto, pa-
ra a maioria de nossas necessidades práticas, conhecer esses
critérios, contidos nas regras.
Todavia, o conhecimento desses critérios não nos in-
forma nada sobre a natureza do direito. Não sabemos por
que foram adotados, se as regras são mesmo obrigatórias e,
em caso positivo, por que o são - por serem justas, por ema«
narem do poder político ou por terem origem em sanções
decorrentes de infração?
Como saber se as regras que definem o que é jurídi-
co são realmente jurídicas, se são do direito ou de qualquer
outra coisa? Essa questão não é jurídica, mas filosófica. De
iNTRoDUcÃo l 9

nto
fato, o jurista não detém, por profissão, nenhum eleme
apenas à fi-
de resposta. Além disso, a questão não interessa
losofia do direito, mas também a outras disciplinas, como
ao
filosofia moral (se esta admite que é correto se submeter
direito), história ou antropologia (quando querem saber se
determinada sociedade é dotada de sistema de direito).
Contudo, sem ser jurídica, essa questão traz, muitas
ar a
vezes, conseqüências ao próprio direito. Podemos ilustr
um
idéia com o auxílio do exemplo a seguir, inspirado em
caso real e que aparece como imagem invertida do mito
de Antígona. Na Alemanha nazista, quaisquer comentários
hostis feitos ao regime eram considerados criminosos em`
i-
razão de uma lei, e todos aqueles que os ouvissem, inclus
ve parentes e amigos, deveriam denunciar quem os fizera.
Após o fim da guerra, uma mulher foi processada por ter
delatado o marido, que havia sido preso, condenado à mor-
te e executado. Essa mulher deve ser condenada?
A resposta depende unicamente da definição do di»
m
reito, e foi nesses termos que os tribunais apresentara
o problema. A princípio, podemos considerar que, quais-
quer que tenham sido as razões da delatora, estas não di-
ziam respeito nem à fidelidade ao regime nem à vontade
de respeitar a lei, mas ao ódio. Independentemente do jul-
gamento moral que façamos dela, o que ela fez foi apenas
se conformar com o direito vigente na época. Ela deveria,
portanto, ser absolvida.
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` 10 l A FILOSOFIA DO DIREITO

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No entanto, também podemos
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nazista era tão abominável isto é,


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tão contrária aos prin-

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cípios fundamentais da moral que
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não merecia receber


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nome de lei como de fato não o era _, de form


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desobedecê-la. Se a lei nazista não


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era lei, não poderia ter


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substituído a lei anterior que punia den


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úncias abusivas. En-


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tão, a mulher deveria ser conden


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Desse modo, o juiz vai se pronunciar
em um senti-
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-
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do ou em outro, de acordo com sua con


cepção da natureza
do direito. Ele pode chamar de dire
.

ito todas as regras pu-


blicadas pelo poder político ou apenas
_MÇJ

aquelas que não vio-


L *vf'ê-Ww-Elíéfrã'íêà*

lam um ideal de justiça. A primeira


definição o conduzirá
a absolver a mulher; a segunda,
a condena-la, tendo em vis-
ta que a definição não se encontra no
direito em vigor, mas
depende de escolhas filosóficas.
Para exercer seu trabalho, os juristas
não dependem
apenas de uma definição do direito, mas
de definições dos
conceitos fundamentais empregados na
formulação das re-
gras. O conteúdo das regras exprime,
de fato, as preferên-
cias políticas e morais daqueles que as
criam. Uma lei que
proíbe ou autoriza a caça, o abo
rto ou o suicídioreflete'
crenças sobre os animais, a vida ou
ai'liberdade do indi-
víduo de dispor de si mesmo. Esses con
ceitos não são ju-
rídicos em sentido imediato, pois os anim
ais, a vida ou o‹
suicídio podem ser regulados pelo direito,
mas existem in-
iNTRoDUcÃo jll

dependentemente dele. Todavia, alguns autores admitem


que subjacente às leis existe um direito natural, cujo con be-
cimento é acessível à razão humana, e que contém princí-
pios de justiça que governam essas questões. Esse direito
natural é, então, objeto de uma filosofia do direito, que se-
rá relativo à família ou ao aborto. Além disso, essa filosofia
do direito terá dimensão normativa e recomendará ao'legis~
lador adotar as regras em conformidade com os princípios
de justiça que ela presumirá ter resgatado.
Contudo, mesmo os que não admitem a existência do
direito natural não podem evitar' a reflexão acerca dos con.-
ceitos empregados pelo legislador, quando estes dizem res-
peito às instituições que não têm existência senão no próprio
direito e perante ele. Alguns são relativos à forma jurídica,
como constituição ou contrato; outros, ao fundamento ou
à base, como casamento ou propriedade. As regras sobre
contrato ou propriedade variam muito de um país para ou-
tro, porém sempre existem. Elas traduzem idéias sobre a
natureza do contrato ou da propriedade, as quais os juristas
devem conhecer para poder aplicar as regras.
A afirmação da existência de uma regra jurídica pres-
supõe uma definição geral do direito, de sua estrutura e dos
conceitos jurídicos, mas também uma concepção da ciên-
cia que permite alcançar o conhecimento dessa regra ou da
validade dos raciocínios que'aelasão aplicados. Esses pres«
supostos são, com freqüência, inconscientes ou fundamenÉ
12 I A FILOSOFIA DO DIREITO

tam unicamente o conheÊimento e a prática do direit


o de
um só país, ou, ainda,,¬¶n_ão são ordenados. Desse modo
, a
filosofia do direito estãiinecessariamente prese
nte, de forma
tanto implícita quanto espontânea.
Estamos falando de filosofia do direito em sentido am-
plo, para designar uma reflexão sistemática sobre a defin
i-
ção do direito, sua relação com a justiça, a ciência do direito,
a estrutura do sistema ou o raciocínio jurídico. Ela pode ser
apresentada de diversas maneiras, e as obras intituladas Fz'-
losofiéz do direito só têm em comum o fato de que oferecem
ponto de vista geral sobre o direito. Algumas apresentam
doutrinas; outras, questões abordadas. A primeira aborda-
gem tem a vantagem de pôr em evidência a coerência de um
pensamento sobre um conjunto de problemas, mas a incon-
veniência de mascarar a diversidade de opiniões sobre um
mesmo problema. As vantagens e inconveniências do segun-
do método são inversas. Urna vez que o escopo deste livro é
mostrar como se desenrola o debate filosófico sobre o direi-
to, empregaremos a segunda abordagem. Contudo, esta não
convida a um percurso balizado, pois não existe nenhuma
relação preestabelecida dos problemas a serem tratados, e fi-
caremos satisfeitos com uma breve exposição de alguns dos
mais importantes - os que dizem respeito à definição da fi-
Iosofia do direito e de seu objeto, a ciência do direito, a estru-
tura do sistema jurídico e o raciocínio jurídico.
O que é filosofia
do direito?

ow
O uso da expressão “filosofia do direito” dissemin
z do di-
se a partir do século X1X,com os Prznczpzos dúzfilosofió
o direito é
reito, de Hegel (1821)*, porém a reflexão sobre
apresen-
tão antiga quanto o próprio direito. Hoje, os livros
e, não apenas
tados sob esse título são de extrema diversidad
em
em relação aos pontos de vista doutrinários, mas também
ição
relação ao conteúdo. Não existe acordo sobre urna defin
é rarno
do direito ou da filosofia do direito, nem sobre se ela
tões
da filosofia ou parte da ciência jurídica, sobre as ques
“filo-
que deveria tratar, suas funções ou a própria expressão
teoria
sofia do direito”, a qual alguns preferem denominar
geral do direito” ou, em inglês, generaljurisprudence. Essas

-
É
diferenças de terminologia refletem, em parte, outras oposi
do
ções de ordem teórica ou epistemológica entre a filosofia
direito dos juristas e a dos filósofos, ou entre jusnaturalismo

* São Paulo, Martins Fontes, 2003. (N. de T.)


14 l A FILOSOFIA DO DIREITO

e positivismo jurídico. E preciso analisa-las


antes de exami-
nar o estado atual da disciplina.

___._¬

FiIosofia do direito e teoria


geraI do direito

A expressão “teoria geral do direito” surgiu


no final do século
XIX sob a influência do positivismo e do emp
irismo e como
reação à filosofia do direito praticada até entã
o. Os defenso-
res da teoria geral do direito criticavam a filos
ofia do direito
clássica por seu caráter puramente especula
tivo. As questões
clássicas tratadas - “O que é direito?” ou “Exi
stem critérios
de justiça?” - pareciam lhes dar ensejo a cons
iderações de
ordem metafísica, quando, na realidade
, pretendiam fundar
uma ciência. Enquanto a filosofia do direito
tinha como obd
jeto o direito ideal, a teoria geral do direito que
ria tratar ape-
nas do direito em si, o positivo. Além disso
, existiam laços
entre a filosofia do direito e as doutrinas
do jusnaturalismo,
de um lado, e a teoriageral do direito e o posi
tivismo jurídi-
co, de outro (cf. z'nfizz).
A teoria geral do direito teve considerável expa
nsão na
primeira metade do século xx, em particular pela
influência
do jurista austríaco Hans Kelsen (1881-1975),
que expunha
uma versão renovada do positivismo jurídico sob
o nome de
“teoria pura do direito”, também chamada de
“normativis-
mo”, e que fundou em 1926, com Duguit e Wey
r, a revista
intitulada Revue [memózrz'omzíe de [a T/øéo
rz'e du Droit.
o QUE É FitosoFiA Do Dierro? 15

Todavia, após a Segunda Guerra Mundial, as doutri-


nas jusnaturalistas, das quais se esperava estabelecessem as
bases de um direito justo e determinassem os limites do po~

der do Estado sobre os indivíduos, conheceram, sobret
do na Alemanha, uma retomada de interesses, e a expressão
“filosofia do direito”, que sofrera apenas declínio relativo,
passou a ser utilizada mais uma vez para intitular obras ou
ensinamentos universitários.
Nos anos 1950, com o desenvolvimento da filosofia
analítica na Inglaterra e nos Estados Unidos, a platéia do
positivismo jurídico voltou a crescer de novo, da mesma
forma que a expressão “teoria geral do direito”.
Ainda hoje, alguns continuam a apresentar a filosofia
do direito e a teoria geral do direito como duas disciplinas
distintas (Van Hoeclte). A primeira seria especulativa e nor~
mativa e compreenderia:

° uma ontologia jurídica, que pesquisa a essência do


direito e de certos conceitos como a democracia, o
Estado ou o indivíduo;
° uma epistemologia jurídica, concebida como exame
das possibilidades de alcançar o conhecimento des~
sas essências; f _ R

'uma teleologia juríd`ica,`ique tem como finalidade


determinar os fins do* direito;
15 A FILOSOFIA DO DIREITO

° uma lógica jurídica, que procura analisar a argumen~


taçãO jurídica. ~ ‹~

A teoria geral do direito teria como interesse exclusi-


vo descrever e analisar o direito em si, graças ao emprego de
um método científico, e aspiraria ser isenta de qualquer jul-
gamento de Valor. Ela não substituiria a filosofia do direito,
a qual perduraria, mas em nível maior de abstração.
Essa distinção é razoável, mas não corresponde ao
emprego efetivo das expressões “filosofia do direiton e
“teoria geral do direito”. Na prática, é impossível estabe~
lecer correlação entre o título de uma obra e as questões
por ela abordadas, o nível de abstração em que se posiÉ
ciona, o método que emprega ou a corrente doutrinária à
qual pertence. Corn mais freqüência, “teoria geral do di-
reito” tem conotação positivista, mas pode acontecer de
determinada obra, assim intitulada, ser especulativa e ter
como autor urn jusnaturalista, enquanto outra, de manei-
ra inversa, ainda que redigida por um positivista, tenha o
título “filosofia do direito”. Portanto, o born senso man-
da que tomemos ambas as expressões como sinônimas.
Contudo, o mesmo não ocorre com outros dois termos:
“filosofia do direito dos filósofos” e “filosofia do direito
I dos juristas”.
o QUE É FirosoFiA Do DiREITo? l 17

*_

I Filosofia do direito dos filósofos e


1 . . . .
I filosofia do direito dos Jurista s
Essa oposição não abarca de maneira total a anterior.
A filosofia do direito dos filósofos seria, antes de tudo,
uma filosofia aplicada, que consistiria na transposição das gran-
des doutrinas filosóficas aos problemas do direito e da justiça.
Não obstante, distingue-se mal dos ramos da filosofia que têm
como objetivo o estudo das noções ligadas ao direito, como a
filosofia moral, a filosofia das ciências ou a filosofia política.
Essa concepção não está exclusivamente relacionada à
inscrição, no campo acadêmico, de autores que podem ser
filósofos ou juristas. É reivindicada por aqueles que crêem
que a filosofia do direito não pode dispensar o direito natu-
ral e tem como tarefa, c(em razão da crise do humanismo, do
universal [...], encontrar análogo ou correspondente para a
velha natureza humana, em que possa enraizar a universali-
dade exigida pela noção de direitos humanos”.
Em contrapartida, é criticada com vivacidade, por um
lado, pelos autores de inspiração positivista, porque se fun«
da na idéia de que “as soluções para os problemas jurídicos
deveriam ser pesquisadas nas obras dos filósofos, não na ex- i
periência jurídicaiiz; por outro, porque, uma vez que os ju-

l. Alain Renaut óí Lukas Sosoe, P/vz'lorop/az'e du dmz'z (Paris, PUF, 1991).


2. Norberto Bobbio, “Filosofia do direito”, em André-Jean Arnaud (org),
Dictionnaz're encyclopédz'que de teoria er de socio/ogia du droír (2. ed. Paris,
LGDJ, 1993).
18 j A FILOSOFIA DO DIREITO

ristas não encontram nela nenhum reflexo de suas práticas e


raciocínios, se afastam da reflexão filosófica.
De acordo com esses mesmos autores, a filosofia do
direito dos juristas se distingue da dos filósofos porque dá
prioridade à analise sobre a síntese, parte da experiência ju-
rídica e se apresenta como reação à esquematização e à ge-
neralização. Contudo, se os pontos de vista são distintos, os
conteúdos se apresentam semelhantes.
Assim, segundo um de seus melhores representantes,
Norberto Bobbio, a filosofia do direito dos juristas tem por
objeto o conceito de direito, a teoria da justiça e a teoria
da ciência jurídica, mas em vez de especular sobre essên-
cias se esforça para ter como ponto de partida os fenôme-
nos jurídicos.
A filosofia do direito dos juristas não busca determinar
a essência do direito, mas elaborar um conceito de direito,
permitindo a compreensão e a interpretação do fenômeno
jurídico como um complexo de normas, cujas propriedades
fará esforço para definir.
O mesmo ocorre no que diz respeito à justiça. Enquan-
to os filósofos jusnaturalistas partem da concepção da na-
tureza do homem, da qual tentam deduzir regras justas, os
filósofos juristas deveriam pesquisar osivalores efetivamente
protegidos pelo direito nos diferentes sistemas jurídicos.
O mesmo se aplica à teoria da ciência. Em vez de ten-
tar construir uma ciência jurídica sobre o modelo de outras
o QUE É Fitoso-x Do DiRriiTo? j 19

ciências e fazer a transposição dos modelos da matemática


ou da física para o direito, seria necessário tão-somente ana-
lisar os processos de raciocínio realmente empregados pe-
los juristas.
A filosofia do direito dos juristas se apresenta dessa maÉ
neira como descrição das práticas jurídicas, que se caracter-iÉ
za apenas pelo nível elevado de abstração e generalização.
Contudo, é preciso observar que ela não se confun~
de com a teoria geral do direito, quando esta é definida pela
orientação positivista, pois os teóricos do direito permanecem
aquém e vão além desse programa. Ficam aquém quando se
contentam em criticar as referências à justiça e ostentam, co-
mo Kelsen, total indiferença pelo conteúdo das normas jurí-
dicas. E vão além quando não ficam satisfeitos em descrever
os processos reais de raciocínio, mas buscam estabelecer os
critérios de uma ciência do direito em conformidade com os
modelos construídos pela filosofia das ciências.
Por outro lado, a oposição entre filosofia do direito
dos filósofos e filosofia do direito dos juristas deve ser relati-
vizada. A formulação de Bobbio poderia permitir crer que a
descrição `a qual se reduziria a filosofia do direito dos juristas
seria isenta de qualquer especulação, enquanto, de fato, ela
se funda necessariamente sobre certos pressupostos e requer
o emprego de conceitos cuja esgolha depende das orienta-
ções filosóficas gerais. Pode-se -Ámiuito bem descrever o di-
reito como um sistema composto de normas jurídicas, mas
20 l A FiLOSOFiA DO DIREITO

existem várias definições possíveis da norma jurídica. A afir-


mação, por exemplo, de "que uma norma contrária à moral
é, apesar de tudo, uma norma jurídica obrigatória, ou que
não é uma norma jurídica verdadeira, está estreitamente li«
gada à adesão a certas teses filosóficas sobre a existência ou
ausência de valores morais objetivos e sobre a possibilidade
de conhece-los. Da mesma maneira, a descrição do sistema
jurídico depende das teses acerca da relação entre norma e
fato, em particular no momento de saber se as normas se re-
duzem aos fatos, derivam deles ou pertencem a uma esfera
independente destes.
Se apresentamos os jusnaturalistas em oposição aos
positivistas, é precisamente porque consideramos que o faÉ
to de pertencer a uma ou outra dessas correntes explica as
respostas dadas `a maioria das questões teóricas e dá funda-
mentos para a forma pela qual pode ser descrito o direito
em vigor.

111 Direito natural e positivismo jurídico


É característica dessa oposição, como de tantas outras, que,
ora estimemos que ela apresente um caráter fundamental -
no sentido de que todo autor deveria poder ser classificado
em um ou outro grupo « ora tentemos ultrapassa-Ja, procu-
tando uma terceira via. Na verdade, como a inclusão de um
autor em uma classe depende da definição e da escolha dos
o QUE É FitosoFiA Do DiREITo? j 21

critérios, ela é sempre contestãvel e, com freqüência, con-


testada. Contudo, mesmo Kelsen, considerado, em. geral,
uma das figuras mais importantes do positivismo, foi qua-
lificado (por outros positivistas) como “quase positivista”,
isto é, como jusnaturalista. Além disso, o sucesso ou o fra-
casso das tentativas 'de ultrapassar a oposição depende das
definições adotadas.
Os critérios possíveis são, na realidade, muito diferen-
tes e inconstantes, de maneira que é preferível falarmos de
jusnaturalismos e positivismos, no plural.

1. Os jusnaturalismos

Pode-se dizer que os autores dessa corrente têm no mínimo


um traço comum: o dualismo. Enquanto os positivistas, 'de
maneira geral, acreditam que exista apenas um único direi-
to,'o positivo, ou no mínimo que o trabalho dos juristas
não pode ter outro objetivo senão o único direito positivo,
aquele enunciado e estabelecido pelos homens, os jusnatu-
ralistas crêem que existam dois, o direito positivo e o na-
tural, e que este último é cognoscível. Portanto, é preciso
sublinhar uma dissimetria com o positivismo. Este último
nega a existência do direito natural, enquanto o jusnatura-
lismo reconhece a existência do direito positivo, mas consi-
dera que existe, subjacente a ele, um direito natural ao qual
o direito positivo se deve sujeitar -- direito natural e direito
positivo são, portanto, hierarquizados.
22 l A FILOSOFIA DO DIREITO

As variantes dizem respeito principalmente à nature-


za desse direito natural, aos seus destinatários, à sua relação
com o direito positivo e, óbvio, ao seu conteúdo. Sobre o
primeiro ponto, Michel Villey (1914-1988) punha em opo-
sição o direito natural clássico e o direito natural moderno,
para o qual reservava o termo “jusnaturalisnio”. A doutri-
na do direito natural clássico é aquela da ciência jurídica
romana inspirada por Aristóteles. O direito não é um con-
junto de regras: é uma coisa. Por “coisa”, Villey entende as
relações justas entre os homens. Essas relações não são que-
tidas ou pensadas por eles, mas têm existência real. Assim,
o direito consiste em um bom relacionamento e constitui
uma ordem social harmoniosa e espontânea, independente
da intervenção voluntária dos homens. Cabe à “ciência” (a
jurisprudência) descobrir, por indução, esse direito natural
e formula-lo de modo indicativo.
A escola do direito natural moderno é aquela que ensi-
na, sobretudo sob a influência da filosofia nominalista, que
a única realidade é o indivíduo, e que cada homem possui
direitos em virtude de sua natureza particular. Esses direi-
tos chamados “subjetivos” podem ser descobertos com o au-
xílio da razão, pelo simples exame da natureza do homem.
O poder político não os cria; tem o dever de'consagrá-los,
e os homens podem exercê-los contra ele. Dessa forma,
o jusnaturalismo está na origem da doutrina dos direitos
do homem.
o QUE É FitosoFiA Do DiREiTo? l 23

No que diz respeito aos destinatários, podemos dis-


tinguir entre as doutrinas que concebem um direito natu-
ral antes de tudo destinado ao legislador e aquelas para as
quais ele se dirige a todos os homens. No primeiro caso, o
legislador deve se inspirar nos princípios do direito natuÉ
ral, mas, se não o fizer, os homens são, não obstante aisso,
obrigados a obedecer (São Tomás de Aquino, Sumóz 122010'-
gz'ca, 1275). No segundo caso, podemos conceber ou um
direito natural desprovido de todo conteúdo e que estabe-
leça e constitua unicamente o fundamento da legitimida-
de do legislador, de maneira que os sujeitos são obrigados a
obedecer aos seus mandamentos (Thomas Hobbes, Ler/imã,
I 1651), ou, ao contrário, um direito natural contendo direi-
tos subjetivos que os homens possam fazer valer e exercer,
mesmo contra o legislador (John Locke, Harada do got/e;flfl
no civil, 1690).
Decorre dessa primeira distinção que a relação entre
direito natural e direito positivo é também, necessariamen~
te, diversa. À parte o caso em que o direito natural consti~
tui o fundamento do direito positivo, que não teria podido
ser enunciado senão em virtude do direito natural e ao qual
é preciso se conformar e se submeter, a maioria das doutri-
nas jusnaturalistas faz do direito_gatural um instrumento de
medida do direito positivo, mãs“não deduz as mesmas con-
-
___.-.-_..--

seqüências de uma contradição entre os dois.


-
___..-
24 l A FlLOSOFlA DO DIREITO

'n

Certos autor-esconsijderam que o direito positivo, ao


contrário do natural,i`*f¿fr;1f'ãofé jurídico, que todo indivíduo
pode, de acordo corn seu raciocínio e bom senso, verificar
essa contradição e que tem até mesmo o dever de se recu-
sar a obedecer. Em certos casos, a confrontação se produz
entre o direito positivo e o direito natural, considerados de
maneira global, e é somente se o primeiro aparece na tota-
lidade como violação manifesta e intolerável do segundo,
que é necessário desobedecer, mas não se uma regra isolada
for contraria ao direito natural. Em outros casos, conside-
ra-se legítimo desobedecer a uma regra isolada, mesmo se
o direito positivo estiver, na totalidade, em conformidade
e submisso ao direito natural. Outros autores consideram
que a regra contrária ao direito natural permanece jurídica,
tendo em vista que foi enunciada, mas que o juiz tem o di-
reito de descarta-la. Outros ainda adotam posição mais mo-
derada, segundo a qual o direito natural não pode ordenar
nem a obediência nem a desobediência ao direito positi«
vo. O direito positivo é o direito que é, enquanto o natural
é aquele que deveria ser, e a confrontação tem por objeti-
vo apenas permitir um julgamento moral e político sobre o
direito positivo.
Quanto ao conteúdo do direito natural, este fica sujei-
to a variações infinitas, pois, se existe sempre uma referência
a um ideal de justiça, as idéias que fazemos dele podem ser
provenientes das mais diversas ideologias. Por conseguinte,
O QUE É FILOSOFIA DO DIREITO? l 25

podemos encontrar tanto um direito natural cristão quanto


um direito natural nacional-socialista.
O jusnaturalismo é o objeto das críticas dos positi-
vistas, e as principais têm como fundamento a recusa ao
cognitivismo ético, isto é, a recusa à tese segundo a qual
existiriam valores objetivos e passíveis de serem conhecidos.
A maioria dos positivistas considera que, pelo contrário, tais
valores não existem. Todavia, não se pode, não importa co-
mo, conhecer o que é, e, como demonstrou Hume (Yin-
rózdo da natureza humana, 1740), desse conhecimento não
se pode deduzir um dever-ser. Do mesmo modo, as ações
são chamadas de corretas ou incorretas não porque possuam
realmente a propriedade de ser corretas ou incorretas, mas
somente em função de nossas preferências. Portanto, a jus-
tiça é, para eles, uma noção apenas e tão-somente subjeti-
va, e, assim, relativa.

2. Os positivism os
O positivismo é também muito diverso, inconstante. Pode-
mos, ainda segundo Norberto Bobhio, distinguir três for-
mas de uso dessa palavra. Por “positivismo” designa-se ora
determinada concepção da ciência do direito, ora uma teo-
ria do direito, ora uma ideologia. Entre esses três aspectos
do positivismo, não existe nenhuma ligação necessária, o
que significa que um autor pode ser positivista sob o pri-
meiro aspecto, sem o ser quanto ao segundo ou ao terceiro,
26 j A FILOSOFIA DO DIREITO

e vice-versa. É possível, por exemplo, aderir a uma concep-


ção positivista da ciência do direito, mas não à ideologia di-
ta upositivista”.
A abordagem positivista pode ser caracterizada pela
convicção de que é desejável e possível construir uma verda-
deita ciência do direito, tendo como modelo as ciências da
natureza, o que implica várias idéias. É preciso, a princípio,
distinguir a ciência de seu objeto de estudo, isto é, a ciência
do direito do direito em si. A ciência é compreendida co-
mo o conhecimento de um objeto exterior. Em seguida, es-
se objeto deveria ser descrito, sem que lhe fossem aplicados
quaisquer julgamentos de valor (postulado da Wrzfreilaez'r
ou da neutralidade axiológica). Enfim, esse objeto não pode
ser nada além do direito positivo, ou seja, o direito “enun-
ciado e estabelecido” pelas autoridades políticas, com exclu-
são do direito natural ou da moral. Em outras palavras, o
termo “positivista” se refere tanto à positividade do direito
quanto à filosofia positivista.
Uma vez que caracteriza uma concepção da ciência do
direito, podemos distinguir duas variantes do positivismo:
o normativismo eo realismo. O primeiro pretende cons-
truir uma ciência segundo um modelo derivado das ciên-
cias empíricas, mas sobre um objeto que__não é empírico: as
normas. De modo inverso, o realismo pretende reduzir o
direito a um conjunto determinado de fatos - os comporta-
mentos dos juízes e fazer da ciência do direito uma ciên-
-
-__

cia empírica.
___...___
o QUE É FitosoFiÀ Do oierro? j 27

No que diz respeito à teoria do direito, os autores a


quem chamamos de positivistas no primeiro sentido defen-
dem teses variadas e, com freqüência, incompatíveis entre si.
Existe, entretanto, um tema comum, ainda que compreenÉ
dido de várias maneiras: aquele da separação do direito e da
moral. Essa tese não significa que, como por vezes se acre-
dita, o conteúdo do direito seria moralmente neutro. Uma
idéia semelhante é rejeitada pelo positivismo, que sublinha,
pelo contrário, que as normas jurídicas exprimem as prefe-
rências morais de seus autores. A separação significa apenas
que o conceito de direito não pode ser definido por refe-
rência à moral, mas somente pela autoridade daquele que o
enuncia ou por sua eficácia. O fato de saber se uma norma
ou ordem normativa pertencem ao direito depende de crité-
rios cuja natureza é amoral: pouco importa que estejam ou
não de acordo com a moral ou com um ideal de justiça.
Com freqüência, criticou-se essa definição do direi-
to pela autoridade da qual ele emana - independentemenÉ
te da conformidade com a moral -, uma vez que ela pode
induzir a chamar de “direito” tanto as regras do Estado na-
zista quanto as de sociedades liberais. Essa crítica é, contu«
do, mal fundamentada, pois a qualificação de direito não é
um julgamento moral. Ela não implica nem que as regras se-
jam justas, nem que seja necessário obedecê-las. É essa defi-
nição, pelo contrário, que permite-zum julgamento moral: é
somente depois de ter estabelecido que um conjunto de te-
gras forma um “direito” que se pode dizer que esse direito
28 | A FILOSOFIA DO DiREiTO

r,
é justo ou injusto. A teoria àdo direito positivista não deve,
portanto, ser confundidaífâo'iñ a ideologia, também chama-
da algumas vezes de upositivismo”, segundo a qual é necessá-
rio obedecer ao direito.
É o terceiro sentido do termo “positivismo” - a
ideologia - que prescreve a obediência ao direito enun-
ciado e estabelecido, ou porque se acredita, como a
escola da exegese na França, que ele seja justo, ou, inde-
pendentemente de seu caráter justo ou injusto, apenas
porque é o direito. Aqueles que censuram o positivismo
por recomendar a submissão ao poder, qualquer que se-
ja ele, e de assim facilitar a dominação dos regimes mais
abomináveis, entendem o positivismo nesse sentido. É
necessário recordar, porém, que, uma vez que se trata de
uma ideologia, esse positivismo está do lado oposto do
positivismo entendido no primeiro sentido, ou seja, co-
mo abordagem, e se aproxima do jusnaturalismo, uma
vez que não se limita a descrever o direito, mas enuncia
julgamentos de valor e prescrições.
ii:
Iv Estado da disciplina
Até pouco tempo, a filosofia do direito era praticada de manei-
ra profundamente diferente, de acordo com os países, a pon-
to de ser possível escrever um livro cujos capítulos tivessem
como tema as diversas tradições nacionais. Na Alemanha, ela
estava desenvolvida, em particular, desde o século XIX, em ra-
o QUE É FitosoFiA Do DIREITO? I 29

zão de diversos fatores, en especial da força da filosofia geral,


mas também em decorrência dos debates sobre a construção e
o papel do Estado. O debate entre jusnaturalistas e 'positivis-
tas foi acalorado nos anos que precederam a chegada dos na-
zistas ao poder. Ele foi retomado depois da Segunda Guerra
Mundial, com significativo investimento político e institucio-
nal em jogo, porque o positivismo foi acusado de ter favoreci»
do a submissão ao poder totalitario, e pelo fato de que certas
idéias jusnaturalistas foram inscritas na nova constituição. Na
Itália, esse mesmo debate pôs em campos opostos católicos
(jusnaturalistas) e leigos (positivistas). Podiam-se também dis-
cernir fortes tendências em diversos países: positivismo analí-
tico na Itália, realismo nos países escandinavos.
Na França, o papel da filosofia do direito foi por mui-
to tempo extremamente fraco. Essa disciplina não era ob-
jeto, como nos países vizinhos, de ensino obrigatório para
todos os estudantes de direito, e eram raras as universidades
que organizavam cursos facultativos para seu ensino nas fa-
culdades de direito ou nos departamentos de filosofia. As-
sim, poucas obras eram escritas ou traduzidas, e a França se
mantinha à margem dos grandes debates. Isso se podia ex-
plicar, em parte, pelo “legicentrismo” francês, ou seja, pe-
la idéia de que a lei é a única fonte do direito e que todas
as outras decisões tomadas pelas autoridades administrati-
vas ou pelos juízes são deduzidas das leis. Do mesmo modo,
os administradores, os juízes ou os advogados, que deverão
apenas aplicar as leis, não terão que se empenhar em tentar
'
“ú-wfl
1.__-w
30 I A FILOSOFIA DO DIREITO

buscar fora dos códigos a solução para os problemas, nem


examinar a questão da natureza do direito ou de seus funda-
mentos, nem tornar a pôr em discussão os conceitos funda-
mentais. Por conseguinte, só têm necessidade de formação
técnica, e as faculdades de direito, há muito tempo, diga-se
de passagem, se autodenominaram “escolas” de direito.
Essa situação, porém, evoluiu tanto na França quanto
em outros países, e as tradições nacionais tornaram-se muito
imprecisas, resultado não só do desenvolvimento das comu-
nicações e do predomínio da língua inglesa, mas também do
fato de que os mesmos problemas se apresentam, agora, em
toda parte, em termos idênticos. As profundas mutações polí-
ticas, econômicas e tecnológicas que afetaram todos os países
ocidentais tiveram, sobre a filosofia do direito, efeitos con-
trários. Por um lado, conduziram à criação de regras novas
incessantemente mais numerosas - portanto, a uma tecnici-
zação extrema das profissões jurídicas e ao desinteresse pelas
questões teóricas. Contudo, por outro lado, as interrogações
sobre os fundamentos dessas regras, a adequação dos concei-
tos jurídicos tradicionais às novas circunstâncias, a apreciação
do papel do Estado e da maneira pela qual ele deve 'assegura-
lo abriram novos campos para a filosofia do direito.
Assistimos hoje ao aumento de volume das mais diver-
sas pesquisas abrangendo as mais variadas áreas. Os congres-
sos e as publicações da Associação Internacional de Filosofia
do Direito nos dão uma idéia dessa diversidade, que diz res-
peito tanto às abordagens quanto aos domínios e aos objetos.
o QUE É FiLosoFiA Do DiRErro? j 31

Os trabalhos se ligam a todas as correntes filosóficas, da fe-


nomenologia ao empirismo lógico, e a todas as ciências hu-
manas, da sociologia à economia, passando pela semiótica ou
pela psicanálise. Os autores dão continuidade às correntes
tradicionais - ao jusnaturalismo e ao positivismo jurídico _,
mas também tentam ultrapassar essa oposição. Certas corren-
tes são, portanto, provenientes do positivismo jurídico, como
o pós-positivismo na Europa do Norte, e outras, do realismo,
como os Critical Legal Studies, nos Estados Unidos.
No que diz respeito aos objetos, pode-se notar um in-
teresse renovado pela matéria e pelo conteúdo essencial do
direito. A filosofia do direito tradicional pesquisava as esÊ
sências do direito e de todas as entidades que este tomava
por objeto: a propriedade, o contrato ou o Estado. De ma-
neira inversa, a teoria do direito de orientação positivista,
porque recusava qualquer discurso metafísico e pretendia se
limitar à descrição mais geral do direito positivo, devia pes-
quisar o que era comum a todos os sistemas jurídicos. Ora,
o que é comum é apenas a forma ou a estrutura do direito,
enquanto a matéria e o conteúdo essencial das regras variam
de forma considerável de um país para outro.
Entretanto, observamos hoje, inclusive entre os posi-
tivistas, o desenvolvimento de trabalhos sobre os conceitos,
os quais ultrapassam o âmbito nacional e são empregados,
necessariamente, para determinar-3 matéria e o conteúdo
essencial das regras. Podem~se fixar regras diferentes para a
aquisição ou para o exercício dos direitos da cidadania, mas
32 A FiLosoFiA Do DiREiTo

a
temos sempre necessidade de um conceito de cidadania.
Não obstante, esses conceitos, ditos ((materiais”, evoluem
e se transformam, seja em função das mudanças tecnológi-
cas, políticas ou econômicas, seja por motivos relacionados
à forma e à estrutura próprias do direito.
Além disso, o conteúdo das regras é o objeto de justifi-
cações de tipo moral ou político, mas é também fundamen-
tado com freqüência sobre argumentos extraídos do próprio
direito. É desse modo que a instituição de cursos de direito
constitucional e' freqüentemente apresentada como conse-
q'úência lógica da hierarquia das normas ou do princípio do
Estado de direito, ou que o aborto é justificado porque diz
respeito à liberdade do indivíduo de dispor do próprio cor-
po ou da interdição justificada em nome do direito à vida.
A filosofia do direito contemporânea, de inspiração
positivista, se esforça não para controlar se as soluções es-
tão, realmente, de acordo com os princípios invocados, mas
para liberar os pressupostos filosóficos das soluções de fun-
do - que pertencem à matéria e ao conteúdo essencial do
direito - e as coerções que conduzem à modificação dos
conceitos materiais3.
A seguir, limitaremos nossa abordagem a algumas das
grandes questões clássicas que dizem respeito sobretudo à
forma do direito e do raciocínio jurídico.

3. Para um exemplo recente, cf. Olivier Cayla 86 Yen Thomas, Du droz't de ne


pas naítre: àpropos de [Íczfišzire Parma/ae (Paris, Gallimard, 2002).
A ciência do
direito

Saber se pode existir uma ciência do direito é uma questão


muito antiga, e as respostas dependem dos múltiplos signi-
ficados atribuídos às palavras “ciência” e “direitoiÍ Michel
Villey desse modo definia uma “ciência do direito clássico
romano [que] se atribui como missão dizer, de forma indica-
tiva, ou seja, de maneira clara e simples, o que é de X ou de
_ Y; as relações justas que ela descobre no seio do organismo
sociais". Essa concepção está estreitamente ligada ao cogniti-
vismo ético, isto é, à tese segundo a qual os valores, corno o
justo ou o belo, têm existência objetiva e são passíveis de ser
conhecidos. É óbvio que essa tese é recusada pelos adversá-
rios do cognitivismo e até por aqueles que, embora aceitem
a tese cognitivista, consideram que o direito não se confun-

1. Michel Villey, Lafimmtz'on de [a penséejurz'dz'que moderna (Paris, Montchres-


rien, 1975), p. 97.
34 | A FitosonA Do DIREITO

de com o justo. Em todo caso, se a ciência é um corpo de


conhecimentos sistematizados, então o direito não pode ser
uma ciência, porque é um corpo de práticas sistematizadas.
Contudo, se o direito não é, em si, urna ciência, po-
demos conceber uma ciência distinta dele, mas que o toma
como objeto, isto é, que se atribui como tarefa descrevê-lo.
Urna ciência semelhante é, aliás, compatível tanto com o
cognitívismo quanto com o anticognitivismo ético. É com-
patível com o cognitivismo se tomarmos como pressupos-
to que o direito é um corpo de valores subjetivos e que a
ciência do direito pode descrevê-los, mas sem participar de
sua criação e sem pronunciar nenhum julgamento ético. É
também compatível com o anticognitivismo se pressupu-
sermos, de maneira inversa, que o direito não é um corpo
de valores, mas um corpo de práticas ou de regras enuncia-
das pelos homens. Todavia, em ambos os casos, a ciência do
direito não pode ser nada se não for radicalmente distinta
do próprio direito, uma vez que o toma por objeto e se li-
mira a descrevê-lo.

Distinção entre direito e


ciência do direito
Essa distinção, que forma um dos elementos da concepção
positivista da ciência do direito, se funda sobre a diferencia-
ção de várias funções e níveis de linguagem e conduz a con-
cepções diferentes da ciência do direito.
A ciÊNciA oo oiRErro 35

1. Proposições e prescrições

A linguagem é composta por enunciados de funções múl-


tiplas. Quanto ao que diz respeito à questão da ciência do
direito, podemos nos limitar às funções indicativa (ou des~
critiva) e prescritiva. Pela primeira, comunicamos infor-
mações, descrevemos o mundo; pela segunda, tentamos
estimular condutas por meio de ordens, conselhos ou reco-
mendações. Pela linguagem descritiva, afirmamos que algu-
rna coisa é; pela prescritiva, que alguma coisa deve ser.
A qualidade descritiva ou prescritiva dos enunciados não
está relacionada à forma gramatical. Pela frase “está frio”, po-
demos comunicar, de acordo com o contexto e com a ma~
neira como a pronunciamos, ou uma informação sobre a
temperatura, ou um desejo de que alguém feche a janela.
Ela pode, portanto, ser tanto urna descrição quanto uma
ordem. De maneira inversa, os textos jurídicos, que expri-
mem ordens, freqüentemente são escritos no modo indicad
tivo. Assim, o artigo 10 da Constituição francesa de 1958,
que dispõe: “O Presidente da República promulga as leis
nos quinze dias posteriores do envio ao Governo das leis
definitivamente aprovadas”, não descreve um hábito adqui-
rido pelo presidente francês, mas ordena ao titular do car-
go que promulgue as leis. Para determinar a natureza dos
enunciados, nos detemos, portantp, antes de qualquer coisa,
a sua função ou significação. Diz-.se` enunciado de significaÉ
ção indicativa ou prescritiva pö'rque exprime uma proposição
36 I A FILOSOFIA DO DlREITO

indicativa (ou somente uma proposição) ou uma prescriti«


va (ou apenas uma prešséçriição). De maneira inversa, uma
prescrição pode ser expressa por enunciados muito diferem
tes. A ordem para que os ladrões sejam punidos com pena
de prisão pode ser expressa, por exemplo, por: “os ladrões
devem ser punidos com prisão”, ou “os ladrões serão puni-
dos com pena de prisão”, ou “os ladrões são passíveis de pe-
na de prisão” etc.
Essa distinção está no fundamento da oposição entre
direito e ciência do direito, pois o primeiro é formado por
uma espécie particular de prescrições as normas -, en-
-
quanto a segunda é feita de proposições. Ora, prescrições e
proposições diferem em vários pontos muito importantes.
Em primeiro lugar, as proposições são suscetíveis de
serem verdadeiras ou falsas, mas não as prescrições. Essa
qualidade das proposições não significa que se saiba sempre
se são verdadeiras ou não, nem mesmo que se tenha a espe-
rança de sabê-lo, mas que podem ser uma coisa ou outra.
Desse modo, “existe vida após a morte” é verdadeiro ou fal-
so, exatamente como “a água ferve a IOOOC”.
De maneira inversa, as prescrições não podem ser nem
falsas nem verdadeiras. Diante da ordem “não fume”, não
se pode responder “é falsa”, mas apenas “me recuso a obedei
cer” ou “o senhor não tem o direito de me dar ordens”.
Disso resulta que, se uma ciência é um corpo de co-
nhecimentos, isto é, um coniunto de proposições tidas co-
A ciÊNciA Do DiREITo 37

mo verdadeiras, e se o direito é efetivamente um corpo de


prescrições, o direito não pode, de maneira nenhuma, ser
uma ciência.
Alguns afirmam, contudo, que as normas podem ser ver-
dadeiras ou falsas. O caráter de não poderem ser verdadeiras ou
falsas, argumentam eles, só diz respeito aos imperativos do tipo
“não fiame”, mas não às normas, que se distinguiriam dos im-
perativos. Com efeito, se nãopodemos responder “e” falso” para
“não fume”, em contrapartida poderíamos responder a “é proi~ '
bido fiamariiz “não é verdadeiro que el proibido fumar”.
Na realidade, essa tese se fundamenta sobre uma con-
fusão -~ aliás, freqüente _ entre o enunciado e a proposição
que ele exprime. Não são os enunciados que são suscetí-
veis de serem verdadeiros ou falsos, mas apenas as propo-
sições. “Não fume” e “é proibido fumar” são tão~somente
dois enunciados diferentes que têm a mesma significação,
a qual se poderia exprimir ainda sob outras formas, como
“não é preciso fumar” ou “não se deve fumar”.
Ora, esses mesmos enunciados podem significar se-
ja uma prescrição ou uma proposição. Ambos significam
prescrição se pudermos compreende-los como uma ordem,
em especial se emanam de alguém dispondo de autoridade,
como um legislador, e nesse caso a prescrição não pode, é
evidente, ser nem verdadeira nem falsa. Todavia, os enun-
ciados podem exprimir proposição se forem pronunciados
por alguém que não dispõe de nenhum poder e que se limi-
38 A FitosoFiA Do DiREiTo

..-_-.__
..___-._-
ta a informar uma prescrição emitida por outra pessoa. Des-
se modo, se um cidadão comum afirma “é proibido fumar
em lugares públicos”, não proíbe a si mesmo de fumar e po-
de até lamentar essa proibição. Limita-se a afirmar que exis-
te uma norma que proíbe fumar.
Além disso, não é a norma que é verdadeira ou falsa,
mas apenas a proposição descrevendo essa norma. Ela é ver-
dadeira se a norma existir, falsa se não existir.
Da mesma maneira que certos enunciados de forma
indicativa exprimem prescrições, outros de aparência pres-
critiva expressam proposições. Não é necessário, portanto,
confundir os enunciados do tipo “para ferver a água é pre-
ciso elevar sua temperatura a IOOOC” com prescrições. A
despeito da presença de um verbo deontológico, esse enun-
ciado não tem a significação de uma prescrição. Exprime
apenas uma norma técnica, muito diferente de uma verda-
deira norma. De fato, não serve para ordenar coisa nenhu-

`.-._
ma, apenas para descrever a relação entre a temperatura da
água e a ebulição. Trata-se simplesmente de uma proposi-
ção, que é, desse modo, suscetível de ser verdadeira ou falsa
e que se poderia expressar da mesma forma com o auxílio de
um enunciado desprovido de um verbo deontológico, co-
mo “a água ferve a IOOOC”. i
v-i-

Em contrapartida, as prescrições, se não podem ser nem


verdadeiras nem falsas, podem ser obedecidas ou não e ser vá-
lidas ou não. Dizer que uma norma é válida significa, aqui,
A clÊNciA Do DiRErro l 39

que foi aprovada por uma autoridade competente, em con-


formidade com outra norma, e que é obrigatória a essa outra
norma; em outras palavras, que ela pertence a certo sistema
normativo, que tem existência no seio desse sistema.
Por vezes se quis fazer da validade uma qualidade das
prescrições, equivalente ao que é verdade para elas, de` ma-
neira a suprimir a diferença entre proposições e prescrições.
Essa tese, entretanto, falha. A verdade de uma proposição
depende de sua correspondência com o mundo. A proposi-
ção é verdadeira se o objeto que ela descreve existe de fato e
se ele possui as características atribuídas. De maneira inver-
sa, a validade de uma prescrição não depende em nada da rea-
lidade de um fato no mundo exterior. Desse modo, enquanto
a proposição utodos os cisnes são brancos” é falsa, desde que
exista um único cisne negro, a prescrição “todos os ladrões de-
vem ser punidos” não perde a validade se alguns ladrões não
forem realmente punidos. E também, mesmo que nenhum
ladrão seja punido, a proposição que descreve a norma vãlida
“os ladrões devem ser punidosJJ é verdadeira.
De outra forma, se podemos derivar de maneira lógi-
ca uma proposição de outras proposições - e, segundo cer-
tas teorias, uma prescrição de uma prescrição -, é impossível
derivar uma prescrição de proposições. Essa impossibilidade,
com freqüência chamada “lei de Hume”, pode ser compreen»
dida com facilidade. Não é porque qualquer coisa é que
qualquer coisa deve ser. A par'tir da constatação de que os
40 A FILoSoFiA Do DiREITo

homens mentem, não se pode inferir que não devem mentir


(ou que devem mentirlser'n 'pressupor, entre a proposição e a
conclusão, um julgamento de valor (é errado mentir) e uma
prescrição (não se deve fazer o que é errado).
Os processos de raciocínio pelos quais tentamos derivar
prescrições a partir de proposições têm sido vivamente criti-
cados e são considerados, a despeito de algumas tentativas en-
genhosas, constitutivos do sofisma naturalistaz. Este é assim
chamado porque uma das premissas tem por objeto, em ge-
ral, um fato habitual da natureza e porque esse tipo de racio-
cínio é característico de certas doutrinas do direito natural.
Disso resulta que a ciência, que descreve o mundo com
o auxílio de proposições, não pode, de maneira nenhuma,
enunciar prescrições. Ela diz o que é, mas não pode dizer o
que deve ser. A ciência do direito, como toda ciência, é inca-
paz de emitir prescrições; limita-se a enunciar proposições de-
nominadas “proposições de direito”, que descrevem normas
que têm existência objetiva, independentemente da ciência
do direito, enquanto o direito é formado por essas normas.
Essa ciência também deve ser pura e isenta de qual-
quer julgamento de valor. Esse ideal de pureza, apresentado
nas ciências sociais sob o nome W/errfrei/¡ez't ou neutralida-
de axiológica, explica o nome dado por Hans Kelsen à sua
doutrina, a teoria pura do direito, a pureza sendo aqui uma

2. CF. jean-Louis Gardies, Lierreur de Hume (Paris, PUF, 1987).


A ciÊNciA Do DiREiTo | 41

característica não do direito em si, que e”, na verdade, de to-


do impuro, mas da teoria. A impossibilidade de enunciar
julgamentos de valor decorre da ide'ia já examinada de que
os valores não são passíveis de ser conhecidos, de modo que
os julgamentos de valor derivam de prescrições, e não o in-
verso: uma conduta não é ordenada porque é boa, mas por-
que é boa em termos da norma que a ordena.
Também podemos caracterizar a ciência do direito co-
mo metalinguagem, pois tem como objeto o direito, que
é, em si, uma linguagem. Essa apresentação permite com-
preender como, quando o direito é apenas um conjunto de
prescrições que não podem ser nem falsas nem verdadeiras, `
é possível construir uma ciência do direito, feita de propo-
sições. A linguagem sobre o direito apresenta características
diferentes daquelas da linguagem do próprio direito.

2. Ciência e metaciência

O raciocínio em termos de metalinguagem conduz à consí~


deração de um terceiro nível de discurso: a linguagem sobre
a ciência do direito. Se esta última é uma metalinguagem
sobre o direito, a linguagem sobre a ciência do direito, tam-
bém chamada “epistemologia jurídica”, constitui, em si,
uma metalinguagem.
Norberto Bobbio observou de forma correta que, no
.__

pensamento de Kelsen, a natureza da linguagem mudava de


_...
'_
42 I A FILOSOFIA DO DIREITO

acordo com os níveisff. Se a linguagem do direito é prescriti-


va, e a metalinguagem da ciência do direito, descritiva, a lin-
guagem do terceiro grau também é prescritiva, uma vez que
consiste em uma recomendação para construir uma ciência
puramente descritiva. Em outras palavras, “ela prescreve des-
crever”. Bobbio, cabe observar, critica essa orientação. Por
um lado, escreve ele, a epistemologia jurídica, igualmente
chamada “metaciência”, assim se afasta da epistemologia das
ciências da natureza, que não prescreve nada, mas se limita a
descrever os procedimentos pelos quais as ciências produzem
conhecimentos. Por outro lado, presta contas muito mal do
verdadeiro trabalho daqueles que escrevem sobre o direito,
os professores, por exemplo, pois estes não se limitam de for-
ma alguma a uma descrição do direito, mas também emitem
recomendações e julgamentos de valor.
A esses argumentos podemos objetar que a metaciên-
cia não pode descrever a maneira como a ciência do direito
produz conhecimentos sobre o direito, se o discurso sobre
este não se apresenta como um corpo de conhecimentos sis-
tematizados. Só é possivel .haver metaciência se houver um
discurso que se faz na qualidade de ciência. Parando por
aqui, não se trata realmente de prescrever e descrever, mas
de indicar as características de que se deveria revestir uma
ciência do direito, se fosse construida sobre um modelo ins-

3. Norberto Bobbio, Esmz's de t/:re'orz'e du droz't (Paris, LGDJ, 1998), pp. 185-6.
A ciÊNoA Do DiRErto l 43

pirado por aquele das ciências da natureza. Existe, sem dú-


vida, mais de uma ciência do direito, outro discurso sobre o
discurso do direito, aquele da dogmática jurídica, que pos~
sui utilidade social manifesta. A metaciência não se ques-
tiona sobre esse outro discurso, mas exclusivamente sobre a
possibilidade de uma verdadeira ciência do direito. Todavia,
existem inúmeras divergências sobre a maneira como con~
vérn conceber essa ciência.

3. Dualisrno e monismo

A prirneira questão é saber se, para ser uma verdadeira ciên-


cia, a ciência do direito deve seguir um modelo metodológi-
co único da ciência, o das ciências naturais, ou se podemos,
ern vez disso, concebê-la como obedecendo a uma metodo-
logia específica. As duas opções não são, alias, nada além do
reflexo da adesão, pelos filósofos do direito, às concepções
mais gerais da filosofia das ciências4. Com efeito, podemos
distinguir uma corrente monista e uma pluralista.
De acordo com a corrente monista, todas as discipli-
nas científicas devem adotar a metodologia das ciências da
natureza, e, em primeiro lugar, a da física, em particular no
que diz respeito ao controle empírico das proposições.
Existe, em contrapartida, um pluralismo metodológiÉ
co. Os autores que se inscrevem* nessa corrente não rejei-

4. Vittorio Villa, Lzz science du droz'r (lãaris, 1..C.DJ, 1991).


44 A FILOSOFIA Do DiREiTo

313

tam a idéia de uma unidade da ciência, a qual provém do


fato de que toda ciência se atribui como tarefa relatar os fa-
tos da experiência sensível, que deve se limitar a explicação
de seu objeto e deve poder controlar de forma empírica suas
proposições. Contudo, também acreditam que existam,
de acordo com os domínios, concepções diferentes do que
constitui a experiência, como a controlabilidade empírica.
Disso resulta uma pluralidade de métodos, sem que nenhu-
ma ciência possa desempenhar para todas as outras o papel
de modelo que certos autores atribuem à física. Alguns não
excluem, ademais, que as ciências da natureza possam por
vezes se inspirar nas ciências humanas.
Compreende-se que, tratando-se da ciência do direito,
o debate gire, em essência, em torno de dois pontos: pode-
se encontrar no direito o equivalente a fatos empíricos? E,
em caso afirmativo, como controlar as proposições da ciên-
cia do direito.>
Esse debate não diz respeito, evidentemente, àqueles
que recusam a distinção entre ciência do direito e direito ou
que só concebem uma ciência do direito como ciência nor»
mativa, entendida como ciência capaz de emitir normass.
Portanto, o debate se desenrola unicamente, no seio da cor-
rente positivista, entre os defensores de duas concepções
das normas. Visto que essas duas concepções são represen-

5. Georges Kalinowski, Querelle de Za science normative: une contribution à la


tbém'ie de ln. science (Paris, LCD), l969).
A oÊNoA Do DiRErro l 45

tações da própria natureza das normas, nós as qualificamos


como ontologias. De acordo com a primeira concepção, di-
ta “hilética”, as normas são entidades ideais, pertencendo a
um mundo de dever-ser, distinto e separado do mundo do
ser. Conforme a segunda concepção, por vezes denominada
“expressiva”, as normas são apenas fatos, são a expressão de
vontades humanas. Na filosofia do direito contemporânea,
encontramos uma ilustração da primeira concepção na cor-
rente normativista, enquanto a segunda é sobretudo repre-
sentada pela corrente realista.

4. A concepção de Hans Kelsen


A vontade de construir uma ciência do direito sobre o mode-
lo das ciências empíricas se choca com uma dificuldade con-
siderável, que diz respeito ao fato de que todas as ciências
empíricas têm por objeto fatos empíricos, enquanto o direi-
to não é um conjunto de fatos empíricos, mas de normas.
A partir de tal percepção, parecem existir apenas duas
possibilidades, ambas descartadas por Kelsen: construir
uma ciência específica tendo por objeto não os fatos, mas os
valores e as normas, ou reduzir o direito a fatos. Kelsen re«
cusa a primeira via - a do jusnaturalismo -, principalmente
porque considera que os valores não são passíveis de serem
conhecidos. Aqueles que invocam o jusnaturalismo não po«
dem descrever valores ou normas dotados de existência ob~
jetiva, porém apenas exprimir suas preferências pessoais.
46 l A FILOSOFIA oo oiRErro

Mas, ainda, Kelsen não pode mais aceitar que se asse-


melhem as normas aos fatos, como fazia o positivismo tradi-
cional, que concebia a norma jurídica seja como uma ordem
ou mandamento provido da ameaça de sanção, seja expri-
mindo a probabilidade de que os homens se comportarão
de determinada maneira. A conformidade ou semelhança
de uma norma a um mandamento ou ordem é inaceitá-
vel, porque as ordens não são necessariamente obrigatórias.
Hart enunciará mais adiante esse ponto de vista com mui-
ta clareza: a ordem do ladrão “a bolsa ou a vida” não é mui-
to diferente da do cobrador de impostos: “se o senhor não
pagar o total do imposto devido antes da data-limite, esta-
rá incorrendo na aplicação e pagamento de multa”. Em am-
bos os casos, estamos diante de uma ordem acompanhada
da ameaça de uma sanção. Contudo, no primeiro caso, não
temos a obrigação de dar nossa bolsa. Somos apenas coagi-
dos a fazê-lo. No segundo, somos igualmente obrigados a
pagar, mas temos também a obrigação de faze-lo. Mesmo
se os dez mandamentos emanam de Deus, não existe obri-
gação de sujeição a eles, a menos que se pressuponha uma
norma geral que dite: “é preciso obedecer aos mandamentos
de Deusii. A emissão de um mandamentoe', portanto, real-
mente um fato, mas este não é uma norma.
Não podemos mais reduzir a norma a um comporta-
mento, como o desejariam os sociólogos do direito, e Kel-
sen não pode admitir essa versão do positivismo, não mais,
A ciência oo amarro l 47

diga-se de passagem, do que podia admitir aceitar o jusnaF


turalismo, pelos mesmos motivos depreendidos da separa-
ção do ser e do dever-ser: a afirmação de que alguma coisa é
não tem a mesma significação da afirmação de que alguma
coisa deve ser. Desse modo, dizer que Pierre tem a obrigação
de pagar mil francos a Paul não equivale a dizer queexiste
certa chance ou forte probabilidade de que Pierre pague es~
sa quantia. É perfeitamente concebível que Pierre pague essa
quantia sem ter a obrigação ou, de modo inverso, que tenha
essa obrigação, mas não a cumpra.
Tendo rejeitado o positivismo jurídico tradicional,
bem como o jusnaturalismo, Kelsen se esforça para encon-
trar uma via intermediária. Do jusnaturalismo, ele retém
que o direito não é um conjunto de fatos, mas de normas
obrigatórias; do positivismo, que a ciência deve se limitar
a descrever seu objeto e se abster de qualquer julgamento
de valor. Na impossibilidade de poder emitir prescrições ou
descrever fatos, a ciência do direito deverá descrever não o
que é, mas o que deve ser. Esse dever-ser que a ciência do di-
reito deve descrever é um dever«ser objetivo, independente
da vontade e das preferências daquele que procede à descri~
ção. É o que deve ser de acordo com o direito. Esse é o ob-
jeto das proposições do direito.
Kelsen acredita, todavia,..que a teoria pura do direito
é uma doutrina positivista. Áciência do direito, tal como
a concebe, apresenta, corn efeito, as características de toda
48 A FILOSOFIA DO DIREITO

*ix

ciência empírica, sem por isso ter Objeto empírico: ela é dis-
tinta de seu Objeto; descreve uma realidade objetiva, pois
toma por Objeto O direito positivo e nada mais; é composta
de proposições, as quais são verdadeiras ou falsas de acordo
com o princípio da verdade-correspondência, isto é, confor~
me a existência ou não, no mundo, de uma norma corres-
pondente à proposição que a descreve. Para dizer a Verdade,
do jusnaturalismo, exceto pela idéia de que o direito é um
dever-ser, Kelsen rejeita tudo, uma vez que não admite a
existência de um direito natural e que, se a ciência do direi-
to descreve muitas normas obrigatórias, não ordena nem se-
quer recomenda que a elas nos submetamos.
Entretanto, essa posição epistemológica - construir
uma ciência que se limita a descrever ao mesmo tempo que
lhe dá por objeto específico a normatividade - se revela exU
tremamente difícil de manter, de sorte que Kelsen se deixa
atacar por toda uma série de críticas, algumas infundadas,
outras justificadas.
Segundo uma das mais difundidas, que emana de Ou-
tros autores positivistas, não existe quase nenhuma diferença
entre a afirmação de que uma ordem como a do cobrador de
impostos exprima uma norma válida ou obrigatória e a pres-
crição de se sujeitar a essa ordem. Alf Ross defende também
que a proposição “o mandamento ou a ordem do cobrador
de pagar o imposto é uma norma valida e obrigatória” equi-
vale à prescrição “é preciso pagar o imposto”, que é uma
A ciÊNciA Do DiREITo 49

norma moral. Kelsen, assim, teria rompidc; com o princí-


pio positivista que ele próprio havia proclamadot3 e não se-
ria nada mais que um quaseflpositz'vz'stóz, ou seja, na realidade,
um jusnaturalistia. Da mesma maneira, para Raz, uma pro-
posição normativa, quer seja moral ou de direito, “exprime
a crença na existência de uma norma válida, e uma norma
constitui um valor”7. Kelsen seria, portanto, cognitivista.
Na realidade, essa crítica é absolutamente injustifica-
da. Ela se funda, na verdade, numa confusão entre a obri-
gação moral, que pode ser absoluta, e a obrigação jurídica
(ou validade), que é apenas relativa. Que diferença existe
entre a ordem do cobrador de impostos, que é obrigatói
ria, e a do ladrão, que não o e'? Não se pode responder a
essa pergunta senão por meio de referência a uma norma,
diferente daquela do cobrador e superior a ela, que ordeÊ
na que a ele obedeçamos e que paguemos a quantia em im-
postos cobrada por ele. Essa norma é a lei de finanças, isto
é, o orçamento. Não existe, é óbvio, nenhuma norma se-
melhante para o ladrão. É exclusivamente em relação a es-
sa norma superior que a ordem do cobrador de impostos é
válida ou obrigatória. Não existe nenhuma obrigação moral
de a ela nos submetermos, e poderíamos conceber um siste-
ma moral contendo uma norma ordenando que não se pa-

6. Alf Ross, Introduction à [empirz'smejurz'dz'que (Paris, LGDJ, 2002).


7. Joseph Raz, Practical Reason and Norms (2. ed., Princeton, Princeton Uni-
versity Press, 1990).
50 I A FILOSOFIA DO DIREITO

gasse imposto se este servisse a ações injustas. Mas, mesmo


se aderirmos a essa moral, devemos, contudo, afirmar que,
de acordo com o direito, é obrigatório pagar o imposto. É,
portanto, inexato que a ciência do direito, que afirma que
uma norma é válida, enuncie uma prescrição.
Assim, afirmar que uma norma é obrigatória é di-
zer não que ela seja absoluta ou moralmente obrigatória,
mas apenas que é obrigatória em relação a uma norma su-
perior. É essa obrigação relativa e nada mais que Kelsen
chama também de ((objetiva”, pois é estabelecida não pe-.
la vontade subjetiva daquele que emitiu a norma, como o
cobrador de impostos, por exemplo, mas por uma norma
superior, a lei, cuja existência é objetiva. Todavia, é preciso
sublinhar - e Kelsen insiste com a maior veemência nesse
ponto - que, se as normas são objetivamente obrigatórias,
ou seja, em relação às normas superiores, o direito, em sua
totalidade, jamais poderá ser, ele próprio, obrigatório. Ao
contrário, a teoria pura do direito “tenta erradicar, porque
a considera errônea, a concepção milenar do direito en-
tendido como sistema de normas dotado de validade nor-
mativa objetiva”.
Tratando-se de proposições por meio das quais a ciên-
cia do direito descreve as normas, Kelsen verifica que elas
não podem ser exprimidas, salvo com a ajuda de um ver-
bo deontológico. Desse modo, a norma “os ladrões devem
_ ser punidos” só pode ser descrita por uma proposição de diÊ
A oÊNoA Do DiREITo 51

reito que tenha a mesma forma lingüística, “os ladrões de-


vem ser punidos”. Nesse último caso, trata-se realmente de
uma proposição, e não de uma norma. A prova disso é que
ela é suscetível de ser verdadeira ou falsa. É verdadeira se,
e somente se, no sistema de direito considerado, existir, de
forma efetiva, uma norma que ordene que os ladrões se-
jam punidos, e falsa se tal norma não existir. É por -essa ra-
zão que o professor de direito que enuncia essa proposição
não expressa sua vontade de que os ladrões sejam punidos.
Ele não afirma, tampouco, que seja absolutamente obriga-
tório punir os ladrões, mas apenas que, se quiserzrzos estar em
confirmz'dezde com 0 direito posz'tz'vo de mlpózz's, então é preci-
so punir os ladrões.
Em contrapartida, a tese de Kelsen vem de encontro a
dificuldades sérias ligadas à concepção hilética das normas,
das quais nos limitaremos a mencionar apenas duas.
A primeira diz respeito às relações com a lógica. Se
uma proposição é verdadeira, podemos disso deduzir logi-
camente que outra também o é. Desse modo, se é verdade
que todos os mamíferos são animais vertebrados e se os ele-
fantes são mamíferos, é igualmente verdade que estes são
vertebrados. Todavia, não se pode deduzir da mesma ma-
neira uma proposição de direito de outra proposição. Da
proposição de direito geral “segu'n'dõio direito francês, todos
os ladrões devem ser punidos”, não se'pode inferir a propo*
ui»

sição particular “Dupont, o ladrão, deve ser punido”, pois


52 A FILOSOFiA DO DIREITO

a norma correspondente .não existe no direito positivo en-


quanto não tiver sido-Âë-ifiifríciada, ou seja, pronunciada de
forma efetiva por um juiz. É possível que não o seja nunca,
de maneira que a proposição de direito, ainda que logica-
mente válida, pode, contudo, ser falsa.
A segunda dificuldade está relacionada à construção
de uma ciência. Toda ciência deve poder determinar as con-
dições pelas quais suas proposições podem ser consideradas
verdadeiras. Ora, uma proposição de direito deve descrever
uma norma e só será verdadeira se a norma corresponden-
te existir no direito positivo - em outras palavras, se a nor«
ma for válida. Entretanto, a ciência do direito é incapaz de
dizer se essa norma existe de forma efetiva. De fato, se a
validade não é uma qualidade empírica, não pode ser veri-
ficada. Sem dúvida, uma norma é válida, segundo Kelsen,
se tiver sido formulada em conformidade com uma nor-
ma superior. É preciso, portanto, que essa norma superior,
ela também, exista, mas como determinar sua existência? O
problema é simplesmente desdenhado, mas não pode sê-lo
indefinidamente. A norma superior é válida se foi enunciafl
da em concordância com uma norma ainda superior a ela,
e assim por diante, até a Constituição. No entanto, a vali-
dade da Constituição não pode ser demonstrada da mesma
maneira, porque não existe mais nenhuma outra norma que
lhe seia superior.
A clÊNciA Do D1RE1T0 53

Por isso, no final da vida, Kelsen abandonou a con-


cepção hilética das normas e se aproximou da concepção ex-
pressiva dos realistas.

5. As concepções empiristas
A tentativa mais bem-sucedida de construir uma verdadeira
ciência empírica do direito (e não apenas uma ciência con-
cebida, à maneira de Kelsen, sobre o modelo das ciências
empíricas) é proeza dos realistas. Essa ciência deve ser for-
mada de proposições suscetíveis de serem verificadas, o que
supõe que tenham por objeto não um dever-ser, mas um
ser, isto é, que tenham por objeto fatos observáveis.
Para Alf Ross, um dos principais representantes da
corrente realista, esses fatos são do tipo psicossocial. Trata-
se, antes de tudo, do comportamento dos juízes. As normas
não existem, com efeito, senão na medida em que se apli-
cam de forma efetiva. Descrever o direito em vigor é des-
crever a norma que o juiz, de fato, aplica. Essa concepção
deve permitir à ciência do direito produzir enunciados que
predigam o comportamento dos juízes. Segundo a célebre
fórmula de um realista americano do início do século XX,
Oliver Wendell Holmes, “as predições do que, efetivamen-
te, farão os tribunais, e nada de mais pretensioso, eis aqui o
que entendo como sendo o direito”8.

8. Oliver Wendell Holmes, “The path of the law”, Harvard Law Review
(Cambridge, vol. X, n. 8, 1897), pp. 457-8.
54 j A FlLOSOFlA DO DIREITO

A dificuldade provém do fato de que, se essa ciência é


realmente empírica, perde toda especificidade e se torna in-
dissociável da sociologia e da psicologia. Se, de fato, se tra~
ta de descrever e predizer o comportamento real dos juízes,
é preciso não apenas pesquisar quais normas ele aplica, mas
também a que partido político pertence ou que igreja fre-
qüenta. Pode-se até caricaturar essa teoria ao dizer que a
decisão do juiz dependia, em definitivo, sobretudo de seu
humor, e este'último, da qualidade da sua digestão.
Outra dificuldade diz respeito às normas. Se estas são -
aplicadas pelos juízes, é necessário, evidentemente, que exis-
tam antes dessa aplicação e que, como admite Ross, eles as
considerem obrigatórias. Contudo, se perguntamos por que
são consideradas obrigatórias, é preciso realmente respon-
der que é por estarem em conformidade com uma norma
superior e, então, retornamos ao esquema kelseniano.
Para outros realistas, entretanto, se o direito é um ob-
jeto empírico, é primeiro porque é um conjunto sistemati-
zado de textos ou enunciados como uma constituição, as
-
leis, os decretos. Esses enunciados têm função prescritiva,
porém sua significação não é vinculada a eles. Ela lhes é atri-
buída graças às atividades dos juristas, em especial ao termo
de um trabalho de interpretação. Como a atividade dos ju-
ristas, os textos são fatos, de modo que a ciência do direito
descreve esses fatos, e as proposições de direito são apenas
. julgamentos da realidade.
A ciÊNcIA Do oiREiTo | 55

Objeto da ciência do direito e


11 . ._. . .
definiçao do direito
Uma vez que a ciência do direito deve descrever seu obje-
to, que é o direito, é importante e útil começar pela defini-
ção. Para os autores que só se preocupam com a construção
de uma ciência, a definição do direito não diz respeito, à sua
essência, nem à sua relação com a justiça, nem à sua função
social. Trata-se tão-somente de determinar o que é possível
estudar à luz de uma ciência específica.
É preciso salientar que, se as definições do direito são
tão numerosas e variadas, é porque não existe no mundo

empírico nenhuma realidade diretamente observável `a qual


poderíamos justapor a palavra udireito”. Ou uma palavra
equivalente em outra língua. Existem apenas comporta-
mentos humanos, os quais podemos compreender tanto do
ponto de vista jurídico quanto de outros pontos de vista.
Naturalmente, isso é verdadeiro para inúmeros obje-
tos. Não se define, por exemplo, uma religião da mesma
maneira, quando se é um fiel, um sociólogo ou um legisla-
dor cioso de reprimir certas práticas sectárias.
Contudo, poderíamos pensar que o direito apresenH
ta essa particularidade de se autodefinir. Poderíamos penñ
sar sobre o seguinte caso: um grupoãde homens e mulheres
está sentado numa sala. Alguns tomam a palavra, outros
lhes respondem. Passado algum tefnpo, um dos homens faz
:gl A F1LosoF1A Do Dmarro

soar uma campainha; alguns indivíduos do grupo levantam


a mão, enquanto outros,'ÍÍ_Íi;ão.'* Do ponto de vista lingüístico,
poderíamos nos perguntar sobre a forma desses discursos;
do ponto de vista sociológico, sobre a composição sociopro-
fissional do grupo; do ponto de vista psicológico, sobre os
sentimentos mútuos; mas, do ponto de vista jurídico, tu-
do isso é indiferente. Em contrapartida, desse ponto de vis-
ra jurídico, poderemos interpretar o que aconteceu, como a
votação de uma lei por assembléia parlamentar. A partir do
conhecimento da natureza dos discursos ou dos sentimentos
mútuos dos membros do grupo, teria sido absolutamente
impossível determinar se uma lei havia sido ou não votada.
Não podemos afirmar, senão após termos pesquisado, se es-
ses comportamentos se produziram em conformidade com
as disposições da constituição acerca da edição de leis. Ape-
nas se estiverem em concordância é que podemos dizer que
uma decisão foi adotada por maioria, que esta é do direito e
tem o nome de lei. Por conseguinte, é o direito que define
urri comportamento humano como criador de direito, e seu
produto, a lei, como sendo do direito.
Seria tentador concluir que a ciência do direito não
tem necessidade de definir seu objeto e que lhe basta repro-
duzir as definições do próprio direito. Além disso, a defini~
ção da lei pela constituição não tem, na realidade, caráter de
descrição das características essenciais da lei, nem da manei-
ra pela qual se utiliza a palavra “lei” na linguagem comum.
A ciÊNciA Do DmEiTo j 57

E uma prescrição. A co--sti°=.:uição ordena reaiírrierrre que se


considere como lei - e que se chame de c:leir' 'uma regra

-
adotada de acordo com certo procedimento,I por cietermi-
nada autoridade. Do mesmo modo, a ciência do direito,
que descreve as normas com o auxilio de proposições de di-
reito, poderia definir a lei a ser descrita com a ajuda de uma
proposição da norma constitucional que a define.
Contudo, é impossivel ficarmos apenas nisso. Po-
demos, com efeito, imaginar que um grupo qualquer de
homens e mulheres, de jogadores ou de internos de um hos-
pital psiquiátrico, se reúna, escreva o texto de uma consti-
tuição, decida que este seja adotado e depois escreva e adote
regras em conformidade com o procedimento previsto por
sua constituição. Essas regras seriam, portanto, as leis no
sentido dessa constituição. A ciência do direito deveria cha-
má-las de “leis”? A resposta é, evidentemente, negativa. Tais
regras não são ccleis”, do mesmo modo que as notas com
que se joga Banco Imobiliário não são dinheiro, na visão
dos economistas.
Portanto, é preciso que a constituição que define a lei
seja uma constituição verdadeira, e não uma pretensa cons-
tituição. Mas o que é uma constituição verdadeira? Não se
pode responder a essa pergunta como se faz com a lei, ao
se referir a uma norma superior que a definiria como cons-
tituição, porque não existe norma superior à constituição.
Desse modo, a ciência do direito não pode descrever as nor-
58 l A FlLOSOFIA DO DIREITO

mas antes de poder identifica-las como normas e não pode


se fiar ou se basear, para isso, numa descrição interna, que
se encontra no próprio direito. Assim, não podemos abrir
mão de uma definição externa do objeto do direito, do di-
reito considerado globalmente, de forma independente da
definição desta ou daquela categoria de normas, e essa de-
finição não pode ser fornecida pela ciência do direito, mas
apenas pela metaciência -- em outras palavras, pela filosofia
ou pela teoria geral do direito.
Existe, para dizer a verdade, grande variedade de defini-
ções do direito, e nos limitaremos àquelas que, com mais fre-
qüência, são aceitas pela filosofia do direito contemporânea.

1. Kelsenl a norma fundamental e a eficácia

Hans Kelsen parte do pressuposto de que é impossível de-


finir de forma isolada uma norma jurídica. Já vimos que
era impossível defini-la pela ameaça de uma sanção e de
distingui-la pela via da ordem do ladrão. Da mesma ma0
neira, é impossível defini-la por seu conteúdo e de distin-
gui-la de outros tipos de normas, porque normas que não
são jurídicas podem ter conteúdo idêntico. Uma norma
jurídica pode, por exemplo, ordenar que paguemos nossos
impostos ou nos proibir de dirigir embriagados, mas nor~
mas morais ou religiosas podem ordenar ou interditar as
mesmas condutas.
A ciÊNciA Do DIREITO 59

Convém observar que essa dificuldade não é própria


das normas jurídicas. Não se pode definir uma norma re-
ligiosa ou moral por seu conteúdo ou pelo tipo de sanção
prescrita em caso de desobediência, porque seria necessário
chamar de norma religiosa ou moral a prescrição emanan»
do de um indivíduo qualquer e ordenando, em nome de
Deus, que se saísse aos pulos e aos gritos, todas as manhãs,
ao redor de uma mesa, sob pena de castigo eterno. A úni-
ca solução é, portanto, chamar de norma aquela que guarda
conformidade com outra, seja porque foi criada em virtude
de um poder conferido por ela, seja porque seu conteúdo de-
ve ser considerado deduzido daquele da norma superior. Em
outras palavras, uma norma, seja ela jurídica, moral ou re-
ligiosa, é aquela que pertence a um sistema de normas ou
sistema normativo, igualmente denominado “ordem norma-
tiva”. Uma norma é jurídica se pertence ao sistema ou à or-
dem jurídica, do mesmo modo que uma norma é moral se
pertence ao sistema ou à ordem da moral.
Entretanto, a definição do direito como sistema jurí-
dico suscita ainda dois tipos de dificuldade.
A) Normaflndózmenm'l. A primeira diz respeito à ma-
neira de definir qual é a norma mais alta. Se uma norma
é jurídica porque está em concordância a uma norma su-
perior, esta última deve ela própria ser uma norma jurí-
dica: é preciso, portanto, que'esteja em concordância a
uma norma ainda superior. Assim, um contrato é uma
60 l A FILOSOFIA DO DlRElTO

norma jurídica se está em concordância com uma lei, e a


lei, com a constituiçãosas não existe norma superior à
constituição. A solução de Hans Kelsen é supor uma nor-
ma fundamental.
A norma fundamental apresenta algumas particulari-
dades. De modo contrário às outras normas do sistema, esta
não é enunciada por uma autoridade qualquer, mas unica-
mente suposta. É também dita hipotética, mas não se trata
de uma hipótese análoga às hipóteses científicas. Na rea-
lidade, ela não pode ser verificada. Melhor, sabemos per-
feitamente que tal norma não existe e que não faz parte
do direito positivo. Contudo, é uma hipótese ou um pres-
suposto necessário para se poder considerar a constituição
uma norma. Por outro lado, ela não tem conteúdo. Tem por
única função permitir que se defina e identifique a cons«
tituição como norma jurídica, sendo considerada não um
simples texto, mas uma norma válida. Então, a constituição
estará apta a definir a lei como norma jurídica válida, que
poderá, ela própria, definir outras normas. Desse modo,
pouco a pouco, a norma fundamental permite identificar
todasi as normas jurídicas e considerar que certo conjunto
de prescrições constitui um sistema normativo.
Assim, a hipótese da norma fundamental é a afirmação
de que tal conjunto de normas forma realmente um direi-
to, e que ele é objeto da ciência do direito. Em decorrência
da apresentação por vezes desastrada que Kelsen fez dela, es-
A ciÊNciA Do DiREITo l 61

sa teoria deu lugar a algumas críticas. Entretanto, desde que


a reformulemos em conformidade com o pensamento pro-
fundo de seu autor, essas críticas devem ser rejeitadas. Ob-
jetou-se, em especial, que, uma vez que ela fundamenta 'a
validade da constituição, a norma fundamental ordena que
lhe obedeçamos. Nada, por conseqüência, distinguiria essa
teoria de uma teoria do direito natural, tendo em vista que,
nos dois casos, o fundamento do caráter obrigatório do di-
reito positivo e' pesquisado numa norma não enunciada.
Na realidade, essa objeção se funda sobre a falsa idéia
de que “validade” é sempre sinônimo de “caráter obriga-
tório”. Ora, como vimos, uma norma jurídica não pode
ser obrigatória senão em relação a outra norma jurídica. A
norma fundamental, que não pertence ao sistema jurídico,
não pode, pois, constituir o fundamento do caráter obri-
gatório da constituição. E apenas do ponto de vista moral
que se poderia afirmar que a constituição é obrigatória, e
não cabe nem à ciência do direito nem à metaciência enun-
ciar prescrições morais. É preciso, portanto, admitir que a
constituição é válida, sem ser obrigatória. A validade desig-
na, simplesmente, que ela pertence ao sistema jurídico, o
fato de que um enunciado tem natureza de norma jurídica.
Faz parte da constituição, bem como do direito em geral.
'i'-
...m-flv-

Qualificar uma ordem normativa de jurídica não é enun-


ciar a norma moral: éprecz'ro se sujeitar às normas que com-
põem essa ordem.
62 l A FlLOSOFIA DO DIREITO

A norma fundamental não é, portanto, uma norma


verdadeira, mas uma decisão epistemológica: a decisão de
tratar determinado conjunto de normas, do qual a constitui-
ção é a mais elevada, como sistema jurídico. É essa decisão
que permite tratar o ato realizado pelo grupo de parlamenta-
res que descrevemos anteriormente não do ponto de vista so-
ciológico ou psicológico, Vmas do ponto de vista jurídico.
Sustentamos, da mesma maneira, que a teoria da nor-
ma fundamental seria tautológica. Fizemos valer a afirma.-
ção de que se pode responder à pergunta: Por que a ora'em
do cooraa'or a'e impostos e' uma norma oa'iiciaš com referên-
cia à lei que habilita o cobrador a ordenar o pagamento do
imposto, e em seguida à pergunta: Por que a [ci e' uma nor~
ma válida), ao remetê-las à constituição, que ordena que se
considere a lei como norma válida. Em contrapartida, à per-
gunta: Por que a constituição é" uma norma va'iialaÊ, Kelsen
não responderia senão ,pela afirmação: A constituição e' uma
norma válida porque supomos que seja oãiida.
Aqui, ainda, a objeção desconhece o alcance da teoria
da norma fundamental, que não visa, de forma alguma, res-
ponder à pergunta: Por que a constituição e' uma norma oa'-
[icia? Para ela, a validade não é uma característica de que se
possa pesquisar a origem ou o fundamento. Pretende tão-
somente pôr em evidência a decisão da ciência do direito
de definir seu objeto, definindo, por estipulação, as normas
às quais se prenderá na descrição, utilizando como recurso
proposições de direito.
A ciÊNciÀ no DiRErro l 63

Entretanto, essa defesa da norma fundamental suscita


nova pergunta: qual é o conjunto de normas que é conve-
niente tratar como sistema jurídico? A decisão não poderia,
evidentemente, ser de todo arbitrária, e esse conjunto deve
apresentar algumas características objetivas.
B) Ordem de coerção. Uma vez que o direito é uma es-
pécie do gênero “sistemas normativos”, é importante distin-
guir outras espécies do mesmo gênero, como a moral ou a
religião. Kelsen utiliza para isso um critério simples: o direi-
to prescreve a título de sanção atos de coerção, em especial
física. Kelsen acrescenta que o direito dispõe do monopólio
da coerção. Isso não significa, é claro, que todas as normas
ordenem comportamentos sob a ameaça de coerção física,
mas que, globalmente, o direito pauta as condutas huma-
nas dessa maneira. Isso não quer dizer, tampouco, que ne~
nhum constrangimento seria exercido, na realidade, fora do
direito, mas apenas que nenhum ato de coerção é legítimo
se não for prescrito por uma norma jurídica.
Então, deparamos com duas dificuldades. A primei»
ra diz respeito à hipótese já abordada dos textos redigidos
pelos internos de um hospital psiquiátrico. Esse conjunto
apresenta grandes semelhanças com um sistema jurídico,
porque cada um dos enunciados infere a significação de sua
relação com outro enunciado de nível superior. Assim, será
preciso, pressupondo para esse É_<~:,onj;t1nto uma norma funda«
mental, dizer que a “Constituição” ëuma norma válida e que
estamos na presença de uma orÊÍ'lem jurídica?
64 A FILOSOFIA DO DIREITO

É nesse ponto que percebemos todo O alcance da teo-


ria da norma fundamental: 1¡como decisão. O valor de uma
decisão depende de sua (utilidade. É necessário pressupor
uma norma fundamental para um sistema normativo se, e
somente se, quisermos trata-lo como direito, porque nisso
encontramos um interesse prático ou teórico, por exemplo,
se quisermos tomã-lo como objeto da ciência do direito.
A tese de Kelsen é que não se deve chamar direito - pres-
supondo-lhe uma norma fundamental senão aquilo que

-
aparece como ordem de constrangimento eficaz, “grosso m0-
do e de maneira geral”. Essa última expressão significa que é
impossível que todas as normas sejam sempre eficazes, mas
que é necessário que, no conjunto, os membros de uma co-
letividade humana se comportem de acordo com O direito.
Se essa condição é, de fato, cumprida, esse sistema consti-
tui objeto interessante para a ciência do direito. Não existe,
portanto, nenhum motivo para tratar o produto da ativida-
de dos internos do hospital psiquiátrico como direito.
A segunda dificuldade é inversa. Quando examina-
mos a diferença entre a ordem do cobrador de impostos
e a do ladrão, admitimos que O primeiro agia em concor-
dância com uma norma superior, enquanto O segundo não
era, evidentemente, autorizado por nenhuma norma. Pode-
mos imaginar, entretanto, que o ladrão faça parte de uma
organização mafiosa e que execute a ordem de um chefe de
quadrilha que lhe seja superior. As diversas ordens formam,
A ciÊNciA Do DIRETO 65

então, um sistema semelhante ao sistema jurídico, e, de for-


ma contrária aos textos produzidos no hospital psiquiátri-
co, não lhes falta eficácia.
Para ultrapassar a dificuldade, é preciso considerar que
a ordem jurídica dispõe do monopólio da coerção, de ma-
neira que os atos de-constrangimento da quadrilha não são,
desse ponto de vista, sanções, mas crimes. Sem dúvida, se-
ria possível pensar que, do ponto de vista da quadrilha, as
coerções são prescritas pela ordem jurídica criminosa. Con-
tudo, basta pesquisar qual é, entre os dois sistemas, o mais
eficaz. Se é o dos ladrões, não há nenhum inconveniente em
considera-lo um sistema jurídico (e toma-lo como objeto da -
ciência do direito), uma vez que essa denominação não sig-
nifica prescrição de obedecê-lo. É bastante freqüente, diga-
se de passagem, que um grupo insurrecional seja designado
pelo governo como um bando de ladrões e tratado como
tal, pois esse grupo se impõe sobre parte do território. Nesse
caso, do ponto de vista da ciência do direito, é preciso con-
siderar que existem dois sistemas jurídicos eficazes e supor
uma norma fundamental para cada um deles.

2. Hart e a regra do reconhecimento

O raciocínio de Hart não é fundamentalmente diferente.


Também ele concebe o direito como um sistema formado
por dois tipos de regras: por um lado, as regras de base ou
primárias, que ordenam ou proíbem certos comportamen-
66 | A FILOSOFlA DO DIREITO

tos; por outro, regras ditas secundárias, que permitem criar,


modificar ou ab-rogar as regras primárias. As regras pri-
márias criam obrigações; as secundárias conferem poderes. i
Mas como identificar as regras que fazem parte do sistema?
Os praticantes do direito, em especial os tribunais, aplicam
uma regra de reconhecimento, que recorre como auxílio a cer-
tos critérios: na Inglaterra, por exemplo, fazem parte do sis-
tema as regras enunciadas em um ato do Parlamento ou que
são derivadas de um desses atos.
A regra de reconhecimento não é enunciada de forma
explícita. Sua existência resulta da prática efetiva dos tribu-
nais e de outras autoridades oficiais. Como a norma fun-
damental, não é ela própria válida e não tem por função
estabelecer a validade das outras regras, salvo se por valida-
de entendermos não o caráter obrigatório, mas a existência
ou o fato de uma regra pertencer a um sistema. É a consta-
tação da regra de reconhecimento que permite à ciência do
direito determinar os limites de seu objeto, uma vez que as
regras que trata de descrever são aquelas identificadas pelos
tribunais. Mas, de forma diversa da norma fundamental, a
regra de reconhecimento não é pressuposta; é uma prática
social verificada pela ciência do direito. _
Como no caso da norma fundamental, o fato de que
a regra de reconhecimento seja constatada e não pressu-
posta permite manter a distinção entre o direito e a ciên-
cia do direito. Essa constatação é, efetivamente, operada de
À ciência Do msmo j 57

um ponto de vista externo ao sistema, tendo em vista que


não implica nenhum compromisso quanto a validade des~
sa prática.

3. Defim'ção formal: a estrutura do sistema


Entretanto, nem a norma fundamental nem a regra de reÉ
conhecimento permitem responder por completo à questão
inicial: quais são os limites do objeto da ciência do direito?
A teoria da norma fundamental é insuficiente, porque, se
pressupomos uma norma tal para sistemas jurídicos efica»
zes, “grosso modo e de maneira geral”, o sistema jurídico não
foi definido senão pela garantia da coerção física. Ora, exis-
tem sistemas normativos comumente chamados de direi-
tos, como o direito internacional ou o direito canônico, que
não são garantidos dessa maneira. Não poderemos, portan-
to, considerá-los sistemas jurídicos, salvo sob a condição de
ampliar sobremaneira a noção de coerção.
Além disso, o objeto deveria ser definido de forma que
fosse suscetível de ser estudado pela ciência do direito, de
acordo com um método homogêneo. Ora, não é absoluta-
mente certo que todos os sistemas normativos garantidos
pela coerção apresentem as características que permitem es-
sa análise. Se considerarmos, por exemplo, que a ciência do
direito deve descrever normas, ie. sÍef,_essas são concebidas co-
mo a expressão de atos de vontade, ela não poderá ter como
objeto sistemas como o direitoë das sociedades ditas primi-
68 A FILOSOFIA Do DlREITo

tivas, que são ordens de constrangimento ou coerção, mas


cujos elementos não saoea expressão de atos de vontade.
A teoria da regra de reconhecimento vai de encontro
a uma dificuldade de outra ordem. Se essa regra correspon-
de à prática dos tribunais e de outras autoridades públicas,
como identificar os tribunais e as autoridades públicas? Evi-
dentemente, não se poderia responder que se trata de auto-
ridades credenciadas por uma regra secundária, tendo em
vista que, por hipótese, ainda ignoramos, antes que ocorra a
aplicação de uma regra de reconhecimento, quais são as re-
gras secundárias que fazem parte do sistema.
Podemos encontrar uma solução para essas dificuldades
ao empregar uma definição estipuladora do direito. A ques-
tão não diz respeito realmente à natureza do direito, mas ape-
nas ao objeto que convém atribuir à ciência do direito. Na
dupla objeto-método, a prioridade pertence ao método.
Se aceitarmos a idéia de que a ciência do direito de»
ve descrever normas jurídicas -`isto é, normas que não se
definem, salvo pelo faro de pertencerem a um sistema -,
é seu nlodo ou método de inclusão que é preciso levar em
conta. Em outras palavras, o que importa não são as pro-
priedades materiais do sistema em seu conjunto, como, por
exemplo, o fato de que o direito emana do Estado, prescreve
atos de constrangimento ou é eficaz; é a maneira pela qual
as normas são integradas ao sistema (cf. “Sistemas estáticos
e sistemas dinâmicos”, p. 97). Ora, uma norma pertence ao
A clÊNciA Do DiRErro | 69

sistema se foi produzida em conformidade com uma norma


superior (ponto de vista dinâmico) e se seu conteúdo não é
contrário a uma norma superior (ponto de vista estático).
Urna prescrição e urna norma jurídica se ela se insere em um
sistema jurídico assim hierarquizado. Nem todos os siste-
mas normativos são hierarquizados dessa maneira. A moral
é um sistema estático. Certos sistemas políticos, fundamen-
tando-se por completo sobre a delegação, são sistemas dinâ-
micos. Já o direito pode ser caracterizado como um sistema
_ ao mesmo tempo estático e dinâmico.
Uma definição semelhante, que, ainda uma vez, não
tem por objetivo a natureza real do direito, nem seu cará-
ter obrigatório, tem inúmeras vantagens, pois permite com-
preender o modo de operação dos produtores do direito,
como os juízes, bem como o da dogmática jurídica. Em am-
bos os casos, averiguamos se tal autoridade estáhabilitada a
produzir uma norma e a lbe atribuir determinado conteú-
do, comparando a forma de produção e o conteúdo des-
sa norma com urna ou várias normas superiores (cf. infm,
pp. 96-7). Também pela mesma via constituímos uma de-
finição do objeto da ciência do direito, urna vez que, se as
normas assim produzidas são normas jurídicas, podem ser
descritas pela ciência.
A segunda vantagem dessa definição é que ela não se
baseia em nenhum pressuposto ontológico, tendo em vis-
ta que as normas jurídicas podem ser enunciados ou a sig-
70 j A FILOSOFIA DO DIREITO

nificação destes, e que essa significação pode ser tanto uma


vontade humana quanto um dever-ser objetivo. Qualquer
que seja o caso, podem ser descritas.
A terceira vantagem é que o direito assim definido é
o direito do Estado moderno, de forma que pode ser com-
preendido como técnica de exercício de poder.

111 Funções da ciência do direito


Uma vez estabelecido que a ciência do direito deve ser dis-
tinta de seu objeto e se limitar a descrevê-lo, uma vez defi-
nido esse objeto, é preciso ainda determinar de que espécie
de descrição se trata. e em que nível de generalidade ela pre-
tende se situar. Que fique claro que as respostas a essa per-
gunta dependem das concepções da ciência do direito e da
natureza das normas.

I. Descrição das normas


Como já vimos, segundo Kelsen, a ciência do direito enun-
cia proposições que descrevem normas. Isso não acontece,
contudo, sem algumas dificuldades, e a mais importante
provém do fato de que as normas não se prestam a ser vis-
tas. Os únicos objetos que se podem observar são textos ou
enunciados. As normas são diferentes de enunciados, pois
são apenas sua significação prescritiva. Todavia, um mes-
mo enunciado pode ter várias significações muito diferen-
A oÊNclA DO DlRErro 71

tes. Por exemplo, o artigo 15 da Constituição francesa de


1958 está redigido da seguinte maneira: “O presidente da
República assina as determinações e os decretos delibera-
dos em Conselho dos ministros”. O artigo pode significar
ou que o presidente tem 0 poder de assinar as determina-
ções e os decretos (ou recusar-se), ou que def/e assináflos.
De acordo com a interpretação escolhida, o artigo 15 ex-
prime uma norma ou outra. Em outros casos, mesmo se
acreditarmos que o texto é claro porque compreendemos os
termos que ele contém, não podemos determinar com faci-
lidade se ele se aplica a este ou àquele caso particular, por-
que os termos são vagos. Assim, o artigo 16 da Constituição
francesa permite ao presidente assumir plenos poderes em
certas condições, em especial se “o funcionamento regular
dos poderes públicos constitucionais for interrompido”. Até
a leitura mais atenta do texto não permite dizer se, naque-
la circunstância concreta, esse funcionamento está de fato
interrompido, se, portanto, o presidente da República está
autorizado a tomar posse de plenos poderes. São as próprias
circunstâncias que precisam ser examinadas.
Como determinar, em todo caso, qual é a norma váli-
da e aplicável em uma situação concreta? Aqui nos encon-
tramos em face de um dilema.
Para começar, podemos-acreditar que caiba à ciên-
cia do direito determinar quais "são ~as normas que os tex-
tos enunciarn e quais são aquelãs que estes subentendem de
72 A FILOSOFIA DO DIREITO

forma lógica. Mas, nesse caso: a ciência não é evidentemen-


te empírica e também nãoiõe'Â-iuma ciência senão em sentido
muito amplo, porque deixa de ser puramente descritiva. Es-
sa ciência se confunde agora, pura e simplesmente, com o
que chamamos de maneira tradicional de dogmática jurí-
dica, que não se pode praticar sem interpretação nem ava-
liação. Desse modo, a dogmática não poderá concluir que
o presidente deve assinar as disposições ou que pode se re-
cusar a assina-las, sem considerar o que deve ser seu papel
no sistema constitucional, o que implica julgamento de va-

_
-_-..._
lor político.

fv-
.
Podemos acrescentar que as normas que a ciência do
direito pretende assim revelar não têm ainda nenhuma exis-
tência no momento em que se pronuncia, uma vez que a
norma não existe senão após ter sido enunciada; ora, a ciên-
cia do direito não tem a capacidade de enunciar normas.
Poderíamos então querer, como Kelsen, descrever ape-
nas normas em vigor ou seja, normas enunciadas -, nor-
-
mas que são a significação de atos de vontade. Todavia, na
hipótese considerada, essas normas não existem antes que
uma autoridade tenha interpretado os artigos da constitui-
ção. O que faz a ciência do direito não e', portanto, uma
descrição, mas, como explicam os realistas, uma previsão do
que fará essa autoridade.
Podemos, entretanto, objetar à concepção realista de
que, se as ciências da natureza formulam muitas previsões, o
A ciÊNciA Do DlREiTo 73

fazem tendo como fiJndamento a descrição anterior de uma


lei causal, enquanto a ciência do direito não pode descrever
nenhuma relação causal.
Urna terceira via consiste em considerar que a ciência
do direito deve se ater ao único fenômeno que pode obser~
var de forma empírica, ou seja, a linguagem.

2. Descrição dos enunciados


Não se pode atribuir à ciência do direito como única função
descrever enunciados, porque ela se reduziria a uma simples
repetição sem interesse. Ela pode, porém, em contrapartida,
se dedicar à reconstrução dessa linguagem.
Essa concepção foi desenvolvida sobretudo por Nor-
berro Bobbio, que se posiciona do ponto de vista de uma
metaciência descritiva (e não prescritiva, como a de Kel-
sen). Bobbio pretende, assim, descrever a ciência do direito
tal como existe na realidade, ou seja, como juristas, profes-
sores, juízes ou advogados a praticam. Ora, essa ciência não
é de todo descritiva, tendo em vista que interpreta e formu-
la recomendações, ou seja, prescrições. Portanto, não pode
ser uma ciência empírica, mas tampouco pode figurar entre
as ciências formais, como a matemática ou a lógica, porque
não pode enunciar proposições verdadeiras ao deduzi-las de
uma série de axiomas.
Por isso, para evitar concluir que essa atividade não
é uma ciência, Bobbio amplia o conceito de ciência em-
74 | A FitosoFiA Do DiREiTo

pregando, aliás, com muita freqüência, de preferência à


expressão “ciência do direito”, a palavra italiana gz'urispru-
denzóz, que denota a atividade ao mesmo tempo descritiva e
prescritiva dos juristas. Essa atividade pode ser chamada de
científica sob a condição de que se compreenda por “ciên-
cia”, em conformidade com as pesquisas do Círculo de Vie-
na, “um sistema de proposições cujas proposições iniciais e
as regras de transformação das proposições são “exatamen-
te definidas, desenvolvendo-se de maneira coerente com as
premissas propostas e as regras dadas”9. Em outras palavras,
é uma linguagem rigorosa e coerente. A tarefa da ciência do
direito seria, portanto, construir essa linguagem a partir da-
quela sem rigor dos enunciados do direito positivo.
Essa concepção suscita, entretanto, uma objeção: mes›
mo se a ciência do direito não for uma ciência empírica,
ainda assim é necessário que tenha referência empírica. Ora,
esse não é o caso, uma vez que os enunciados aos quais ela
chega após a reconstrução não exprimem proposições que
descreveriam outros enunciados. De maneira inversa, se os
compreendermos como proposições descrevendo normas,
não se trata de normas enunciadas.
Podemos então sonhar em distinguir duas atividades
diferentes: a da dogmática jurídica, caracterizada à maneira
de Bobbio, e aquela da ciência do direito.

9. Vittorio Villa, La science du droz't (Paris, LGDJ, 1991), p. 94.


A ciÊNciA oo oiREno 75

3. Distinção entre ciência do direito e


dogmática juridica
É sobretudo nos países de direito escrito, em que se minimi-
za o papel dos juízes na criação do direito, que a atividade
dos juristas é chamada de “dogmática jurídica”. Essa atividaÉ
de tem como objetivo organizar e sistematizar o direito, de
modo a determinar, a partir dos textos que expressam regras
gerais, quais são os casos aos quais essas regras se aplicam e, a
propósito de determinado caso, quais são as regras aplicáveis.
Se a atividade é chamada de ((dogmática”, é porque pressu-
põe a adesão a certo número de idéias, que não são postas em
questão: que o legislador é racional; que os enunciados têm
sentido; que esse sentido pode ser descoberto; que o sistema
é completo, ou que o direito positivo não comporta lacunas
nem contradições, ou então que estas últimas podem ser eli-
minadas por meio de certos métodos; enfim, que se pode,
por intermédio do raciocínio lógico, conhecer a norma apli-
cável a não importa qual seja o caso particular.
Essas idéias não são exatas, e os juristas não podem
completar seu trabalho de maneira satisfatória senão por
meio da enunciação de julgamentos de valor e fazendo es-
colhas, isto é, pelo exercício de sua vontade e pela expressão
de suas preferências subjetivas.
A dogmática jurídica nãof'fš científica. Todavia, isso
não a torna ilegitima. É, na realidade, indispensável, e o sis-
tema jurídico não poderia fuii'lcionar sem ela. A dogmática
76 A FitosoFlA Do DlREwo

jurídica fornece aos juízes, ao mesmo tempo, instrumentos


para determinar as normasêaplicáveis, uma sistematização
dos processos de raciocínio julgados apropriados e legitimi-
dade moral e política. Se efetivamente não se pressupuses-
se que os juízes ou administradores podem conhecer a lei
aplicável a um caso, seria necessário admitir que dispõem
do poder discricionário de decidir de acordo com suas pre-
ferências. Eles não poderiam justificar de forma racional
suas decisões e seria impossível, em um sistema que se au~
todenomina “Estado de direito”, sustentar que obedecer a
essas decisões é obedecer, de maneira indireta, à lei.
Uma vez que a dogmática jurídica não pode ser elimi-
nada, é preferível querer, como Kelsen, substitui-la por uma
verdadeira ciência do direito, ou, como Bobbio, torná-la ri-
gorosa e científica, devemos admitir que a ciência do direito
deve encontrar seu lugar ao lado dela e revestir-se de carac-
terísticas diferentes.
A diferença entre ciência do direito e dogmática ju-
rídica diz respeito ao objeto e ao método. O objeto, tendo
em vista que a ciência do direito tem por escopo a norma
em vigor; a dogmática, a norma aplicável. O método, uma
vez que a ciência do direito descreve, enquanto a dogmáti-
ca recomenda.
Se a norma em vigor ê a significação de um enuncia-
do, não existe norma enquanto essa significação não tiver
sido estabelecida (cf. os desenvolvimentos sobre a interpre-
A ciÊNcIA Do DiREiTo 77
I

tação no capítulo 4, cT) raciocínio em direitox). Além dis-


so, o legislador não deve ser considerado autor da norma,
pois só é autor do enunciado. Descrever uma norma em vi-
gor não é descrever o ato de produção de um enunciado,
nem o próprio enunciado, mas o ato pelo qual uma auto-
ridade pública, como, por exemplo, um tribunal, atribui
a esse enunciado uma significação. Esse ato, denominado
“interpretação jurídica”, cria uma obrigação oficial de dar
ao enunciado determinada significação objetiva.
A dogmática jurídica não pode se limitar a descre-
ver as normas em vigor. Se para ela se trata de sistematizar
o direito positivo e apresentádo de acordo com uma fór-
mula sintética, como o direito cz'vz'lfiancês éfindamentado
no princzjoz'o da autonomia da vontade, ela não pode conse~
guir isso ao descrever um ato de interpretação jurídica, pois
nenhum ato atribuiu oficialmente essa significação a um
enunciado ou mesmo a um conjunto de enunciados. A dog-
mática jurídica deve exprimir, ela própria, esses princípios,
seja pela generalização a partir de um número muito grande
de normas em vigor, seja pela descrição da ideologia na qual
se inspiram os legisladores.
Da mesma maneira, a dogmática jurídica pode querer
auxiliar a solução de um problema novo, para o qual não
exista norma específica em vigor. Existem apenas enuncia-
dos gerais, que não foram objeto de interpretação oficial, e
a dogmática deve recomendar uma. Mesmo se essa inter-
78 l A FILOSOFIA DO DIREITO

__”-fi-
pretação oficial existir, a significação que resulta disso não
é a norma específica pesquisada, mas uma norma geral. É a
partir da norma geral, ou da significação recomendada pelo
enunciado geral, que se pode inferir uma solução particu-
lar. Todas essas operações são prescrições e pressupõem jul-
gamentos de valor. Por conseqüência, a dogmática jurídica
não pode pretender ser uma ciência, uma vez que tem co-
mo fundamentos avaliações e resulta em prescrições, e não
em proposições indicativas. l
Em contrapartida, a ciência do direito continua sen-
do uma ciência empírica. A proposição de direito “existe
uma norma segundo a qual e obrigatório p” descreve um fa-
to empírico, o ato pelo qual uma autoridade atribuiu a um
enunciado (ou a um conjunto de enunciados) a significação
de que é obrigatório p. Essa proposição pode ser verifica-
da de forma empírica. E verdadeira se o acontecimento que i
descreve tiver ocorrido de fato.
Por outro lado, pode descrever não somente o produ-
to do ato de interpretação, mas o processo que a isso con-
duz, isto é, o conjunto de constrangimentos ou coerções
que contribuíram para determinar a decisão.

4. Causalidade e imputação
Uma das dificuldades ligadas a construção de uma ciência
empírica do direito provém do fato de que as ciências em-
A oÊc-x Do DiREno l 79

píricas não se limitam a descrever os fenômenos, mas tam-


bém a pesquisar suas causas.
Já vimos que, se reduzirrnos o direito a fatos sociais,
podemos pesquisar explicações causais para esses fatos, mas
perdemos a especificidade da ciência do direito, que assim
se reduz a um ramo da sociologia e se vê diante da incapaci~
dade de compreender o processo de raciocínio dos juristas e
a especificidade do direito.
De maneira inversa, urna ciência que descreve normas
não pode ser uma ciência causal. Foi Kelsen quem ressaltou
essa impossibilidade com a maior veemência. A causalida-
de é uma relação entre dois fatos, visto que, se o primeiro
fato se produz, o segundo se produz necessariamente. Des-
se modo, “se aquecermos a água a IOOOC, ela ferve”. Uma
norma também estabelece uma relação entre dois fatos, vis-
_ to que, se o primeiro se produz, o segundo deve se produ-
zir. Assim, c“se alguém rouba, deve ser punido com pena de
prisão”. Essa relação tem a formulação c“se A é, então B deve
ser”, e Kelsen a denomina “imputaçãoiÍ Ela não é, contudo,
necessária, porque pode muito bem acontecer de alguém
roubar e não ser punido. A relação causal pode ser descri-
ta pelas ciências da natureza, enquanto a relação de impu-
tação não é descrita, mas criada pela norma. Ela é prescrita.
A proposição que descreve um'af'irelação causal deve ser ti-
da como falsa se acontece umw Único caso em que o primei~
ir:

ro fato se produz, mas não o segundo, enquanto a norma,


80 l A FILOSOFIA DO DIREITO

2:'

que já sabemos não ser =nem verdadeira nem falsa, não per-
de a validade se o segundoãfífato não se produzir, isto é, se ela
não for aplicada. i
Nesse ponto, ainda não estabelecemos a diferença en-
tre as ciências da natureza e a ciência do direito, mas apenas
entre as ciências da natureza e o próprio direito. Contu-
do, de acordo com Kelsen, a ciência do direito, ainda que
enuncie proposições e não normas, não pode ser uma ciên-I
cia causal, pois, da mesma maneira que as normas não esta-
belecem relações causais, as relações entre duas normas não
são relações de causas e efeitos, mas de imputação. A consti-
tuição prescreve, por exemplo: “se o Parlamento aprova um
texto, então este deve ser tido como lei”. Tem»se, portanto,
a formulação: c“se A é, então B deve ser”, e a relação entre lei
e constituição é realmente de imputação.
De maneira semelhante, não existe relação causal en-
tre norrnas e fatos, porque tal relação não pode existir senão
entre dois fatos. Sem dúvida, uma norma é, em geral, tor-
nada pública por intermédio de éditos, com a esperança de
que os homens adotem o comportamento prescrito, mas,
mesmo se for o caso, não é a norma em si mesma a causa
de seus novos comportamentos, mas apenas a consciência
que eles têm dela, ou seja, um fato psíquico. A prova disso
ê que os homens podem ter a ilusão de que exista uma nor-
ma e modificar seus comportamentos para ficarem de acor-
do com essa norma imaginária.
A ciÊN ciA Do DiREwo 81

Mesmo se aceitarmos reouzir a norma a u o raato

-
por exemplo, a expressão da vontade de um homem de que
outros homens se comportem de determinada maneira -,
não poderemos analisá-la estabelecendo uma relação cau-
sal, porque podemos querer que alguém adote determinado
comportamento, mas não podemos causá-lo. Então, serão

somente as relações entre essas normas e outros fatos que


poderão ser compreendidas corno causais. É, aliás, exata-
mente isso que faz a sociologia do direito.
Assim, para considerar uma causalidade específica do
direito, é preciso ao mesmo tempo reduzir as normas a fa~
tos, isto é, a atos pelos quais certos homens enunciam sua
vontade, e pesquisar se, entre esses diferentes atos, podem
existir relações de causalidade10

10. Cf. Véronique Champeil-Desplats, Christophe Grzegorczyk 86 Michel


Troper (orgs.), Théorie de: contraz'nresjuridiques (Paris, LGDJ, 2005).
A estrutura f*

1 Ezifrrr 'í
Mx-ø'f
'l
do direito W

É freqüente definir direito como um conjunto de normas


jurídicas, pois essa definição parece ordenar que exponha-
mos a natureza dos elementos as normas - antes de exami-

-
narmos as propriedades do conjunto que elas formam. Na
realidade, verificamos rapidamente que é impossível definir
o conjunto por seus elementos, porque estes só extraem suas
características do fato de pertencerem ao conjunto.

I Normasjurídicas
1. Definição de normasjurídicas

As tentativas mais bem-sucedidas de definir um conceito


operante de “normas jurídicas” consistem em fazer uma esÉ
pécie do gênero “normas”. As,,no_rrnas propriamente ditas
pertencem à classe das diretivas,"ou seja, dos atos de linguaÉ
gem por meio dos quais se proicura influenciar a conduta de
84 l A FILOSOFIA DO DIREITO

3-
El

outrem. No entanto, as-pr'escrições não se confundem com


os enunciados, pois correspondem apenas a urna função da
linguagem e constituem a significação dos enunciados, sem
que esta esteja necessariamente ligada a uma forma gramati-
cal qualquer (cf. capítulo 2, “A ciência do direitoi').
As diretivas podem ser mais ou menos duras. Pode-
se tratar de ordenamentos, mas também de conselhos, con-
vites, sugestões, pedidos etc. As diretivas mais duras - por
exemplo, os ordenamentos ou as ordens de fazer ou não
qualquer coisa - são chamadas de “prescrições”. Quanto às
normas, estas são diretivas válidas ou obrigatórias em deter~
minado sistema.
Entre as prescrições figuram também diretivas que não
são ordenamentos propriamente ditos. Trata-se de permis~
sões e habilitações. Existem, contudo, tentativas de recolocar
essas diretivas entre os ordenamentos. Alguns, por exemplo,
defenderam que a permissão era a ab-rogação, no mínimo
parcial, de uma proibição anterior ou a promessa de não pu-
nir certo comportamento, ou ainda o fato de não ordenar
nem determinado comportamento nem o comportamen-
to contrário. Assim, “é permitido fumar” significaria “não
é obrigatório fumar nem obrigatório não fumar”. O mes-
mo se aplica à habilitação, pela qual se dá a alguém o poder
de produzir normas. Se alguns tentam relacionar a habilita-
ção à permissão, outros consideram que se trata de uma ca-
tegoria autônoma.
A ESTRUTURA DO DIREITO I 8 5

De acordo com o filndador da lógica deorrtológica,


Von Wright, podemos caracterizar as normas pelos elemen-
tos a segui-rlz `
a) Pelo caráter, ou seja, pela determinação de uma ação
como obrigatória, proibida ou permitida.
b) Pelo conteúdo, ou seja, pela ação que é obrigatória,
proibida ou permitida - por exemplo, matar, pagar
impostos, se casar, fumar etc.
c) Pelas condições da aplicação, ou seja, pelas circuns-
tâncias de acordo com as quais a ação deve ser exe-
curada. Se as condições são apenas pressupostas pelo
conteúdo, a norma é catego'rz'ctz. Assim, ccfeche a por-
ta” é categórico, porque se pressupõe que haja apenas
uma porta e que esta esteja aberta. Em contrapartida,
é hipotética se são indicadas outras condições que de-
vem ser reunidas para que a conduta seja obrigatória,
proibida ou permitida. É a idéia que Kelsen exprime
quando indica que a norma apresenta a formulação
“se A é, então B deve ser”. Por exemplo, “se alguém
rouba, deve ser punido com pena de prisão”.
d) Pela autoridade que enuncia a norma. As normas
podem ser ditas ccautônomas”, se emanam da mes-
ma pessoa que deve executar a ação prescrita, ou
ccheterônimas”, se emanam de outra pessoa.

l. Georg Henrik von Wright, Norm and action: tz logica! enquity (Londres
,
Routledge, 1963).
86 l A FILOSOFIA DO DlREITO

e) Pelos sujeitos, isto é, pelos destinatários da norma -


aqueles que devem executar a ação. As normas podem
ser gerais ou individuais. São gerais e denominadas
“regras” se têm por destinatários uma classe de sujei-
tos, como, por exemplo, todos os assalariados ou to-
dos os pais. Permanecem sendo gerais mesmo se a
classe compreende apenas um único indivíduo. Desse
modo, “o presidente da República promulga as leis”
tem por destinatário todo indivíduo que exerce a fun-
ção de presidente da República. As normas são indi-
viduais se um ou muitos destinatários são designados
por seus nomes por exemplo, “são proclamadas elei-
-
tas as pessoas cujos nomes seguem”.
Essa distinção é importante do ponto de vista do di-
reito positivo porque, em certos sistemas jurídicos,
as normas gerais e individuais não estão submeti«
das ao mesmo regime. Também o é da perspecti»
va da teoria do direito, porque permite tratar não
só de regras, mas reconhecer que as obrigações do
direito privado não estão submetidas a uma esfera
diferente da das obrigações do direito público, do
mesmo modo que aquelas que decorrem de contra-
tos não são de natureza diversa daquelas enunciadas
pela lei.
mporal
f) Pela ocasião, isto é, pela localização espaciote
na qual a ação deve ser executada.
A ESTRUTURA DO DlRElTO l 87

g) Pela promulgação, ou seja, pela formulação da norma


por meio de um sistema de símbolos, como a lingua»
gem escrita, oral ou gestual, permitindo ao destinatá-
rio ser informado do conteúdo de sua obrigação.
h) Pela sanção, ou seja, pela pena da qual está amea-
çado o destinatário se não estiver em concordância
com a prescrição.
Trata-se aqui das características gerais de todas as norÉ
mas, que, segundo alguns, deveriam permitir distinguir entre
os diversos tipos de normas (morais, religiosas, sociais e jurí»
dicas). Conseqüentemente, em relação ao conteúdo, o direito
regeria os comportamentos exteriores, e a moral, os interiores;
as normas morais seriam categóricas, enquanto as jurídicas,
hipotéticas; as primeiras comportariam apenas uma sanção
interna (remorso ou reprovação social), e as segundas, uma
sanção externa, implicando, em particular, a coerção física.
Entretanto, essas tentativas não são satisfatórias: não
se pode conseguir isolar características próprias unicamen-
te das normas jurídicas. É assim que, se a norma jurídica é
realmente hipotética, as não-jurídicas também o são. Se nos
ativéssemos a esse critério, não poderíamos, por conseguin-
te, distinguir, por exemplo, “se chove, então você deve levar
um guarda-chuva” de uma norma jurídica.
Da mesma maneira, as nor-mãslnão podem ser distintas
pelo conteúdo, pois não existe ação liurnana que não possa ser
regrada pelo direito Alguns chegam a considerar que mesmo
88 l A FiLOSOFiÀ DO DiREITO

r como um pás-
ações necessárias (respirar).ouzimpossíveis (voa
ica. As primeiras
saro) podem ser objeto deuma norma juríd
s. O fato de que
podem ser proibidas, e as segundas, ordenada
só que a sanção
sejam necessárias ou impossíveis significa tão~
deverá sempre ser aplicada.
inguir se-
De modo semelhante, ainda é impossível dist
a. De acordo com
gundo a autoridade que enuncia a norm
emana, de forma
certas teorias, a norma jurídica é aquela que
to, não se pode iden~
direta ou indireta, do soberano. Entretan
ação de que
tificar o soberano de outro modo senão pela afirm
quem se tem o há-
é aquele que tem o direito de ordenar ou a
definimos a norma
bito de obedecer. Assim, no primeiro caso,
por referência a outra
não por uma característica própria, mas
er), enquanto no
norma (aquela que confere ao soberano o pod
ica de uma norÉ
segundo não se pode distinguir a norma juríd
ecem ao papa".
ma social qualquer, do tipo “os católicos obed
üência é a
Contudo, o caráter invocado com mais freq
emente das nor-
existência de uma sanção específica. Diferent
ntida por uma san-
mas morais, a norma jurídica seria gara
simples normas de
ção externa; distinguindo~se da sanção de
institucionali-
comportamento social, a sanção jurídica seria
ção e infligida por ór~
zada, isto é, determinada por antecipa
gãos especializados.
ciente pa-
Todavia, esse caráter não fornece critério sufi
independente do
ra caracterizar a norma jurídica de forma
sistema normativo ao qual ela pertence.
A ESTRUTURA DO DIREITO l 89

Observamos, com efeito, que' a ordem do ladrão, ca í

bolsa ou a vida”, comporta, na realidade, uma sanção ex-


terna. Além disso, mesmo se adotarmos um conceito muito
amplo de sanção,uque englobaria as sanções ditas positivas,
como as recompensas, existem, em grandíssimo número,
normas jurídicas desprovidas de qualquer sanção, como, por
exemplo, as que conferem poderes ou determinam a manei-
ra de produzir certos feitos jurídicos. As normas do tipo c(a
lei é votada pelo Parlamento” ou “todo homem tem o direito
.de se casar” não comportam, é evidente, nenhuma sanção.
Poder-se-ia objetar que a sanção com a qual o ladrão
ameaça a vítima não é institucionalizada, mas institucionali-`
zação significa, de modo preciso, que a sanção será infligida
por outra autoridade, diferente daquela que emitiu a norma.
Esta última é, portanto, bem identificada pela relação com
um sistema.
Salientamos ainda que as normas que conferem poder
comportam o equivalente a uma sanção: a nulidade. Assim,
uma lei que fosse aprovada por uma autoridade que não o
Parlamento, ou ao termo de um procedimento diferente da-
quele prescrito, não seria válida, da mesma maneira que um
casamento celebrado de acordo com outro procedimento
não seria válido. Um tribunal poderia, portanto, decretar a
nulidade dessas normas.
*___-...___ _ F_,....,__..-.--e=-

Contudo, até aqui, não definimos essas normas isola-


damente. São fragmentos de normas ou, em termos kelsenia-
,___
90 l A FlLOSOFIA DO DIREITO

nos, “normas não independentes”. A norma “a lei é votada


pelo Parlamento” não pode ser compreendida como norma
senão em relação ao conteúdo da lei votada. Se essa lei dis-
põe que os ladrões devem ser punidos com prisão, então a
norma completa pode ser reconstituída do seguinte modo:
“se o Parlamento vota uma lei, e se esta dispõe que os ladrões
devem ser punidos com pena de prisão, então os ladrões de-
vem ser punidos com pena de prisão”.
De maneira geral, a partir do momento em que se fala
de sanção institucionalizada, têm-se em vista, no mínimo, três
normas. Primeiro, uma norma geral que prescreve que, “se A
é, então B deve ser” (se alguém comete um roubo, deve ser pu-
nido com pena de prisão). Depois, aquela que confere a um
tribunal o poder de infligir penas de prisão. E por fim a sen-
tença, que é uma norma individual segundo a qual esse tribu-
nal infligirá a sanção (o ladrão Xdeve cumprir pena de prisão).
Essa apresentação é, na realidade, bastante simplificada e se-
ria necessário acrescentar especialmente as normas segundo as
quais são nomeados os indivíduos que comporão o tribunal e
aquelas pelas quais Xé processado e depois denunciado peran-
te o tribunal. Todas essas normas formam um sistema, e ca-
da uma delas pode ser identificada como norma jurídica, não
em virtude das características próprias,”mas pela relação com
as outras. Nessas condições, pouco importa que a norma em
-
__..._._._.-_---_-

si prescreva uma sanção. Basta, para ser jurídica, que pertença


a um sistema normativo, ele próprio chamado jurídico.
A,'._..__.._.._-.-._.._-.--
A ESTRUTURA DO DIREITO 91

É necessário, portanto, corrigir a definição inicial. Co-


mo aponta Bobbio:

O direito é não uma coleção de normas jurídicas, mas um


conjunto coordenado de normas; uma norma jamais se
encontra só, mas está sempre ligada a outras normas, com
as quais forma um sistema normativo.

Desse modo, efetuamos uma inversão de perspectiva.


Não se define mais o direito por seus elementos, as normas
jurídicas, mas as normas jurídicas por pertencerem ao siste«
majurídico.
Assim, seria possível acreditar que tudo o que fizemos
foi apenas rechaçar o problema e que é necessário poder
distinguir direito ou sistema jurídico dos outros sistemas
normativos. Todavia, essa é uma tarefa muito mais sim-
ples, porque é possível defini-lo, à maneira de Kelsen, como
ordem normativa globalmente garantida pelo constrangi-
mento ou pela coerção e porque podemos observar que esse
sistema apresenta uma estrutura diferente daquela de to-
dos os outros sistemas normativos. É possível, a partir desse
momento, tomar essa estrutura corno critério da definição
do direito.
Não obstante, antes de desçriever essa estrutura, é im-
portante examinar uma tese segundo a qual o direito não se
compõe unicamente de normas.
92 I A FILOSOFIA DO DIREITO

z.,
2. Normas e principios í V
Essa tese é defendida hoje'shidbretudo por Ronald Dworkin. Pa-
ra estabelecer a distinção entre princípios e normas, Dworkin
se apóia em uma decisão do Tribunal de Recursos de Nova
York, de 1889, Riggs versus Palmer? Um homem havia assas-
sinado o avô para herdar sua fortuna. Fora preso e condenado
à prisão, mas pretendia, a despeito disso, receber a herança,
uma vez que o avô estava morto e o testamento o designa-
va como herdeiro. Segundo as regras em vigor, sua pretensão
era perfeitamente fundada. Contudo, o tribunal a indeferiu
ao evocar um princípio não-escrito, segundo o qual ninguém
pode obter lucro de um mal que causou a outrem.
DWorkin extrai desse exemplo as seguintes lições:
a) diferentemente das regras ou normas, que são enun-
ciadas e expressam a vontade de uma autoridade,
o princípio não é enunciado, mas descoberto pe-
lo juiz;
b) quando se obedece ou não à norma ao adotar ou
não a conduta prescrita, a obediência ao princípio é
suscetível de graus;
c) o princípio é de natureza moral;
d) o princípio não é universal, pois existem muitos ca-
sos em que se pode obter lucro do mal que se cau-
sou a outrem;

2. Ronald Dworkin, Prendre [es droits au sérieux (Paris, PUF, 1996), p. 80.
A ESTRUTURA DO DIREiTO 93

e) o princípio permite suspender a aplicação de uma


`regra válida ou lhe acrescentar exceções.
A questão da existência de princípios jurídicos dife-
rentes das normasliinclui, para Dworkin, um investimen-
to importante, pois implica, segundo ele, uma rediscussão
do positivismo.
O positivismo conteria, com efeito, a tese de que o di-
reito nada mais é que um conjunto de normas enunciadas,
e que a função dos juízes consiste em aplica-las aos litígios
submetidos à apreciação deles. Todavia, como nos casos di-
fíceis, as regras em vigor não fornecem a solução; os juízes
devem escolher uma de maneira discricionária. De manei-
ra inversa, a tese de DWorkin conduz a admitir que, mesmo
nos casos difíceis, o juiz pode sempre encontrar a solução no
direito em vigor, bastando, para isso, que descubra um prin-
cípio aplicável. Na maioria das vezes, não se tratará de um
princípio enunciado. O juiz o descobre por esforço de abs»
tração, a partir do conjunto do direito. Realmente, como os
princípios constituem o fundamento das regras, o conheci-
mento destas pode conduzir à descoberta dos princípios que
as fiindamentam. Desse modo, existe, para todo litígio, uma
única solução correta, uma única “resposta certa”, e o juiz
não dispõe de nenhum poder discricionário.
Outra tese positivista diz respeito à distinção do di-
reito - produto da vontade - e da ciência do direito - co-
nhecimento puro. A tese de Dworkin conduz à recusa dessa
94 j A FitosoFiA Do DiREITo

distinção, uma vez que os princípios não são enunciados,


mas descobertos, e que a afirmação relativa à existência e ao
conteúdo de um princípio é, ainda que emane de um juiz,
suscetível de ser falsa ou verdadeira.
Uma terceira tese positivista leva, como vimos, à sepa-
ração entre direito e moral, que Dworkin contesta, já que os
princípios, que fazem parte do direito, são, na opinião de-
le, de natureza moral.
Contudo, essa teoria se expõe a sérias objeções. Para co-
meçar, as normasV podem ter conteúdos diversos, ser mais ou
menos gerais e impor condutas com mais ou menos precisão.
O fato de que os princípios não imponham uma conduta pre-
cisa não significa, por conseguinte, que não sejam normas.
Depois, não é verdade que o juiz possa “conhecer” os
princípios e chegar à “resposta certa”. Se o princípio consti-
tui o fundamento de uma ou de várias regras, é porque es-
tas poderiam ser deduzidas. Ora, mesmo uma regra poderia
ser deduzida de vários princípios diferentes, e Dworkin de-
ve admitir que o juiz deva descobrir o princípio suscetível
de fornecer cca melhor justificativa possível” para as regras
em vigor. Em outras palavras, a afirmação do princípio é o
produto de um julgamento de valor por parte do juiz e ex-
prime suas próprias preferências. É uma'vdecisão, e esta não
é suscetível, na realidade, de ser verdadeira ou falsa. A de-
cisão é válida em si mesma não porque seria a única corre-
ta ou porque refletiria uma norma moral, mas unicamente
A ESTRUTURA DO DlRElTO 95

porque o juiz está autorizado, por uma norma superior, a


decidir litígios.
Enfim, a tese positivista da separação do direito e da
moral não significa em absoluto que o conteúdo das nor-
mas jurídicas não corresponda nunca ao das normas morais.
Pelo contrário, tal correspondência é freqüente, tendo em
vista que as normas jurídicas são enunciadas por homens,
que pretendem submeter a conduta de outros homens às
normas morais que têm as preferências deles. Os positivistas
sustentam apenas que o caráter jurídico de uma norma é in-
dependente de sua conformidade a uma norma moral. Uma
norma não é jurídica porque está de ocordo com uma nor-
ma moral e não perde a natureza jurídica se lhe for contrá-
ria. O fato de que os princípios jurídicos sejam semelhantes
aos princípios morais não permite concluir que tenham em
si mesmos natureza moral.
Portanto, os princípios não são nada além de normas,
que não se distinguem das outras senão pelo elevado grau
de generalidade ou pelo caráter vago ou programático. Po»
dem, sem dúvida, ser escritos ou não, explícitos ou implíci-
tos, mas esse é um caráter que têm em comum com outras
normas. Aliás, na prática, é corrente designar certas nor-
mas, em determinado momento, pela palavra “princípio” e,
no instante seguinte, pela palayrafffregra”. Desse modo, fa-
lamos indiferentemente do “principio da separação dos po-
deres” ou da “regra da separação dos poderes”.
96 A FILOSOFIA DO DlREITO

II Hierarquia das normas

Já estabelecemos que nãoí'lfë" possível definir a norma de for-


ma isolada, mas apenas pelo fato de pertencer ao sistema ju-
rídico. Contudo, como saber que ela lhe pertence?

1. O pertencer ao sistema jurídico

A norma é a significação de um enunciado, não importam-


do que este possa ter, tanto para aquele que o emite quan-
to para aquele que o interpreta, a significação de norma. “A
bolsa ou a vida” significa tanto para o ladrão quanto para o
roubado que o segundo deve entregar a bolsa ao primeiro.
Mesmo uma fórmula desprovida de sentido numa língua
natural pode ter significação de norma, desde que corres-
ponda a um código conhecido, no mínimo, por aquele que
a pronuncia e por aquele que a ouve. Não se trata, contu-
do, de que significações subjetivas de normas e a conduta
assim prescrita não sejam, juridicamente, obrigatórias. Po-
deriam até ser proibidas. Em todo caso, nenhuma norma
jurídica foi emitida.
Assim, uma norma só existe se um enunciado tiver
não apenas a significação subjetiva de uma norma do pon-
to de vista de seu autor, mas também a significação objetiva
de uma norma do ponto de vista de uma norma superior.
Já observamos que, se a ordem do ladrão e a do cobrador de
impostos têm a mesma significação subjetiva (o destinatário
À ESTRUTURA DO DIREITO 97

tem que entregar o dinheiro), somente a do cobrador tem


a significação objetiva de uma norma, do ponto de Vista da
lei que ordena aos contribuintes pagarem ao fiscal os valo-
res cobrados por ele. É, portanto, a conformidade da ordem
do cobrador a uma norma superior - a lei - que confere a
essa ordem a significação de norma, que permite a afirma-
ção de que ela é uma norma. Da mesmaforma, a lei é uma
norma porque está de acordo com a constituição. Como o
número de normas diminui à medida que subimos na hie-
rarquia, temos o hábito, segundo Kelsen, de representar o
sistema jurídico pela imagem de uma pirâmide, da qual a
constituição forma o ápice.

2. Sistemas estáticos e sistemas dinâmicos

A expressão empregada habitualmente hoje em dia de “hie-


rarquia das normas” é enganosa, tendo em vista que conduz
a uma representação do direito calcada sobre o modelo do
exército. Em um exército, os homens são, a princípio, mili-
tares; depois de colocados em certo grau, podem mudar. A
hierarquia militar é apenas um ordenamento. De maneira
inversa, as normas não existem fora da hierarquia e não se
pode dizer que sejam hierarquizadas. Apenas o sistema jurí-
dico - em outras palavras, o direito o é. Além disso, dizer

-
que as normas são hierarquizadas não é senão um modo de
falar, para indicar que certas prescrições devem ser conside-
98 l A FILOSOFlA DO DIREITO

radas normas em virtude de seus relacionamentos com ou-


tras normas ditas superiores.
A superioridade de uma norma - isto é, a posição que
ocupa na hierarquia pode ser examinada pelo menos de

-
duas formas.
Podemos considerar, a princípio, segundo o exemplo
de Kelsen, que essa posição é uma qualidade da norma,
determinada pela norma superior. Se a lei está- posiciona-
da imediatamente abaixo da constituição e acima do de-
creto, é porque a constituição lhe designa esse lugar no
instante em que confere a significação de norma ao ato
do Parlamento.
Todavia, também podemos considerar que, do ponto
de vista realista, a superioridade de uma norma em relação a
outra significa que, em caso de contradição, a segunda pode
ser privada de validade por um tribunal. Nesse caso, a supe-
rioridade resulta da decisão do tribunal e da justificativa que
ele lhe dá. Assim, o Preâmbulo da Constituição francesa de
1958 só tem significação de norma de nível constitucional
porque o Conselho Constitucional decidiu, em 1971, que
D1
as leis contrárias ao Preâmbulo eram contrárias à Constitui- 'JE-hu. _ 'TJ-"¬

ção e não deveriam ser promulgadas.


A relação entre norma superior e inferior é comple-
..._-
*__-_ *a
c

xa. Kelsen distingue aí dois tipos - um estático e outro di~


Em

nâmico --, e ilustra o dinâmico com o auxílio do exemplo


a seguir:
A ESTRUTURA DO DlRElTO l 99

Um pai ordena ao filho que vá à escola. À pergunta do me-


nino: “Por que devo ir à escolaF”, seria possível responder:
“Porque seu pai ordenou que você fosse e porque o filho
deve obedecer às ordens do pai”. Mas o menino, então,
faz nova pergunta: “Mas por que devo obedecer às ordens
de meu pai?”. Talvez pudéssemos lhe responder: “Porque
Deus ordenou que obedecêssemos aos pais e devemos obeÉ
decer às ordens de Deus”.3

A ordem de ir à escola deve ser tida como uma norma


válida ou obrigatória simplesmente porque emana do pai,
habilitado por Deus a dar ordens ao filho. Só é levado em
conta o modo de apresentação da norma, e seu conteúdo é
indiferente. Com efeito, no momento em que Deus habili-
ta o pai a dar ordens aos filhos, não lhe prescreve que dê es-
ta ou aquela ordem. A ordem do pai será uma norma válida,
não importa qual seja o conteúdo. Observamos que as duas
normas são prescritas sucessivamente: primeiro a de Deus,
depois a do pai.
Ampliando o exemplo dado por Kelsen, podemos ima-
ginar outra resposta, dessa vez do tipo estático: “Você deve
ir à escola porque todas as crianças devem fazê-lo”. Todavia,
se a criança pergunta: “Por que todas as crianças devem ir
à escola?”, nós lhe responderí'amos; “Porque todas as crian-

3. Hans Kelsen, Théoriepure du droir(`Paris, Dalloz, 1960), p. 259.


100 A FILOSOFlÀ DO DIREITO

ças devem se instruir”. Se ela perguntasse de novo: ccPor que


todas as crianças devem se-1nstru1rf , poderíamos utilizar a
mesma resposta anterior: “Porque Deus ordenou”.
Aqui, a ordem do pai é tida como válida em virtude ape«
nas de seu conteúdo. Esse conteúdo conforma-se com aquele
de outra norma mais geral (todas as crianças devem ir à esco-
la), e nós a apresentamos até mesmo como deduzida dele. A
norma geral é, ela própria, deduzida de uma norma mais ge-
ral (todas as crianças devem se instruir). As normas não são
produzidas sucessivamente, pois estão em um relacionamen-
to de implicação - sob a condição de que se admita que a
obrigação de se instruir implique a obrigação de ir à escola -,
e a norma individual “você tem que ir à escola” é predetermi-
nada. Na realidade, o relacionamento e' estático mesmo que
não haja relacionamentos de implicação, mas uma simples
subsunção de uma norma particular sob outra mais geral.
Desse modo, segundo o princípio dinâmico, o funda-
mento da validade das normas reside numa norma de habi-
litação ou autorização, de acordo com o princípio estático
existe-nte numa norma imperativa. Nos dois casos, chega-
mos a uma norma que emana de Deus. No primeiro, a uma
norma de habilitação; no segundo, a uma norma impera-
tiva. Contudo, a norma que emana de Deus não pode ser
justificada por outra ainda superior. Além disso, à pergun-
c“Por que se deve obedecer a DeuSP”, não há resposta no
sistema normativo, e podemos apenas pressupor a validade
A ESTRUTURA DO DIREITO ` 101

dessa norma se quisermos considerar ccvocê deve ir à escola”

___*JÚ
uma norma válida. É esse pressuposto que Kelsen chama de
norma fundamental.
Assim, Kelsën tenta caracterizar os sistemas normati-
vos pelo tipo de hierarquia que apresentam. É da seguinte
maneira que ele apresenta a moral como sistema estático:

Da norma que prescreve amar o próximo, podemos dedu»


zir as normas: não se deve infligir nenhum mal a seu pró-
ximo; em particular, não se deve mata-lo, não se deve lhe

causar nenhum dano físico ou moral; devemos prestar-lhe


assistência quando ele tiver necessidade.

Quanto ao direito, esse seria um sistema principalmen-


te dinâmico. Corn efeito, as normas jurídicas são válidas, se-
gundo ele, não em virtude de seu conteúdo, mas somente
porque foram criadas de determinada maneira. Sem dúvida,
uma norma cujo conteúdo fosse contrário àquele de uma
norma superior poderia ser revogada por um tribunal, mas,
enquanto não o for, permanece válida.
Essa última tese pode ser contestada. Quando os tri-
bunais controlam a validade de uma norma, não averiguam
apenas se ela foi produzida por uma autoridade competen-
te e de acordo com o procedimento prescrito, mas também
examinam seu conteúdo e a revogam se este for contrário
ao de uma norma superior. Na maior parte dos sistemas, a
102 A FILOSOFIA DO DIREITO

norma é, além disso, revogada retroativamente, o que signi-


fica que é considerada como se jamais tivesse existido. Com
efeito, o tribunal justifica sua decisão afirmando que se li-
mita a verificar que a norma não é válida, e que jamais o foi.
Portanto, a validade também obedece, de fato, a um prin-
cípio estático.
Na realidade, a posição de Kelsen se esclarece por meio
de um pressuposto ontológico. Se considerarmos, como ele
o fez na segunda parte de sua vida, que uma norma é ape«
nas a expressão de uma vontade humana, então a norma é
efetivamente válida desde que essa vontade seja expressa e
qualquer que seja seu conteúdo. A despeito das aparências,
a revogação posterior não significa que a norma era nula
desde a origem, mas apenas que, por novo ato de vontade,
o tribunal a priva de validade, atribuindo à sua decisão al-
cance retroativo. A decisão de revogar é, além disso, ela pró-
pria uma norma válida do ponto de vista dinâmico, não em
virtude de seu conteúdo, mas em razão, tão-somente, do fa-
to de que emana de um tribunal competente. ~
Entretanto, a tese do caráter dinâmico do sistema jurí-
dico não concorda plenamente com esse pressuposto, indo
de encontro a algumas dificuldades.
Em primeiro lugar, se as normas são a expressão de
vontades humanas, seu lugar na hierarquia resulta, igual-
mente, de vontades humanas, e aqui se trata da vontade do
tribunal. Visto que o tribunal que revoga a norma o faz não
A ESTRUTURA DO DIRElTO 103

somente quando esta última não é adotada pela autoridade


competente, mas também quando seu conteúdo é contrário
àquele de uma norma superior, é preciso também admitir
que este estabeleceu uma hierarquia estática, e não exclusi-
vamente dinâmica.
Em segundo lugar, sua tese desconhece a distinção en»
tre enunciados e normas. A expressão da vontade do legis»
lador não é a norma, mas um enunciado, e a significação
desse enunciado (ou norma) também é a expressão de uma
vontade, mas é a vontade da autoridade de aplicação. PorÉ
tanto, a norma não entra em vigor e não conserva seu valor,
a menos que as condições fixadas por essa autoridade sejam
satisfeitas, figurando entre elas a conformidade do conteú«
do com aquele de uma norma superior.
Enfim, a concepção de Kelsen não pode ser de ne-
nhuma utilidade para a dogmática, tendo em vista que não
permite sejam levados em conta o comportamento e os pro-
cessos de raciocínio dos tribunais, os quais não podem se
limitar, como fazl o legislador, a invocar sua competência
e depois enunciar sua vontade, mas devem, para justificar
suas decisões, apresenta-las como ditadas pelo conhecimenfl
to de determinado estado do direito. Devem, portanto,
mostrar que a norma que revogam era corrompida desde a
origem por certos vícios, figurando entre os vícios alegados
efetivamente a não»conformidade 'do conteúdo da norma

àquele da norma superior.


104 A FILOSOFIA DO DIREITO

¡-

Kelsen comete o erro de apresentar a hierarquia como


o fundamento real das decisões de revogação - portanto,
como se a hierarquia preeiristisse às decisões -, quando, na
realidade, ao contrário, são as decisões que criam a hierar-
quia. Não se deve dizer que a superioridade de uma norma
A sobre uma norma B crie ao juiz a obrigação de revogar B
em caso de conflito, mas, pelo contrário, que a revogação de
B em semelhante hipótese significa que A é superior a B.
Desde o momento em que a revogação é proclama-
da, seja pelo motivo de que B não tenha sido produzida de
acordo com o procedimento fixado por A, seja porque seu
conteúdo é contrário ao conteúdo de A, o sistema jurídi-
co deve ser definido como sendo ao mesmo tempo estáti-
co e dinâmico.

m Criação do direito
I. A Vontade

Para um grande número de doutrinas, por vezes chamadas


“imperativistas”, as normas jurídicas são ordenamentos e
produzidas por vontade humana. Essa concepção é, diga-
se de passagem, comum a certas doutrinas jusnaturalistas e
a determinadas doutrinas positivistas, uma vez que as pri-
meiras admitem a existência, ao lado do direito natural, que
não é criado pelo homem, mas presente na natureza, de um
direito anunciado ou positivo.
A ESTRUTURA DO DiREiTO j 105

Essa idéia é aplicada a todas as normasA H; íei ef, primei-


ro percebida como a expressão da vontade do soberano, e,
se este é coletivo, a lei é imputada à vontade gerai. Da mes-
ma forma, nas relações de direito privado, segundo a famosa
teoria da .autonomia da Vontade, o contrato é apresentado
como a expressão da vontade comum das partes.. Podemos
sublinhar que o sucesso dessa tese decorre do fato de que ela
se ajusta igualmente bem tanto a uma ideologia liberal, se-
gundo a qual os homens não podem ser obrigados a nada
senão pela própria vontade, quanto a uma ideologia estati-
zante e autoritária.
Algumas das objeções que ela encontra podem ser dis-
sipadas, como aquelas pelas quais se faz observar que, com
freqüência, é difícil encontrar uma vontade, no sentido psi-
cológico do termo, na origem de todas as normas. É preci-
so que se reconheça, por exemplo, que os costumes não são
queridos por ninguém e que certas normas não são produ-
Zidas por um único indivíduo, mas por um colegiado. Ora,
não se pode falar de vontade coletiva, salvo de modo me-
tafórico. Não se pode mais considerar que a norma cor-
responda à soma das vontades dos membros do colegiado,
porque raramente são unânimes. Até os membros da maio-
ria que aprovou um texto não quiseram, necessariamente,
a mesma coisa.
Diante da primeira objeção, pode-se reduzir o costu-
me à vontade ao sustentar que não é de fato o costume que
106 A FILOSOFIA DO DIREITO

produz a norma, mas apenas o legislador, que ordena que


nos conformemos ao costume.
A segunda, responde-se, com freqüência, que preci-
samente a vontade à qual se impura a norma não é uma
vontade no sentido psicológico, pois não é a vontade real
de alguns homens que produz a norma, mas uma vontade
construída, que é sempre produto de uma série de presun-
ções, ou seja, de ficções. Assim, presume-se que a soma dos
votos de uma maioria de parlamentares seja a expressão da
vontade do Parlamento e presume-se que esta última seja a_
expressão da vontade geral, ou seja, a vontade do soberano, I
que é, ele próprio, uma ficção. Entretanto, se temos recurso
a essa série de ficções, é de fato com base no fundamento do
pressuposto de que a vontade poderia produzir normas.
Agora, vamos de encontro à objeção mais vigorosa,
formulada em especial na primeira parte da obra de Kelsen:
a vontade é um fato, e um fato não pode produzir direito,
porque do fato de que alguma coisa seja não se segue que al-
guma coisa deva ser. Aqueles que adotam uma norma, qual-
quer que seja ela - uma Constituição, uma lei, um decreto
ou um contrato -, exprimem, sem dúvida, sua vontade de
que outros se comportem de determinada maneira, mas não
podem criar para esses indivíduos a obrigação de se confor-
marem a essa vontade. Por outro lado, se a vontade fosse su-
ficiente para produzir normas, nada distinguiria a ordem do
ladrão da ordem do cobrador de impostos.
A ESTRUTURA DO DlRElTO l 107

Além disso, o ato de vontade não produz nenhuma


norma e não tem significação subjetiva de norma, senão pa-
ra seu autor. O que lhe confere significação objetiva de nor~
ma é a norma superior. A vontade é apenas um fato que
a norma superior' estabelece como condição para a produ»
ção da norma inferior. Assim, a constituição ordena:. uSe
a maioria dos membros do Parlamento exprime a vontade
de aprovar um texto, então esse texto deve ser aplicado co»

*PT-IS
mo lei”. A lei é produzida, por conseguinte, não pela von-

“T_-'-"
tade da maioria, mas pela própria constituição. Do mesmo
modo, se o contrato é uma norma, não o é em virtude do

...__
-4-...__.___.......-__
intercâmbio de vontades, mas porque a lei faz desse inter-
câmbio a condição para que um contrato obrigue as partes.
Tal é, por exemplo, a significação do artigo 1.154 do Códi«

-n--__--_--w
go Civil francês: “As convenções legalmente acordadas são
consideradas lei para aqueles que as fizeram”. É por isso que
Kelsen pode escrever que só o direito e não um fato como

-
a vontade - pode produzir o direito, ou, ainda, que o direi-
to regula sua própria criação.
Essa refutação dificilmente é conciliãvel com a con-
cepção expressiva das normas à qual Kelsen se filiou mais
tarde, isto é, com a idéia de que as normas são, de forma
única, a expressão de vontades humanas, que nada mais é
que uma variante da concepçãoviéiriperativista.
Parece que a conciliação pode ser operada com o auxi'É
lio de uma distinção entre enunciado e norma, em especial
108 A FILOSOFIA DO DIREITO

se admitirmos, com osrealistas, que a vontade do legisla-


dor produz apenas enunciados, enquanto a norma expri-
me a vontade do intérprete (cf. capítulo 4, “O raciocínio
em direitoii).

2. A questão das fontes


A expressão “fontes do direito”, nascida na doutrina alemã
do século XIX, designa tanto os diversos modos de criação
de regras quanto as classes de regras referidas pela maneira
como foram criadas. Algumas das dificuldades da teoria das
fontes estão ligadas à metáfora. Ela permite pensar que, da
mesma maneira que uma fonte é o ponto onde a água es-
vaída das profundezas da Terra emerge na superfície, o di-
reito tinha existência antes mesmo de ser enunciado, antes
mesmo de ter sido criado por uma ação humana. É nesse
sentido que se distinguem habitualmente as fontes formais,
que são classes de atos criadores de normas (como a lei ou
a jurisprudência), e as fontes materiais do direito, expressão
que designa a origem das normas após formalizadas no di-
reito positivo.
As fontes materiais são muito diferentes de acordo
com as doutrinas. Para a escola histórica alemã do século
XIX, são a consciência coletiva do povo, mas, segundo al-
gumas doutrinas mais tardias, são os dados econômicos e
sociais. Podemos atribuir-lhes funções variadas. Em deter-
minado momento, do ponto de vista descritivo, pretende-
A ESTRUTURA DO DlRElTO 109

mos que as regras enunciadas correspondam, com efeito, a


normas já contidas na consciência coletiva e reveladas nos
usos ou nos costumes; no instante seguinte, do ponto de
vista prescritivo, urecomenda-se ao legislador que traduza es~
sas regras no direito positivo ou, ao juiz, que nelas busque
soluções que ele não pode encontrar no direito positivo, is-
to é, nas fontes formais.
Também as fontes formais são empregadas em duas
acepções diferentes. Dessa maneira, designam-se, em geral,
ou os atos de produção do direito, como a atividade legisla-
tiva dos parlamentos, ou os produtos dessa atividade, por-
tanto classes de enunciados, como os textos de leis. Essas
duas acepções correspondem, na realidade, a duas concep-
ções da norma. Se identificamos a norma e o enunciado, a
fonte do direito é o modo de produção do enunciado, ou
seja, a ação de legislar, a qual produz, com efeito, enuncia-
dos que são normas. Entretanto, se a norma é apenas a sig-
nificação do enunciado, então a ação de legislar, que produz
apenas textos, não produz normas. Estas últimas só se ele~
varão a essa classe pela interpretação, e se diz dos textos que
eles não são fontes de direito senão e tão-somente porque
são o objeto da interpretação.
Do ponto de vista positivista, a análise deve se limitar
à descrição das únicas fontes formais, porque as fontes ma«
teriais não apresentam nenhum caráter obrigatório de acor-
do com o direito positivo. Mas essa descrição dá lugar a
..._-..._-
110 A FILOSOFlA DO DlRElTO

grandes discussões doutrinárias, não desprovidas de segun-


das intenções ideológicas, sobre a questão de saber quais são
as fontes do direito. I
A doutrina jurídica clássica reconhece somente duas
fontes de direito interno (em direito internacional, a ques-
tão se formula em termos diferentes): a lei e o costume. Essa
apresentação se baseia em duas idéias: que os contratos e as
decisões individuais não são normas e que todas as normas
que não são leis ou costumes, como, por exemplo, regula-
mentos administrativos, são seus meros derivados.
Essa apresentação foi criticada de forma severa, em es-
pecial da perspectiva da teoria kelseniana. Por um lado, tem
como base a distinção entre regras e decisões individuais,
que é errônea, uma vez que qualquer que seja o caso se trata
de normas. Não há, assim, nenhum motivo para examinar
as únicas fontes criadoras de regras. Por outro lado, todas as
normas foram produzidas com a aplicação de uma norma
superior e prescrevem uma conduta que por si pode consis-
tir na produção de uma norma. O direito é criado em todos
os graus da ordem jurídica, e uma descrição de suas fontes
não poderia, portanto, se limitar à lei e ao costume.
Mas, em contrapartida, não se pode fazer mais uma
classificação geral dos tipos de atos jurídicos, pois dois atos
semelhantes podem produzir normas de graus diferentes. Se
admitirmos, por exemplo, que os tribunais produzem nor-
mas, aquelas que provêm dos tribunais inferiores não têm,
A ESTRUTURA DO DIREITO l 111

é evidente, o mesmo valor das que emanam dos Supremos


Tribunais.
O conceito de “fontes do direito” é, não obstante, útil
para descrever uma ordem jurídica particular, porque se po«
de caracterizá-la pelo lugar que ocupa esta ou aquela fonte
na hierarquia dessa ordem. Podemos, por exemplo, descre-
ver a ordem jurídica francesa contemporânea, ao indicar
que a constituição se situa no ápice e que os tratados têm
valor superior ao das leis, mas inferior ao da constituição.
Por outro lado, é nesses termos que os juristas tratam
habitualmente da questão de saber que tipo de atividade
humana é criadora de direito. Nós nos limitaremos, na pre-
sente obra, a duas das atividades cujo caráter de “fonte do
direito” é controverso: o costume e a jurisprudência.

3. O costume

O costume e' definido, em geral, como prática repetida no


seio de um grupo social, provida do sentimento de seu ca-
ráter obrigatório. Com freqüência, se faz notar o caráter ex-
tremamente vago dessa definição, uma vez que é impossível
determinar a duração da repetição, o tamanho do grupo em
cujo seio a verificamos, a natureza do sentimento de obri-
gação, a maneira pela qual esseK sentimento se exprime ou,
ainda, o número ou a qualidade À-d'osindivi'duos que devem
experimentado. Entretanto, saber se o costume é ou não
112 I A FlLOSOFlA DO DIRElTO

fonte do direito constitui olijeto de discussões ideológicas


e teóricas. ...E
No plano ideológicofopõem-se as vantagens e os de-
feitos respectivos da lei e do costume. Os partidários do
costume exaltam o fato de que a lei é uma decisão unila-
teral, que exprime a Vontade e as preferências de um único
legislador, enquanto o costume é uma prática espontânea,
fruto da experiência, que, em conseqüência, corresponde
melhor às necessidades do grupo social e constitui a expres-
são da consciência coletiva. Conforme dão ênfase a um ou
outro desses aspectos, esses partidários se encontram, no
momento da Revolução Francesa, tanto entre os contra-
revolucionários quanto entre aqueles que no século XIX vê-
em no costume um instrumento pelo qual o povo se sub-
mete a um direito autônomo para se subtrair ao domínio
da lei, expressão da vontade da classe dominante. O papel
do costume é ainda ressaltado por certos antropólogos do
direito, preocupados em demonstrar que o direito é um fe~
nômeno universal, presente até nas sociedades sem Estado e
sem escrita. Da mesma forma, os teóricos do pluralismo ju-
rídico sustentam que existem, seja no sistema jurídico esta-
tal, seja ao lado dele, outros sistemas de direito refletindo a
pluralidade dos grupos sociais, no seio dos quais o costume
ocupa lugar importante.
Os adversários do costume sublinham que ele é essen-
cialmente conservador, pois, de forma contrária à lei, e' len-
A ESTRUTURA DO DlRElTO 113

to para nascer e ainda mais lento para se modišicar, difícil


de conhecer, e que o conteúdo das regras estabelecidas pelo
costume é o reflexo de preconceitos, não da razão.
No plano teórico, o problema mais difícil resulta da
separação entre-ser e dever-ser, ou seja, entre fato e direito.
Uma prática repetida e o sentimento de seu caráter obriga-
tório são fatos. Ora, um fato não pode criar direito, como
já vimos em relação à vontade. Contudo, as regras estabe-
lecidas pelo costume existem. A explicação mais difundi‹
da consiste na referência a uma norma superior que ordena
que nos conformemos ao costume. Assim, certos códigos
prescrevem aos tribunais que apliquem o costume ern ca-
so de lacuna da lei. Nessa circunstância, não é o fato que é
o criador de direito, mas a norma superior. O fato é apenas
e tão-somente a condição fixada pela norma superior para
que determinada conduta seja observada. Tudo se passa co-
rno se a norma prescrevesse: “Se uma prática foi repetida ao
longo de certa duração de tempo e se foi provida do sentii
mento de seu caráter obrigatório, então devemos nos con-
formar corn ela”.
Entretanto, essa explicação encontra um limite: deter-
minadas regras estabelecidas pelo costume não são autorizadas
por uma norma superior. Resolvemos essa dificuldade ao ad-
mitir, quando os julgamentos aplicam regras estabelecidas pe-
lo costume, que existe sempre, pelo menos, uma habilitação
implícita do legislador, desde o momento em que este último
114 A FILOSOFIA DO DIREITO

não revoga esses julgamentos, como poderia fazer. Todavia,


existem costumes para os quais não se pode conceber nenhu-
ma habilitação implícita por uma norma superior. É o caso do
costume constitucional e do costume internacional.
Podemos assim conceber dois tipos de solução. De
acordo com a primeira, especialmente adotada por Kelsen,
raciocinamos tanto para o costume constitucional quanto
para as normas expressas no texto constitucional: o funda-
mento de sua validade reside na norma fundamental. De
acordo com a segunda, mais próxima da perspectiva rea--
lista, raciocinamos também para o texto constitucional: as
autoridades de aplicação, em especial os tribunais ~ mas
não de forma exclusiva -, atribuem a certas práticas repeti-
das a significação de normas. Essa atribuição é uma inter-
pretação portanto, uma decisão - que diz respeito, aliás,
-
não apenas ao caráter obrigatório dessas práticas, mas tam-
bém ao seu conteúdo, pois os tribunais afirmam primeiro
que existem práticas, depois que estas apresentam caráter
de costume e, por fim, que a regra estabelecida por ele pres-
creve esta ou aquela conduta (cf. capítulo 4, “O raciocínio
em direitoii).

4. A jurisprudência

Chamamos de “jurisprudência” o conjunto das regras resul-


tantes da atividade dos tribunais. Indagar se a jurisprudência
A ESTRUTURA DO DlRElTO 115

pode ser uma fonte de direito suscita discussões ideológicas


e teóricas.
Do ponto de vista ideológico, existe uma tradição her~
dada do século do Iluminismo segundo a qual a jurispruÉ
dência não deve ser uma fonte de direito, porque a única
fonte de direito aceitável seria a lei. Com efeito, em um sis-
tema representativo, a lei é considerada feita pelo próprio
povo, de maneira que, ao se submeter à lei, ele está submeti-
do à própria vontade. Por outro lado, quaisquer que sejam a
origem e o conteúdo da lei, ela é conhecida com antecedên»
cia, de modo que os ordenamentos que dela são deduzidos
são previsíveis e cada um conhece seus direitos e deveres.
Os tribunais não devem, portanto, jamais produzir regras,
mas apenas julgamentos deduzidos da lei, por meio de silo-
gismo. Essa é a razão pela qual Montesquieu podia escrever
que o poder de julgar é, “de certa maneira, nenhum”.
Em face dessa tradição, devemos ressaltar que lei não
é - e não pode ser -- completa, que pode se revelar obscu-
ra, que o legislador se pronunciou em abstrato. É apenas no
instante de aplicá-la que se pode ver que certos fatos não fo-
ram considerados, que as circunstâncias mudaram ou que
é preciso introduzir alguma flexibilidade para evitar injus-
ticas. É necessário, assim, que os tribunais produzam regras
para amenizar as insuficiências I_duafílíei.

4. Montesquieu, O espírito das [eis (SãoutPaulo, Martins Fontes, 1995), Ii-


vro Xl, capítulo v1.
115 A FILOSOFIA DO DIREITO

Entretanto, do ponto “de vista descritivo, a questão


não é saber se é desejável-*ã ou conforme o ideal do libera-
lismo político, que os triifiiunais criem direito, mas se dis-
põem, com efeito, desse poder. A despeito das aparências,
essa questão não dá ensejo a uma resposta simples, porque
a existência de um poder não é um fenômeno que se possa
constatar de forma empírica.
A concepção tradicional opõe claramente criação e
aplicação do direito. Além disso, a partir do momento em
que os tribunais aplicam o direito, não o criam. As decisões
jurisdicionais não seriam, portanto, verdadeiras. Sem dúvi-
da, encontramos o enunciado de uma regra geral na moti-
vação do julgamento, mas trata-se unicamente do lembrete
da lei que forma a premissa maior do silogismo ou da inter-
pretação dessa lei. Ora, interpretação nada mais é que a re-
velação de uma significação já presente.
Kelsen critica essa visão tradicional, sem, todavia, des-
carta-la por completo. Sua crítica se funda primeiro em pôr
de novo em discussão a oposição entre criação e aplicação.
Ele depreende da própria estrutura do sistema que todos os
atos jurídicos são a aplicação de uma norma superior, ao
mesmo tempo que criam uma norma, com exceção, bem
entendido, do ato supremo, a constituição, que é apenas
criadora. Ainda que o julgamento se limitasse à aplicação
mecânica da lei, seria criador de norma, visto que a sentença
é uma ordem (a um devedor de pagar, à administração pe-
A ESTRUTURA DO DlRElTO 117

nitenciária de deter um condenado etc). Kelsen acrescenta


que, na realidade, o julgamento não se limita jar-:tais a es-
sa aplicação mecânica da lei, porque esta última deixa quase
sempre alguma margem para apreciação. O juiz penal pode,
pelo menos,` apreciar se a infração foi realmente cometida e
escolher uma pena entre um mínimo e um máximo, e o juiz
civil, que deve conceder a indenização em reparação de um
dano, deve, no mínimo, determinar seu valor.
Contudo, essa crítica é insuficiente. A concepção tra~
dicional não contestava que os juízes pudessem criar nor-
mas individuais, mas que pudessem criar regras gerais. Ora,
com relação a esse ponto, Kelsen mantém, em conformi-
dade com seu esquema geral, que os juízes não podem fa-
zê-lo, a menos que uma norma superior - por exemplo, a
constituição ou a lei - os autorize a tanto. Sua tese não é,
portanto, muito mais satisfatória que a tradicional e não dá
melhor conta da realidade.
A realidade é que, nos sistemas que não autorizam os
tribunais a criar regras, e mesmo naqueles que os proíbem
de forma expressa, os juízes desejosos de conhecer a regra
não podem se limitar ao estudo das leis e devem se referir à
jurisprudência. Sabemos, por exemplo, que o direito fran-
cês da responsabilidade civil, objeto somente de alguns arti-
gos do Código Civil, é quase totalmente jurisprudencial. É,
portanto, fato que os juízes criam regras, e não apenas nor-
mas individuais.
...___-
118 A FILOSOFIA DO DIREITO

Existem várias justificativas e explicações para esse


fato, e estas não são incompatíveis. A primeira faz apelo
à necessidade. A partir do momento em que o juiz tem a
obrigação de justificar suas decisões individuais, não pode
fazê-lo senão recorrendo a uma regra geral, que constituirá a
premissa maior do silogismo. Se o juiz não descobre uma lei
aplicável, será necessário aplicar um princípio não escrito,
que ele terá de criar. IEle também pode descobrir 'várias leis
aplicáveis e escolher entre elas, ou seja, determinar uma re-
gra. Ainda sustentamos que exista sempre uma autorização
implícita do legislador. Se este se abstém de abolir ou modi-
ficar, como poderia fazer, a regra criada pela via da jurispru-
dência, é porque lhe é dado consentimento. Para os autores
que aceitam a distinção entre enunciado e norma, as leis
descobertas pelos juizes não são regras, mas apenas enuncia-
dos, os quais devem necessariamente ser interpretados. Se-
gundo a doutrina realista, essa interpretação é uma criação
da norma (cf. capítulo 4, ccO raciocínio em direitojj).
Entretanto, as regras formuladas pelos juízes não valem,
em princípio, senão como fundamento de um julgamen-
to particular e obrigam tão-somente as partes envolvidas no
processo. Como elas podem adquirir amplitude geral? Por
certo, nos países de Common Law, existe uma regra que obri-

ga os juízes a aplicarem os precedentes, isto é, as regras adota-


das no passado para casos semelhantes. A existência daregra
_do precedente significa. que se reconhece, nesses países, que
A ESTRUTURA DO DIREITO 119

os juízes criam direito. Mas esse reconhecimento é impossíÊ


vel nos países de direito escrito, pelos motivos já descritos. A
generalização da amplitude das regras criadas pelos juízes se
produz com facilidade graças à organização hierárquica dos
tribunais. Quando uma Corte suprema enuncia uma regra,
os tribunais inferiores não podem, com efeito, evitar aplicañ
la, sob pena de verem suas decisões revogadas em recurso.
Além disso, os juristas sabem que a regra aplicável é aquela
que resulta da jurisprudência das Cortes supremas.

5. A criação do direito e o Estado

Por trás da questão das fontes do direito projetam«se dois


debates relativos à natureza e ao papel do Estado.
O primeiro diz respeito à participação do Estado na
criação do direito.
Inicialmente, podemos contestar que o Estado seja o
criador de todas as normas. Essa posição se fundamenta na
distinção entre atos criadores de regras e outros atos jurí~
dicos, como os contratos. Apenas os primeiros podem ser
atribuídos ao Estado, mas os segundos provêm do encontro
de vontades privadas. Desse modo se definiriam dois do-
mínios: o direito público produzido pelo Estado de forma
unilateral e o direito privado, produto da autonomia indivi-
dual. Essa idéia coincide com a ideologia liberal, segundo a
qual o Estado deve permanecer nia"eisfera do direito público
e se abster de qualquer ingerênciã na esfera privada.
120 A FlLOSOFlA DO DlRElTO

Í:

Podemos, de maneira inversa, imputar ao Estado a


criação de todas as norirr'šasiz__-zEssa tese se justifica pelo fato
de que todas as normas,flmesmo o costume ou os contratos,
não são válidas senão em virtude de sua conformidade com
as normas superiores da ordem jurídica, ou seja, em concor-
dância com a lei e a constituição, que são normas estatais.
Também Kelsen sustentou que todas as normas po-
diam ser ditas estatais, de sorte que “Estado” nada mais era
que outro nome para designar a ordem jurídica, quando se
desejava personifica-lo.
O segundo debate está ligado ao primeiro. Diz respei-
to à relação do Estado e do direito e conduz a uma aporia. O
Estado está submetido ao direito? Existe toda uma variedade
de respostas clássicas, das quais nenhuma é suficiente, ligadas
a teses complexas sobre a soberania e o Estado de direito.
Se respondermos de forma negativa a essa pergunta, o
Estado é soberano e seu poder, sem limite. Mas a regra que lhe
concede essa soberania deve então ser concebida como sendo
superior a ele, de maneira que ele não é realmente soberano.
A resposta afirmativa, dada pela famosa doutrina do Es-
tado de direito, comporta duas variantes. Podemos, a prin~
cípio, afirmar que o Estado não pôde ser criado senão pelo
direito e que é limitado por este. Esse direito superior ao Es-
tado é o direito natural, e os limites do Estado se encontram
nos direitos do homem. Essa tese, como a precedente, aliás,
depende por completo da adesão ao jusnaturalismo.
A ESTRUTURA DO D1RE1TO 121

Podemos também admitir que o Estado seja a única


fonte do direito positivo, mas que é limitado pelo próprio
direito. A objeção é que se trata de uma autolimitação, que
não é, de forma alguma, uma limitação.
Por fim, podemos sustentar, como Kelsen, que, se o
Estado e o direito nada mais são que uma única e mesma
coisa, o problema da limitação do Estado pelo direito não
passa de um falso problema. O direito nada mais é, então,
que uma técnica de exercício do poder político, e chama»
mos de “Estado” o poder organizado e exercido de acordo
com essa técnicas.

5. Michel Troper, La rbéorz'e du droz'r, [e droir, VÉtat (Paris, PUF, 2001).


O raciocínio W
em direito lt

I Interpretação
A palavra “interpretação” designa ao mesmo tempo a ope-
ração por meio da qual uma significação é atribuída a uma
coisa - que pode ser um objeto material ou um enunciado
- e o produto dessa operação. Na literatura da teoria do di-
reito existem concepções muito diversas a respeito da in-
terpretação. Quer descritivas, quer normativas, as teorias se
opõem em muitos pontos, em particular sobre a natureza
da significação atribuída à coisa, sobre a natureza da opera~
ção da interpretação, sobre a de seu objeto e de seus méto-
dos ou ainda sobre as conseqüências que comportam para a
compreensão do sistema jurídico.

1. Natureza da interpretaçãol
' 'D um.

A questão da natureza da operaçã'olde interpretação colo«


ca-se somente do ponto de vistã'" descritivo. Trata-se, com
124 A F1LosoF1A Do DiREiTo

efeito, de determinar as .funções mentais utilizadas nas ope-


rações efetivas de interpretação jurídica. A esse respeito, po-
demos distinguir duas ø'teses principais, que comportam,
cada uma, muitas variantes.
De acordo com a concepção tradicional, a interpre-
tação e uma função do conhecimento. No tocante a isso, a
interpretação jurídica não apresenta nenhuma diferença im-
portante das outras interpretações, como, por exemplo, a de
textos literários ou religiosos. Essa concepção se apóia sobre
alguns pressupostos: a interpretação tem por objeto enuncia-
dos dorados de significação; essa significação seria única, em
razão do relacionamento necessário entre as palavras e suas
significações; desse modo, cada enunciado teria significação
própria, a qual importaria unicamente formular; não obstan-
re, essa formulação não seria uma interpretação verdadeira. É
apenas quando a significação está oculta, em virtude das ca-
racterísticas de certos enunciados vagos e ambíguos, que seria
preciso interpretá-la; a interpretação não é, portanto, neces-
sária quando o enunciado é claro (z'n claris cessar interpretado).
Quando não o é, a interpretação consiste em fazer aparecer a
significação oculta. Por vezes, a significação é concebida co-
mo a intenção do autor do enunciado. Todavia, muitas ve-
zes, também é compreendida como a função objetiva que a
norma deve preencher no sistema jurídico ou social. Como
é uma função do conhecimento, a operação pode ser ou não
bem-sucedida, e seu produto pode ser uma proposição ver-
o RaciocíNio EM D1RE1T0 125

dadeira ou falsa. Mas, para dado enunciado, existe apenas


uma única interpretação correta. Todas as outras são falsas.
Por fim, ela pode ser realizada por qualquer pessoa, desde que
esta possua competência técnica suficiente.
Segundo a concepção oposta, algumas vezes chamada
((realista”, a interpretação é uma função da vontade. Todo
enunciado é dotado não de uma, mas de várias significações
entre as quais se trata de escolher. Essa escolha não corres-
ponde a uma realidade objetiva, porém traduz as preferên~
cias subjetivas daquele que a exprime. Além disso, o produto
da interpretação não pode ser nem verdadeiro nem falso.
Entretanto, tratando-se de interpretação jurídica, é im-
portante distinguir, de acordo com Kelsen, entre a inter-
pretação autêntica e a interpretação de doutrina, também
chamada, por vezes, acientífica”. O termo “autêntico” é em-
pregado por Kelsen em sentido diferente do clássico.
No vocabulário jurídico clássico, a interpretação au-
têntica é aquela que emana do próprio autor do ato (da-
quele que é o único a ter direito a dá-la). Essa prerrogativa
exclusiva se justifica por dois argumentos: por um lado,
foi ele quem publicou o ato por meio de edito, como, por
exemplo, o legislador, que melhor conhece a significação;
por outro, e sobretudo, o poder de determinar a significa-
ção do ato permite refazê-lo, de sorte que autorizar outrem
que não o legislador a interpretar a lei equivaleria a transfe-
rir-lhe o poder legislativo.
126 A FILOSOFIA DO DIREITO

No vocabulário de Kelsen, a interpretaçãoautêntica


não é somente aquela que emana do autor do ato, mas, de
maneira mais geral, aquela dada por uma autoridade ha-
bilitada a interpretar ou, ainda, aquela à qual a ordem ju-
rídica faz produzir efeitos, mesmo se seu autor não está
formalmente habilitado. Por conseguinte, apresenta cará-
ter de interpretação autêntica aquela que emana de uma
Corte suprema, bem como a interpretação da constituição
dada por um Parlamento, quando não existe Corte consti-
tucional. Não há muita diferença entre essas duas interpre-I
tações, porque, quaisquer que sejam seus conteúdos, elas se
impõem, no sentido de que não podem ser contestadas, e
o texto interpretado não tem outra significação, salvo a que
lhe é atribuída pelo intérprete. Portanto, uma interpretação
autêntica é uma decisão que põe fim ao debate. Esse traço
característico permite distinguir com clareza a interpretação
jurídica da interpretação literária ou musical, as quais não
se encerram por meio de decisão e podem prosseguir de ma-
neira infinita.
Disso resulta que a atividade de interpretação não tem
lugar apenas quando o texto é obscuro, mas por ocasião de
qualquer aplicação. Essa tese se justifica de duas formas: em
primeiro lugar, para sustentar que um texto é claro, é pre~
ciso conhecer sua significação; em outras palavras, é neces-
sário tê-lo interpretado. Por outro lado, se uma autoridade
dispõe do poder de dar urna interpretação autêntica, pode
o RaciociNio EM DiREiTo j m

utiliza-la do mesmo modo, tanto quando o texto parece clã-


ro quanto quando parece obscuro. A idéia de que um texto
claro não deve ser interpretado é tão-só um meio de dissi-
mular um poder de interpretação. Acontece, por exemplo,
de urna autoridade se ver constrangida a recusar o poder de
interpretar certos textos e ter a obrigação, em caso de obscu-
ridade, de pedir a outra autoridade uma interpretação of1~
cial. Basta-lhe então afirmar que o texto é claro e que não
deve, portanto, ser interpretado, para poder determinar ela
própria a significação.
Considera-se, por vezes, que os problemas de interpre-
tação provêm não apenas da obscuridade dos textos, mas
também das lacunas ou antinomias. Contudo, os probleF
mas são tanto das lacunas e das antinomias quanto da obsf
curidade: para poder afirmar que textos comportam lacunas
ou antinomias que tornam necessária a interpretação, é pre»
ciso, antes, tê»los interpretado. Ora, essa interpretação ante-
rior é uma decisão, que tem por objeto considerar os textos
como lacunares ou antinômicos, de modo a justificar uma
interpretação.
Assim, se não existe outra significação senão aquela
atribuída pelo intérprete autêntico, qualquer que seja seu
conteúdo, então toda pretensão por parte da doutrina, de
declarar que uma interpretação é falsiáé vã. Corn efeito, coÉ
mo não existe nenhuma significação objetiva com a qual o
produto da interpretação autêntica poderia ser comparado,
128 A FILOSOFIA DO DlRElTO

'det

afirmar que a interpretação de urna Corte suprema é falsa


equivaleria a comparada-aquela que a doutrina teria produ-
zido e instituído como padrão.
Quanto à interpretação da doutrina, Kelsen conside-
ra que se trata de uma atividade de conhecimento, mas, de
forma contrária à tese tradicional, não admite que permi-
ta descobrir uma significação oculta singular. Ela tem como
objetivo apenas descrever todos os sentidos possíveis de um
enunciado, de maneira a permitir que o intérprete autênti-
co opere entre eles uma escolha. Essa tese pode ser contesta-
da por meio de alguns argumentos simples.
Antes de tudo, não se pode ficar limitado a descrever
os sentidos de urna palavra ou de um enunciado na língua
natural, porque nada impede o intérprete autêntico de lhes
atribuir, para atender às necessidades de aplicação, um sen-
tido específico diferente. Em seguida, é impossível descrever
todos os sentidos possíveis, porque a relação entre enuncia-
do e significação é contingente e pode sempre acontecer
de o intérprete autêntico utilizar sua vontade para impor,
de maneira arbitrária, uma interpretação cujo teor ninguém
havia podido imaginar. Enfim, não é possível controlar to-
das as proposições às quais ela conduz. O fato de que um
juiz atribua ao texto sentido que ninguém havia imaginado
não é fracasso da doutrina nem significa que ela se tenha en-
ganado, mas que este, o juiz, enunciou uma norma segundo
preferências diferentes.
o RAciocíNio EM D1RE1T0 129

Desse modo, se existe de verdade profunda diferen-


ça entre .interpretação autêntica e interpretação doutrinária,
ela não diz respeito ao fato de que uma seria atividade do
conhecimento e a outra, atividade da vontade, mas simples-
mente ao fato de que a ordem jurídica atribui efeitos a uma
e não à outra. Ambas são prescrições, porém a interpretação
da doutrina nada mais é que uma recomendação, enquanto
a interpretação autêntica é um ato criador de norma.

2. Métodos de interpretação
Os métodos de interpretação não se confundem com os
simples procedimentos ou com as técnicas de interpretação, `
nem com os resultados da interpretação. Os procedimentos
são tipos de argumentos utilizados no raciocínio jurídico
em geral e aplicados à interpretação, como os argumentos
a Centrario, a sz'mili, óz forriorz'. Em contrapartida, podemos
comparar os resultados obtidos com o auxílio dos métodos
e procedimentos e distinguir a interpretação extensiva e a
interpretação restritiva.
Aqui nos limitaremos a examinar apenas os métodos
propriamente ditos, isto é, os princípios do método geral de
interpretação ou as classes de argumentos específicos _da in-
terpretação jurídica. É necessário, entretanto, sublinhar que o
termo “métodos” é enganoso, visto que incita a pensar que se
trata de meios que permitem distinguir a significação ver-
dadeira de um texto ou conduzir, no mínimo, à melhor in-
130 A FILOSOFIA DO DIREITO

terpretação possível. Por conseguinte, é ligad


o à teoria da
interpretação-conhecimento. Se não
aceitarmos essa teoria,
será necessário considerar os “métodos” com
o simples argu-
mentos, empregados para justificar a interpret
ação que se
deseja adotar. Podemos diferenciar as interpret
ações semió-
tica, genética, sistêmica e funcional.
A interpretação semiótica se baseia na linguagem
. Pa-
lavras e expressões recebem o sentido que têm
normalmen-
te em sua língua, o qual resulta das regras
gramaticais. A
língua de que se trata pode ser a língua natural
ou uma lín-
gua técnica, a língua do direito ou a língua de
uma discipli-
na específica.
Já a interpretação genética se funda num conh
ecimen-
to da vontade real do autor do texto, tal com
o podemos
reconstituí-la, como, por exemplo, por
meio de trabalhos
preparatórios.
I
A interpretação sistêmica tem como objetivo
esclare-
cer um fragmento do texto por outro ou mes
mo por ou-
tros textos.
Finalmente, a interpretação funcional dá ao texto
a
significação que lhe permitirá preencher a função
que lhe
atribuímos. Uma variante da interpretação funciona
l é a in-
terpretação teleológica, que se baseia no objetivo
pretendi-
do pelo legislador.
Na realidade, as diversas categorias se sobr
epõem. É
desse modo que podemos determinar a função
do texto
o RACIOCÍNIO EM DIREITO j 131

com o auxílio de argumentos extraídos da linguagem em-


pregada, ou ainda do contexto sistêmico, ou então como
a vontade do legislador de empregar as palavras no senti«
do ordinário ou técnico, com a ajuda de argumentos sis~
têmicos. Por outro lado, cada um desses métodos - com
exceção do genético - pode ter como objetivo descobrir,
de forma semelhante, tanto a intenção do autor originário
do texto quanto um sentido objetivo, independentemente
dessa intenção. Assim, pela interpretação semiótica, pode-
mos pesquisar o sentido das palavras, seja no momento em
que foram escritas ou no instante em que são interpretadas.
Da mesma maneira, pela interpretação funcional, podemos
pesquisar seja o sentido do enunciado, para que preencha a
função que lhe havia sido designada pelo autor do texto, se-
ja a função que deveria ter para produzir os melhores efeitos
possíveis na sociedade contemporânea.
_ A pesquisa da intenção do autor ou a indiferença em
relação a essa intenção corresponde a preferências ideológi-
cas. Desse modo, nos Estados Unidos, aqueles que querem
interpretar a constituição em conformidade com a inten«
ção de seus autores, os origina/irma são conservadores. Se,
com efeito, se der às palavras o sentido que tinham no séÉ
culo XVIII, determinado número de regras e políticas que os
conservadores combatem deve ~§e__r_-;considerado não-autori»
zado pela constituição, como, por exemplo, as discrimina-
ções positivas (a: zrmóztz've actio'h). Seu principal argumento
132 A FILOSOFIA DO DIREITO

é que uma Corte constituâional, que não é eleita nem in-


vestida do poder constituinte, não dispõe de nenhuma le-
gitimidade para aplicariiiina constituição diferente daquela
que quiseram os redatores. Seus adversários, os interpretati-
vz'srózs, são liberais - fazem prevalecer o argumento de que,
numa democracia, o povo de hoje não deve ser submeti-
do ao de ontem, e que a constituição deve ser interpretada
não como norma condensada há dois séculos, mas como
norma viva. I
Compreendemos que os métodos de interpretação
não podem conduzir a um resultado único e certo pela sim-
ples razão de que não existe sentido verdadeiro e que eles
produzem resultados diferentes segundo a maneira como
hierarquizamos os argumentos. A. existência desses métodos
não põe de novo em causa a liberdade do intérprete, mas,
pelo contrário, a confirma.

3. Objeto da interpretação
Admite-se com mais freqüência que a interpretação tenha
normas por objeto. Na realidade, essa idéia não é aceitável
e deve ser rejeitada, uma vez que se apóia, com efeito, sobre
uma confusão entre um texto (ou, mais precisamente, um
fragmento de texto, um enunciado), por um lado, e uma
norma, por outro. A norma nada mais é que a significação
prescritiva de um enunciado. Dizer que um texto pode ter
várias significações é afirmar que ele pode exprimir várias
o RAciocíNlo EM DiREITo I 133

normas. Por exemplo, o artigo 11 da Constituição francesa


de 1958 significa ou que e' permitido submeter diretamen-
te a referendo um projeto de revisão constitucional, ou que
é proibido fazê-lb. Contudo, se é urna significação, a norma
não pode ser interpretada, pois uma significação não pode
ter significação. Por conseguinte, a interpretação não pode
ter por objeto nada que não seja um enunciado e consiste
em determinar a norma que ele exprime. A idéia já formula-
da' de que antes da interpretação não existe significação po-
de, portanto, ser reformulada nos seguintes termos: antes da
interpretação não existe norma, mas um simples texto.
Todavia, não se interpreta um enunciado exclusiva-
mente para lhe determinar o conteúdo, para saber o que
prescreve, mas também para determinar seu estatuto. As-
sim, antes de saber o que prescreve uma declaração lde direi-
tos, se autoriza ou não o legislador a limitar a liberdade de
associação ou o direito ao aborto, é importante determinar
se ela possui valor jurídico - em outras palavras, se contém
normas juridicamente obrigatórias e, em caso afirmati-
vo, em relação a que destinatários. Sabemos que o Conse-
lho Constitucional decidiu, em 1971, que o Preâmbulo da
Constituição e a declaração de direitos à qual ela o remetia
eram obrigatórios ao legislador. É, portanto, a vontade do
juiz que conferiu a esse enunciado valor constitucional.
É preciso sublinhar ainda que a interpretação também
pode ter fatos por objeto, e isso em dois casos diferentes. Se a
..._-,___fi-fl-I
134 A FILOSOFIA DO DIREITO

lei ordena um comportamento q na hipótese de que um fato


p venha a se produzir, deve-se necessariamente, antes de ado-
tar o comportamento prescrito, determinar se o fato se pro-
duziu. Desse modo, antes de pronunciar a pena prevista para
determinado crime, o tribunal deve determinar se
este real»
mente foi cometido. Ora, essa determinação não é a simples
Verificação de um fato empírico, mas uma decisão verdadei-
ra. Pode acontecer que, contrariando todas as evidên
cias, o
tribunal decida que o crime jamais tenha ocorrido. É o que
acontece, por vezes, quando um júri deseja evitar que
uma
pessoa, tendo feito uma eutanásia, seja condenada por assas-
sinato. A partir do momento em que essa decisão não pode
ser legalmente contestada, é ela que produz efeitos jurídicos,
qualquer que seja a realidade empírica.
I Contudo, a interpretação não tem por objeto apenas
a existência material dos fatos, mas assume também a for-
ma de qualificação jurídica. Trata~se da operação pela qual
um fato é considerado sob certa categoria. Assim, mesm
o se
o acusado tiver realmente se apoderado de um objeto que
não lhe pertencia, esse gesto pode ou não ser considerado
roubo. A qualificação jurídica constitui uma interpretação
do fato e apresenta grande semelhança corn a interpretação do
enunciado. No exemplo precedente, o tribunal pode esco-
lher ou interpretar com justeza o enunciado, dando uma
definição geral do roubo, de modo que o ato do acusado se~
ja ou não considerado roubo, ou qualificar o ato concreto,
o Raciocínio EM DrRErro j 135

sem se referir a uma definição anterior. A primeira solução


lhe permite produzir uma norma geral (todos os comporta»
mentos definidos pelo juiz, como roubo serão punidos com
as penas previstas para o roubo). A segunda, que só rem va-
lidade para o caso em questão, evita~lhe ter que formular
uma definição difícil, a qual o obrigaria pessoalmente..

4. Autor da interpretação
Se a interpretação autêntica é apenas aquela à qual a ordem
jurídica vincula efeitos, isto é, aquela que não pode ser con-
testada e que se incorpora a esse texto, então devemos consi~
derar intérprete autêntico toda autoridade competente para
dar essa interpretação.
Trata-se, naturalmente, antes de tudo, das jurisdi~
ções supremas. Todavia, existem muitas outras autoridades
com competência para dar interpretações autênticas, como
aquelas que, ainda que não sejam jurisdicionais, podem dar
interpretação que seria incontestável perante qualquer juris-
dição. A Constituição francesa de 1958 disso oferece alguns
exemplos: desse modo, o presidente da República interpre-
ta sozinho os termos do artigo 16 e decide o que significam
as expressões “ameaça grave e imediata” ou “interrupção no
funcionamento regular dos poderes públicos”. Aliás, pode-
mos notar que a interpretação -Êpode ter como objeto seja
a definição dessas expressões, seja a qualificação das cir»
cunstâncias de fato. Observamos também que a interpreta-
135 A FlLOSOFlA DO DlRElTO

ção autêntica, dada por-uma autoridade não jurisdicional,


é também uma decisãoilqztf'reipode ser interpretada, por ve-
zes, por outra autoridade, como criminosa. É exatamente
esse o caso do artigo 16 da Constituição francesa de 1958:
a utilização dos poderes de crise por um presidente, que se
basearia numa interpretação do artigo 16, poderia ser consi-
derada pelo Parlamento crime de alta traição. Se o primeiro
toma sua decisão considerando a possível decisão do segun-
do, a interpretação autêntica é uma atividade exercida em
comum, e seu produto, o resultado de uma relação de for-
ças entre autoridades competentes.

5. Poder do intérprete
A teoria da interpretação como atividade de descoberta de
urna significação oculta está estreitamente relacionada à
idéia de que o juiz não exerce, e não deve exercer, nenhum
poder, tendo em vista que se limita a enunciar um silogis-
mo, do qual a premissa maior é a lei, e a premissa menor, o
fato. Quando o enunciado da lei é claro, não há lugar pa-
ra interpretação, e, quando não o é, a interpretação consiste
unicamente em descobrir, com o auxílio de métodos segu-
ros, uma significação oculta, mas todavia presente no enun-
ciado. Essa teoria é pressuposta pelas doutrinas da separação
dos poderes e do Estado de direito.
Em contrapartida, a idéia de que a interpretação é um
ato de vontade dá margem a que se reconheça ao juiz e, de
o RACiociNio EM DlREiTo 137 '

maneira mais geral, a todo interprete, um poder considerá~


vel. Com efeito, se interpretar é determinar a signiíicação de
um texto, e se essa significação nada mais é que a norma ex-
pressa pelo texto, é o intérprete quem determina a norma.
Esta última não é realmente enunciada pelo autor do tex-
to interpretado, como o legislador, por exemplo, mas pelo
intérprete autêntico. É por isso que a conseqüência lógica
da teoria realista clássica é que o verdadeiro legislador não
é o Parlamento, mas o intérprete da lei, como, por exem-
plo, uma Corte soberana. Prolongando o raciocínio, pode-
ríamos dizer que o verdadeiro constituinte não é o autor da
constituição inicial, mas a Corte constitucional.
Na realidade, essas conclusões devem ser diferençadas,
e o poder do intérprete é, ao mesmo tempo, mais amplo e
limitado. É mais amplo por três razões. É necessário obser-
var, antes de tudo, que ele se exerce de forma simultânea so-
bre as premissas maior e menor do silogismo. Por exemplo,
uma Corte constitucional interpreta o texto da constituição
e determina a norma constitucional, mas interpreta igualÚ
mente o texto da lei que lhe é submetida e pode publicar
por édito a norma legislativa. Por outro lado, como os tex-
tos são considerados como tendo tido, desde a origem, a sig~
nificação que lhes é atribuída pela interpretação, esta última
é. retroativa. Entretanto, é pela terceira razão que o poder
de certos intérpretes e' tão considerável. Entre os enuncia-
dos que uma Corte constitucional deve interpretar, existem
138 A FILOSOFIA DO DIREITO

aqueles que delimitam sua competência. Ao interpretar es-


ses enunciados, a Corte tem a possibilidade de determinar
as próprias competências, com mais freqüência, para am-
pliá-las. Foi o que fizeram, por exemplo, a Suprema Corte
dos Estados Unidos - quando, em 1803, se declarou com-
petente para controlar a constitucionalidade das leis - e o
Conselho Constitucional francês, em 1971, quando deci-
diu exercer controle em relação ao Preâmbulo da Consti-
tuição e aos princípios fundamentais reconhecidos pelas leis
da República. I
Todavia, por outro lado, o poder do intérprete apare-
ce como limitado por vários fatores. O primeiro limite não
é encontrado por todos os intérpretes. Trata-se da impossi-
bilidade, por uma jurisdição, de embargar a si mesma. Es-
se limite existe para o Conselho Constitucional francês. De
maneira inversa, para as jurisdições que dispõem sobre re-
cursos amplamente abertos, como o Conselho de Estado ou
certas cortes constitucionais estrangeiras, a probabilidade
de um embargo sobre uma questão qualquer é muito gran-
de, o que equivale a um auto«embargo. Um segundo limite
diz respeito ao caráter coletivo da interpretação, que resul-
ta de uma relação de forças. Assim, a interpretação dada por
uma corte constitucional, de certa disposição da constitui-
ção, pode ser derrubada por uma lei de revisão. Um tercei-
ro limite é próprio das jurisdições. A interpretação dada por
uma jurisdição inferior é suscetível de ser controlada e der-
o RACiociNlo EM DIREWO 139

rubada por uma jurisdição superior. Desse modo, com mais


freqüência, ela permanecerá conforme a interpretação já da~
da ou suscetível de ser dada pela jurisdição superior. Quan-
to às jurisdições supremas, estas podem, sem dúvida, dar a
um texto qualquer significação, uma vez que, qualquer que
seja seu conteúdo, este último não poderá ser juridicamen»
te contestado, isto é, a interpretação será válida e produzi-
rá efeitos em direito. Da mesma maneira, essas jurisdições
poderiam modificar, por ocasião de cada aplicação, a inter-
pretação que dão de um mesmo enunciado. Verifica-se, to-
davia, que elas dão interpretações constantes ~ em outras
palavras, que as mudanças completas de jurisprudência são
bastante raras -- e coerentes, ou seja, que levam em conta,
na interpretação de um enunciado, a interpretação dada a
outros enunciados.
Os partidários da tese da interpretação-conhecimento
vêem nisso a prova de que esses tribunais não são juridica-
mente livres e que nada mais fazem que se conformar com
urna obrigação de dar ao texto seu sentido verdadeiro. Na
realidade, esse sentido não existe, e o comportamento dos
tribunais se explica de outra forma: as normas que produ-
zem são gerais, isto é, têm em vista regrar o comportamento
de um número indeterminado de indivíduos. Estes últimos
não podem com elas se conforÍiiãar, a menos que pensem
que a regra que lhes será aplicada será a mesma que foi pro-
duzida pela interpretação dada pela jurisdição suprema. Se
140 A FILOSOFIA DO DIREITO

.r

esta agisse segundo capricbozs, ninguém poderia conhecer a


norma aplicável. A partxifrfjdoâmomento em que a jurisdição
suprema entende exercer'ium poder real, e comandar por in-
termédio de regras categorias de comportamentos, está, por
conseguinte, obrigada à coerência e à constância. Não existe
nisso nenhuma obrigação jurídica, mas unicamente o pro-
duto da situação em que ela se encontra e que a constrange
a fazer a escolha racional da coerência. Ela e' juridicamente
livre, mas socialmente determinada.

TLLÓgica

Freqüentemente, faz-se ao jurista uma pergunta de aparente


simplicidade: direito e raciocínio jurídico obedecem à lógi-
ca? E, em caso afirmativo, trata«se de uma lógica específi-
ca ou da mesma lógica que sustenta o raciocínio em outros
domínios da atividade humana? As coisas são, na realidade,
muito complexas, em virtude não só da polissemia de ter-
mos como “direito” ou “lógica”, mas também da variedade
das teorias relativas ao direito, à lógica ou à ciência. É neces-
sário, portanto, apresentar algumas distinções.
A princípio, segundo os níveis de discurso, uma vez
que se pode entender por “direito” o direito positivo ou o
sistema juridico, a ciência do direito ou, ainda, a “dogmáti-
ca juridica”. Em seguida, se o direito, ern um dos sentidos
dessa palavra, obedece à lógica, trata-se da lógica formal ou
o RACiociNio EM niREiTo 141

de outra lógica, que tiraria sua inspiração das antigas teorias


da controversa dialética?
Diante de impossibilidade de abordar a totalidade das
questões formuladas pelas relações do direito e da lógica, es«
tipularemos aqui que o direito é o sistema de normas em vi-
gor, e que a lógica da qual se trata é a lógica formal.
A dificuldade essencial no exame das relações do direito
e da lógica provém do fato de que a lógica não tem por ob«
jeto senão enunciados Verdadeiros, enquanto as normas não
são suscetíveis de serem verdadeiras ou falsas. Existem, en-
tão, duas séries de problemas, que nem sempre são distintos
de maneira suficiente. Os primeiros dizem respeito apenas à
lógica: como conceber uma lógica relativa a enunciados que
não são suscetíveis de serem verdadeiros ou falsos? A segun-
da série refere-se ao próprio direito: admitindo-se até mesmo
que seja possível conceber uma lógica aplicável ao direito, é
verdade que o direito positivo é governado pela lógica?

1. O problema lógico
Existem, há algumas décadas, sistemas de lógica dita c“deon-
tológica”, ou seja, lógica que tem por objeto enunciados que
comportam operadores deontologistas (obrigatório, proibi~
do, permitido). Todavia, convém evocar, antes de tudo, um
problema metalógico relacionado ao fato de que a lógica clás-
sica (modal) trata de relações entre pmposz'çães, as quais des-
crevem uma realidade e são suscetíveis de serem verdadeiras
142 A FILOSOFIA DO DIREITO

ou falsas, ao passo que o direito é composto de normas, as


quais admitimos, em geral, que não são nem verdadeiras nem
falsas. Dois exemplos permitem esclarecer essa dificuldade.
A princípio, a inferência dedutiva. Na lógica clássica, de-
riva-se a partir de proposições tidas como verdadeiras uma no-
va proposição, que também será necessariamente verdadeira.
Assim, por meio do silogismo dito teórico (porque tem por
objeto o conhecimento), se é verdade que todos os homens
são mortais e que Sócrates é um homem, então é verdade que
Sócrates é mortal. Contudo, pode-se derivar da mesma ma-.
neira uma nova norma a partir de normas existentes, como,
por exemplo, por intermédio de um silogismo prático? A par-
tir de “todos os ladrões devem ser punidos”, que não é nem
verdadeiro nem falso, porque é um imperativo, podemos infe-
rir outro imperativo: aDupont, o ladrão, deve ser punido?”.
O outro exemplo diz respeito à contradição. A lógi-
ca clássica chama de “contradição” uma relação entre duas
proposições que não podem ser ambas verdadeiras: se uma
for verdadeira, a outra é falsa. Desse modo, “o céu está azul”
e “o céu não está azul” não podem ser verdadeiras ao mesmo
tempo. Entretanto, seria possível dizer da mesma maneira
que existe uma contradição entre normas, uma antz'nomz'óz,
como, por exemplo, entre “é proibido fumar” e “é obrigató-
rio fumar”, se estas não podem ser verdadeiras nem falsas?
Na presença dessa dificuldade, três posições são
possíveis.
o Raciocínio EM DIRErro 143

De início, podemos contestar, pura e simplesmente, até


mesmo a possibilidade de uma lógica das normas. Assim, no
fim da vida, Kelsen sustentava, em especial, que uma norma
exprime a vontade daquele que a enuncia. Ora, a vontade é
um fato, e as relações entre os fatos não são lógicas. Por ou~
tro lado, é impossível transpor para as normas as relações entre
proposições que encontramos no silogismo prático. Dizer que
todos os homens são mortais é falar de todos os homens, in~
clusive de Sócrates. Portanto, a proposição “Sócrates é mortal”
é verdadeira porque já está contida na proposição geral “todos
os homens são mortais”. Em contrapartida, a norma “todos os
ladrões devem ser punidos” exprime a vontade do legislador.
Ora, este último quer punir apenas no futuro. Quando forma
um enunciado geral e abstrato, não pode englobar Dupont,
que não conhece. Querer que todos os ladrões sejam punidos
não é querer que o ladrão Dupont seja punido.
A esse argumento se opõe uma objeção clássica: a lógi-
ca não se confunde com processos mentais, ou seja, não traÉ
balha com a significação que homens concretos atribuem a
expressões lingüísticas, mas com o conteúdo semântico desÉ
sas expressões. É perfeitamente possível fazer o raciocínio a
seguir, a partir de uma premissa inverossímil: “Todos os ho-
mens são imortais, Sócrates é um homem; portanto, Sócrates
é imortal”. É a conclusão “Sócratesfé imortal” que está con ti-
da na proposição geral “todos os «homens são imortais”, mes-
mo que não se acredite que todos os homens sejam imortais
144 A FILOSOFIA DO DIREITO

ou que não se tenha conheõimento da existência de Sócra-


tes. É por isso que poucoziuniporta o que o legislador quer na
realidade. Se ordenou cctoi-idos os ladrões devem ser punidos”,
quer tenha ou não pensado em Dupont, a fórmula “todos os
ladrões” engloba necessariamente Dupont.
Todavia, essa objeção não destrói o argumento, pois,
se a inferência dedutiva é válida, como compreender que ela
o seja? Que pudemos inferir se essa não é a verdade?
A segunda possibilidade é considerar que uma lógica
das normas é possível, seja porque consideramos que as nor-
mas são, a despeito de tudo, suscetíveis de serem verdadei-
ras ou falsas, seja porque possuiriam qualidade equivalente.
Assim, alguns sustentam que as normas são verdadeiras
ou falsas e que é errôneo assemelha-las a imperativos. Se
é absurdo replicar “é falso” ao ordenamento “punam os la-
drões”, não o é dizer cce' verdadeiro (ou falso) que os ladrões
devam ser punidos”.
Entretanto, essa posição não é mais sustentável, por-
que a sentença “os ladrões devem ser punidos” possui, na
realidade, dupla significação. Por um lado, pode-se tratar de
uma proposição de direito, que descreve a existência de uma
norma segundo a qual os ladrões devem ser punidos. Ela
pode muito bem ser verdadeira ou falsa porque não é uma
norma, mas uma proposição sobre uma norma. E verdadei-

1. Georges Kalinowski, Quem/[e de [a science: normativa, :me contribution à [a


t/øe'orie de [a science (Paris, LGDJ, 1969).
o RAciociNio EM Dmsrro l 145

ra se, por exemplo, no direito positivo francês que preten-


do descrever, existir de fato uma norma com esse conteúdo.
Todavia, também pode exprimir a vontade do legislador.
Então, possui a significação de uma norma e é de todo equi-
valente ao ordenamento: “Punam os ladrões”. Portanto, não
é nem falsa nem verdadeira.
No entanto, ainda podemos considerar que, se as nor-
mas não são nem verdadeiras nem falsas, possuem qualida-
de análoga: são válidas ou não. Uma norma válida é aquela
que pertence ao sistema jurídico e que deve ser obedecida.
Assim, a sentença emitida pelo tribunal “(Dupont, o ladrão,
deve cumprir pena de prisão de seis meses” e' uma norma
válida se, e somente se, tiver sido deduzida de forma corre-
ta da norma geral cctodos os ladrões devem ser punidos com
seis meses de prisão”. Do contrário, não é valida.
Contudo, essa tese não é mais aceitável que a anterior
por dois motivos: primeiro, porque a validade não é uma
qualidade Jda norma como a verdade pode ser a qualidade
de uma proposição. Uma norma é, com efeito, a significa-
ção de um enunciado que pertence a um sistema jurídico, e
o fato de a ele pertencer é precisamente o que se chama de
“validade”. Disso resulta que uma norma que não fosse vá-
lida não seria uma norma, enquanto uma proposição fal-
sa continua sendo uma proposição. De acordo com uma
fórmula de Kelsen, a validade é o modo de existência das
s,
normas. O segundo motivo é que a existência das norma
145 A FILOSOFIA DO DIREITO

como veremos mais adiante, não depende de suas relações


lógicas com outras normas, mas de certos fatos empíricos.
Resta, portanto, uma terceira via: fazer corn que a lógi-
ca das normas tenha por objeto uma linguagem descritiva, e
não prescritiva. Há várias tentativas nesse sentido. De acor-
do com a mais importante, essa lógica teria por objeto não
as normas, mas os enunciados sobre as normas ou proposi-
ções de direito. Estas últimas são efetivamente suscetíveis de
serem verdadeiras ou falsas, e, desse modo, pensou-se resol-
ver o problema da definição da antinomia ao apresentã-la
como contradição entre duas proposições sobre as normas.
Se a norma “é proibido fumar” não é uma contradição com
aquela “é proibido não fumar” (equivalente a “é obrigató-
rio fumarji), a proposição “existe uma norma segundo a qual
é proibido fumar” é contraditória em relação a “existe uma
norma segundo a qual é proibido não fumar”.
Entretanto, essa terceira via fracassa também porque
as duas proposições não são contraditórias, a menos que
ambas as normas não possam existir ao mesmo tempo. Ora,
é perfeitamente possível que um legislador pouco preocupa-
do com essa coerência, ou perverso, ordene várias vezes -~ ou
mesmo simultaneamente que se fume e que não se fume.
-
Portanto, atualmente, estamos diante' de uma lógica
deontológica da qual é bastante difícil determinar o obje-
to, a ponto de um dos fundadores dessa lógica, Von Wright,
mudar de posição diversas vezes, passando da segunda para
o RAciociNlo EM ouuziro 147

a terceira, depois à primeira, para chegar a pensar que a ló-


gica deontológica

não é nem uma lógica das normas nem uma lógica dos
enunciados sobre as normas, mas o estudo das condições
as quais e preciso satisfazer numa atividade de criaçao ra-
cional de normas.2

Então, toda a questão é saber se essa lógica pode auxi-


liar no conhecimento do real, isto é, se informa sobre o di-
reito em si. A lógica deontológica é uma lógica jurídica?

2. O problema da teoria do direito


Essa segunda questão deve ser compreendida como radical-
mente diferente da primeira. Não se trata mais de saber se
uma lógica deontológica é possível, nem de determinar seu
objeto, mas de saber se o sistema jurídico funciona e se os
juristas raciocinam de acordo com essa lógica. O problema
é apenas um pouco menos complexo, como podemos perÉ
ceber pela evolução do pensamento de Kelsen.
Sabemos que sua contribuição para a teoria do direito
é ter posto em evidência a estrutura hierárquica do sistema
jurídico. Cada uma das normas que o compõem não é uma
norma, não pertence ao sistema senão porque foi extraída ou

2. Georg Henrik von Wright, Norm azzd action: a logica! enqm'ry (Londres,
Routledge, 1965).
148 A FILOSOFIA DO DlRElTO

derivada em conformidade com uma norma superior e mais


geral. Cada norma aparece,..lportanto, como a concretização
de uma norma superior,iiõiviiitudo se passa como se tivesse si-
do deduzida dessa norma superior. Em virtude desse esque-
ma, Kelsen pensou, num primeiro momento, que o direito
obedecesse à lógica.
Quando se viu diante da objeção de que a lógica tra-
tava de relações entre proposições descritivas, admitiu que
ela não podia se aplicar de forma direta às normas, mas ape-
nas indiretamente. A possibilidade de uma aplicação indire-
ta resulta, segundo ele, da distinção entre direito e ciência
do direito. A ciência do direito descreve o direito com o au-
xílio de proposições de direito, isto e', de enunciados sobre
as normas. Kelsen encontrou, desse modo, a solução, aqui
examinada antes: existe contradição entre duas normas se as
proposições que as descrevem são contraditórias.
Contudo, num terceiro momento, Kelsen acabou por
se aliar à posição segundo a qual a lógica não se aplica ao
direito. Essa terceira tese, dita “irracionalista” - não porque
teria como fundamento uma rejeição da razão, como ins-
trumento de conhecimento, mas porque enuncia que o di-
reito é produto da vontade, e não da razão -, se baseia em
vários argumentos.
O mais importante diz respeito à estrutura dinâmica
do sistema jurídico (cf. capítulo 5, “A estrutura do direitoii).
Com uma hierarquia estática, as normas têm um rela-
cionamento de conteúdo para conteúdo: o da norma inferior
o RaciociNio EM DiREITO i 149

parece deduzido do da superior, como no exemplo “todos os


ladrões devem ser punidos com seis meses de prisão, o ladrão
Dupont deve cumprir pena de prisão de seis meses”. A vali-
dade da norma inferior depende, portanto, da validade da
inferência.
De maneira inversa, em um relacionamento dinâmi-
co, a norma superior se limita a prescrever a uma autoridade
que produza uma norma inferior, de acordo com determi~
nado procedimento, ao mesmo tempo que lhe permite dis-
crição maior ou menor quanto ao conteúdo a dar a essa
norma inferior. Assim, a constituição, que se limita a pres-
crever “o Parlamento vota a lei”, permite ao Parlamento dar
à lei não importa que conteúdo, desde que se pronuncie res~
peitando as regras do procedimento legislativo. A lei não é
deduzida da constituição e é válida, seja qual for seu conteú-
do, desde que emane de autoridade competente.
Ora, na última parte da obra de Kelsen, o direito é um
sistema dinâmico. As normas jurídicas são válidas em virtu-
de não de seu conteúdo, mas de sua forma, ou seja, da au-
toridade da qual emanam e do procedimento que permitiu
sua adoção. Bem entendido, o relacionamento dinâmico não
é em nada um relacionamento lógico, porque é impossível,
em um sistema dinâmico, inferir da norma superior o con-
teúdo ou mesmo a existência da norma inferior. Conhecen-
do a norma cctodos os ladrões devem ser punidos com seis
meses de prisão”, não se pode inferir que “o ladrão, Dupont,
150 A FILOSOFIA DO DIREITO

deve cumprir pena de seis meses de prisão”, porque a existên-


cia dessa norma depende apenas do fato de que um tribunal
pronuncie com efeito essa sentença. É perfeitamente possível
que o tribunal pronuncie, de forma efetiva, uma sentença di-
ferente, como, por exemplo, “o ladrão Dupont deve cumprir
uma pena de sete meses de prisão” ou “o ladrão Dupont es-
tá absolvido”. Essas sentenças podem, é claro, ser contestadas,
se existirem procedimentos de apelação no sistema jurídico
considerado, mas, enquanto não forem revogadas na apela-
ção, são válidas, porque emanam de autoridade competente..I
Em outras palavras, supondo-se que uma lógica das
normas seja possível, não se segue como resultado que as re-
lações entre normas jurídicas sejam relações lógicas. Mesmo
se admitirmos, por exemplo, que o silogismo prático é uma
inferência válida, não se deve concluir que a validade da
norma superior se transmite à inferior, como a verdade das
premissas se transmite à conclusão. É necessário não con-
fundir validade da inferência com inferência da validade.
Todavia, permanecemos confrontados pela questão:
o sistema lógico ao qual chamamos “lógica deontológica”
pode ser uma ciência do real, mesmo se o direito não lhe
obedece? A resposta está.` contida na frase de Von Wright já
citada: a lógica deontológica é cco estudo das condições às
quais é preciso satisfazer numa atividade de criação racional
de normas”. Não se trata das condições preenchidas de ma-
_neira efetiva no sistema jurídico real, mas daquelas às quais
o Raciocínio EM memo l 151

é preciso satisfazer para que a atividade normativa possa ser


considerada racional. A lógica deontológica não é a descri~
ção do modo de funcionamento do direito nem da forma
de raciocínio dos juristas. É um esquema ideal para avaliar
seu grau de racionalidade. Encontramos, então, outra con-
cepção do direito e, portanto, outra maneira de formular a
questão de saber se o direito obedece à lógica.
Segundo essa outra concepção, desenvolvida, especial»
mente, na época contemporânea, por Cha'i'm Perelman, sob
o nome ccnova retórica”, o que se trata de estudar não é um
conjunto de normas, mas os processos de raciocínio dos jud
ristas praticantes, em particular aqueles pelos quais eles jus~
tificam suas decisões. Esses raciocínios dependem e são da
alçada não da lógica formal, mas de uma lógica da argu~
mentação, a qual não tem por objetivo a dedução a partir de
premissas, mas de preferência e, antes de tudo, a escolha das
próprias premissas. Não busca estabelecer as condições de
verdade das proposições, nem mesmo de validade das nor~
mas, mas descrever os meios empregados para persuadir.
É segundo essa lógica que funciona, realmente, de acor-
do com Perelman, o direito contemporâneo. Os juízes não
podem, na verdade, estatuir em conformidade com a teoria
do silogisrno judiciário, nem se contentar em procurar uma
solução eqüitativa, mas devem encontrar uma solução razoáÉ
vel, isto é, em concordância, aoçmesimo tempo, com a lei e a
eqüidade. A argumentação parte de .determinado número de

_
_ ~W¶¬_...
pontos de acordo: por um lado, õs lugares-comuns, que servi*
152 A FILOSOFIA DO DIREITO

rão de premissas, como o_s faios ou valores que convém preser-


var, e, por outro, as tecnlcas argumentativas. Entretanto, essas
premissas não apresentam nenhum caráter objetivo, e o racio»
cínio não é constrangedor ou molesto. Permite apenas chegar
a uma decisão socialmente aceitável. Assim, o razoável não se
confunde com o racional, e é possível que existam várias solu-
ções razoáveis. É, diga-se de passagem, o que se verifica quan-
do um tribunal colegiado toma uma decisão por maioria.
Para dizer a verdade, a tese de Perelman apresenta ca-
ráter tautológico. Se ele pode sustentar que o direito e o ra-
ciocínio obedecem à lógica, mas a uma lógica diferente da
lógica formal, é somente porque definiu a lógica jurídica de
tal maneira que ela se confunde com o processo de raciocí-
nio e de argumentação específicos dos juristas. Então, Pe»
relman pode concluir com facilidade que o raciocínio dos
juristas se conforma ao processo de raciocínio dos juristas.

Por trás da discussão sobre a lógica no direito, deli-


neia-se,_na realidade, o grande debate que opõe as doutri-
nas do direito natural ao positivismo jurídico. A conclusão
que conseguimos alcançar parece reanimar as teses positivis»
tas, uma vez que afirma que as normas são válidas não por
causa de sua conformidade com a razão, mas apenas porque
foram formuladas pela vontade das autoridades competen-
tes. Reencontramos, desse modo, a. famosa máxima ducto-
o RAciociNio EM DiRErro 153

rz'zfózs non yerz'msfizcz'rjw... Ía autoridade, não a verdade, faz


o direito]. Assim, é fácil para os jusnaturalistas objetar que
não chegamos a essa conclusão senão porque se tratava, na
realidade, do ponto de partida. O irracionalismo não prova
a verdade da tese positivista. Ele a deduz. É porque conside-
ramos que as normas são válidas em virtude da maneira pe-
la qual foram enunciadas que podemos concluir que não o
são por causa de sua conformidade com a razão.
IEm outras palavras, a teoria sobre o papel da lógica no
direito depende de uma ontologia jurídica, isto é, da con-
cepção que se tem do direito e das normas. Se postulamos
as normas jurídicas como entidades ideais (concepção ¡vilã-
tz'ca), então podemos conceber que sejam unidas por rela-
ções lógicas. Se, de maneira inversa, as concebemos como
a expressão de atos de vontade (concepção expressiva), isto
é, como fatos, não existem relações lógicas entre elas por-
que não há relações lógicas senão entre enunciados, e não
entre fatos.
Mas como escolher entre essas duas ontologias? Se qui-
sermos evitar o debate metafísico ou os atos de fé, não po-
demos evitar fazer dessa escolha uma estipulação, e a única
questão se torna, então, saber quais são os critérios que de-
vem guiá~la em definitivo. Nesse ponto, duas grandes teses
se enfrentam. Uns persistem em querer uma lógica jurídica
e escolhem, por conseguinte, a ontologia hile'tica, que a tor-
na possivel. Outros sustentam que a possibilidade de uma
154 A FILOSOFIA DO DIREITO

lógica nada mais é que uma das questões que


se apresentam
à filosofia do direito. Outra questão, mais impo
rtante ain-
da, é a da possibilidade de construir uma ciên
cia do direito
sobre o modelo das ciências empíricas. Ora, para
construir
uma ciência desse tipo, é preciso realmente que
se admita
uma representação do direito como conjunto
de fatos em-
píricos, isto é, que consideremos as normas com
o a expres-
são de atos de vontade.
Saber se o direito obedece ou não à lógic
a não é, por-
tanto, uma "questão empírica, à qual pode
ríamos simples-
mente responder ao examinar o funcionamen
to real do
sistema jurídico. Eladepende, em definitivo, de
uma esco-
lha ontológica, que decorre de uma opção epis
temológica.
O que é outra maneira de dizer que o direito não
é dado,
mas construído pela teoria que dele trata.
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