Você está na página 1de 128

A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO

PREFÁCIO .................................................................................................................................................................. 1
I. A VERDADEIRA CIViLIZAÇÃO ........................................................................................................................ 1
II. O INVOLUÍDO E A PROPRIEDADE ................................................................................................................ 5
III. TIPOS BIOLÓGICOS E MÉTODOS DE AQUISIÇÃO .................................................................................. 9
IV. ERROS E ASCENSÕES HUMANAS............................................................................................................... 12
V. AS GRANDES UNIDADES COLETIVAS ........................................................................................................ 14
VI. A LEI DA HONESTIDADE E DO MÉRITO .................................................................................................. 19
VII. RUMO A NOVO MUNDO ............................................................................................................................... 24
VIII. ENTENDIMENTO, RECONSTRUÇÃO, PROGRESSO. ........................................................................... 27
IX. DAS TREVAS À LUZ ........................................................................................................................................ 31
X. O PROBLEMA DO MAL ................................................................................................................................... 33
XI. A ECONOMIA DO EVOLUÍDO ...................................................................................................................... 36
XII. POBREZA E RIQUEZA .................................................................................................................................. 39
XIII. PROBLEMAS ÚLTIMOS .............................................................................................................................. 42
XIV. CONSEQÜÊNCIAS E APLICAÇÕES .......................................................................................................... 44
XV. TIPO BIOLÓGICO DO FUTURO .................................................................................................................. 47
XVI. VISÃO (1o TEMPO) ........................................................................................................................................ 50
XVII. VISÃO (2o TEMPO)....................................................................................................................................... 54
XVIII. COMENTÁRIOS E PREVISÕES .............................................................................................................. 57
XIX. O SERMÃO DA MONTANHA ...................................................................................................................... 59
XX. O PENSAMENTO SOCIAL DE CRISTO ...................................................................................................... 65
XXI. CRISTO PERANTE ROMA .......................................................................................................................... 67
XXII. TEMPESTADE .............................................................................................................................................. 71
XXIII. VINGANÇA OU PERDÃO.......................................................................................................................... 77
XXIV. NOSSO LIVRE DESTINO .......................................................................................................................... 80
XXV. O DUALISMO FENOMÊNICO UNIVERSAL ........................................................................................... 85
XXVI. A MÚSICA - A VIDA DUPLA .................................................................................................................... 91
XXVII. A PERSONALIDADE HUMANA (1a PARTE) ........................................................................................ 98
XXVIII. A PERSONALIDADE HUMANA (2a PARTE) .................................................................................... 104
XXIX. SÃO FRANCISCO NO MONTE ALVERNE (1a PARTE) .................................................................... 111
XXX. SÃO FRANCISCO NO MONTE ALVERNE (2a PARTE) ...................................................................... 116
CONCLUSÃO ......................................................................................................................................................... 120
CONCLUSÃO (Da II Trilogia) .............................................................................................................................. 122

Vida e Obra de Pietro Ubaldi (Sinopse)....................................................................................página de fundo


Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 1
lógica e conceitualmente divididas pelo maior acontecimento de
A NOVA CIVILIZAÇÃO todos os tempos, a guerra mundial de nossos dias; a primeira tri-
DO TERCEIRO MILÊNIO logia, de espera e preparação; a segunda, de atividade e recons-
trução. Por esta diferente posição do pensamento é que A Gran-
PREFÁCIO de Síntese se distingue deste volume. Enquanto em História de
um Homem, na luta pela vida terrena, se dramatiza essa verdade
Embora o presente volume também possa ter significado au- e em Fragmentos de Pensamento e de Paixão se exemplifica es-
tônomo e ser lido como tal, vem aqui apresentado como comen- sa luta, o ciclo da atuação avança ainda mais neste livro, che-
tário sobre A Grande Síntese. Este não é livro cujo texto se pos- gando à sua fase de concretização. Aqui se trata, pois, de ilumi-
sa retocar, corrigir ou ampliar, enxertando-lhe digressões e con- nar, de clarear A Grande Síntese, de demonstrá-la melhor, espe-
ceitos novos. Nasceu de um jato, em dado momento histórico, cialmente descendo a pormenores, isto é, à parte humana, indi-
com determinada função social e espiritual, através de particular vidual, social e moral, que nos está mais próxima, com preferên-
estado psicológico de intuição. Condicionado por esses elemen- cia à parte científica e cósmica, mais afastada e já amplamente
tos especiais e irreproduzíveis, conservou-se inalterável, como desenvolvida. De fato, o objetivo principal neste trabalho não é
se vazado em bronze, inviolável e firme, qual rochedo que desa- só expor e convencer, mas, acima de tudo, aplicar na prática.
fia as tempestades dos séculos. A primeira, por ele prevista e es- Deste modo fecha-se este segundo ciclo da obra, a que se-
perada, desencadeou-se de súbito, quase como resposta da histó- guirá outro, isto é, a terceira trilogia, que começa com o volume
ria ao grito de alerta lançado ao mundo, confirmando a previsão já elaborado: Problemas do Futuro, seguido por outros ainda
de seu renovamento. Só hoje, ao fim desta guerra mundial, po- em preparo. Tudo isso formará uma só obra, um único edifício
de-se começar a entender o verdadeiro significado de A Grande orgânico, que, através da solução dos problemas do ser, se pro-
Síntese como sendo o livro da nova ordem do mundo, isto é, o põe a contribuir para que se construa a nova civilização do Ter-
código da nova civilização do Terceiro Milênio. Livro de essên- ceiro Milênio, preparando a nova era do espírito.
cia inspirada, racional apenas quanto à forma, não podendo, por-
tanto, ser refeito ou modificado, pois é de substância completa, I. A VERDADEIRA CIVILIZAÇÃO
arquitetura equilibrada e estrutura definitiva. Isto posto, torna-se
impossível voltar de novo a ele, que é pura intuição e síntese, O conceito fundamental de A Grande Síntese pode resumir-
senão com outra psicologia e de outro ponto de vista, preponde- se nestas palavras: ordem em Deus. Esse trabalho apareceu,
rantemente analítico e racional, embora muitas vezes a inspira- com profética vidência, justamente na véspera do clímax da ho-
ção volte a guiar e iluminar o texto, que é assim analisado, de- ra histórica, no limiar da maturidade dos tempos, a cavaleiro da
senvolvido, completado e aprofundado naqueles pontos em que, maior revolução social do mundo, no momento em que devia
naquela obra, não era possível nem lógico demorar-se. (Foi dito produzir-se grande choque de dor, a fim de preparar os ânimos
no Capítulo LXXXVI de A Grande Síntese: “A natureza deste para receber a boa-nova da concepção regeneradora, estranha a
livro sintético não me permite descer a particularidades”). este mundo tão distante ainda do evangelho. Hoje, que a des-
O momento histórico está adequado a este comentário. truição material e espiritual de tantos valores antigos preparou o
Quem escreve deve saber que alguns conceitos só em determi- terreno para a reconstrução, podemos entender muito mais esse
nados momentos podem ser compreendidos pela psicologia co- livro, filho e precursor dos tempos, paralelo aos acontecimen-
letiva; é inútil enunciá-los antes do tempo, pois não podem ser tos, expressão viva de seu dinamismo, indissoluvelmente fun-
entendidos, ao menos pelos leitores contemporâneos. Porém já dido neles e na renovação social e moral que representam.
chegou grande parte da destruição prevista; a dor atingiu os Os fundamentos desse tratado são profundos, ligam-se com
ânimos; a pobreza, conseqüência da guerra, privando-nos de tan- a gênese do cosmo. Encontramo-los até mesmo no pensamento
tas coisas humanas, convida-nos e leva-nos a compreender a ri- criador de Deus. Essa síntese, abrangendo e unificando o co-
queza das coisas do espírito, tornadas mais necessárias pela ruí- nhecimento científico e filosófico do século, enuncia conceito
na do mundo de nossos tesouros terrestres; a tempestade nos tão sólido, que é possível pô-lo como base de nova civilização,
conduz à razão, através do exame dos pontos fracos do sistema e e tão dinâmico, que pode amparar-lhe o desenvolvimento. Tra-
do reconhecimento dos erros cometidos. Aí está! A Grande Sín- ta-se de um sistema orgânico e compacto, em que todos os fe-
tese, o livro da construção, preparado antes do aniquilamento, nômenos, do campo cientifico ao moral e social, se prendem
quando ninguém o acreditava possível, já está pronto. Este é o em lógica de ferro, de modo a impor-se à forma mental racional
momento de relê-lo e meditá-lo, para melhor entendimento. Esse do homem moderno. Trata-se de um sistema que dá a chave pa-
livro é legado ao atual momento histórico, foi escrito para nele ra a solução, ao mesmo tempo, de todos os problemas, desde os
funcionar como força viva criadora. Evangelho da renovação teóricos e abstratos da filosofia até aos práticos e concretos de
espiritual, livro da juventude, chantado na soleira do futuro mi- nossa vida como indivíduos e como sociedade.
lênio, para além do qual já desponta o dia das novas constru- Esta visão orgânica e completa apareceu pouco antes da ho-
ções, essa obra é legada à vida e à sua ressurreição. Universal e ra em que o mundo, saindo da gigantesca experiência, deve
imparcial é a sua filosofia, divina filosofia que, como expressão caminhar para a reconstrução. Pode-se, pois, definir tal visão
do pensamento divino, a vida e os fenômenos nos expõem; sim- como o plano regulador da sociedade futura. E, além disso, apa-
ples e lógica filosofia dos fatos, que nos espera para dar nova di- receu em grande curva do caminho evolutivo do homem, no
reção à atividade humana, mais de acordo com o moderno pro- ponto crítico de nova maturação biológica, cujo grande signifi-
gresso, isto é, capaz de dar sentido às conquistas mecânicas e ci- cado se compreenderá mais tarde; maturação elaborada em si-
entíficas realizadas. Estas já de tal modo são notáveis, que, para lenciosa e subterrânea incubação milenar e que explode justa-
conservarem a importância, é-lhe necessário conquistar esta no- mente agora, em mortificante e necessário banho de dor, que
va sabedoria. Este volume é o terceiro da segunda trilogia do purifica e renova. Nesse momento apocalíptico e de ebulição,
mesmo autor. A primeira compõe-se de: 1) Grandes Mensagens tal pensamento é exposto como orientação e ajuda, porque ori-
e A Grande Síntese; 2) As Noúres; 3) Ascese Mística. A segun- entação é o que nos falta e, acima de tudo, se torna necessário,
da, de: 1) História de Um Homem; 2) Fragmentos de Pensamen- pois talvez nunca, como hoje em dia, a vontade de Deus esteve,
to e de Paixão; 3) A Nova Civilização do Terceiro Milênio, com na Terra, tão luminosamente presente e tão ativamente criadora.
o qual completa seu terceiro termo. O texto deste escrito (Capí- Enquanto, pois, a natural maturação biológica, presente nas
tulo XVIII) explicará melhor o sentido das duas trilogias, crono- leis da vida, possibilita ao homem, na atual plenitude dos tem-
2 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
pos, a capacidade de compreender e fazer atuar novos critérios conjunto, mas se enquadra harmonicamente no funcionamento
de vida e novas formas de relações sociais, sucedem-se grandes orgânico do universo. Enquadramento gigantesco, em que a
acontecimentos históricos, com a função precisa de elaborar vida se torna imensa. Pode-se objetar que o indivíduo é o que
novos conceitos e acompanhá-los até a sua aplicação. O mundo é, indiferente a tudo isto, completamente aprisionado na visão
agita-se em guerras destruidoras e cruentas para aprender a as- estreita de interesse egoísta, estando a léguas e léguas afastado
similar esses conceitos, que, se não assumissem corpo tangível de semelhante orientação. Mas pode-se também responder que
sob a forma de destruição e de dor, não seriam percebidos pelo essa é ignorância da mais profunda realidade da vida, ignorân-
homem surdo e indiferente dos nossos dias, vivo só na carne, cia de que ele sofre os danos, até mesmo nos próprios cálculos
mais ainda adormecido no que diz respeito ao espírito. Chegou utilitários e egoístas; danos que deve sofrer, porque a sua in-
a hora de compreender essa profunda sabedoria da história, esse consciência não pode impedir o funcionamento das leis da vida
sentido criador que possuem os acontecimentos que elaboramos e as reações das suas forças. Pode-se também responder que o
e seguimos, esse significado divino presente em todos os fenô- progresso biológico é fatal, porque a evolução constitui ten-
menos. O homem, em milenar ascensão, vai despertando for- dência fundamental do ser, e o homem, embora involuído,
mas mais sutis de sensibilidade e de consciência mais perfeita. inerte e rebelde, deve, mais cedo ou mais tarde, ser impelido
Já se percebem no horizonte os clarões da vida nova do espíri- para o alto e transformar-se, cedendo ao irresistível e divino
to. Lá, no futuro, há verdadeiro incêndio de esplêndidas afirma- impulso contido na essência das coisas. Em A Grande Síntese,
ções e criações novas; e a divina lei de evolução quer que o o desusado atrevimento da utopia foi valorizado e enfrentado
homem, embora lhe resista e se atrase, fatalmente ali chegue. com conhecimento. Isso não é loucura, mas resulta do confron-
Chegou a hora de dizer ao homem: Levante-se, filho de Deus, to da vontade e da força de que o homem dispõe, com a potên-
sob forma de consciência mais esclarecida, em estado social cia volitiva e dinâmica das divinas leis da vida, possuidoras
mais orgânico e completo, supere a ferocidade atual e civilize- dos meios necessários para atingir seu escopo e que sabem
se finalmente, mas a sério. Chegou a hora de compreender que muito bem consegui-lo. Há, de certo, luta entre o anjo e a bes-
a nossa assim chamada civilização atual não é civilização, mas ta, mas é da Lei a vitória do anjo.
sim barbárie; de compreender que, no fundo, o homem moder- Muito embora o homem resista, não se lhe pode interrom-
no é primitivo e inconsciente, pobre fantoche, completamente per a ascensão. A vida, através de mecanismo de instintos, de
ignorante, quase sempre presunçoso e prepotente, cego e rebel- reações e de fatalidade, obedece à Lei, e o homem a cumpre de
de, mas, mesmo assim, sem o saber nem querer, obedece à Lei, fato, apesar de não compreender ou não querer. O mecanismo
que o guia, tudo sabe, tudo faz por ele e, manobrando-o como que a executa, o sistema de forças motor desse mecanismo, es-
autômato, sem que ele o saiba, lhe traça a história, prepara os tá justamente dentro do homem, implantado em sua própria es-
acontecimentos, entrosa os choques, apresenta as soluções e trutura, pertencendo ao ser. Mas a este cumprimento da lei se
impõe as conclusões, elevando os lideres, edificando e destru- chega através de erros e de consequentes retificações expiató-
indo, exaltando e abatendo, de acordo com uma sabedoria des- rias; é, pois, fatigante e doloroso. Em A Grande Síntese, ensi-
conhecida pelo homem. Chegou a hora de compreender o signi- na-se, pelo contrário, a respeitar essa lei inexorável, para obter
ficado das ações que indivíduos e povos realizam todos os dias, o menor dano e a maior vantagem possível; ensina-se como,
sem que lhes conheçam o verdadeiro significado e as conse- nesse complexo sistema de forças que é o universo, há de al-
qüências. Chegou a hora de nos tornarmos conscientes colabo- guém movimentar-se sem doloroso choque a cada passo. O
radores de Deus no plano construtivo criado por Ele em nosso que torna atual essa síntese, em correspondência estreita com o
campo terreno, ao invés de estúpidos servidores de Satanás, em momento histórico e com a moderna fase de evolução humana,
absurda obra de rebelião. Chegou a hora de compreender, sendo é a maturidade do tempo, é o desenvolvimento nervoso e inte-
mais inteligentes; de confraternizar, sendo mais honestos e jus- lectual que, hoje, torna o homem apto a receber e aplicar na
tos; de colaborar, sendo mais conscientes. vida estes princípios, que, se tivessem sido enunciados há anos
A vida não pára, é movimento que não se pode fazer parar; atrás, não teriam sido aprofundados, analisados cientificamente
deve, pois, inexoravelmente, amadurecer alguma coisa. Esse e racionalmente demonstrados. Por isso aquele escrito apare-
caminhar da história aproxima-se hoje de uma grande curva, ceu em nosso momento histórico como novo ensinamento, pa-
onde, com o nosso século, se completa um novo ciclo de civili- ralelo à nova capacidade de compreendê-lo.
zação e se prepara outro. Sintomas sutis advertem desse fato os Hoje, essa compreensão é necessária, e não apenas possí-
intuitivos, que sabem percebê-los; isto nos vem indicado pela vel. O homem vive e move-se em campo de forças inteligen-
concatenação dos ciclos históricos, pela lei do equilíbrio nos tes, em que se emaranha; forças que, em face de sua agitação
desenvolvimentos e pela lei do equilíbrio entre ação e reação. inconsciente e desordenada, reagem e lhe fazem pagar caro o
Esta é nossa fase, tal como está inscrita na lógica da evolução erro. Ora, se por causa de menor conhecimento e disponibili-
orgânica do universo; esta é nossa posição no tempo, na série dade de meios, esse erro era até agora mais limitado e, portan-
das maturações milenares; este é o elo que hoje devemos sol- to, de conseqüências mais suportáveis, hoje, que o progresso
dar. Aí estão os germes, mas os germes foram feitos para de- técnico e científico dilatou imensamente o raio de ação do ho-
senvolver-se; aí estão as causas, que tendem a atingir o efeito. A mem e aumentou o poder humano de incidir no dinamismo fe-
Grande Síntese é alarma estridente, antecipação reveladora, nomênico do planeta, não se tolera mais a própria ignorância,
chamamento da atenção para profundas realidades ainda não porque conduz a conseqüências práticas que, agigantadas pelo
vistas, advertência desesperada, apelo que acontecimentos aumentado domínio de meios e possibilidades, podem tornar-
mundiais logo sublinharam e justificaram. Aquele brado de se catastróficas. Vimo-lo na potência destrutiva da presente
alerta já foi lançado, e ninguém pode extingui-lo, do mesmo guerra. Estamos em período de desequilíbrio, porque o poder
modo que não há incompreensão humana à qual Deus tenha de agir é hipertrófico, desproporcionado ao poder de entender
concedido o poder de parar a história ou a vida. e iluminadamente dirigir a ação. O desequilíbrio está presente,
Trata-se de uma concepção que, se nos princípios adere ao hoje, em todas as nossas coisas e em toda nossa vida. Mas o
evangelho, tem agora meios próprios de demonstração, com o próprio desequilíbrio é criador, luta, esforço genético. Procura
escopo de, pela força da razão, atuar na vida individual e soci- desesperadamente reequilibrar-se, hoje, em plano mais alto,
al, onde é praticamente nova. Nova forma mental, orgânica e em ordem mais ampla, onde o homem inclua e assimile novos
harmônica, substitui aqui a antiga, inorgânica e caótica, e as- elementos. É necessário, então, que o pensamento seja dado
sim, neste sentido, não mais o indivíduo permanece isolado do como orientador desse esforço biológico; é necessário que o
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 3
homem, esse menor de idade, aprenda ainda, não destruindo o de hoje, cético, há de sorrir. Mas o certo é que todo o plano
preciosíssimo progresso científico já alcançado, mas comple- dessa construção espiritual obedece à lógica, que não é a lógi-
tando-o com paralelo progresso moral, de modo a equilibrar-se ca míope do momento que passa; visa a objetivos elevados e
a ascensão da matéria com proporcionada ascensão do espírito. longínquos, que não se identificam com o de salvar-se e fruir a
A vida é regida, como já dissemos, por leis inteligentes, que vida; corresponde a pressentimento, a visão profética, a fé an-
têm, buscam e sabem atingir fins próprios; querem a perpetui- tecipadora, a sentido de missão, razão por que o autor deste li-
dade, e não a catástrofe; permitem o perigo, mas como elemen- vro não espera ser logo compreendido e sabe que em vida ne-
to do esforço concluído com a salvação. É, pois, fatal a elimi- nhum fruto verá e colherá, mas semeia para que outros, nou-
nação da desproporção entre o desenvolvimento material a o tros tempos, vejam e colham. Estamos agora na fase negativa.
espiritual e o restabelecimento do equilíbrio. A vida quer. Por Todavia, quem conhece o necessário equilíbrio da vida sabe
isso, certamente, o espírito retomará amanhã a dianteira. que, por causa de paralelismo antitético, o não vem antes do
Aos detentores do poder e aos lideres das finanças e da in- sim, do mesmo modo que a noite vem antes do dia. O cálculo
dústria pode o problema do mundo parecer simples problema das probabilidades nos faz crer que os fatos, porque se repeti-
técnico. Não é, porém, somente problema técnico. E isso por- ram muitas vezes, devam continuar repetindo-se sempre. Mas
que, se as grandes agitações sociais se desencadeiam para con- os equilíbrios da vida reclamam exatamente o contrário. Exa-
quista de objetivos concretos, utilitários, de interesse econômi- tamente porque determinado fato se repetiu tantas vezes, deve
co, a verdade é que a vida, além de vasta e complexa, é una e ceder o passo à posição contrária. Por isso, em lugar de conti-
unitária. Se é esse, pois, seu aspecto, sua fase construtiva de nuação do passado, como vulgarmente se pensa, as situações
momento, ainda existem sempre, embora momentaneamente futuras são, quase sempre, resultado de retorno ao passado.
adormecidos, em estado de latência, os outros aspectos da vi- Confiamos muito nas aparências, mas, especialmente na histó-
da, principalmente o moral, hoje estacionário. É justamente es- ria, como vimos, as aparências enganam.
se o lado oposto, mas complementar, do hipertrófico progresso A natureza é de profunda sabedoria, no entanto vivemos
material de nossos dias. Ora, uma vez que as leis da vida im- muito na superfície. Se perscrutarmos o íntimo e descobrirmos
põem, em todos os pontos, desenvolvimento harmônico e pro- o mistério das coisas, aparece algo bem diferente daquilo que
gresso equilibrado, é lógico esperar-se, agora, correspondente habitualmente se diz, se crê, se faz. Há, no fundo, divina lei, in-
desenvolvimento espiritual, para compensar o contemporâneo teligente, boa e sábia, que a tudo rege e nos guia, como crian-
excesso de progresso material. Quem conhece a organicidade ças, em direção ao bem. Ela exprime o pensamento de Deus. O
funcional do universo deve admitir que o esforço genético das homem não pode, sem grave dano para si mesmo, substituí-la
formas biológicas não pode criar o novo e gigantesco indiví- na direção da vida. Tem, todavia, a presunção de fazê-lo e não
duo coletivo, filho dos nossos tempos, assim desproporciona- se orienta senão por sua ignorância e prepotência. E, como hoje
do, sem equilibradas correspondências simétricas, só membros em dia essa substituição se torna cada vez mais extensa e pro-
e forças, sem paralela sabedoria diretora desses membros e funda por causa do aumento da capacidade intelectiva e da dis-
dessa força. Esta sabedoria é justamente aquela que A Grande ponibilidade técnica, o perigo correspondente vai ficando mais
Síntese antecipa e prepara. e mais grave e ameaçador. Por isso A Grande Síntese é deses-
O progresso material de nossos dias representa, assim, des- perado brado de alarma solto no exato limiar da catástrofe em
proporcionado desenvolvimento unilateral. O ponto crítico que a humanidade poderá encontrar a própria destruição.
tangível, resultante desse desequilíbrio e revelador dessa des- Se tudo isso é estranho à moderna forma mental, alheio à
proporção, é a moderna guerra de destruição. Trata-se de fase corrente que a maioria segue, e se, ao contrário, em geral se
transitória, formadora de excesso, que as leis da vida devem concebe a vida limitada e caótica, isso não impede que a or-
corrigir e reequilibrar, reagindo em sentido oposto. Desse mo- dem e a reação obrigatória existentes no mundo astronômico e
do, demonstra atrofia espiritual a crença de que o problema do químico existam também no universo moral, justamente aquele
mundo seja problema técnico, utilitário, de recursos e maté- em que, por ignorância das leis que o regulam, os homens gos-
rias-primas. Mas, por isso mesmo, surge a complementação do tam de agitar-se o mais loucamente possível. Essa pobre for-
organismo com o desenvolvimento do lado atrofiado. A guerra miguinha, a mexer-se tanto na superfície desse grãozinho de
de destruição nasceu do fato de que o novo poder da técnica, poeira cósmica chamado Terra, sabe por acaso o que efetiva-
sendo mecanicamente acessível a todos e, assim, à maioria in- mente faz e quais as conseqüências do que faz? A ilusão não é
voluída, foi empregado sem discernimento. Os resultados prá- sua herança? Não é mesmo absurdo que, por ignorância do
ticos do progresso acabaram indo às mãos do homem ainda modo como funciona a máquina universal, indivíduos e povos
não moralmente desperto, sem preparo, insuficientemente sá- vivam eternamente dando cabeçadas na parede, sem esperança
bio para fazer bom uso do novo poder. Foi o mesmo que pôr de libertação, oscilando continuamente entre o erro e a dor? E,
faca em mão de criança. Por isso, antigamente, a sabedoria era quando algum esforço é feito para sair desse aperto, por que
mistério para o povo. O progresso mecânico acabou sendo en- deve ser tachado de utopia?
trega de arma perigosa a mãos inconscientes. O homem de ho- Não. Seja qual for a incompreensão, a resistência, a dificul-
je em dia, moralmente deficiente, foi tomado de surpresa dian- dade, a fadiga, não é loucura ensinar que se deve superar a ilu-
te das novas possibilidades que a ciência lhe oferecia. Corpo são e a dor e conquistar valores mais sólidos que os valores do
de gigante com cérebro de criança de peito. Resultado: entre- mundo. Se pode parecer utopia, é utopia do evangelho, utopia
chocar-se o homem com dolorosa experiência, para que apren- decorrente do sublime paradoxo do Sermão da Montanha, que
da na dor e ela o obrigue a completar-se do lado do espírito. menospreza a tudo quanto o mundo estima, utopia de aceitação
Assim, através do sofrimento, as leis da vida hão de reequili- necessária, a menos que se saiba viver como besta ou como in-
brar o homem, que, a par do progresso material, conseguirá consciente ou, então, se volte as costas para a vida tal como a
correspondente e proporcionado progresso espiritual. A Gran- vida é, quer dizer, a menos que se renuncie à reprodução e se vá
de Síntese não é pensamento isolado, mas força viva que, cola- em busca da morte. A existência oferecida por nosso civiliza-
borando com os impulsos biológicos, busca a reposição do díssimo mundo moderno não é aceitável senão para os incons-
equilíbrio e contribui para esse progresso espiritual. cientes, os involuídos, os desonestos, salvo se, no futuro, com-
Aquele livro e estes comentários, por isso, dirigem-se mais plementar-se em melhor estado, estado que lhe justifique as do-
aos homens do futuro que aos de nossos dias, isto é, a homens res e compense a bestialidade. Disso segue-se que, para o ho-
para quem estas afirmações não serão anacrônicas. O homem mem consciente, evoluído, honesto, a vida é apenas missão do-
4 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
lorosa, peregrinação de exilado que, passando por um mundo tivelmente, a lei de Deus quer agora. As forças do mal tiveram
que não lhe pertence, se dirige à sua verdadeira e longínqua pá- o seu dia. Mas Deus disse: Basta. Em todo lugar, ato ou fenô-
tria. Isso tudo pode parecer utopia; todavia, sem ela, nem ao meno do universo, estão presentes Seu pensamento e Sua von-
menos a esperança de futura civilização permanece na palidez tade. A história está pronta; os tempos, maduros. Quer dizer:
mortal do mundo moderno. Animada por essa esperança, a ca- no ritmo da sinfonia dos acontecimentos humanos, no conca-
minhada do exilado se transforma na fadiga do construtor. Os tenamento de causas e efeitos, no desenvolvimento da fatal
céticos poderão sorrir, desviando para a miséria terrena o olhar evolução do mundo, o caminho do tempo está próximo dessa
posto nas nuvens. E haverá até mesmo quem goze com essa mi- maturidade, e a vida não pode recusar-se a percorrer e concluir
séria e se sacie. Cada qual julga como quer, mas, no modo co- essa etapa da evolução.
mo julga, revela a própria personalidade. Aqui, como em A Grande Síntese, se afirma para construir,
Não. O evangelho e as teorias que o seguem são utopias não se polemiza nem se ataca para destruir. Afirmando as eter-
apenas aos olhos do involuído; o céu só é paradoxo se olhado nas leis biológicas, iguais para todos, aderindo à divina verdade
aqui do chão. Para quem não é capaz de sentir pela fé ou enten- no Alto, inviolável, à qual ninguém escapa e é forçoso obede-
der racionalmente que a vida continua no imponderável, para cer, estamos acima das divisões humanas. Não falamos de filo-
esses é absurda, por natureza, a doutrina evangélica da caduci- sofia pessoal e arbitrária, mas objetiva e impessoal, ditada não
dade dos valores humanos. Para o involuído, a vida não conti- por um simples homem, mas pela voz dos fenômenos. Essa voz
nua, é finita, limitada ao breve período terreno. Questão de sen- é verdadeira para todos, quer creiam nela quer não, quer a con-
sibilidade, inteligência, evolução. Mas esta dor dos nossos dias, fessem ou a neguem, quer a sigam ou contra ela se rebelem.
dor que acabará por atingir o mundo todo, é dom de Deus para Deriva de principio diretor, guia de todas as coisas; exprime o
abrir as mentes e levá-las a compreender a aparente utopia. Es- pensamento de Deus. Inútil negá-lo. Esse pensamento existe.
tamos numa curva de nossa maturação biológica, e a dor a ace- Se, às vezes, alguém nega a Deus, é porque Deus existe, e de
lera. Por isso podemos reafirmar estar próximo o reino do espí- Sua existência não existe prova maior do que essa negação.
rito. O mundo o repele porque, involuído, ainda não lhe com- Não se pode conceber e negar o que não existe. A negação se
preende a beleza e a vantagem. Mas sente-lhe a falta, tem fome relaciona apenas com a posição de nosso pensamento, que, seja
de algo que lhe falta e não sabe o que é. O mundo está insatis- qual for a verdade, pode oscilar do extremo positivo, a afirma-
feito. Procura e não acha. Por isso se agita. Só está tranqüilo ção, até ao extremo oposto, a negação. A Grande Síntese anali-
quem achou. A procura da felicidade preocupa o mundo e sou esse pensamento divino, isto é, o plano construtivo do uni-
atormenta-o; mas o mundo não a encontra porque se agita deso- verso; a ela remetemos o leitor desejoso de conhecer essa análi-
rientado, fora do caminho certo. Entre ilusões e mentiras perde se. Ali se derivam conclusões de caráter moral e social de pre-
tempo. Ao invés disso, precisa conquistar conhecimento e, co- missas tão fortes, que se torna impossível removê-las. Aquele
mo consequência, a sabedoria de entrosar-se e colaborar com a livro é, de fato, demonstração que impõe essas conclusões co-
Lei. O novo princípio é ordem. Ordem em Deus, e não desor- mo obrigatórias para todos os seres racionais. Porém, com res-
dem com Satanás. Em A Grande Síntese, não se faz ouvir a voz peito ao “quadro geral”, não nos permitiu demorar em particu-
deste ou daquele partido, religião ou escola filosófica, mas a laridades, exemplificando e materializando o conceito na reali-
voz imparcial dos fenômenos, que canta as harmonias não só da dade da vida prática. Vamos agora transportar para o plano hu-
matéria ínfima, mas também das regiões mais elevadas do espí- mano da ação essa massa de conceitos, transformar em impulso
rito. Não se trata aqui de questões puramente teóricas, de remo- concreto construtivo a luminosidade desse imponderável, isto é,
tos e abstratos problemas filosóficos que não nos dizem respei- vamos transformar o princípio em ação, mas ação que as pre-
to. Trata-se da superação de nossa dor; trata-se da ciência que missas cósmicas iluminem, sustentem e justifiquem. Trata-se de
se propõe superá-la e vencê-la; trata-se de enormes vantagens dar forma bem mais próxima e tangível, mais particular, porém
utilitárias, compensadoras do esforço e do tormento da mortifi- mais real (porque mais aderente à hora histórica), mais humana,
cação a que o homem está submetido; trata-se de finalmente atual e prática, aos princípios universais de um tratado univer-
aprender a viver não mais como crianças loucas, e sim como sal. Trata-se de, entre as mil e uma verdades humanas relativas,
adultos cheios de sabedoria; trata-se de ver com clareza tudo em meio às forças que operam nossa ascensão individual e co-
quanto se relaciona com nosso destino humano, de obter res- letiva, aplicar e trazer até aos homens, cá na Terra, para atuar
posta que esgote todos os porquês e todos os problemas que nos sobre ela, a eterna verdade de Deus. Trata-se de mostrar nos fa-
dizem respeito e, desse modo, de nos comportarmos com pleno tos o funcionamento ainda ignorado daquelas forças, revelando
conhecimento da conseqüência das nossas ações. Loucura con- a ignorância humana ao movê-las e os choques dolorosos resul-
tinuar a atirar assim ao acaso e a embater-se continuamente tantes. Trata-se de educar para melhores formas de conduta in-
contra reações que estupidamente desejamos e nos açoitam até dividual e de convivência social, fazendo o homem compreen-
sair sangue. Chegou a hora de compreender o delicado meca- der as enormes tolices que vem fazendo até agora, com dano
nismo dos fenômenos e civilizarmo-nos; não de brincadeira para si mesmo, e mostrando-lhe como, com um pouco de inte-
como até agora se fez; não mais na superfície apenas, mas em ligência e de boa vontade, poderia poupar-se a tantas dores.
profundidade também; não só na forma, mas na substância; tan- Trata-se de aplicar injeções de bom senso em nossa sociedade,
to nos meios como no fim; na matéria e no espírito. para que ela compreenda a grande vantagem que advirá, para
Completou-se o ciclo de destruição anunciado por Grandes cada um e para todos, de comportamento mais civilizado, inde-
Mensagens e A Grande Síntese. A divina Lei deixou atuarem pendentemente de todo credo e de todo partido. Civilizar-se é o
livremente as forças negativas do mal, que desempenharam a “slogan” do momento. Isso significa que o homem deve olhar
tarefa. Entramos na fase construtiva, a vida colhe seus valores seu próximo com compreensão, superar a ferocidade e o ego-
positivos, e, nos ânimos batidos pela dor, os reconstrutores en- ísmo, isto é, a maioria dos inúteis atritos sociais, tão graves pa-
contram o terreno preparado para o trabalho. O espírito, que ra o funcionamento de toda a máquina, que assim move-se com
através de tanta destruição se libertou de muitas das incrusta- dificuldade, devendo cada indivíduo suportar a sua parte. A so-
ções e escórias da matéria, pode finalmente dizer, depois de ciedade humana é organismo cheio de infinitas inércias, debili-
superado o profundo desmoronamento da onda descendente do tado por inúteis resistências, sempre em luta interna entre uma
materialismo: Eu sou, esta é minha vez, posso criar. E a vida, parte e outra. Isto, sem dúvida, exprime a fadiga construtiva do
que parecia prostrada e morta, torna a soltar, mais forte e mais involuído. No entanto, para que alturas se poderia transferir es-
para o alto, seu eterno grito de juventude. Isso é o que, irresis- sa luta, como seria mais belo e excelente, mais próprio de seres
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 5
evoluídos, lutar por objetivos mais sublimes! Como seria mais fenômeno social. O homem comum, de vistas curtas, pode a
inteligente e conveniente compreender e admitir as necessida- seu talante crer em todas as miragens que quiser, pois a vida
des do próximo e, dada a necessidade e utilidade da convivên- não se preocupa em desiludi-lo a não ser diante do fato con-
cia, torná-la possível com maior senso de concórdia! Que inte- sumado a que elas conduzem, nunca antes. Esse homem pode
ressam as diferenças entre os vários planos políticos do mundo, imaginar que a criação seja caos, a que só a sua vontade sabe e
se os imperialismos são todos iguais e tudo se reduz à substân- pode levar ordem, ordem a seu modo e a seu serviço. As forças
cia biológica de vencer para dominar? Não se pode destruir em da vida deixam-no livre para acreditar no que quiser, nisto ou
ninguém o direito à vida concedido por Deus, não se pode des- naquilo, porém, quando se trata de concluir na realidade dos
truir as forças biológicas, que, se golpeadas, ressurgem amanhã fatos e somente aí, tiram-lhe tudo das mãos e fazem as coisas a
em outra parte, retorcidas pelo golpe, prontas para reagir. Não seu modo. O fato é que existe uma diretriz em todos os fenô-
se pode postergar os equilíbrios e destruir as leis do universo. menos da vida, nos sociais também, independente do homem,
O homem de hoje pode ser ateu, anarquista, delinqüente, muitas vezes em antítese com a sua vontade, muitas vezes pa-
pode crer-se cidadão do caos, árbitro de liberdades impossíveis. ra corrigir e dominar sua intervenção. Na melhor das hipóte-
É próprio de cretinos permanecer assim à mercê da desordem e ses, o homem é intérprete, instrumento, cujo trabalho valerá
da ilusão, quando as leis de todos os fenômenos nos falam de tanto mais quanto mais fiel executor houver sido dessas dire-
ordem, de divina lei inviolável e onipresente, de ações e rea- trizes, quanto mais tiver sabido conformar com elas a própria
ções, de liberdade mas de responsabilidade também; falam-nos atividade, isto é, quanto mais houver sabido agir como função
do enquadramento coercitivo das rebeldes desordens do mal delas, em concordância, e não em choque com o funciona-
nos limites da lei do bem; dizem-nos que a dor castiga o louco mento universal. A presença de uma lei de inteligência supe-
que se atreve a violar a lei de Deus. Quão mais útil e sábio é pa- rior aos meios de compreensão do homem normal, mais forte,
ra todos a harmonização com essas forças, que jamais poderão em poder de vontade e de ação, do que os meios postos à dis-
ser dominadas por nossa revolta e nos esmagam se contra elas posição dele, é fato que resulta de toda a demonstração de A
nos rebelamos! Não é insensata essa brincadeira de desobede- Grande Síntese e não se precisa neste livro demonstrar desde
cer e pagar pela desobediência, sem nunca sentir vontade de o começo. Naquele volume, assim como neste, essa lei é lem-
aprender? A estrutura do universo é o que é, não pode ser alte- brada, ilustrada e tem seu funcionamento explicado em quase
rada. O homem deve compreender que a dor lhe nasce da sua todas as páginas. Tudo quanto, a todo momento, se maneja e
desordenada conduta; que a dor não está na criação, que é bem se aplica deve necessariamente seguir esta lei.
ordenada, nem está em Deus, que é perfeito, mas apenas nele, A verdade que, a cada passo, não muda no espaço e no tem-
homem; que o plano regulador do grande organismo total tende po, o plano firme, o verdadeiro plano orgânico regulador da
irresistivelmente para a felicidade, embora pelos caminhos da história e dos acontecimentos sociais, o real sistema diretor dos
dor. Isso não é ilusão, mas a verdadeira meta da vida. Mas a fenômenos coletivos humanos, que de fato age contra as apa-
buscamos onde não está nem deve estar, é natural, portanto, que rências e através delas, nem sempre reside no que o homem diz,
não a achemos. Assim, por meio da dor, a lógica do universo afirma e proclama em voz alta, mas é estabelecido por essa lei,
nos responde à absurda pretensão de subvertê-la. Quanto nos que, independentemente do homem, conhece e tem nas mãos as
cansamos tomando o caminho errado, no entanto nosso bem já diretrizes da vida. Em outras palavras, se queremos entrar a
está escrito na lei natural das coisas; para atingi-lo bastaria fundo no problema e resolvê-lo seriamente, não se entenda en-
cumprir essa lei expressa na assim chamada vontade de Deus! tão o fenômeno social como fenômeno histórico desejado,
Desse modo, a felicidade continua sendo meta quimérica, ina- compreendido e dirigido pelo homem, mas sim como fenômeno
tingível miragem. Até mesmo a experiência materialista do sé- biológico dependente de leis sábias e poderosas, diante das
culo passado a procurou, mas procurou mal, onde ela não está, quais o melhor que se faz é procurar compreendê-las e obedecê-
e não a encontrou, naturalmente. Estamos, ainda, no começo da las, impondo-as a si mesmo. Os fenômenos sociais e essa série
estrada e precisamos recomeçar tudo. Enganamo-nos. Mas a es- de acontecimentos que compõem a história, aí relatados sem
trada existe, e aqui o demonstramos. conexões, apenas colocados cronologicamente, são na verdade
ligados por íntima lógica e somente poderão ser compreendidos
II. O INVOLUÍDO E A PROPRIEDADE se os reduzirmos ao que efetivamente são em sua substância bi-
ológica, isto é, momentos do funcionamento orgânico do uni-
Começaremos das bases concretas da vida, de seus alicer- verso e a ele ligados. Plano orgânico diretor da sociedade hu-
ces no mundo da matéria, de seus aspectos mais realistas, mais mana, se não quisermos andar às cegas na tentativa e cair na
acessíveis e de maior compreensibilidade, mas, ao mesmo ilusão, só no-lo poderá dar o conhecimento dessa lei e nossa
tempo, menos adiantados. Conseguiremos desse modo, ascen- adesão a ela; as normas diretoras da vida coletiva não podem
dendo pouco a pouco na escala da evolução, atingir no topo os ser artificiosa criação humana, conseqüência de premissas abs-
aspectos mais refinados e espirituais da vida, aqueles a que só tratas, fora da realidade, mas devem ser as próprias normas de
os eleitos conseguem chegar. Em geral, os planos orgânicos toda a vida aplicada ao caso especial da sociedade humana.
segundo os quais se traçam as diretrizes humanas do funcio- Quem, no próprio caso, separa-se do todo, concebendo os fe-
namento coletivo são elaborados à luz de concepções filosófi- nômenos isolados, permanece alheio à organicidade do todo,
cas, políticas, sociais, todas relativas e artificiosas. Quando que é conjunto conexo e compacto, unitário e impecável. Era
não se trata de castelos no ar, de formas fictícias, de produtos necessária tal premissa, que nos garantisse base de absoluta so-
de cerebralismo ou de criações mentirosas do mundo, que es- lidez, premissa indispensável para quem quer construir seria-
condem realidade totalmente diferente, trata-se então de erigir mente, construir sem espírito de partido, não para uma classe
em sistema o caso particular e relativo do indivíduo que con- social apenas, de acordo com interesse particular, para vanta-
seguiu sobressair-se a ponto de tornar-se expoente. Explica-se gem de um só grupo ou povo, mas construir universalmente,
dessa maneira como tais sistemas muitas vezes não se realizam com estabilidade, acima da luta e das divisões humanas. As
e, historicamente, terminem em ilusão, levando à contradição e afirmações e conclusões que derivarem dessas premissas, mais
à luta, ao invés de atingir a meta proposta. É lícito nos pergun- do que opinião, teoria ou produto pessoal, serão o resultado da
tarmos agora o que de fato acontece sob as aparências da histó- simples verificação objetiva do funcionamento das leis da vida,
ria, que outro plano, diferente daquele visto na superfície, atua serão a própria expressão delas, serão proclamadas pela própria
na profundidade e quais as verdadeiras e efetivas diretrizes do voz dos fenômenos. Procuramos com isso alcançar imparciali-
6 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
dade e solidez. Da verdade partidária e interessada não saberí- evolução atingido. Essa classificação diz respeito à íntima e re-
amos o que fazer. Nada se cria com isso. A solução do proble- al natureza do indivíduo e é a única a levar em consideração a
ma já existe; trata-se apenas de saber vê-la e, com simplicidade, substância. Não é o caso de demonstrar aqui a realidade da evo-
expô-la. Ligamos, portanto, o fenômeno social, pelo qual fica- lução, ainda que no plano das ascensões humanas. A verdade
mos marcados, ao conceito fundamental de A Grande Síntese, desse fenômeno fica demonstrada em cada página de A Grande
resumido no princípio: ordem e Deus. Síntese. Da observação resulta que, segundo o próprio grau de
Os fenômenos humanos, políticos e sociais, encontram, evolução, mudam a estrutura orgânica, nervosa e psíquica, bem
pois, sua expressão mais simples na vida animal e nessa, que os como o estilo de vida do indivíduo. As classificações sociais,
encerra em embrião, têm suas raízes; são os mesmos fenôme- face a essas fundamentais diferenças de peso específico indivi-
nos, porém levados a mais alto grau evolutivo. Os problemas dual, são simples estruturas de todo fictícias, instrumentos de
sociais, no fundo, são os mesmos fundamentais problemas da luta, meios para esconder a realidade, que permanece debaixo,
vida, isto é fames e libido, conservação do indivíduo e multipli- inviolável, a verdade pronta a revelar-se a qualquer momento.
cação da espécie, comida e sexo. Crescimento demográfico, A nossa assim chamada civilização é em grande parte questão
imigração, guerras, expansão, dominação, vitórias e derrotas, de forma, simples verniz. A fase de legalidade jurídica atingida
capital e trabalho, propriedade, coordenação de funções, disci- por nós é manto que cobre bem ou mal essa substância biológi-
plina das relações impostas pela convivência, aí estão proble- ca; o homem, se graças a ele pode parecer diferente, permanece
mas que a vida conheceu e resolveu antes do homem tê-lo feito substancialmente o que é na realidade biológica. Caso se trate
e, mesmo sem ele, em outros agregados sociais animais, resol- de ladrão ou delinqüente, o ordenamento jurídico poderá impe-
veu-os segundo os princípios eternos, participantes do sistema dir que continue a prejudicar, mas ele permanece o que é. Isso,
orgânico que, em toda parte, rege todos os fenômenos. Não po- e não o que aparenta, é o que interessa conhecer. Posição soci-
deremos resolver esses problemas, como hoje se nos apresen- al, poder econômico, valor aparente não têm importância. E até
tam, na fase evolutiva do nível humano atual, senão de acordo as classificações sociais, enquanto não corresponderem à classi-
com os mesmos princípios utilizados pelas leis da vida para re- ficação biológica, carecem de importância.
solvê-los em graus evolutivos mais elementares, seguindo a ló- Isso nos permite levantar o véu das aparências e penetrar na
gica íntima segundo a qual foram construídos, penetrando-os realidade da substância. Tudo fica mais verdadeiro, mais sim-
em profundidade, reduzindo-os à sua essência. Veremos quanto ples, mais compreensível. Assim, por exemplo, explica-se o
tudo isto os torna mais claros e simples, lógicos e harmônicos. materialismo como fenômeno de involução, fase de descensão
Sob as mais desvairadas teorias sociais, sob as mais complexas evolutiva, antecedente de novo surto evolutivo, e se compreen-
superestruturas ideológicas, o homem aplica simples leis bioló- de a psicologia negadora do materialista e do ateu como a de
gicas, luta e progride biologicamente, segundo os métodos da primitivo incapaz de sentir as forças do espírito. Assim, embora
vida, para atingir-lhe os objetivos, seguindo as estradas já prati- mais inferiores, o delinqüente, o anarquista, o gatuno são ape-
cadas na vida animal, pois a vida é uma só para todos, guiada nas tipos biologicamente baixos, ainda não civilizados na subs-
por lei única, embora diversamente adaptada aos diversos pla- tância, não importa se o sejam na forma. Em nossa sociedade
nos evolutivos. Essa unidade de diretrizes é a base da fraterni- podem prosperar até mesmo sob as normas da legalidade, po-
dade de todos os seres, que não é utopia e que os mais adianta- rém, numa civilização verdadeira, que não considerasse apenas
dos sentem; fraternidade não apenas entre todos os seres, mas a superfície, mas também a substância, isso não deveria ser
entre todos os fenômenos. E o homem está inserido no âmbito possível. É evidente que não se pode levar a sério senão uma ci-
da divina lei, que, com apenas um princípio unitário, rege todos vilização em que isto não é possível. Todavia quantos e quantos
os seres e todos os fenômenos. indivíduos hoje folheiam o código e aprendem a não infringi-lo.
Os especiosos apelativos modernos, os inumeráveis “ismos” Esses aprenderam somente a afiar as armas, a conquistar em as-
com os quais se definem os vários sistemas humanos podem ser túcia o que perderam em brutalidade, e, ao invés de transformar-
entendidos apenas se assim reduzidos a seu denominador co- se evoluindo, firmam-se na estrada da involução. Permanecem
mum biológico. Essa substância os liga, reconduzindo-os à úni- inadaptados à verdadeira vida coletiva orgânica consciente. Que
ca verdade mãe de todas as coisas, que permanece constante importa a forma, se na substância continuam agressivos egoís-
acima de todas as formas, em todos os climas, tempos e povos, tas, ignaros da sociedade como o homem das cavernas?
a verdade aplicada por todos, embora calada, combatida, nega- Face à propriedade, primeira disciplina na aquisição dos
da. Assim, os problemas sociais se reduzem, na base, à luta pa- bens, esse tipo biológico revela-se o involuído que é. Está sem-
ra obter meios de vida, garantir sua posse e proteger a si mes- pre pronto a roubar, apenas a reação protetora e defensiva da lei
mo, à família e aos filhos. Desse modo nascem os problemas do possa ser evitada, de modo a não produzir-lhe dano. Tal tipo
capital e do trabalho, da propriedade, da família e dos institutos deve ser muito comum, pois a lei e o costume humano foram
jurídicos fundamentais. Se a substância do direito não muda constrangidos a partir da presunção de má-fé, até prova em con-
através dos séculos, isto se deve ao fato de ela exprimir leis bio- trário. Não tem senso de propriedade senão da própria, e só o
lógicas eternas. O progresso aperfeiçoa as relações, completa-as temor de uma punição o induz ao respeito alheio. E a ameaça
nas particularidades, melhora-as na substância, fazendo-as pro- defensiva pode tornar-se até mesmo educativa, enquanto este,
gredir, cada vez mais, em direção à justiça, mas a raiz não mu- pouco a pouco, aprende, através dos séculos, mais elevadas
da. O direito só pode ser entendido se o referirmos à sua subs- formas de vida. E, paralelamente, a defesa da propriedade pode
tância biológica; apenas tem sentido como ato de coordenação assim tornar-se cada vez menos férrea, brutal, material e cada
que, cada vez mais harmonicamente, exprime essa substância. vez mais pacífica, simbólica e imaterial. Essa defesa será cada
No entanto, em vez disso, muitas vezes coloca-se na base do di- vez menos feita por muros, por grades, por armas, por sanções
reito público e privado abstrações metafísicas, axiomas arbitrá- materiais, e cada vez mais reduzida a simples sinal indicador, a
rios, premissas não enquadradas na fenomenologia universal e reações menos violentas, a sanções puramente morais. Porém,
não justificadas pela realidade dos fatos. As verdadeiras pre- embora a defesa se desmaterialize, isto é, tenda à própria anula-
missas dos fenômenos sociais, enquanto fenômeno da vida, são ção no entendimento pacífico, é sempre o temor da pena que
biológicas, e não filosóficas, metafísicas, políticas. inibe esse tipo biológico, e isso o revela como involuído. Invo-
Isso posto e esclarecido, classifica-se então os homens não luído, porém, que talvez já tenha o pressentimento de formas
teoricamente, com base em premissas artificiais e sistemas arbi- sociais mais elevadas, nas quais já não domina a usurpação e a
trários, mas conforme seu real valor biológico, isto é, o grau de força, mas o direito e a justiça. Tem o senso da superioridade
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 7
do sistema bem diverso do evoluído e nesse sistema procura ta para vantagem exclusiva destes, lhe justificam a revolta. E,
mimetizar-se para melhor esconder-se, justificando-se. Por isso então, a vida social reduz-se a luta de igual para igual, entre
eles gostam tanto de recobrir-se com o manto da justiça e eter- igualmente injustos, entre igualmente involuídos.
nizar-se no poder, para fazerem da autoridade, que é dever e A rebelião do oprimido, por sua vez, justifica a posição
missão, base de direitos e arma de ataque e defesa. Como o as- defensiva e opressiva dos ricos dirigentes. Decaídas as apa-
salta a preocupação de justificar-se com encenação de legalida- rentes distinções humanas, restam a qualidade comum de in-
de! Com que cuidado procurava o Sinédrio dar forma legal de voluídos, única distinção interessante, e a característica de in-
juízo à supressão de Cristo; com que trabalho procuravam os justiça, inerente a seu sistema, que os iguala na mesma culpa e
assassinos de Luiz XVI aparecer como juízes, e não como as- nas mesmas conseqüências. A vida social é assim, na realida-
sassinos comuns! E que satisfação para os homens poder, em de, corrente de injustiças, de afrontas e reações; todos têm e,
todas as revoltas, roubar e matar legalmente, isto é, seguramen- ao mesmo tempo, não têm razão; todos são credores e devedo-
te, sem temor de sanções punitivas, único obstáculo para eles, e res, com a resultante estável, em que todos se reencontram, de
fazê-lo como autoridade alta e tranqüila, e não mais com a in- invariável regime de incerteza e de ódio. O tipo biológico
certeza e o perigo de ladrões! E, se a coisa dá certo, o resultado evoluído compreendeu, ele somente, a utilidade de diferente
da força e do furto assim se estabiliza e se regulariza depois sob sistema de agir, de justiça ordenada; compreendeu, acima de
o manto de legalidade humana, que, como se crê, basta para tudo, que isso não se pode inaugurar com a injustiça do lado
tornar justo o injusto. Pobre autoridade e pobre propriedade! exatamente da parte que reclama justiça apenas para si mes-
Que triste gênese, que posição ao nível do involuído e que ma, mas tão-só com a justiça praticada, antes de tudo, por si
grande caminho para purgar e resgatar aquele pecado original! próprio em relação aos demais, sem nada pedir-lhes à injusti-
Mas, assim que, em qualquer convulsão social, o exercício da ça. Só com tal sistema pode resolver-se o problema. Mas o in-
sanção jurídica diminui de intensidade, vemos o involuído, tão voluído compreende apenas o primeiro sistema, e este não
logo possa fazê-lo sem perigo, tirar a máscara e revelar-se o que basta para resolver o problema. Contudo é de lógica elementar
é, dando-se abertamente ao furto, a forma primitiva de aquisi- a compreensão de que a estabilidade só se obtém com o equi-
ção da posse, forma própria do involuído. Esse é caminho mais líbrio. Ao invés, o involuído prefere acreditar que se possa ob-
breve do que o trabalho, forma própria do evoluído, que o reve- tê-lo com o esmagamento e o engano. Absurdo. Mas, se com-
la e presume estado orgânico coletivo, ignorado na fase inferior preendesse, não seria involuído; apenas chega a compreender,
do outro. Todavia, embora seguro da impunidade, o involuído, muda de sistema e se torna evoluído. No entanto, hoje, de in-
em defesa, para justificar-se perante a própria consciência e a voluídos se formam as massas humanas, que não imaginam
consciência alheia e dar a si mesmo ao menos a ilusão de ter as serem assim. O poder obtido pela violência e a propriedade
mãos limpas, gosta sempre de assumir posição de justiceiro, obtida pelo furto são apenas ilusão e traição e, por isso, ao in-
como agressor do rico e protetor do pobre, camuflando-se de vés de ajudar, prejudicam a quem lhes adquiriu a posse; não
evoluído para fazer mais bela figura e não passar, coisa que se imagina que isso, por inviolável lei da natureza, é verdade
mais o desagrada, pelo ladrão que ele percebe ser, a fim de me- igual para todos, como é de justiça. O homem comum, cren-
lhor servir-se, mais cômoda e seguramente, no banquete – seu do-se árbitro de tudo, nem suspeita mover-se em meio a orga-
supremo objetivo – assim vestido de juiz. Por mais astuto, po- nismo complexo e perfeito, de forças muito mais inteligentes
rém, que o involuído possa revelar-se diante de tudo isso, to- e poderosas que ele; se soubesse mover-se sabiamente, de
dos compreendem que realidade se esconde debaixo da menti- acordo com elas, obteria a felicidade; movendo-se, ao invés,
ra, reveladora de toda a miséria moral do primitivo. Inútil ca- loucamente, em choque, obtém apenas perdas e dores.
muflar-se. Roubando, não se pratica o bem; não tem valor a Subiremos neste volume, pouco a pouco, até às mais altas
esmola que se faz com as coisas alheias. Embora se disfarce, o formas de vida do evoluído. Mas, na base da humanidade, o in-
ladrão bem sabe que, enquanto ladrão, não está e não pode es- voluído, em número predominante, se acha presente e a obser-
tar do lado da justiça. Mesmo que o rico tenha sido ladrão, não vação do fenômeno social nada nos oferece de importante se-
é lícito roubar, nem mesmo aos ladrões. É inútil que o ladrão não o espetáculo da sua psicologia. Nossa humanidade é primi-
procure tornar justo seu furto, acusando de furto quem roubou tiva, riquíssima de energia, mas pobre de sabedoria; extrema-
antes dele. É vã sua desesperada tentativa; belo e bom pretexto mente dinâmica e extremamente ignorante. Isto é fato conheci-
para enriquecer comodamente; simples astúcia que pretende do. O homem é o que é e está bem onde está. As dores que o
dar a entender se possa roubar honestamente. O involuído che- gravam lhe são proporcionais à sensibilidade e à ignorância. As
ga até à astúcia, mas não pode subir mais, até à honestidade. O provas que encontra e deve superar são as da sua classe, do seu
método que ele escolheu, embora camuflado, o revela em fla- nível evolutivo, adaptadas às suas capacidades. Para sermos
grante, tal qual é: involuído, primitivo, ignorante. Não conhece práticos e compreensíveis, devemos permanecer ainda nessa
as consequências e ilude-se. Esses justiceiros fingidos, que pu- atmosfera, com o objetivo preciso, porém, de levar-lhe a luz
lulam tão logo a ordem social enfraqueça a reação defensiva, que lhe falta. Insistamos, pois, no fenômeno basilar da proprie-
não sabem que, embora tenham conseguido, por meio da astú- dade, iluminando-lhe, porém, o conceito. O conceito jurídico e
cia, fraudar a lei humana e apareçam cobertos pelo belo manto moral não basta. Nesse campo, estamos cheios de ilusões. O la-
da justiça, deverão, todavia, por lei biológica, mais cedo ou do imponderável, que afinal pesa tanto a ponto de revelar-se e
mais tarde, pagar com os próprios bens. impressionar o ponderável, nos foge quase completamente,
Poder-se-ia, porém, virar a medalha e ver a injustiça oposta, também nesse caso. Os princípios jurídicos fazem crer ao invo-
vinda desta vez da parte da classe dominante, que se revela dis- luído que, para tornar estável e segura a propriedade, bastam as
posta apenas a defender-se a si mesma. É verdade: quem rouba garantias sociais e jurídicas. Eis, contudo, o que de fato aconte-
é sempre ladrão, mas também, muitas vezes, é o pobre a quem a ce muitas vezes. Procura-se adquirir a propriedade através de
lei biológica grita: você tem direito à vida. Esse direito de to- qualquer meio, aí compreendido, se necessário, o furto. Será
dos, até mesmo dos deserdados, é uma espécie de justiça, seja descarado e as claras em períodos de desordem; velado, astuto,
embora na forma primitiva do involuído. O evoluído não recor- nos períodos de ordem, legalizado na forma, para poder evitar a
re a ela nunca, por nenhuma razão, mesmo à custa da própria relativa sanção jurídico-social. Debaixo das aparências da lega-
morte. Mas o involuído, que, falto de outros recursos, deve, to- lidade trabalhará, imperturbável, o instinto de ladrão, caracte-
davia, viver, pode ser constrangido a recorrer. O esmagamento rístico do involuído. Embora atingida a posse, que é o objeto,
do pobre, sua expulsão da ordem dos vencedores, ordem impos- através de furto mais ou menos evidente (não é fácil acumular
8 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
riqueza rapidamente apenas com o trabalho honesto), o primei- priedade constituída de forças equilibradas, ou seja, a proprie-
ro instinto do ladrão é consolidar a posição, procurando segu- dade adquirida pelo trabalho, e não pelo furto. Face a essa rea-
rança na legalidade que o proteja. Ninguém, mais do que ele, lidade biológica mais profunda, desvanece-se a importância da
tem necessidade, para esse fim, do instituto da propriedade, defesa jurídica do Estado, substituída pela defesa das leis da vi-
porque ninguém, mais do que ele, está em posição tão precária da, defesa muito mais segura e profunda. O conceito de prote-
e tem tanta urgência de garanti-la e estabilizá-la. Justamente o ção por meio de individual e livre cumprimento da lei de Deus
filho da desordem tem maior necessidade da ordem, necessária substitui o de proteção por meio de convenções humanas.
para gozar em paz os frutos da desordem. Assim, ninguém mais Qualquer pessoa, então, adaptando-se a ela, pode pôr-se em po-
do que o revolucionário sente a necessidade de, enquadrando-se sição de equilíbrio e, pois, de segurança; qualquer pessoa, rebe-
na legalidade, justificar essa posição e de, transformando-a em lando-se, pode pôr-se em posição de desequilíbrio e, portanto,
autoridade, garantir a atitude de violência. Atingido o objetivo, de insegurança. Essa a substância, a vida íntima do fenômeno,
o involuído procura tirar vantagem das formas de vida mais sua vontade, esse o jogo de forças que o animam e o levam à
evoluídas, das conquistas superiores feitas no ordenamento so- conclusão. A legalidade é forma, roupagem qualquer, que nada
cial, não por tipos do próprio plano, mas por mais adiantados. tira ou acrescenta à substancia do fenômeno.
O ladrão e o violento apressam-se, então, a limpar de novo as O ditado popular “O crime não compensa” já observou que
mãos e assumir a atitude de pessoas de bem, naturalmente me- o ganho por mal não frutifica, não nos causa gozo, acaba em ru-
recedoras do respeito de que necessitam para gozá-la em paz. ína, traz mais dano que vantagem. Há, pois, além do elemento
Com que ânsia procuram, então, esconder as origens obscuras e jurídico, algum outro, decisivo, invisível, mas de força capaz de
o passado desonesto, cobrindo-se de títulos, benemerência, re- desconjuntar os resultados a que a estrutura jurídica se esforça
lações conspícuas, envernizando-se de incorruptibilidade e se- por chegar. Pode existir, pois, propriedade que, embora jurídica
nhorilidade! É a sua evolução. Serão, daí por diante, os mais e formalmente justa, não o seja, de fato, em substância. Então,
encarniçados conservadores, os homens da ordem, porque só essa diversa estrutura íntima anula a forma, e a imperfeição da
agora dela fazem parte. Mas, enquanto se civilizam e debilitam primeira anula a perfeição da segunda. É necessário, para per-
no bem-estar, esquecem de quem ficou para trás e, na miséria, durar, que a propriedade seja sã, íntegra, justa e inteiramente
espera a oportunidade de fazer nas suas costas o mesmo jogo honesta, da cabeça aos pés, em todos os momentos, até mesmo
por eles feito contra os que chegaram antes deles. O resultado nas origens, nas raízes. De outra forma, por mais que se cubra
final é interminável subir e descer de indivíduos em constante de justiça formal, é edifício construído na areia. Existe impon-
regime de engano e de furto, todos em luta entre si; todos derável lei interior, que tão pouco se leva em conta; lei de fun-
igualmente ladrões e violentos, à caça de conquistas efêmeras, cionamento automático; lei a que, por ser interior, ninguém es-
ladrões de miragens. Levando-se em consideração a psicologia capa, sempre presente, inerente às próprias coisas. O tipo invo-
e ignorância das leis da vida, é natural esse modo de agir. Mas, luído dominante não compreende esse fato elementar, isto é,
através de tantas fadigas e astúcias, conseguem eles o objetivo a que o furto, embora nobilitado na forma, não pode, de fato,
que se propuseram? A propriedade significa tentativa de estabi- apoderar-se de nada e, se o faz, não mantém, o que, para ele
lização de fase desse ciclo, mas a tentativa falha. O instituto da mesmo, é o mais importante. Ora, se quisermos subir para for-
propriedade se reduz, desse modo, por parte da sociedade, ao mas de vida que, a sério, se possam chamar civilização, é ne-
reconhecimento oficial do furto consumado, à homenagem que cessário que o tipo comum compreenda que a propriedade não
a vida presta ao vencedor só porque é vencedor. A Revolução somente é fenômeno biológico natural e indestrutível, comum
Francesa, camuflada de justiceira, não acabou em nova aristo- até mesmo para os animais, que bem o conhecem, mas fenôme-
cracia napoleônica? Vale a pena fazer esse jogo de riqueza a no determinado também por outros elementos além dos comu-
turno? É certo que, com essas alternâncias, a vida atinge uma mente levados em conta, e que, entre todos eles, tem a primazia
espécie de justiça distributiva, mas também é fato reduzir-se a o mais insuspeitado e descurado: o mérito. É da Lei: se existe
propriedade, entendida como instituto jurídico protetor e coor- mérito, a propriedade perdura e rende; se não existe, dura pou-
denador, a tentativa falha, porque, na realidade, não atinge seu co e não rende. A Lei é justa e impõe que cada ato nosso nos
objetivo, não constituindo sólida garantia. A construção huma- renda de acordo com o que de salutar nele introduzimos de bem
na falha, pois. Vistas assim as coisas, além da aparência, na ou de mal, proporcionalmente, isto é, tanto gozo quanto a por-
substância, podemos concluir que apenas a lei biológica não fa- centagem de honestidade e de nosso valor intrínseco contido
lha e atinge seu objetivo, a justiça, seja embora apenas a torna- em nosso ato; e tanto veneno quanto de mentira e de traição lhe
da possível pela ignorância humana. O escopo da vida não é o injetamos. Chegou a hora de o homem compreender: é perigoso
enriquecimento de ninguém, mas a existência garantida para manipular as forças do mal, porque, embora dirigidas contra os
todos, como meio para atingir fins mais elevados. Ela nos deixa outros, recaem sobre quem as maneja; a mentira é perigosa
a fadiga da luta, como prova para aprender e evoluir. porque gera o erro em quem a diz. A astúcia, a força, conside-
Depois dessas reflexões, nos damos conta de quão falso e radas como armas úteis, tornam-se prejudiciais, porque automa-
incompleto é nosso conceito de propriedade. Na realidade, não ticamente se voltam contra quem as emprega.
é apenas instituto jurídico que as convenções sociais bastem pa- Poder-se-ia, contudo, objetar: não faltam exemplos de la-
ra regular, mas jogo de forças vivas e inteligentes em movimen- drões que conservam e gozam as suas riquezas. Para responder,
to no campo da vida, de acordo com leis próprias. Daí segue é preciso dar o significado correto da palavra mérito. Sem dú-
que a estabilidade não pode ser qualidade exterior, com a virtu- vida, o furto é a forma original de aquisição de bens. Em socie-
de de modificar-lhe a essência íntima e corrigir-lhe os erros dade ainda não civilizada, o problema é tirar do mundo externo
congênitos, mas é qualidade interior, posição só resultante de tudo o que nos serve, seja qual for o meio. Não se fazem, pois,
estado de equilíbrio. Daí, ainda, novo modo de entender as distinções nos métodos de aquisição; é indiferente atingir o ob-
formas de aquisição, modo contrário ao em voga. Em outras pa- jetivo com o furto ou com o trabalho. Estes, em fase caótica de
lavras, a tão procurada estabilidade não é, absolutamente, dada formação, então, se confundem. Todo meio é bom desde que
pelas exteriores garantias jurídicas, mas por íntimo e substanci- atinja o objetivo: viver. Em mundo assim não surgiu ainda a
al estado de equilíbrio dos impulsos constitutivos do fenômeno, idéia do respeito à propriedade alheia, idéia que é produto de
em que então, por muito tempo, poderá reger-se estavelmente longa elaboração social na convivência. Se, com o progresso, a
não só a propriedade juridicamente protegida, condição que se coexistência dos impulsos leva, pouco a pouco, à sua coordena-
torna de importância secundária e fictícia, mas também a pro- ção, o homem, todavia, aprende a executar o esforço de aquisi-
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 9
ção e, aplicando nele múltiplas atividades, forma os instintos equilíbrio estável. Assim, é o mérito – filho da honestidade, da
que a convivência disciplinará em formas mais evoluídas e pa- operosidade e do valor individual – que vale, pois estabelece o
cíficas, transformando-os em atitudes de produção, em qualida- grau de equilíbrio do sistema, o grau de pureza do organismo e,
des técnicas, em hábito de trabalho. A fase primitiva de forma- portanto, o seu grau de resistência. Se há mérito, a propriedade,
ção é, em seu tempo e lugar, necessária, embora, em sociedade embora roubada, renasce; se não, automaticamente atrai o furto
civilizada, revele o involuído. De fato, é através do furto que se e, por natureza, tende a fugir das mãos do possuidor. Assim é a
formam as capacidades, porque estimula a inteligência e a ati- força protetora dos bens, e quem compreendeu tal mecanismo
vidade. Se, em fase primitiva, as leis da vida premiam o ladrão não busca proteção na tutela jurídica e nas astúcias administra-
com a posse, isso mostra que, ao nível dos selvagens, o sistema tivas, mas no intrínseco direito representado pelo mérito. Esta é
pode ser justo e servir a determinada função. Começa-se, assim, a semente criadora da verdadeira riqueza, a única que a man-
por este modo, a formar no indivíduo essas qualidades que mais tém. Só nessa força existe aquela segurança que em vão pedi-
tarde constituirão o mérito, isto é, o trabalho, a habilidade, pri- mos às defesas legais. Eis tudo quanto encontramos nas raízes
meiros dos elementos constitutivos do direito de posse e, de fa- da vida social. Todo o nosso mundo é falso, baseia-se na ilusão
to, adaptados a manter os bens nas mãos do possuidor, prote- e, por isso, naturalmente, colhe o que vimos. Mas isso é tudo
gendo-lhe e mantendo-lhe a posse. O processo evolutivo parte quanto de fato merece. Infelizmente, o involuído domina, cons-
do furto e vai em direção ao instinto e à capacidade de produzir, tituindo a ilusão sua natural herança. Um dia compreender-se-á
representativos do método de aquisição em plano mais evoluí- que vale o que somos, queremos e sabemos fazer e, portanto,
do. A propriedade não deriva de momento único, mas é forma- merecemos, e não o que possuímos. O objetivo, hoje, é possuir,
ção contínua; é economia de caminho. Não basta conquistá-la, é e o homem é o meio, no entanto possuir é meio, e o homem, o
preciso saber mantê-la. Pode acontecer, então, ter o desonesto, fim. Pode-se perder o que se possui, mas não o valor e o mérito,
que conquista a propriedade através do furto, adquirido aquelas que estão naquilo que somos. Quem merece e sabe, tem em si o
qualidades de operosidade e de habilidade que lhe formam a germe que o fará recuperar, multiplicado por cem, tudo quanto
base e lhe permitem a conservação em sociedade civilizada. perdeu. Quem não merece é usurpador em posição de equilíbrio
Sendo sadio e equilibrado, isto é, correspondente ao mérito, es- instável, continuamente ameaçado pela tendência da Lei à justi-
te segundo momento do processo pode, segundo o seu valor, ça, isto é, ao equilíbrio pelo qual as forças biológicas continu-
sanar e equilibrar o primeiro. Assim, produtos da injustiça po- amente o assediam, não se acalmando enquanto não lhe houve-
dem transformar-se gradativamente em produtos de justiça, e rem retomado o que foi mal ganho. O efeito é dado pela causa;
desse modo se explica por que se mantêm eles de pé, quer di- toda forma de vida tem as características derivadas das de seu
zer, como alguns ladrões possam gozar em paz riquezas rouba- germe. Assim, todo fenômeno se plasma e se desenvolve diver-
das. Nestes casos, o pecado original da aquisição ilícita vai samente, segundo a natureza das suas forças determinantes. Só
pouco a pouco sendo absorvido e neutralizado por aquela dose quando o homem começar a compreender esses princípios tão
de trabalho e habilidade que o sujeito possui e desenvolve. Es- elementares, poderá começar a chamar-se civilizado. Neste ca-
sas qualidades ele as conquistou com suas canseiras; constitu- pítulo desenvolvemos, do ponto de vista prático e concreto,
em-lhe, pois, o mérito, o direito; representam a porcentagem de começando pelo fundamento da vida em sociedade, os concei-
justiça com que pode compensar a injustiça. Não podemos pa- tos de A Grande Síntese sobre a propriedade (cfr. Cap. XCIII –
rar apenas no momento da aquisição da propriedade, pois, nas “A Distribuição da Riqueza”).
trocas e na administração, ela se reconstitui a cada momento.
Pode até acontecer o caso oposto, em que a honestidade, na III. TIPOS BIOLÓGICOS E MÉTODOS DE AQUISIÇÃO
aquisição, seja depois corrompida por dose tão grande de pre-
guiça e de inaptidão, isto é, de demérito, que fique neutralizada As considerações do capítulo precedente nos levaram ao in-
em sentido oposto, e se chegue à perda da propriedade hones- terior e à substância do instituto jurídico-social da propriedade,
tamente adquirida; isso também é justo. Assim, a posição do com o qual o homem disciplinou o fenômeno biológico, co-
justo pode passar a ser a do injusto; e a do injusto, a do justo. mum até aos animais, da aquisição dos bens, fato que interessa
Como, na fase mais baixa, o objetivo era roubar para viver, ho- sumamente à vida, porque representa o meio necessário à sua
je o objetivo é produzir, e a lei do mérito tende a atribuir a pro- continuação. Mas vimos que essa disciplina pára na superfície
priedade a quem melhor saiba trabalhá-la e fazê-la dar frutos e que, sozinha, não é suficiente para regular estavelmente as
para o bem de todos. Esta higienização retificadora pode funci- forças do fenômeno. Não se nega com isso a importância dos
onar mais ou menos, mas a propriedade permanece sempre na ordenamentos jurídicos, mas observa-se que eles não sabem
dependência da lei do mérito, isto é, em estrita relação com a ordenar senão até certo ponto e devem ser, por isso, completa-
porcentagem de mérito contida no fenômeno, porque é essa dos com princípios mais perfeitos, que nos permitam penetrar
porcentagem que lhe estabelece o grau de justiça e de equilí- mais a fundo na substância do fenômeno. Trata-se de progre-
brio. Simples caso de relação. Pode-se assim prolongar a vida dir, e sabemos que a evolução é processo de progressiva har-
de posse viciosa até ao caso-limite do resgate, que se verifica monização. Não se trata, por isso, de demolir nenhuma das
quando todo o débito originário esteja pago com trabalho e ren- preciosas conquistas já realizadas, frutos de fadigas e obra de
dimento sociais, como também se pode, de outro lado, perder gênio, mas tão-somente de continuar o caminho, de ajuntar
posse justamente conquistada, usando-a injustamente. Todo ca- coisa nova ao que já está feito e aperfeiçoar-se mais. Chegado
so depende dos elementos constitutivos particulares e, por isso, ao mais alto grau de maturação espiritual, o homem, esponta-
se desenvolve diversamente. Mas o princípio segundo o qual se neamente, se apercebe da insuficiência da disciplina jurídica
desenvolve é único e imutável: o da justiça e do mérito. para atingir a justiça, meta instintiva da vida, e conseguir a es-
Muda assim o conceito da vida, a partir da mais elementar tabilidade, condição necessária à fruição. Nasce então a neces-
base da sociedade: a propriedade. Se toda aquisição de bens sidade de completamento, o que implica em mudança de posi-
pode conter dada porcentagem de furto, é em proporção a essa ção e renovamento de método. Assim como na superfície das
porcentagem que a propriedade será corrompida e, portanto, le- coisas há imperfeição, caducidade, agitação e desordem, mas,
vada à destruição. A propriedade gerada pelo furto nasce en- na profundidade, há perfeição, estabilidade, calma e harmonia,
ferma de íntimo desequilíbrio e não pode tornar-se sadia e re- também há justiça no fundo das coisas, embora a injustiça apa-
sistente senão gradativamente livrando-se dessa moléstia, isto reça no exterior. A evolução, levando o centro da vida para o
significa ela tornar-se constituída por sistema de forças em interior, torna atuais e vivos, fazendo-os emergir do fundo, es-
10 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
ses estratos mais internos. Assim, afirmando-se, vem à tona a procura usurpar esta justa posição, posição que não corresponde
justiça, e a ela, também nos eventos humanos, é reservada a ul- ao seu mérito, torna-se, com seus métodos de usurpação, o
tima palavra, não importa depois de quão longas vicissitudes. construtor da injustiça social. Bastaria seguir a natural lei de
Com a evolução aflorará mais evidente a substância das coisas, Deus para que espontaneamente reinasse a justiça econômica e
mais facilmente esta se revelará, reduzindo ao mínimo o obstá- houvesse o necessário para todos, efetuando-se naturalmente o
culo da ignorância humana. Então, o método atual da força ou equilíbrio entre capacidade, mérito, direito e gozo, equilíbrio
da astúcia será considerado como método de primitivos, igno- que a Lei quer e o homem, com tanta fadiga, procura violar.
rantes das leis da vida; método de natureza falsa, desequilibra- Tudo quanto dissemos em relação à disciplina jurídica da
do, destinado por isso à ruína; método inútil, pelo menos em propriedade e à posse dos bens não é senão um aspecto do di-
face do objetivo que se prefixou. Chegado ao mais alto grau namismo fenomênico e dos equilíbrios de que ele se compõe e
evolutivo, o homem compreenderá que, de fato, no fundo, na se sustenta. Pode dar-se a tudo isso sentido mais universal. Po-
realidade das coisas, existe balança de justiça, representada pe- deremos então dizer que a cada plano de evolução corresponde
lo equilíbrio querido pela Lei, e que nela é inútil pretender co- um respectivo grau de realização da justiça e nada mais. Quem
locar pesos falsos para obter de Deus uma falsa medida em age no nível das leis animais e lhe segue os métodos poderá ob-
vantagem própria, inútil porque essa força representa invisível ter posse, poder, domínio, vitória, como prêmio da sua fadiga,
peso verdadeiro, que, cedo ou tarde, faz tudo voltar à medida mas o prêmio será efêmero, porque a estabilidade é característi-
certa, segundo a justiça e a verdade. Dar-se-á então o valor ca somente de planos de vida mais evoluídos e harmônicos. Po-
merecido a este íntimo imponderável, que tanta força possui, derá servir-se da força e da astúcia, mas espere também ilusão e
mas de que hoje geralmente fugimos; compreender-se-á então engano. O sistema da vida não contém, naquele nível, maior
como os valores reais, interiores, possuem, comparativamente, grau de justiça que esse. O homem não peça nem espere mais.
maior poder que os valores fictícios, exteriores. Não fale mais de justiça verdadeira quem vive no reino da for-
Dado que a posse dos bens é necessária à vida e é desejada ça, e não a espere também. A verdadeira justiça, que ele procu-
e imposta pela Lei como necessidade inderrogável, ela também ra em vão, pertence a plano de vida mais alto, e dele fica exclu-
representa direito. Mas, para este poder realizar-se, é indispen- ído quem venceu à custa dos métodos do mundo animal. Que
sável que se verifiquem as condições supra mencionadas. Em ele se contente em dominar, vingar-se, esmagar. Isto lhe exaure
tal caso, atua espontaneamente; em caso contrário, embaraçado o direito, pois já recebeu mercê. Tão logo se enfraqueça, não
pelo próprio homem, não pode obter seu cumprimento. Se o invoque a bondade e a justiça, mas considere-se inexoravel-
homem seguisse a Lei, esta, naturalmente, proveria todas as su- mente vencido. Só o evoluído, seguidor do evangelho, ri-se
as necessidades. Essa é a base do fenômeno da Divina Provi- desse alternado jogo de desequilíbrios entre vencedor e venci-
dência, sempre pronta a intervir espontaneamente, apenas nossa do, rico e pobre, patrão e servo. Mas só ele tem o direito de li-
conduta lhe permita, pondo-nos nas condições necessárias para bertar-se, porque só ele desfez a miragem necessária para indu-
que ela possa verificar-se. A garantia dos bens não nos pode ser zir o involuído egoísta a afrontar fadigas e provas que, doutro
dada por simples enquadramento exterior, que de modo algum modo, jamais seria levado a suportar.
é decisivo, mas somente pelas íntimas qualidades conferidas Os homens são desiguais; não pertencem ao mesmo grau
por nossa conduta ao próprio fenômeno e pela força com que o evolutivo. Se os bens para manutenção da vida são-lhe indistin-
tivermos construído. É verdade que a posse dos bens constitui tamente necessários, o modo pelo qual os homens os procuram
direito, e o mundo está farto de bens a serem gozados pelo ho- lhes exprimem a evolução, isto é, assume o papel de índice re-
mem. Eles estão prontos à espera disso, debaixo das nossas velador da natureza humana. Aprofundemos a classificação dos
próprias mãos, mas à posse se antepõe o obstáculo criado pela tipos humanos com base no real valor biológico, de acordo com
ignorância humana, que não sabe apreendê-lo ou o apreende a real natureza do indivíduo, em face da qual, como já disse-
mal, violando a justiça substancial jacente no fundo do fenô- mos, as distinções sociais têm valor todo fictício. Escalonemos,
meno da posse, que se desfaz sem ela, pois esta é necessária pa- assim, os vários tipos humanos conforme os métodos de aquisi-
ra que o direito de posse, inerente à vida, possa exercitar-se. ção dos bens. Três podem ser esses métodos: furto, trabalho,
Torna-se necessário compreender o erro e superar a ilusão. O justiça, próprios de três tipos biológicos, que sobem do involuí-
que mais vale não é possuir na forma exterior, mas na interior; do ao evoluído, isto é, o selvagem, o administrador, o espiritua-
não nos efeitos materiais, mas nas causas espirituais; não nas lista. Constituem três raças de homens, correspondentes às três
garantias legais, mas nas nossas capacidades e qualidades. Essa leis da vida: fome, amor, evolução (cf. História de um Homem
é a única riqueza verdadeiramente segura e inalienável, que não – Cap. XXIII, e A Grande Síntese – Cap. LXXVIII).
pode ser roubada porque é inseparável da personalidade, dada O primitivo escolhe como meio de aquisição dos bens o fur-
pelas nossas próprias qualidades. É segura e duradoura porque to, ainda freqüente neste mundo, que chamam civilizado. O ra-
é a única verdadeira, honesta, justa, em equilíbrio com as forças ciocínio é este: “Por que hei de cansar-me, procurando, com o
da vida. Derivada das próprias qualidades, é filha do mérito, suor do trabalho, ganhar o necessário, se posso facilmente con-
porque as qualidades que nos tornam capacitados só são con- seguir tudo, roubando meu vizinho?”. Nesse nível, a ignorância
quistadas com nosso próprio trabalho, pois é a nossa atividade e das reações das forças da Lei é completa e o princípio de coor-
fadiga que as gera e fixa. Se as possuímos, é porque as conquis- denação coletiva é inconcebível; a inconsciência do indivíduo e
tamos. Só então os bens são verdadeiramente nossos, porque sua falta de preparação para formas de vida superiores à anima-
temos, fixadas em nós como instintos, as capacidades para sa- lidade atingem o máximo. Psicologia desagregadora, caótica,
bê-los manter e, se os perdermos, para saber reconquistá-los. anárquica. Manifesta-se desregrado e sem controle o instinto de
Doutro lado, quando não se possuí as capacidades, não existe subtrair para si mesmo tudo quanto satisfaça necessidades e de-
mérito, portanto não há direito, assim o dinamismo do fenôme- sejos. É o progresso que, cada vez mais, ordena as coisas, visto
no é cheio de desequilíbrio e, cedo ou tarde, se esgota. Então os que a evolução significa subida ao encontro de Deus e aplica-
bens tendem a nos fugir das mãos; perdemo-los porque não os ção sempre maior de Sua Lei. De fato, tão logo a humanidade
sabemos administrar e, perdendo-os, não sabemos reconquistá- retrocede em crises de revoluções ou guerras e a superestrutura
los. Eis como finalmente, não obstante todas as protetoras bar- jurídica desaba, a vida involui e esse método do primitivo é en-
reiras humanas da injustiça, a interior justiça da Lei emerge. tão reativado. A disciplina jurídica, representada pelo instituto
Esta, através das mais profundas forças da vida, tende a estabe- da propriedade, vacila e retorna ao furto, fase precedente mais
lecer essa justiça, com todos os seus meios. E o homem que involuída, da qual a sociedade conseguiu emergir. No trabalho
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 11
de construir e manter-se no alto, as coletividades humanas pas- grande parte insegura, funcionando aos arrancos, em crises,
sam por esses períodos de cansaço, descensão e aniquilamento, quedas e novos surtos; tentativa de justiça, não porém justiça.
em que retornam às primitivas formas de aquisição. Então, Civilização de nome e forma, não de fato e substância.
prosperam os involuídos, oprimidos pelo enquadramento da or- A nova conquista de nosso século, sua grande realização
dem social. Esta opressão é sentida pelos involuídos, porque histórica, é o advento da justiça social. Por isso tantos sistemas,
imaturos, no entanto, para os mais adiantados, essa ordem cons- tantas lutas e destruições. A fase puramente jurídica e de eco-
titui a forma de vida espontânea e normal. Admitem-se os invo- nomia hedonística – fase de disciplina, e não de justiça – não
luídos a conviver nessa ordem, com os mais evoluídos, justa- basta para o homem novo do Terceiro Milênio nem para as no-
mente para que aprendam, e quando, de algum modo, conse- vas consciências coletivas, dirigidas para justiça mais substan-
guem enriquecer, começam a participar dela, transformando-se, cial. A afirmação do conceito de Estado, a nova concepção or-
então, de inimigos em seus mais tenazes defensores. Agora lhes gânica da vida social, a necessidade de sabedoria espiritual para
interessa, ao máximo, defender a ordem e as instituições que guiar a nova potência conquistada pelo homem através da ciên-
antes combatiam e são produto de tipo biológico mais evoluído. cia e da técnica, o mais alto senso crítico de vida que a matura-
Para maior fruição dos resultados do furto e da conquista vio- ção dos ânimos dá – eis outros tantos impulsos que se dirigem
lenta, procuram discipliná-los no direito e estabilizá-los na le- para uma ordem mundial mais justa e abrem caminho para uma
galidade. Assim, lentamente, pelo menos na forma, aproprian- nova fase biológica, em que a distribuição mais eqüitativa dos
do-se dos métodos de vida dos mais evoluídos, os menos adian- bens garanta a vida de todos, e finalmente atue o princípio de
tados procuram evoluir. Isso, porém, é apenas forma, e sabemos justiça anunciado pelo evangelho. Trata-se de inaugurar o sis-
que, na realidade da vida, vale a substância, e não a forma. Os tema da estabilidade fornecido pelos equilíbrios espontâneos e
retardatários, os excluídos do banquete, os estratos sociais pro- substanciais, correspondentes às necessidades e aos valores in-
fundos aguardam a passagem dos vencedores da vida, que cres- trínsecos, às qualidades e ao mérito; ele substituirá o sistema
ceram na forma e não melhoraram na substância, para fazer- precedente, instável e involuído, das violações contínuas e da
lhes exatamente o mesmo que eles fizeram aos outros. E assim justiça trabalhosamente atingida apenas através do exacerba-
por diante. Neste plano, formado em grande parte pelo plano mento de reações corretivas. Atuação difícil e demorada, por-
humano, só pode dominar um regime de luta perpétua, baseado que o novo sistema presume o tipo, que falta, de homem mais
na força e no aniquilamento, em estado de instabilidade com- evoluído. Na prática, ao invés, domina o imaturo, que, com a
pleta. Esse método de aquisição não atinge, assim, o objetivo psicologia de involuído, sabe empregar apenas o velho sistema
aparente de possuir, mas alcança o objetivo recôndito e real de e, desse modo, engana, desfruta e destrói. Todavia o progresso
induzir o involuído a adquirir experiência e, portanto, evoluir. não pode parar, e essa é a sua direção. Trata-se de leis biológi-
Essa desordem, porém, só pertence a este plano evolutivo. cas fatais, de objetivos que a evolução deve atingir e aos quais
O próprio sistema de forças constitutivas do fenômeno contém encaminha todas as forças, fazendo pressão para superar os
os impulsos tendentes à própria auto-reordenação. Do que ace- obstáculos; trata-se dessa ordem divina presente na substância
namos se vê como esse caos tende a harmonizar-se em mais das coisas, ordem cuja realização é o objetivo da vida e deve,
evoluídas formas de vida. A fase da força tende a evoluir para a pois, cedo ou tarde, inexoravelmente, realizar-se. Assim é que à
do direito, o furto procura estabilizar seus resultados na fase de primeira fase, caótica, baseada na força, em regime de violên-
propriedade, e desponta novo método de aquisição de bens: o cia, no qual a propriedade se conquista com o furto, se seguiu a
trabalho. Gradativamente se disciplina, desse modo, o desenca- atual fase de disciplina da força pelo direito, em que o método
deamento caótico da agressividade conquistadora. O método do de aquisição passa a ser o do trabalho; e a esta segunda fase su-
furto, inorgânico e violento, reordena-se em forma de trabalho, cederá a terceira, orgânica, coletiva, de mais estreita disciplina
orgânico e pacifico. O egoísmo sobrevive, mas, suprimida a do direito pela justiça, e nessa os títulos de posse serão as qua-
força, fica disciplinado no hedonismo econômico do “do ut lidades, o mérito, o valor, as capacidades pessoais.
des”1, primeiro rudimento de justiça expresso no balanço entre Temos, pois, três tipos humanos, que se revelam no método
o “deve” e o “haver”. A defesa não é mais a força, os músculos de aquisição dos bens, a saber: 1) o involuído ou selvagem, que
ou as armas, mas o direito, o cérebro, a legalidade, a astúcia. concebe apenas a defesa de si mesmo e o sistema do furto; 2) o
Aqui, o dinheiro é arma, e o capital é poder; a violenta luta bio- civilizado, que vive em sociedade, administra, organiza, conce-
lógica para conquista dos bens torna-se a luta econômica de be a defesa da família e do Estado e emprega o sistema do tra-
classe, do capital contra o trabalho e ao contrário. A indústria balho; 3) o evoluído, que superou o egoísmo individual do pri-
organiza-se; o Estado e o direito regulador intervêm para garan- meiro tipo e o egoísmo coletivo do segundo; espiritualista,
tir, ressarcir, prever. Estamos em fase orgânica de coordenação completamente desprendido dos bens materiais, que ele admi-
e estabilização. Essa a grande criação iniciada pelo direito ro- nistra apenas porque percebe ser essa sua missão, empregando-
mano. Mas, ai de nós! Trata-se de disciplina, e não justiça. os somente como instrumento de trabalho, para obtenção de ob-
Construiu-se a balança; ninguém, todavia, nos garante ser o pe- jetivos morais; tipo biológico que vive conforme a justiça e não
so justo. Cristo, solapando os fundamentos do império, já pre- aceita bens senão de acordo com a necessidade, as qualidades,
gava, muito mais que a disciplina, a justiça. Mas também é ver- o mérito. Neste último caso, o limite e a medida das aquisições
dade que, para chegar a esta, necessário se tornava passar por não se encontram, como nos dois primeiros, no código nem se
aquela. Não se poderia passar do plano da força ao da justiça impõem por meio de sanções punitivas, mas estão na consciên-
sem percorrer o trajeto representado pelo equilibrado método cia, espontaneamente inscritos. Infelizmente, os sistemas cole-
do “jus romanum”2. As fases biológicas são contínuas e suces- tivos, chamados de justiça social, necessitam, para serem diri-
sivas. Hoje o mundo vive na segunda fase, a do direito, isto é, gidos seriamente, desse tipo raro de homem e dificilmente po-
da disciplina da força e do furto, da organização da conquista, derão construir-se, estavelmente, com o tipo de homem hoje
da legalização e estabilização mais ou menos completa de seus dominante, que, em última análise, pensa, de si para si, em coi-
resultados. Mais adiantada e complexa que a precedente, é fase sa bem diferente da justiça social. Para compreender e exercitar
ainda instável, porém menos do que a anterior; tentativa de essa justiça, princípio evangélico, é preciso ter alcançado o grau
equilíbrio, e não ainda o equilíbrio; por isso tudo é fase em evolutivo do homem evangélico, isto é, do terceiro tipo. Mas os
sistemas, embora inadequados aos homens, podem, por outro
1
Dou para que dês. lado, servir para educá-los, amadurecê-los e, assim, prepará-los
2
Direito romano. para a futura realização. Para chegar a essa realização, torna-se
12 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
necessária dupla e paralela maturação, individual e coletiva; so- O homem atual crê estar sozinho no caos, no entanto parti-
zinha, nenhuma delas basta. A primeira conduz o indivíduo a cipa de imenso organismo. Involuído e, pois, insensível, in-
nova concepção da vida, do trabalho, da propriedade; a novo consciente e ignorante, vê a desordem da superfície em que vi-
modo, consciente, orgânico e harmônico, de sentir e comportar- ve e nem suspeita a ordem presente nas causas, no interior das
se no seio da coletividade humana e do funcionamento do uni- coisas. Enquanto evolui, deve o homem aprender a tornar-se ci-
verso. A segunda leva ao enquadramento do indivíduo em sis- dadão dessa pátria maior, o universo, e colaborador consciente
temas sociais orgânicos e passa não por vias interiores, de per- desse grande organismo, harmonizando-se com todos os fenô-
suasão, mas por vias exteriores, mais ou menos coativas; con- menos irmãos e criaturas irmãs, com seus semelhantes, com as
segue, por isso, resultados formais, e não substanciais, porque, forças da Lei. A felicidade e o paraíso consistem, exatamente,
se os sistemas não são sentidos, sua atuação não é integral. nessa harmonização. Semeando, como fazemos, em ignorância
Para obter essa atuação, que deve ser estado espontâneo e e rebelião, só se pode colher reação e dor. Semeando em sabe-
de convicção, seria necessário aplicar o sistema ao tipo evoluí- doria e harmonia, colheremos felicidade e paz. Isso significa
do, ainda inexistente em grande massa, cuja existência é ilusão civilizar-se a sério, e não ter aprendido a construir máquinas
presumir-se; para a formação desse tipo, todavia, esses siste- sem depois saber fazê-las trabalharem. Em todo campo, políti-
mas podem contribuir, através da prática educativa e formado- co, social, científico, filosófico, moral, torna-se necessário pas-
ra de novos hábitos e instintos. sar do sistema caótico ao sistema orgânico. O sistema do uni-
verso é perfeito. Nós, que não sabemos mover-nos nele, é que
IV. ERROS E ASCENSÕES HUMANAS somos imperfeitos. Esse sistema contém a possibilidade de toda
a nossa felicidade. Todavia, em nossa inconsciência, apenas dor
Começamos a subir os primeiros degraus das ascensões sabemos extrair. Culpa do homem, não de Deus. Pode-se elimi-
humanas. A atual maioria da humanidade vive e age inconsci- nar a dor, que, aliás, conforme a sabedoria divina, foi feita para
entemente, como fantoche manobrado por instintos, sem saber ser destruída. Mas, para chegar a esse ponto, torna-se necessá-
nada a respeito do porquê das coisas, sem compreender o que e rio compreender. O universo funciona como instrumento musi-
por que faz, as reações a que dá nascimento, as conseqüências cal, de que se pode tirar música divina, alegria infinita. Torna-
dos próprios atos. Por esse conhecimento fundamental, que, se- se preciso, contudo, sabê-lo tocar. Arrebentamos as cordas e
gundo a lógica mais elementar, deveria anteceder qualquer vamos às cegas. Que podem tocar semelhantes músicos? Então,
ação, o homem de nossos dias raramente se interessa, preferin- culpamos o instrumento por tocar mal, e não a nossa animali-
do agir primeiro, para depois compreender. Parece que os pro- dade, que não sabe tocá-lo. Quem insiste o faz contra si mesmo,
blemas do animal bastam para encher-lhe a vida e saciá-lo. Tal- pois toca cada vez pior e, assim, cada vez mais se enganando e
vez o homem comum se perdesse em meio a essas questões, se divorciando da ordem, colhe sempre maior quantidade de
que devem parecer-lhe de complexidade espantosa, a ele que dor. A Lei faz o quanto pode para salvar-nos e, de fato, salva,
vive na periferia, na superfície, e não no centro, na profundida- apesar de todos os nossos erros e dores. No entanto somos li-
de. O pensamento das filosofias apresenta-se-lhe contraditório; vres; enganando-nos e sofrendo, devemos aprender e, assim,
o das religiões, insuficiente; o da história, desconexo; o da polí- compreender, pois somos destinados a empunhar algum dia as
tica, faccioso e interessado. Em face dos mais importantes, con- rédeas do comando e, após trabalhosamente conquistar a sabe-
tudo mais simples e necessários, problemas da vida, como por doria, algum dia poderemos e deveremos empunhá-las.
exemplo: “Quem sou? De onde vim? Para onde vou? Por que Ao sábio, que se harmoniza, que sabe conformar-se, como
vivo? Por que sofro?”, o homem se percebe desnorteado e se diz, com a vontade de Deus, a Lei se manifesta como ajuda
abandonado, porque o pensamento humano ainda não soube amorosa e espontânea, música plena de bondade, proteção e
encontrar a síntese completa que lhe responda a tudo e, se ti- previdência; ao contrário, ao inconsciente, que se rebela e, se-
vesse sabido, conseguiria interpretá-la apenas de acordo com guindo Lúcifer, substitui pela própria a vontade de Deus, mani-
sua relativa maturidade. O homem de nossos dias vive, assim, festa-se como prisão de ferro em que, prisioneiro, se agita.
em uma espécie de resignação à ignorância, de adaptação à in- Quanto mais recalcitra e se debate, mais a corrente magoa e os
consciência, contentando-se em vegetar. Se isso pode ser dura nós se estreitam. Pode até bater com a cabeça nas grades invisí-
contingência de sua evolução, é também triste aceitação e hu- veis, mas irá quebrá-la e estas continuarão imóveis e intactas.
milhante declaração de incompetência. Podemos continuar a Para resolver os problemas, o caminho não é a violência e a
viver nesse estado? Só o involuído pode contentar-se com ele. imposição, mas a harmonia e a obediência. Basta haver com-
Podemos continuar a agir sem entendimento, porém somente à preendido isto para se porem de lado todas as concepções de
custa de suportar as dolorosas conseqüências dos inevitáveis er- que habitualmente se vive. O homem, com muita facilidade, crê
ros e desastres de que está cheia a vida individual e coletiva. poder, impunemente, praticar o mal. Não! A impunidade é ilu-
Mas nem por isso, certamente, aos acontecimentos humanos, são, filha da ignorância humana; a mentira é feitiço que se volta
individuais e coletivos faltará diretiva. Esta, porém, não é confi- contra o feiticeiro. O mal não traz vantagem, e a mentira acaba
ada ao homem, nem pode ser revelada a inconscientes, mas será por enganar o próprio mentiroso que a diz. Quem rouba será
atribuída a ele qualquer dia, quando houver conquistado conhe- roubado; quem mata será morto; quem engana será enganado;
cimento e sabedoria. A formação da nova civilização do espírito, quem odeia será odiado. A Lei o quer; essa é a estrutura do sis-
do novo tipo humano do Terceiro Milênio, significa a conquista tema regulador do universo. Trata-se de organismo de forças
de novo e imenso domínio, com o controle exato das diretivas inteligentes, poderosas, invisíveis, onipresentes, indestrutíveis.
da vida em nosso planeta. Não se trata de revolução social, exte- Por mais que se agite, o homem nada pode contra elas, e toda
rior e formal, mas de maturação biológica, profunda e íntima. Os revolta se transforma em dor. O homem deve compreender que
enquadramentos políticos, nacionais e internacionais poderão não pode conseguir a expansão que o espera à custa do dano
ajudar, porém o que decide, acima deles, é a formação do novo alheio, aliás, do próprio dano. Crê na usurpação, na estabilidade
tipo de homem, cuja sabedoria e maturação evolutiva possam fi- dos desequilíbrios, e a Lei o deixa à vontade, porém depois, pa-
nalmente permitir que as forças da Lei não mais tenham que ra que ele aprenda, o faz pagar com o sofrimento e, assim, o re-
dominá-lo, como se torna necessário fazer com os inconscientes, conduz inexoravelmente à justiça e ao equilíbrio. O involuído,
por meio dos fios de seus instintos e das respectivas reações, na sua ignorância, presume dominar, no entanto, ao contrário,
mas lhe revelem o segredo da própria estrutura e lhe confiem a obedece sempre. A Lei, bem mais sábia que ele, não lhe permi-
função de dirigir a vida no ambiente terrestre. te senão a prática de violações e erros úteis para sua dolorosa
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 13
experiência. O espírito de rebelião, filho de Lúcifer, está no la- chaga de nossa humanidade. Levam-se em conta as qualidades.
do baixo e involuído da vida, enquanto o de obediência e har- O que importa é ser, e não possuir ou aparentar. Só o que é pos-
monia encontra-se no lado alto e evoluído. A evolução é justa- sui a causa, tem o germe das coisas, ou seja, a potência e o mo-
mente o processo de reordenamento e harmonização, que atua delo para reconstruí-las ad infinitum3. Não há outro caminho
através da fadiga e da dor, substância da redenção. para a posse no mutável transformismo universal, senão o do-
As massas humanas, vastas como o oceano, vão à deriva, na mínio sobre as forças genéticas do fenômeno. Na posse das ca-
ignorância dessas verdades elementares, e caem vítimas das pacidades intrínsecas, em meio a tanta avidez de furto e à pre-
próprias ilusões. A realidade é bem diferente daquilo que ge- cariedade de qualquer posição social, o involuído afinal encon-
ralmente se imagina. Quem rouba crê enriquecer, mas empo- tra o indestrutível. O homem do futuro, mais adiantado, saberá
brece; quem mata não prolonga sua vida, morre; quem engana dar mais valor ao que não se rouba nem se destrói e muito me-
se engana; quem odeia se odeia. Quem foi injustamente rouba- nos importância ao que se pode perder; prender-se-á mais à po-
do receberá compensação; quem foi morto injustamente ressus- tência intrínseca, geratriz e reguladora de tudo, do que às suas
citará em alegria; quem é honesto e de boa fé verá a verdade, efêmeras manifestações exteriores. O evoluído não se amedron-
embora tenha sido enganado; quem ama será amado, apesar de ta nas horas escuras da desordem; está prevenido e preparado
hoje ser odiado. A chave da felicidade não está na força ou na quando os acomodatícios são atingidos por golpe vindo de bai-
astúcia, mas na justiça e no mérito. No mundo reina a dor por- xas camadas sociais; aceita-o como enérgica varredura na casa
que o homem, em vez de seguir a ordem divina, é rebelde se- suja da vida e continua imperturbável, porque já encontrou e
guidor de Satanás. A causa não está em Deus, e sim no homem. possui o indestrutível. Os nós humanos, assim como se fazem,
Bem diferente, a falada seleção do mais forte! Se isto aparece se desfazem; a riqueza e todo poder podem perder-se exatamen-
na superfície, na profundidade existe lei biológica muito dife- te como foram conquistados. O que tem princípio, só por isso,
rente, que diz: quem transgride paga. E a humanidade paga, há de ter fim. Tudo o que nasce deve morrer. Apenas o eterno
porque é filha de seus erros milenares. Se olharmos, porém, a não tem fim, o que não nasce vive para sempre. Só o involuído
outra face da dor, revelar-se-nos-á seu poder criador e curativo, pode acreditar no contrário. De eterno não temos senão o espíri-
seu outro aspecto escondido, onde está escrito: alegria. A Lei é to, com as qualidades que, vivendo, lhe imprimimos, com o
boa e nos ajuda a pagar e sanar tudo, se o merecermos; auxilia- feixe de forças de seu destino, postas em movimento por nós.
nos, tornando possível para nós transformar o mal em bem, a Os fatos de nosso tempo demonstram quanto é involuída a
perda em ganho, a dor em felicidade. A bondade de Deus nos humanidade atual e quanta sabedoria diretiva lhe falta. Resol-
permite a redenção, quer dizer, subir de novo, através de pro- veu-se em destruição medonha todo o progresso mecânico, fru-
vas, a escada da evolução, que havíamos descido. Mas se trans- to da ciência do nosso século e vitória de nossa civilização. A
formam, ainda, outras concepções de que habitualmente se vi- soberba técnica, conquista e louvor de nossos dias, foi entendi-
ve. A posse dos bens, a propriedade referida acima, pela qual da como fim, e não como meio; a sabedoria do espírito não lhe
tanto se luta, já não é meio de gozo, mas instrumento de traba- serviu de guia. Sem direção, a máquina não construiu, mas des-
lho. O princípio de função e missão substitui o de egoísmo. truiu. Faltou-lhe sabedoria, predomínio dos valores morais hie-
Nascemos e morremos nus. Durante a viagem da vida, os bens rarquicamente superiores. O homem subverteu a ordem natural
vão e vêm, a riqueza circula de mão em mão, pertence a todos; e paga por isso. O materialismo moralmente destruidor atingiu,
as trocas servem para que ela não diminua. Não há posse ou es- desse modo, a última fase de realização concreta. A negação,
tabilidade garantida. Tudo não passa de usufruto, empréstimo partida do espírito, atingiu a matéria; o ateísmo nietzscheano
temporário, que uma crise, um furto ou a morte podem a qual- deu fruto. A superprodução industrial, ao invés de trazer abun-
quer momento tirar; empréstimo concedido a título de instru- dância, chegou à miséria. Espantosa Nêmesis4, conseqüência
mento de experimentação e trabalho na Terra, de aquisição de lógica das forças incluídas no sistema. A orientação espiritual
qualidades na arena da vida, administrado pelo homem como negativa da moderna civilização mecânica a entrega à destrui-
meio de construir-se a si mesmo, e não para seu gozo. De fato, ção total. Os imponderáveis que ela negou e, negando, moveu
como estabilidade, do ponto de vista hedonístico, a riqueza é em sentido negativo, amarram-na agora, prendem-na e seguem-
mal e, do ponto de vista jurídico, impotência. É, pois, erro bio- na; não poderá parar antes de esgotado o próprio impulso. Só
lógico conceber egoisticamente a riqueza, como faz o homem mais tarde, como homens mais evoluídos, a reconstrução, me-
moderno, não obstante todos os coletivismos em moda. Não lhor e posta bem no alto, surgirá das cinzas do mundo atual. Os
somente a propriedade mas a própria autoridade e toda ativida- destruidores modernos serão excluídos do futuro, pertencente
de social não devem ser egoisticamente concebidas como meios aos reconstrutores. Está passando a hora dos destruidores, que
individuais, mas sim coletivamente entendidas como função serão expulsos da vida do mundo. Nossa miséria será como de-
social; todo exercício, atividade, posse e domínio deve encarar- serto, mas também como terreno limpo, para reconstrução mai-
se como missão. Por mais que procuremos isolar-nos para frui- or e melhor. Esse deserto atrai as potências inexauríveis da vi-
ção dos bens, a vida é unitária; não podemos impedir que seja- da. Jamais, qual na profundeza da destruição, a vida tanto se
mos irmãos, pois nela tudo é intercomunicante e comum, apesar renova; jamais, como no abismo da necessidade, tanto se mani-
de todas as nossas barreiras protetoras e divisórias. Os bens não festa o poder criador de Deus. Na necessidade, dolorosa e re-
passam de ferramenta, e nada mais. Aprendido o ofício, são en- dentora, aparece para Seus filhos a providência do Pai.
tregues a outros aprendizes. Não se encontra no caminho certo Assim, a vida caminha sem cessar. Por mais que o homem
quem procura enriquecer só para si e seu gozo. Tornar-se-á in- procure cristalizar suas posições através de laços jurídicos, es-
cansável escravo do tesouro e condenado ao terror de perdê-lo. tabilizar suas conquistas por meio de convenções sociais, públi-
A verdadeira conquista não se dirige às coisas, mas às forças cas e privadas, fixar seu estado em instituições e formas defini-
que as geram e movem. Pobres ladrões, arrivistas, pobres inve- tivas, a evolução não pode parar, e, a cada nova maturação, a
jados por fácil e rápido sucesso! Como vocês empobreceram, ao velha construção, tendo crescido, não se encontra à vontade na
invés de ficarem ricos; como foram derrotados, vocês que assim velha casca e rompe-a para formar casca mais ampla. Há cons-
triunfaram; como perderam, os que desse modo venceram! tantes necessidades da forma para se definirem as posições; es-
Sem esse inusitado conceito da vida, sem essa subversão
completa das ilusões do mundo, não se pode imaginar civiliza- 3
Infinitamente.
ção nova. Tão lógico, tão simples, tão natural. Nela deverá de- 4
Deusa grega da Vingança e da Justiça Distributiva, que reprovava
saparecer a distinção entre valores aparentes e valores reais, todo excesso. (N da E.)
14 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
sa forma, porém, a princípio cômoda habitação, torna-se prisão cos. Desse modo, da potência íntima do sêmen desabrocham
mais tarde. É necessária também a contínua destruição e re- novas formas de vida. O novo já vibra no ar, no estado fluido e
construção da forma, único meio de poder conciliar o imperati- incorpóreo de vibração, de dinamismo, que é causa das formas,
vo imposto pela evolução, de progresso e crescimento, com a prestes a encontrar o corpo em que se fixe e se defina. Tipo bio-
necessidade de abrigá-la em nova forma, que exprima exata- lógico mais evoluído, dotado de consciência nova, deverá for-
mente as características atingidas em cada nova maturação evo- mar a classe dirigente. Depois do desenvolvimento mecânico,
lutiva. Não só nesse caso, mas em toda a vida, verifica-se a luta que termina pela obra de destruição, deve acontecer proporcio-
entre forma e substância: a primeira, imóvel, com o objetivo de nal desenvolvimento espiritual que torne seus resultados utili-
definir-se; a segunda, fluida, tendo em vista a evolução – a pri- záveis em obras construtivas. Os equilíbrios da vida e a lógica
meira, porque constitui invólucro, é continuamente despedaça- do progresso impõem que, fabricado o instrumento para o do-
da pela pressão interna da segunda. Exatamente desse contraste mínio material do mundo, se produza também a consciência di-
de funções opostas e necessárias nasce a instabilidade de todas retora, capaz de empregar utilmente esse instrumento. Isso por-
as formas da substância, a caducidade dos corpos da vida. As que, na vida, nenhum passo é inútil, nada se desperdiça e tudo
formas constituem apenas etapas no caminho da evolução, pa- tende organicamente para determinado objetivo. Só assim o
radas em que cada fase se define e exprime. Mais tarde, essa progresso técnico não terá sido inútil e o homem poderá alcan-
roupa não serve mais, pois o corpo cresceu; torna-se então ne- çar, como espera, o domínio não só mecânico e material, mas
cessário rasgá-la e fazer outra mais ampla, mais na medida. As- inteligente e completo do planeta. Para dominar a sério, é ne-
sim, as revoluções destroem as instituições e as leis, revolucio- cessário princípio de ordem, central e diretivo, que não pode es-
nam as construções jurídicas e as estruturas sociais, tal como a tar senão no espírito. Só ele pode conferir caráter de organici-
morte destrói os corpos, para que a vida possa fazer outros me- dade ao conhecimento científico e à potência técnica. A carac-
lhores, mais de acordo com o novo grau de evolução atingido. terística fundamental da nova civilização será a afirmação de or-
O caminho evolutivo é fatal. Hoje, o mundo é o campo da bata- dem. Partindo do conhecimento da Lei e da consciência da or-
lha entre o princípio da força, disciplinado e estabilizado em dem divina em todas as coisas, chegar-se-á a nova e mais com-
formas jurídicas, e o superior princípio da justiça. O homem do pleta harmonização entre os atos da vida e seus princípios, e daí
segundo tipo cresceu; está para tornar-se homem do terceiro ti- a novo superamento da dor e maior aproximação da felicidade.
po. As velhas instituições, tão adaptadas antes à sua natureza, Assim, renovadas e disciplinadas interiormente, as formas de
estão para se tornar a prisão em que ele, oprimido, se agita e vida individuais e sociais se transformarão e a existência assu-
procura arrebentar, a fim de fazer casa mais vasta e proporcio- mirá novo significado. Carecerão de sentido amanhã as atuais
nada. Nossa fase não é de estase, mas de progresso e criação. A distinções. O verdadeiro chefe de todas as revoluções e de todos
destruição precede a reconstrução, momentos sucessivos e am- os poderes é a lei de Deus, que manobra os líderes, permitindo
bos necessários do processo evolutivo. Os destruidores, tal co- que mandem apenas enquanto obedientes às leis do progresso e
mo os reconstrutores, exercem função biológica, mas cada qual à vontade de Deus. Tendo em vista os objetivos da evolução
em seu posto. Os primeiros fazem seu trabalho e então, julgan- humana, a Lei estabelece as posições e distribui as funções; hu-
do-se donos da situação, iludem-se, supondo que podem fazer milha os grandes e exalta os humildes aos postos de comando;
a evolução parar de progredir em seu plano. Superada a fase, depois, liquida todos com justiça, ou seja, com honras, se cum-
porém, eis que eles, simples instrumentos da Lei, após esgota- priram a missão, ou como refugo da vida, em caso contrário. In-
rem sua função, de acordo com sua capacidade, são postos de teressa é a ascensão de todos; dela somos, ao mesmo tempo, es-
lado. Antes, sua qualidade era ignorância, e a ilusão, sua natu- cravos e senhores. Embora quase todos queiram, com egoístico
ral herança. A evolução, que não compreendem, vai-lhes no isolacionismo, que as coisas girem em torno de si mesmos,
encalço e os agarra. E, por mais que se agarrem às posições, qualquer ação nossa é função coletiva e toda vida, missão.
não podem mantê-las. Assim, as revoluções devoram os pró- A luta moderna se trava, como sempre, entre o velho e o
prios homens. Depois a vida, fatalmente, impõe a reconstrução novo. O primeiro se aconchega entre as gigantescas construções
e, para isto, escolhe diferente tipo biológico, adequado a esta do passado, mas tem contra si as leis da vida. Não nos ensina-
função, do mesmo modo como fizera para o trabalho de des- ram elas todo o dia o superamento do passado? Todo dia não
truição. E, assim, na essência, os inimigos que se digladiam e vemos, apenas em homenagem ao progresso da vida, os moços
os rivais que se odeiam, são companheiros de trabalho; confra- substituírem os velhos em suas posições? Isso acontece entre as
ternizam-se, sem o saberem, na mesma obra de progresso, em plantas e os animais, como entre os homens. Não se pode resis-
que, ignorando uns ao outros, trabalham nas sucessivas fases. tir a essa vontade de renovação. A vida não pode existir senão
Mesmo o próprio antagonismo entre eles existente cifra-se na forma de ascensão ou como meio para caminhar, cada vez
apenas na instintiva e inconsciente necessidade de exercer ao mais, em direção ao divino centro do universo. Trata-se de im-
máximo a própria função, necessidade impelida até à rivalida- ponderáveis; poderemos negá-los e até mesmo nos rirmos de-
de e ao ciúme do trabalho. Somos todos, cada qual em seu pos- les, mas nos arrastam e os seguimos. A vida pertence a quem
to, executores da Lei e servos de Deus. sobe, e não a quem pára ou desce; o futuro está sempre mais em
A ascensão evolutiva não pode parar. As massas não sentem cima. A vida faz-se de construção, embora deva atravessar a
a proximidade dos tempos futuros. Assistimos hoje, de fato, ao destruição. O universo é função imensa e perfeita, dirigida pelo
desnorteamento da história, como nos tempos de Cristo. Pode- pensamento de Deus, movida por forças titânicas e imponderá-
mos repetir com Virgílio: Magnus ab integro sacculorum nas- veis, sempre e em toda a parte presentes e ativas. Tudo está re-
citur ordo5. O futuro pertence à nova geração de homens de ti- gulado, previsto, tudo nele se resolve em ascensão.
po biológico mais elevado. É inútil em meio aos progressos re-
tardarmos os passos no mundo velho. A ignorância, o egoísmo V. AS GRANDES UNIDADES COLETIVAS
e a preguiça não podem fazer a vida parar. A lei de progresso
esmagará todas as resistências, porque é também poder de ex- Nos capítulos precedentes, desenvolvemos e comentamos
pansão divino, que é centro e princípio do universo. A história alguns pontos de A Grande Síntese, especialmente os de cará-
caminhou sempre assim, ascendendo passo a passo; nela é ter social, tratados quase no fim do volume. Foram ampliados,
normal a realização progressiva de ideais, inicialmente utópi- em especial, os capítulos: “Força e justiça – A gênese do direi-
to”, “O problema econômico”, “A distribuição da riqueza”,
5
A maior ordem nasce da integridade dos séculos. “Da fase hedonística à de colaboração”. Os conceitos, ali ra-
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 15
pidamente expostos no quadro de conjunto, foram considera- ve, pois, como primeira conseqüência, o rebaixamento involu-
dos de novo, mais minuciosamente e sob aspecto mais prático tivo do tipo de vida até ao plano dos primitivos. Não se pode
e atual, tendo em vista mais a sua aplicação do que a posição evitar, e assim se paga, o progresso em extensão. Nasceu, to-
por eles ocupada no organismo universal. São diferentes a davia, novo ser coletivo, que, mesmo a principio involuído e
perspectiva de A Grande Síntese e a destas páginas. Partindo primitivo e hoje apenas embrião em crescimento, exprime a
de premissas cósmicas, ali os problemas do homem e da socie- possibilidade de imensos desenvolvimentos futuros. O povo
dade apenas aparecem por último, à guisa de conclusão; aqui, desperta, sem dúvida, como se voltasse à vida. Nessa nova
pelo contrário, esses problemas representam a base e o ponto formação coletiva, o escasso valor individual do involuído
de partida do trabalho; daí a conclusão se eleva pouco a pouco, cresce e se multiplica em rede de contatos e trocas; não mais
desde a grande massa coletiva até ao caso individual mais sele- aparece sozinho, reduzido a seu valor intrínseco, mas vive em
to e muito menos numeroso, mas, em compensação, mais evo- função do novo organismo em que, participando como célula,
luído. O caminho fatal de ascensão, entrevisto no fim do capí- se multiplica. Nas unidades coletivas, o indivíduo vem a co-
tulo anterior, não se manifesta somente com a formação de ti- nhecer novas formas de vida e de relação e sente-se transpor-
po biológico mais elevado, com funções de direção, natural- tado para novo plano orgânico, antes desconhecido.
mente colocado como guia da sociedade, mas se apresenta A nova criação biológica de nossos dias é, pois, exatamente
também de maneira diversa. Esse impulso evolutivo tende não esse novo indivíduo coletivo, com milhões de cérebros, procu-
só ao aperfeiçoamento do indivíduo, mas à investidura das rando coordenar o seu pensamento segundo correntes de cons-
grandes massas sociais, de maneira cada vez mais extensa. ciência, indivíduo que, nessas correntes, busca formar persona-
Creia-se ou não no Estado, aceite-se ou não a estatolatria mo- lidade própria e unitária, diferente da dos indivíduos compo-
derna, basta considerar o fenômeno biológico universal e im- nentes. A psique individual pode assim agir segundo dois dife-
parcial para verificar, em nossos tempos, a tendência à organi- rentes pontos de vista: o do indivíduo como indivíduo, e o do
cidade social. Considerado mais ou menos sem valor nos sécu- indivíduo como célula social – no primeiro caso, tem funções e
los passados, o povo, com a Revolução Francesa, surge no pal- objetivos individuais; no segundo, coletivos. Trata-se de duas
co da vida política. Antes valiam só os indivíduos e as classes posições diversas, entre as quais podem nascer contradições, e
dominantes; a aristocracia selecionada estabelecia os valores o indivíduo, como célula social, fará, com finalidade social, o
coletivos e imprimia seu cunho nas massas populares, que con- que jamais faria como indivíduo apenas. Pode, desse modo,
tinuavam obedientes e, exceto nos momentos excepcionais, sob a forma de delinquência, exercer funções de justiceiro.
mudas e sem pensamento próprio. Os estratos inferiores da so- Mas, se, no seu conjunto, o indivíduo coletivo tende a adquirir
ciedade jaziam abandonados. O conceito de povo organizado, consciência unitária, própria e distinta da dos indivíduos com-
que exprime seu pensamento e toma parte na vida política, e o ponentes, nas peculiaridades e na estrutura interior tende à es-
princípio de massa organizada em grandes unidades coletivas pecialização das funções. As grandes unidades coletivas são
são muito modernos. Ocupar-nos-emos, agora, desse aspecto gigantescos organismos sociais, colossais, monstruosos indiví-
diferente, coletivista, e não individualista, da evolução huma- duos biológicos de que o homem é célula; as classes sociais,
na, isto é, da formação desse novo e múltiplo indivíduo coleti- tecidos; as classes dirigentes, cérebro; as massas, corpo. Estas
vo, característica de nossos dias, e não, como antes, do sazo- unidades possuem sistema nervoso, órgãos de sensibilidade e
namento de novo tipo biológico. coordenadores de funções. Nelas, o indivíduo exerce as ativi-
O novo e múltiplo indivíduo humano, organizado em soci- dades mais de acordo com suas capacidades peculiares. O in-
edades nacionais e estatais, com cérebro dirigente, nervos, ór- voluído se encarrega de desempenhar as funções mais baixas:
gãos, membros, coordenação de funções, semelhante ao orga- agressão, guerra, destruição; o evoluído desempenha funções
nismo individual, embora com dimensões muito maiores e intelectuais e de direção. Eis como o tipo biológico mais ele-
formas muito mais vastas; esse novo ser físico (massas) e psí- vado se enquadra no novo organismo coletivo. Entre os dois
quico (consciência coletiva) representa nova criação biológica, extremos, os administradores se distribuem segundo suas qua-
produto da evolução. Enquanto, porém, a maturação do tipo lidades específicas. Assim, os três tipos humanos, vistos no
biológico mais elevado significa desenvolvimento em altura, a Capítulo III, encontram lugar e fazem sua tarefa. O indivíduo
formação desse novo e gigantesco indivíduo representa desen- coletivo, no entanto, ainda está sendo formado; não se definiu
volvimento em superfície. No primeiro caso exalta-se a quali- bem, até agora, o critério distintivo das funções; há, por isso,
dade; no segundo, conquista-se a quantidade. Completam-se, entre as partes, a luta e a incerteza próprias do período de for-
embora crescendo em direções diferentes e com importância mação. Existe, sem dúvida, semelhança com o organismo bio-
própria. Ambos necessários, os dois impulsos se fundem na es- lógico, mas organismo embrionário e experimental, como no
trada das ascensões humanas. O individualismo do tipo bioló- período paleontológico. Percebe-se, como no corpo humano, o
gico dominante não desaparece nessa nova organicidade; ao princípio de especialização, a coordenação das qualidades in-
contrário, nesta, suas funções se coordenam. Como indivíduo, dividuais, mas no estado de tentativa. Do ponto de vista bioló-
geralmente primitivo, involuído, pode evoluir, seguindo sem- gico, torna-se muito importante a observação do esforço feito
pre caminhos individualistas. Mas isto é raro, então o enqua- hoje pela vida para coordenar suas conquistas individualistas e,
dramento coletivo o educa e faz progredir. Por isso o individu- no plano humano, disciplinar as suas forças. Neste período his-
alismo não fica mutilado; seus caminhos continuam abertos tórico, chega a parecer que o esforço seletivo, de natureza
aos que têm força para emergir. Nos séculos passados, a vida também separatista, cede o passo ao esforço orgânico e social,
pertencia apenas ao selecionado que se distinguira da massa, de natureza coordenadora. A primeira tendência se movia em
porém hoje é de qualquer elemento da sociedade humana, que direção individualista, para produzir poucos exemplares do ti-
agora, em vez de constituir um obstáculo, pertence a ela como po eleito, no entanto a segunda caminha em direção coletivista,
membro. A extensão da participação nas atividades a todo in- a fim de que produza muitos exemplares do tipo medíocre e os
divíduo representa uma primeira tentativa de nova e gigantesca valorize pelo número, e não individualmente, transformando-
construção, porém significa rebaixamento do nível social ao do os em grande organismo coletivo. Levamos em consideração
tipo corrente, do homem da rua, que pode ser tudo menos tipo neste livro ambas as formas de expansão vital evolutiva; ne-
eleito. O nível social rebaixou-se até ao do tipo comum, que, cessitamos das duas para completar o fenômeno da ascensão e
em compensação, ligou-se a um círculo de vida por ele antes da construção. Veremos, enfim, como os altos níveis evoluti-
desconhecido. A formação das grandes unidades coletivas te- vos não podem ser atingidos pelas massas, numerosas porém
16 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
medíocres, e como os poucos eleitos que os conquistaram ten- Não podemos considerá-lo isolado, fora do complexo da vida,
dem, uma vez cumprida sua função e alcançado o rendimento dos métodos e da finalidade da natureza. Assim, encontramos o
das qualidades por eles adquiridas, a separar-se da humanidade fenômeno social, histórico e político orientados e em sintonia
terrestre. Tornava-se necessário, porém, completar o exame do com o mesmo ritmo da lei reguladora de todos os fenômenos.
fenômeno evolutivo, observando-se também o aspecto coleti- Em toda parte, ambos têm o mesmo esquema fundamental, re-
vo, mas completá-lo começando da base – baixa, mas extensa dutível a princípio único. Torna-se evidente que a natureza age
– da pirâmide social, onde se encontra a grande maioria, que, de acordo com esquemas simples e constantes; suas formações
embora de modo diferente do evoluído, procura ativamente a se fazem com modelos em série, embora não mecanicamente;
própria construção biológica. seus desenvolvimentos obedecem a um plano, e isso os prende
Existem, pois, duas correntes de atividade evolutiva, dois sempre a um princípio diretor central. Retomaremos em melho-
trabalhos intensos: a primeira conclui na formação do super- res condições, mais adiante, tal conceito. A criação tende para a
homem, que se separa e afasta da humanidade, cujas formas de uniformidade e a repetição dos modelos. Todas as formas, as-
vida, para ele baixas e insuportáveis, seu grau evolutivo não to- sim, possuem base comum a irmaná-las em parentela, que mos-
lera mais; a segunda não considera a exceção, porque mais rara, tra derivarem do mesmo e único princípio. Não se copiam, mas
e sim a regra geral, embora medíocre, e opera sobre primitivos se ligam mutuamente de todos os pontos do universo e de todos
e deserdados, para realizar com eles conquista tão importante os planos evolutivos. Por isso, na formação e funcionamento
como a outra. A vida não abandona ninguém e a cada qual, de das grandes unidades sociais, vemos a reprodução dos fenôme-
acordo com sua natureza, oferece atividade adequada e confia nos e o retorno das leis por nós observados nas unidades mine-
tarefa. Um prefere subir sozinho até aos mais elevados cimos; rais, vegetais, animais, desde o átomo até às estrelas.
outro sabe viver e trabalhar apenas no meio da massa e em fun- Isso posto, de modo algum podemos crer que o fenômeno
ção dela. Ambos os trabalhos, porém, merecem respeito e im- histórico se desenvolva sem lei, abandonado ao arbítrio indi-
portam para o progresso; ambos contêm a incerteza da tentativa vidual ou ao capricho dos acontecimentos. A história nos con-
e o risco do inexplorado; representam esforço criador, o traba- ta como se sucedem no tempo os vários momentos do funcio-
lho da gênese biológica. Estes dois pontos resumem a dupla namento dos organismos coletivos. Estas palavras poderiam
fórmula vital do futuro, no duplo aspecto individual e social. constituir-lhe a definição. O funcionamento do corpo social,
Observemos o novo indivíduo biológico coletivo. Como expresso pela história, não obedece ao acaso, mas segue o
todas as primeiras formações embrionárias da vida, agita-se mesmo ritmo por nós encontrado noutros fenômenos. Em ou-
desordenadamente, procurando configurar-se mais estavelmen- tras palavras: o transformismo fenomênico do complexo vivo
te; sente confusamente e move-se desarticulado e incerto, co- do grande corpo coletivo obedece às mesmas leis do dina-
mo todas as construções biológicas recentes. Trata-se, na ver- mismo universal. Ou mais exatamente: é dirigido enquanto
dade, de novo e imenso corpo vivo, de corpo social com as ca- pertencente ao binário da onda histórica. A vida das grandes
racterísticas, as leis, os instintos, as moléstias e as defesas da unidades coletivas se desenvolve de acordo com movimento
vida orgânica e psíquica. O paralelo entre organismo individu- de amplas oscilações ascensionais e descendentes, de altos e
al e organismo social não só confirma nossa concepção bioló- baixos periódicos, movimento que repete o princípio das on-
gica do fenômeno social mas também o esclarece, visto que das do mundo dinâmico de que a vida participa. Isso natural-
reencontramos nele as leis reguladoras do organismo do indi- mente acontece sempre que se trata de dinamismo como neste
víduo. Essa relação nos permite compreender o funcionamento caso. Observemos os períodos e as características desse ritmo
da unidade coletiva e adivinhar-lhe o futuro, utilizando-nos histórico. A história se desenvolve de acordo com respiração
dos mesmos princípios já encontrados no caso individual. Po- rítmica por nós reencontrada na física e, especialmente, no
deremos, assim, compreender melhor a lei reguladora dos eletromagnetismo. A existência dos retornos históricos, já ob-
acontecimentos históricos; considerando-os como fenômenos servados por Vico, é fenômeno de fácil observação. A trajetó-
de biologia social, poder-se-á fazer, à luz da patologia social, a ria típica dos movimentos fenomênicos de que falávamos
diagnose das crises coletivas e estudar, de acordo com a fisio- acima segue o princípio desses retornos ou repetições, repro-
logia coletiva (ou dos corpos múltiplos), o funcionamento do duzindo-os, todavia, em cada vez mais elevada posição; desse
novo grande organismo. Dos conceitos próprios da anatomia fato deriva a evolução. Desse modo, funciona também a histó-
poderão ser aplicados na análise os de: atrofia, hipertrofia, cir- ria. Os acontecimentos humanos, sucedendo-se, tendem a re-
culação e metabolismo, centros cerebrais e nervosos e corren- petir-se, ligando-se à lei dos retornos históricos, que os obriga
tes de consciência, gênese, crescimento, maturidade, senilida- a percorrer de novo o velho caminho. Não nos surpreenda-
de, morte e hereditariedade, ciclos vitais, transformismo evolu- mos, por isso, se a história parece não ensinar coisa alguma e
tivo. E, assim como a propósito do indivíduo, poderemos tam- se, muitas vezes, os mesmos erros são cometidos de novo pe-
bém, a respeito da unidade social, falar em personalidade, des- los próprios dirigentes, que, mais do que ninguém, devem tê-
tino, responsabilidade, missão. la presente. Essa é a lei do fenômeno, que só não se repetiria
Essas comparações são lícitas e lógicas, pois o universo é se progredisse sempre em direção evolutiva; e isso é exata-
dirigido por uma só lei, quer dizer, por legislação única, sempre mente a coisa mais árdua na vida. Todavia, tal como na traje-
onipresente. O fenômeno social, tal como o fisiológico, segue a tória dos movimentos fenomênicos, a repetição não se trans-
mesma lei universal expressa pela trajetória típica dos movi- forma em cópia autêntica; quem observá-la bem lhe notará al-
mentos fenomênicos e pela lei da unidade coletiva (cf. A Gran- guma diferença, embora pequena. Esta representa todo o valor
de Síntese – Cap. XXVI e XXVII). Na matéria, na vida e no es- da conquista, o resultado da experimentação. Aconteceu em
pírito, as formas, desde as atômicas até às siderais, tendem para direção ao alto, em direção evolutiva. E, se atuou na realida-
a unidade, ou seja, para o reagrupamento e a reorganização em de, é construção acabada e real, embora sob a forma de força
sistemas, em associações cada vez mais vastas e complexas. imaterial. Representa novo e indelével traçado, tipo mais
Toda unidade já representa em si mesma a resultante da organi- aperfeiçoado de ritmo, fixador do binário em que, pela mesma
zação de unidades menores. O próprio universo é, por excelên- lei de repetição, devem desenvolver-se mais tarde os novos
cia, unitário e orgânico; é de alto a baixo edifício único. Desse acontecimentos históricos. Estes, como sempre, retornarão ao
modo, o fenômeno social não é somente biológico, mas tam- passado, mas a passado que já fixou determinada diferencia-
bém conexo e logicamente entrosado no fenômeno cósmico; ção evolutiva, patrimônio já conquistado e ponto de partida
representa momento da Lei, processo da mecânica universal. para novas diferenciações e conquistas.
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 17
Observemos, pois, as características dos dois períodos do fa e descarrega o dinamismo, o período complementar, presente
ritmo histórico. Trata-se de duas posições inversas e comple- em todas as coisas, espera a vez em silêncio, repousa e recarre-
mentares, rivais e, contudo, irmãs na tarefa de construir. Trata- ga o dinamismo. O leitor olhe em torno, na vida vegetal e ani-
se de caso a que se aplica a lei universal da dualidade, já de- mal, no descanso hibernal e nas florescência primaveris, no
senvolvida em A Grande Síntese (Cap. XXXIX) e que neste li- sossego da morte e nos trabalhos da vida, e veja se o fenômeno
vro desenvolveremos ainda mais. No ritmo histórico, continu- constitui exceção da regra geral.
amente se alternam os períodos clássico e romântico. O pri- No caso humano, os dirigentes – jamais criadores do mo-
meiro, masculino, explosivo, guerreiro, materialmente con- mento histórico, e sim apenas intérpretes; jamais árbitros de-
quistador, destruidor, fecundante e semeador, violento, involu- sordenados, e sim servos obedientes à Lei, sem a qual não há
ído, materialista. O segundo, feminino, tranqüilo, conservador vida – põem em funcionamento esta ou aquela fase, de acordo
e espiritualmente conquistador, construtor, preparador e ama- com os tempos, sucessivamente, uma em consequência da ou-
durecedor, pacífico, evoluído, espiritualista. Na trajetória dos tra; e as massas caminham, dando corpo ao impulso. A alter-
movimentos fenomênicos, o primeiro período representa a fase nância das duas tendências permite que, depois do período de
de queda involutiva, de retorno e de recuo; o segundo, a fase trabalho, ambas as partes descansem. Os componentes do
de ascensão evolutiva, de progresso, de ímpeto. Ambos os pe- imenso indivíduo coletivo são levados assim, alternadamente, a
ríodos, porém, são necessários, porque têm funções diferentes turnos de trabalho e de repouso, exatamente como as equilibra-
e ao mesmo tempo complementares. O progresso caminha am- das leis da vida querem. Enquanto uns repousam, outros, que já
parado nessas duas forças contrárias, impelido pelos seus cho- repousaram, agora trabalham, e assim, embora passando de
ques e contradições. No fundo, os dois períodos criam, porém mão em mão, a função progride sem interrupções. Divisão de
sob forma diferente, emborcando-se um no outro; e, embora trabalho necessária, porque executada por muito diferentes ti-
pareçam inimigos em luta, cooperam, colaboram em lados pos biológicos, de funções especializadas; necessária para evi-
opostos, na mesma construção. Se o primeiro, em plena tem- tar cansaços e esgotamentos étnicos; necessária para corrigir
pestade, não evidenciasse e, no meio da morte, não lançasse qualquer direção individual tendente à hipertrofia unilateral e,
princípios mais elevados de vida e se, em ambiente de destrui- desse modo, compensá-la. Só assim podemos conseguir desen-
ção, não limpasse o terreno, tirando-lhe as velhas construções, volvimento homogêneo e harmônico. Portanto o grande indiví-
o segundo não teria, na paz, novos motivos para desenvolver duo coletivo, como simples homem equilibrado, divide sua ati-
nem novas construções a levantar. Reencontramos aqui o con- vidade entre o trabalho físico e o espiritual.
ceito acima lembrado, segundo o qual, para poder conciliar a Como em todas as formas da vida, os dois sexos se comple-
fluidez necessária ao transformismo evolutivo e a rigidez im- tam. Há povos masculinos, conquistadores e fecundantes, e po-
posta pela necessidade de assumir formas bem definidas, a vi- vos femininos, conquistados e fecundáveis. Ambos têm todas as
da deve renovar-se, alternando continuamente a vida e a morte, características, como acima dissemos, dos dois períodos opos-
a construção e a destruição. Tudo isso exprime, nesse caso, a tos, clássico e romântico. As duas extremidades se atraem, em-
íntima bipolaridade encontrada em toda individuação, repre- parelham e compensam no tempo e no espaço. A unidade com-
sentada nos dois extremos opostos entre os quais, oscilando, pleta resulta da fusão dos dois contrários, e cada qual nada pode
funciona e evolui o fenômeno social, o que corresponde à ca- fazer sozinho. Se a parte masculina não fecundar, a feminina
racterística de harmonia e equilíbrio fundamental da Lei, se- nada gera. O fenômeno da civilização pode parecer processo de
gundo a qual os dois extremos componentes de cada unidade efeminação, porque significa paz, conservação, bem-estar, luxo,
devem ser proporcionados e se contrabalançar. A fenomenolo- refinamento, arte, cultura. Veremos mais tarde como a matura-
gia universal reclama e nos faz encontrar presente em toda par- ção, quando muito impelida nesse rumo, se resolve em podridão,
te o organismo, inseparável de seus princípios. assim como a oposta atividade viril termina em cataclismo, se
Mas o equilíbrio não aparece só na intimidade de cada uni- muito forte. A Lei, nos seus equilíbrios, sabe corrigir os exces-
dade social, no seu desenvolvimento temporal, mas também na sos, intervindo a tempo com movimentos contrários e compen-
sua estrutura espacial. Noutros termos: o fenômeno não é equi- sadores. Existe proporção entre os impulsos de uma fase e os da
librado apenas no futuro histórico, mas também na distribuição sucessiva, como entre ação e reação. Isto nos faz pensar em
das várias unidades sociais pela superfície da Terra. Ou seja, quão grande deverá ser a nova civilização do espírito, se a com-
cada povo vive uma determinada fase, diferente para cada um, pararmos com a atual destruição conseguida pela civilização da
de modo que o dinamismo da humanidade não se concentra to- matéria. Os preparativos são, de fato, gigantescos.
do em uma única direção, mas se realiza levando em conta a Torna-se necessário que, efetivamente, a onda, por sua pró-
compensação tanto no tempo como no espaço. Evitam-se assim pria estrutura, em dados períodos, eleve das raízes da vida a
excessos e lacunas perigosas, atrofias e hipertrofias danosas, e, forma masculina, para salvar a humanidade da civilização acele-
em meio a tanto movimento e tal emaranhado de contrastes, a rada demais, isto é, da efeminação, ou melhor, da maturação le-
harmonia permanece soberana no espaço e no tempo. No espa- vada à putrefação. Então, o homem domina, tudo se viriliza, in-
ço, a civilização ocidental, mecânica e materialista, equilibra a clusive a mulher (como hoje acontece), enquanto no período
civilização oriental, mais madura e espiritualista. No tempo, o oposto, a mulher domina e tudo se efemina, o homem inclusive
fato de estarmos hoje em pleno materialismo significa que se (como aconteceu no século XVIII). Quando chega a hora, ele in-
deve fatalmente esperar a fase de espiritualismo. Não se pode tervém para verificar, à luz da realidade concreta, as supercons-
saber exatamente o ano e o dia, mas diz a lógica das leis da vida truções do período romântico; arrancar o que nele existe de falso
que o atual ciclo histórico deve encerrar-se; as forças que o e supérfluo, quer dizer, de não realmente verdadeiro na vida; re-
movimentam e já atuam há tempo devem esgotar-se e parar, e ativar a circulação; dinamizar com novos impulsos. Nessa rela-
deve começar precisamente o ciclo oposto. Poder-se-á dizer: ção se encontrou a antiga Roma perante a Grécia, bem como a
“não vejo, não creio”, mas o leitor, se capaz de raciocinar e Revolução Francesa e o império frente ao período monárquico
compreender a mecânica do universo, que estamos procurando imediatamente anterior, e também se encontra a atual fase do
pôr-lhe sob os olhos, em pleno funcionamento, deverá concluir mundo em relação ao século XIX. E tudo isso para depois civili-
que as aparências estão na superfície e enganam; deve nascer- zar-se de novo com os produtos das civilizações vencidas, ela-
lhe no espírito ao menos a suspeita de que debaixo delas, onde borados na luta e introduzidos em novo ciclo. Assim, nada se
tantos vivem, exista outro mundo, imenso e muito mais perfei- perde ou destrói; se o acessório supérfluo desaparece, a substân-
to. Enquanto o ciclo atual percorre a trajetória, completa a tare- cia permanece e revive sem cessar. Melindramo-nos com a des-
18 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
truição feita por essas tempestades, porque só vemos as formas e seguida, levados até mais longe. Terminada a recapitulação, o
vivemos na superfície. Se, ao invés, olhássemos o germe das que no passado foi ponto de chegada será agora ponto de parti-
coisas, veríamos que ele não morre jamais e esse perecimento da. Os mesmos princípios, posto haver continuidade na evolu-
nos perturbaria menos com essa explicação lógica. ção, serão desenvolvidos sob a forma de construções que, antes,
Assim, onde há o perigo de excessiva efeminação, onde a não haviam encontrado meios que lhes tornassem possível a
civilização muito requintada enerva e debilita as raças, aí a vida atuação. Já sob bases orgânicas coletivas, a nova fase poderá ir
coloca reforços para, com injeções de virilidade, dinamizarem a muito além da antecessora de mesmo tipo, depois de ter sido
maturidade por demais cansada. Essa a função dos povos jo- obtida da mistura de povos, raças e civilizações a recíproca ces-
vens, involuídos e primitivos mas também mais próximos das são e aquisição, isto é, a troca em que atua a técnica regenera-
origens da vida, transbordantes de energia, embora pobres de dora da vida ou, noutras palavras, depois de dinamizados os
experiência e sabedoria, possuidores de dinamismo, potencial exaustos e tornados maduros os involuídos. Desta vez, o impul-
que, por enquanto, não transformaram em qualidade, evoluindo. so espiritual encontra preparados meios bem diferentes de ação
Naturalmente oposta é a função dos povos maduros, cujas ri- e, principalmente, esse movimento de massas característico de
quezas espirituais os primeiros avidamente querem possuir, nossos tempos, em que poderá multiplicar-se, enxertando-se ne-
como se fossem alimento de que carecem para, assimilando, le. Os meios de divulgação e de contacto e o mais elevado nível
evoluir. Os primeiros oferecem dinamismo rude e decomposto; médio de cultura permitirão enorme alargamento de bases e de
os segundos, sabedoria, produto de longas experiências. Estabe- comparticipação. Doutro lado, a concepção espiritual da vida
lece-se entre os dois o mesmo equilíbrio existente entre jovens não ressurgirá como tentativa, tendência ou forma, que para
e velhos, uns e outros necessários à vida, embora com funções tantos é apenas crença vã, mas ressurgirá como conhecimento e
opostas. Com isso se obtém, de uma só vez, dois grandes resul- consciência das leis da vida, acessíveis por via racional e expe-
tados: 1) O progresso do involuído por obra e graça do evoluí- rimental, no modo evidente da objetividade cientifica. Desta
do, que assim dá rendimento coletivo à sua posição, vindo esta vez, o homem, servido pela técnica, será dono de muitas forças
a constituir função biológica; 2) O recarregamento dinâmico da natureza, de muitos instrumentos e capacidades novas que
das coletividades civilizadas e cansadas, trabalho do involuído, antes ignorava. Assim, a sua nova espiritualidade não se con-
que preenche, ele também, função biológica. Desse modo, cada cretizará unicamente nos casos de individualismo elevado ou,
qual se compensa, dando o que tem e adquirindo o que não tem; então, como elementar e prévio fermento de massas, mas se de-
todo tipo humano tem função e missão, e os extremos da vida senvolverá na reconstrução orgânica da civilização, impregnan-
se ajudam alternadamente. A técnica regeneradora da vida, des- do-lhe todos os estratos e enquadrando-lhe todos os movimen-
de o caso sexual até ao da mistura das raças, funciona exata- tos. A nova espiritualidade do Terceiro Milênio deverá realizar-
mente de acordo com o sistema das cessões e aquisições recí- se em plano coletivo muito mais amplo, mais profundo e orgâ-
procas, isto é, com as trocas entre elementos contrários. nico do que qualquer dos precedentes.
Se do exame dos princípios passamos ao nosso atual caso A construção é grandiosa, mas nova em grande parte, e o
particular, evidencia-se como se encontra hoje o mundo na fa- novo não está isento de perigos. Vamos assinalar dois. Eis o
se masculina, em que tudo, inclusive a mulher, tende para a vi- primeiro: a formação do organismo coletivo representa moder-
rilização. Explica-se desse modo o assim chamado despertar na conquista que nossa fase apronta para a seguinte. Ora, toda
político-social da mulher, sua participação em atividade para a construção tende à hipertrofia e à caducidade. Logo o princípio
qual, em outros tempos, a consideravam incompetente. Encon- de organicidade social ameaça tornar-se o túmulo do individua-
tramo-nos, evidentemente, em pleno período clássico, oposto lismo. Este, excelente produto da velha civilização, hoje deve
ao romântico, quer dizer, em período de exaltação das qualida- lutar para não se deixar absorver pelas novas afirmações do co-
des do tipo guerreiro, materialmente conquistador, destrutivo, letivismo. Causa dano perturbar os equilíbrios. O processo de
fecundante e semeador, violento, involuído, materialista. Estão unificação social não deve reduzir-se a processo antibiológico,
momentaneamente deprimidas as qualidades do tipo oposto, destruidor de valores adquiridos, que, ao contrário, se devem
cujo dinamismo agora se recarrega em silêncio, à espera da conservar e empregar. Assim, caminhando demais em direção
vez de entrar em ação. Quando isso acontecer, exaltar-se-ão as da vida, arriscamo-nos a seguir caminho diametralmente opos-
qualidades do tipo romântico e serão deprimidas as do tipo to. A unificação orgânica coletiva não deve resolver-se no es-
atual, e assim por diante. As verdades sustentadas pelo ho- magamento e morte do individualismo, que contínua a ser a
mem, muitas vezes, não exprimem senão a tarefa particular a “via regia” da evolução; deve, porém, significar-lhe a coorde-
realizar-se. Assim se explica a alternância da moda, não só nos nação em unidades maiores, em que ele, ao invés de mutilado e
vestidos mas em todas as coisas – forma mental essencialmen- asfixiado, se torne expoente da vida social de relação. Produto
te mutável, que se manifesta em tudo. No novo período não se biológico não se destrói sem dano. O novo trabalho consiste em
dará valor ao que hoje se admira; ao contrário, valorizar-se-á o coordenar os valores resultantes das conquistas realizadas, he-
tipo conservador, espiritualmente conquistador, construtor, rança das fadigas humanas no transcurso dos séculos, e aumen-
preparador e maturador, pacífico, evoluído, espiritualista. A tar-lhe o rendimento na coordenação. A Lei quer o equilíbrio,
Lei nos obriga, instintivamente, a prezar o tipo que, no mo- isto é, não quer Estado onipotente de corpo social, em que o in-
mento, está exercendo função de valor, porquanto corresponde divíduo desapareça, mas a afirmação equilibrada dos dois prin-
a determinado objetivo biológico, e tende a alcançá-lo, apli- cípios: o individual e o coletivo, opostos e complementares, e,
cando como missão suas qualidades particulares. por isso, feitos para se compensarem mutuamente. Opostos,
Chegará, pois, o período de refinamento espiritual. A onto- tendem a se prejudicar um ao outro, todavia são reciprocamente
gênese, diz-se, resume com rapidez a filogênese. Do embrião à indispensáveis. O primeiro vale como material construtivo: sem
juventude, a história da vida se repete no organismo. Assim, to- ele, nenhum sistema é atuante; o segundo, como força discipli-
da civilização, ao surgir, recapitula o seu passado de acordo nadora e coordenadora: sem ela, os valores do individualismo
com seu tipo. A nova fase, porém, como vemos na trajetória se anulam na luta e na destruição. O primeiro se move em dire-
dos movimentos fenomênicos, não se esgota nessa repetição ções e tende a conquistas ambas diferentes das do outro. Um
sumária, mas continua o caminho para subir mais, conquistando caminha para especialização cada vez mais avançada, profunda
novo trecho. Isso representa a conquista evolutiva da fase. Em e perfeita, ou seja, é separatista; o outro, anti-separatista, dirige-
princípio, pois, os motivos espirituais do precedente período do se à unificação mais íntima e completa. Os dois princípios pre-
mesmo tipo serão retomados, rapidamente recapitulados e, em enchem função: o primeiro forma um por um os indivíduos, o
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 19
segundo coordena-os em unidades cada vez mais vastas. Pri- aprenda a resolvê-los por si mesmo. Torna-se necessário que a
meiro o princípio coletivo organiza os indivíduos em organis- evolução, como coletividade, não signifique supressão do es-
mo familiar, depois em classe social, em seguida em Estado e forço, tão de boa-vontade abandonado, para evoluir individu-
Nação, mais adiante em raça, finalmente em humanidade e, almente, porque, nesse caso, a evolução trairia seu objetivo: a
além de nosso ambiente terrestre, em organismos de humanida- ascensão. De fato, entravando o progresso individual, perturba
des. O indivíduo, segundo o grau evolutivo, deve sucessiva- até mesmo o princípio dele resultante.
mente tomar parte nessas unidades múltiplas cada vez mais vas- Eis o segundo perigo, capaz de causar o naufrágio da nova
tas e complexas, sem destruir a organicidade já atingida, mas civilização do espírito, impedindo-lhe atingir as suas metas: o
encaminhando a menor para a maior. bem-estar, a segurança, o refinamento, que, se significam civi-
Um dos erros do princípio coletivo será a redução do ho- lização, constituem o primeiro passo do enfraquecimento e da
mem a máquina e a número, à irresponsabilidade, à servidão, à decadência. Para não apodrecer, a vida deve exercitar-se conti-
situação de indivíduo mantido pelo Estado onipotente, em posi- nuamente na luta, porque é da Lei que a vida não seja fim de si
ção crepuscular de segurança e passividade. Isso é antivital. Os mesma, mas instrumento de conquista. Ai do homem se, atingi-
desníveis de todo gênero, o estímulo do interesse, a liberdade do o bem-estar material, se contenta e pára em plena estrada da
de iniciativa individual, as competições em todos os campos in- conquista, sem avançar mais, em direção ao altiplano do espíri-
citam a atividade necessária para os experimentos de que nasce to. A ascensão material, para não degenerar, deve ser apenas o
a evolução. A propriedade, tão bem conhecida até dos animais, meio para apresentar-se em novos horizontes intelectuais e es-
constitui fenômeno biológico inviolável, porque necessária para pirituais, conseguir realizações mais elevadas, sob novas for-
proteger e conservar a vida. Se o enquadramento chega à absor- mas de luta, a fim de que a evolução continue. Só assim se po-
ção; se paralisa a liberdade de movimento necessária aos obje- derá dar futuro à vida. A história já nos mostra como se mani-
tivos da vida do indivíduo; se a disciplina chega à destruição da festa a decadência tão logo o homem se detém no progresso ob-
fisionomia individual e à sufocação, o princípio coletivo torna- tido, como nas comodidades diminui a intensidade do trabalho
se antivital. Seria antibiológico que a estatolatria atuasse opri- evolutivo, e como a todo período de sofrimento segue período
mindo a célula constitutiva, pois o Estado existe justamente pa- de ascensão. O alto padrão de vida pode adormecer as limitadas
ra desenvolvê-la. Deve existir proporção entre cérebro e mem- potências criadoras do espírito, que deve ser malhado e polido
bros, equilíbrio entre centro e periferia, harmonia em tudo. To- como os metais, para manter-se brilhante. Para os indignos, a
da hipertrofia é monstruosa. O novo corpo social tem necessi- vida pára, e quem pára morre. Não se entenda o novo período
dade de ser plástico, adaptável, multíplice, de partes compensa- como resultado de que se deva tirar gozo, mas como novo tor-
das, de elementos substituíveis, e não deve ser emperrado pela mento de criação. Só se a lei de luta e seleção for levada para
excessiva complexidade da organização, tanto mais vulnerável plano mais alto, a vida não será traída e essa civilização terá
quanto mais complexa, reduzindo-se assim a fator de perigo pa- conseguido seu objetivo. Só assim não será inútil e não tomba-
ra a vida. Não deve resolver-se em centralização absorvente, rá, desperdiçando os frutos de passado tão longo. As civiliza-
mas compensá-la com descentralização adequada. A ameaça do ções deste tipo tendem a desagregar-se na efeminação, no refi-
novo sistema orgânico está na preguiça do indivíduo, que se namento, na inércia, como as do tipo oposto tendem a naufragar
adapta e abastarda, servindo-se dele apenas para deixar-se ar- na violência e na destruição. Tão logo a civilização do espírito
rastar, abdicando à própria autonomia espiritual e ao dever de perde a substância e se torna forma brilhante, sem nenhum con-
evoluir, porque, guiado pelo Estado e pela técnica, acredita po- teúdo mais, desperta ameaçador o fermento viril e masculini-
der, enfim, furtar-se ao trabalho. A ameaça está em que a igual- zante; desperta e sobe dos planos inferiores para jogar fora a es-
dade chegue à podre indolência dos servos e à criação de reba- trutura que se tornou inútil. E isso lhe assinala o fim.
nhos passíveis de serem dominados. Infelizmente, o senso de
responsabilidade tende a decair na razão direta do número. O VI. A LEI DA HONESTIDADE E DO MÉRITO
apoio recíproco encoraja a inconsciência e, por motivo de con-
fiança recíproca, enfraquece o autocontrole; é convite à ação Nos primeiros capítulos deste livro, pela verificação de fa-
cega, que, quando isolada, é mais ponderada. O número, prin- tos, partimos do que o homem é hoje, e isso deixando apenas
cipalmente aos fracos, dá ilusão de poder, de segurança e tam- entrever o que deveria e poderia ser. Começamos agora a per-
bém de impunidade. O número constitui a grande defesa e a correr a longa estrada da ascensão. Levar-nos-á a vertiginosas
única força das nulidades; estas sabem disso e nele se refugiam. alturas. E a grande massa humana, de que, até mesmo no aspec-
O coletivismo pode ser desfrutado por elas e significar-lhes a to coletivo, apreendemos os movimentos, irá diminuindo de
exaltação. Na massa, em que vale a quantidade, e não a quali- tamanho até ficarem somente poucos casos excelsos, florescên-
dade, o inferior se valoriza e o superior se desvaloriza. O núme- cia de excepcional beleza e supremo esforço da raça. O pro-
ro nivela, tira dos melhores e dá aos piores. Como os primeiros blema coletivo só se concebe na base da evolução humana. A
constituem a minoria, todo agrupamento implica em piora mais vida não sabe atingir os pontos culminantes senão sob forma
ou menos pronunciada. Os primeiros descem até aos segundos; individualista. Além disso, as próprias construções sociais não
estes não sobem até aqueles. Assim, toda coletividade vale podem elevar-se sem adequado material humano, cuja forma-
sempre muito menos que a soma dos indivíduos componentes. ção constitui problema individual. Sem novo homem, mais sá-
“Senatores boni viri, senatus autem mala bestia”6. E isso tam- bio e consciente do que o involuído, hoje em maioria, os siste-
bém porque o apoio recíproco diminui o esforço individual e, mas coletivos que, nos dias de hoje, tentamos tornar atuantes
portanto, o rendimento coletivo. Desse modo, por causa dessa não podem atingir os objetivos que prefixam para si mesmos.
instintiva confiança de ovelha e da cessão de controle, as forças Mesmo para resolver a questão social, torna-se necessário, pois,
individuais de qualquer agrupamento humano se anulam ao in- começar pelo caso individual, visto como os dois fenômenos,
vés de se somarem. Basta isolar o indivíduo para dar-lhe de no- individual e coletivo, se entrosam e amadurecem paralelamente.
vo o senso de responsabilidade. Desfeita a miragem, cai logo O engenheiro poderá fazer projetos maravilhosos, mas, se não
em si. Nesses casos, o homem se revela animal gregário. Mas, dispuser de bom material, os edifícios por ele construídos desa-
se deve ser enquadrado e disciplinado, deve também ser deixa- barão. Tal entrosamento de fatos nos impele do aspecto coleti-
do sozinho e livre diante dos problemas da vida, para que vo ao individualista, da visão de conjunto à de suas particulari-
dades. Se os cimos constituem exceção e não interessam às
6
Os senadores são boas pessoas; o senado, entretanto, é uma besta. massas, os primeiros passos das ascensões humanas são pro-
20 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
blema vital também para elas e outras construções coletivas caótico e destruidor. Seu egoísmo, que acredita ser-lhe necessá-
com elas relacionadas. Para, também sob esse aspecto, construir rio, é o princípio de sua desagregação; seu hábito de impor-se,
o progresso, torna-se necessário começar pela construção do para ele meio de poder, é apenas gerador de reações dolorosas
indivíduo, com o renovamento da forma mental dominante, que da Lei; o imediatismo da vantagem obtida nos resultados pró-
é a do involuído. Sem o estabelecimento dessa premissa, os ximos não passa de imprevisão do dano que, inevitavelmente,
atuais sistemas de enquadramento coletivo ou se reduzem a os resultados longínquos lhe trarão. Observado à luz da mais
mentira ou não passam de utopia. profunda realidade das coisas, o involuído não nos aparece co-
Comecemos, então, a observar o que o homem deve e pode mo apanhador de conquistas e de alegria, mas semeador de er-
ser, precisando cada vez mais o como e o porquê. Comecemos ros e dores, míope enredado nas particularidades das coisas
a demolir racionalmente a psicologia do involuído, para substi- próximas e ignorante das que, embora afastadas, também lhe
tuí-la pela de tipo biológico mais evoluído; a demonstrar co- dizem respeito, louco que, em organismo harmônico, equilibra-
mo, de fato, a vida é bem diferente daquilo que geralmente se do e perfeito, se debate na falta de compreensão, chocando-se
pensa; a destrinçar a meada das falsas aparências, a fim de com forças que, para ele invisíveis, o ferem de morte. O mundo
chegarmos a compreender o engano das ilusões psíquicas que dirigido pela bondade e pelo amor estaria pronto para acolhê-lo
tantas vezes vitimam o homem. Só se a observação incidir- em atmosfera de felicidade, se o involuído soubesse comportar-
lhes, além das aparências dos fenômenos, na íntima estrutura se como Deus quer, em harmonia e cooperação. Pelo contrário,
de organismo de forças em ação, poderemos atingir seriamente não compreende coisa alguma de tamanha bondade e beleza e
e sem desilusão o objetivo instintivo e justo da vida: a felici- agita-se em atmosfera de revolta e destruição, para acabar en-
dade. Como todos os jogos têm regras próprias, cada dinamis- carcerando-se na gaiola de ferro das dolorosas sanções. Então,
mo, suas técnicas e cada fenômeno, suas leis, então, neste caso ainda se debate e debate-se cada vez mais, e os nós vão-se aper-
também, compreende-se a necessidade de disciplina reguladora tando; aí, rebela-se mais ainda, maldiz, vai de vingança em vin-
e diretriz da atividade humana, se quisermos vê-la atingir o fim gança e, assim, agrava sempre mais sua autocondenação.
a que tende. Para que seja possível o melhoramento e a reno- Inútil estar sempre cogitando novos sistemas sociais en-
vação social, todos compreendem que é necessário tornar co- quanto não se puder dispor de outro tipo humano como material
mum o tipo humano excepcional em nossos dias, no qual pre- construtivo. Com esse homem anti-social e caótico não se pode
dominam as características de honestidade. Trata-se de revolu- pretender sólida construção coletiva. Para tanto, esse material
ção biológica, pois significa a substituição do princípio separa- deve ser cimentado pela fé e manter-se no espírito de coopera-
tista do egoísmo agressivo para seleção do mais forte pelo ele- ção, na disciplina material e moral e, acima de tudo, na retidão
vado princípio coordenador e harmônico do enquadramento do interior. Em face desse princípio fundamental de ordem, torna-
indivíduo no funcionamento orgânico da humanidade. O invo- se secundária, quase sem importância, a forma do sistema soci-
luído não sabe decidir-se a essa transformação, que implica o al segundo o qual os homens tanto se separam e tanto se batem.
abandono das armas de ataque e defesa, pois teme ficar desar- Não é a estrutura do sistema o que importa e decide, mas sim
mado, sem proteção, e pensa ele que isso significa seu fim ine- haver entendido a lógica e a vantagem, até mesmo individual,
vitável. Se olharmos bem o íntimo das coisas, veremos não só da honestidade, esse novo e mais orgânico utilitarismo, e ter
que apenas o desconhecedor das leis da vida pode crer nisso compreendido, ao contrário do que (assim dizíamos) possa pa-
mas também que, pelo contrário, quem pratica o evangelho não recer ao involuído, como a retidão é força, ajuda na luta, posi-
é pessoa iludida, enganando-se ao seguir utopias, mas homem ção de superioridade, forma vital de consciência, equilíbrio, sa-
que descobriu outras leis mais profundas, mais sólidas e perfei- úde do espírito. Algum sábio, sem dúvida, já o disse e redisse.
tas, e utiliza na própria defesa princípio protetor completamen- Mas na vida dos povos valem os atos de muitos, e não as pala-
te diverso. Como se vê, o indivíduo, assim, não renuncia ne- vras de poucos. A verdadeira enfermidade do espírito é, pelo
cessariamente às próprias defesas nem se abandona, como po- contrário, a decadência do senso de retidão causada pelo mate-
de parecer, à mercê de todos os assaltos. Ao contrário, obtém rialismo, de que tantos se orgulham, como se tratasse de supe-
outra segurança bem diferente, pois movimenta mecanismo de ração. Significa decadência do senso orgânico da vida, quer di-
forças muito mais perfeito e resistente que a violência ou a as- zer, debilidade biológica, perigo social, perturbação que se paga
túcia do involuído, mecanismo não compreendido por este na caro. E, com efeito, a vida hoje se tornou campo de competi-
ignorância inerente a seu grau. ções tão torturantes e impiedosas, que qualquer alegria se torna
Atualmente, a honestidade é considerada pelo involuído, impossível, desaparecem a fé e a segurança, todas as coisas
muitas vezes, como debilidade, peso moral que embaraça a lu- humanas se envenenam; por todos os atalhos do injusto corre-
ta, posição de inferioridade, forma antivital de inconsciência, mos para o arrivismo, mas fazemo-lo de respiração opressa,
desequilíbrio, moléstia do espírito. Essa a perspectiva das coi- porque esse sistema embaraça e pesa; corremos, supondo-nos
sas, do ponto de vista em que o involuído se coloca. Mas o pon- dinâmicos, mas é dinamismo fictício e traidor, que culmina na
to de vista pode mudar, e obtemos então perspectiva completa- destruição universal. Neste mundo falso, o honesto é conside-
mente diversa. Isso parece impossível até o momento da efetiva rado estúpido e ingênuo. No entanto é o único que, agindo de
mudança do ponto de vista. Mas, quando tal acontece, a pers- acordo com as verdadeiras leis da vida, pára e constrói parapei-
pectiva muda automaticamente. Como a retidão, a inocência e a to protetor à beira do abismo. A honestidade constitui sempre o
obediência à Lei podem constituir instrumento de defesa me- melhor negócio. É questão de compreender. E a desonestidade,
lhor que a força, o egoísmo e a astúcia? Simplesmente absurdo, diga-se o que se disser, é sempre o pior negócio, representa, em
dirá o involuído. Não. É absurdo apenas para quem não possui outras palavras, forma de estupidez.
o sentido orgânico da vida. E esta organicidade da vida é quali- Para solução de todos os problemas, repetiremos sempre,
dade essencial dela, estado universal e acessível a todos em necessitamos de compreender a Lei. Não vivemos no vácuo, em
qualquer tempo e lugar, porque depende da própria maturidade, meio ao nada, no caos; estamos, pelo contrário, mergulhados
e não da compreensão alheia e do grau de organização social. em oceano de forças e, entre elas, somos força também; não
Essa organicidade acha-se pronta a receber no seio todo indiví- podemos isolar-nos, fugir do regime de interdependência que
duo que saiba pensar e agir organicamente, não como arbítrio liga tudo a tudo. Todo fenômeno tem vida e se move segundo
individual, mas como função coordenada no funcionamento trajetória determinada; representa impulso, vontade de existir
universal. O indivíduo, ao contrário, pensa e age desorganiza- em dada forma, de progredir em direção a determinada meta;
damente. Crê ser forte e dominador, no entanto não passa de representa dinamismo inteligente. Forma, vontade ativa e prin-
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 21
cípio diretor acham-se presentes em qualquer época e lugar. O siste em acumular obstáculos protetores, mas em não merecer o
conjunto imenso de todas as formas coordena-se em hierarquia; golpe. A luta seletiva, então, é substituída pela consciência da
a rede de todos os impulsos, em sistemas dinâmicos; e o feixe Lei, pelo princípio de ordem e de harmonia, em que não se trata
de todos os princípios, na Lei. Tudo é ligado, sensível, corres- de aprender a defender-se, como fortes, mas a merecer, como
pondente. Não se pode evitar as proporcionadas e precisas rea- justos. O involuído nada sabe disso tudo, não sente esses equi-
ções a todos os movimentos. Tudo ecoa e repercute em cadeias líbrios, não vê esses jogos de forças, é material e materialista,
de ações e reações. Qualquer ato nosso deve avançar fatalmente tem no sangue instintos de revolta e, com esse modo de ser e de
para o binário do determinismo causal e é, assim, guiado auto- sentir, constrói seu próprio mundo inferior. Crê só no corpo e
maticamente em seus deslocamentos e enquadrado por limites e não concebe a vida fora dele, acreditando que, com a morte, tu-
relações. As forças boas ou más por nós movimentadas como do acaba, uma vez que neste estado, sem meios físicos sensó-
causa correrão ao longo dos canais do dinamismo universal e, rios, não é capaz de conservar-se consciente como o evoluído,
depois, hão de voltar para nós sob a forma de efeito. De modo para quem a morte não significa interrupção da vida. Em última
que, pensando com os nossos atos projetar impulso contra os análise, quanta fraqueza na posição assumida pelo homem que
outros, o que fazemos é lançá-lo, bom ou mau, contra nós aplica a lei de seleção do mais forte! Julga-se merecedor da vi-
mesmos. As repercussões são infinitas, e as conseqüências tan- da e não passa de retardatário no caminho da evolução!
to se prolongam, que parecem inexauríveis. O impulso do bem Quando recebe golpes, o involuído, ao invés de absorvê-
se multiplica tanto como o do mal. O violento, que acredita los e diluí-los para eliminar de sua vida essa força, ingenua-
dominar, impondo-se pela força, constrange milhares de pesso- mente devolve-os e, assim, liga-se sempre mais aos impulsos
as a viverem amontoadas para dar-lhe lugar e, assim, ensina- da reação, que, conforme a lei de equilíbrio, o golpearão tanto
lhes a se defenderem, pois lhes impõe substituírem, pelo traba- mais quanto mais energicamente ele houver golpeado. O se-
lho ingente da própria defesa, o trabalho benéfico e profícuo da gredo da defesa hábil está, pelo contrário, na libertação, e só é
produção e conservação dos bens. O dano recai sobre todos, livre quem conseguiu não merecer a reação. A esse ponto
principalmente sobre ele. A psicologia do involuído impôs à chegaremos se não nos revoltarmos, mas conseguirmos assi-
sociedade humana os agrupamentos de classe, obrigando-a milar os impulsos contrários, absorvendo-lhes o valor correti-
muitas vezes, para servir à defesa, a tornar-se instrumento de vo. O involuído, de método desequilibrado, transforma tudo
opressão. Assim nasce a norma jurídica primitiva, a sociedade em coisas prejudiciais para si mesmo. O homem evoluído
torna-se agressiva e o ser inferior acaba por suportar, com dano, converte em vantagem pessoal o próprio mal; sabe que todo
a última das reações em cadeia por ele mesmo postas em jogo. erro deve ser pago e, por isso, aceita a reação como meio de
Toda forma de vida implica em outra; educa e é educada. Só a reconquista do equilíbrio, não se revoltando para não aumen-
ignorância do involuído pode acreditar na utilidade do egoísmo. tar sua dívida. A diferença consiste em ver as causas remotas,
O que o ilude é o imediatismo das vantagens obtidas. Não e não apenas as imediatas, do golpe que nos atinge. Assim,
compreende, porém, que são momentâneas, reduzindo-se a adi- para o evoluído, toda adversidade se converte em campo de
antamento a ser compensado depois, a débito a ser pago; não treino, em escola de progresso ascensional. O sistema de re-
compreende que são obtidas como imposição aos equilíbrios a volta do involuído, que pretende sobrepor-se à Lei, violentan-
que sempre voltamos e a que nenhuma força ou astúcia humana do-lhe os equilíbrios, aumenta a sua dívida em vez de solvê-
pode com o tempo impedir que devamos voltar. Por essas ra- la, aumentando o desequilíbrio e a desordem, ou seja, a dor.
zões, o evoluído, sabedor de como a vida funciona, prefere se- Ao contrário, o evoluído paga, liquida o débito, melhora de si-
guir caminho mais estável e seguro, substituindo o princípio da tuação, readquire o equilíbrio e se harmoniza, alivia e elimina
força pelo do merecimento. Não apelamos aqui para a bondade a dor. O erro consiste no modo de equacionar o problema. O
e para idealismos superiores. Seria pedir muito. Trata-se apenas evoluído compreendeu a lógica da vida e o significado dos
de sermos raciocinadores inteligentes, para compreender o que acontecimentos, percebe a justiça existente na vontade que a
é verdadeiramente útil. Um pouco de inteligência e reflexão dirige e, por isso, a conveniência de segui-la, ao invés de so-
bastariam para mudar não só os fundamentos da vida individual brepor-se a ela; de fato, a paciência esclarecida pode criar
e social, mas também tanta dor em bem-estar. mais do que a cega violência. Compreender a Lei e seguir a
Como funciona, pois, essa lei do merecimento? Como po- vontade de Deus constituem o caminho mais acertado.
demos ter-lhe tão profunda fé, a ponto de, até mesmo na defesa O homem é livre, mas a Lei é inalterável. É livre para atrair
e na luta pela vida, fazê-la substituir a lei da força? Se tudo isso sobre si todas as dores que quiser, não pode, porém, impedir o
é incrível para o involuído, torna-se verdade e real tão logo es- funcionamento da Lei. Livre para confundir liberdade e arbí-
cape à rede de reações que ele pôs em jogo e agora o envolve. trio, nele acreditar e julgar-se senhor absoluto, mas nem por is-
O involuído julga absurdo e inoperante tudo quanto simples- so capaz de impedir que liberdade, nesse regime de ordem, im-
mente está fora de seu campo de compreensão e de atividade. plique responsabilidade, quer dizer, sanção punitiva do erro. O
Basta mudar-lhe a posição evolutiva para que também se lhe involuído, assim como luta contra todas as pessoas e coisas,
mude a técnica da vida. Quando, por evolução, se passa do pla- também luta contra a Lei, quase considerando-a obstáculo à
no da força, lei do involuído, ao da justiça, lei do evoluído, o própria expansão. Nela, ao invés, o evoluído, coordenado, não
sistema do merecimento substitui automaticamente o da violên- encontra inimigo, mas amigo, auxiliar, protetor. Sua força não
cia e astúcia. Já agora não precisamos mais de armas, mas de reside em seu egoísmo, mas em Deus. Tudo depende da posi-
qualidade; não encontramos mais extorsões e constrangimentos, ção em que o homem prefere colocar-se. Chegamos assim a es-
mas equilíbrios. Então, a melhor defesa consiste na consciência te ponto: o inerme que segue o evangelho e perdoa pode ven-
tranqüila. Isso é lógico no regime harmônico da Lei, feita de cer, materialmente desarmado, em melhores condições que o
ordem. O problema todo se resume em sermos adiantados o su- involuído, forte e armado até os dentes. Parece utopia, subver-
ficiente para ver e compreender, em possuirmos a inteligência e são, milagre o que não passa de lógica entranhada no desenvol-
a sensibilidade necessárias para manipular forças tão sutis. Eis vimento das forças da Lei, imponderáveis e, no entanto, mais
porque fogem à psique grosseira do involuído. Trata-se de prin- potentes do que o pesado armamento das defesas humanas. Tu-
cípio protetor de qualidade, grau e potência diferentes do nor- do isso confere outro valor e significado à conhecida lei bioló-
mal e cujo funcionamento não se pode verificar senão como gica da luta para seleção do mais forte, reduzindo sua impor-
forma de vida própria de plano biológico mais elevado. Para o tância a limites bem estreitos. Outra lei se lhe contrapõe e anu-
evoluído, que aí vive, o verdadeiro sistema defensivo não con- la. Ei-la: “Quem com ferro fere com ferro será ferido”.
22 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
Quando se compreende o universo como construção orgâni- propagar-se na personalidade a repercussão do golpe, proporci-
ca, compreende-se também ser mais lógico o equilíbrio do justo onalmente às diversas qualidades individuais. Eis realizada a lei
manter-se nele mais estavelmente que o esforço do rebelde. do merecimento. O estado moral interior não pode modificar o
Tratando-se de organismo, aí prevalece logicamente a posição exterior determinismo da matéria. Essa verificação engana o
espontânea e harmônica, em detrimento da irregular e contrafei- involuído. O plano físico subordina-se a diferente espécie de
ta. No conjunto, o universo apresenta-se como perfeito e com- leis, e os fenômenos da matéria seguem caminhos diferentes
pleto mecanismo, ordenado e harmônico. As perturbações resi- daqueles do mundo moral. Observa-se que o merecimento não
dem nas exceções e casos particulares, porém são previstas, nos distingue na fuga ao perigo. Justos e malvados, os justos às
compensadas e enquadradas na ordem. Para homens inconsci- vezes muito mais, todos sem exceção recebem golpes. Isso
entes e, todavia, livres, o ambiente humano representa um des- mesmo. Não deixa, todavia, de também ser verdade que a posi-
ses campos de desordem a título experimental. A Terra consti- ção moral muda o estado espiritual e as condições de nosso eu
tui, por isso, o inferno para os evoluídos e, talvez, o paraíso dos e, por isso, as repercussões, a receptividade e, enfim, a sensação
involuídos, adequados a esse ambiente. A opinião emitida a dolorosa. Assim, se o fato exterior não varia, mudam as posi-
respeito deste mundo nos revela o tipo biológico a que pertence ções internas de defesa, as qualidades de resistência, o estado
o opinante. Só a raça vale e justifica distinções. O homem, de equilíbrio, de juízo, de orientação, de continuidade. Se o
quando quer alcançar determinado objetivo, compreende a ne- mundo exterior, o único que o involuído vê, não se altera, o
cessidade de coordenar as fases da ação necessária e, assim, re- mundo interior – a outra metade do fenômeno – mostra-se
conhece a ordem presente em todas as coisas; percebe, até igualmente poderoso e, ainda que nada possa deslocar ao inici-
mesmo no furto, no delito e na guerra, o rendimento utilitário ar-se, tudo pode fazer ao concluir-se. O involuído não compre-
da disciplina, do método e da estratégia, pois tudo isso pertence ende como o estado moral, invisível para ele, possa mudar as
a seu plano. O que dissemos nos parágrafos imediatamente an- condições do fenômeno na segunda fase conclusiva, interior.
teriores explica por que o homem, por imaturidade, não chega Desse modo, divergem muitíssimo as íntimas realidades pesso-
jamais, também no campo moral e nas diretrizes da própria vi- ais, os campos das sensações finais. A dor é estado interior so-
da, a sentir a falta e a utilidade dessa ordem. A ignorância e a bre o qual muitos elementos influem; entre eles, porém, não
inconsciência de plano mais alto explica sua ação desordenada, ocupa o primeiro lugar o choque proveniente do mundo físico,
baseada em violações e, por isso, em reações contínuas; mostra dado pelo determinismo físico. Tudo seria tão diferente se vís-
como o involuído pode crer na obtenção de resultado no campo semos as coisas por dentro, ao invés de vê-las por fora! Ver-se-
do imponderável, sem coordenação de ações, sem subordinação ia a possibilidade de gozarmos em plena miséria e sofrermos no
funcional, sem necessidade de seguir a Lei, sem harmonizar-se fastígio da riqueza. O mártir na cruz pode sentir-se mais feliz
na organicidade universal. Exatamente a natureza de involuído do que o rei no trono! Tamanho poder tem esse mundo interior,
é que estabelece o funcionamento de lei de força em lugar de lei na dependência tão-somente do merecimento. O estado de pra-
de justiça. A baixeza do ambiente terrestre resulta precisamente zer ou dor não se mostra como fato objetivo igual para todos,
das qualidades do tipo biológico que o habita, que, cada vez mas relativo e dependente das condições interiores individuais.
mais satisfeito consigo mesmo, se julga ente superior e, até Prazer e dor, imponderável resultante do embate de forças, e
mesmo, culto e erudito, mas o entendimento não depende de es- não do determinismo do mundo físico, fundem-se na intimidade
tudo e erudição. Trata-se de maturação biológica natural e ina- do eu. O invisível escapa às vistas do involuído, pois ele acredi-
plicável ao exterior, como acontece com tantos produtos de ta que tudo se desenvolva no plano concreto em que vive e na-
nossa civilização. O que induz o homem de hoje a engano é a da mais possa existir além deste. O evoluído, que em parte su-
miopia psíquica, o imediatismo do resultado, a psicologia do perou o mundo material, também em parte lhe superou o de-
jogo amarrado, a ignorância dos fenômenos de longa duração, a terminismo (cf. A Grande Síntese – Cap. LXVI) e recebe muito
suposição de que nada se pode obter com segurança de tudo do próprio mundo interior, independente desse determinismo.
quanto fica distante, a própria mentalidade caótica, que apenas Por isso sua vida não fica tão sujeita às sanções das leis do pla-
desorienta e desarticula a fé por nós depositada no que já nos no físico como às sanções das leis do plano espiritual e moral,
caiu sob as mãos. Sobra-lhe apenas uma vida defeituosa e trun- bem diversas. Eis como este principio mais elevado, de mere-
cada, resumida ao dia de hoje e indiferente ao longínquo ama- cimento, pode entrar em atividade e tornar-se distribuidor e re-
nhã. Contudo não sabe que a justiça de Deus, ainda que às ve- gulador. Valorações e juízos dependem das diversas perspecti-
zes tarde, não falha, pois Ele, para julgar, não dispõe apenas vas, mutáveis com as diversas posições. Daí nascem os desa-
dos poucos elementos de uma só vida, mas também daqueles cordos, as valorações opostas. O mesmo fato pode assumir sig-
fornecidos por vida muito mais extensa, que, através de longa nificado e valor oposto, ser compreendido como dano ou van-
estrada de vidas e de mortes, se estende pela eternidade afora. tagem. A posição do materialista ou do espiritualista pode sub-
Outro fato capaz de induzi-lo a engano é a valoração, ape- verter o senso das coisas. Para o primeiro, a morte significa o
nas sob o aspecto formal, do prazer e da dor, estados relativos e fim – para o segundo, o princípio de outra vida; para um, a vida
interiores. Sua posição sujeita-o naturalmente a muitas ilusões terrena é tudo: a meta que deve conter todas as alegrias e reali-
psíquicas, que ele toma por verdade. Supondo-os, erradamente, zações – para outro, mero episódio: meio de expiação, exílio,
iguais a si próprio, para avaliar os outros aplica-lhes as mesmas missão. Uns ganham com a dor, outros perdem; estes morrem
medidas com que mede a si mesmo. Ao contrário, as reações na morte, aqueles na morte ressuscitam.
dolorosas impostas pela Lei variam justamente conforme a di- Os dois estados, de prazer e dor, não dependem apenas das
ferente posição moral de cada indivíduo face aos equilíbrios da leis do ambiente físico, mas também de leis próprias, que se
justiça, quer dizer, segundo o mérito ou demérito. As próprias deixam influir muito pouco pelas primeiras. Se o fenômeno
dores podem, de acordo com a natureza dos ânimos, impressio- nasce no mundo externo, continua e conclui no mundo interi-
ná-los deste ou daquele modo e causar-lhes as sensações mais or. O tangível estado de fato exterior não tem tanta importân-
diferentes. O evoluído, em grande parte liberto, já não possuí cia quanto a sensação que consegue produzir. Vejamos, então,
tesouros no mundo e torna-se intimamente muito menos vulne- de que realmente depende essa sensação. Prazer e dor consti-
rável que o involuído que se atreve a julgá-lo. O justo sempre tuem ritmo que lhes regula o aparecimento alternado, a forma
se sente mais tranqüilo do que o culpado. A realidade não cons- de relação, a intensidade relativa. Os dois extremos são inver-
titui o golpe em si mesmo, como vemos por fora, mas reside na sos e complementares, ligados por lei de compensação e equi-
sensação interior com que o recebemos, no modo diverso de líbrio; para verificar-se cada um dos dois estados não basta o
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 23
choque exterior, mas torna-se necessário que a lei interior do liberdade de ordenar o campo de forças do próprio destino e, na
fenômeno – a lei do merecimento – de acordo com a justiça, própria vida, obedecer à justiça, embora em meio à injustiça do
permita ao choque produzir efeito e transformar-se na devida mundo; tem a liberdade, enfim, de, em pleno inferno, construir
sensação de prazer ou dor. Caso contrário, esse choque, seja dentro de si mesmo o paraíso. Ainda neste caso, a lei do mere-
qual for sua natureza, amortece à entrada da alma e não pene- cimento muda o conceito da vida. As causas encontram-se den-
tra. O fenômeno, olhado em profundidade e entendido como tro de nós mesmos, e não fora. Quando chegamos a compreen-
desenvolvimento de forças, liga-se assim à ordem universal, dê-lo, aí nos tornamos livres. Enquanto aceitamos as coisas
que não se pode romper, e deve equilibrar-se na justiça regu- como provenientes de fora, seremos seus escravos e tremere-
ladora de todas as coisas. O aparecimento ou o desapareci- mos diante da vontade alheia ao invés de tremermos perante
mento dos referidos estados de prazer e de dor é determinado nossa própria consciência. Para quem compreendeu, os valores
principalmente por essa lei, e não pelo arbítrio humano ou cir- normais se subvertem. O que nos golpeia não provém do arbí-
cunstâncias exteriores. O arbítrio e as circunstâncias podem trio alheio, mas do que somos, fazemos ou merecemos. No sis-
ser injustos, mas a Lei é justa, boa, protetora. tema orgânico do universo, é absurdo e impossível que o de-
Assim, o fenômeno se torna rítmico, equilibrado, compen- senvolvimento de forças nos destinos, os momentos decisivos,
sado. Os dois estados se condicionam e compensam, não po- as provas importantes, o prazer e a dor, a vida e a morte fiquem
dem existir senão um em função do outro, o prazer em relação à mercê do acaso ou da vontade de outro homem completamen-
à dor e a dor em relação ao prazer. Desse modo se influenciam, te ignaro. A lógica e a justiça impõe que tudo quanto nos diga
se entrosam, se dosam reciprocamente. Segue-se daí que, respeito dependa somente de nossa vontade e seja decidido por
quanto mais sofremos, mais somos capazes de gozar, porquan- nós apenas. Doutro modo, não poderia haver responsabilidade e
to a privação nos permite saborear a menor alegria, que assim a reação da Lei golpearia inocentes. É absurdo que o arbítrio
se torna imensa; e, quanto mais gozarmos, tanto mais seremos alheio possa exercer tanto poder sobre nós, que a liberdade hu-
vulneráveis à dor, porque, tendo perdido o contato com ela e a mana possa impor injustiças à Lei e implantar a desordem no
capacidade de suportá-la, impressionamo-nos demais e, por is- universo. Então, o patrão não seria Deus, mas o homem. Não!
so, o menor golpe se torna gigantesco. Quanto mais sofremos, Tudo não passa de instrumento, o mal é contido e guiado, tor-
menos o hábito nos faz sentir a dor e mais nos encouraça para na-se meio de atingir as finalidades do bem. Tão grave como
suportá-la, nos conferindo certa imunidade; quanto mais go- pesos de chumbo, tão importante como experimentação instru-
zamos, menos o hábito nos deixa saborear o gozo, que se dilui tiva e prova redentora, a dor não é coisa livre para aplicar-se ao
na repetição e se esfuma no fastio. Nem a nossa, nem a vonta- acaso, mas força enquadrada no organismo universal. Essa dor
de alheia, nem as condições do ambiente podem mudar esses só nos pode atingir se a merecemos. Poderá produzir-se desor-
íntimos equilíbrios do fenômeno, sempre reconduzido em cada dem particular e momentânea, mas em linhas gerais reina a lei
caso à posição de justiça. Em resumo: a continuação do sofri- de justiça. Diz o provérbio: “Quem não deve não teme”. Mere-
mento, automaticamente, diminui a reação dolorosa e aumenta cemos tudo quanto nos acontece por “acaso”.
a capacidade de reagir em sentido oposto; a continuação do Ao invés, o involuído acredita na lei do mais forte e na sele-
prazer, automaticamente, diminui a reação de prazer e aumenta ção à base de força. O evoluído, por sua parte, ouve a justa lei
a sensibilidade e, portanto, a vulnerabilidade em direção con- da honestidade e do merecimento. O sistema do primeiro, de
trária. Assim, não há natural correspondência entre a soma de conquista através de imposição, reduz-se ao contraímento de
bens acumulados e a quantidade de prazer obtida. As duas dividas e à miséria. Face aos equilíbrios da Lei, isso constitui
progressões não caminham paralelamente; a primeira é geomé- erro que se deve pagar e, se domina o mundo, o transforma em
trica; a segunda, aritmética. Para os pobres e deserdados, há lugar de sofrimento. Aqui em baixo, todos procuram fora as
justiça maior do que essa? A satisfação diminui na razão direta causas que residem em si mesmos e lhes pertencem. O proble-
do aumento dos bens; desse modo, a própria unidade de medi- ma consiste em saber fazê-las funcionar, e não em saber evitar-
da frutifica cada vez menos. O homem pode dirigir o fato exte- lhes os efeitos. A causa é livre; o efeito, fatal. Posta em movi-
rior da acumulação de bens, mas não pode comandar o fato in- mento a causa, a Lei se apodera dela, o impulso deixa de ser li-
terior do rendimento. O homem egoísta gostaria de desequilí- vre e não nos pertence mais. Nem força nem astúcia podem li-
brio, eis, porém, a Lei, reconduzindo-o ao equilíbrio e impon- vrar-nos da obrigação de suportar os efeitos. Se semeamos o
do-lhe limitação, além da qual torna-se inútil acumular, porque mal, colhemos o mal; se semeamos o bem, colhemos o bem.
a unidade de medida terá exaurido todo o potencial e não po- Mais adiante, desenvolveremos esses conceitos (Cap. XXIV e
derá mais proporcionar prazer algum. O homem egoísta dese- XXV). É justo que, em última análise, apenas a nós mesmos
jaria satisfação ilimitada, mas a Lei o reconduz ao equilíbrio e, possamos fazer bem ou mal. Terminado, nosso ato torna-se
agindo com critério diferente, impõe determinada medida de inexorável desenvolvimento de forças. O destino é livre na fase
justiça, permitindo apenas o prazer e a dor necessários e úteis inicial da formação, da determinação das correntes e do início
aos fins da vida. Assim, observamos agora como a Lei inter- da trajetória; fatal, porém, na fase de desenvolvimento das cor-
vém para correção do abuso no sentido da qualidade da per- rentes e, especialmente, na fase final de efeito e conclusão da
cepção. No fim do Cap. II e no princípio do Cap. III deste li- trajetória. Eis a justiça histórica. Geralmente, consideramos o
vro, vimos como a Lei, por outro lado, influi para corrigir o destino apenas nesse segundo aspecto, determinista, ignorando
abuso no sentido da qualidade dos bens, isto é, como permite o seu momento mais importante, de formação.
que apenas a propriedade justa se mantenha. O primeiro e o O conceito comum da vida desloca-se ainda. Não devemos
segundo casos constituem aplicação da lei do merecimento. temer se somos desprovidos de força, mas sim se estamos con-
Vimos, pois, como a Lei tende ao triunfo dos valores reais e tra a justiça. Devemos entender que, no fim, a justiça vence a
à derrota dos valores fictícios que o homem desejaria impor. O força. Às vezes demora, pois encontra muitas resistências no
involuído, por ignorância, prefere pôr-se em luta contra a Lei; o ambiente terrestre. Essas resistências conseguem embaraçar e
evoluído, porque possui conhecimento, prefere pôr-se em har- retardar a Lei, porém jamais chegam a fazê-la parar. Pode o
monia com ela. Vimos como, não obstante a resistência do pri- involuído iludir-se, acreditando no contrário, mas o evoluído
meiro, em última análise, impera a lei do merecimento, embora sabe que a Lei acaba dominando. Se dominasse o acaso, o ar-
não a compreendam e não a sigam. O involuído, rebelando-se, bítrio, o abuso, a desordem, a vida se reduziria a cacos. Quem
não torce a Lei, mas inflige dano a si mesmo. Aprenderá à custa vai salvá-la? Quem vai garanti-la? Não poderemos, certamen-
do sofrimento. Não há outro caminho. Cada qual, porém, tem a te, crer na suficiência dos pobres expedientes humanos! A vida
24 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
deve ser protegida de modo absoluto, e o homem não possui fra em enganar e dominar, mas em civilizar-se. Isso tudo pode
nenhum meio seguro de proteção. A incerteza reina na Terra. parecer utopia, mas, guardando a devida proporção, a evolução
Torna-se necessária uma segurança não possuída pelo homem, soube, no passado, transformar em realidade utopias maiores,
defesa superior às ilusórias defesas humanas. A segurança nos por isso essa utopia nos fascina e atrai. De tudo isso, que tem
é dada pelo império da Lei, pela onipresença de Deus. Não nos significado vital, possibilidade de realização e representa im-
protege a força, mas a inocência; a única posição de segurança pulso biológico, emana radiação mágica, que nos prende com
consiste em não merecer o golpe. Assim, nossas armas se des- exato senso de vibração reverencial. O instinto da vida se mani-
materializam no imponderável. Mas, se o inocente é protegido, festa em nós antes da razão calculista.
a Lei exige a responsabilização dos culpados. Os meios huma- A luta moderna se trava entre o tipo biológico hoje em mai-
nos poderão protelar, mas jamais conseguirão eliminar a ne- oria e a lei de evolução. O primeiro parece que pretende fazer
cessidade de pagamento. Todavia, se a Lei é justa, ferreamente tudo quanto possa para impedir a realização desse novo mundo;
justa, exige a responsabilização, mas respeita a vida, protegida a segunda tudo põe em condições de torná-lo realidade. Trata-
porque necessária ao aperfeiçoamento. Eis que a Lei corrige o se de dois sistemas opostos; um, ilusório e falaz; o outro, lógico
impulso instantâneo e brutal de suas forças, para que não ter- e seguro. Com o método atualmente em voga, somos obrigados
mine em catástrofe; modera-o e amacia com novo impulso: a a reconhecer que o homem, apesar das conquistas e vitórias,
misericórdia divina. Podemos defini-la como “a elasticidade da não alcançou a felicidade e se agita como presa de insatisfação
justiça divina”. Neste caso, elasticidade significa esperar, do- contínua. E, tal como acima dissemos em relação ao indivíduo,
sar, proporcionar a reação de modo a que eduque, e não des- também a coletividade não procura dentro de si mesma, mas fo-
trua. Assim, a férrea lei do equilíbrio age com muito tato, ra, as causas de seus males. Elas, porém, residem no método. É
adaptando-se às circunstâncias do caso. No maravilhoso orga- fácil entrar no mundo novo; as portas acham-se abertas de par
nismo universal dirigido pela Lei, tudo é elástico, provido de em par. Mas o homem não quer entrar. A posição em que se
válvulas de segurança e meios de proteção. Conciliam-se desse encontra o impede. A Lei, sábia e boa, desejaria exatamente o
modo, até se coordenarem em um só impulso de sabedoria, os contrário, quer dizer, o bem; mas a Lei tem de respeitar a von-
dois opostos: misericórdia e justiça. No principio absoluto de tade humana. O homem prefere viver em estado de tensão, de
equilíbrio se incorpora o princípio da bondade, ambos necessá- recíproca desconfiança e, por isso, de contração, a viver em es-
rios. Parecem contraditórios, no entanto não passam das duas tado de calma, de confiança e, portanto, de expansão. Os bens
metades inversas e complementares do mesmo princípio. A da Terra bastam demais para todos. A psicologia da insaciabili-
unidade é sempre par. Tal como feminino e masculino, assim dade, generalizando-se, nos torna miseráveis em plena abun-
se coordenam o amor e a força, o primeiro para gerar e conser- dância. A avidez de lucro subtrai dos bens a função de instru-
var, o segundo para vencer e construir. Dessa maneira se com- mento útil à vida, transformando-os em instrumento de especu-
pensam as duas extremidades, postas por nós face a face: cole- lação, acumulando-os apenas para que apodreçam, sacrificando
tivismo e individualismo; o primeiro oferece o desenvolvimen- a vida à potência econômica. Assim se determinam as despro-
to em largura, a formação da massa numérica, a quantidade; o porções que justificam a revolta das classes pobres contra as
segundo, o desenvolvimento em altura, a formação do indiví- dos capitalistas, impedindo-as de gozar dos bens acumulados.
duo, a qualidade. Mesmo essas duas extremidades tendem a O efeito atinge de novo a causa; não podemos gozar o que não
equilibrar-se através de qualidades e funções opostas. Esse é fruto da justiça, mas do abuso; toda posição de desequilíbrio
contraste não se chama cisão, mas harmonia. se destina à queda. Para que serve empregar meios ilícitos e
usurpar, se mais tarde a Lei nos constrange ao pagamento? E,
VII. RUMO A NOVO MUNDO de fato, não faz o homem outra coisa senão pagar. O método
atual de busca da felicidade representa verdadeira falência. Não
Tudo quanto foi exposto pode ser incrível, no entanto é na- se deve culpar a Lei, mas o sistema escolhido pelo homem. A
tural, lógico e simples. Logo depois de curta reflexão desapai- Lei paga na mesma moeda, devolve-nos o que lhe oferecemos.
xonada, surge novo mundo, até ali aparentemente impossível, A causa de nossas misérias reside em nós mesmos. O egoísmo
mas que é apenas fora do comum, afastado dos caminhos habi- conduz a dispersões imensas, como, aliás, todo separatismo.
tuais, para lá da fase atual de evolução humana. Quando o atin- Não considerar o próximo como irmão, mas rival, e não ter-lhe
gimos, o mundo atual nos fica parecendo tão espantosamente os bens na conta de capital comum a conservar-se, e sim na de
cretino que não sabemos se rimos ou se choramos; neste mundo objeto de conquista, leva à destruição, nociva a todos. O ho-
cremos poder eliminar o inimigo, matando-o; criar, com propa- mem, empregando-a mal, reduz a riqueza, em principio benéfi-
ganda, correntes de pensamento ou eliminá-las, sufocando-as ca para a vida e tão útil ao progresso, a instrumento criminoso e
no silêncio; não pagar o mal que fazemos. Mas o inimigo cons- manchado, em que o evoluído, com desprezo, se recusa a tocar.
titui vida indestrutível, pois os mortos continuam vivos, ressur- Que sensação de bem-estar compensaria a fadiga até mesmo da
gem e podem tornar-se instrumento de justiça contra o assassi- primeira aproximação evangélica!
no; as correntes de pensamento são livres, a opressão as refor- Não. O homem não compreendeu. Na lógica dos equilíbrios
ça, e o engano ensina-lhes novas astúcias; podemos praticar o da Lei, o método do exclusivismo não passa de método de em-
mal, porém somos depois obrigados a repará-lo pessoalmente. pobrecimento. Esses equilíbrios implicam a formação de cor-
Este livro é o roteiro desse novo mundo, o hino dedicado ao respondente atrofia ao lado de cada hipertrofia, vácuo econômi-
novo tipo biológico nele reinante, e inicia o culto de novo ideal co a interessar não só o vizinho, cuja miséria talvez não nos
de vida. Esse tipo pode ao mundo de hoje parecer super-homem impressione, mas a nós mesmos, quando chegar nossa vez na
e até mesmo poderíamos assim chamá-lo, mas super-homem corrente dos efeitos. A vida é de natureza colaboradora, forma-
bem diferente do de Nietzsche, cuja concepção materialista, que se de forças cíclicas, comuns e comunicantes. Os equilíbrios da
lhe serviu de ponto de partida, apenas poderia dar-nos a exalta- Lei nos dizem: tudo quanto se rouba se perde e tudo quanto se
ção do primitivo, a glorificação da violência, ou seja, da igno- dá se ganha; a riqueza proveniente do furto constitui débito a
rância, pois quem só acredita na força demonstra nada haver ser pago; o ato de dar pode enriquecer-nos mais do que o ato de
entendido do funcionamento universal. Super-homem desse ti- tomar. No mundo novo, o problema econômico se transfere in-
po não passa de involuído posto no vértice de hierarquia de in- teiramente para outro plano. Perdeu a razão de ser e está supe-
voluídos, rei selvagem de mundo selvagem, prepotente em rada a moderna luta entre o capital e o trabalho, representativa
meio a outros tantos prepotentes. O novo imperativo não se ci- de nossa atual fase econômica. No mundo novo, o evoluído
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 25
possui dentro de si mesmo, espontaneamente, a medida da pos- mente o modo mais adequado para despertar a consciência dos
se das coisas, fornecida pelas próprias necessidades, capacida- inconscientes e impor aos preguiçosos o esforço necessário à
des individuais e funções sociais, e não, como acontece agora, aquisição da própria felicidade. Por isso esse esforço não apare-
pelo próprio poder de conquista com emprego de força ou de ce, em primeiro momento, na forma positiva de conquista de ale-
astúcia. O evoluído pede à vida apenas os bens necessários à gria, e sim na forma negativa de libertação da dor. O segundo
consecução das finalidades dela mesma, individuais ou coleti- momento revela-se cada vez mais evidente à medida que subi-
vas, e abandona aos outros o resto. O problema do mundo não mos, e o evoluído trabalha, em sentido positivo, para conquistar o
passa verdadeiramente de problema de caridade cristã. Bastaria bem que já conhece; no caso comum, porém, o involuído traba-
compreender e aplicar o evangelho para conseguir a igualdade lha em sentido negativo, de revolta e fuga em presença da dor, de
social e garantir a todos o pão de cada dia. No fundo, os nume- luta para fugir-lhe. Normalmente, a evolução assume, pois, o as-
rosos problemas que nos afligem, econômico, político, religio- pecto de esforço para superar a dor. Através desse esforço, a Lei
so, social, reduzem-se a um só: o problema da educação moral. obriga o homem a entrar no seu novo reino.
Desse modo, o Sermão da Montanha e a pobreza franciscana A concepção humana da dor resulta naturalmente de uma
(cujo escopo é, através da esmola, substituir no pobre a violên- das muitas ilusões psíquicas próprias da fase biológica do invo-
cia pela humildade e, no rico, trocar pelo amor o egoísmo des- luído. Concebe-a ele como resultante da falta de força para
prezível) assumem significado biológico na lei de evolução. Em vencer ou de astúcia para fraudar, como fracasso dos fracos de
verdade, para possuir a própria vida, necessário se torna perdê- corpo ou de mentalidade, como herança natural dos que não sa-
la. Apenas quando nos anulamos e não possuímos mais nada, bem revoltar-se nem impor-se. Concebe a dor como inimigo a
nos tornamos senhores das maiores forças da vida, porque de ser vencido e, por isso, acredita que tudo se resume em sermos
isolacionistas nos transformamos em colaboradores do grande bastante fortes e hábeis para vencê-la. Concepção derivada do
organismo universal, entramos no mundo novo em que a Lei fato de o involuído julgar-se colocado no caos, como centro de
triunfa; passando a ser operários do Senhor, a Lei deve cuidar todas as coisas e árbitro da Lei. Se essa é sua perspectiva psico-
de nos defender e garantir-nos a vida. Se, nas mãos de Deus, lógica, própria da sua fase evolutiva, temos visto quanto ela se
nos reduzimos a nada, parece que, com isso, perdemos nosso afasta da realidade. A dor não é inimiga; não devemos, pois,
pequenino eu e, no entanto, em Deus nos tornamos tudo, pois, olhá-la com hostilidade. Quanto mais a odiarmos mais nos afli-
entrosando-nos no funcionamento geral, nos tornamos indestru- girá; se a quisermos bem, tornar-se-á mais suave. A dor consti-
tível parte orgânica dele, com direito ao necessário na Terra e à tui sistema reativo-educativo de forças cujo objetivo se resume
futura felicidade no céu. Que vale e de que é capaz, em face em guiar-nos para a felicidade. Tende, como reação, a recons-
dessa dilatação de personalidade e aumento extraordinário de truir o perturbado equilíbrio do homem, isto é, a harmonia, base
meios, o involuído rei da força, prepotente e rebelde, escravo da de toda alegria verdadeira, e, como educação, a eliminar a repe-
ilusão e da matéria, jamais satisfeito, sempre inseguro, sempre tição do erro, causa da dor. Por dois caminhos diferentes, é
abandonado às incertezas de suas pobres forças? No entanto es- sempre disciplina e correção que, através das experiências da
se tipo biológico foi proclamado animal-modelo, posto pela ci- vida, impele o homem a rearticular-se no todo, a pôr-se em
ência no degrau mais alto da evolução e considerado o produto acordo com as forças da Lei ou, noutros termos, com a vontade
mais apurado da raça. E, ainda mais, sua lei de seleção passou a de Deus, fato em que consiste o triunfo do bem sobre o mal, da
ser considerada como lei da vida, de toda a vida! Mas esse sis- harmonia sobre a desarmonia, da felicidade sobre a dor. O ho-
tema é o sistema seletivo do animal! Aplicaram-no ao homem, mem deve compreender, e todas essas coisas sabem fazer-se
que desse modo é equiparado ao animal. compreender muito bem por todos. Progredir, sem dúvida, quer
O involuído não quer entrar no novo reino, onde poderia ser dizer trabalho; mas também representa conquista. A ordem, na
feliz. Contudo a Lei vê-se obrigada a arrastá-lo; mas o involuí- involução, se desagrega no caos. Ora, a evolução procura re-
do se rebela, se recusa a sair do inferno, não quer despender o construir a ordem a partir do caos. Em nossa experiência quoti-
menor esforço para deixá-lo. A Lei deseja-lhe o bem, todavia diana, percebemos que o prazer produz o nada e a dor cria. As-
não pode impô-lo, porque a liberdade humana é sagrada, além sim como a nota fundamental de toda fase involutiva consiste
disso, através da imposição, a Lei criaria autômato inconscien- na dispersão no gozo, a de toda fase evolutiva é a redenção pelo
te, quando o cidadão do novo mundo deve ser consciente e li- sacrifício, ou seja, a difícil ascensão depois de tão fácil descida.
vre. A Lei quer felicidade desejada e compreendida, e não feli- Verificamo-lo pela nossa vida como indivíduos, como no nas-
cidade imposta e incompreendida. Trata-se de dom bem mais cimento e morte das civilizações.
difícil de obter, mas de valor imensamente maior. Trata-se de Libertarmo-nos da dor assume o aspecto de problema dos
dom que não pode ser gratuito sem representar injustiça. Deve, mais angustiosos de nossa existência. Depois de tanto progres-
então, ser ganho, condição necessária para que seja merecido, so, estamos sempre a recomeçar. Prova de que a concepção e os
visto que, nos equilíbrios da Lei, nada pode existir de desarmô- métodos defensivos em voga estão errados. Contudo podemos
nico nem vantagem alguma ser obtida se não for ganha e mere- resolver o problema. Torna-se necessário, no entanto, enunciá-
cida, condição necessária para ser apreciada e fruída. Mas como lo de modo diferente. É lógico que podemos resolvê-lo em uni-
pode a boa Lei atingir o próprio objetivo, no caso do rebelde, verso regido por Deus justo e bom. Aí, onde tudo se mostra ló-
que deve, no entanto, permanecer livre? Como obrigá-lo e, ao gico e harmônico, e parece-nos tê-lo demonstrado bem, seria
mesmo tempo, permanecer fiel à justiça? Como conseguir im- absurda a existência de dor impossível de ser eliminada. Em
por a felicidade a inconscientes, tornando-os conscientes? Co- universo em que tudo tem objetivo útil a ser atingido mais cedo
mo conseguir, de acordo com a bondade e a justiça, impor-lhes ou mais tarde, onde tudo acontece em função da chegada à me-
o esforço necessário para ganhá-la? ta, não passa de loucura acreditar que fato nuclear, como a dor,
A própria estrutura do sistema diretor do universo encerra, possa existir sem objetivo, e assim, onde tudo serve para algu-
em sábios equilíbrios, o impulso que tende fatalmente a esse fim. ma coisa, exatamente aquilo que mais nos caustica e acabrunha
Na forma correspondente aos supracitados requisitos necessários, não sirva para coisa alguma. Mas o homem de nossos dias não
a Lei põe em jogo o sistema de reações adequado. O homem con- concebe o universo organicamente, como lei e ordem, mas cao-
tinua livre, mas responsável; livre para escolher a revolta e a de- ticamente, como arbitrariedade e desordem. Se não se compre-
sobediência, mas obrigado a responder por elas. É justo que ao endem em primeiro lugar as finalidades da vida e a lógica de
erro siga adequada sanção. Assim, ação e reação equilibram-se e todas as suas funções, é natural que, desse modo, não possamos
se põe a salvo a harmonia do sistema. E a dor constitui precisa- resolver o problema da dor. O próprio homem, pondo-se na po-
26 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
sição de quem nada compreende de tudo quanto lhe acontece pel de retorno à ordem e método aquisitivo de qualidade, isto é,
em torno, nada pode resolver e, tudo ignorando, só pode come- meio de auto-elaboração, ou melhor ainda, fator de evolução.
ter erros. Para conseguirmos atingir certo objetivo, vivendo em Assim, a dor se transforma; não é mais, como na conceituação
determinado sistema, torna-se preciso primeiro conhecê-lo e, vulgar, obstáculo à felicidade; não é mais maldição ou vingança
assim, conduzirmo-nos de acordo com as normas que o regem, de Deus, mas bênção e ajuda; não é mais vergonhosa posição
sem pensar em violentá-las e torcê-las. É natural, então, que o de inferioridade, mas nobre instrumento de redenção. Apenas
sistema reaja e não se atinja o objetivo. se compreende a lógica do sistema diretor do universo, logo
Embora mudemos continuamente a perspectiva, percorren- aparecem a absoluta justiça e a imensa bondade de Deus.
do os vários pontos da periferia, a própria estrutura do universo Todas as vezes que, neste livro, qualificamos o involuído
nos orienta e sempre faz retornar ao mesmo conceito funda- como ignaro e primitivo, não o fizemos em sinal de desprezo
mental, ou seja, ao pensamento central ao redor de que tudo gi- ou de condenação, nem para imputar-lhe culpa. O que quere-
ra e pode chamar-se: Deus, Lei, Ordem. Não podemos impedir mos é apenas expor o mecanismo do universo e as conseqüên-
que todos os conceitos desta obra gravitem em redor desse pon- cias advindas, para cada qual, de sua conduta. Biologicamente,
to, pois essa é a estrutura do universo e nosso pensamento deve o involuído está exatamente onde devia, sendo a dureza de suas
amoldar-se a essa estrutura e constituir-lhe a expressão exata. provas, como selvagem em planeta selvagem, adequadas à sua
Desse modo, pode parecer que estamos a repetir sempre a sensibilidade. Todavia os que compreendem como realmente a
mesma coisa, mas é o universo que é sempre o mesmo. Pode-se vida funciona não podem deixar de adverti-lo, somente no inte-
alterar o ponto de vista da periferia e a forma do relativo, porém resse dele, para fazê-lo compreender como executa mal suas ta-
a realidade do centro e a substância do absoluto não podem refas; de indicar-lhe, como lhe convém, melhor modo de fazê-
mudar. No mesmo modo em que se construiu o universo através las, mostrando-lhe que é estupidez alguém pretender construir
de caminhos infinitos, de qualquer ponto de que partamos ter- com as próprias mãos a sua infelicidade e ensinando-o como é
minamos por atingir sempre o mesmo centro. A criação apresen- possível corrigir a própria dor e transformá-la em prazer. O
ta-se variada e, quanto à forma, é mesmo; contudo, em substân- bom e sábio sistema do universo contém a solução do proble-
cia, permanece invariável. De modo que não fazemos nada mais ma. O sistema é feito de ordem; a dor é conseqüência de desor-
senão fotografar a realidade, quando somos obrigados a repetir dem. A dor, logicamente, cessa com a desordem de que deriva,
do princípio ao fim, sob infinitos aspectos, o mesmo conceito de e o método para eliminá-la consiste na harmonização, quer di-
sempre: Deus, Lei, Ordem. Esse é o estado das coisas, e não po- zer, no retorno ao seio de Deus através da evolução. A estrutura
demos mudá-lo. O princípio permanece sempre o mesmo; não do sistema implica a cessação da dor, à medida que caminha-
podemos fazer outra coisa senão retornar sempre a ele. mos para a ordem. Reconstruamos, então, a ordem destruída e
O problema da dor também nos reconduz ao mesmo princí- teremos eliminado a dor, eliminando-lhe as causas. A evolução
pio, nosso ponto de partida e de chegada, em redor de que de- consiste exatamente em dispor mais harmonicamente as forças
vemos girar sempre, isto é, o universo constitui sistema, orga- que somos e as que manejamos, isto é, da desordem passar para
nismo, funcionamento lógico. Se não respeitarmos as normas e ordem relativamente mais completa. Relação entre dor e felici-
não percorrermos os caminhos desse sistema, não poderemos dade significa relação entre dissonância e harmonia. O inferno é
resolver o problema da dor. O ateu pode descrer da existência estado caótico de revolta (desordem satânica); o paraíso, estado
de qualquer regra; o pessimista, julgar que domina o mal e a orgânico de paz (ordem divina). A sabedoria do sistema consiste
desordem; o epicurista, acreditar possível rirmo-nos de tudo; e exatamente em que a dor é força auto-contida por natureza, isto
o violento, pensar ser possível impor-se a todos. Mas a Lei con- é, quando se manifesta tende a gastar-se e inverter-se. Como
tinua a cada momento a exprimir sua natureza, que é ordem, forma de dor, essa força caminha para o próprio aniquilamento e
sua vontade de continuar sendo ordem, sua necessidade de autodestruição; mas, como força, não se destrói e quer renascer
sempre maior atuação da ordem em todo ser e em todos os em posição invertida, ou seja, como felicidade. Noutros termos,
momentos. Quando não se respeita a absoluta e fundamental evoluímos por meio da fadiga do reordenamento e passamos do
exigência de ordem, a dor aparece, fato cuja gravidade indica inferno ao paraíso através da própria dor.
como, proporcionalmente, se mostra importante o princípio a Assim a dor nos aparece em toda a sua importância de re-
que se propõe defender. No sistema, a dor tem o papel de cam- construtora da vida; na sua verdadeira função de reequilibrado-
painha que nos adverte do erro, corrige o desvio e impõe a cor- ra, como compensação expiatória; de educadora, como assimi-
reção, exatamente como acontece no sistema nervoso do orga- lação de experiência e formação de consciência; de reordena-
nismo humano, feito à semelhança do organismo universal. O dora da desordem, como reabsorção do mal; enfim, como fator
homem pode pensar e fazer o que quiser, mas o sistema não to- de evolução e instrumento de felicidade. A dor, devido à natu-
lera em absoluto alteração dos seus equilíbrios e, se os violam, reza equilibrada do sistema, é força que, manifestando-se, se
defende-se, volta-se contra o violador e o obriga a reconstituí- consome, se esgota e se transforma em força contrária. Consti-
los à própria custa. A dor corre por conta do violador; quem er- tui-se ao mesmo tempo em estimulante de atividade, em ades-
rou paga com o que lhe pertence, pessoalmente. Trata-se de tradora e instrutora, isto é, em criadora de qualidade que len-
equilíbrio de forças cujos impulsos poderiam ser calculados tamente melhora, se fortifica e enriquece. Enfim, é grande
exatamente, em qualidade e quantidade, no modo como se rela- harmonizadora, que leva o ser rebelde e caótico a funcionar
cionam em causa e efeito, ação e reação. Essa reação reequili- organicamente, de acordo com o pensamento e a vontade de
bradora é fatal, a Lei não admite perturbações; se acontece vio- Deus. Também nesse campo, o mundo não está, em absoluto,
lação, pois o homem é livre, o efeito não pode recair sobre a no caminho certo. Não eliminamos a dor por meio de sistemas
Lei, mas sobre o homem. A este se permite fazer experiências à exteriores, sobrepostos, coatores, distributivos, mas apenas
própria custa e aprender por tentativas; não se lhe permite, po- através da compreensão e prática da Lei. O homem se irrita
rém, alterar o funcionamento do universo. Essa reação recons- contra os efeitos, mas continua a semear as causas. Torna-se
trutora de equilíbrios por parte das forças da Lei pode parecer inútil querer suprimir as últimas conseqüências sensíveis, elas
para alguns ato de justiça por parte de Deus ou então punição ressurgirão sempre enquanto não suprimirmos os precedentes
da culpa, no entanto aos primitivos pode parecer vingança. A de que derivam, não lhes determinando a formação e assimi-
dor não é, então, fracasso ou derrota, mas o meio providencial lando-lhes os impulsos resultantes. Enquanto agimos só exter-
de reparação e prova na arena das experimentações humanas. na e mecanicamente, com emprego da força ou da astúcia, per-
Constituindo-se compensação expiatória e escola, assume o pa- deremos o tempo. As causas que permaneceram intactas conti-
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 27
nuarão a repetir-se e a produzir os seus efeitos. Curam-se do- namos a medida do justo. Todo pecado, por falta ou por exces-
enças não pela eliminação coativa dos sintomas reveladores, so, significa erro a ser pago. De fato, tanto os povos como os
mas cuidando das causas e condições do fenômeno e, por con- homens mais ricos são os mais infelizes. Dadas a estrutura do
seguinte, não lhes forçando as leis, mas compreendendo-as. sistema universal e a conduta humana hoje em voga, que felici-
Por isso apenas de dois modos podemos libertar-nos da dor. dade podemos encontrar na Terra?
Se já se trata de causas em atividade, só nos resta sofrer-lhes os Quando violamos a ordem das coisas, perturbamos a har-
efeitos. Então, as forças por nós postas em movimento continu- monia das forças e damos nascimento a estado vibratório de-
am inexoravelmente a mover-se no sentido que lhes assinala- sarmônico e discordante, constituímos centro de irradiação ar-
mos, até se exaurirem. Nada podemos fazer senão suportá-las rítmica, cujas repercussões se farão sentir sob a forma de dor.
até que se esgotem, mas tentando sempre corrigi-las pela intro- Sofremos porque somos desarmônicos. As causas de nossa dor
dução de novos impulsos que lhes modifiquem lentamente a moram em nossa desordem interior. Quando inocentes, o golpe
trajetória. Se escolhemos causas erradas, não podemos libertar- não nos atinge, resvala, não encontra ponto vulnerável no orga-
nos das conseqüências dolorosas senão através da dor. É neces- nismo de forças de nosso destino, pois em nós mesmos nada
sário, então, expiar, reconstruirmo-nos com tenacidade, traba- oferece resistência. A desordem exterior não pode entrar em
lhosamente, na miséria, onde jazem os que, neste caso, não fo- nós senão na medida em que, como queremos, já se encontra
ram vencidos pela força, mas pela justiça. Não há, pois, outro dentro de nós. Os impulsos desarmônicos da dor podem atingir-
caminho para o paraíso senão o do purgatório. Isto em relação nos apenas em proporção à nossa desordem interna. Único re-
ao que passou. Existe ainda outro caminho para nos libertar da médio: harmonia. E justamente aquilo que o mundo de hoje
dor, mas esse se refere às coisas futuras. Consiste em não errar menos cuida evitar é essa desordem, causa de todos os nossos
mais, em não movimentar novas forças desarmônicas, causa de males. Ao contrário, parece que só procura produzi-las. Expli-
novas dores. Quanto ao passado, se erramos, não nos cabe se- ca-se desse modo como o adiantado homem moderno jamais
não pagar; quanto ao futuro, apenas devemos, sem novos erros, tenha sido, como hoje, tão vulnerável à dor. Não! A dor não se
construir-lhe os fundamentos. Neste ou naquele caso tudo se vence, como se crê, dominando o determinismo físico das cau-
reduz à harmonização, isto é, a cumprir a Lei, a vontade de sas exteriores. É inútil submetermos as forças da natureza. É
Deus. De fato, hoje não se cuida dessa condição fundamental um passo, porém não basta. Pagamos caro acreditar que baste.
da felicidade. Julga-se que não haja conseqüências para a viola- Assim, imaginamos civilizar-nos e progredir e, no entanto,
ção dos equilíbrios da vida, praticando-se isto com indiferença isso nos torna preguiçosos e degenerados. É lógico que a nature-
de inconscientes. Além de não se respeitar de modo algum a za seja forçada a abolir as defesas por nós artificialmente torna-
ordem universal, pretende-se ainda criar artificialíssima ordem das inoperantes. Desse modo, enfraquecemo-nos, quando pen-
humana, como antítese e em lugar da ordem divina já existente. samos proteger-nos. Isso é verdadeiro tanto para o corpo como
O involuído mergulha assim em tremenda ilusão; pensa cami- para o espírito. A multiplicação das defesas e a segurança nos
nhar em direção à felicidade e, no entanto, corre ao encontro da desabituam de ser assaltados e nos aumentam a vulnerabilidade
dor. Crê na vitória da técnica, no poder econômico, no bem- à dor. Se suprimimos o trabalho da luta, suprimimos também a
estar material, na vitória das armas ou da astúcia. Tudo isto, po- resistência. A proteção debilita. Assim perdemos a defesa natu-
rém, não passa de condição secundária para a realização da fe- ral e nos tornamos escravos da defesa artificial. A elevação do
licidade, podendo até mesmo representar condição negativa e teor de vida é faca de dois gumes, vantagem e perigo. Há maior
obstáculo para essa realização, quando essas forças se movem segurança na pobreza do que na riqueza, mais força no preparo
desequilibradamente contra a harmonia da Lei. Quando não para a luta do que em sua supressão. O sistema de nosso mundo
significam ordem, mas desordem, torna-se inútil supor que contraria toda ordem natural. Eis que, também deste outro lado,
vencemos, pois fomos vencidos; inútil crer que andamos em di- as causas da dor se acumulam e não se eliminam. Procura-se por
reção à felicidade, pois, de fato, andamos em direção à dor. E toda parte receber adiantamentos, endividar-se nos equilíbrios
hão de trair-nos todas as conquistas humanas pelas quais tanto da vida, ao invés de procurar reconstruí-los e não perturbá-los
lutamos. As coisas terrestres não enganam; os traidores somos mais. Toda nossa alegria é novo empréstimo de pobre, enterrado
nós, que acreditamos no abuso e não sabemos empregá-las. É de dívidas até o pescoço. Que poder, no entanto, se poderia con-
justo a Lei da justiça tratar desse modo os que a violentam. quistar firmando-nos interiormente no espírito! Assim é que as
A harmonização constitui o método de construção da felici- raças mais refinadas decaem e as civilizações se esgotam. Daí se
dade; a revolta, o de construção da dor. O problema, para que vê como, para civilizar-se a sério, torna-se necessário exatamen-
possamos resolvê-lo, deve ser proposto de modo oposto ao se- te começar de novo, desde o princípio.
guido até agora. Não se trata de abundância de bens, mas de sa-
bedoria na conduta; não se trata de possuir mais ou menos, mas VIII. ENTENDIMENTO, RECONSTRUÇÃO,
de possuir bens conforme à justiça. Vitória injusta é inutilizá- PROGRESSO.
vel; riqueza de origens poluídas nos dá apenas aborrecimentos.
Tudo quanto dissemos em relação à propriedade vale para toda Com as indicações precedentes, desenvolvemos os concei-
aquisição, tanto para os indivíduos como para as classes sociais tos de A Grande Síntese (Cap. LXXXI – A função da dor).
e as nações. Tudo quanto não é eqüitativo sofre do mal da de- Agora podemos compreender mais o significado de diversas
sarmonia, se consumirá no próprio veneno, se queimará em fo- afirmações, como esta: “A anulação da dor opera-se corajosa-
go violento e morrerá, reduzindo-se a cinzas. De fato, o pro- mente por meio da dor”. Naquele capítulo se traçou o processo
blema do verdadeiro bem-estar não é, como se acredita, exclu- de desaparecimento da dor através da evolução, pela qual, do
sivamente econômico, mas moral, de compreensão e de com- mundo subumano para o humano e sobre-humano, com a trans-
portamento. Na Terra não faltam bens. Falta é homem que sai- formação do eu, a íntima catarse na personalidade muda tam-
ba usá-los. A grande conquista a se fazer não é tanto a conquis- bém o significado, o valor e a sensação da dor. Mudando a tal
ta material das forças do planeta, mas da sabedoria humana. ponto que, no mundo sobre-humano, “perde o caráter negativo
Sem a segunda, a primeira não constitui vantagem, mas dano. e maléfico e se transforma em afirmação criadora, em poder de
Toda aquisição realizada na desordem representa de fato perda; regeneração, em corrida em direção à vida. Canta-se então o hi-
toda vitória injusta não passa de derrota. A felicidade é equilí- no à redenção: bem-aventurados os que choram” (A Grande
brio. A dor aparece tão logo saímos da harmonia. O sistema de Síntese – Cap. LXXXI). Somente agora podemos, como Santa
forças se distorce e o fenômeno se degrada assim que abando- Catarina de Siena, exclamar: “Sofrer ou morrer”.
28 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
Assim, enfrentamos e resolvemos o mais controvertido e restre, pretende ser afirmação de ordem; em meio às dores
importante problema da vida, sem condenar quem está em bai- humanas, foco irradiador de alegria verdadeira, porque pura;
xo ou protestar contra a Lei, reconduzindo a dor às causas que corrente de vibrações reconstrutoras de bem-estar no sentido
são suas, mas estão em nós. Embora verificando o caráter in- mais resolutivo; impulso que, embora mínimo, como dique
fernal que o ambiente terrestre pode assumir para o evoluído, protetor se contraponha aos rios de dor que o homem, de sen-
sempre reconhecemos na dor a justiça e a infinita sabedoria de timentos caóticos, estupidamente despeja sobre si mesmo. Dá-
Deus e os equilíbrios da Lei, que deixam cada qual no posto se pressa em condená-lo, pensando que se distingue dos inferi-
merecido, adequando a violência das provas à sensibilidade do ores e os liquida, classificando-os como involuídos, contudo
indivíduo. O natural terror que o reino humano do involuído para que, senão para civilizar-se, estariam na Terra os mais
pode inspirar aos seres refinados não tira coisa alguma à per- adiantados? A fase de involução é de cegueira e sofrimento,
feição do plano divino do universo, à liberdade individual de representa estado inferior que causa e merece imensa piedade.
redimir-se e progredir, ao otimismo do justo, à fé em Deus, aos Este livro constitui convite, dirigido a quem não o tenha con-
auxílios por Ele concedidos a quem os merece. Deus continua seguido ainda, a passar do estado de involuído ao de evoluído;
presente e ativo mesmo em plena desordem do inferno terres- explica a dificuldade e o método dessa passagem; se, por este
tre. Tanto basta ao evoluído para sofrer com alegria. Sua dor lado, resolve racionalmente tantos problemas e diz o que é a
torna-se ato de reordenamento do caos, de aniquilamento do vida, doutro lado, é convite à felicidade. Explicação e convite.
mal. O evoluído é condenado e expia, mas pode com as pró- Nada mais. A justiça da Lei exige que toda alegria seja mere-
prias mãos criar as condições para libertar-se e construir a pró- cida e, por isso, conseguida à custa do esforço de cada um.
pria felicidade. A ordem sempre está presente na desordem; Baseando-nos nos conceitos até aqui expostos, olhemos em
Deus e Sua Lei não se separam jamais. Isso basta para o evolu- redor do mundo de nossos tempos, para observar este conhe-
ído possuir, no mais profundo da alma, aquela harmonia cha- cimento aplicado ao que acontece. Essa observação não é mo-
mada felicidade. Desse modo, a dor vai sendo cada vez mais vida por interesse algum, não deseja atingir nenhum objetivo
empurrada para o exterior, para a superfície. terrestre e parte de ponto de vista situado acima do plano hu-
Assim, embora descrevendo o infernal mundo terrestre e so- mano. É, pois, imparcial. Apenas se propõe a expor o funcio-
frendo em meio ao seu estridor e à sua violência, podemos agora namento da Lei, igual para todos; mostrar as consequências ló-
esquecer tudo isso ao contemplar placidamente o plano da cria- gicas que dos erros decorrem para quem os pratica. Isso tudo,
ção, divino e de suprema beleza. Apenas o entrevimos e já fica- aliás, sem partidarismo e sem censura também. Trata-se de
mos atônitos em face de tamanha sabedoria, poder, harmonia e simples verificação dos estados de fato livremente determina-
bondade. Nossa alma estende as asas e sustenta-se nos céus. dos pelo homem e pelas conseqüências impostas pela férrea
Prossigamos, vibrantes de fé, ardendo na mais nobre paixão, te- logicidade da Lei. Seria presunção julgar. Apenas Deus conhe-
merosos da nossa própria audácia. Com efeito, neste livro, em ce as capacidades, as medidas e as responsabilidades de cada
verdade, perscrutamos o pensamento de Deus e tentamos entrar consciência. Para julgar, tornar-se-ia necessário ser inocente e
em comunhão com ele. Por isso não basta raciocinar, única coisa superior. Quem o é na Terra? Julgamento pode emanar apenas
que, segundo parece, se faz neste livro. Para estarmos em comu- de quem está acima de todos e é isento de culpa; isso faz pre-
nhão com Deus, também se torna necessário arder de entusias- sumir superioridade existente apenas em Deus e na Sua lei,
mo e pregar, sofrer e intuir, desprender-se e amar. Tanta força se sempre justa, seja qual for o nível evolutivo. Todo ser está
emprega para não nos perdermos no infinito e sermos arrastados sempre no lugar certo e tem sempre o que merece, conforme o
no turbilhão, para elevarmo-nos ao mais alto dos céus. Essa con- que é e faz. A qualificação de involuído não significa conde-
templação, supremo repouso para as dores desta vida, tira-nos nação. Ele também está no lugar certo, no ambiente apropria-
do campo fechado de nosso eu e, sintonizando-nos com as har- do, sujeito a golpes adequados, e tem o que merece.
monias do universo, faz que elas nos absorvam, neutralizando- Observemos, pois. O homem, com sua conduta, demonstra
nos o separatismo. Que dilatação imensa, que suprema expansão não conhecer os princípios que regem e regulam o funciona-
esse dissolver-se no infinito hino da criação! mento orgânico do universo; comporta-se como se a Lei não
Estão no mesmo campo de trabalhos, que não se pagam, existisse, transgride-a e, sem compreendê-la, sofre-lhe as rea-
tanto quem escreve como quem lê, ambos arrastados na esteira ções. Nossa humanidade é jovem, ou seja, primitiva, riquíssima
do mesmo pensamento, que se encontra nas próprias coisas e de energia e muito pobre de sabedoria. Essa humanidade preci-
fala por si mesmo. Desses trabalhos há muitos na vida, e são os sa caminhar muito ainda e sofrer, antes que aprenda a conhecer
mais importantes, apenas compensados por íntima satisfação. a Lei e a portar-se de acordo com ela. De vez em quando, al-
Quando quer atingir os seus fins, a Lei põe no instinto humano gum evoluído aparece na Terra, como expiação ou para dar
essa íntima sensação de contentamento. Este trabalho de redu- cumprimento a missão; cumprida, porém, a tarefa, apressa-se a
zir o pensamento diretor do universo a forma racional é daque- retomar para o convívio da gente de sua raça. Todos os seres se
les que não se pagam nem se podem pagar neste mundo, visto colocam no lugar certo. Geralmente, ao homem não basta ape-
não existir valor terrestre capaz de compensar semelhante es- nas desconhecer a Lei e fugir-lhe; ele vai além e faz até o im-
forço. Nisso estamos bem longe dos cálculos da economia hu- possível para revoltar-se contra ela e mudá-la, aproveitando-se
mana; estamos nas próprias raízes da vida, absortos em mara- para isso da inviolável liberdade de todo ser. Mas o resultado
vilhosos contatos com a eternidade, em vibrações intensas, da partida acaba sendo desfavorável para ele, porque a Lei rea-
bem longe da Terra; somos convivas do banquete das harmo- ge. A Terra, naturalmente, não passa de lugar de dor, não per-
nias divinas, elevados à condição de servos de Deus, isto é, de cebida apenas pela insensibilidade dos que há pouco tempo
colaboradores de Sua lei, protegidos pelas forças de Sua justi- chegaram de mundos mais baixos. Então, naturalmente, tam-
ça. Em alguns momentos, o inferno terrestre parece bem longe; bém é lugar de desordem, violência, rebelião e ferocidade. Só o
a dor, desfeita; a redenção, realizada e a libertação, completa. evoluído percebe o inferno que este mundo é. Mas ele também
Por momentos parece haver-se tornado real o sonho de felici- está colocado no lugar certo, pois, se cá embaixo se encontra, é
dade que o mundo persegue em vão. Quem souber ler nas en- porque merece tal pena. Resta-lhe apenas isso: a expiação e a
trelinhas terá neste livro, por trás da lógica dos argumentos, a fuga. Se veio ao mundo para cumprir missão, deve fazê-lo. Os
sensação de sublimidade e de êxtase, isto é, a sensação das di- homens deste mundo são de raças muito diferentes. A grande
vinas harmonias do universo inteiro a que estamos, a cada pas- maioria encontra-se no ambiente adequado a seu grau de evolu-
so, tentando levar o leitor. Este livro, em meio à desordem ter- ção, e é justo e lógico que a maioria esteja em ambiente ade-
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 29
quado e apenas a minoria se ache em lugar que não lhe convém. nascimento da dor. Se providencial ignorância não a limitasse,
A minoria, embora notável e mais evoluída, aqui se encontra a ação humana chegaria a desintegrar o sistema solar.
em caráter de expiação; raríssimos exemplares de raças superio- Esbocemos mais minuciosamente a substância do atual ci-
res vêm para cumprir missão. Os destinos, as provas, as alegri- clo histórico. Podemos resumi-lo em quatro períodos trifásicos,
as, as dores, os gostos e os modos de apreciar as coisas são, nos quais se exprime o ritmo de seu desenvolvimento. Cada
pois, muito diferentes, de acordo com a natureza de cada qual. uma das três fases de cada período se expressa por um verbo,
Todos nós exercemos função. Prova duríssima coloca os supe- pois todo verbo quer dizer ação e, na vida, o pensamento se ex-
riores ao lado de inferiores ferozes como demônios, para que prime concretizado nos fatos. Cada termo deriva de outro e, as-
estes, postos ao lado dos superiores, aprendam a compreender a sim, ligam-se ritmicamente em cadeia, por força da relação
vida. Embora diferentes, todos colaboram e mutuamente se universal de causa e efeito; o efeito, por sua vez, se transforma
aperfeiçoam. Porque todos são desiguais, as opiniões variam em causa, e o termo final se torna o termo inicial. Desse modo,
muito, contudo a harmonia se estabelece mais pela compensa- toda fase é mãe e filha, uma gravitando em redor da outra, cada
ção dos contrários do que pela semelhança. A realidade da vida qual amadurecendo a sua parte e ambas amadurecendo o de-
é completamente diferente da que aparece exteriormente ao senvolvimento do fenômeno. Eis os quatro períodos trifásicos
homem comum, e seus verdadeiros problemas são bem diferen- do atual ciclo histórico:
tes daqueles de que habitualmente falamos. “Crescer, conquistar, combater.
Nesse ambiente, naturalmente, o que domina é a exaltação Roubar, matar, destruir.
da força ou exaltação da involução, isto é, do tipo biológico Empobrecer, sofrer, refletir.
humano ainda próximo da animalidade. O que revela o evoluí- Compreender, reconstruir, progredir”.
do é o método de vida completamente diferente, fundado, ao Esses períodos representam a última fase de nossa pseudo-
invés, no equilíbrio da justiça; mas o evoluído hoje constitui civilização materialista e sua passagem a outra civilização. O
minoria que, em silêncio e mergulhada na dor, espera sua opor- domínio das forças do planeta por meio da ciência e a conquis-
tunidade de vida ativa no mundo. O estudo dos grandes ciclos ta do bem-estar material, características de nossos dias, leva-
históricos nos indica como a fase da animalidade, depois que ram-nos à primeira fase do primeiro período. O restante não
atingiu o apogeu, esteja agora se encerrando na autodestruição, passa de desenvolvimento em série, lógico e fatal, até que se
seu termo final, inserida no desenvolvimento lógico do sistema atinja o termo final. Crescer não é crime nem erro. É a subs-
da revolta, do materialismo científico. Desse modo se esgotará tância da vida e a vontade da Lei. O crime e o erro residem na
o ciclo da atual pseudocivilização do involuído e começará o ci- direção que demos a esse crescimento. Se tivesse sido sábia e
clo da nova civilização do evoluído. Quem olha em torno de si e consciente, dirigir-se-ia imediatamente ao termo final. Da in-
tem capacidade de entender, observa o desmoronamento deste consciência do involuído é que derivou o longo desvio dos
mundo e admira a perfeição da Lei, que, no tempo certo, executa quatro fatigantes e dolorosos períodos. Caso se tratasse de
o que é útil e necessário. A vida, feita de renovamento, necessita mundo consciente, o primeiro termo, “crescer”, poderia coin-
dessas destruições. A pseudocivilização da matéria, fechada no cidir com o último, “progredir” ou, em outras palavras, consti-
ritmo do tempo, que se prepara para encerrar-lhe o ciclo, apres- tuir-se na efetiva conquista de conhecimento e felicidade, pre-
sa-se novamente a lançar seus últimos impulsos. Seu dinamismo cisamente como a Lei deseja ao homem. Esse caminho, toda-
persegue-a, seu desequilíbrio íntimo atormenta-a; toda a estrutu- via, pressupõe aquela sabedoria que é precisamente o resultado
ra do sistema de princípios que a regem, a natureza das forças do longo percurso em que aquele se transforma para conquistá-
que a põem em movimento, representam concatenação lógica la. Em face da liberdade e da inconsciência humanas, não há
que não pode desenvolver-se senão à custa de aceleramento pro- outro caminho. Esse caminho é gerado por aqueles fatos. A Lei
gressivo e contínuo, para terminar em total aniquilamento. O bó- se lhe adapta e permite a experimentação humana, a fim de que
lido foi posto em movimento e agora deve percorrer a trajetória o homem aprenda. Mas, lentamente, através do erro como dis-
que lhe foi determinada desde a abertura do ciclo. semos, corrige o erro e reconduz as forças à devida e desejada
Se olharmos em redor de nós, vemos em todas as coisas posição, reordenando-as e reconquistando-lhes a concessão.
dominar o desequilíbrio. As vitórias são cada vez mais instá- Assim, a Lei, através da dor, repreende e corrige o homem, le-
veis; as afirmações, levianas; tudo está confundido num turbi- va-o de novo ao caminho certo da verdadeira conquista da feli-
lhão de loucura; a riqueza e o poder têm algo de raiva e deses- cidade. Desse modo se atinge o verdadeiro objetivo da vida:
pero; todo bem é inseguro e dá-nos, mais do que alegria, o ter- evoluir; assim, a ação atinge sua finalidade principal: compre-
ror de nos vermos despojados dele. Perdeu-se o senso da har- ender e progredir. O processo evolutivo deveria desenrolar-se
monia, da calma, da segurança e, por isso, da felicidade. A em direção reta e sem desvios. Bastaria crescer lógica, discipli-
técnica, mais do que para criar e proteger, serve à morte e à nada, consciente e harmonicamente, tudo de acordo com a Lei.
destruição. As manifestações espirituais agonizam. A arte Mas vimos como o involuído sabe crescer apenas desordena-
apresenta apenas expressões de bestialidade. Os cantares das damente, em oposição à Lei. O que necessitaríamos possuir no
mulheres são uivos de fêmea e estão a serviço da atração sexu- momento da partida só conseguimos ao chegar. Mas consegui-
al. Os cânticos dos homens são gritos de revolta e servem ao mos, e isso basta. O objetivo do trajeto consiste precisamente
roubo e à destruição. As maravilhosas descobertas modernas, em conquistar novas posições. O homem aí chegará cansado e
quando não se constituem instrumento mortífero, concorrem ofegante, mas bom entendedor, e a Lei não terá sido fraudada.
muitas vezes para a multiplicação dessas expressões bestiais. Todas as coisas estão logicamente no lugar certo. A bondade da
As descobertas químicas reduzem-se quase sempre a, na agri- Lei há de triunfar, e o homem aproveitará a experiência adqui-
cultura, violentar os ciclos naturais; na medicina, a forçar as rida para não repetir o mesmo ciclo e, assim, ir além.
defesas orgânicas e impor-lhes efeito imediato, que, ao invés Que tortuoso e cansativo caminho deve o homem percorrer
de ser salutar como se pensa, não passa de exploração mais rá- antes de atingir o objetivo colocado no último período! Tanta
pida do organismo. Envenenamo-nos constantemente com su- dor e destruição para conseguirmos compreender e, em conse-
cedâneos e produtos sintéticos, maravilhas da ciência moderna. qüência, podermos reconstruir e progredir. Apenas no caso de
O que há em toda parte é revolta e substituição da Lei pelo já termos compreendido é que o objetivo seria logo atingido e
homem, logo deve haver em toda parte a respectiva penitência. não deveríamos percorrer tão longo e doloroso caminho. O
Imposição e violência em lugar de harmonia e obediência. Pa- grande problema resume-se em compreender. Compreender pa-
rece que a mais angustiosa preocupação da Terra é provocar o ra em seguida aplicar a Lei, desse modo evitar a dor e, evoluin-
30 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
do, conquistar a felicidade. Ciência, filosofia, religião, literatu- e ativa gera, de fato, qualidades protetoras, isto é, capacidade de
ra, arte, sociologia, tudo isso deveria facilitar o entendimento e defesa. Hoje temos pressa e tentamos impor à natureza o resul-
a aplicação dessa Lei e a substituição do espírito de rebelião e tado por nós desejado. Desse modo, apenas conseguimos van-
desordem pelo de obediência e ordem. A atitude de revolta tagem imediata, perturbando os lentos equilíbrios naturais; vi-
constitui nosso pecado capital. Constrange-nos a viver debaixo vemos de empréstimos e adiantamentos, hipotecando o futuro.
do açoite da reação. Quanto mais nos rebelamos mais açoites re- Aplica-se, pois, ao campo orgânico o perigoso sistema crediário
cebemos. A revolta, que nos parece o caminho da fuga, é o ca- que já observamos no campo moral e econômico. Pensando em
minho da condenação. Seguimos a Lei às avessas, por isso con- melhorar, praticamos, no entanto, seleção às avessas, que tende
seguimos o avesso de sua harmonia e felicidade; praticamos a à produção de tipo fraco, abastardado pelas defesas artificiais.
seleção às avessas, involutivamente, ao invés de evolutivamente. Queremos suprimir a luta, mas sem ela as qualidades se perdem
Mas a inteligência humana há de substituir a lei animal de sele- e a vida se atrofia. Sabemos, por acaso, que reações se produzi-
ção do mais forte por sistema de luta mais nobre, destinada, ao rão amanhã em conseqüência desses métodos de violação e de
contrário, à formação do mais consciente e do mais justo. Torna- violência? A medicina oficial aplica-se há muito pouco tempo
se necessário mudar o tipo-modelo, não aquele oficialmente elo- para que possamos sabê-lo ainda. Voltamos sempre ao mesmo
giado, mas o que intimamente e de fato admiramos. Necessita- ponto: ignoramos a Lei e somos violentadores e destruidores.
mos seguir outros métodos de conquistar vitória, propor-nos ou- Quantas vantagens, no entanto, poderíamos obter se, ao invés
tros objetivos e lutar em plano mais elevado. Ao contrário, o es- de nos revoltarmos, nos puséssemos de acordo com ela! A força
forço humano parece hoje dirigido à canseira de trocar o bem não prevalece contra a Lei, que resiste e reage. E, da luta entre
pelo mal, a ordem pela desordem, a felicidade pela dor. ela e o homem, é este que sai com os ossos quebrados. O ho-
Bastaria compreender algumas verdades elementares como mem não sabe que o sistema do universo é inviolável e que to-
estas: “Quem mais pode ou possui não tem maior porção de da revolta resulta em golpes contra si mesmo.
direitos, mas de obrigações”; “Toda autoridade não representa Hoje, está estabelecido o método humano com que tratamos
vantagem, mas encargo e missão”; “A dor cessará apenas todos os problemas, isto é, aplica-se em todos os casos a psico-
quando houvermos superado o ódio e a vingança, transfor- logia de inconsciência e violência própria de nossa época. Em
mando-os em amor e perdão”; “Seja qual for o golpe vindo de nossos dias, exaltamos e adoramos o sistema do sucesso rápido,
fora, a dor só atinge quem a merece”. O verdadeiro bem-estar a qualquer preço. Quantas ruínas, porém, não semeia ele no
apenas poderá resultar de nova ordem interior, em que a fór- caminho, tanto para quem perde como para quem ganha! Hoje,
mula “a infelicidade alheia é alegria para mim porque me é o método da luta e da vitória do mais forte já atingiu o campo
vantajosa” seja substituída pela fórmula mais evoluída “a in- da arte e do pensamento, transformando-os desse modo em ga-
felicidade alheia transforma-se em dor para mim, porque é nha-pão, mercado, campo de competições. O espírito morreu. A
também minha própria infelicidade”. Lei fechou-se em rigoroso silêncio e recusa beneficiar os indig-
Infelizmente é muito extensa a lista dos erros humanos. Na- nos. Deus nos concedeu a provação que desejamos, as formas
da mais lógico que também muito longa seja a lista das dores. superiores da vida retiram-se da Terra, e o homem, querendo
Que outro rendimento poderiam dar as forças da vida, se dis- tudo conquistar, abandonou os maiores valores, perdeu as mai-
postas de modo diferente, obedecendo a critérios de harmonia, ores alegrias e destruiu a beleza. A psicologia do mais forte
e não de desordem! Que seria do mundo se, apesar de todos os transforma a Terra em infernal campo de luta, onde apenas du-
erros humanos, não o dirigisse lei justa e sábia! E deve mesmo as posições podem existir: ou de opressor ou de oprimido, em
ser muito sábia, visto como, não obstante as tentativas de de- que tudo se concede ao primeiro e nada ao segundo. Os melho-
sordem, atinge inexoravelmente seus objetivos. Sua sabedoria res acabam sendo eliminados, com dano geral. O espírito de
substitui a ignorância humana, estabelecendo desse modo limi- revolta acaba na autodestruição. Coisa alguma nasce nas ruí-
tes para ela e guiando-a em direção ao bem. nas, e, se a força obriga à obediência, os homens, oprimidos, e
Ao homem traem a pressa, a psicologia do resultado imedia- não convencidos, nada produzem. O vencedor não cria no ven-
to, conseguido a todo custo, através de quaisquer meios, inclu- cido senão a indiferença passiva da resignação. A vida negati-
sive da violência. A vida, no entanto, é fenômeno extenso e va se retrai. Só a força não basta para alimentá-la. Sem dúvida,
equilibrado. Nela, o futuro é eterno, produzem-se efeitos devi- tornam-se também necessárias as tempestades das guerras e
dos a causas remotas e preparam-se objetivos longínquos. O das revoluções para o trabalho de renovação. Mundo tempes-
homem vê apenas o passado e o futuro próximos, nada mais. E tuoso, porém, se convulsiona e desagrega. A vida também ne-
agora? Que coisa a química introduz em nossa terra? A ciência cessita de bondade e ordem, de amor e fé; se não tivermos se-
médica, no protoplasma do homem? A máquina, em nossa vida meado tudo isso, quando os homens pedirem trabalho, segu-
individual e social? A orientação moderna, em nossas almas? rança e bem-estar, a terra, saturada de ódio, de revolta e desor-
Não sabemos. No entanto a vida futura se construirá apenas do dem, apenas poderá dar-nos o fruto resultante da semente nela
que estamos continuamente a semear para nós e nossos filhos! atirada; o ar, por sua vez, estará saturado de ódio, revolta e de-
Pondo de lado o problema agrário, já particularmente desenvol- sordem, e toda a construção desabará fatalmente.
vido em outros escritos, observemos, por exemplo, como a ci- Eis os grandes empreendimentos do involuído, que, feliz-
ência médica trata o corpo humano. Cremos que a imunidade se mente, não representa toda a massa. A minoria, composta de
possa obter artificialmente pela introdução no corpo humano de mais adiantados, embora não seja dirigente, tem a função de
pus ou de vírus e proteínas desconhecidos. No entanto a resis- reequilibrar a desordem e salvar a humanidade. Porém, nos pe-
tência orgânica não passa de equilíbrio entre contaminação e ríodos de transição como o atual, em que as civilizações en-
defesa, renovando-se continuamente, equilíbrio que se conse- tram em liquidação, o tipo involuído, encarregado de exercer a
gue apenas por meio de características intrínsecas, adquiridas função destrutiva correspondente às suas capacidades especifi-
através de prolongadíssimos períodos de luta. A profilaxia acer- cas, adquire especial violência. Representa o órgão da destrui-
tada reside nas qualidades protetoras e defensivas que o orga- ção. Adormecerá, ficando em estado de vida latente, quando o
nismo, por si mesmo, adquiriu em prolongada e necessária luta tipo evoluído, órgão da construção, estiver funcionando. As-
entre o campo orgânico e o micróbio. A outra profilaxia é pro- sim, cada tipo, por sua vez, vive e triunfa, contribuindo para a
teção ilusória e fugaz, vitória fictícia obtida à custa da resistên- vida, e tem razão ou está errado, conforme a função que de-
cia orgânica, preguiçosamente, sem luta, através de meios que, sempenha. Estamos em fase de declínio evolutivo para liquidar
ao invés de fortalecerem, enfraquecem. Apenas a luta esforçada esta civilização, e, em período assim de destruição renovadora,
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 31
exalta-se o modelo humano que amanhã será com repugnância ção construtiva à civilização em nossa hora decisiva, tornava-se
considerado ínfimo. Amanhã, em fase de ascensão evolutiva necessário mostrar o funcionamento da Lei. A palavra, na ver-
para construir nova civilização, será exaltado modelo oposto, dade, está morta, tanto nos habituamos a fazê-la e ouvi-la soar
agora incompreendido e perseguido, e será liquidado o tipo bi- falso e a considerar como inúteis os ideais. Porém a leitura do
ológico hoje em voga e em plena atividade. pensamento da Lei, aqui feita, não é apenas palavras. Nesta ex-
Até o involuído desempenha, pois, função social e, no que planação se garante a ação da Lei, maturadora no íntimo dos
diz respeito aos equilíbrios da vida, está colocado no lugar que fenômenos que estamos descrevendo. Na realidade da vida,
lhe compete, devendo também ter sua oportunidade. Ele, natu- atrás do pensamento que estamos lendo, situa-se a força opera-
ralmente, defende, como todos o fazem, os princípios do pró- triz e o meio de comando. Essa palavra está, pois, carregada de
prio plano, onde se sente forte e, por isso, está sempre com a fatos, adere ao dinamismo atuante por ela expresso; não é hipó-
razão. Tal como acontece aos demais, irrita-o a afirmação das tese ou criação pessoal de um homem, mas derivada da realida-
verdades de outros planos, porque aí se sente fraco e, em con- de que vivemos e está amadurecendo. Aqui se fala, pois, de
seqüência, nunca tem razão. Por instinto vital e porque a com- conceitos vivos, de conceitos-força, impelidos em direção à sua
preende melhor, todos sustentam a verdade do próprio nível e realização. Não se trata de exposição de luxo, de vitrina de con-
do próprio tipo biológico. Afirmamos o que somos, o que me- ceitos com idéias em exposição, mas de cadeia de pensamento
lhor compreendemos, o lugar onde melhor vivemos e vence- cósmico expressa em modo de desenvolvimento racional.
mos. O próprio involuído quer afirmar-se e escolhe sua arma: a Embora muito triste, a visão dos erros e dores humanos não
força. Sente-se fraco no plano da justiça, arma escolhida pelo pode diminuir a alegria imensa da leitura do livro da Lei, que,
evoluído, que apenas aí se sente forte. O primeiro, portanto, na- apesar de tamanha imperfeição humana, é o livro das perfeições.
turalmente repele essa defesa que não o defende, essa arma que Enquanto penetramos, pouco a pouco, na profunda realidade das
não lhe dá razão, e a ela antepõe a força, que ele defende por- coisas, cada vez mais clara aparece a ordem divina e a alma se
que a compreende mais, porque é o método de seu nível evolu- extasia ao contemplar as harmonias da criação. Enquanto subi-
tivo e o único meio a oferecer-lhe possibilidade de estar com a mos, invade-nos o senso de libertação, confiança, repouso em
razão, embora momentaneamente. Foge, por isso, dos caminho Deus, adesão à Sua vontade, sintonia com o todo, fusão em or-
da ordem e da Lei e prefere os da revolta, mais trabalhosos e ganismo imenso, de poder e beleza supremos. Quanto mais a
inseguros. Perante a justiça, compreende muito bem que está observamos, tanto mais perfeita nos aparece a Lei.
enterrado em dívidas e não pode valer-se da Lei, que apenas lhe Começamos a nos afastar lentamente do mundo do involuí-
aplica sanções dolorosas. Onde o evoluído goza de crédito, o do e a subir cada vez mais em direção ao do evoluído. Na atual
involuído está endividado até o pescoço; onde o primeiro en- fase de transição defrontam-se o tipo biológico do passado e o
contra ajuda, o segundo acha apenas desvantagem e condena- do futuro. Classificamos desse modo os dois extremos típicos
ção. Então, renega Deus e a Sua lei. E renega-os exatamente do indivíduo humano, para tornar mais clara a demonstração.
porque percebe que existem e lhe dirigem exprobrações. Rebe- Na realidade, porém, entre os dois extremos situam-se infinitas
la-se, portanto, e como defesa lhe resta apenas a força. Este é o gradações intermediárias, conforme o desenvolvimento evolu-
seu ponto de vista. O evoluído ama a Deus e à Sua lei, que lhe tivo de cada um. O extremo inferior exprime a quantidade; o
garantem alegria e proteção. Sua economia não se baseia, como superior, a qualidade. A evolução consiste em transformar a
para o involuído, na força e no furto, mas na Divina Providên- primeira na segunda (como na desintegração da matéria e de-
cia, que, se não funciona em favor do outro, realiza-se plena- gradação da energia). Transformando-se a massa em energia,
mente em relação a ele, que preenche as condições necessárias muda a forma, mas a substância permanece indestrutível. Se o
à verificação do fenômeno. Todos confirmam e exaltam o que compararmos com a energia elétrica, vamos entender melhor
são e possuem, e negam o que não são e não têm. esse fenômeno. O involuído representa o estado elétrico com
A época atual representa a vitória do involuído, isto é, da muita amperagem e pouca voltagem, e o evoluído, a posição
força, da rebelião, da desordem. Mas ele também, embora re- inversa, em que, diminuída a amperagem, aumenta proporcio-
belde, não passa, em última análise, de servo da Lei. Em face nalmente a voltagem, ou seja, a quantidade de corrente, embora
de seu método negativo de revolta, seu desenvolvimento e suas diminuindo, se transforma em alta tensão. Mas, apesar da trans-
vitórias acabaram em destruição, quer dizer, em sofrimento e formação, nada se criou ou destruiu, pois a substância, expressa
humilhação, de que nascem o entendimento e a ascensão. O pela potência em Watt, permaneceu igual a si mesma. Entre os
destruidor é, pois, instrumento da reconstrução; suas negativas, dois estados se estabelece a mesma relação existente entre vo-
esgotada sua função e aniquilado seu autor, se transformam em lumes de água (em metros cúbicos), considerados fonte de
afirmações; a desordem do rebelde acaba em ordem mais ele- energia, e a pressão por eles exercida (desnível). Noutras pala-
vada; o resultado da dor é a evolução. O ciclo traz em si mes- vras, a energia se refina, sutiliza, mas ao mesmo tempo se di-
mo a sua lei, as forças dentro dele canalizadas são todas reuni- namiza. Assim, a transformação se compensa.
das em corrente, de acordo com ritmo fatal, que obriga o de- Confrontemos os dois tipos. O involuído é forte, mas insen-
senvolvimento da fase a terminar na dor, que ilumina, purifica sível e obtuso; verdadeiro rio de energias, mas de má qualidade,
e redime. De tanto caminhar, nossa época progrediu até atingir indisciplinada e grosseira. O involuído as desperdiça de manei-
a fase útil e construtiva: a dor. Ela fará refletir muitíssimo. É a ra ilógica, pois lhe falta a consciência diretriz, que, para ser
única estrada para a compreensão. E somente após haver com- conquistada, requer exatamente, através da experimentação, es-
preendido, nos será possível construir a sério, com solidez, pa- se dispêndio de energia. O mundo de nossos dias é assim. Ao
ra ascendermos cada vez mais. evoluído aparece como caos infernal, estúpido e doloroso. O
evoluído vive em plano físico menos forte, porém mais sensí-
IX. DAS TREVAS À LUZ vel, de inteligência aguda e penetrante. Representa corrente di-
nâmica mais limitada como quantidade, porém de qualidade
Observamos os erros do nosso velho mundo para superá-los imensamente superior, refinada, disciplinada. Com a elevação
no mundo mais adiantado que devemos construir. O ciclo não é de potencial, essa forma de energia tornou-se mais poderosa,
novidade e recorda aquele com que se encerrou a existência do mais apta a vencer resistências, como acontece na eletricidade
império romano. Aqui não dizemos coisa alguma que não tenha (lei de Ohm), quando aumentamos a voltagem. Se a corrente
sido escrita pela Lei na história e na vida. Acontece apenas que dinâmica é de quantidade mais limitada, suas qualidades de
nem sempre a liam, mas nós lemos. Só isso. Para dar contribui- maior potência, a ordem e a disciplina com que são manipula-
32 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
das e o modo mais consciente como são empregadas dão-lhe neles. Exagera-se, ao invés, o progresso mecânico, colocado em
muito maior rendimento. A transformação da quantidade em primeiro plano; quanto à ciência da matéria, prossegue-se até à
qualidade, embora a massa se torne mais sutil, traduz-se em hipertrofia, sem suspeitar-se que os equilíbrios da Lei devem,
maior poder de penetração; a sabedoria de consciência diretriz pelo contrário, agir em direção oposta e compensadora, pro-
já conquistada significa a poupança de imensos desperdícios de vendo o mais necessário: a sabedoria diretriz que reordene, guie
energia impostos, na experimentação, pela tentativa e pela in- e, portanto, valorize as conquistas já realizadas. Não compreen-
certeza. Por isso, não apenas a natureza mais sutil do novo di- demos, ainda, que os princípios atualmente em vigor, para não
namismo permite transpor mais facilmente os obstáculos, como acabarem no aniquilamento, são corrigidos e não persistem; se
também o conhecimento que o dirige elimina as dispersões inú- não lhes adicionamos princípios complementares, não represen-
teis, os erros e, em conseqüência, as dores e lhes permite maior tam vantagem, mas dano. Essas previsões estão, pois, no cami-
aproveitamento em sentido evolutivo, de harmonia e felicidade, nho errado. Caímos no erro de acreditar que a evolução seja
e não involutivo, de erro e dor. Nesse plano atingiu-se o objeti- unilateral e retilínea e que o futuro não deva passar de multipli-
vo da luta do involuído: a conquista de consciência; os atritos e cação, de continuação ampliada, do presente. Por força da lei de
os choques de seu modo de lutar foram superados e eliminados, equilíbrio, o caminho percorrido por determinado século não
sendo agora inúteis; tudo se tornou orgânico, harmônico, lógi- pode ser exatamente o prosseguimento puro e simples do se-
co, consciente, sábio. Não apenas a massa se tornou potência, guido pelo século precedente. Cada época tem objetivo próprio,
como também a utilização dessa potência é cada vez maior, com o qual, a fim de equilibrar de todos os lados o desenvolvi-
quer dizer, consegue-se, em termos de felicidade, cada vez mento, tende exatamente a compensar o da época anterior. Por
maior rendimento. Não só a matéria se tornou energia vibrante, isso, toda atividade é levada a transformar-se, ou invertendo-se
mas o dinamismo, conquistando mais forte capacidade de pene- na sua complementar oposta ou completando-se em formas
tração, transformou-se em força mais ativa e, por isso, mais po- ainda não desenvolvidas. Continuar a conceber o progresso
tente, firmando a arte, antes ignorada, de saber usar tudo isso apenas como exterior e mecânico significa incompreensão do
com inteligência, o que dá a todos os atos, inclusive aos míni- progresso, pois ele seria apenas o prosseguimento de trabalho
mos, valor e resultado muito maiores. unilateral, a continuidade de civilização que esgotou sua tarefa
No desenvolvimento do universal fenômeno evolutivo de e não tem mais razão de existir, devendo, portanto, ceder o pas-
uma a outra das três formas sucessivas, matéria, energia, espíri- so a nova civilização de tipo completamente diferente. As no-
to, a transformação biológica que o homem experimenta corres- vas ascensões, fixadas e superadas as vitórias da técnica, deve-
ponde à transição da fase-energia à fase-espírito. Isso caracteriza rão apossar-se do campo das qualidades humanas. Há muitos
o novo tipo biológico e a nova civilização. Se, coletivamente, outros germes à espera, hoje invisíveis, que se conservam laten-
com a organicidade, caminhamos para a atuação da ordem da tes, escondidos nos intervalos dos grandes ritmos da história.
Lei, individualmente marchamos em direção à espiritualidade. Nossos atuais problemas constituem fase de transição e prepa-
Se a força caracteriza o involuído, a inteligência revela o evoluí- ração de muitos outros problemas, completamente diferentes.
do. Isso os distingue e constitui a pedra-de-toque para determi- Superar-se-ão a luta de classe e a competição entre o capital e o
nar o grau evolutivo do homem. Basta observar como este, indi- trabalho; resolver-se-ão tantas incompreensões e tanta ignorân-
vidual e coletivamente, se conduz, faz a guerra e vive durante a cia; a organicidade exterior e forçada deverá transformar-se em
paz, desencadeia as revoluções e supera as crises, como traba- organicidade íntima e estabelecida por livre convencimento. A
lha, pensa, comanda, obedece, para ficarmos em condições de evolução, que hoje plasma a forma, deverá penetrar sempre
classificá-lo criteriosamente. Não interessa a posição social, mas mais na substância e renová-la cada vez mais intimamente. Há
a qualidade íntima; não importa o bom êxito, mas o método e o na vida muitos outros germes que esperam em silêncio, nela co-
comportamento; não tem valor a boa ou má fortuna, mas a raça. locados muito a propósito, para germinarem e crescerem, visto
Muitas vezes, os ciclos históricos têm ritmo fatal. O que interes- ser essa a finalidade de todos eles. Após compreender-se a lógi-
sa é o valor do passo com que marchamos no tempo; o que de- ca do processo, tudo isso se torna evidente.
cide é o modo especial de cada homem ou nação escrever a pró- A fé por nós depositada no ressurgimento espiritual do
pria história, determinado tão-somente pelo valor intrínseco da mundo se baseia em profunda visão das coisas, que estende os
personalidade, através da qual esse modo especial transparece. braços até aos confins do espaço e do tempo. É impossível que
O diferente modo de agir revela e distingue. o homem de hoje, dominando sempre mais as forças da nature-
No evoluído, a força trabalhou tanto, que se transformou em za, não chegue a aprender algo, embora através de hecatombes,
inteligência, sua primeira qualidade. Trata-se de sensibilização e, manipulando cientificamente a vida, não se lhe revele a
geral, de que também derivam sabedoria, bondade, equilíbrio, imensa realidade subjacente. A estrutura evolutiva do universo
harmonia e, por isso, poder. O homem funciona em universo e o ritmo progressivo da Lei evidenciam a impossibilidade dis-
maravilhosamente organizado e não o nota, move-se em oceano so. Como negar a solene afirmação da vida, que, apesar de to-
de forças inteligentes e não o percebe, vive em meio de belezas dos os obstáculos, anuncia eterno triunfo? Os desenvolvimen-
imensas e não as vê. O homem moderno não passa de cego e tos são fatais; viver é progredir; toda trajetória é lógica. As
bárbaro. A sensibilização lhe rasgará horizontes insuspeitados, verdades das maiorias modernas não passam de momentâneas
torná-lo-á senhor de muitas forças sutis que hoje lhe fogem. O correntes psíquicas e nada provam. O mundo se guia pelo rit-
imponderável, agora apenas intuído, é ao mesmo tempo mina e mo dos ciclos históricos, pelo peso dos imponderáveis. O ho-
abismo; amanhã se tornará ponderável. São inesgotáveis os re- mem não dirige a história, segue-a. A Lei a todos arrasta, con-
cursos da criação. A força constitui a potência mais fraca da vi- fiando a cada um função especial. Na organicidade do sistema
da. Quem dela se socorre não sabe quão explosivo é o pensa- diretor existe sabedoria que deseja o progresso e nos salva
mento, que poder tem a disciplina na organicidade. Apenas um mesmo a nosso malgrado. Os grandes homens detentores do
olhar lançado no futuro, para que o pressintamos, nos enche de poder, expoentes da história, desaparecem; mudam os nomes
estupor. Geralmente, essas espiadelas no futuro reduzem-se a das coisas e as atitudes populares; e a sabedoria prossegue em
previsões fantásticas à Wells, limitando-se o escritor ao desen- direção aos objetivos propostos pela vida, independente e im-
volvimento dos motivos já em nossos dias atuantes, com uma perturbável no seu caminho, sob muitas formas diferentes. A
perspectiva ampliada do atual estado de coisas. Ninguém fala mesma verdade continua a desenvolver-se, atuando sob as apa-
de novos motivos, aqueles que, de acordo com a lógica da evo- rências mais opostas da verdade, mas superficiais e momentâ-
lução, serão introduzidos na vida. E o futuro reside exatamente neas. A visão das grandes coisas de Deus escapa a quem olha
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 33
de muito perto as pequenas coisas humanas. Como se fosse Não é só isso, porém. No decurso da evolução, todas essas po-
cântico ansioso e aflito, nosso pensamento vagou pelo univer- sições mudam continuamente, e está em nossas mãos fazê-las
so, percorreu-o, buscando sem cessar, e, saciado, deteve-se na mudarem. Para todos nós, o estado de involução representa o
fé por ele depositada na ascensão, em que percebe haver en- passado; para todos os homens de boa vontade, o estado de
contrado o verdadeiro sentido e o fim supremo da vida. evolução significa o futuro. Desse modo, o evoluído de hoje foi
Qual o sistema de vida do novo tipo biológico evoluído? ontem o inferior involuído, que amanhã poderá ser o superior
Que posição toma na Terra, especialmente em face das neces- evoluído. Essa é a hierarquia dos seres, que ao longo dela se
sidades materiais, eixo da vida dos demais? Sua regra pode re- movem de acordo com o merecimento e a boa vontade.
sumir-se no preceito evangélico: “Buscai o reino do espírito, e A luta entre involuído e evoluído é fatal. Todo ser personifi-
tudo o mais vos será dado por acréscimo”. Conquistado o po- ca determinada força e representa determinado elemento da luta;
der maior, consistente no domínio do espírito, torna-se lógica a ninguém pode, na posição de neutro, fugir da luta, pois a vida
conquista do poder menor, que é o domínio da matéria. Não consiste na ascensão através da luta. Vida é movimento, é vir-a-
estamos tratando de admirável utopia, mas de fato suscetível ser; a estase a mata. E esse vir-a-ser tem de significar ascensão.
de verificação. Quem já aplicou essa norma sabe que é verda- Esse movimento não pode deixar de se dirigir para cima. Resol-
deira. Encontrado o reino do espírito, o resto nos é dado espon- ve-se na morte a vida que não progride para o alto. Construir ou
taneamente, por acréscimo. Como quem pode o mais pode o morrer, avançar ou extinguir-se. Quem pára perde a vida: se não
menos, possuir o plano do espírito significa dominar os planos evolui, morre; o retardatário morre na proporção do próprio re-
inferiores e as forças que o regem, significa tornar-se esponta- tardamento; quem chega tarde se arruína; quem se recusa se des-
neamente, sem necessidade do emprego de força, senhor de tu- trói. Progredir cansa muito; todo aquele, porém, que retrocede
do quanto aí exista. Quem o conseguiu possui naturalmente, caminha em direção ao inferno; enquanto isso, quem progride
dentro de si mesmo, o senso da medida justa e não abusa. Tudo caminha rumo ao paraíso. A Lei nos comprime de todos os lados
isso mostra que conseguimos maior vitória obedecendo à Lei para que nos decidamos ao trabalho fatigante de avançar em di-
do que nos revoltando. Os atuais assim chamados donos da ri- reção do paraíso e tudo retorne ao seio de Deus, de que se afas-
queza, na realidade não passam de seus escravos. O evoluído tara. A vida não tem e não pode ter outro significado.
não aprendeu a servi-la, mas a servir-se dela, a considerá-la
meio, e não o objetivo da vida; aprendeu a construir seus te- X. O PROBLEMA DO MAL
souros com valores superiores aos econômicos e materiais, a
amar coisas muito mais belas do que as da Terra. Não prostitui A luta entre o involuído e o evoluído não passa de momento
o espírito em presença do mundo e se mantém senhor das for- da luta universal entre o baixo e o alto, o passado e o futuro, o
ças da vida. Seu domínio atinge a raiz dos acontecimentos e a mal e o bem, e ao contrário. O problema se espraia, desse mo-
essência das coisas; é mais potente porque mais profundo. O do, no problema muito mais vasto do bem e do mal, os dois
encontro do reino do espírito transformou-lhe a vida em es- termos contrários em que se divide e se funde a grande unidade
plêndido e imenso acontecimento, isto é, no funcionamento de do universo. O mal representa o baixo, o passado, a desordem,
força indestrutível na organicidade universal. Como, por causa o inferno, a revolta contra a Lei, o nosso afastamento de Deus.
do equilíbrio interior, é, antes de mais nada, dono de si mesmo, O bem representa o alto, o futuro, a ordem, o paraíso, a obedi-
constitui-se senhor, e não escravo das coisas, que para ele as- ência à Lei, a aproximação a Deus. Como a evolução é apenas a
sumem outro valor e diferente significado, por serem vistas de ascensão do primeiro para o segundo posto, o involuído não
ponto de vista mais elevado. passa de retardatário, e, do mesmo modo, o evoluído é tão-
Maneira tão nova de conceber a vida representa verdadeira somente certo involuído que progrediu. Tal como se digladiam
revolução biológica no mundo moderno. Os dois tipos, involuí- os dois termos contrários, mal e bem, assim também o fazem o
do e evoluído, personificam a velha forma e a nova, que devem involuído e o evoluído, que pertencem respectivamente ao pri-
respectivamente morrer e nascer. Trava-se luta entre esses dois meiro e ao segundo termo. Para compreensão de qual deverá
tipos de vida. Cada um deles tem suas próprias armas. O invo- ser o resultado da luta, analisemos a natureza e a estrutura dos
luído usa força ou astúcia; o evoluído, bondade e perdão. O dois sistemas de forças, do mal e do bem, confrontando-os. A
primeiro é violento, mas cego; o segundo, pacífico, mas de óti- análise nos indicará também, implicitamente, o resultado fatal
ma visão. O primeiro suporta, o segundo domina o imponderá- da luta entre involuído e evoluído.
vel. Estão frente a frente, em posição de recíproca e relativa in- Analisemos o fenômeno do mal. É evidente tratar-se de sis-
ferioridade e superioridade. Mas tudo se reequilibra, porque o tema de forças por natureza negativo, quer dizer, cuja caracte-
evoluído, se possui mais poderes, tem também mais deveres. rística fundamental reside na negação. Satanás é representado
Eis a grande guerra em que vencerá o homem desarmado e de como o espírito que nega, como o principio em que a revolta se
que nascerá a nova civilização. O evoluído sabe, porém, que as funda. O Fausto de Goethe desenvolve essa psicologia a fundo.
recíprocas posições de inferioridade e superioridade não são Aí, onde o bem afirma “sim”, isto é, construir, harmonizar,
absolutas, mas relativas; que à maior quantidade de meios cor- progredir, o mal diz “não”, ou seja, destruir, desarmonizar, re-
respondem maiores obrigações; que essas posições não são de- gredir. Isso significa possuir natureza inadequada, desenvolver
finitivas, mas transitórias. Todo tipo biológico, se não passa de atividade em direção errada, constituir sistema de forças que
involuído quando comparado ao evoluído que o supera, é por apenas pode atingir resultado falso. Tudo isso esta implícito no
sua vez tipo evoluído se confrontado com outro mais involuído sistema, por força de seu próprio princípio e estrutura. Desse ti-
que ele; e todo evoluído, se supera o involuído, não passa, a seu po são a natureza e a atividade do involuído, vandálico por
turno, de involuído se observado em relação a tipo mais evoluí- princípio, enquanto o evoluído é por natureza construtor e anti-
do. Cada um, seja qual for o nível em que se encontre, sempre destruidor. A psicologia diferente e o método de ação constitu-
tem superior e inferior. Por isso nenhuma posição nos dá direito em exatamente a nota fundamental que os distingue. Essa natu-
de nos ensoberbecermos por superioridade absoluta, e nenhuma reza do involuído, como acontece ao mal, importa em atividade
nos dá motivo de humilhação por inferioridade absoluta. Todos na direção errada, isto é, permanecer fatalmente ligado à mes-
temos um superior, com quem aprendemos e a quem prestamos ma estrutura do próprio sistema de forças, de modo a atingir
conta, e também um inferior, a quem devemos estender frater- apenas resultado falso. Assim, quem por princípio destrói, aca-
nalmente as mãos. E o evoluído sabe que não dispõe de maior ba, como destruidor, agindo contra si mesmo; quem constrói
conhecimento e poder senão para execução de maior trabalho. acaba construindo para si mesmo.
34 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
Da natureza negativa das forças do mal resultam três conse- as qualidades necessárias à evolução, mas também no desem-
qüências importantes: 1) Absoluta impotência por parte do mal penho da função de elemento secundário e indispensável para
de construir para si mesmo, com capacidade de desenvolver contrabalançar as forças dos dois termos opostos do binômio,
apenas atividade negativa, isto é, de embaraçar o trabalho cons- necessários para a luta, de que nasce a evolução. Dessa manei-
trutivo alheio. Portanto o mal subordina-se ao bem, existe ape- ra, a função do mal se transforma e serve para estimular e ace-
nas como forma de negação do bem, quer dizer, é função dele, lerar a atividade das forças do bem, tornando-se, embora em
como da luz depende a sombra. O mal, desse modo, nasceu es- sua posição negativa, necessário e útil fator de progresso. Por-
cravo, e seu domínio não passa de domínio negativo, de desa- tanto o mal, sem querê-lo, torna-se útil ao bem. Assim Judas,
gregação. 2) Sua irresistível tendência para autodestruição. 3) A contra a própria vontade, trabalha para o triunfo de Cristo, e
subversão de todo o rendimento de sua atividade, que, assim, na não para destruí-lo, como desejava. No plano da criação, o mal
realidade, oposta às mentirosas aparências, não se resolve a seu se submete ao bem e, como seu servo, deve, sem sabê-lo, coo-
favor, mas a favor do termo oposto – o bem. A destruição leva- perar na consecução de suas finalidades. A mentira engana a si
da a cabo pelo mal se transforma, assim, em construção no mesma; o impulso egoísta nada pode fazer sozinho e, sem com-
campo de forças inverso e contrário. preendê-lo, presta serviço a seu rival.
Observemos os três pontos. Trata-se de três momentos do No segundo momento do mesmo processo, verificamos o
mesmo processo, de três funções tendentes ao mesmo resulta- agravamento do aspecto negativo da função do mal, agrava-
do: a vitória do bem. Conclusão: o mal parece, no entanto não mento que prejudica o próprio mal. Além de não poder constru-
é inimigo. Representa apenas a negação que condiciona a ir para si mesmo, porque é escravo do bem, o mal, em face de
afirmação. Sua posição é de divergência, mas subordinada; o sua própria natureza negativa, arrasta-se inexoravelmente para a
sistema destrutivo está combinado de modo tão sábio, que de- autodestruição. Tal é a triste posição de todos os destruidores,
ve acabar transformando-se em construção. Particularidades de quantos trabalham no campo de forças do mal. Por mais que
momentâneas poderão causar-nos impressão contrária, mas a a negação do mal pareça projetar-se contra o bem (não o atin-
ação do mal, em conjunto, representa apenas contribuição para gindo, porém, senão sob forma positiva retificada), a verdade é
a vitória do bem. Quem considera o mal como inimigo não que, na sua forma negativa, ela se projeta contra o próprio mal,
compreendeu a perfeição da Lei. No capítulo anterior, vimos que, desse modo e paralelamente à função positiva em prol do
os empreendimentos do involuído, considerado como órgão da bem, submete-se a processo de auto-eliminação. A natureza ne-
destruição. Examinando mais intimamente agora, podemos gativa das forças do sistema importa em que seu desenvolvi-
compreender de que maneira, em última análise, eles não pas- mento se traduza em demorado autodesgaste e progressivo es-
sam de colaboradores do evoluído, de órgãos de construção. gotamento. A negação do mal não pode desenvolver-se e agir
Tudo na Lei deve ser construtivo, mesmo lá onde assume as- senão em duas direções, num dúplice processo: com resultado
pectos negativos, até mesmo sob as aparências de forma opos- positivo para o bem e negativo para si mesmo, isto é, constru-
ta. O estudo do problema do mal nos faz compreender melhor indo o bem e destruindo-se. Segundo parece, em relação a si
a verdadeira função do involuído no quadro da vida; como sua mesmo, o mal não sabe fazer outra coisa senão gerar o micró-
atitude de revolta se transforma em obediência; como, apesar bio que o mata. As próprias bases e a lógica do sistema impli-
de tudo, ele é apenas escravo da Lei. Tão sabiamente se acham cam em que a vida do mal possa apenas consistir num suicídio,
combinados a natureza e o desenvolvimento das forças, que o suicídio de Judas, sua fatal autopunição. Não obstante, Judas
tudo termina se pondo a favor da evolução. A revolta, ofen- foi utilizado em favor das finalidades do bem.
dendo a Lei, excita-lhe a reação, que, para o homem, significa O terceiro momento do mesmo processo nos mostra, ao lado
dor, isto é, experiência, entendimento, redenção. Os que afir- do aspecto negativo da função do mal, seu aspecto positivo, ou
mam e os que negam, todos trabalham em prol da Lei. Através seja, mostra-nos que, além de ser apenas escravo e absoluta-
da dor, esgotando-lhe as causas, se anula a própria dor e se cria mente nada poder fazer para si mesmo, estando condenado à
a felicidade; o mal fracassa ao manifestar-se, tendendo para a autodestruição, o mal também pode, por inversão ocasionada
autodestruição, no entanto trabalha pela vitória do bem. Assim, pela natureza de seu próprio princípio animador, tornar-se cons-
aos poucos, a evolução absorve a involução, e o involuído, trutor até mesmo no oposto campo do bem. Chegado ao terceiro
transformando-se, desaparece. momento, o processo de desenvolvimento das forças do mal
O primeiro dos três momentos do processo de desenvolvi- nos mostra, paralelamente ao aniquilamento dele (segundo
mento das forças do mal nos mostra o aspecto negativo da sua momento), sua ressurreição, embora em posição invertida. Eis
função. Por si mesmo, considerando-se a sua natureza negativa, que, ao lado da função do mal, sempre exercida contra ele, apa-
representa força esgotada, equilíbrio instável e provisório, posi- rece outra, mais verdadeira, função inversa, ou seja, afirmativa
ção falsa e insegura, apenas capaz de triunfos efêmeros. O tem- e construtiva, que atua sempre em favor do bem. Tais são as
po, de fato, constitui o grande inimigo do mal, sempre apressa- conseqüências da estrutura negativa do sistema: danos para si
do porque reconhece a instabilidade de suas posições. Sozinho, mesmo e vantagens para o inimigo. Terrível condenação. A
pois, nada pode concluir de duradouro. Embora sabiamente mentira do mal não pode, logicamente, terminar senão por en-
executadas, as construções do mal parecem tender irresistivel- ganar a si mesma, dissolvendo-se em favor da vitória do bem.
mente ao desmoronamento. Por mais perfeitas que sejam, falta- O próprio método do mal, de travestir-se em mil e uma ilusões,
lhes o equilíbrio completo, única base estável e resistente. O leva-o a transformar em positivo seu próprio impulso negativo.
que é resultado de negações e destruições não pode afirmar-se e Mas, embora querendo mentir aos outros, o mal, se quiser con-
construir, mesmo no mal. Se a função do mal é para si mesma tinuar sincero para consigo mesmo, não pode ser senão auto-
negativa, torna-se positiva em favor dos outros, embora contra destruidor. Como nenhuma afirmação pode existir em campo
estes também se dirija em sentido negativo. Desde que o prin- negativo e como, nesse campo, nenhum desenvolvimento pode
cípio da subversão esteja na base do sistema, é claro que, de- verificar-se senão em sentido destrutivo, então o mal não pode,
sencadeada tal força em si mesma negativa, esta, ao chegar, de- em última análise, afirmar-se e desenvolver-se, com o caráter
ve apresentar-se invertida, isto é, positiva. O trabalho maligno de força, senão contra si mesmo e em favor de seu contrário, is-
de embaraçar a atividade construtiva alheia transforma-se, des- to é, em campo positivo e a favor do bem. Eis que o princípio
se modo, não só no exercício da útil função de resistência, ne- anticriador, o anti-Deus, por si mesmo se destrói, se trai e se
cessária à aplicação do esforço humano, para fim de controle e torna servo de Deus, princípio-criador. O mal não funciona
verificação do experimento com que se conquistam exatamente apenas como obstáculo que serve para adestramento no campo
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 35
das provas, como catalisador nas reações, desse modo ajudando da sabedoria divina, os dois inimigos colaboram para obtenção
a evolução, mas é também a principal fonte dessa dor que é do objetivo comum; ambos criam: o primeiro, destruindo, e o
exatamente causa de reequilíbrio, instrumento de redenção para segundo, construindo. Satanás acaba sendo (suprema ironia) es-
o mal e de evolução a caminho do bem, isto é, a força devora- cravo do bem e operário de Deus. Portanto qualquer pessoa de-
dora do mal e construtora do bem. Então o escravo torna-se útil molidora ou construtora, involuída ou evoluída, tem de, queira
colaborador; o que parecia elemento destrutivo é, na realidade, ou não, dar contribuição construtiva.
instrumento que serve para construir, condição de progresso Através dessas considerações, apareceu-nos o verdadeiro
vertical e de realização do bem; é amigo, ao invés de inimigo. rosto do mal. Conseguimos avaliação mais aproximada e com-
Assim se explica a necessidade desse agente determinador de preensão mais harmônica do fenômeno, de modo que o mal não
provas, a utilidade das perseguições, a significação do atentado constitui, como muitos pensam, mistério, censura à bondade de
destrutivo por parte do involuído. Assim se explica como o Deus ou inexplicável imperfeição de Sua perfeição. O fenôme-
progresso se nutre dessas resistências, ao invés de permanecer no se torna mais compreensível se o concebermos como siste-
bloqueado por elas, pois se transformam, enfim, em impulsos ma de forças em ação. Há de chegar o dia em que essas forças
favoráveis. Assim se compreende porque o evangelho nos poderão ser percebidas e calculadas por tipo humano a isso sen-
aconselha a que não façamos frente ao mal. Em universo perfei- sível, em razão de ser mais evoluído. Então, ao invés de de-
to, onde tudo possui significação própria; se o mal existe, deve monstração racional, ele poderá provar experimentalmente tudo
ter objetivo, rendimento certo, exercer função. Nos equilíbrios quanto havemos afirmado. A quem vê as coisas só pelo lado de
da Lei, até o mal se torna útil. Já vimos que a Criação é cons- fora, tudo isso pode parecer absurdo, mas a verdade é que o mal
trução orgânica. Qualquer coisa posta fora de lugar, ou sem ra- nasce para o bem. Se o mal nos faz mal é porque lhe pertence-
zão de ser, ou sem função, constitui enorme absurdo. Quem não mos; faz-nos mal na medida e nos pontos em que lhe pertence-
compreende pode clamar contra os erros e os defeitos; porém mos, ou seja, na proporção em que já se encontra dentro de nós
quem compreende vê, por isso, como tudo está em seu lugar mesmos, segundo a nossa desordem, tal como livremente a de-
certo, admira a perfeição com que todas as coisas, o mal e o sejamos e incorporamos em nós mesmos. Nossa qualidade e
bem, operam em harmonia com a Lei, a favor do bem. posição é que nos torna vulneráveis à sua capacidade destruti-
O bem possuí, pois, grande aliado, o mal, cujas forças traba- va. Retornamos por outros caminhos aos princípios, já conside-
lham contra si mesmas e a favor do bem. De modo que, em re- rados, da lei da honestidade e do merecimento. Se formos cul-
sumo, os impulsos do mal se adicionam aos do bem; portanto, pados, o mal desempenhará em relação a nós o papel de justi-
sob as aparências de desordem e rebelião, tudo é ordem e obe- ceiro, mas, se formos inocentes, nos transformará em mártires e
diência a Deus. Quando penetramos além da superfície das coi- promoverá nossa apoteose. Só para os malvados o mal é apenas
sas e observamos mais profundamente, surge uma realidade di- mal. Para os bons constitui bem. O mal poderá semear a ruína
ferente e maravilhosamente perfeita. Ficamos atônitos, então, dentro de nós apenas se lhe houvermos invadido o campo e
em face da inesperada sabedoria da Lei. As resistências se descido em seu terreno. Doutro modo, nada poderá contra nós.
transformam em impulsos construtivos, as dificuldades estimu- Noutras palavras, o mal retifica posições, é mestre que só inter-
lam e os ignaros impulsos do mal gentilmente se prestam, à vém para corrigir onde há erro. Lá onde a ordem já se estabele-
custa do próprio dano, a trabalhar pela vitória do princípio con- ceu, o mal fica sem ação, porque não encontra ponto de apoio
trário. O mal é enquadrado a serviço do bem. Satanás goza de algum. Se em nós não existe falha alguma, o mal não sabe por
liberdade até ao ponto que Deus quer e está prostrado e amarra- onde entrar. Portanto, apenas proporcionalmente à nossa imper-
do a Seus pés. Escolha o homem a posição destrutiva ou cons- feição estamos sujeitos ao mal e sofremos; porém, abrindo as
trutiva, funções da resistência ou do impulso na ascensão, tudo portas para a dor e permitindo que o mal ataque, a imperfeição
se resolve em aplainar a estrada da evolução e se resume em acaba sendo automaticamente corrigida e saneada pela dor e pe-
obediência à Lei. O estridor infernal da desordem é indiscipli- lo mal, cuja ação deste modo, seja ela qual for, tende sempre a
nado apenas no seu campo e interiormente, mas, para além dos preencher automaticamente a falha através da qual entrou e a
limites estabelecidos, tudo se enquadra no concerto das harmo- transformar-se em bem. O universo, portanto, contém em si
nias divinas. Assim, nas mãos de Deus, o próprio Satanás des- mesmo o princípio de ressaneamento de todo erro.
trutivo se transforma em construtor, embora sem sabê-lo nem Esses conceitos podem, enfim, mostrar-nos racionalmente o
querê-lo; de tanto negar e mentir, acaba por fazer o contrário significado lógico desse tão raramente aplicado método evangé-
daquilo que pensa estar fazendo; de tanto enganar, acaba sendo lico de não-reação: “Ouvistes que foi dito: Olho por olho e dente
enganado. Judas desejava ganhar e matou-se; pensava trair e por dente. Eu vos digo, porém, que não resistais ao mal (ao ma-
tornou-se instrumento da Paixão de Cristo, colaborador da re- ligno); mas, se qualquer te bater na face direita, oferece-lhe tam-
denção, negativo, mas útil. Todos os ataques do mal, também bém a outra” (Mateus, 5:38–39). Assim falou Cristo no Sermão
nesse caso, permanecem subordinados ao bem, tudo coopera na da Montanha. Não se trata apenas de ato de amor, mas de méto-
vitória de Cristo. Isso nos mostra que podemos ser derrotados do de vida logicamente colocado no sistema universal, em que a
mil vezes, mas o que decide a vitória final é estarmos do lado defesa do justo é fato automático. Para quem não conhece a Lei,
da verdade. Nisso se resume a história do mundo. Em última isso é absurdo. Não obstante, nossa miopia nos torna vítimas de
análise, Satanás não existe senão para involuntária e inconsci- ilusão, quando nos faz acreditar que reação significa defesa.
ente missão benéfica, fora da qual lhe resta apenas autodestruir- Agora, estamos em condições de compreender que reação não
se. Cumprida a missão, aniquila-se. A essência da destruição do quer dizer isso, pois, ao invés de fechar, abre as portas ao mal,
mal conserva-se latente dentro dele e é imposta inexoravelmen- introduzindo-o no seu próprio campo de forças, quando recebe e
te pela própria natureza do organismo de forças de que ele se devolve a violência. O sistema da Lei já é de si mesmo justo;
constitui. O mal carrega consigo o germe da própria destruição, não precisa de intervenções humanas para tornar-se tal. Só a
posto nele para que tal aconteça. Representa o impulso central Deus compete julgar e distribuir justiça. O justo é automatica-
do sistema, que o levará fatalmente à pulverização final. No mente protegido pela Lei. Quando somos injustos e merecemos
universo, tal como está construído, é absurdo que o mal final- ser prejudicados, de nada valerá nos defendermos sem a defesa
mente vença e o bem seja derrotado. Vemos, ao invés, que tudo de Deus. O evoluído, que compreendeu a Lei, segue o método
se move em direção evolutiva, isto é, rumo à perfeição. A única de não-reação preconizado por Cristo. O involuído segue o mé-
razão que mantém vivo o mal é exatamente sua função benéfica. todo do mundo animal: olho por olho e dente por dente. O pri-
Assim, ambos se encaminham para o mesmo objetivo; por força meiro, confiando-se à justiça de Deus, defende-se com o mere-
36 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
cimento. O segundo tem a seu favor apenas a força, por isso é rito e não se preocupa com os problemas imediatos e angustio-
mais débil e inseguro. Para este, contudo, o método consciente sos da vida real, implicitamente os resolve, sabe-se lá por que
do evoluído parece forma de debilidade desprezível. Há, porém, meios ignorados dos demais. E não é só, mesmo parecendo des-
uma grande diferença entre os dois métodos para sua atuação: o tinado a cair, além de não cair, ainda recebe por acréscimo, es-
primeiro importa a necessidade de sermos honestos. pontaneamente, coisas que os outros, muitas vezes inutilmente,
gastam a vida para conseguir. Como poderia o evoluído fugir à
XI. A ECONOMIA DO EVOLUÍDO dura lei, conhecida tão bem por todos nós, segundo a qual nada
se obtém sem esforço?
Continuemos a subir, devagar, do mundo do involuído para Essa posição privilegiada é apenas momento da libertação a
o do evoluído. O próprio Sermão da Montanha, há pouco cita- que a evolução nos conduzirá. Eis uma das principais vanta-
do, continua a mostrar ao evoluído o caminho, seu método, até gens da ascensão. O evoluído superou nossas lutas e fadigas,
mesmo no campo econômico: “... e, ao que te houver tirado a destinando-as para a execução de tarefas mais nobres. Por sua
capa, nem a túnica recuses; e dá a qualquer que te pedir; e, ao própria natureza, ele não trabalha mais em nosso plano materi-
que tomar o que é teu, não o tornes a pedir-lhe” (Lucas, 6:29- al, mas sim no plano espiritual, mais elevado. Os problemas
30). Economia vã e aparentemente desastrosa. O mundo mo- materiais estão para ele, isto é, no sistema de forças de sua per-
derno toma o cuidado de não levar a sério semelhantes precei- sonalidade e seu destino, automática e definitivamente resolvi-
tos, profundamente convencido do sublime absurdo que eles dos, embora não o estejam para nós. O centro de seu ser colo-
constituem. No entanto quão lógicos e naturais são para quem ca-se mais no alto; sua experiência, diferente e dirigida a ou-
compreendeu a Lei,! Trata-se do mesmo princípio de não- tras conquistas, está completa em nosso plano material e atin-
reação, aplicado não mais à defesa da própria pessoa, mas a de giu seu objetivo; as qualidades em cuja conquista nos cansa-
seus haveres. Aí reencontraremos, por isso, igual método de de- mos tanto já foram conseguidas por ele; no plano em que para
fesa: a justiça confiada a Deus, segundo a honestidade e o me- nós ainda há trabalho em prol de reequilíbrio e reordenamento,
recimento. Assim, tanto na defesa dos bens como da pessoa, a para ele há equilíbrio e ordem agindo espontaneamente. De
conclusão é a mesma: o justo é automaticamente protegido pela acordo com o principio do merecimento, a Lei dá gratuitamen-
Lei. Se somos injustos e merecemos ser prejudicados, de nada te ao evoluído o que ele merece e obriga o involuído a con-
nos vale a defesa que promovemos, sem a proteção de Deus. quistar com muito esforço o que ele ainda não merece. Tudo
Voltamos desse modo ao conceito já explicado, isto é, de que a isso é lógico justo e corresponde aos equilíbrios da Lei. A inte-
propriedade só resiste aos ataques se for honesta. Também nesse ligência e a atividade primam entre as qualidades que o evolu-
caso, observamos como a honestidade, à semelhança da não- ído procura conquistar à custa dos esforços já despendidos
reação, é considerada pelo mundo como forma de debilidade ou (merecimento), e chega por isso a possuí-las na forma espon-
imbecilidade, quando a honestidade significa, isso sim, ser cons- tânea de necessidade e instinto; é naturalmente dinâmico, irre-
ciente. Tal o método do evoluído no campo econômico. O estu- sistivelmente inteligente e laborioso. Portanto a luminosidade e
do dos princípios e das forças da Lei nos permite, ao contrário o dinamismo próprios do espírito se projetam, como conse-
do mundo, levar muito a sério esse método, que, aliás, é o mes- quência, até mesmo no plano da vida material. Sua inteligência
mo indicado por Cristo. Os raciocínios por nós desenvolvidos lhe permite dar ainda maior rendimento à sua necessidade es-
provam cada vez mais que esse não é o método dos débeis e im- pontânea de atividade e torná-la, por isso, ainda mais produti-
becis, mas sim dos sábios. Por isso quisemos ver para além das va, em qualquer direção, seja moral ou até mesmo, implicita-
aparências enganosas em que, todavia, tanta gente acredita. mente, econômica. Quem pode o mais pode o menos; o espíri-
Não é agora que desejamos insistir no estudo do sistema de to, embora o involuído não veja nem compreenda tal coisa, é
forças que rege o fenômeno. Devemos, ao invés, observá-lo sob dominador de tudo, para além da matéria. O trabalho, para o
outro aspecto, correspondente a esta espontânea pergunta de involuído, é tão ingrato e cansativo, que ele só decide enfrentá-
ordem prática: como é que pode viver neste mundo quem se en- lo com relutância e apenas na esperança de compensação (eco-
trega a regime econômico tão desastroso? Embora teoricamente nomia moderna do do ut des7), com os olhos postos em apro-
se justifique, se é essa a economia do evoluído, como pode ele veitá-lo o máximo possível, até ao ponto de transformá-lo em
resolver o problema, tão angustioso para todos nós, das neces- mentira somente para justificar o furto (sua forma ideal de
sidades materiais? Se é mesmo verdade que levamos a sério o aquisição), no entanto, para o evoluído, é necessidade vital
evangelho e se Cristo não pode ser considerado louco, devemos como a exuberância física da juventude, constituindo instinto
então dar resposta completa a essas perguntas. Já nos propuse- que, dirigido pela inteligência, dá resultados dobrados.
mos a mesma pergunta nas páginas anteriores, mas em termos Não basta, porém. Para o evoluído, o trabalho não signifi-
mais gerais, isto é, indagando em que consiste o código de vida ca condenação; muito pelo contrário, caracteriza-se como fun-
do evoluído. E respondemos que sua regra está na norma evan- ção que se entrosa no grande concerto das atividades de todos
gélica: “Mas buscai primeiro o reino de Deus e a sua justiça, e os seres do universo, constituindo missão valorizadora da vi-
todas estas coisas vos serão acrescentadas”. Observemos, ago- da, porque, até mesmo nos casos mais dolorosos, transforma-a
ra, o caso mais particular desse código de vida, isto é, em que em precioso dom, em campo de luta para conquistar novas
consiste a economia do evoluído, ou melhor, seu modo de agir qualidades, que, uma vez adquiridas, enriquecerão para sem-
em face aos bens da Terra. Essa conduta não passa de aplicação pre a própria personalidade, constituindo-lhe o poder e a sa-
da norma acima citada. Assim o evoluído ocupa-se primeiro bedoria. Iluminado assim por significação tão profunda e va-
das coisas espirituais, pois o necessário para prover-lhe as ne- lorizado por finalidades tão elevadas, ligado não ao rendimen-
cessidades materiais ele o recebe por acréscimo. Eis o problema to momentâneo, mas a resultados indestrutíveis, o trabalho
que nos propomos: como procede ele para receber de graça o não é mais suportado como desgraça de deserdados, segundo
necessário, como se tratasse de benefício concedido além da nos ensinou o materialismo moderno, invejando-se os que de-
mercê devida? Do ponto de vista humano, sua posição é bem le estão isentos; ao contrário, é abraçado com interesse e amor
precária, dir-se-ia mesmo desesperada. Trata-se de indivíduo e considerado como dom de Deus, que nos permite assim fa-
que, segundo o Sermão da Montanha, dá a quem pede e, se aca- zer experiências, aprender e progredir, concebido não mais
so é roubado, não só se abstém de protestar como até mesmo como posição de inferioridade, mas sim grande honra, em que
não impede que o roubem ainda mais. Pois bem. O indivíduo
7
que, ao invés de cuidar de si, cuida das remotas coisas do espí- Dou para que dês. (N. da E)
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 37
nos tornamos colaboradores no funcionamento orgânico do rança. No Cap. III deste livro, classificamos os tipos humanos,
universo: operários de Deus. É natural que a concepção do desde o involuído até ao evoluído, em selvagem, administrador
evoluído renove completamente, em cada caso, e neste tam- e espiritual, de acordo com o método de aquisição por eles se-
bém, o sentido da vida. Assim, o trabalho se nobilita, é ani- guido: furto, trabalho ou justiça. Se o mundo fosse de evoluí-
mado por alegre impulso, enriquece-se com resultados e fina- dos, já se teria alcançado a justiça social e, em consequência, a
lidades inesperados e, de posição de revolta e escravidão, se garantia de provisões materiais. A solução que agora devemos
transforma em posição de domínio e amor. Trata-se de traba- propor-nos não deve ser essa de realização que depende do fu-
lho bem diferente do trabalho arrogante, rixento, que hoje se turo. O caso agora é bem diferente. O evoluído constitui exce-
faz e que luta contra o capital apenas por inveja. Quanto a ção, o homem evangélico vive desarmado, em meio a indiví-
psicologia moderna se afasta da verdadeira concepção do tra- duos armados até aos dentes, e deve desinteressar-se da própria
balho! Ora, é natural que quem conseguiu alcançar essa con- pessoa, embora em meio da mais feroz avidez. Então, que for-
cepção, seguindo o método de vida correspondente, veja tam- ças vitais o defendem e impedem a destruição de seu produto
bém como os frutos desse método lhe afluem às mãos com a mais perfeito? Respondemos: a Divina Providência. Trata-se,
mesma espontaneidade do trabalho realizado. E isso tudo por na verdade, de imponderável, que, por isso, escapa à sensibili-
acréscimo, porque o objetivo e o prêmio desse trabalho são dade grosseira do involuído. Por esse motivo é muito raro o
bem outros, de valor eterno, imensamente mais importantes. E mundo notá-la, mesmo porque se trata de força real, inteligente,
tudo isso se obtém abençoando a vida, e não amaldiçoando-a! que funciona segundo lei própria, como fenômeno sempre
Assim se explica de que maneira o homem, antes de mais na- pronto a verificar-se, desde que se apresentem reunidos os ele-
da preocupado com as coisas espirituais longínquas, resolve mentos determinantes. E também isso é lógico.
implicitamente até mesmo os problemas imediatos e angustio- Observemos então o funcionamento desse estranho fenôme-
sos da vida real, superando-os, embora não se interesse por no que resolve o problema aparentemente insolúvel de dar ao
eles. Recebe como consequência secundária, e não mais como homem desarmado a palma da vitória, garantindo a ele, na apa-
prêmio e único resultado, tudo quanto para os outros constitui rência mais desprovido de segurança, aquela segurança de que
o único objetivo, que, quando não atingido, é como se tudo ti- todas as coisas humanas carecem. Tudo isso pode parecer ex-
vesse fracassado. Assim é que se pode aplicar o Sermão da cepcional e milagroso; no entanto, para a Lei, é lógico e espon-
Montanha, dando a quem pede, sem reclamar o que nos é tira- tâneo. Constitui, sem dúvida, total subversão dos métodos hu-
do, entregando a túnica a quem nos tira o manto. O universo é manos em voga, inconcebível para a psicologia dominante. Mas
exuberante de poder e de riqueza! O que nos empobrece é essa psicologia está encerrada num círculo de ilusões, que exa-
nossa involução; por causa dela e proporcionalmente a ela tamente a sabedoria do evoluído tem a incumbência de desfa-
somos excluídos do grande banquete! Dele tanto mais partici- zer, e a evolução, de transformar. Este argumento já foi aflora-
pamos e nos enriquecemos quanto mais progredimos. Nossa do muito de leve em A Grande Síntese, Cap. LXXXVII – “A
involução constitui verdadeira prisão. Progredindo, o evoluído Divina Providência”. Mais tarde, o desenvolvi em História de
se libertou e, por lei da natureza, é muito mais rico. um Homem, no Cap. XIII, sob o mesmo título. Para lembrá-lo
A honestidade é uma das formas com que a inteligência dá ao leitor, vamos resumi-lo agora.
maior rendimento ao trabalho do evoluído. A honestidade, ali- O fenômeno, sem dúvida alguma, existe e é susceptível de
ás, não passa de consequência da inteligência. Somente o sis- experimentação, influindo até mesmo no campo dos efeitos uti-
tema da justiça se mostra equilibrado e produz resultados con- litários, se o mecanismo das forças resultantes é posto em ação
sistentes. Esse sistema consegue economizar os naturalíssimos no momento exato. Torna-se necessário, pois, antes de mais
atritos da luta, que absorvem tão grande parte da atividade hu- nada, compreender a lei do fenômeno e expor as condições ne-
mana, sobrecarregando-a de fadiga inútil. Desse modo poupam- cessárias para que ele se verifique. É lógico que tal não pode
se as numerosas e naturais desilusões de todos os sistemas de- suceder com o método humano desordenado e rebelde, ou seja,
sequilibrados. Quanta fadiga inútil se poupa e como rende mais se não se verificarem os requisitos indispensáveis. O universo é
o próprio trabalho! Quanto as atividades interiormente pacíficas organismo de forças que obedecem apenas a mãos habilidosas e
e ordenadas não produzem mais que as litigiosas e desordena- sábias, e, cobrindo-se de trevas, se recusam a obedecer a mãos
das! O evoluído, posto, como poderia parecer, na posição de inábeis e rebeldes. Necessário se torna, pois, haver compreen-
maior desvantagem porque, até mesmo no campo econômico, dido a Lei e ter-se conformado com sua vontade, quer dizer, é
aceitou o princípio de não-reação, acaba por não possuir inimi- preciso haver neste caso compreendido a lei do fenômeno, para
gos e, desse modo, fica aliviado do trabalho de ataque e defesa estar seguro de que, se for aplicada, fatalmente se verifica.
que tanto acabrunha o mundo. Além disso, é natural que o evo- Quais são essas condições? Ei-las:
luído, tendo conquistado a sabedoria, evite as falhas a que a ig- 1)Merecer a ajuda;
norância leva e não trabalhe para a conquista de resultados 2)Haver, antes de mais nada, esgotado as possibilidades das
efêmeros, mas apenas das posições que, por serem justas, isto é, suas próprias forças;
equilibradas, são as únicas verdadeiramente resistentes e sedi- 3)Estar, de acordo com suas condições, em estado de neces-
mentadas. Tudo isso mostra a grande influência do espírito até sidade absoluta;
mesmo na vida prática; mostra não ser o fator moral, no campo 4)Pedir o necessário e nada mais;
da economia, precisamente o elemento insignificante que pare- 5)Pedir humildemente, com submissão e fé.
ce ser; mostra, finalmente, de que maneira muitos dos defeitos Quando essas condições se realizam, a Divina Providência
e insucessos de nossa economia são devidos exatamente ao fato está em condições de funcionar a favor de todos. Do contrário,
de desprezarmos esse fator imponderável. o fenômeno não pode verificar-se. Desse modo, não se pode fa-
Mas tudo isso não esgota o assunto. O dinamismo espontâ- lar em Providência com relação aos malvados, preguiçosos, ri-
neo, ou instinto de operosidade, e o maior rendimento, forçados cos, cobiçosos, incrédulos, soberbos. Ela se manifesta e traba-
pela inteligência e a honestidade, não bastam para assegurar, lha em favor dos bons, trabalhadores, necessitados, morigera-
em todos casos, estarmos providos quanto às necessidades ma- dos, crentes humildes e de boa fé. Esta é, pois, a primeira con-
teriais. Quem, para servir o espírito, é constrangido a menos- dição: merecer. Em alguns momentos da vida, é necessário
prezar as coisas terrenas, sente não apenas a necessidade de sermos deixados sozinhos diante do obstáculo, para que apren-
consegui-las mais facilmente, com menor fadiga e por acrésci- damos a superar as dificuldades com o emprego apenas de nos-
mo, mas também de consegui-las sempre com absoluta segu- sos meios. Quando não merecemos ajuda ou ela nos seria pre-
38 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
judicial, a providência que nos furtasse à prova necessária a a culpa da injustiça. Primeiro, fechamos as portas para a Pro-
nosso próprio bem não seria ajuda, mas apenas traição. Nesse vidência, impedindo-lhe a ação, e, em seguida, lhe negamos a
caso, a ajuda, que não falha, consiste em dosar a prova e diluir existência. Mas onde existe maior perfeição e bondade do que
o esforço necessário, na proporção de nossas possibilidades. Na no método que nos garante o necessário, que nos é destinado, e
prática, o que se pretende é transformar a Providência em ins- nega apenas o que nos pode ser prejudicial? Somos acalenta-
trumento de nossas comodidades e desejos, ajuda desnecessária dos por ordem justa que nos quer bem e protege a vida. Dessa
que nos poupasse a fadiga de progredir. ordem benéfica e protetora participa a Divina Providência.
Vamos ao segundo ponto. Quando quisermos pôr a Provi- Trata-se de forças inteligentes e amorosas, prontas a nos socor-
dência a serviço de nossa preguiça, é justo que a Lei, nesse ca- rer, sempre à nossa disposição; basta apenas que saibamos ma-
so, se recuse a nos atender ao apelo. Deus, sem dúvida alguma nejar seu mecanismo. É lógico que esse antecedente se torna
pai amoroso, não é, porém, nosso escravo. Sua Providência necessário em sistema orgânico. Trata-se de forças exatas, en-
jamais nos ajudará se, antes, não houvermos feito tudo quanto quadradas, automáticas como as leis físicas, onipresentes, in-
estava em nossas forças para aprendermos a lição. A Lei ja- corporadas nas leis da vida e, por isso, sempre prontas, neces-
mais sacrificará nossa felicidade final em favor da efêmera sária e automaticamente, a funcionar, tão logo se verifiquem as
vantagem do momento. condições de seu funcionamento. Propiciar essas condições é
A necessidade absoluta constitui a terceira condição. Não se espontânea ação nossa, independente da conduta dos nossos
pode avaliá-la de modo absoluto, igual para todos, porque de- semelhantes, das condições sociais dos tempos e dos sistemas
pende do caso, do momento, da pessoa, porque as necessidades de justiça distributiva em voga. A lei de Deus não esperou, pa-
individuais são diferentes e relativas, exatamente como as fon- ra proteger a vida, o advento da justiça social nem as modernas
tes de que dispomos para satisfazê-las. Se, porém, a avaliação e formas de previdência individual e coletiva, mas, apesar disso
a natureza da ajuda são relativas, é certo que a Providência não tudo, deu ao homem liberdade de escolher a forma de se garan-
nos provê do supérfluo, mas apenas do necessário, e isso para tir contra a necessidade, forma que além de independente de
nos fazer viver, e não para cairmos na pândega. A lei do míni- toda autoridade humana, é justa e absolutamente segura.
mo esforço, a parcimônia, a proporção entre o esforço e o ren- Poder-se-á objetar que muitas e difíceis condições devem
dimento, tudo participa da sábia economia da natureza, toda fei- concorrer para tão magro resultado. Respondemos: a Divina
ta de equilíbrio e justiça. E ela, nem avarenta nem pródiga, mas Providência não é seguro compulsório; qualquer pessoa pode re-
apenas parcimoniosa, concede criteriosa e moderadamente cusá-la sempre. Mas, então, é necessário colocar-se no plano da
quanto seja necessário para proteção e garantia da vida, da con- incerteza, para sonhar mil e uma coisas, arriscar-se a nada con-
tinuação necessária à evolução, que é o seu objetivo. Se a Pro- seguir e a sofrer as desilusões normais da vida. Não vivemos pa-
vidência prodigalizasse o supérfluo, ao invés de encorajar a vi- ra gozar, mas para lutar e progredir. Os desequilíbrios custam
da, levá-la-ia ao ócio, que conduz ao aniquilamento. caro. Mas, dir-se-á, queremos riqueza. Pois bem. Torna-se ne-
É preciso, pois, pedir com moderação e esperar apenas o cessário, então, sentir o terror de vir a perdê-la, que é o tormento
que for justo. Nisso consiste a quarta condição. Pedir o neces- dos ricos, e sofrer as respectivas ânsias e preocupações. Isso faz
sário para viver com simplicidade, a fim de que o instrumento parte do sistema. É natural que, quanto mais se sobe, mais instá-
do corpo possa fazer o trabalho pedido pelo espírito, indispen- veis se tornem os equilíbrios e menos seguras as posições, isto é,
sável para as finalidades da vida. Se, subvertendo a Lei, a co- que a segurança seja inversamente proporcional à riqueza. Mas
locarmos na matéria e nos prazeres baixos, é natural que ela se o involuído sente necessidade de experiências e, por isso, tenta a
afaste de nós e não nos ajude. Para obtermos a ajuda, torna-se sorte até mesmo no campo econômico; não precisa, pois, de se-
necessário não pretendermos mais do que temos direito de pe- gurança, mas de miragens que o induzam a lutar e a sofrer nesse
dir e havermos, antes de mais nada, aprendido a regra da tem- campo. Se a Divina Providência funciona como método quase
perança. Não nos esqueçamos que a Providência não passa de exclusivo do evoluído, é, no entanto, método com que a Lei
manifestação da justiça e da bondade da Lei e que, nesse fe- provê apenas o necessário, e com absoluta segurança, ao homem
nômeno, tem plena vigência o princípio da justiça e da bonda- espiritual, que não pode mais preocupar-se dos problemas mate-
de, e não o da força, que, nesse caso, é inútil e nada consegue riais, já esgotados e superados por ele.
senão sufocar o fenômeno. Eis a economia do evoluído, o modo com que resolve o
É preciso, finalmente, pedir com submissão e fé. Estamos problema das necessidades materiais; eis como lhe é possível
tocando no quinto ponto. Devemos adquirir consciência da or- aplicar o método evangélico de não-reação e aquela economia
dem divina e, ao invés de procurar torcê-la conforme nossas de pura perda, aparentemente desastrosa. Eis como aqueles que
conveniências do momento, devemos procurar pormo-nos de se ocupam das coisas espirituais podem receber tudo o mais
acordo com ela. Em lugar de pretender mostrar a Deus o que ne- por acréscimo. Estamos naturalmente num mundo diferente do
cessitamos e como podemos ser providos, devemos colocar-nos, mundo humano, em face doutra psicologia, doutros métodos e
face às Suas diretrizes, na posição de dependentes, de cegos ig- princípios. Há outra objeção, porém. Do ponto de vista huma-
norantes que esperam orientação, de filhos obedientes de quem no, o evoluído, que se preocupa com as coisas espirituais, pa-
mais pode e mais ama. Devemos, pois, também crer e confiar, rece indivíduo inútil, improdutivo, parasita que vive à custa
isto é, ter através da prece a sensação dessa realidade estupenda, dos outros, que trabalham para ele. Onde está a justiça? A es-
ou seja, de que não estamos abandonados e sós, mas existe nos mola é injusta apenas quando extorquida por ociosos. Temos
céus o Pai, velando por nós e provendo-nos do necessário. visto, porém, como o dinamismo e a operosidade são as quali-
Podemos perguntar-nos, agora, quando é que, na prática, se dades mais notáveis do evoluído. Em geral, ele trabalha de-
perfazem essas cinco condições? E por que nos surpreender- mais, pois soma as fadigas do espírito às necessárias para satis-
mos de não se verificar o fenômeno? Natural é que todo fenô- fação das necessidades materiais, ao invés de substituir uma
meno possua regras especiais, e absurda é a pretensão de jogar por outra. Logo, o próprio funcionamento da Divina Providên-
sem conhecer as regras do jogo. Explica-se desse modo como, cia nos mostra como são limitadas as necessidades do evoluído
em muitos casos, a Providência falha e não se manifesta. Não e quão modestos, os pedidos que faz. O que significam seus
obstante, funcionava muito bem nas mãos dos santos, que nela gestos, se os compararmos com os desperdícios imensos im-
confiavam cegamente. Muitas vezes, queremos colocar-nos no postos pela justiça, pelas guerras, pela cobiça e pelo espírito de
lugar da Lei. Então, se não logramos êxito, retorcemos o erro, destruição do involuído? Finalmente, mesmo se o evoluído
que é nosso apenas, e o atribuímos ao sistema, pondo em Deus permanecesse ocioso, no que diz respeito à matéria, e se ocu-
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 39
passe apenas de trabalhos espirituais, não daria, só por isso, Trata-se de dois mundos diferentes, cujas leis já analisamos,
contribuição à vida? Para progredir, a vida não requer apenas de dois métodos de vida, dois sistemas, que, uma vez escolhi-
atividades economicamente lucrativas. O evoluído, desse mo- dos, nos arrastam fatalmente, na lógica de sua estrutura, até às
do, não é parasita, mas exerce função e cumpre missão, o que, suas últimas consequências. O sistema em vigor, da riqueza ob-
na maioria das vezes, significa dar muito mais do que receber. tida pelo método da força, tem como consequência imediata a
Não seria mais natural falar-se em desfrutamento do gênio e do incerteza dos resultados. De fato, no mundo econômico as cri-
santo por parte da sociedade? A Lei não pode, utilizando-se da ses são contínuas e, segundo parece, irremediáveis. A conclu-
Providência, praticar injustiça. Serve-se, então, dos dominado- são deste sistema é absolutamente negativa, de modo que, neste
res da Terra como instrumentos seus, obrigando-os a fornecer mundo, podemos dizer que a pobreza é a única forma de rique-
ao evoluído o mínimo indispensável, de que ele se vale apenas za segura. Em tal sistema, a instabilidade e o risco são inerentes
para cumprir sua função social, necessária sem dúvida. Mas, e não podem ser eliminados senão destruindo o próprio sistema.
quando se exerce determinada função, adquire-se, perante a Outra consequência é a conexão entre a riqueza e o emprego
justiça divina, direito aos meios para poder continuar a cumpri- da força. A instabilidade requer defesa contínua, isto é, luta,
la. Assim, todos são chamados a contribuir e a trabalhar para guerra. Mesmo sob este outro aspecto, a conclusão do sistema
os objetivos da vida. Nos dias de hoje, o evoluído constitui ex- é negativa, quer dizer, não pode existir paz na riqueza, mas
ceção e não há, por certo, de pesar na economia social. Quan- apenas na pobreza. Todo desenvolvimento econômico importa
do, porém, tornar-se maioria, então o advento da justiça social aumento de bem-estar, exuberância vital, que desemboca nos
será fato consumado, o homem terá adquirido consciência da expansionismos imperialistas; em outras palavras, toda aquisi-
Lei, e nova concepção da ordem dará a todo ser humano, natu- ção de riqueza apenas serve para alimentar novas cobiças, para
ralmente, a garantia do necessário. despertar a insaciabilidade humana. O sistema de forças termi-
na sempre em guerra e destruição, que reequilibra o processo
XII. POBREZA E RIQUEZA desequilibrado. Essa é a Nêmeses 8 das conquistas terrenas:
crescer para devorar-se. É a mesma nêmese que vimos no mal,
A economia do evoluído deriva diretamente da sua própria de que elas se mancham: a autodestruição. Ai de quem cons-
psicologia. Assim como o evangelho revoluciona o mundo, a trói sem equilíbrio e com injustiça. Cava diante de si mesmo o
forma mental do evoluído é uma revolução da psicologia do abismo em que se precipitará. Tal é a fase, cheia de erros e de
involuído, porque se trata precisamente de passagem da in- dores, de quem na Terra ainda deve aprender.
consciência para a consciência, da ignorância à sabedoria. As Se essa fase, porém, se torna necessária para os primitivos
duas formas mentais representam os dois extremos da fase de hoje em dia, o evoluído não pode adotar esse sistema. Ele,
humana de evolução, que lutam. Nelas baseiam-se duas esca- que superou essa espécie de prova e, tendo-lhe assimilado os
las de valores opostas. Acima de todos eles, o involuído colo- resultados, desfez a ilusão, não pode mais acreditar na riqueza,
ca os bens materiais, e o evoluído, os espirituais. Destes, por- que pode ser perdida e é pretexto de lutas contínuas, onde se
tanto, o primeiro não faz caso, e àqueles o segundo atribui encontra sempre a traição, além de envilecer e tudo sacrificar só
bem pouca importância. Um sacrifica tudo à riqueza, até o para si, roubando as melhores energias vitais ao mundo espiri-
próprio espírito; outro sacrifica tudo ao espírito, até mesmo a tual. Toda a atenção da alma do evoluído prende-se a coisas
riqueza. Este adora a matéria e, por causa dela, prostitui o es- bem diferentes; sua luta e sua atividade criadora se desenvol-
pírito; aquele adora o espírito e a ele submete a matéria. O vem em plano mais elevado, acima do campo das competições
evoluído, que conquistou o conhecimento, sacrifica o valor humanas. Não pode mais cansar-se em competição para ele já
menor ao maior; o involuído, que ainda não adquiriu compre- improfícua; não pode mais gastar-se para proteger riqueza que
ensão e vive de ilusões, sacrifica o valor maior ao menor. já não lhe interessa; seu instinto o leva, então, a abandoná-la.
Dessa psicologia se infere que o primeiro dá toda a importân- Não é só, porém. O evoluído é impelido a detestar essa forma
cia aos valores morais, geralmente menoscabados, e quase ne- de atividade humana porque nela se podem sacrificar, e se sa-
nhuma aos valores econômicos, em geral elevados às nuvens. crificam, os mais altos valores espirituais. Nasce-lhe, desse
A economia do evoluído, que referimos acima, é consequên- modo, não só o senso de indiferença, mas também o de repug-
cia também dessa psicologia, em razão da qual ele, esponta- nância pela causa de tantos males. Nas mãos do homem moder-
neamente, dá à riqueza valor relativo e subordinado, em vez no, o poder da riqueza logo se torna guerra e, por isso, destrui-
de valor principal; se deve administrá-la, então o faz, não por ção; torna-se ódio e delito e se funde com as forças do mal. En-
apegar-se a ela avidamente, mas porque é seu dever, e dela se tão, o evoluído se rebela e, ao invés de participar na luta contra
livra quando e se puder, antepondo-lhe o estado de pobreza, o homem para conquista da riqueza, faz guerra à riqueza, a fim
protegido apenas pelas forças da Divina Providência. É lógico de conquistar mais altos valores humanos. Os bens da Terra
que, no mesmo campo em que o involuído, diametralmente são, no entanto, dádivas de Deus. A riqueza é grande força, mas
oposto, representa a máxima afirmação, o evoluído deva re- o homem a conspurca, e isso a inutiliza. O mau uso que muitas
presentar a negação máxima, e ao contrário. Por causa do na- vezes dela se faz, o modo com que a empregam, os fins para
tural antagonismo das duas posições, uma exclui a outra e que se dirige, o mal, o ódio e, portanto, as dores que se lhe li-
tende a tudo absorver. Ninguém pode servir a dois senhores gam, tornam-na um dano que o evoluído deve evitar, e não uma
ao mesmo tempo. A Lei diz que, naturalmente, quem cuida vantagem de que possa utilizar-se. Ele toca, por isso, o menos
das coisas espirituais não pode mais ocupar-se das coisas ma- que pode nos bens da Terra. Retira-se, pois, com repugnância,
teriais, porque não as quer mais e até mesmo lhes tem repug- dessa afirmação de ferocidade para conquista da riqueza e re-
nância; e quem trata das coisas da matéria se absorve de tal fugia-se na pobreza. Isso não significa desprezo dos bens de
modo nelas, que fica surdo às do espírito. Daí se deduz que, Deus nem desconhecimento do valor dos meios materiais e do
assim como o homem do mundo tende a desinteressar-se das rendimento que poderiam dar, se fossem manipulados com
coisas do espírito, isto é, tende para a amoralidade, o homem maior sabedoria. É, isso sim, terror do involuído, da baixa psi-
do espírito tende a desinteressar-se das coisas da matéria, ou cologia com que ele dirige a própria atividade e contamina tu-
seja, tende para a pobreza. Porque os dois extremos são inver- do aquilo em que põe as mãos. A riqueza pertence ao involuí-
sos e rivais, parece impossível, sem a correspondente pobreza
espiritual, atingir-se a riqueza material e, sem a corresponden- 8
Deusa grega da Vingança e da Justiça distributiva, que reprovava
te pobreza material, atingir-se a riqueza espiritual. todo excesso. (N. da E.)
40 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
do, diz-lhe respeito, é sua. Isso basta para torná-la inaceitável. houver miséria. Quem não compreendeu e escolheu essa po-
O homem a relaciona com as forças mais baixas da vida, e ela, breza não pode ser verdadeiro sacerdote do espírito.
assim, satura-se de mal. Tanto basta para torná-la detestável. Disso tudo se pode concluir também que o problema da ri-
Trata-se de sensibilidade espiritual, isto é, depende do Deus queza não é apenas, como hoje se crê, distributivo, pois, ainda
que adoramos no degrau mais alto da própria escala de valores. que o entendamos desse modo, deixa intactas todas as cobiças
Quem venera as coisas do espírito não pode suportar mais nada humanas, que são as verdadeiras raízes do dano, que não se re-
que, por qualquer motivo, as ofenda. solve no plano econômico, em que hoje se coloca, e sim no
Por esses motivos, o evoluído prefere a sua economia à do plano psicológico e moral. Não basta o advento da justiça social
involuído, mais em voga. Levamos em consideração neste li- pela qual tanto lutamos em nossos dias. Torna-se necessário
vro os dois casos extremos, entre os quais se coloca o caso in- construir também o homem. A solução consiste em conquistar a
termediário do administrador e organizador honesto, que da ri- consciência que nos leve a fazer bom uso da riqueza, transfor-
queza usa, e não abusa, transformando-a não em mal, mas em mando-a de mal, a que se reduziu, em bem. Enquanto não che-
bem. Esse tipo, porém, ainda não é tão numeroso que possa di- gar esse dia, o evoluído poderá dizer: não aceito, não me inte-
tar lei e tomar as rédeas da economia humana, que, no conjun- ressa, recuso o bem que vocês envenenaram, repilo a forma de
to, é aquela acima descrita. Essa é a revolta pacífica do evoluí- luta que vocês adotaram e nos degrada. Para o evoluído, a po-
do, de acordo com o método evangélico da não-reação. Des- breza franciscana, ao invés de utópica, representa dura conse-
preza quanto pode a riqueza, embora compreenda e admire quência da conduta humana, não é atitude negativa, mas atitude
aqueles que, imbuídos do espírito de pobreza e de honestidade, de vigilante espera; não é definitiva, mas transitória, e será su-
a empregam para o bem, possuindo-a para cumprimento de perada quando, como todas as fases, sua função estiver esgota-
função social ou missão, e não para vantagem e desfrutamento da e a evolução torná-la desnecessária. Então, a riqueza, restitu-
egoísticos. O evoluído, muitas vezes, até mesmo se mistura ída à sua pureza, se tornará aceitável exatamente como aquilo
com eles, mas toca na riqueza apenas por sentimento de dever, que é, ou seja, como dádiva de Deus.
como peso que se carrega por amor de objetivos mais altos e Tudo isso pode causar espanto ao homem do nosso mundo,
com absoluto desprendimento e desinteresse. Essa atitude é tu- que não percebe o valor das coisas do espírito com a mesma in-
do quanto precisamente o distingue dos demais. Enquanto es- tensidade com que a sente o evoluído. Para este último, porém, a
tes, geralmente, procuram avidamente a riqueza, como fim em vida assume significado bem diferente. Sente, sem sombra de
si mesma, o evoluído não a busca e, se acontece possuí-la, a dúvida, o perfume da pobreza a impregnar todas as coisas em
transforma em meio e a emprega para finalidades mais altas. A que toca. Percebe a beleza moral dessa pobreza, simples, hones-
Terra e seus bens não se lhe apresentam sob a forma positiva ta, laboriosa, confiante e tranquila, não dessa pobreza colérica e
de atração, mas sob a forma negativa de repulsão; para ele, o envenenada do mau, mas dessa agradecida pobreza do justo. Em
mundo não é mais lugar de conquista e de alegria, mas de dor e suas mãos, ela se espiritualiza e se aureola de bondade e fé, que
trabalho missionário. Tudo quanto não se refere ao espírito não a transformam em instrumento de ascensão. Desse modo, a po-
lhe interessa, porque vive em função do espírito, e não em fun- breza quase se santifica e chama para junto de si a presença de
ção da matéria. Para o evoluído, representa vitória aquela Deus. Então, quem perdeu tudo percebe que, de fato, ganhou tu-
mesma pobreza que causa medo ao involuído e se lhe apresen- do, e o paraíso desce até si. Uma vez que tanto mais se recebe
ta como derrota. A seus olhos, essa pobreza assume significa- quanto mais se dá, a pobreza torna-se, então, meio de enrique-
do afirmativo e criador, sensação triunfal de alforria e poder; cimento; do mesmo modo, nas mãos do involuído, a riqueza po-
torna-se escola de dominação, campo de exercícios heroicos. O de tornar-se meio de empobrecimento. E, assim, aquilo que para
espírito nutre-se dessas anulações na matéria; isso é lógico o mundo significa miséria, pode tornar-se beatitude, como o foi
quando se trata de processo de aniquilamento. Por isso pode- para São Francisco, cuja psicologia, de outro modo, não poderí-
mos assim balizar a sucessão desses momentos: “empobrecer, amos explicar. Poder-se-ia, no entanto, objetar que é censurável
sofrer, refletir; compreender, reconstruir, progredir”. Assim, os deixar de lado a administração da riqueza, pois, como produtora
equilíbrios da Lei corrigem os excessos humanos na vitória da de bens, muito poderia frutificar. Não. Cada um em seu lugar. A
matéria, invertendo as posições com a derrota material, de que esse trabalho já se destinam os honestos administradores da Ter-
nasce a vitória no espírito. Este, na pobreza dos meios terre- ra (o homem do 2o tipo), e esse trabalho lhes toca. Têm a função
nos, enriquece. O evoluído percebe esse fenômeno, adquire es- de reordenar o ambiente terrestre e é exatamente por isso que
se senso de enriquecimento e não liga mais a imagem da po- são organizadores de coisas humanas. O paraíso na Terra consti-
breza à sensação de derrota, mas de conquista, nem à de mal- tui-lhes a meta, e procuram laboriosamente prepará-lo. Mas o
estar, mas a de bem-estar. O evangelho baseia-se na lógica evoluído (o homem do 3o tipo) deve desempenhar função mais
dessas inversões, que parece desapiedada e terrível, mas que é, alta: dar a esse trabalho a orientação necessária. É precursor que
na verdade, simples e natural. Se, considerando-se o que o intui, dá as grandes diretrizes do espírito e indica-lhes objetivos
homem tem sido até hoje, toda posse, mais ou menos, impõe a sobre-humanos. Os olhos dos primeiros são analíticos e míopes,
necessidade da guerra, torna-se evidente que não pode possuir aptos a verem as coisas próximas da Terra; os dos últimos são
coisa alguma quem, de acordo com o evangelho, proclama o sintéticos, enxergam longe e podem ver as longínquas coisas ce-
amor ao próximo. Essa é a lógica do sistema, que de modo al- lestes. O objetivo final dos primeiros está na Terra e, aqui, al-
gum podemos negar. E o próprio evangelho nos mostra, na po- cançá-lo-ão, transformando-a de inferno em paraíso. O objetivo
breza, as conclusões derivadas dessas suas premissas. Entre final dos últimos está co1ocado no céu e conquistá-lo-ão, afas-
Cristo e o mundo não há possibilidade de acordos. Os dois sis- tando-se da Terra, para caminhar em direção a humanidades
temas são opostos e reciprocamente incompatíveis. Ou um ou mais evoluídas, a pessoas de sua raça.
outro. O espírito (o evoluído) está colocado num extremo da Tudo isso pode causar estranheza ao homem de nosso mun-
vida humana; o mundo (involuído), no outro. O primeiro quer do, mas o evoluído é o termo derradeiro, o caso máximo. Trata-
vencer o segundo, e recusa qualquer coisa em comum; quer e se de homem que compreendeu e vê o funcionamento da eco-
deve ser pobre, nada aceitando em comum. Mas essa pobreza nomia da natureza; sabe que a vida é protegida, e a lei de Deus
não é miséria, e sim rebelião dos ricos de espírito contra a mi- o segue passo a passo para salvá-lo; sabe que a defesa não é
séria moral dos outros, pelo menos enquanto e até onde a ri- confiada a ele, mas àquela Lei todo-poderosa. Sabe que ela é
queza não for guiada pela sabedoria. O verdadeiro amor evan- boa e perfeita. Adquirida a consciência de estado de fato tão
gélico não pode permanecer egoisticamente rico enquanto maravilhoso, desaparece de sua vida toda sensação de temor,
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 41
que envenena as efêmeras vitórias humanas da força. Ele sabe ataque e defesa: ter Deus consigo. Então nos tornamos imensos,
que será provido, pois a Divina Providência é apenas um mo- e nossa respiração reproduz a do universo, com a qual se con-
mento de todo o sistema de economia do universo, em que toda funde. Que importa, pois, que por fora sejamos pobres, se por
vida, em razão do que ela custa, não pode ser desperdiçada, dentro somos ricos? Quão mais pobres são esses que, ricos por
mas deve ser utilizada em favor de finalidade adequada. Sabe fora, por dentro nada possuem! Quando somos vazios, permane-
que lhe basta enquadrar-se no grande organismo, obedecer à cemos insatisfeitos em meio a seja qual for a riqueza; quando,
Lei, desempenhar dentro dele a própria função e fazer sua a porém, estamos plenos da graça divina, em meio à miséria mais
vontade de Deus, para viver em paz e em segurança. Quem o completa, nos sentimos abastados e satisfeitos. Eis a perfeita
observa só por fora, julga-o pobre e se engana, porque, se o vis- alegria franciscana, concedida apenas aos ricos de espírito.
se por dentro, haveria de compreender que é imensamente rico; Esse conceito e essa posição da vida finalmente nos apare-
rico porque não possui mais os bens na periferia tempestuosa, ce sob o aspecto utilitário. Desse modo, a vida adquire alcance
sob forma caduca, mal protegidos pelas garantias humanas, mas imenso, que toca as fronteiras da eternidade, torna-se intermi-
os possui no centro, em substância, seguros, lá onde eles, com nável sucessão de conquistas, de felicidade crescente, de con-
justiça, emanam do poder de Deus. tínua ascensão em resposta ao chamamento divino. Mas, limi-
Quando chegamos a esse plano, divina beleza ilumina e tando a vantagem às necessidades materiais, eis a Divina Pro-
aquece interiormente até o ato mais humilde da vida. Tudo se vidência pronta a ajudar, desde que haja merecimento e neces-
torna, então, meio para comunicação com Deus; tudo quanto sidade. São essas as duas condições fundamentais de seu fun-
obtemos nos vem de Suas mãos, até a esmola mais insignifi- cionamento. O evoluído, que compreendeu a lei do fenômeno,
cante assume as proporções de presente principesco feito pelo não lhe deposita confiança inutilmente, porque tudo obtém
Senhor, presente que nos fala d'Ele; qualquer ação nossa não com segurança. Sabe que, em face do merecimento e da neces-
se motiva em nossa vontade, e sim na de Deus. O homem, des- sidade, o homem faz jus ao auxílio, ato da justiça divina com
se modo, se sente circundado de luz e ouve o universo respon- que o justo pode e deve contar. Por isso obtém por direito e por
der aos próprios anseios. Grandíssima experiência. Tudo quan- justiça, e não a título de esmola imerecida. Por isso não é a po-
to lhe chega às mãos vem por meio de caminhos tão elevados, breza, mas apenas a baixeza, que arranca do homem a dignida-
que se transforma completamente, assumindo o valor de pre- de de filho do Pai. A generosidade da Providência, mesmo as-
sente divino. Então, até um pedacinho de pão assume o aspecto sumindo a forma de esmola, sempre constitui comunhão da
de prodígio, adquire o sabor das grandes coisas da eternidade e alma com Deus, e, por meio dela, o benfeitor humano eleva-se
do espírito, torna-se excelente porque o amor de Deus o tem- ao papel honroso de instrumento de Deus.
pera com paz espiritual paradisíaca. Todas as coisas parecem Em nossos dias, torna-se muito difícil fazer com que se
desmaterializar-se em significados profundos, e o mundo compreenda o sentido sutil dessas vantagens imateriais. No en-
transformar-se em paraíso. Poder-se-á sorrir amargamente, le- tanto, até mesmo em relação aos efeitos da estabilidade e dura-
vando tudo isso à conta de poesia e sonho. Não. Esse é o espí- ção, da segurança e gozo pacífico, não é indiferente que as nos-
rito do evangelho; não poderemos compreender esse espírito, sas aquisições sejam ou não dádiva de Deus, ou que os nossos
se não houvermos também entendido tudo isso. É milagrosa bens se elevem na força ou na justiça e estejam saturados de
essa transformação, à qual ninguém poderá chegar sem que ódio ou de amor. Se impregnarmos a riqueza com as forças do
primeiro a si mesmo se transforme, no entanto trata-se de feli- mal, ela estará, como vimos, relativamente ao mal, fatalmente
cidade que muitos seres superiores conseguiram. condenada. A grande revolução consiste em substituir a revolta
Tudo isso, porém, não é apenas supremamente belo, vitória pela obediência à Lei, a desordem pela ordem, o desequilíbrio
da estética moral, mas também afirmação de poder espiritual. pelo equilíbrio, os choques estúpidos e dolorosos pela harmonia
Atrás de toda aquisição, conseguida pelo sistema em voga, está e pela lógica. Essas afirmações espirituais são comuns à vida
a força ou a astúcia, muitas vezes a própria avidez e o dano do prática, em que repercutem. A solução dos males que atormen-
que foi vencido e, por isso, a destruição e o ódio. Assim tam- tam nosso mundo não vamos, é lógico, encontrá-la no retorno
bém, por trás de toda aquisição conseguida por esse outro sis- aos esquemas do passado, impotentes para solucioná-los, con-
tema, está a honestidade, a bondade, a justiça e, por isso, paz e forme bastantes vezes verificamos experimentalmente. Torna-
amor. Atrás de qualquer aquisição, aparece a figura de Deus e se necessário basearmo-nos em princípios diferentes, que se en-
palpita a Lei protetora, que amorosamente aumenta as dádivas contram nos antípodas dos precedentes e fazê-los atuar com
da vida. Das alturas celestes, Deus desce até nós e torna-se nos- métodos totalmente diferentes dos atuais. Nisso consiste a nova
so companheiro e nos ajuda em nossas necessidades. Manifes- civilização do espírito. Trata-se de adquirir consciência da Lei,
ta-se, então, presente e ativo em tudo quanto está dentro e fora para, em seguida, enquadrar-se nela e agir de acordo com ela.
de nós. Sua Lei nos fala e trabalha por nós. O infinito desce à Trata-se de incorporar em nós mesmos o senso da Lei. Não bas-
nossa relatividade, que adquire, desse modo, sentido de eterni- ta explicá-la; é necessário que nos coloquemos em condições de
dade e de absoluto. Toda a nossa vida, como consequência, se senti-la. A razão é formação primária, exterior, de superfície e
eleva e aumenta de poder. Torna-se ação humilde, em que res- não satisfaz. A consciência é formação mais profunda, interior,
soa o pensamento de Deus e se cumpre a Sua vontade. Essa vi- que não faz cálculos, mas intui e sente. Essa consciência adqui-
da humilde, transformando rebeldia em função, se harmoniza re-se com a dor. De outro modo não se pode construir em sis-
no funcionamento orgânico do universo; não é mais a ação iso- tema de liberdade e experimentação, isto é, de possibilidade de
lada de rebelde, pois esgotou seu dinamismo, mas fato relacio- erro e, por isso, de dor. Não basta explicar e compreender raci-
nado com o organismo universal, com o qual se comunica, onalmente. A custa de muito trabalho é que conseguimos nossa
dando e recebendo. Nossa vida pode atingir, então, as imensas própria maturação, porque nada se obtém senão através do so-
fontes de energia e de sabedoria, que outra coisa não querem frimento. Só assim o homem pode passar da fase de involuído à
senão entregar-se. Apenas nos tornemos dignos delas, Deus nos de evoluído, da posição de inconsciente à de consciente. Então,
aumenta de súbito o poder, de cuja conquista o verdadeiro ca- compreende que a vida tem elevadíssimos objetivos e ele, exa-
minho é o merecimento. Isso de acordo com a lei de justiça e tamente pelo fato de que existe para atingi-los, tem direito à vi-
como parte da economia da natureza, cuja vontade é que todo da. Compreende, então, aquilo que, hoje, confiando em si
valor renda, quando tiver sido verdadeiramente conquistado. mesmo, demonstra nem sequer imaginar, isto é, que, por força
Não há poder humano que iguale essa potência. Eis a grande de- da própria estrutura teleológica de todo o sistema do universo,
fesa do evoluído que se reduz à pobreza e abandona as armas de sua vida deve ser necessariamente protegida.
42 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
XIII. PROBLEMAS ÚLTIMOS voltado contra Ele significa autodestruir-se e criar a própria
dor. De acordo com a Lei de dualidade, cujo estudo aprofunda-
Temos verificado quanto a economia do evoluído é mais ló- remos no fim deste volume, o universo é bipolar, dividido e
gica, segura e perfeita que a do involuído. A sabedoria do reunido nessas duas partes opostas, inversas e complementares.
evangelho nos confirma plenamente a tese. Diz-nos ele: “Não As correntes de força que o constituem são de dois tipos, de na-
acumuleis tesouros na terra, onde a ferrugem e a traça os con- tureza contrária. Trata-se de dois dinamismos opostos, que, se
somem e os ladrões os desenterram e roubam; acumulai, ao in- aparentemente se excluem, na verdade se somam e, mesmo pa-
vés, tesouros no céu, onde nem a ferrugem nem a traça os con- recendo entrechocar-se, na realidade colaboram. O homem po-
somem e os ladrões não os desenterram nem roubam. Porque de escolher a corrente positiva, ascensional, que progride em
onde está teu tesouro, aí está também teu coração” (Mateus, 6: direção ao bem e à alegria, ou a corrente negativa, descendente,
19-21). Os dois mundos, o material do involuído e o espiritual que retrocede para o mal e a dor. Por mais que o homem se pro-
do evoluído, ficam nitidamente contrapostos, e a oposição se jete para fora de si mesmo, o resultado de seu trabalho é, de fa-
estabelece, colocando-os exatamente no plano utilitário, que to, sempre para si próprio. Se ele desencadear as forças do mal,
mostra a incerteza das coisas humanas e a segurança existente embora crendo fazê-lo contra outros, desencadeá-las-á em sua
nas do espírito. E tudo isso para mostrar, com finalidades edu- própria direção, contra si mesmo. Então, com as próprias mãos,
cativas, as consequências da escolha humana, por força das construirá triste destino para si, maculará o próprio ser e enve-
quais cada um de nós tem exatamente a mesma sorte do mundo nenará cada vez mais a própria vida, então, perseguido por seu
a que se ligou, ao acumular o seu tesouro. Quem se baseia em passado, ser-lhe-á cada vez mais difícil parar, e ele, finalmente,
coisas que caducam cairá com elas, e apenas quem construiu precipitar-se-á no abismo da autodestruição. Assim, o malvado,
em cima da rocha resistirá. O trabalho da evolução consiste na que preferiu regredir, por si mesmo se liquida no tormento do
substituição do pior pelo melhor, na conquista de valores mais inferno. Neste caso, não estamos mais falando, como fizemos,
seguros e preciosos. Assim, quando São Francisco combate a do involuído como primitivo ainda não desenvolvido, inferior
riqueza com a pobreza e, em seu testamento, aconselha, quando apenas no que diz respeito à sua natural posição na escala evo-
o pagamento do próprio trabalho for negado, a recorrer à mesa lutiva, e não porque a maldade o tivesse degradado; estamos fa-
do Senhor, pedindo esmola de porta em porta, São Francisco lando, isto sim, de quem se tornou involuído porque espontane-
não vê o lado negativo do esmolar, mas o lado positivo e cria- amente regrediu e, por isso, é muito mais culpado; estamos fa-
dor, isto é, não vê o aspecto miséria, mas apenas o aspecto ri- lando do homem que não é mais besta, mas deseja continuar
queza. Trata-se de abandonar valores menores para conseguir sendo besta. Trata-se, portanto, do malvado típico, caso muito
valores maiores, de mudança total de princípios, de substituição mais raro. Este se separou e cada vez mais se afasta das fontes
de mundos. Trata-se, aí onde todos exigem compensação, de da vida, de Deus, e, como não pode sobreviver sem Deus, defi-
pedir como pagamento apenas um ato de bondade. Se, de um nha e morre. Morte verdadeira, morte desesperada. Contudo is-
lado, se transforma riqueza em pobreza, ao mesmo tempo, tam- so é lógico. Se o homem é livre o suficiente para construir o
bém, o ódio se transforma em amor, a guerra em paz, e, na pro- próprio destino, todavia não pode nem é livre a ponto de tornar-
cura dos bens, o método humano da força se transforma no mé- se capaz de destruir a Lei e tornar-se árbitro da vontade de
todo da bondade e da fraternidade, isto é, manifestações de avi- Deus. Se pode escolher, e até mesmo escolhe, o caminho do
dez e fastio acabam em atos de humildade de quem recebe e mal, isso é assunto particular seu e não pode impedir a atuação
bondade a quem dá. Assim, a esmola filha da generosidade da Lei, que ele não pode dominar. As consequências de seu
substitui a riqueza filha do furto. Como será possível, doutro modo de agir somente recairão sobre si mesmo, enquanto ele,
modo, implantar o senso de amor fraterno no campo econômi- no fundo, continuará sempre a obedecer aos princípios vitais e a
co, que é o das competições mais ferozes? De que maneira, se- servir o bem. Apenas para si mesmo pode semear desordem e
não essa, há de se corrigir todo o mal que se faz para conseguir alimentar o mal; apenas para a Lei pode trabalhar em sentido
riqueza e reabsorver o veneno com que o homem a satura? De destrutivo. O mal não possui poder para destruir o bem, mas
que modo contrabalançar tão desenfreado egoísmo senão com sim apenas para destruir a si mesmo. É absurdo que a negação
altruísmo igualmente desenfreado? Se esse caráter da esmola se afirme, vencendo, portanto também é absurdo que se permita
pode ser desfigurado e reduzi-la a preguiça e desfrutamento, isso ao malvado afirmar-se vencendo o bem, e não apenas demolir-
nos ensina que, neste mundo, tudo se pode falsificar e transfor- se a si mesmo. Quando no harmônico dinamismo universal se
mar em abuso. O princípio franciscano quer, ao invés, introduzir forma esse turbilhão de impulsos desordenados, então as forças
o amor evangélico até mesmo nos atos da vida econômica, apa- vitais, disciplinadas e compactas, cercam e isolam o campo de
rentemente os mais afastados dele, aí onde parece menos aplicá- forças que lhes é contrário e não descansam enquanto não o eli-
vel. Trata-se de luta feita contra as leis econômicas, para refrea- minam, enquanto o campo rebelde não é por elas pacificado ou
mento do instinto de ataque em favor da conquista de riquezas aniquilado. Para quem está em seu interior, o sistema é protetor,
espirituais. Por essas razões, a fatigante e ansiosa fórmula mo- porém assume caráter ofensivo para quem dele foi expulso. Co-
derna: “tempo é dinheiro”, princípio que prende e se escraviza à mo acontece no organismo físico, as forças defensivas, antes de
matéria, é substituída pelo princípio que libera o espírito com a mais nada, tendem a eliminar a falha por meio da reação e curar
fórmula: “Si vis perfectus esse, vade vende universa”9. o mal com o remédio da dor. Se isso não for possível, encerram
Quando chega a esse ponto, o homem finalmente descobre o a ajuda e ausentam-se dessa forma de vida, indiferentes ou ini-
segredo da felicidade, segredo este que consiste em, como fazia migas, abandonando o ser ao aniquilamento. No que diz respeito
São Francisco, substituir a imperfeita economia humana pela ao rebelde, a reação da Lei é negativa e consiste em afastá-lo das
perfeita economia da natureza, o que significa saber manejar as fontes da vida. A transgressão produz a contração automática
forças vitais de acordo com a vontade de Deus, e não conforme das forças do sistema e dele expulsa o rebelde. Assim, repudiado
a do homem, isto é, em não agir contra a Lei, mas em confor- pela vida, torna-se ele abandonado fora-da-lei, a quem nada
midade com ela. Isso significa trabalhar do lado do bem, afir- mais resta senão desagregar-se e morrer. Deus se nega aos mal-
mativo e construtivo, e não do lado do mal, negativo e destrui- vados, que negam e, crendo negar a Deus, negam a si mesmos.
dor. Viver em harmonia com Deus significa construir a si mes- Pelo contrário, quem se lançou e fundiu na corrente oposta
mo e à própria felicidade. Viver em desarmonia com Deus e re- será temporariamente atormentado pelo mal, mas o caminho
por ele escolhido o leva natural e fatalmente em direção à feli-
9
Se queres ser perfeito, vai e vende todas as coisas. (N. da E.) cidade; enquanto isso, o malvado poderá ser feliz por algum
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 43
tempo, mas seu caminho desemboca natural e fatalmente na Verificamos repetir-se aqui, em relação à liberdade, o mes-
dor. As duas posições são inversas. Para o bom, a dor constitui mo processo de anulamento que vimos anteriormente com res-
a exceção transitória, e a alegria é a meta e a regra geral. Para o peito ao indivíduo. No primeiro caso, o exclusivismo egoísta do
malvado, a alegria significa exceção transitória, e a dor repre- ser o isola das forças da vida; estas, percebendo esse princípio
senta a meta e a regra geral. O justo, embora à custa de fadigas, que lhes é contrário, insurgem-se contra ele e, a fim de se livra-
constrói para si feliz destino; embora sofrendo, eleva-se rumo rem dele e expulsá-lo do sistema, rodeiam-no e o cercam, en-
ao bem, constrói no seio de Deus. Está ligado às fontes da vida volvendo-o em cada vez mais densos e apertados envoltórios,
e, quanto mais progride, mais delas se avizinha, nelas se nutre onde o comprimem até esmagá-lo, de modo que o ser caminha
e, assim, vive de modo cada vez mais intenso. Assim como as rumo ao próprio aniquilamento por compressão; da mesma
forças do sistema expulsam o rebelde e fecham as portas, forma, a liberdade se restringe cada vez mais, até perder-se no
abrem-nas para quem colabora com elas, admitem-no em seu determinismo da matéria. No segundo caso, estando ligado al-
seio, confiam-lhe funções e poderes, colocando seus próprios truisticamente com todas as coisas, o ser funde-se também com
tesouros à sua disposição e acumulando-o de bens. O primeiro é as forças da vida; estas, percebendo a manifestação do princípio
abandonado; o segundo, nutrido. O primeiro é expulso; o se- que lhes é próprio, deixam-se atrair por ele, juntam-se em seu
gundo, admitido naquela comunhão, chamada Divina Provi- entorno e o circundam, procurando livrá-lo dos invólucros da
dência, em que se encontram as fontes da vida e a economia da forma, a fim de permitir-lhe expansão cada vez maior, de modo
natureza. Tudo isso até que ele vença o mal, a dor, a morte. As- que o ser caminha para o próprio aniquilamento, mas por ex-
sim, enquanto o malvado se precipita na autodestruição, o bom pansão; da mesma forma, a liberdade se dilata cada vez mais
ascende para a imortalidade. Então, o homem se anula, mas em em razão da consciência, até perder-se na vontade da Lei. Para
outro abismo; o anulamento se verifica da mesma forma, porém os conscientes, só existe verdadeiramente uma liberdade: aderir
em sentido inverso, isto é, não mais como morte, mas como vi- consciente e espontaneamente à perfeição da Lei. Quem com-
da, não por autodestruição, mas por fusão na divindade. Os dois preende isso, naturalmente nada melhor pode pedir exceto que-
anulamentos se verificam nos dois extremos opostos do ser, nos rer em uníssono com a vontade de Deus, nela fundindo e per-
antípodas do binômio do universo. Assim, todas as forças do dendo a própria vontade. A vontade de Deus, aliás, será a sua,
mal serão autodestruídas e todas as forças do bem retornarão a porque a Lei representa o melhor, a maior felicidade. A irresis-
Deus. Todos terão atingido a meta que desejaram, e os impul- tível tendência dos seres à perfeição participa da estrutura do
sos, livremente desencadeados pelos seres, terão concluído a sistema; o ser fatalmente segue essa tendência, e a Lei irresisti-
sua trajetória. E, uma vez que os princípios estabelecidos por velmente o atrai, porque ela representa a perfeição. Ao conceito
Deus produziram efeito, o imenso oceano do dinamismo uni- dessa perfeição não pode relacionar-se a incerteza na escolha,
versal repousará tranquilo, até que, com novo desequilíbrio ge- mas apenas o absoluto determinismo. Percebe-se que a oscila-
rador (como a luta entre o bem e o mal), depois da fase de re- ção da vontade entre soluções diversas só se torna possível na
pouso e paz, isto é, de dinamismo em repouso ou latente (o mal fase de formação da perfeição, e não no estado final, onde ela
absorvido pelo bem), o motor-não-movido inicie nova fase de foi alcançada. Ao mesmo tempo em que o ser ascende para a
atividade e luta, quer dizer, de dinamismo atual. plenitude da Lei, é natural que também vá perdendo sua liber-
Todo o universo gravita em redor de Deus, e, aos poucos, se dade, livremente reabsorvida no determinismo da perfeição.
escolhemos o caminho da ascensão, acabamos por nos fundir Logicamente, quem compreendeu e encontrou o melhor procu-
n'Ele. Por outro lado, se escolhemos o caminho da descida, ape- ra fazer atuar apenas este; é lógico que prefira a solução retilí-
nas podemos acabar na destruição, porque nos afastamos de nea, a resultante imediata do máximo rendimento obtido com o
Deus, única fonte de vida. O homem que involui despedaça os mínimo emprego de meios, em vez da oscilação de vontade in-
vínculos vitais que o ligam ao divino; o homem que evolui os certa, que não sabe e perde-se na ignorância e na imperfeição,
estreita e reforça. Este caminha em direção da luz, aquele se condição que a torna descrente de si mesma, fazendo-a entrever
precipita nas trevas; o primeiro aproxima-se do centro do siste- múltiplas soluções possíveis, quando sabemos que, na perfei-
ma de forças, que é também o centro do poder e da vida; o se- ção, não pode nem deve existir senão uma: a melhor. Percebe-
gundo afasta-se do centro para a periferia, onde há exaustão e se que o livre arbítrio é algo que procura encontrar a perfeição;
morte. Um se dirige para o conhecimento; o outro, para a igno- falta algo ao sistema da incerteza, que só no sistema da certeza
rância. A ascensão significa construção de consciência; a queda, encontrará a sua perfeição. O livre arbítrio não passa de vaci-
destruição de consciência. A consciência conduz à ordem, à ade- lante filho da cisão entre o homem e Deus, cisão que a evolução
são à Lei; a inconsciência conduz à desordem, isto é, à rebelião. faz desaparecer. A experimentação, de que nasce o erro, por sua
O livre arbítrio representa a fase da formação da consciência e, vez origem da dor, deriva necessariamente dessa cisão e consti-
portanto, fase de transição, que existe para ser superada tão logo tui o caminho da cura. A cisão nos tornou cegos. Precisamos
se atinja o objetivo. Ou o mal se transforma em bem, ou se des- de, submetendo-nos às provas e sofrendo, refazer a consciência
trói. Assim, ou o rebelde finalmente adere e obedece à Lei, ou perdida. Trevas, punição tremenda. Mas a dor, situação natural
acaba sendo eliminado por autodestruição, tão logo termina a de quem evolui e se redime, nos recoloca na consciência e na
experiência que motivou a concessão de liberdade, necessária à luz. Na vida existem apenas dois caminhos: o involutivo e o
livre formação de consciência. Em suma: há unicamente um se- evolutivo. A unidade do universo é bipolar, sem exceção.
nhor: Deus – o bem; e, não obstante a liberdade, só se torna pos- Quem evolui na dor cria a si mesmo; quem involui no prazer a
sível seguir o caminho que leva a Ele, caminho que é também o si mesmo destrói. O caminho da redenção é áspero, estreito e
da felicidade. A liberdade humana, relativa e limitada, não pode, semeado de espinhos; o da perdição, suave, largo e parece jun-
pois, ultrapassar os limites impostos ao homem para seu próprio cado de flores. A dor constrói a consciência, forma conquistada
bem; instrumento formador de consciência, a liberdade deve agir pelo ser quando palmilha o caminho de retorno a Deus. O pra-
nesse sentido ao invés de desmandar-se em atitudes de inconsci- zer destrói a consciência e determina a inconsciência, forma as-
entes e desordenar a ordem das coisas. Essa liberdade é enqua- sumida pelo ser no caminho que se afasta de Deus.
drada e canalizada, de modo que ou caminha em direção a seu Assim, sob duas formas opostas, a liberdade se extingue
objetivo, ou se destrói. Quem regride para a inconsciência perde num e noutro extremo da vida. O universo constitui sistema
a faculdade de compreender e, ao mesmo tempo, perde a liber- perfeito, e na perfeição não pode existir arbítrio; e muito me-
dade. Quem progride em direção à consciência também a perde, nos o sistema pode ser abandonado ao arbítrio do homem, fe-
porém como fusão na vontade da Lei. nômeno representativo de função transitória, dirigida a objeti-
44 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
vo certo, limitado e relativo a ele. O homem, que tanta liberda- regride é levado cada vez mais a substituir a divina vontade
de proclama, muitas vezes se atira pelo caminho fácil da queda universal por sua vontade isolacionista. O primeiro cresce
na desordem, no entanto o áspero caminho da ascensão se situa sempre mais e se agiganta; o segundo se comprime em si
na disciplina, na ordem. No dinamismo universal, verificamos mesmo, diminui e se asfixia. Mas, em ambos os casos, o esta-
hoje a dissensão de duas vontades diretivas rivais, que dispu- do de livre arbítrio tende a anular-se, seja no determinismo do
tam o terreno: a vontade de Deus, situada no íntimo e desejosa sistema do espírito, pela fusão consciente na vontade de Deus,
de instaurar o reino da justiça e do espírito, e a vontade do ho- seja no determinismo do sistema da matéria, pela obediência
mem, posta na superfície e tendente a estabelecer o reino da inconsciente do cego à vontade da Lei.
força e da matéria. Deus e Satanás, Cristo e Anticristo se de- Antes de passar a outros argumentos, vejamos alguns coro-
frontam. Trata-se de dois sistemas de forças, de antagonismo lários do capítulo precedente. A civilização materialista atual
contínuo e presente em todo ponto e em todo momento, em to- entra de novo no sistema de forças da matéria. Seu termo final,
do ato e em todo fenômeno, antagonismo de que tudo está im- implícito no sistema, é a autodestruição. Tamanho progresso
pregnado. Já vimos o diferente poder dos dois sistemas e a econômico e material deverá, pois, acabar fatalmente na auto-
conclusão a que os levará a estrutura particular de cada um de- destruição, como, aliás, está acabando. As verdades que a ciên-
les. O ser que ascende deve eliminar a dissensão entre as duas cia descobre são certas, pois não passam de verdades da Lei.
vontades e desfazer a diferença nascida da rebelião; deve, à Errada é, isto sim, a direção seguida pela ciência nas pesquisas;
custa de muita obediência, reequilibrar tanta desobediência; errado é o método utilitário com que a ciência as aplica. O pe-
deve agora executar, por sua conta, o trabalho da reabsorção da cado capital dessa ciência consiste em dirigir-se à matéria ao
desordem pela ordem, da liberdade pela disciplina; há de exe- invés de ao espírito, em querer substituir Deus pelo eu, em pôr-
cutar o trabalho de renunciar à sua vontade egoísta, a fim de se na posição de presumida independência da Lei e de revolta
perdê-la, fundindo-a na vontade da Lei. A princípio, isso cons- contra ela. Trata-se, pois, de progresso às avessas, progresso
titui esforço, mas depois é poder; parecerá limitação e derrota, que nega e, por isso, negativo. Depois de tudo quanto dissemos,
porém mais tarde significará expansão e vitória; inicialmente, as consequências tornam-se evidentes. Esses sistemas de forças
não passará de fatigante aceitação, mas finalmente há de ser nos tolhem completamente. O homem acredita realizar grandes
espontânea fusão na vontade de Deus. Então, o ser saboreará a conquistas porque desvenda segredos da natureza e, em segui-
alegria suprema da harmonização, nessa vontade perceberá a da, sabe desfrutá-los, mas a posição da ordem fica nesse caso
perfeição suprema e, com alegria, nessa perfeição submergirá a subvertida. O homem acredita que, desse modo, acumula pode-
liberdade pessoal; nessa vontade viverá satisfeito e feliz, como res e se torna senhor da vida, porém trata-se de poderes de re-
quem atingiu seu objetivo supremo; aí há de viver por adesão belde e apenas podem levar à autodestruição. O homem, hoje
espontânea, porque, conquistada a consciência, terá compreen- tão orgulhoso de si mesmo, com essa ciência sem sabedoria,
dido ser ela seu bem e se sentirá cada vez mais livre nessa não passa realmente de elemento expulso do sistema de forças
obediência, para ele vantajosa. Além da incerteza dos que, em- da Lei, de isolado, de abandonado por Deus, de indivíduo posto
bora não o conheçam ainda, procuram o que lhes é verdadei- fora das fontes vitais. Seu grande edifício lhe cairá em cima,
ramente útil, que significado tem a oscilação do livre arbítrio? não porque deixe de ser grande e belo, mas apenas por causa da
E, quando o ser houver adquirido consciência do que lhe é útil, direção errada em que o construíram. A Lei destruirá a ciência
como poderá continuar escolhendo, oscilando, quer dizer, vi- rebelde que a negou e a civilização criada por essa ciência. Esse
vendo na incerteza? O melhor pode ser apenas uma coisa só e, é o termo fatal do mundo de hoje. Por isso nova e verdadeira
quando o tivermos encontrado, nos impede a escolha. Aí, a civilização somente poderá nascer das ruínas dele, depois de ser
grande cisão entre o homem e Deus desaparece e a luta, filha destruído, não podendo ter por fundamento senão princípios
da ignorância, se acalma. Então, o ser sabe querer apenas o que completamente diferentes. Assim, a nova civilização do Tercei-
Deus quer, e isso lhe constitui a maior alegria; conquistando ro Milênio poderá apenas ser a civilização do espírito.
consciência, torna-se instrumento voluntário da Lei e se funde Ainda podemos compreender algo mais. A Lei reage contra
no seio de Deus, em harmonia e felicidade. quem a transgride, expulsando-o de seu sistema de forças (aliás,
onde se encontra grandemente protegido quem nele se refugia)
XIV. CONSEQÜÊNCIAS E APLICAÇÕES e abandonando-o. Nesta condição, o homem permanece fora do
sistema, isolado, à mercê das forças opostas, ou seja, do mal.
No capítulo precedente, destacamos o fenômeno das ascen- Eis por que o erro e a culpa, que significam desordem contra
sões humanas do fundo da dinâmica universal. Enquadrar os Lei e, por isso, expulsão e abandono, causam dor, ou seja, re-
fenômenos, reordenar o pensamento, disciplinar a ação consti- gressão. Nas páginas precedentes, pudemos observar como e
tuem a nossa tarefa, que significa construir. Caminhemos, pois, por que a Lei reage, isto é, a forma e o motivo dessa reação, de
em direção da ordem, rumo a Deus; das duas estradas da vida, que antes não se podia explicar a relação com a dor. A Lei,
a involutiva e a evolutiva, sigamos a que sobe. O sistema de quando alguém a transgride, expulsa da sua ordem e da sua
forças do universo é, pois, bipolar, quer dizer, resultado do ajuda o transgressor; nega-lhe tudo, o conhecimento e o poder,
contraste entre dois sistemas inversos: o sistema do espírito e o a proteção e o alimento. Essa a razão por que todo golpe contra
da matéria. Ambos são deterministas, ou seja, o universo, sen- a Lei constitui golpe que o rebelde inflige a si mesmo, autopu-
do inteiramente perfeito, apresenta completo determinismo nos nição, dor por ele sofrida. Eis por que encontramos a dor no
seus dois termos componentes. Se, no sistema de Deus, apenas caminho da involução, caminho de rebeldes. Eis por que desor-
pode existir perfeição, então necessariamente só pode haver dem, rebelião, inconsciência, erro, culpa, dor e queda se relaci-
determinismo. A liberdade existente no homem consiste so- onam. O universo é criação contínua e se mantém apenas em
mente na possibilidade de escolha entre os dois sistemas. Es- virtude dessa criação. Ela deriva de dinamismo central, inserto
tes, porém, se constituem de tal modo que, escolhidos, envol- na intimidade das coisas, profundamente ligado ao universo e a
vem o ser em suas espirais, o incluem em seu sistema de for- Deus, onde estão situadas as fontes da vida. Tudo isso dá nas-
ças, o prendem à sua lógica e tudo isso de modo a arrastá-lo cimento a sistema de forças continuamente tendentes a recons-
até às últimas consequências, até à plena realização do sistema, truir. Quem é posto fora desse sistema porque se rebelou contra
isto é, à plenitude de vida em Deus, de um lado, e à autodes- ele, não é mais alimentado por essas forças criadoras, ou então
truição, de outro. Quem ascende tende sempre mais a substituir recebe apenas pequena quantidade de alimento, isto quando não
sua vontade isolacionista pela divina vontade universal; quem se rebelou completamente e somente em proporção à sua obe-
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 45
diência residual. A verdade, porém, é que, por esse caminho, o autodestruição, as forças do sistema continuam presentes, mas
rebelde caminha para a morte. Eis por que ele está automatica- sob forma negativa, e procuram, exatamente como dissemos,
mente condenado à autodestruição, pois, com suas próprias com a reação sanar a falha e curar o mal pelo emprego do re-
mãos, colocou-se fora da vida. Deus, a Lei, a Ordem significam médio da dor. Assim, aquilo que, à luz da psicologia corrente,
vida; Satanás, a rebelião, a desordem significam morte. Desse parece derrota e falência constitui o mais útil trabalho realiza-
modo, esgotamos a análise do problema do bem e do mal, le- do neste ciclo histórico, pois representa a obra de arrependi-
vando-o até à sua conclusão. Assim, observamos racionalmen- mento, de retificação, de nascimento de consciência e sabedo-
te, de um lado, as terríveis e automáticas consequências a cujo ria, obra saneadora dos erros cometidos. Dor acabrunhadora,
encontro vai quem escolhe o caminho que se afasta de Deus e, mas salutar, que nos tira do caminho da autodestruição e nos
de outro lado, como a verdadeira felicidade se torna possível e impele ao caminho da construção. Estamos, pois, vivendo um
nossa herança natural e por que essa felicidade apenas pode re- momento decisivo das teorias supra expostas. Poderíamos di-
sidir na consciente e ativa obediência à Lei. Tudo se reduz a zer que, hoje, estamos vivendo o período corretivo, de retifica-
adquirir a consciência dessa Lei e a superar a ignorância; tudo ção das posições subvertidas pelo homem. Não podemos fazê-
se reduz a compreender coisa tão simples e lógica, ou seja, que lo atuar senão através da subversão total dos atuais valores do-
Deus apenas pode querer, e quer mesmo, nosso bem. Se o ho- minantes. Tivemos hipertrofia de meios materiais e, no bem-
mem não fizer tão simples descoberta, todas as maravilhosas estar, atrofia do espírito; eis-nos, pois, nas posições inversas,
descobertas científicas hão de submergir na destruição. O gran- quer dizer, com pobreza de meios materiais e a dor que nutre e
de mal que nos engana e trai, consiste nessa ignorância, que nos enriquece. Assim, através da privação de tudo quanto anterior-
ilude com miragens, mostrando-nos a felicidade na revolta, mente abundou, com poucos frutos no sentido evolutivo, che-
exatamente onde não está nem pode estar. Em que se cifra o gamos ao desenvolvimento de tudo quanto anteriormente fal-
maior desejo do homem, senão na sua felicidade? Qual o maior tou, e isso com frutos para o progresso espiritual. Se quisésse-
desejo de Deus, senão a felicidade do homem? Só a ignorância mos definir o tipo da nova civilização e o comparássemos com
humana a respeito do pensamento de Deus pode tornar diver- o atual, poderíamos chamá-la civilização retificada. Tanto bas-
gentes duas vontades que tendem ao mesmo objetivo. Se lutam, taria para que a imaginássemos. Essa retificação a descreve em
é exatamente porque desejam ansiosamente abraçar-se e unir- continuação a tudo quanto vimos dizendo nestas páginas.
se. Por isso vivemos na experimentação e na dor. De fato, atra- Daí se vê não ser o homem, mas a Lei, quem dirige a histó-
vés de provas e mais provas, adquire-se essa consciência, que ria e a vida. O homem, agindo loucamente, chegou à desordem,
constitui a única solução do problema. mas a Lei, sabiamente, o reconduz à ordem. Hoje, a realidade
Apliquemos ao atual momento histórico tudo quanto dis- da vida grita aos ouvidos do indivíduo e dos povos esta neces-
semos. Nossa civilização materialista, se considerarmos os sidade inelutável e suprema: maceração na dor. A distinção
princípios que lhe deram origem e lhe dirigem o desenvolvi- humana entre vencedores e vencidos não tem, quanto a isso,
mento, sofre agora o inexorável processo final de autodestrui- importância alguma. A ciência encarou o problema do mundo
ção. Significa tentativa de instaurar o reinado humano da maté- material, mas ignora o do mundo espiritual; escapa-lhe o cálcu-
ria, sem e contra o reinado do espírito; de substituir Deus pelo lo dessas poderosas forças do imponderável, que hoje golpeiam
eu; de estabelecer, em lugar da ordem divina – em que, não o o homem. A erudição contemporânea não basta para compre-
homem, mas apenas a Lei dirige – ordem humana, em que só o ender o que está acontecendo ao mundo de nossos dias. Desco-
homem dá ordens. Foi ato de revolta, e agora vão-lhe sendo brimos leis da natureza e dominamos algumas de suas forças,
eliminados os resultados. Nessa fase, a nota dominante é a des- mas o fizemos egoisticamente, estupidamente, contra a Lei, isto
truição causada pela guerra, com que a técnica, primeira con- é, contra nós mesmos. Quanto bem obteríamos, se houvéssemos
quista da civilização, destrói a própria civilização. Isso é lógi- sabido dirigi-las com inteligência! Acima da loucura humana se
co e fatal. Hoje, Deus abandonou o homem ao destino que ele coloca a sabedoria divina, que agora nos impõe a reconstrução
quis preparar para si mesmo. Deus lhe diz: “Você pensou que do equilíbrio perturbado, imergindo-nos em banho de penitên-
sabia agir e quis agir sozinho. Agora você vai fazer isso até o cia. Na passagem se encontra a dor amiga para salvar-nos. Mas
fim. Você é livre, mas responsável. Faça experiência. Você há o homem não lhe compreende a função e ainda se revolta cada
de compreender à sua custa”. Hoje, o homem está perdido e vez mais. Com essa ilusória forma mental, sem preparo algum
abandonado no meio de cataclismos mundiais, em pleno ocea- para a vida áspera das horas apocalípticas, o homem está abso-
no de forças incompreensíveis para ele, sem a capacidade de lutamente fora do caminho. Colocou-se fora das fontes espiritu-
conduzir-se deste ou daquele modo. O poder que possui serve- ais do ser, e falta-lhe o poder que sustenta os que sabem atingi-
lhe apenas para feri-lo. Parte da negação e da dúvida e chega à las. Em última análise, estamos no ponto mais baixo da onda
inconsciência e à destruição. A dor constitui a primeira conse- histórica e precisamos percorrê-lo antes de podermos ascender
quência do sistema que se move em sentido involutivo, afas- novamente. Para o homem, a verdade e a sabedoria estão além
tando-se das fontes vitais. Essa dor, que acreditávamos saber desse trajeto. É duro, mas devemos percorrê-lo; chorando e
dominar, acabou sendo o verdadeiro resultado atingido; e a fe- sangrando, necessitamos chegar. O mundo acreditava que, com
licidade (que tão seguros estávamos de consegui-la) transfor- seus métodos conceituais e materiais, podia organizar a felici-
mou-se em miragem. A subversão do sistema produz resulta- dade em série, em máquinas, e estava a ponto de atingi-la, no
dos contrários. Hoje, as forças da Lei devolvem ao homem os entanto encontra-se em face de realidade cruel e bem diferente,
golpes que dele receberam. A dor, porém, não significa vin- constituída pelo poder criativo que a dor tem. Alguns, todavia,
gança de Deus, mas apenas reação salvadora, dirigida pelo in- compreendem, aceitam e ascendem. Constituem minoria sábia e
tento de reconduzir o homem à estrada que há de levá-lo à feli- silenciosa, abafada pelas vozes dominantes. Muitos, porém, não
cidade. Como não compreendeu nem seguiu espontaneamente compreendem e continuam a rebelar-se, maldizendo; reagem à
o caminho certo, gozou da liberdade de experimentar o cami- dor por meio de novo mal e, assim, ao invés de se afastarem do
nho errado, mas agora está preso e é obrigado a palmilhá-lo à redemoinho da regressão, cada vez mais afundam e lhe aumen-
viva força. A dor constitui espécie de violência indireta contra tam o poder. Assim, os bons tornam-se melhores e os maus, pi-
sua liberdade; é o determinismo da Lei, absolutamente desejo- ores; a distância entre os dois aumenta, até se separarem com-
sa do bem, que, pelo bem do homem, executa essa violência. É pletamente. Formarão dois turbilhões de forças, um voltado pa-
tentativa honesta de salvamento com que, estamos vendo, an- ra cima e outro para baixo. Este último agarra o outro, procura
tes de ausentar-se completamente, abandonando o rebelde à prender-se a ele para arrastá-lo ao fundo consigo, busca despe-
46 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
daçá-lo, a fim de aniquilá-lo; mas todo sistema contém em sua profícua. Que consciência, organicidade e poder espiritual de-
própria natureza o termo final de sua trajetória. Pelo princípio verá ele possuir para saber vencer sem ódio e sem armas, per-
da ascensão, a Lei levará os justos, aderentes à vontade dela, doando e dando! Espiritualmente falando, nossa sociedade as-
cada vez mais para cima, até à salvação, mesmo através de obs- semelha-se a campo agreste, a floresta emaranhada e selvagem.
táculos e provações, porém fará os rebeldes se precipitarem ca- Torna-se necessário transformá-la em plantação racional de
da vez mais para baixo, até à autodestruição. O atual espírito de rendimento intensivo, e a dor atual constitui grande escola de
destruição parece universal e poderá atingir a todos nós; mas, maturidade para todos nós. Precisamos, em todo campo em que
finalmente, terminará prejudicando apenas quem o pôs em existe o caos, introduzir a ordem e fazê-la substituir a desor-
ação, acredita nele e o merece. Hoje, os homens podem esco- dem; isso, porém, com métodos diferentes da dominação, em
lher: sobrevivência ou destruição. A dor impõe a solução da que todas as diferentes tendências humanas se igualam. É pre-
crise e o superamento da fase. Os sábios transformam-na em ciso fazer que todos compreendam e sintam por livre conven-
instrumento de vida para si mesmos, os estultos rebeldes trans- cimento e paixão, gerando sistemas substanciais, e não formais.
formam-na em instrumento de morte. Agimos mais por vias internas e espontâneas do que por vias
Este livro foi escrito em meio dessa tempestade, nessa at- coativas e externamente enquadradas. Não adianta mudar no-
mosfera apocalíptica, nessa hora trágica em que o mundo des- mes e programas. Importa, isso sim, o senso da vida e a moti-
morona e se recompõe. Não poderia nascer senão nesse terreno vação diretora; importa operar na substância e fazer o homem.
e nesse momento. Enquanto o pensamento se inflama, a alma A consciência coletiva não passa de frase sonora, mas sob ela
geme; os próximos bombardeios põem vibrações no ar, as cida- se esconde quase sempre apenas a inconsciência coletiva. O tu-
des se reduzem a escombros, a civilização vacila, a propriedade fão limpou o terreno. Vamos, agora, ará-lo, semear, tratar, fazê-
torna-se insegura, vivem somente na saudade a segurança do lar lo produzir. O ódio destrói. O amor deve reconstruir. Essa é a
e a vida civilizada. A morte passa e torna a passar por perto, linha de desenvolvimento de nossa época. Primeiro, a paixão;
sem deter-se ainda. Deus desce até perto de nós e nos fala. É o depois, a ressurreição. O involuído esgotou sua missão. Agora
momento sublime e terrível das grandes maturações. Cada vez chegou a vez do evoluído. Os amadurecidos são chamados para
mais o mal se encarniça e se torna cego em orgia de ferocidade, o trabalho, e, mais do que nunca, agora sua vida se transforma
e cada vez menos sabe o que faz. O bem, tranquilo e tenaz, en- em missão. Esgotaram-se as vãs tentativas dos experimentos
quadra a desordem e, como sabe o que faz, espera e modifica os materiais e verificou-se que os expedientes atuais não resolvem
resultados. As destruições da guerra são a força que o mal mo- o problema. Nada mais lógico, pois, que agora, a título de rea-
mentaneamente aplica a serviço do bem. A Lei conclama os in- ção e compensação e por meio de expedientes de tipo oposto,
feriores a funcionarem como instrumento de dor. Mas a dor tem se inicie outra qualidade de experimento, de natureza espiritual.
capacidade criadora, e a sua atual presença entre nós, e em pro- Apenas começamos a caminhar rumo ao bem e à sua reali-
porção assim tão grande, prova a iminência e a amplitude da zação na Terra, e já nos assalta o pensamento de que talvez se
transformação do mundo e constitui o precedente necessário trate de utopia. Isso, naturalmente, acontece porque nos afas-
para gerar nova civilização. Nas mãos da Lei, tudo isso se reduz tamos da dura realidade da Terra. Mas sabemos que o objetivo
a severa verificação e, em seguida, a extraordinária progressão da evolução consiste justamente nesse afastamento. Vimos que
da vida rumo a futuro melhor. Contra todos os negadores, o es- o mal pode constituir grande obstáculo, terrível resistência, no
pírito, para explodir, faz pressão de dentro para fora. O mal po- entanto o bem é o verdadeiro e definitivo senhor. A realidade
de suicidar-se; não pode, porém, destruir o eterno e divino im- quotidiana do mal contradiz o bem e o torna aparente utopia;
pulso criador. Nossa hora exige renúncia, liberação e desenvol- encobre como véu a verdade mais profunda, esconde-a dos vi-
vimento. Ascensão através da dor. olentos e até mesmo dos astutos; não a esconde, porém, dos
Deus tira os bens das mãos de quem os conquistou e não justos. A estrada é longa; mas a ascensão, fatal; e o mal não
sabe usá-los, tanto assim que de seu emprego só lhe resultam prevalecerá. Nem a insipiência, nem a traição, nem o erro, nem
danos e nenhuma vantagem. E concede-os novamente apenas o abuso, nada pode deter a maré montante do progresso. No
quando houver aprendido a utilizá-los. O homem, então, deve sistema está previsto que toda queda e todo mal tem remédio.
reconquistá-los com ânimo novo, de modo a transformar o da- As multidões são certamente ignorantes e cegas, sujeitas àqui-
no em vantagem. Assim, a pobreza sucede à riqueza. É lógico lo a que pode reduzir-se qualquer governo inepto, isto é, a se-
e até mesmo constitui benefício a quem faz mau uso de deter- rem esmagadas pela força e exploradas pela astúcia. Mas os
minado meio, adorando-o como se fosse um fim, perdê-lo e ser povos se iludem quando creem que, pela direção dos chefes,
reconduzido à ascensão, único e verdadeiro objetivo da posse. possam obter a orientação necessária, pois esta só pode provir
É também lógico e justo que apenas os dignos possam dispor de consciência coletiva, condição que os povos podem con-
dos bens e só os amadurecidos possam mandar e dirigir. Quem quistar apenas à custa do próprio esforço e através de duras
a Deus antepõe os ídolos acaba sendo expulso da vida. Toda- provações. Assim como os indivíduos, também os povos de-
via quem está com a Lei está com a vida. Pois bem. Aproxima- vem aprender por si mesmos, através de seus erros e dores.
se a hora da transformação do mundo. O super-homem pode Toda nova experiência política apenas serve para passarmos,
nascer apenas de lutas e dores assim titânicas. Será a transfor- progressivamente, de estado de inconsciência a estado de
mação do herói da matéria, do super-homem nietzscheano. consciência coletiva. Todavia, no fundo da atual inconsciência,
Mostrar-se-á valoroso na prática do bem, na capacidade de dar, o sentido da vida se manifesta em obscuro instinto que, embo-
de amar, ao invés de mostrar-se endurecido no mal, na agres- ra confusamente, indica às massas o caminho certo e lhes con-
são, no ódio. A bestial virilidade do homem no plano físico as- fere a capacidade de responder às vozes da verdade; mas isto
fixiante da guerra, se refinará e aumentará de poder na virili- somente se forem verdadeiras e sinceras e o evoluído, que vive
dade mais apurada do homem no plano espiritual. A luta não para cumprir missão na Terra, mesmo à custa do próprio sacri-
se travará mais por causa da seleção animal do mais forte, se- fício, souber gritar bem alto essa verdade. Somente dele pode
leção em que ainda alguém crê, mas em favor da seleção do ser a iniciativa da ascensão. Todos os valores humanos vão
mais justo e consciente; as guerras e as vitórias serão diferen- sendo continuamente explorados e subvertidos em favor de
tes, baseadas em princípios diferentes e conduzidas também vantagens pessoais. À custa do próprio sacrifício, o evoluído
com métodos diferentes. As batalhas do homem futuro serão deve repô-los no lugar certo, restituir ao homem tudo quanto
bem diversas. Esse homem será o soldado da paz, que substi- lhe roubaram, opor-se com o poder do vidente à força bruta e,
tuirá a guerra do ódio pela guerra do amor, muito mais difícil e com a honestidade, lutar contra a exploração.
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 47
Mas o futuro não depende apenas dos homens de boa von- observando-lhes o íntimo. Por isso nada de agressividade contra
tade. Preparam-no as leis da vida. A história é escrita por elas, e formas indignas de nos causarem a fadiga de combatê-las, mas
não pelos líderes que aparecem em cena e constituem meros apenas respeito e paz relativamente àquilo que para os demais
instrumentos de quem mais sabe, muitas vezes mais obedecen- assume tanto valor e, no entanto, para nada presta. De outra
do do que comandando. Tão logo desobedeçam ou se tornem forma, aviva-se mais o contraste, pois não se eliminam tais coi-
inúteis, a Lei os liquida, retirando-lhes a função a eles confiada. sas valorizando-as pelo combate que lhes movemos, mas ne-
Os homens tão-somente exprimem forças da vida, que se diri- gando-lhes importância e incentivo. Jamais o evoluído é nega-
gem a objetivos muitas vezes incompreensíveis para eles. tivo e destruidor, mas sempre positivo e construtor. Assim, tudo
Quando soar a hora da plenitude dos tempos, os amadurecidos quanto se torna inútil por si mesmo se destrói. Toda a energia
ouvirão dentro de si os apelos da vida, sentir-se-ão galvaniza- do evoluído se aplica em favor do bem. Tanto basta para em to-
dos e fortalecidos e hão de ver que o imponderável os impele à das as formas infundir calor, espírito e valor novo.
ação. Assim, a Lei, apelando para o íntimo de cada um deles, Essa nova classe de homens se distinguirá por meio de ca-
chama um por um os instrumentos da ascensão, os desperta e os racterísticas biológicas, e poderemos chamá-la classe dos sa-
põe em função. Passada a vez dos involuídos destruidores, con- cerdotes do espírito. O fato de nos desmaterializarmos na fun-
vocados nas horas negras da violência, chega a vez dos evoluí- ção espiritual aumenta-nos a capacidade de penetração e a po-
dos construtores, chamados nas horas luminosas do sacrifício. tência. Quanto mais a forma é imaterial tanto mais invulnerá-
Estes e aqueles, imperceptivelmente, se atraem e, quando sopra vel e resistente é aos esmagadores ataques exteriores e às frau-
o vento que os maneja, se confundem, cada qual com seus dulentas explorações interiores, ambos verdadeiras traças que
iguais, para somar esforços. Vimos e continuamos a ver a hora roem o ideal. Aqui, o sistema de forças protetoras se apoia no
dos primeiros, que deverá, contudo, esgotar-se. Para refazer o imponderável, e o princípio fundamental difere do comum.
equilíbrio da vida, vai chegar a oportunidade dos evoluídos. Não se trata de falar e parecer, mas de ser e dar o exemplo, de
Também estes vão atrair-se e juntar-se. Ao primeiro olhar, hão não pretender pregar moral antes de poder dizer: eu também
de reconhecer-se como colaboradores do mesmo ideal, sentir- faço assim. Não se trata de proselitismo superficial, que come-
se-ão homens da mesma estirpe e compreenderão mais. A revo- ça nos outros, mas de conquista profunda, começando em si
lução, desta vez, não é formal, mas substancial. Não se trata da mesmo. Mais do que de certa espécie de ordenamento religio-
costumeira luta para, com os mesmos métodos, substituir os ve- so, trata-se de certa espécie de ordenamento biológico, onde
lhos ocupantes das posições privilegiadas. A luta do evoluído automaticamente se enquadra o indivíduo amadurecido, que aí
não se destina ao predomínio deste ou daquele interesse, mas é permanece enquanto, por causa dessa maturidade, consegue re-
luta de deveres em favor da evolução. sistir; desse ordenamento está automaticamente excluído quem
Para refazer o mundo, tudo deve fazer-se contra a vontade mente, explora ou furta. A regra pertence à Lei; aceita-a e se-
do mundo. Por isso, antes de mais nada, método de vida des- gue-a apenas quem lhe apreende o sentido e compreende a vi-
pretensioso, sincero, honesto; novo estilo, acima de tudo inte- da. Do mesmo modo que a gratidão, os prêmios e o progresso,
rior, constituído de fatos, e não de palavras. Os fatos não são as sanções e as exclusões são automáticas. A polícia de contro-
necessariamente como aqueles hoje em dia observados, onde le está confiada às forças da Lei, que usam peso justo; quem
se vê grande número de adeptos e muito barulho. O número e o vale mais e mais possui deve dar mais e ter mais responsabili-
barulho estão naturalmente na razão inversa da profundidade, e dade. Trata-se de leis biológicas a que não podemos fugir; não
naquele caso a ação se processa em profundidade. O primeiro falham e, inexoravelmente, atingem o indivíduo, onde quer
trabalho se desenvolve no íntimo das pessoas, onde penetra- que esteja. A polícia de Deus se compõe de imponderáveis
mos persuasivamente, e não no exterior delas, onde domina- contra os quais não adianta rebelarmo-nos, pois são invisíveis
mos à custa de coação. Por isso não necessitamos da costumei- e poderosos; funciona com exatidão e segurança, não esquece
ra força dos dominadores, mas de convicção e de exemplo. Os e a todos, com suprema justiça, castiga ou premia.
novos homens não exibirão sinais exteriores, que o vestuário
possa mudar, mas sinais interiores, impressos no coração e na XV. TIPO BIOLÓGICO DO FUTURO
mente. Nem as funções, nem as condições sociais, nem a hie-
rarquia, nem qualquer outro motivo capaz de atrair o espírito O fenômeno de renovação já mencionado neste livro não
humano, ávido de poder e repleto de ambição, servirá mais do deve ser entendido isoladamente sob um só de seus numerosos
que uma vida corretamente vivida, para estabelecer distinções aspectos, seja social, político, religioso, econômico, intelectual,
entre os homens. O posto mais alto pertencerá a quem mais dá, moral, artístico etc. Devemos entendê-lo, isso sim, no vastíssi-
embora menos possua, a quem se sobrecarrega com mais tra- mo sentido de fenômeno biológico. Quer dizer, trata-se de ma-
balhos e obrigações. Principalmente, saibamos viver o mais turação evolutiva do tipo humano, a qual lhe permitirá a exata
possível desprovidos de riqueza, para nos tornarmos invulne- apreciação do imponderável, que agora lhe escapa e produz a
ráveis aos ataques do involuído, que a deseja sobre todas as falência do espírito no trato das coisas humanas. Não se torna
coisas, e para o mantermos afastado de nós, pois não sabe vi- necessário criar mais coisíssima alguma. Os elementos já exis-
ver em atmosfera de pobreza e sacrifício. As potências espiri- tem entre nós. Trata-se apenas de orientá-los, de saber dirigi-los
tuais devem estar em condições de substituir qualquer bem da com a lógica hoje inexistente, isto é, de reordenar a desordem.
Terra. Não é verdade que a riqueza e o poder se tornem abso- Sabe-se que o método e a organicidade permitem muito maior
lutamente indispensáveis para a execução de qualquer tarefa. rendimento a qualquer trabalho, poupando-o de tantas disper-
Os grandes meios utilizados pelo mundo são quase sempre sões e atritos. Atualmente, estes custam dinheiro, fadigas, dores
meios fornecidos pelo mal. O bem pode prescindir deles, mas, imensas. A compreensão mútua, estabelecendo um desarma-
em compensação, necessita entusiasmar-se, fazer primeiro e só mento mental que nos permita olhar sinceramente uns nos olhos
depois mandar que façam, sentir e viver integralmente a paixão dos outros, não para nos enganarmos reciprocamente, mas sim
do bem. O que se leva em conta é o ânimo, o valor intrínseco para nos compreendermos, significaria a maior libertação ja-
do indivíduo, e não o poder econômico, a posição social, a con- mais conhecida pela humanidade. Quando o ser superou deter-
dição externa. Grandes meios podem reduzir-se a bagatelas, e minada fase evolutiva, a lei relativa a essa fase torna-se para ele
títulos pomposos, camuflar nulidades. Não mudamos nada do uma prisão, da qual necessita fugir para libertar-se. Essa prisão
que está do lado de fora e carece de importância. O evoluído, é justamente no que vai-se transformando cada vez mais a mo-
extremamente sensível, reconhece e classifica os homens, mas derna concepção social do homem, que está fazendo esforços
48 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
titânicos para escapar. A lei de seleção do mais forte não lhe foi quica, cada dia mais necessária no novo mundo futuro. Se, so-
inútil no passado e, de fato, permitiu à raça humana o domínio cialmente, o novo tipo biológico será o homem orgânico, indi-
material do planeta, através do método bestial da subjugação vidualmente será o homem do espírito. A vida e o progresso
violenta. A Lei permitiu que o homem adotasse esse método. que a intensifica residem no espírito. Na intimidade imponde-
Esse fato demonstra como, em certo período, tal método se tor- rável do ser, aí onde ele atinge as divinas origens da vida, exis-
nou útil e necessário. Hoje, porém, a posição do homem mu- tem inexauríveis capacidades de desenvolvimento. O universo é
dou. Tornou-se senhor do planeta e agora luta mais contra os semente desejosa de desenvolver-se em direção a Deus, incapaz
semelhantes do que contra os elementos e as feras. Atingiram- de resistir e não ceder à pressão interna do espírito, que tem
se os objetivos da seleção animal, por isso esse método não cor- pressa de manifestar-se, e da divindade interior, desejosa de ex-
responde mais às finalidades da vida, agora diferentes e mais primir-se sob formas de perfeição crescente. Há novos conti-
nobres. A evolução elevou-os bem mais alto, diz respeito a ou- nentes a desvendar, novas minas a explorar, novas fontes de
tros objetivos, empreende outras construções e não pode retar- energia a descobrir e empregar. Nossa involução é que traça li-
dar-se no caminho já superado. Hoje, caminhamos para a orga- mite para nosso domínio. O universo, junto de nós, inexauri-
nicidade; este é o fim que a Lei pretende fazer-nos atingir. Ora, velmente rico, dispõe-se a ceder-nos as suas riquezas, mas, co-
o método de luta para seleção do mais forte é antiorgânico por mo é lógico, nega-as ao primitivos, incapazes de fazer bom uso
excelência e, realmente, não corresponde mais ao objetivo; re- do poder. O universo não responde aos inconscientes, que não
presenta regime de desordem justamente aí onde se deve com sabem tocar-lhe nas cordas mais sensíveis. Não o compreende-
toda a urgência impor ordem. Trata-se de fenômeno natural de mos, não lhe conhecemos as leis; ferimos sua ordem ao nos re-
retificação e ordenamento que, conforme verificamos, se pro- belarmos, movidos pela pretensão de substituí-la por nossa von-
cessou até mesmo no mundo astronômico e geológico, depois tade; e como resposta, em vez de amizade e doçura, obtemos
do período caótico da formação. O mesmo fenômeno deverá repulsa e hostilidade. Colocamos de lado e maltratamos as for-
processar-se também no mundo social. A lei da luta para sele- ças espirituais, exatamente as mais importantes. Porém nada
ção do mais forte serviu até agora para o animal e para o ho- podemos ignorar em organismo onde tudo se relaciona. O po-
mem-animal; não servirá para o novo tipo biológico em prepa- der e o futuro residem na sensibilização e na desmaterialização,
ro. Neste novo plano em que está entrando esse novo tipo, tal ou melhor, no domínio de forças cada vez mais sutis, aliás, as
seleção, ao invés de beneficiar, prejudica, pois não representa mais poderosas. O poder está sediado na profundeza, na imate-
progresso, mas regressão a tipo superado ou em vias de supe- rialidade, e nós o conquistamos caminhando rumo às raízes do
ramento, que hoje não significa ascensão, mas queda. Torna-se, ser e às origens da vida, isto é, em direção a Deus.
pois, necessário novo princípio e novo método seletivo, ade- Observemos, para compreender melhor, este caso de sutili-
quado aos novos objetivos a atingir, isto é, diferente forma de zação da forma por meio de elaboração evolutiva, quer dizer, es-
luta para novo modo de seleção, não dos melhores unicamente te caso de sensibilização e espiritualização. A princípio, e do
sob o ponto de vista da força, mas dos melhores em inteligên- ponto de vista biológico, a mão do homem foi um dos membros
cia, sensibilidade, consciência, bondade e sabedoria. Se esses que o tronco produziu para facilitar a marcha, e isso já era a
elementos não se faziam necessários para o tipo vencedor- primeira manifestação de vontade interior dirigida para objetivo
destrutivo, imperador de escravos, são indispensáveis ao novo elementar. Depois, esse membro se destacou da terra e se trans-
tipo biológico, de homem orgânico e, por isso, consciente. Os formou em órgão apreensor e instrumento de ação e de trabalho,
princípios que orientam a luta e a seleção pertencem à lei de como manifestação de vontade mais complexa e mais inteligen-
evolução, e não podemos destruí-los. Mas, se o homem quiser te, embora presa ainda à forma material da estrutura ósseo-
libertar-se da animalidade, deve assumir agora conteúdo dife- muscular, de que estava em estreita dependência. Hoje, a mão se
rente, quer dizer, formas e objetivos diferentes. vai sempre transformando de instrumento físico em instrumento
Observemos mais de perto esse fenômeno de transformação psíquico, vai tornando-se tentáculo nervoso cada dia mais ágil e
biológica evolutiva. A vida é criação contínua, obra de forças sensível e passando de agente físico a órgão dirigente de outras
invisíveis que trabalham internamente, dentro de formas exteri- energias, inclusive da muscular. Assistimos a um processo de
ormente caducas e sujeitas a incessante metabolismo renova- desmaterialização, sensibilização e espiritualização, ao qual cor-
dor. Todas as coisas se movem e se mantêm permanentemente responde progressivo aumento de poder em extensão e profun-
vivas por causa dessa inexaurível fonte interior, que se chama didade. Continuando no mesmo caminho, a mão, gradativamen-
Deus, centro dinâmico e conceitual do universo. Tudo se ali- te transformada de instrumento de marcha em órgão apreensor e,
menta, se mantém e se origina do espírito imortal, alheio às vi- depois, em órgão diretor de forças, transformar-se-á em meio de
cissitudes da forma. Através da evolução, a forma se sutiliza, recepção e transmissão de vibrações dinâmicas e psíquicas, an-
torna-se transparente, de modo que a divina essência das coisas tena para comunicar e receber energia e pensamento. Então, o
pode, assim, tornar-se cada vez mais evidente. Assim, essa cri- poder interior do espírito poderá aflorar de tal maneira da pro-
ação contínua constitui renovação evolutiva, que, agindo atra- fundidade do ser, que há de permitir ao homem comunicar-se e
vés da maceração, elabora incessantemente a forma e, assim, viver em comunhão com as infinitas energias do espaço.
tornando-a cada vez mais adequada a exprimir a íntima subs- O mesmo processo se repete relativamente à visão, à audi-
tância animadora, lhe dá sempre maior sensibilidade e atualida- ção, a todas as vias sensoriais, ao sistema nervoso que as dirige,
de à manifestação da Lei. Desse modo, evolução significa espi- ao cérebro que as centraliza, enfim a todas vias através das
ritualização e percorre a estrada que sobe até Deus. De seme- quais o espírito se comunica, recebe e se manifesta. O espírito
lhante progresso nascerá o novo tipo biológico, base das huma- exerce pressão de dentro para fora com o fito de tornar menos
nidades futuras. A mesma natureza do fenômeno nos indica densa e romper a casca material da forma humana, para ampliar
quais as suas características, que são, aliás, redutíveis a uma só as vias sensórias já conhecidas e descobrir outras, a fim de, em
palavra: espiritualização. Isso significa tornar-se mais dinâmi- melhores condições, mais abundante e profundamente servir à
co, percuciente, sensível, ou seja, menos rude e obtuso. O novo circulação das ideias. Assim, os sentidos que o espírito produ-
tipo representará forma cada vez mais nervosamente seleciona- ziu, cada vez mais, por força dele, se ampliam e se abrem às in-
da e eleita, na progressiva exaltação das características elétricas finitas vibrações do universo; assim também, pouco a pouco, o
da vida, em detrimento das características puramente físicas. A ser se espiritualiza, isto é, evolui do estado físico ao estado vi-
pesada musculatura animal, sempre mais inútil nas novas con- bratório, sai da forma material definida e assume forma etérea
dições de vida, há de ser substituída por poderosa estrutura psí- radiante. A evolução consiste realmente na maceração da forma
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 49
material, que, a princípio vestimenta e veículo, se transforma A inquieta agitação de nosso tempo, embora desordenada e
depois em obstáculo e prisão e, por isso, é continuamente supe- confusa, apresenta-se sempre como manifestação de dinamis-
rada e renovada pela evolução. Este princípio, válido no passa- mo, que pode derivar tão-somente da pressão interna do espíri-
do humano, deve continuar com o mesmo valor no futuro. O to. Individual e coletivamente, o divino principio quer plas-
desgaste da forma não constitui debilidade do sistema, mas mar-se em novo homem e novo mundo, numa forma que mais
apenas dura necessidade evolutiva, simples processo de liberta- se adapte a outra manifestação sua, mais elevada. Estamos
ção que ao espírito aí preso permite manifestar-se. Por isso a ainda na fase caótica da tentativa, dos resultados provisórios e
maceração física e moral é criadora, embora em nossa vida nos incompletos, da experimentação enganosa, mas tal dinamismo
pareça tão destrutiva, e a caducidade das coisas humanas, que provém sempre deste impulso interior e dele é sintoma revela-
tantas lágrimas nos causa, manifesta-se apenas na forma e cons- dor. Na desordem das organizações apressadas sente-se hoje o
titui a condição necessária para que a vida perene surja de den- organismo precursor. O involuído começa a acordar estremu-
tro da forma. Por isso os golpes dolorosos nos conduzem à vi- nhado. É ação inicial de composição, mas de massas, pouco
da, ao invés de, como parece, levar-nos à morte. profunda, porém muito extensa. Por isso damos hoje tanta im-
O espírito quer fugir da prisão; apenas nisto pode consistir o portância à quantidade expressa pelo número. Certamente, o
progresso, e contrariá-lo significa contrariar o impulso funda- mundo hoje não está dormindo, e na vida nenhuma agitação é
mental do universo: libertação da forma e manifestação de vã. Quando está saciada, vemo-la em repouso, e, quando tudo
Deus. Quando a centelha interior ainda não está preparada para está calmo, nada se cria. Quando, de acordo com seu grau evo-
desenvolver-se, a evolução se manifesta através do único meio lutivo, o ser se aproximou o mais possível da divindade, não se
utilizável, a via dos sentidos; eis como surgem os gozadores, agita mais e seu dinamismo fica em suspenso, pois seu funcio-
epicuristas e sensuais. Todo ser possui as vias que merecida- namento não tem mais razão de ser. Mas, em conformidade
mente ganhou. Nesse caso são escassas, e o espírito, insatisfei- com o ritmo da Lei, tão logo se retome o ciclo ascensional e
to, reclama. Mas o involuído não dispõe de outras saídas e agar- nova maturação o acompanhe, o espírito, mais desenvolvido
ra-se desesperadamente às disponíveis; quando chega a morte, então, exerce pressão de dentro para fora e começa a chocar-se
desespera-se de, perdendo-as, perder tudo, pois, desprovido de contra os antiquados limites, para superá-los. Assim, a evolu-
órgãos físicos, é incapaz de receber e transmitir, acostumado ção, embora contínua, se manifesta por transformações perió-
como está a vibrar apenas sob as formas mais grosseiras da ma- dicas, em que se concentra a expressão de longas e lentas ma-
téria. Sua vida prende-se estreitamente ao corpo e, para não turações subterrâneas. A vida deve e quer obedecer e, se não
permanecer morto sem ele, busca-o de novo por ocasião de no- pode ou falha, chora na dor de não poder ou na desilusão de
vo nascimento físico, como única forma de vida. Ao contrário, não ter sabido ascender, chora a traição que praticou contra a
o espírito esclarecido pela evolução superou os meios sensori- Lei e paga com a própria ruína. A música de Mozart exprime a
ais e lhes despreza a pobreza; mais do que meios para sua ma- harmonia e o equilíbrio que seu plano atingiu em seu século;
nifestação, considera-os como forma de aprisionamento, pois fala, por isso, de paz tranquila e saciada. A música de Beetho-
são agora insuficientes para saciá-lo; quando morre, perde-os ven nos fala das tempestades e dos titânicos esforços criadores
sem amargura e não os procura de novo por ocasião de novo daqueles tempos. A música de nossos dias, desarmônica e de-
nascimento físico em nosso mundo. Quem se tornou mais sen- sequilibrada, exprime o desmoronamento deste mundo e um
sível, espiritualmente falando, dá naturalmente muito menor va- dinamismo levado à máxima exasperação, em busca de novo
lor ao mundo sensorial. O evoluído difere do involuído não mundo, que estamos esperando e ainda não sabemos encontrar.
apenas do ponto de vista moral e social, mas também como es- Todo estado de plenitude é calmo e todo estado de vácuo, insa-
trutura biológica. O involuído representa centelha espiritual tisfeito e agitado. O evoluído tem estases em que as forças se
ainda mal acesa, envolta por densos véus, encerrada em envol- equilibram e repousam. Trata-se de fase de maturidade da
tórios de trevas e, por isso, centelha ainda fraca e rudimentar, combinação dessas forças em sistema. Mas, apenas a alcança,
perdida na enorme casa do corpo. O evoluído, ao contrário, re- o impulso interior da vida continua a movimentar essas forças,
presenta centelha de incêndio, que queima os véus e funde os tentando combinações mais elevadas e complexas. Daí resulta
envoltórios da forma; por isso é poderosa e complexa unidade novo desequilíbrio a ser reequilibrado, nova lacuna a preen-
espiritual angustiada na casa do corpo. Assim, da vida físico- cher e assim por diante. Os períodos de saciedade satisfeita re-
sensorial o primeiro receberá sensação de alegre expansão, e o presentam objetivo atingido, e os de desequilíbrio insatisfeito
segundo, de dolorosa compressão; e onde este há de sentir-se significam objetivo a ser atingido. Os primeiros já chegaram e
vivo e flamante, o outro olhará emudecido e sem capacidade de agora repousam, os demais acabam de partir e estão correndo
compreender. A vida é totalmente diversa, embora a forma ex- ainda. Estes constituem-se de espíritos demolidores, críticos,
ternamente visível seja a mesma e nela, muitas vezes, se basei- inovadores. Aqueles representam a felicidade em que se resu-
em os juízos humanos e as leis sociais. A vida pode ser para me e beatifica a ignorância de sermos felizes. Porém, tão logo
quem vale menos muito mais cômoda e bela do que para quem começam o desequilíbrio e o desacordo, a luta e a dor apare-
vale mais. Hipertrofia espiritual e excessivo desenvolvimento cem; então, analisa-se a felicidade, que, analisada, desaparece.
interior podem significar incompatibilidade com o ambiente e Ela, porém, torna-se consciência e base construtiva de felici-
impossibilidade de adaptar-se-lhe. Então, o criador ultradinâ- dade mais completa. Assim como esta nasce da dor e como a
mico parece maluco aos olhos dos estúpidos dorminhocos, as- ciência se originou do sofrimento, também a grandeza e a for-
sim como quem fica dormindo se mostra muito mais equilibra- ça nascem da fragilidade e da fraqueza. Nossa época mostra-se
do do que quem caminha ou voa. Para os que jazem tranquilos inquieta, analista, dolorosa; possui, sob forma destrutiva e em
na inércia, o evoluído talvez pareça explosivo e perigoso; quem sentido negativo tudo quanto, sob forma construtiva e em sen-
enxerga longe perturba os pequeninos cálculos aproximados e tido positivo, deverá conquistar mais tarde.
seguros, é aventureiro e revolucionário, incomoda e ameaça. O Com esses poucos traços, esboçamos vários aspectos do fu-
involuído condena-o e combate-o, mas sem ele, sem essa cente- turo tipo biológico e enquadramos, no fenômeno evolutivo
lha animadora, permaneceria pobre e débil; sua segurança, se universal, nossa época e sua criação biológica. Desse modo,
de um lado é tranquila, de outro lado é anticriadora, é o sono desenvolvemos alguns conceitos de A Grande Síntese. A titulo
dos mortos. A evolução, que espiritualiza, também dinamiza e, de referência, reportamo-nos aos principais – Cap. XLIII: “A
assim como caminha em direção à vida, conquistando-a cada maturação dessa super-humanidade constituirá a maior criação
vez mais, também caminha rumo à potência. biológica de vossa evolução, pois representa passagem para lei
50 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
de vida superior...”; Cap. LII: “Tudo que nasce deve renascer preendem a Lei, não perde mais tempo e trabalho correndo
cada vez mais profundamente”; Cap. LXXV: “Eu lhes disse atrás de paraísos irrealizáveis.
que vocês estão em grande curva da vida do mundo; a Lei, que Neste capítulo, ao delinear o perfil do futuro tipo biológico,
a maturou durante dois milênios, hoje vos impõe essa revolu- falamos principalmente a respeito de sensibilização nervosa,
ção biológica. Os fatos, que sabem fazer-se ouvir por todos, exatamente porque foi em especial sob o aspecto biológico que
hão de obrigar vocês também. Trata-se de movimentos mundi- estudamos esse fenômeno evolutivo. Sabemos, porém, que essa
ais de massas e de espíritos, de povos e de conceitos, movi- via biológica de ascensão se relaciona com a via moral, é até
mentos profundos a que ninguém escapará. Mas, antes dos fa- mesmo condição desta e meio de atingi-la. Trata-se, na evolu-
tos falarem e de se desencadearem as forças mais baixas da vi- ção biológica, de elaboração orgânica que caminha rumo ao
da, deveria falar o pensamento, dever-se-ia avisar a fim de que imponderável. A sutilização e a desmaterialização do invólucro
quem pudesse entender entendesse”; Cap. LXVI: “A lei do físico torna-o cada vez mais transparente e, por isso, evidencia
progresso impõe a continua dilatação do espírito. A evolução mais a manifestação do espírito. E é no plano espiritual que o
se dirige irresistivelmente ao superconsciente, ao supersensí- dinamismo da vida consegue esse refinamento, capaz de permi-
vel”; idem: “Desde que cresce cada vez mais o campo que do- tir-lhe o aparecimento em sua forma moral. Tudo isso que é
minamos no âmbito do consciente, desloca-se progressivamen- evolução e sensibilização orgânica, portanto, somente pode
te o limite sensorial, o sobre-humano torna-se humano; o su- conduzir à evolução e sensibilização moral. A bondade e a sa-
perconsciente, consciente; e concebível o inconcebível... o bedoria do futuro tipo biológico, por isso, podem também ser
meio material se aperfeiçoa e se torna tão sutil que atinge as atingidas através do metabolismo orgânico, capaz de permitir
raias da desmaterialização... ”; idem: “O homem, desse modo, transformação lenta da estrutura celular. Todos os aspectos da
cada vez mais se afasta da forma animal, através de contínua vida se relacionam reciprocamente, e todas as suas maturações
desmaterialização de funções, que leva a progressiva desmate- caminham lado a lado. A transformação evolutiva é orgânica,
rialização de órgãos. A vida humana se concentra cada vez nervosa, psicológica, conceitual e, ao mesmo tempo, moral –
mais na função psíquica diretora...”; Cap. LXII: “Evolução bi- refinamento de estrutura celular, sensibilização, bondade, com-
ológica, para nós, significa evolução psíquica...”, “... absurdo preensão. Essa passagem da fase involuída para a evoluída
conceber as formas como fim de si mesmas, evoluindo sem ob- constitui, assim, profundo processo que se apossa de todas as
jetivo, sem continuidade, justamente onde as precede eterno qualidades humanas, da extremidade física à extremidade espi-
transformismo...”; Cap. LI: “Observem como nossa entrada no ritual da vida, elabora completamente o ser e, por expansão in-
mundo biológico se processa justamente por via das formas terna, plasma de novo a forma, tornando-a cada vez mais apta a
dinâmicas. Com a eletricidade, situada no vértice dessas for- exprimir o espírito. Nisso se revela a organicidade da natureza e
ças, não chegamos apenas à forma, mas ao próprio princípio da o princípio unitário, monístico, do universo. Parece que, duran-
vida, ao motor genético das formas... Tocamos... não a evolu- te essa passagem, vibram todas as fibras da vida, que responde
ção dos órgãos, mas a própria evolução do Eu, que os adiciona em todos os graus evolutivos ao novo apelo dos tempos e se
e plasma para si, como instrumento da própria ascensão”; Cap. move, sintonizando seu ritmo com a harmonia do universo. As-
LXIII: “Vejam como tudo quanto existe se origina de princípio sim, a ordem biológica ascende ainda mais para Deus, que aí se
que age sempre de dentro para fora, e não de fora para dentro, revela ainda mais; assim, a vida exulta ao aproximar-se nova-
princípio encerrado no íntimo misterioso do ser...”; idem “Esse mente do objetivo, e as consciências ouvem cada vez mais claro
o princípio que se desenvolve internamente, exteriorizando-se o canto perene da fonte. Nova revelação de Deus as atinge pro-
a partir desse centro profundo em que vocês devem verificar a fundamente e as desperta, para criar, criar mais, formas cada
existência da essência das coisas e o porquê dos fenômenos. vez mais próximas da perfeição. Ascender é ser feliz. Treme o
Deus é a grande força, o conceito que opera na intimidade das grande ritmo do tempo, suspenso em solene espera. O homem
coisas e daí se expande...”. novo vai nascer. A vida quer falar-nos de Deus cada dia mais
Concluindo com este argumento, poderíamos dizer que o claramente, pois ela é Sua glorificação.
homem atual está para o futuro tipo biológico assim como o
pré-histórico pitecantropo está para o homem atual. Tal como XVI. VISÃO (1o TEMPO)
sucedeu para o pitecantropo, o homem atual também se encon-
tra no ambiente adequado. A diferença nasce quando, dentro da Todo capítulo deste livro, como todo capítulo da vida, é
própria fase, nos retardamos. A marcha da evolução é harmo- quadro diante do qual paramos contemplativos. Esses qua-
nia, desenvolvimento sinfônico de infinitas forças, maturação dros, que estamos desenvolvendo, se poderiam também cha-
orgânica. Já observamos o evoluído, como antecipação hoje mar contemplações. No último deles, o universo nos apareceu
ainda excepcional. Mas a evolução caminha para a generaliza- como floração de vidas. Seu transformismo evolutivo é de-
ção desse tipo mais adiantado. Quem se atrasar, quem não senvolvimento contínuo, em que parece reproduzir-se em di-
abandonar sua fase, retardado na maturação de todo o concerto mensões gigantescas a técnica expansionista da semente, a lei
de forças, em verdade será inferior a todo o resto. O futuro tipo de desenvolvimento do indivíduo, o mecanismo da maturação
biológico é, pois, o evoluído. O estudo que a cada passo, sob da vida, como se no ciclo vital de toda criatura se repetisse em
tantos aspectos, dele fazemos neste volume, serve para dar-nos ponto pequeno o mesmo esquema do ciclo vital do universo,
dele o retrato de corpo inteiro; neste capítulo apenas o descre- máximo organismo coletivo. De fato, até mesmo os universos
vemos sumariamente. O atual involuído poderá negar, rir, rebe- nascem, crescem, envelhecem e morrem, para, como todo ser
lar-se; tem essa liberdade. Apenas verificamos, objetivamente, vivo, renascer e morrer de novo. Também eles passam por
como funcionam as leis da vida. Contudo hoje, com certeza, o alegre juventude e cansada velhice, nascem de um germe e, ao
mais pisado pela dor é ele, e não o evoluído, que já se despren- morrer, deixam seus despojos mortos. Todos os fenômenos
deu da Terra; os mais golpeados e destruídos são os tesouros parecem desenvolver-se de acordo com um só esquema, cuja
terrenos do primeiro, e não os espirituais do segundo; àquele aplicação gasta todas as coisas, consome toda força, encerra
competirá, pois, encontrar solução e saída que lhe convenham, todo ciclo, exaure e extingue toda vida.
porque este já as encontrou. O evoluído nada mais tem a perder Mas voltemos agora as vistas para outra contemplação, de
ou temer na Terra, pois suas riquezas são invulneráveis. Por índole diferente. Para que, depois da tensão conceitual prolon-
meio da sabedoria e da comunhão com Deus, já conseguiu o gada até agora, o leitor descanse alguns momentos; para satis-
único paraíso possível na Terra e, tal como aqueles que com- fazer outras exigências espirituais, diferentes das intelectivas e
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 51
racionais, e também outras da fantasia e da paixão; para, final- rios significados, superficiais ou profundos, conforme a capaci-
mente, expor os mesmos problemas, não mais sob forma racio- dade de compreensão do leitor. Nela existe, afora o sentido su-
nal e abstrata como até agora, mas dramatizados em cena bem perficial, de mera narração, o sentido espiritual, mais potente,
sintética, relatemos a visão que, em meio de emoções turbilho- simbólico, que à índole mais ou menos madura do leitor cabe
nantes e na profundidade de ensurdecedor silêncio, tivemos em saber discernir. Mais especificamente, o relato da visão pode
luminosa manhã de maio. Aqui a reproduzimos com objetivi- ser interpretado conforme três níveis, três planos, correspon-
dade cinematográfica, tal qual, emergindo das profundidades da dentes aos três planos evolutivos de nosso universo, quer dizer:
consciência, se nos revelou, na roupagem teatral com que o matéria, energia e espírito. Em outras palavras: podemos “vê-
pensamento abstrato se concretizou no sonho, se é que, ao me- la” como forma, na aparência exterior com que surge em cena,
nos em substância, não lhe podemos chamar intuição ou pres- na periferia, como fato material enfim; ou, então, “senti-la”
sentimento profético. Os fenômenos de visão interior exami- como dinamismo motor dessa forma e dessa sucessão de cenas,
namo-los no Cap. XXVI deste volume, a respeito da vida dupla. mais internamente, como vibração animadora do fato material;
Vamos por algum tempo mudar a forma mental, a fim de po- e, finalmente, “intuí-la” como princípio espiritual que, do cen-
dermos falar à inteligência e ao coração, para alimentar também tro, dirige os movimentos desse dinamismo e, reunindo-os na
essa outra qualidade da alma humana. Todo tipo de leitor en- mesma trajetória, os guia de acordo com pensamento e finali-
contrará neste livro a linguagem que se lhe adapte. O tipo raci- dade bem determinados. Essa penetração progressiva, cami-
onal, mais capaz de pensar do que de chorar e amar, poderá es- nhando da superfície à parte mais profunda, da periferia ao cen-
colher os capítulos racionais. Todavia, no vasto complexo hu- tro, exemplifica o modo como podemos compreender o univer-
mano, além das ressonâncias do intelecto, há outras pelas quais so, de conformidade com sua estrutura. Eis a visão que eu tive.
podemos comunicar-nos. E todo leitor reage, segundo persona- Na basílica de São Pedro, em Roma, templo máximo da
líssima capacidade de vibração, quando sente tocarem na sua cristandade, imensa multidão se reunira junto ao túmulo de seu
corda sensível, e isso mais por mera sintonia do que por ativi- fundador, o primeiro entre os apóstolos. Ninguém saberia dizer
dade do raciocínio. Do contrário, não sendo tangido, mostra-se que pressentimento levara tanta gente a assistir a ritual por si
surdo, permanece imóvel, não sabe responder, e toda demons- mesmo tão comum. O instinto das massas, reconheçamo-lo,
tração se mostra inútil. Que coisa é a convicção, além de espon- percebe a aproximação das horas apocalípticas da vida; fazia
tânea e uníssona vibração? Essa vibração pode nascer mais fa- alguns dias que havia qualquer coisa no ar, angustiando as al-
cilmente da persuasão e da paixão pessoal do que do frio racio- mas. Seria, talvez, a sensação confusa da extraordinária gravi-
cínio. A convicção não é processo lógico, mas estado vibrató- dade da hora; ou, quem sabe, a espera de novos acontecimen-
rio; não nasce, por isso, do raciocínio, mas da radiação psíqui- tos, de algo decisivo naquela conjuntura histórica; ou, então,
ca; não resulta de argumentação cerrada, mas de acordo vibra- maus pressentimentos, que nenhum fato concreto poderia justi-
tório por sintonia do pensamento. O processo não deve ser coa- ficar racionalmente. Disso tudo nascera em tantas pessoas a ne-
gido, mas espontâneo. Pelo contrário, nada, como a presença da cessidade de se aproximarem, de se encontrarem de novo, de se
vontade que tenda a impô-las, afasta tanto assim a compreensão reunirem e novamente travarem conhecimento; e isso precisa-
e a convicção; e nada nos persuade e arrasta com tanta força mente naquele templo, cujo poder de atração parecia dever-se à
como a existência, naquele que fala, de sentida e sincera con- sua ligação com o estado apocalíptico das coisas. Naquele mo-
vicção. Daí se depreende quanto o velho sistema da coação ló- mento, a basílica assumia particular significado, talvez mesmo
gica se revela absurdo e ilusório, se com ele pretendermos re- único, quanto ao sentido finalístico – significação sobre-
solver o problema da convicção das consciências. Esse método humana, capaz de permitir o restabelecimento dos contatos, há
coativo mais ou menos se origina da luta e consiste em transfe- tanto tempo perdidos, entre o homem e Deus. Assim, em plena
rir para o plano psicológico o sistema do involuído, no qual a noite espiritual dos séculos, o tempo surgia como luminosíssi-
força significa vitória. Mas o pensamento está bem mais acima, mo farol. Por isso, se era ordinária a forma ritual, aquele mo-
e seu valor escapa-lhe. Assim, o desejo de proselitismo, ao in- mento se revelava extraordinário para a vida do mundo. A guer-
vés de atrair, costuma repelir, pois provoca desconfiança; o de- ra acabara, deixando-nos, após longos anos de tormento, com-
sejo de conquista excita resistência. Por isso, quando argumen- prida esteira de dores maiores ainda. Tantos sofrimentos havi-
tarmos, convém nos limitarmos sempre a expor, sem jamais am amadurecido os espíritos para novas atitudes, tornando-os
pretender forçar a persuasão, que é simples ato de adesão es- dispostos a novos superamentos. E, instintivamente, a alma do
pontânea; sendo assim, toda atitude que lembre a força e a im- mundo esperava, para renovar-se, que de Deus viesse a primei-
posição tende a resultados absolutamente negativos. Não é a as- ra centelha, como prova, exemplo e estímulo; esperava o sinal
túcia raciocinadora, nem a chicana sutil, nem o desejo de fazer que indicasse e abrisse o novo caminho.
prosélitos que me fornece substância ao pensamento e me ani- O templo estava repleto. Jamais se vira tanta afluência de
ma a palavra, mas a flama da fé e a profundeza, a evidência, a povo. Irresistível impulso levara tanta gente a acorrer de todas
intensidade da própria visão. À guisa de disco fonográfico, as as partes do mundo, que poderíamos seguramente dizer que o
palavras registram-lhe escrupulosamente a radiação e, assim, a templo máximo da cristandade, naquele momento, abrigava os
reproduzem ao leitor. A palavra falada ou escrita não passa de maiores e melhores expoentes de toda humanidade. Segundo
vibração fonética ou graficamente expressa, vibração dirigida à parecia, a cristandade, mais do que ao apelo formal, obedecera
formação de outras vibrações. Se ela, embora brilhantemente ao apelo apocalíptico da hora, à irresistível necessidade de, na-
vestida, é substancialmente falsa, apenas poderá gerar vibrações quele momento, dar solene testemunho de fé, reunindo-se una-
falsas. Por isso o silogismo e a retórica constituem elementos nimemente em torno do Pontífice, aos pés de Cristo. A dor ca-
negativos para o pensamento e traição contra o espírito. vara tão fundos sulcos nos espíritos, e a alma do mundo marti-
Relatemos a visão, mas, antes, aqui ficam duas observações: rizado descera a desespero tão negro, que se percebia em todos
1) Este volume, como está mais bem especificado no Cap. os espíritos a reação contra o absurdo, o insuportável, o impos-
XXII “Tempestade”, foi iniciado e continuado até este ponto na sível que era ter de empregar ainda o antiquado binômio, a pon-
primavera de 1944. Essa visão eu a tive na manhã de 12 de to de sentir-se a necessidade, a fatalidade e a iminência de total
maio de 1944, sexta-feira, isto é, 33 dias após a manhã de Pás- modificação do mundo atual. Mas como? Aquela massa huma-
coa, coincidência percebida só mais tarde. Essa visão registrei-a na ignorava. Havia na multidão a confusa vontade de continuar
imediatamente por escrito e vou reproduzi-la agora, sem modi- a viver, mas de modo melhor, com mais elevação e mais lógica,
ficação alguma. É a pura verdade. 2) A visão pode assumir vá- mais bondade e mais rendimento, de reconstruir-se, de sair do
52 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
abismo em que o mundo caíra, de reformar-se inteiramente, do a aproximação de imenso perigo, de terrível ameaça, que,
remontando às origens. Havia em toda aquela gente o instinto embora invisível, advertia de sua presença.
vital, que abrange todos campos e, associando em última análi- Aonde vão as massas buscar intuições? Talvez na interpre-
se o erro aos desastres do erro, retorna às grandes ideias-mães, tação lógica de algum sintoma, embora exagerado pela imagi-
com que durante séculos e séculos se alimentam, para nelas nação, como, por exemplo, um atraso, um gesto, um passo ner-
haurir nova força e nova luz e encontrar salvação. O espírito voso, um diz-que-diz. O senso do perigo e do medo é o mais
adormentado pelo bem-estar e pela ilusória filosofia do bem- antigo e profundo do organismo humano e corresponde a instin-
estar agora despertara; o imponderável, antes repelido e nega- to dos mais ativos e arraigados por dura experiência. A maior
do, voltava de novo ao mundo, atendendo ao apelo do homem atenção das defesas físicas dirige-se para a conservação. Nas
provado pela dor. Essa própria multidão já constituía manifes- multidões, talvez algum sensitivo funcione como antena recep-
tação desse imponderável. A voz de Cristo ecoara de novo nos tora em relação à massa, que desempenha o papel de caixa de
corações, e muitos, tendo-a ouvido, acudiram, para salvar-se e ressonância, de amplificador, aumentando desse modo o volu-
salvar os capazes de salvar-se. O povo reunido no templo repre- me do dinamismo e reforçando, com a quantidade de energia
sentava e simbolizava o homem cansado da vaidade de suas representada por ela, a qualidade fornecida pelo sensitivo-
construções, conquistas e experiências filosóficas, sociais, polí- antena. De fato, em dado momento da maturação do fenômeno,
ticas, econômicas e científicas, o homem que, depois de tantas isto é, quando se atinge determinado potencial, a faísca incen-
tentativas, finalmente se afogara na imensa dor de guerra de ex- diária explode e alguém, desempenhando o papel de faísca, e
termínio total, traído pela força e pela riqueza em que acreditara mais intérprete do que criador, encaminha os movimentos da
(Cf. A Grande Síntese, Cap. LXXV: “... vós confiais apenas na massa; assim se desencadeiam correntes incontroláveis. Al-
riqueza e na força, elas, porém, acabarão vos traindo”). As ilu- guém percebe antecipadamente aquilo que, mais tarde, todos
sões fáceis, a simplicidade pueril, as loucas esperanças, tudo se perceberão, demonstra-o sob forma sensível, e os demais, en-
desvanecera diante da realidade. Agora a humanidade se encon- tão, o reconhecem. Se o pioneiro do movimento não ouviu e
trava em posição diferente daquela antes da guerra; posição de compreendeu, de fato, a voz do imponderável, a multidão, por
quem, percorrida a fase de prova, percebe haver cometido erro sua vez, nada ouve e, por isso, ninguém o acompanha; se o pio-
e, amargamente, se volta para dentro de si mesmo, a fim de re- neiro não revela o que todos já sabem existir, se a sua voz não é
fletir e, em seguida, compreender, reconstruir, ascender. Aquela coletiva, mas individual, a multidão não o entende e o abando-
multidão, mesmo sem o saber, exprimia tudo isso e tinha vindo na. Trata-se de registro e ampliação, de fenômeno de ressonân-
testemunhá-lo. Nova e desconhecida ânsia a constrangia a rea- cia. Primeiro alguém vibra e, em seguida, sensibiliza a íntima e
proximar-se das eternas fontes da vida, a retomar o perdido vaga intuição geral, revela-a e comunica-a; os demais recolhem
contato com o divino centro de todas as coisas, que, eternamen- essa voz; controlam-na, caso corresponda à sua íntima intuição,
te criando, nutre. A nota dominante na psicologia daquela mas- e, só nesse caso, a aceitam e perfilham, aderindo a ela e dando-
sa de povo se constituía da invocação apaixonada e retumbante lhe contribuição de forças. Numa cadeia de intuições, os indiví-
dirigida ao céu. Sob esse impulso maior e mais significativo, duos, inconsciente e instintivamente, se auscultam e controlam
ondeavam na massa variegados impulsos menores, vórtices de mutuamente; desse íntimo contato intuitivo nasce o consenso
terror, chamas de esperança, de fé e amor, zonas crepusculares coletivo. “Espontaneamente”, dizem. Produzido por todos em
de dúvida e desencorajamento, manchas lívidas de ódio ou de geral, e não por alguém em particular, esse consenso resulta da
treva. Mas o dinamismo dominador representava-se por abrasa- lei do fenômeno que nesse momento revivemos e da vontade
dora sede de bem e de justiça e se elevava como purpurino cáli- das forças que o dirigem. Na multidão, como no povo, e em
ce de ofertório, projetado para o alto como resplendente cone, qualquer fenômeno de psicologia coletiva, toda célula compo-
para dar e receber, arremessado contra as fechadas portas do nente contribui com sua ressonância, recebe e transmite, ali-
céu, à procura da potência que as reabrisse voltadas para o in- menta-se da vibração coletiva e nutre-a por sua vez, restituindo-
ferno terrestre e prometesse luz salvadora em meio das trevas a multiplicada por si mesma e reforçada pela própria energia.
acumuladas pelo mal. O grande número, a violência do desejo, Desse modo serpenteiam, formam-se, oscilam, definem-se,
a intensidade da aparição, a substituição do indivíduo pela mas- acentuam-se e se impõem correntes de pensamento, e isso obe-
sa, em que todo impulso individual se reforçava, combinando- decendo inconscientemente à lei do fenômeno, nascendo de ba-
se e somando-se com outros, tudo isso formava irresistível cor- gatela aparentemente sem importância, quando, no íntimo, to-
rente de pensamento, de alta tensão, retilínea e ascensional, vi- das as coisas estão maduras e saturadas, e finalmente crescendo
bração harmônica e penetrante, imensa e poderosa oração, que como avalancha que tudo altera e destrói com terrível potência.
crescia e transbordava como se fosse maré montante, avançava Nisso se passou mais uma hora sem que o Pontífice apare-
tempestuosamente e, em meio de relâmpagos, subia, turbilho- cesse. A ansiedade e o desentendimento iam tornando-se cada
nando, em direção ao céu. vez mais profundos e começavam a manifestar-se por intenso
Nossa narração começa quando, nesse dinamismo central e murmúrio, por agitação confusa, pelo crescimento daquele
dominante, inesperadamente se enxerta outro e ambos se com- bramido de oceano com que se parece a voz das massas, pelo
binam, excitando reações e encaminhando soluções. Esse novo crescimento daquelas ondas encapeladas que são os movimen-
dinamismo é o dinamismo particular do drama que agora co- tos populares. Viam-se na superfície assim como que rodamoi-
meça. O momento, já de si grave, tornava-se cada vez mais nhos e, em seguida, vácuos, correntes, ângulos remansosos e,
grave. O Pontífice já devia ter descido há duas horas, a fim de nas passagens estreitas, corredeiras. Aquela multidão palpitan-
celebrar o rito na basílica. A multidão dava mostras de cansaço, te interrogava a si mesma. Queria sair, libertar-se, dilatar-se no
depois de espera tão prolongada, e de apreensão devido ao espaço. Queria dispersar-se, visto como vinha a faltar-lhe o ob-
inexplicável acontecimento. A tensão crescia sempre mais; a jetivo representativo da força de coesão que a mantinha unida.
preocupação continuamente se agravava. No seio daquela mas- Assim, criara nojo de si mesma, de ser multidão, de ser unida-
sa enorme se propagava ligeiro murmúrio, que, apesar do res- de que não tinha mais razão de existir como tal; e, como acon-
peito devido ao local, ia tornando-se mais extenso e profundo. tece em organismo desfeito, todo elemento componente queria
Na psicologia coletiva começava a caracterizar-se e a fixar-se o separar-se dos demais. Diminuía o impulso unificador, e a
pressentimento confuso, mas crescente, de perigo desconhecido multidão tendia a dispersar-se. Algo, porém, a impedia; algum
(quem sabe que perigo!), mas grave e pendente sobre a cabeça obstáculo contra o dinamismo dominante se erguia cada vez
de todos. A intuição popular percebia o imponderável, indican- mais ameaçador. Ninguém abria as portas. Não se abriam nem
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 53
podiam ser abertas. O tardio da hora tornava lógica e desejável ção. Quem está do lado do Cristo, não importa qual seja a for-
a volta para casa. Por que as portas não se abriam? O desen- ma humana, desde que verdadeiramente cristão, quer dizer, pa-
tendimento aumentava; a agitação das ondas fazia-se ameaça- ra a vida e para a morte, que dê agora testemunho. Saia da mul-
dora; o pânico alastrava-se; o ímpeto inconsciente da alma ir- tidão, entre em fila no corredor central, que está livre, e prepa-
racional da multidão convergia irrefreavelmente em direção re-se para seguir Cristo, nosso guia”.
das portas, erguia-se terrível contra aquela inexplicável clausu- O homem respirou fundo; depois, continuou:
ra, aumentava, subia, chocava-se contra os muros, embolava- “Não sabeis. Mas, em duas palavras, vos direi o que está
se, agigantava-se, concentrava-se na clausura e potenciava-se, acontecendo. Estamos presos neste templo. Suas portas estão fe-
preparada para o que desse e viesse, para subverter fosse lá o chadas por fora. Não podemos sair. Os que nos sitiam nos creem
que fosse, desencadeando-se como furacão. ignorantes do sitio e colhidos de surpresa. No entanto percebo as
Em meio dessa tempestade, sozinho no meio de tanta gente, forças que nos cercam. Executando hábil e rápido plano, queri-
um homem. Guiado até aquele lugar pelas sábias combinações am apanhar hoje aqui reunidos o Pontífice e os maiores repre-
de forças da Divina Providência, aparentemente fortuitas, às sentantes da cristandade, dentro de seu maior templo, para, de
quais nossa ignorância dá o nome de acaso, esse homem, indi- um só golpe, destruírem o primeiro, o segundo e o terceiro. Des-
ferente e com a aparência de quem estava muito longe dali, mas truição física, símbolo da destruição moral da Igreja, lábaro da
de fato presente e ativo, em plena tempestade escutava. Resso- revolta a ser entregue ao mundo, primeira fagulha da nova bar-
ava nele o rugido psicológico da multidão; mais de perto, po- bárie do Terceiro Milênio. As forças do mal uivam às portas do
rém, o impressionava a voz interior que, acima do turbilhão e templo, querendo entrar e destruir o germe, aqui presente, da
vencendo-o, lhe falava. Parecia-lhe estar no centro do turbilhão, nova civilização do Terceiro Milênio. Lá fora, a praça está cer-
que era superado pela voz. Debatia-se arrastado pelo poder des- cada de carros-blindados, de canhões e de metralhadoras; os
sa voz, a que sua razão, lutando desesperadamente, debalde ten- primeiros, prontos a avançar e adentrar pelas portas, esmagando-
tava resistir. Eis o colóquio íntimo em meio da tempestade: vos e ceifando-vos no próprio interior da basílica; os segundos,
A voz: “Vamos. Chegou a hora. Está na hora de cumprires em condições de derrubar a cúpula e os muros; as últimas, pron-
tua missão. Vamos. Agora ou nunca”. tas para metralhar na praça qualquer sobrevivente”.
O homem: “Senhor, não vão compreender. Já te disse vá- Gritos de terror explodiram na turba. Calmo, o homem
rias vezes. Não me seguirão. É tolice tentar de novo. Seria o continuou:
mesmo que semear nova desordem. É imprudente excitar mul- “Não temais. Cristo aqui está para defender Sua Igreja.
tidão agitada, não quero ser o causador de males. Além disso, Percebo o ânimo dos agressores entranhado nas máquinas de
sinto-me cansado, incapaz, ignorado e só. Não posso dominar guerra, sua única força. Percebo em vosso ânimo o turbilhão
forças tão gigantescas”. do terror e o incêndio que minhas palavras provocam em vós.
A voz: “Está na hora de cumprires tua missão. Agora ou Percebo o ânimo do Pontífice, que conhece esse perigo e gos-
nunca. Deixa-me ir na tua frente. Segue-me ou então vou sozi- taria de descer à praça e afrontá-lo antes de mais ninguém,
nho ao encontro do inimigo”. gostaria de vir para junto de nós a fim de morrer conosco; mas
Na multidão, preocupada consigo mesma, ninguém prestava foi impedido pelo seu séquito que, por natural e acertada me-
atenção àquele homem; ninguém o notara ainda, ninguém o co- dida de prudência, deseja pôr-lhe a salvo a augusta pessoa.
nhecia. O furor da luta íntima causava-lhe ansiedade. O deslo- Percebo, enfim, o vórtice de potência que desce do céu e exer-
camento das pessoas o tinha levado até quase ao centro do tem- ce pressão sobre mim e sobre vós. É verdadeiro exército de
plo, perto do altar-mor. De repente, achou-se ele diante de es- forças inteligentes chamadas anjos. Precedem-vos, circundam-
paço livre, voltado para o centro da balaustrada. Impulso pro- vos, defendem-vos. Eis que o imponderável se manifesta. Per-
veniente da multidão o atirou aturdido naquele espaço, e como cebo o milagre iminente de nossa vitória nesta nova guerra tra-
que um relâmpago o cegou. À luz do relâmpago, lhe apareceu a vada sem armas. É o resultado lógico, natural e fatal da nature-
figura de Cristo. Estava à sua direita e na sua frente. O homem za e poder dos elementos em choque. Venceremos.
então exclamou: “Domine, quo vadis?”10. E, dirigindo-se ao “O Espírito está agora conosco, no templo, e a matéria está
povo, gritou ainda: “Cristo, Cristo! Eu vi o Senhor!”. às suas portas, para destruí-lo. A dor despertou o espírito. Nós,
A multidão voltou-se estupefata, ouvindo o grito inespera- que sofremos, sabemos disso muito bem. A batalha vai começar.
do, e ficou suspensa. Então, em pé, diante do cancelo da balaus- A matéria assalta o espírito por meio da força e da morte. O es-
trada, com a mão direita bem levantada, o homem falou. A pírito afronta a matéria através da justiça e do amor. Este é o
multidão voltou-se para ele, ouviu, entendeu, escutou. Pouco a momento da suprema decisão. Aqui dentro está o Cristo; lá fora,
pouco, a calma se transmitiu até aos mais distantes. E ele lhes o Anticristo. Estão frente a frente, cada qual com suas armas.
disse com voz retumbante: Vencer ou morrer. Civilização ou barbárie, durante milênios. Es-
“Irmãos! O caráter excepcional da hora exige métodos ex- tamos em cima da hora, e este momento vai decidir. Chegamos
cepcionais e nos impõe segui-los. Nos tempos normais, a forma ao momento supremo em que a história vai iniciar nova época, e
domina a substância; nos momentos supremos, a substância a vida, nova fase evolutiva; estamos no instante exato da passa-
domina a forma. De fato, este momento é excepcional. Falo-vos gem de uma civilização a outra. Nossa adesão, o impulso de
em nome do Cristo. Ele me trouxe até aqui e vive em mim, nossa vontade livre constituirão a gota que fará transbordar o cá-
mais forte que eu. Não consigo resistir-lhe. No instante em que lice e estabelecerá novo equilíbrio no mundo. Podemos escolher.
eu saía do meio da turba, os meus olhos viram o Senhor e Lhe Podemos aderir-lhe ou repeli-lo. Mas o nosso destino grita-nos:
perguntaram, como Pedro quando fugia de Roma: “Domine, agora ou nunca. Se negarmo-nos a decidir, choraremos sobre
quo vadis?”. E o Senhor me disse: “Segue-me ou eu então irei nossas vidas fracassadas, durante milhares e milhares de anos. O
sozinho ao encontro do inimigo. Hoje é o dia de minha batalha momento, supremo, nos exige essa oferta; o mundo espera esse
e hei de vencê-la desarmado. Em verdade, só desarmados é que impulso, a fim de passar dos caminhos da matéria aos novos
vencemos os inimigos, sejam quais forem”. Cristo, aqui presen- caminhos do espírito. Ai daqueles que agora desertarem, ai de
te, é nosso guia. Esta hora não é a da forma, mas da substância; nós e de nossos filhos, se recuarmos covardemente.
é a hora de distinguir entre a fé criadora dos mártires e a fé can- “Avante! Sigamos Cristo. Demos o primeiro passo no ca-
sada e aparente dos adormecidos. O momento exige essa distin- minho da ascensão, demos o primeiro lance rumo à nova civi-
lização. Este primeiro passo, porém, pode começar apenas
10
Aonde vais Senhor? (N. da E.) aqui, no túmulo de Pedro, em Roma, na ideia de Cristo, da
54 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
universalidade e unicidade dessa ideia central no mundo. A cristãos. Não se tratava de enquadramento sob coação, mas de
primeira centelha não é civil, mas religiosa, nasce da maturi- adesão livre e espontânea de homens convictos. Todos iam
dade, e não do enquadramento; não se origina do homem, cu- acompanhando o homem que carregava a cruz e, caminhando
jos caminhos são exteriores e coativos, mas de Deus, cujos lentamente, já chegara ao fundo da igreja, de modo a ficar em
caminhos são interiores e espontâneos. No primeiro momento, frente da porta principal, fechada por fora. No momento, as
o impulso inicial só pode ser místico: é contato direto com o forças do bem eram prisioneiras das forças do mal. Aí, o ho-
Alto. Assim, recebido o impulso, a ideia universal, que ema- mem parou, voltou-se para o mais próximo dele e disse-lhe:
nou do Cristo, irá depois materializando-se pelos caminhos do “Ajuda-me, irmão, a carregar a cruz, pois me faltam forças fí-
mundo, diferenciando-se segundo formas particulares, adapta- sicas e vou acabar caindo ao longo do caminho. Vou na frente.
das aos diversos povos; será confiada aos cuidados de adminis- Minha cruz não é de matéria, é a cruz invisível do espírito”. O
tradores cuja tarefa consiste em, segundo o espírito, acompa- irmão compreendeu e apertou a cruz de madeira. Então o ho-
nhar, organizar, plasmar a matéria. Mas, sem esse elevado mem caminhou até encostar a mão na grande porta principal,
princípio regulador e sem essa força moral, os Estados serão virou-se e encostou-se nela, abriu os braços e ficou como se
organismos sem alma; os povos, arcabouços de ossos e múscu- crucificado. Fitou a multidão, fitou o templo, elevou os olhos
los, mas desprovidos de cérebro; e a organicidade moderna não até à cúpula, orando e invocando, à espera. Nada. A multidão
permanecerá íntima e vital, mas exterior e opressora. esperava a ordem de abrir a porta do lado de dentro. Nada.
“O velho mundo da força bruta encontra-se lá fora, com po- Suspensos, todos esperavam um sinal, uma ajuda, a realização
derosas armas homicidas; aqui dentro está o novo mundo, com do impossível. Nada. Inopinadamente, porém, dos olhos do
a dinamite do pensamento, o poder do exemplo, a superioridade homem saiu um relâmpago que se transmitiu à multidão como
do espírito. O bem e o mal, o espírito e a matéria, hoje vão tra- se fosse descarga elétrica. Seus olhos fixaram-se em determi-
var batalha decisiva. Deus é o bem. Satanás é o mal, porém não nado ponto, em frente e à sua direita; pareciam estar vendo al-
prevalecerá. Não passa de instrumento de Deus e, esgotada sua guém; e começou a falar-lhe lenta e submissamente. Disse,
função, destruir-se-á nas mãos d'Ele. Eu grito: „Venceremos‟. chorando, três frases, mas nem mesmo os mais próximos o es-
Deus está conosco. Eis que o espírito sai dos recintos fechados cutaram. Em seguida, afastou-se da porta, ajoelhou-se, beijou o
das igrejas do mundo, impregna todas as coisas, invade e con- chão, levantou-se e, com voz retumbante, dirigindo-se à multi-
quista todas as expressões da vida. Finalmente, o ciclo da maté- dão, gritou: “Cristo está conosco. Guia-nos. Sigamo-lo”. Em
ria encerrou-se. A matéria cansou-se de tanta destruição. De seguida, voltou-se de frente para a porta, abriu de novo os bra-
acordo com sua própria lógica, percebe que os desastrosos re- ços, levantando-os bem, e olhou para cima. E a multidão, em
sultados obtidos a colocam do lado do erro. Já percebe, embora resposta, vibrava, acentuava e, como caixa de ressonância,
confusamente, a própria debilidade e sente a reação iminente. ampliava tudo quanto sentia, multiplicando-o e difundindo-o
Percebe o desejo que a vida manifesta de reequilibrar-se, atin- pelo imenso templo. Assim, a invocação, que o homem dirigira
gindo de novo as fontes do espírito, e agarra-se às suas máqui- ao céu, se tornou potente e se agigantou até ao ponto de trans-
nas de guerra, ao ouro, aos mais baixos sentimentos humanos. formar-se em irresistível turbilhão de forças. A terra parecia
Tudo isso, porém, trairá completamente, sem compaixão, aque- tremer. Não mais, porém, por causa de impulso destrutivo, mas
les que impiedosamente não creem senão no direito do mais pelo ímpeto do mundo a caminho da ressurreição.
forte. Quem semeou loucura colherá loucura. Esta é a hora apo-
calíptica de sua destruição. A alma do mundo está despertando. XVII. VISÃO (2o TEMPO)
A lei de Deus hoje diz: Basta! E prende de novo a besta em seu
inferno. Vamos. Com o espírito venceremos”. A espera não se prolongou muito. As altas tensões ou se
Assim falou o homem. Havendo escutado, sucessivamente transformam ou se rompem. Golpeada violentamente pelo lado
atônita, comovida, conturbada e extática, a multidão calava. de fora, a porta abriu-se. Escancarou-se. Fortíssima ventania
Por fora, calma absoluta, mas o fragor do tumulto das almas entrou pela basílica a dentro, raivando, como se a mão do ódio
ensurdecia. A multidão hesitou apenas um instante e, em se- percorresse aquele oceano de cabeças à procura de vítimas; al-
guida, com muita ordem, calma e segurança, começou a entrar go explodiu do lado de fora e foi quebrar-se contra o arco de
em fila ao longo do corredor central. Os voluntários do sacri- círculo que circunda a praça. Depois, opressivo silêncio.
fício eram homens, mulheres, jovens e velhos, de todas as O homem, de braços abertos em cruz, avançou lentamente e
classes, de cultura, educação, posição social, nacionalidade e, transpôs a porta. Os demais seguiram-no. Colocado à esquerda
até mesmo, de religião diferentes. O apelo fora feito a todos, da cruz carregada pelo irmão, ele abria o cortejo. Exatamente as
sem outra exigência senão a de ser simplesmente discípulo de forças do mal, escravas das forças do bem, tinham escancarado
Cristo, e muitos o atenderam: doutos e ignorantes, homens de as portas para o cortejo sair a céu aberto. Assim, o cortejo atra-
ciência e homens de fé, patrões e operários, humildes e pode- vessou o átrio e desembocou na praça. Enquanto isso, vários
rosos. Muitos. Até mesmo religiosos e religiosas, de várias homens de armas em pé de guerra recuavam, às tontas, para os
ordens, militares de todos os postos hierárquicos, campeões lados do átrio. As portas tinham sido abertas por eles a fim de
de todas as modalidades. Mesmo das fileiras do clero oficial, que se começasse a matança; para isso, fizeram avançar vários
agrupado na abside do templo, alguns haviam entusiastica- carros blindados, com a intenção de fazê-los penetrar no interi-
mente acorrido. Enquanto o multiforme cortejo se ia forman- or da basílica; pensavam que a multidão ignorasse o cerco da
do, o homem que havia falado olhava-o, rezando. basílica e, assim, essa inesperada surtida de gente ordeira e de-
Antes de mover-se do lugar, ajoelhou-se diante do altar, em sarmada os colhera de surpresa. Não compreendiam essa nova e
seguida pediu uma cruz ao clero do templo, não metálica, mas estranha coragem de homens desarmados, que calmamente
de madeira, como a de Cristo, e assim o mais pobre possível. afrontavam indiscutível perigo. O medo de alguma oculta insí-
Não encontraram e, por isso, com duas tábuas, improvisaram dia os mantinha suspensos. O inimigo não esperava essa mu-
uma. Abraçou-a, beijou-a e começou a andar. Enquanto ia dança tão imprevista de situação. Na grosseira máquina psico-
atravessando as fileiras dos que haviam respondido ao apelo, lógica que estava dirigindo os homens da matéria, tardou muito
estes se iam colocando atrás dele, em silêncio e em ordem. As- a acender-se o relâmpago do pensamento, que, ao contrário,
sim se formou o cortejo dos voluntários, dispostos a enfrentar profunda e velozmente, iluminava a mente do homem que esta-
o perigo desarmados, em nome de Cristo e em defesa do espí- va perto da cruz. Houve um momento de hesitação. Bastou esse
rito, com o ânimo heroico e pacífico dos primeiros mártires pequeno atraso da ação, essa momentânea incerteza de diretri-
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 55
zes, para reforçar e firmar a corrente de pensamento oposta, re- multidões. O homem compreendia as consequências e o imen-
presentada pelos homens do cortejo; na praça espalhou-se no so alcance de sua atitude. Julgava-se tudo e, ao mesmo tempo,
meio dos inimigos sensação de místico terror. Algo, a que obe- nada; bem no centro do turbilhão e do drama, no entanto só;
deciam, embora desconhecessem, os imobilizou; e os petrechos sentia-se perdido, mas vitorioso; exausto e, apesar de tudo, for-
de guerra, potentes, tecnicamente perfeitos e prontos para a tíssimo. A debilidade residia em sua pobre condição humana; e
ação, ficaram paralisados a partir da primeira mola: o espírito. a força, na visão de Cristo, que, invisível, o guiava.
Avolumando-se à medida que saía do templo, o cortejo, Assim, o cortejo chegou ao fim da praça e desfilou diante
progredindo pela direita de quem sai, ia-se escoando ao longo do grosso dos carros blindados e dos canhões. Então, o homem
do pórtico. Na frente caminhava o homem, ao lado da cruz e de que lhe estava à frente escutou mais atentamente e pôs em ação
braços bem levantados. Da multidão, muitos lhe imitavam o sua receptividade no sentido de melhor compreender a psicolo-
gesto, como invocação suprema. Ele havia entoado em voz alta gia do inimigo. Percebia que até mesmo os homens da guarni-
um ritmo grave e solene, repetindo a palavra-síntese daquela ção dos carros blindados e dos canhões pertenciam à vida, eram
cena e daquele momento, da espera e da defesa: “Cristo”. Esse vida e sofriam o império de suas leis. Percebeu que a natureza
brado ecoava na multidão, que, repetindo-o em todos os tons e desses homens de tal modo se saturara de vibrações maléficas,
através de milhares e milhares de vozes, o transformava em po- que eles mesmos lhe sentiam a perturbação, como peso contra o
deroso clamor, que investia contra as colunas da praça e os mu- qual, por força da lei de equilíbrio, a vida reagia; como negação
ros da basílica, se derramava pela cidade eterna a fora e, final- contra a qual, instintivamente, se rebelava o ser desejoso do
mente, parecia explodir bem lá em cima. Milhares de mãos se próprio progresso, e não de autodestruição. Percebia, no sub-
erguiam, suplicando. Algo, como risonha bênção de Deus, pa- consciente daqueles homens, ferverem vibrações antagônicas,
recia relampejar nos céus, brotada do hino de intermináveis le- de onde subiam para a consciência ideias contraditórias. Naque-
giões de anjos. E as armas calavam. les ânimos, duas correntes de pensamento se digladiavam. Que-
Nesse meio tempo, os homens de armas, na lógica de sua riam vencer, mas odiavam aquela vida de bestas-feras. Não
psicologia simplista, já haviam decidido sustar momentanea- aguentavam mais. Nem a insensibilidade nem o hábito os de-
mente a ação, para melhor divertir-se à custa de inimigo iner- fendia mais. As forças maléficas empregadas por eles satura-
me, sem necessidade de pressa, porque a presa estava garanti- vam-nos a ponto de envenená-los; e a vida, até mesmo neles,
da ou, numa palavra, por grosseira curiosidade de saber qual queria viver. Tantos males e tantas dores haviam eles semeado,
seria o fim de tudo aquilo. O homem perto da cruz percebia lançando-os contra tanta gente, que agora se voltavam contra
tudo e mantinha completo controle sobre si mesmo, pois co- eles mesmos, agredindo-os e sufocando-os. Por isso, naqueles
nhecia muito bem e dirigia o fenômeno espiritual de que era o ânimos, a reação se estava elaborando. Ao mesmo tempo, o im-
centro. De cabeça alta, cabelos ao vento, braços abertos e le- ponderável exercia pressão no sentido dessa mudança. O ho-
vantados para cima, como antenas receptoras, auscultava as mem do cortejo ouvia esse tempestuoso choque de forças, essa
correntes de pensamento. Primeiro, registrava as ondas longas, trágica maturação de almas. Tinha a impressão nítida de que o
extensas e lentas, das radiações diurnas da luz solar, da terra, fenômeno estava quase atingindo seu ponto crítico e, dentro de
dos tijolos dos edifícios, da exuberância puramente animal dos uma fração de segundo, esse sistema de forças estaria decom-
homens de armas, da vida vegetativa da multidão, tudo isso posto; percebia que, para lá desse ponto crítico, o fenômeno as-
nas entonações mais variadas. Não era, porém, essa a voz que sumiria nova forma, isto é, o dinamismo se inverteria e as for-
ele procurava cuidadosamente sintonizar; de fato, concentrava ças componentes se aplicariam em direção oposta. Essa precipi-
toda a sua atenção nas ondas curtas e rápidas do pensamento, tação de equilíbrios era iminente. Num átimo, desencadear-se-
com elas sintonizando-se em alta frequência. Abria-se para iam as consequências exteriores e materiais.
elas com grande receptividade, e elas lhe chegavam com voz O fenômeno já estava maturado. E eis que, de repente, o
sutil e clara, que se elevava, como luz nas trevas, acima dos imponderável pareceu explodir, e a luz se fez nas almas dos
tons baixos e profundos, escuros e densos das outras vibrações inimigos. A corrente construtiva da vida e do bem reconquis-
mais materiais. Podia, desse modo, ouvir a voz, não percebida tara a superioridade sobre a corrente destrutiva da morte e do
pelos outros, da alma dos homens de guerra, e, como não era mal. Aqueles homens não puderam resistir por mais tempo e
ouvido por ela, podia controlar o perigo, logo à sua primeira renderam-se ao cansaço de seu mau modo de agir, sentiram
manifestação, o pensamento, sem o qual nada se põe em mo- nojo de si mesmos, compreenderam a inutilidade do homicí-
vimento. Assim, percebera também a decisão do Pontífice, que dio, a estupidez em que o ódio se transforma, se considerar-
impusera a seu séquito a sua firme vontade de descer para jun- mos os objetivos da vida e a alegria de existir e amar. Com-
to do povo. E percebera, além disso, que outro cortejo, o do preenderam, então, havê-los iludido e traído o mal em que ha-
papa, se pusera em movimento, convergindo em direção da viam acreditado; terem sido vítimas de miragem; e que o mal
porta do templo, onde os dois cortejos se encontrariam. Por is- muito mais depressa envenena quem o pratica do que a pessoa
so o homem se sentia profundamente comovido por aquele que o recebe; aí, perceberam como a vida por eles escolhida
brado da multidão, que repetia em coro a sua invocação: “Cris- era a vida de demônios e só seria muito mais bela na propor-
to, Cristo, Cristo!”, só uma palavra, nada mais, uma palavra ção em que a paz substituísse a guerra, o ódio se transformas-
clara e abrasadora, repetida em ritmo forte e tenaz; uma pala- se em amor e o mal em bem. Aquele singular cortejo, a desfi-
vra em que a vida parecia gritar sua vontade de progredir para lar-lhes diante dos olhos, lhes falava desse outro mundo mais
o alto. Em plena tempestade, acima dos séculos, ele perscruta- belo, em que agora até eles mesmos se esforçavam por entrar,
va através do tempo para, finalmente, exultar com a futura vi- e também do tipo de conduta mais civilizado, de que se senti-
tória de Cristo, aquela vitória pela qual, dando-se a si mesmo, am expulsos. Comparavam-se com os fiéis, que, desarmados,
também lutava. Haviam afrontado a morte, e, agora, Deus os mas possuídos de coragem inaudita, afrontavam a morte em
salvava. Esse exemplo constituía apenas o primeiro passo da paz, rezando; comparavam sua férrea disciplina militar com a
grande e pacífica revolução espiritual. Esse exemplo, mais tar- disciplina livre e consciente daqueles homens convictos e
de, se multiplicaria, e a fé sairia do interior dos templos, da procuravam saber qual a força capaz de, sem armas, mantê-los
prisão dos claustros, do cárcere das formas. A conquista de ca- assim unidos. Teriam podido exterminá-los. Então por que
da nova fase evolutiva significa expansão de Deus nos cora- não faziam funcionar as máquinas de guerra? Por que a inusi-
ções, é primaveril desabrochar de flores. Diante do exemplo de tada estratégia daqueles homens inermes triunfava e a força
Roma, outras igrejas abririam as portas e deixariam sair outras armada se tornava inoperante? Alguma coisa os paralisava.
56 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
Que era? Onde estava e em que consistia esse imponderável a 1) Minha missão está cumprida. Deixai-me desaparecer na
bloqueá-los assim? Sentiam-se enojados de si mesmos e das sombra. Da sombra saí e para a sombra retorno. Não penseis
máquinas; indefinível descontentamento os impelia a odiá-las; em mim, que não passei de miserável instrumento. O importan-
a odiar não os homens inermes e pacíficos que confessavam te é apenas que a semente atirada ao solo germine e frutifique.
aquele Deus de todos, tanto de vítimas como de agressores, 2) Respeitai a autoridade, como superior principio orgânico
mas os petrechos de guerra e os inventores dessa maldita téc- e, por isso, elemento de vida e de evolução; dai exemplo dessa
nica de destruição e de morte. Não mais se sentiam convenci- ordem em que consiste o futuro do mundo. Respeitai, também,
dos da força, que não vence pelo livre convencimento, mas por isso, a autoridade da Igreja. Não julgueis. Deixai a Deus o
oprimindo e sujeitando, ao observarem o espetáculo de seres encargo de julgar os homens. Não penseis neles, meros instru-
livres, mantidos espontaneamente em estreita união por força mentos, mas em Deus, que tudo dirige, nem naquilo que dizem
totalmente diferente. Os homens de armas e os homens do es- ou fazem, mas naquilo que Deus diz ou faz por meio deles, co-
pírito representavam duas experiências humanas opostas; e os mo por meio de toda a humanidade.
primeiros percebiam, face a face com os últimos, que iriam 3) Ide pelo mundo, ó voluntários do sacrifício, homens da
precipitar-se no mais trágico e absurdo fracasso. No entanto, primeira hora, fundadores da nova civilização do Terceiro Mi-
mesmo sem armas, que coisas grandiosas não se poderiam fazer lênio. Fostes escolhidos porque enfrentastes a prova e a vences-
apenas com o poder da fé e do amor! Aquela mesma praça onde tes. Sede sacerdotes do espírito. Não busqueis a força. O poder
se encontravam servia de exemplo. Os dois sistemas opostos de da justiça é poder que a supera; não há fraqueza maior do que a
conduta humana ali estavam em plena ação e se defrontavam injustiça. Se fordes justos, a força irá ao vosso encontro; caso
desafiadoramente. Esse não passava de simples episódio da contrário, trair-vos-á. Vossas armas de conquista devem ser: re-
grande luta entre o bem e o mal. Este sentia, em presença do tidão, bondade, sacrifício, amor. Os imponderáveis do espírito
bem, a íntima contradição que o inferiorizava. tornar-se-ão verdadeira potência dentro de vós, se, ao invés de
“Por que atirar contra homens inermes? Com que fim?”. Os pregá-las apenas com palavras, viverem em vosso exemplo, se
homens de armas diziam de si para consigo: “Não são mais co- seguirdes Cristo, vibrando apaixonadamente na vida ativa. Se-
rajosos do que nós? Não seríamos covardes, se os matássemos? meai com entusiasmo, e não com incerteza e desânimo; antes
Não temos a mesma coragem que eles, nem somos capazes de de dar, torna-se necessário possuir, e, para possuir, é preciso já
fazer o que fazem, são, pois, mais fortes. Contudo, que força é, ter conquistado vitórias dentro de si mesmo, através de esforço
pois, essa sua que lhes permite não dar atenção à nossa, a ponto pessoal. Vivei no mundo, mas seguindo a Cristo. Falai como
de enfrentar-nos completamente desarmados? Procuremos, Ele, isto é, pelo exemplo. Hoje vencestes a matéria, pois de-
pois, contato com eles e, se for possível, conquistemos essa no- sarmados enfrentastes a morte. Começastes pelo exemplo; con-
va força cujo segredo não sabemos. Esses homens não nos od- tinuai dando o exemplo. Não adianta parecer; é preciso ser. Se a
eiam, não querem ser e nem mesmo são nossos inimigos. Mas, consciência nos condena, de nada nos vale haver conquistado
então, por que esse absurdo de odiar quem não nos odeia e os aplausos do mundo. Não sejais ricos por fora e pobres por
agredir quem, sem arma alguma, se expõe a nossos golpes? dentro; sede, isso sim, ricos por dentro e pobres por fora. O ob-
Não! Basta. De agora em diante, não matemos mais, não odie- jetivo da vida é ascender. Conquistai qualidades, que constitu-
mos mais. Como eles, também nós temos alma. Daqui por dian- em tesouros inalienáveis, e não bens materiais, que se perdem.
te, não seremos mais apenas número, instrumento, máquina, es- Ascendei e ajudai a ascensão alheia. Sede sempre construtores,
cravos do terror!”. Assaltou-os, então, irresistível necessidade afirmando, e jamais destruidores, negando. Não é com máqui-
de encontrar algo mais inteligente, mais vital e consciente, mais nas de guerra nem com as armas da lógica e da polêmica que
elevado, mais livre e adequado, irresistível necessidade de au- vencemos o inimigo, mas compreendendo-o e abraçando-o. An-
tonomia, de ouvir novamente a voz das grandes ideias que tes de exigi-los dos demais, exigi de vós mesmos a fadiga, o
constituem a base da vida e o apelo de Deus. Novo desejo gal- dever e a prática das virtudes. Primeiro, reformai-vos; depois,
vanizou-os; as forças do mal, que se derramavam na hora histó- aí sim, podeis pensar na reforma de vossos semelhantes. Seja
rica, naquela multidão, no mundo, derramavam-se também so- esse o segredo de vosso poder. Mantende-vos ágeis, ligeiros,
bre eles. O imponderável, que tudo movia, também a eles en- vivos no espírito, bem próximos das fontes; temei as incrusta-
volveu e arrastou. O instinto vital movimentou-os, impeliu-os. ções, as cristalizações, as deformações, os acomodamentos, o
Saíram dos carros, abandonaram canhões e metralhadoras, farisaísmo, que é moléstia psicológica de todos os tempos, a
aproximaram-se, incorporaram-se ao cortejo, acompanhando a fossilização senil de todas as religiões. A forma não deixa de
cruz sob a universal invocação de Cristo. ser necessária, mas acomoda e adormece. Primeiro, buscai a
Agora, o fenômeno tendia lógica e espontaneamente para a substância, que é a alma de todas as coisas. Do contrário, sereis
conclusão. Engrossado cada vez mais por novos adeptos e de- apenas cadáver, foco de infecção, que propagará a morte. Só o
pois de haver feito a volta completa do pórtico, o cortejo já se espírito é vida. Lembrai-vos disto: manter-se vigilante; jamais
aproximava do átrio e da porta principal, a fim de reentrar na mentir, jamais pactuar com o mal; jamais acomodar-se. Quem
basílica. Aquele homem, que estava à testa do cortejo, chegou mais possui mais sabe e mais autoridade tem, portanto tem mais
primeiro. O Pontífice, tendo descido ao templo, esperava-o de deveres que os outros, e não mais direitos. O mundo tem fome
pé, sozinho, destacado de seu séquito, na porta da basílica. da verdade: deveis nutri-lo, vivendo a verdade. Sede instrumen-
Quando o homem, acompanhando a cruz, chegou bem perto, o tos da criação, operários de Deus, seus colaboradores na cons-
Pontífice, estendendo-lhe os braços, disse-lhe: trução e no progresso. Semeai, e a semente germinará, produzi-
“Meu filho, você salvou a Igreja”. rá novas sementes e, através delas, nascerá o novo. Ide pelo
Pai, respondeu: “Cristo fundou hoje a nova e universal civi- mundo e semeai no tempo a nova civilização do espírito”.
lização do espírito. Trago-vos a legião dos que primeiro o afir- O homem calou-se e mostrou o Pontífice aos fiéis, a fim de
mam, os voluntários do sacrifício, a fim de os conduzirdes ao que estes o seguissem. Em seguida, afastou-se e desapareceu no
túmulo de Pedro, ao altar de Cristo”. meio da multidão. O Pontífice recusou-se a sentar de novo na se-
Disse e ajoelhou-se diante da soleira da porta, beijou-a perto de gestatória, em que chegara até à porta do templo; fê-la afastar-
dos pés do Pontífice, que o abençoou. Depois, pondo-se de la- se juntamente com o seu séquito e, a pé, mas triunfante ao lado
do, perto do estípite direito, assim falou: da cruz de madeira, colocou-se à frente do cortejo, que voltou vi-
“Irmãos! Antes de separar-me de vós, quero deixar-vos es- torioso à nave central. E, assim, até ao altar-mor. Aí, o Pontífice
tas três ideias: mandou tirar a cruz de ouro e prata que brilhava no centro do al-
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 57
tar e pôs no seu lugar a pobre cruz de madeira, vencedora da dade do espírito, escapa aos sentidos, sempre constituiu função
grande batalha. Depois, devagar, porém com entusiasmo, execu- da arte. Portanto tudo isso, para ela, não passa de consequência
tou até ao fim o ritual sagrado, como estava previsto. natural de seu desenvolvimento lógico. Compete-lhe dar ex-
O cortejo dos voluntários vitoriosos havia-se enfileirado ao pressão ao inexprimível, tangibilidade ao imponderável, tornar
redor. Todos que o compunham tinham entrado no templo: perceptível o evanescente mundo das forças e das ideias. A arte
homens, mulheres, jovens e velhos, de todas as classes, de será tanto mais legítima quanto mais fielmente cumprir essa
educação, cultura e posição social diferentes: doutores e igno- função de transportar o céu para a terra, de criar contatos com o
rantes, homens de ciência e de fé, patrões e empregados, hu- divino. A isso se reduz todo o seu valor educativo no sentido
mildes e poderosos. Havia também religiosos e religiosas de mais elevado do termo, isto é, evolutivo, instrumento de espiri-
todas as Ordens, militares de todos os postos, expoentes de to- tualização. Depois do atual período de iconoclastia artística, a
das as castas. Aí estavam os voluntários do clero oficial, saídos nova arte do imponderável será a arte da nova civilização do
das fileiras grupadas na abside da basílica. Estavam represen- espírito. O homem sensível poderá assim roubar aos céus novas
tadas as nacionalidades e as religiões mais diferentes. Havia belezas e trazê-las para o mundo, tornando mais compreensí-
também os adesistas da última hora, que aumentaram as filei- veis as sutilezas das coisas espirituais. A gênese de tudo está na
ras e, finalmente, os homens de armas, saídos das máquinas de parte interna, no espírito, em Deus; as coisas excelentes e pode-
guerra e, pelo exemplo, convertidos ao amor de Cristo. O ape- rosas brotam das profundas nascentes da vida. A técnica está na
lo fora universal e, assim, todos reentraram no templo, seguin- periferia, na superfície, na forma. A inspiração vem do centro,
do a Cristo, agora unidos sob a Sua cruz. da profundidade, da substância. A análise destrói, a síntese
Essa concórdia do mundo, que, após dois milênios de luta e constrói; a forma causa a morte, o espírito vivifica.
quase no limiar do terceiro, mais uma vez reencontra a Cristo; o Mas essa visão podemos entendê-la ainda sob outro aspec-
espetáculo dessa multidão, a princípio massa confusa, agora re- to, ou seja, como plano de combate. O espírito não vence por
constituída de acordo com nova ordem e unidade mais vasta; acaso. O milagre de sua vitória aqui, após o estudo das forças
esse triunfo final do anjo sobre a besta e do espírito sobre as em que essa vitória se baseia, a estrutura de seu sistema e a lei
armas embotadas da matéria; tudo isso constitui o último lam- de seu desenvolvimento, fica logicamente explicado. Esse
pejo da luz em que, em gloriosa apoteose, esplende esta visão. drama representa apenas um momento do imenso drama hu-
No esplendor desse último brilho, a visão deteve-se, imóvel, mano da luta entre o bem e o mal. Vemos o passado e o futuro,
pequena fração de segundo. Depois, como cometa que riscou o o involuído e o evoluído, se defrontarem em batalha decisiva,
firmamento, a luz se apagou lentamente e desapareceu, deixan- que o evoluído ganha por força dos próprios princípios da Lei
do atrás de si luminosa esteira. e da vida, tais como os expusemos nos capítulos precedentes.
Isso constitui a nota dominante deste trabalho, de que essa vi-
XVIII. COMENTÁRIOS E PREVISÕES são pode considerar-se o ponto culminante. Também aqui se
vê o mal posto a serviço do bem, isto é, funcionando como re-
Essa visão também podemos entendê-la como expressão do sistência excitadora de reações, que faz o triunfo nascer no
drama do imponderável. Mais do que pessoas, falam-nos for- campo oposto. Assim, a Lei, sem constranger-nos, nos induz a
ças ativas, mais sábias e capazes que as pessoas. Essas forças, conquistar o nosso próprio bem à custa de nosso próprio esfor-
de acordo com o pensamento da Lei, enquadram-se e movem- ço; assim, o mal, reabsorvido e anulado, se transforma final-
se disciplinadamente como soldados; influindo e, por sua vez, mente em bem. Notemos por último, que a nova civilização do
recebendo influência, como binômio de ações e reações, funci- espírito não nasce sem defesa, mas armada com novas armas,
onam organicamente e dirigem-se ao objetivo determinado. pois a luta, elemento vital, subsiste, embora se tenha transfor-
Conforme a sua natureza e poder, coordenam-se como se fos- mado ao transferir-se para plano mais elevado. Todos necessi-
sem sinfonia orquestrada para numeroso conjunto musical. tam de armas e defesas, porém quão diferente da atual é a nova
Também na luta guardam proporção; seus desequilíbrios desa- técnica! Esta, que vimos vencer no momento crítico da primei-
parecem em novos equilíbrios, sua dissensão se resolve em ra manifestação da nova civilização, será a mesma a defendê-la
harmonia. Essa circunstância dá sensação de musicalidade ao mais tarde, no decurso de seu desenvolvimento e execução.
desenvolvimento do sistema. Toda força tem personalidade in- Trata-se de novo princípio defensivo, de método e estratégia
confundível; é fenômeno distinto, embora combinado com ou- diferentes dos que hoje seguimos; trata-se de novo modo de
tros; entrelaça-se sem misturar-se; reage de acordo com traje- conceber a vida e guiar-lhe as energias. Assim, centuplicamo-
tória e lei de desenvolvimento próprios e obedientes à lógica lhes o rendimento. A conversão dos homens de armas não sig-
fornecida por sua natureza, potência e objetivo. Aí estão a ma- nifica uma reação destrutiva por parte das forças protetoras da
téria e o espírito, a Igreja e o homem, Cristo e a multidão, o vida, nem a exaustão de uma fase a que se deve retornar depois
bem e o mal, as forças biológicas e o destino do mundo. E esse de percorrido o período oposto; representa, isto sim, revolução
drama emerge do fundo da evolução humana e dos destinos da biológica, degrau mais alto da conquista evolutiva; não é con-
vida em hora histórica apocalíptica. versão momentânea de alguns homens, mas a conversão da
Dai se vê como o imponderável pode oferecer-nos novos força à justiça, da matéria ao espírito.
motivos a explorar, desde que a arte queira apossar-se do imate- Observemos agora a posição e o significado dessa visão no
rial, onde o espírito pode em qualquer terreno fornecer modelos desenvolvimento conceitual deste volume e em relação aos
de primeira plana, segundo o conceito de elevada estética. Po- demais com que se relaciona. Aliás, já no prefácio foram todos
der-se-iam assim expressar os dramas do abstrato, em que as reunidos em duas séries, ou trilogias. A primeira compreende:
forças imponderáveis agiriam como seres vivos e funcionariam 1) Grandes Mensagens e A Grande Síntese; 2) As Noúres; 3)
como realidade objetiva. Todo progresso, inclusive o artístico, Ascese Mística. A segunda: 1) História de um Homem; 2) Fra-
apenas pode consistir em aproximarmo-nos cada vez mais das gmentos de Pensamento e de Paixão; 3) A Nova Civilização do
fontes da vida e, como o objetivo da arte consiste na expressão, Terceiro Milênio. A primeira trilogia encerra-se, nas últimas
em exprimir cada vez mais claramente o pensamento divino páginas de Ascese Mística, com a previsão da guerra atual. Es-
existente na intimidade das coisas. Nova arte, a do imponderá- se ciclo é, pois, de preparação e representa o prenúncio do ca-
vel, poderia desse modo penetrar cada vez mais profundamente taclismo e o esquema da nova civilização. O segundo podemos
na realidade e revelar-lhe cada vez mais os íntimos mistérios. chamá-lo executivo e reconstrutivo e aprofunda esse esquema
Exprimir, revelar, tornar perceptível tudo o que, na imateriali- no que diz respeito ao seu aspecto humano. Trata-se de dois
58 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
pensamentos diversos, de duas perspectivas diferentes, a do zes...‟; idem: “...Ousai, abandonando velhos atalhos, porém não
“antes” e a do “depois”, a de quem se prepara para a prova e a ouseis às doidas e exatamente nos pontos em que não tendes
de quem já vai saindo dela. A guerra mundial de nossos dias motivo para ousar; ousai em direção dos céus e nunca tereis ou-
situa-se no meio das duas trilogias. Desse modo, para nós, essa sado demais. De vossa crise, crise dolorosa e profunda, nascerá
guerra tem valor mais profundo que o de simples acontecimen- o novo homem do Terceiro Milênio... Neste resto de século se
to político, pois, vista em sua substância biológica, nos mostra decide o Terceiro Milênio. Ou vencer ou morrer”. Mensagem
seu verdadeiro significado e objetivo. É mais fácil intuir o atu- aos Cristãos, por ocasião do XIX centenário da morte de Cristo:
al conflito em suas causas íntimas do que compreendê-lo raci- “...vossa união forme barreira contra o mal, que está na iminên-
onalmente em seus aspectos exteriores, isto é, concebendo-o cia de desfechar tremendo assalto. Grandes lutas exigem gran-
no seu sentido moral e evolutivo, bem mais elevado do que os des unidades...”; idem: “A humanidade caminha inexoravel-
demais dizem e sabem. A guerra nos aparece, assim, como um mente para as grandes unidades políticas e espirituais”.
assalto do mal a serviço do bem, desejada pela ignorância hu- Reportemo-nos agora ao volume A Grande Síntese, primei-
mana e permitida por Deus como útil prova; deve, assim, en- ramente publicada em capítulos, na coleção de revistas de ja-
tender-se como destruição reconstrutiva, condição de renasci- neiro de 1933 a setembro de 1937. Cap. V: “A mente humana
mento e preparação da nova civilização do Terceiro Milênio. O procura um conceito que a impressione vivamente, conceito
conflito permanece, pois, ambientado no desenvolvimento his- elevado e mais profundamente sentido, capaz de orientá-la ru-
tórico da época, de que se torna o acontecimento culminante e mo à iminente nova civilização do Terceiro Milênio...”; Cap. X:
decisivo. O próprio conceito de “vitória” assume aqui signifi- “Conseguireis produzir a energia necessária para a desintegra-
cação muito mais vasta do que o comum, devendo ser compre- ção atômica, isto é, para transformar a matéria em energia.
endido como vitória no espírito. Eis o significado da visão: a Vossa vontade conseguirá penetrar na individualidade atômica,
vitória final não dos homens, mas de Deus. Nos equilíbrios da alterando-lhe o sistema”; Cap. XLII: “A nova civilização do
vida, apenas o resultado político não basta para justificar tantas Terceiro Milênio está iminente; urge, por isso, lançar-lhe as ba-
dores dos povos, tantas perdas de bens para todos e tão violen- ses conceituais...”, idem: “Há um superamento imposto pela
to esforço da humanidade. A vida nada faz sem finalidade, e o evolução da humanidade neste momento histórico de que está
objetivo que deve atingir deve ser proporcional ao trabalho por para nascer a nova civilização do Terceiro Milênio...”; Cap.
ela desenvolvido. Isso é consequência evidente na lógica da XCVII: “As leis da vida, adormecida em ritmo igual durante
Lei. Esta nos diz que a vida não fracassa, não perde tempo e, milênios, receberam repentino choque e estão hoje despertas
de acordo com sua economia, proporciona os resultados ao es- para lançar-vos rumo à nova civilização do Terceiro Milê-
forço necessário para atingi-los. O homem é ignaro e se guia nio...”; Despedida: “Este é desesperado apelo à sabedoria do
pela eterna sabedoria de Deus. Já o demonstramos à saciedade. mundo... A civilização moderna lança a semente com vertigino-
Todas as dissensões e lutas do homem são apenas fadigas evo- sa velocidade e espera a fabricação intensiva de sua futura dor.
lutivas; suas dores, provas; suas vitórias e derrotas, provações Será a dor de todos. Poderá tornar-se maré montante que des-
para conquista de consciência. Vencedores e vencidos não pas- truirá a civilização. Os meios estão prontos para que hoje um
sam de colaboradores do progresso humano e lutam entre si incêndio se torne mundial... Se um princípio coordenador não
apenas para criar na luta a atividade formadora; de uma forma organizar a sociedade humana, esta se desagregará no choque
ou de outra, todos são, para felicidade geral, servos de Deus. de egoísmos. Falei em momento crítico, numa curva da histó-
Para o bem geral porque, no caso-limite do malvado incorrigí- ria, na aurora de nova civilização... Enquanto na Terra existir
vel e, por isso, condenado à dor eterna, a Lei, movida por pie- um só bárbaro, ele tentará rebaixar a civilização até ao seu pró-
dade suprema, inseriu a autodestruição na própria estrutura do prio nível, invadir e destruir para aprender. As raças inferiores
sistema; assim, o rebelde empedernido acaba, como tal, sendo logo não se impressionarão mais com a superioridade técnica
reabsorvido por aniquilamento. europeia e se apossarão dela para, em seguida, agarrar o velho
Dois conceitos predominam na primeira trilogia; ei-los: 1) patrão pelo pescoço... Que os justos não temam...”.
A iminência de tremendo cataclismo mundial e de período de Estes conceitos se desenvolvem e afirmam no volume As
grande dor e destruição; 2) A preparação de nova civilização do Noúres. Cap. IV: “...O momento histórico é grave, solene, rico
espírito, à qual tanta ruína material dará nascimento. O primeiro de valores em putrefação e de germes em febril desenvolvi-
acontecimento (anunciado quando ameaça alguma pendia sobre mento, como nos tempos messiânicos... percebo as correntes
o mundo e as comodidades da vida serviam de fundamento à espirituais do mundo e tenho a nítida sensação de próximas e
concepção materialista) verificou-se plenamente, com todas as novas diretrizes do pensamento humano, que levarão de venci-
tintas carregadas com que foi descrito. O segundo acontecimen- da as resistências de todos os misoneísmos...”, idem: “...Toda a
to, que parecia anacrônico quando anunciado como problema Europa se arma e, todavia, treme diante do espectro de uma
de vida e de morte e colocado como fundamento de A Grande guerra que poderia, percebe-se, marcar-lhe o fim da civiliza-
Síntese, está hoje tornando-se atual, pois, convulsionadas as ve- ção... Uma fronteira dividirá de ponta a ponta a Europa em du-
lhas diretrizes, o mundo procura outras. Hoje, que o ciclo da as partes, a da ordem e a da desordem, em cuja defesa lutarão
espera foi superado por experiência viva, convém, porque es- de maneira concreta as forças cósmicas do bem e do mal. Se as
tamos no limiar de nova civilização, reler o pensamento dos vo- forças desagregadoras do mal vencerem as forças construtivas
lumes da primeira trilogia, extraindo os trechos mais convin- do bem, então as portas da Europa desorganizada ficarão es-
centes desse argumento. Ei-los. Foram extraídos de publicações cancaradas diante da ameaça imensa da Ásia, dragão gigantes-
impressas, com data conhecida e são documentados por elas. co e terrível que já levanta a cabeça, espreitando a presa sucu-
Grandes Mensagens. Mensagem do Natal, 1931: “Grande lenta. Cega-o, porém, a luz que vem de Roma, centro espiritual
revolução se aproxima na história do mundo... Vosso progresso do mundo...”, idem: “Percebo a iminência de grandes e tre-
científico... acumula energias, riqueza, meios para nova e terrí- mendos acontecimentos mundiais, ouço longínquo fragor de
vel explosão...”; idem: “Observo lento mas constante, aumento tempestade, imensos vagalhões que ameaçam a grande civili-
de tensão, como prelúdio da inevitável queda do raio... Já se foi zação, embora pouquíssimas pessoas o vejam e saibam. Implo-
o tempo em que, como os povos viviam isolados uns dos ou- rei que soubessem e vissem. Nesse ar pesado de ameaças em
tros, os cataclismos da história podiam ficar circunscritos; hoje que o mundo se debate às tontas, meu espírito acabrunhado
não”. Mensagem da Páscoa da Ressurreição, 1932: “A psicolo- não encontra repouso...”; Cap. VI: “...o momento histórico é
gia coletiva pressente confusamente grande mudança de diretri- grave. Tempo algum jamais viu preparativos de maturações tão
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 59
solenes como os dos dias atuais. Estamos numa curva da histó- aprender e avançar... fora da dor não há salvação. Ninguém es-
ria do mundo. A humanidade está lançando as bases do novo capa desta lei fundamental. Mas, depois da paixão e da cruz,
milênio, está pondo na mesa a carta de sua salvação ou de sua vêm a ressurreição e a vitória do espírito. Deixo-vos o aviso de
ruína... É necessário dar de novo à Europa a consciência da que a aurora da nova civilização do espírito está na indispensá-
unidade de civilização e de destino...”. vel paixão do mundo”. E assim conclui o prefácio acima referi-
Volume Ascese Mística. Cap. XIV (Primeira Parte): “...vejo do: “Este volume (História de um Homem), escrito em meio à
as ameaças que pendem sobre esta hora; eles, porém, as igno- tempestade prevista, se encerra, pois, com o prenúncio da auro-
ram...”, idem: “...Porque nova civilização deverá nascer, e é ne- ra de novo dia. Depois da destruição, a reconstrução; depois da
cessário sacrifício para prepará-la; será novo ciclo histórico que dor, a alegria de vida mais sublime; depois da indispensável
formará nova raça...”; Cap. XIII (Segunda Parte): “Antigamente, paixão da guerra, desponta a nova era do espírito. Este livro é,
em épocas de calma, de inércia espiritual, podíamos silenciar e pois, o da ressurreição. Se é o livro da provação e do sofrimen-
viver de acomodamentos; mas não hoje, com o inimigo às por- to, é também o da esperança, da vitória do espírito e do bem. O
tas. Estamos em armas. A história prepara tremenda descarga de fatigante labor da ascensão neste livro toma grande impulso;
dor. Não é destruição, mas renovação. Não temamos...”, idem: transforma-se, para o indivíduo, na história do protagonista e,
“Espiritualmente o mundo já está em chamas. Nestes momentos para o mundo, na consciência da atual situação apocalíptica. Ao
não é licito cruzar os braços e permanecer como espectador, pois contrário, na cena de terror e de paixão que encerra o livro As-
a tempestade atinge a todos. Os neutros acabarão sendo envolvi- cese Mística, este volume conclui invocando e chamando, das
dos e terminarão como escravos...”; Cap. XVII (Segunda Parte): entranhas das maturações biológicas, o homem novo, de espíri-
“Ouço a perseguição da hora, o iminente precipitar dos equilí- to consciente, e anunciando e saudando a aurora da nova civili-
brios, a tempestade raivando às portas, ouço a voz de Deus, que zação do Terceiro Milênio. (Natal de 1941)”. “Porque é fatal”,
anuncia a maturidade do tempo. Gritam os sinais interiores... No conclui o volume, “que a ascensão se realize, não obstante toda
céu da história aparecem as procelárias prenunciadoras, as senti- a inconsciência e resistência do mundo; é da lei de Deus que o
nelas da vida acordam e dão o brado de alarma”, idem: “Ouço espírito vença a matéria, a luz vença as trevas, a alegria vença a
profundo rufar, cadenciado, incessante; ouço o passo do tempo, dor, o bem vença o mal, Deus triunfe sobre Satanás”.
que marcha com cadência fatal... Estamos atravessando momen- Aqui terminam as citações. Agora, poderíamos observar que
tos muito graves... Já passou o tempo de explicar e demonstrar. os acontecimentos históricos, desenvolvendo-se, se transfor-
Esse trabalho já acabou. Chegou a hora do embate físico e tan- mam de tal maneira, que seus próprios artífices devem aos pou-
gível, que a todos atinge e a todos envolve... Torna-se necessário cos afastar-se da orientação primitiva e acabam muitas vezes
que o mundo aprenda novamente a pregar; se confraternize na por chegar onde não imaginavam. Cada ato do drama suscita
humilhação e na desventura e reencontre seu Deus já esqueci- novos e inesperados fatos e aspectos, que desfazem os planos
do... Aqueles que têm Cristo no coração não devem temer. A humanos, revelando-nos novos misteriosos fios da história, im-
tempestade purificará”, idem: “É indispensável, pois, o infortú- possíveis de total entendimento senão quando o ciclo se com-
nio para que o espírito tire até o último véu e apareça nu diante pleta. Podemos, então, perguntar-nos: o homem dirige a histó-
de Deus?... Então, o destino bate às portas da história... Desfeita ria? Muito bem. Como pode fazê-lo, porém, se ignora os futu-
a ordem ética, chegar-se-á à ruína...”, idem: “... não posso ficar ros desenvolvimentos e seus planos, muitas vezes, não têm va-
quieto, porque minha alma ouviu as notas do clarim, o grito de lor algum? Não. O homem não dirige, apenas tenta dirigir a his-
guerra!... Nas grandes curvas da história, a terra deve ser doloro- tória. Outras forças inteligentes dirigem-na; são os seus planos
sa e profundamente revolvida, a fim de ficar preparada para no- que atuam. Existem, naturalmente, diretriz e planos próprios;
va sementeira...”, idem: “...Hoje, já esvoaça nos espíritos vago tanto assim que os vemos tão logo um acontecimento se pro-
pressentimento da nova civilização do Terceiro Milênio, em que cessa. Acreditamos caminhar rumo a determinado objetivo, no
a Igreja se tornará de fato poderosa e invencível, pois nessa oca- entanto vamos em direção de outro, de cuja existência nem sus-
sião será formada apenas de espírito”. peitamos. Mas há quem o saiba por nós. Em consequência, a
A parte final daquele volume, Cap. XXVI (Segunda Parte), história se desenrola e tem lógica; não pertence aos homens que
citado no prefácio do volume seguinte, História de um Homem, acreditam elaborá-la. Então, se ignoram quais os objetivos que
nos afirma cada vez com mais certeza: “Esta hora é de intensa de fato buscam, não passam de simples instrumentos. Aconte-
atividade para todos. Não pode parar. Preparada há tempos, cimentos aparentemente contraditórios não têm esse caráter no
precipita-se agora. Tenho medo de olhar... Agora se desenrola plano divino, tão cheio de finalidades, que nos escapam à per-
diante de mim a visão da terra e do céu... a terra treme convulsa cepção. Ao lado da história aparente há outra, mais profunda,
no pressentimento de indescritível tufão... Vejo um turbilhão de história substancial, que só muito tarde conseguimos ver, quan-
forças que se projeta em direção da terra e vejo, também, a terra do não acontece de não a vermos jamais. No caso de nossos di-
dilacerada, descomposta, submersa em mar de sangue. É escura as, certo é haver a guerra provocado, através da dor, um proces-
a hora da paixão do mundo... As forças estão prontas para de- so de sofrimento espiritual condicionador de grandes renova-
sencadear-se no choque fatal. Aproxima-se a hora das trevas do ções. Não é nesse sentido, porém, que estamos falando. É licito
mal triunfante, da provação suprema... O drama aproxima-se, perguntar se, na complexidade de maturações que derivam de
percebo-o... Nesse momento, senti a terra tremer. Dentro de fenômeno tão profundo como o atual conflito, os homens, atra-
mim está a visão do real. Senti, mesmo, a terra tremer”. vés do que acreditam estar fazendo, sabem o que de fato estão
Essa sucessão de visões e previsões cada vez mais angustio- fazendo e aonde vão acabar chegando? Além do plano humano
sas, inclusive esta última, escrita em fins de 1938, conclui com por eles dirigido, conhecem o plano divino que os dirige?
o testamento espiritual do protagonista de História de um Ho-
mem, concluída em começos de 1942. É a primeira parte da se- XIX. O SERMÃO DA MONTANHA
gunda trilogia, isto é, do ciclo da reconstrução. Naquele mo-
mento, tendo-se já desencadeado a tempestade prevista, a visão Antes de enfrentar novos argumentos e novas ampliações,
do autor sobe acima dela para, ao invés, contemplar a nova au- ainda algumas observações a respeito de questões já tratadas. A
rora, explicando seus primeiros sinais e dando-nos do drama a precedente visão parece comentário e reforço das palavras de A
solução que hoje se prepara. Esse testamento espiritual diz Grande Síntese, no Cap. XLII (“Nosso Objetivo - A Nova Lei”):
(Cap. XXX): “Estudai no grande livro da dor; sabei sofrer se “Aí onde o mundo, com perspectivas cada vez mais desastrosas,
quiserdes progredir... É bom que o mundo sofra, assim poderá se arma contra si mesmo, com instrumentos tão terríveis, em fa-
60 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
ce dos modernos progressos científicos, que nova conflagração São estas as descobertas que mais nos interessam fazer, as
extinguirá na Terra o homem e a civilização; aí onde o homem mais importantes, porque disciplinam organicamente a ativi-
age desse modo, existe apenas esta possibilidade de defesa: o dade humana e nos permitem extrair-lhes rendimento imensa-
abandono de todas as armas. Mais tarde veremos como”. mente maior. Representam a conquista de novos valores, mais
Neste livro, vimos como. Em qualquer campo de atividade preciosos para o homem do que novas descobertas científicas;
humana, raciocinando objetivamente e, principalmente, obser- estas, nas mãos de inconscientes, podem significar destruição,
vando os acontecimentos e descrevendo-os no que têm de es- enquanto as descobertas morais significam construção de
sencial, sem apriorismo e sem outra referência senão a realida- consciência. O espírito é o verdadeiro sal das coisas e repre-
de íntima das coisas, acabamos por chegar ao evangelho. senta princípio diretivo capaz de centuplicar o rendimento dos
Quando atingimos a intimidade das coisas, a voz dos fenôme- atuais meios humanos. Antes de, por meio da ciência, conquis-
nos coincide com a voz de Deus e surge a ordem universal tar novos meios, importa é conquistar a sabedoria que nos en-
que, num só sistema, os reúne a todos, desde a matéria até ao sine a empregar os já existentes. A ciência pode transformar a
espírito. Vamos agora focar nossa atenção especialmente nesse Terra em inferno. Só a sabedoria pode transformá-la em paraí-
sublime pensamento do evangelho, de sabor sobre-humano e so. Quando o homem houver compreendido a economia da na-
que, embora provindo de fontes completamente diferentes e tureza e conquistado o senso da Divina Providência, então
sendo produto resultante de outras elaborações, todavia coinci- substituirá o terror da necessidade, a violência da conquista, a
de de maneira tão surpreendente com a ciência e a sociologia incerteza do dia de amanhã e o aniquilamento de nosso próxi-
sadias atingidas por quem saiba ler no grande livro da vida. mo por um sistema de fé, paz, segurança e ajuda fraterna. A
Essa coincidência constitui confirmação e prova. Essa resso- ciência não é capaz de consegui-lo. Quando o homem chegar a
nância mostra como o pensamento aqui desenvolvido se sinto- compreender que o sofrimento significa conquista e a morte,
niza com ritmo espiritual dos mais profundos da vida, para o ressurreição, então se tornará invulnerável. São estas as desco-
qual converge o consenso da maior e mais adiantada parte da bertas mais úteis, aí está o verdadeiro utilitarismo. A compre-
humanidade. Assim, a ciência e a fé coincidem, significando ensão destas verdades, embora parcialmente, permite ao indi-
em substância a mesma coisa: a ciência interpreta a fé, e a fé víduo evoluído refugiar-se, mesmo nos dias de hoje, na invio-
interpreta a ciência, demonstrando então, mesmo ao homem lável autarquia do espírito.
prático, o valor utilitário do evangelho. Em nosso século mecânico, acredita-se que número signifi-
Nos capítulos anteriores, ao analisarmos o fenômeno eco- que verdade e a maioria possa e saiba elaborar a lei. Cremos ho-
nômico, vimos como uma pequena riqueza, sadia e robusta je que na vida se torne possível o agnosticismo, isto é, uma es-
porque honesta e justa, pode, por força da duração e do rendi- pécie de neutralidade espiritual, absenteísmo nas diretrizes. As-
mento, valer muito mais do que uma enorme riqueza, doente e sim, creram resolver o que não sabiam, acreditaram na possibili-
fraca porque desonesta e injusta. Assim, a análise das forças dade de fugir dos grandes problemas do ser. Desse modo, a im-
motoras do fenômeno nos permitiu introduzir na economia esse parcialidade se tornou ambiguidade e a amoralidade se trans-
fator moral, que normalmente é expulso dela, isto é, estender a formou em imoralidade. Mas o agnosticismo significa não en-
economia política até à economia moral do evangelho. Trata-se tender e não resolver nada, significa mentir a si mesmo. Não po-
de economia muito mais vasta, de que passam a participar nu- demos viver sem ação e não podemos agir sem determinada ori-
merosos elementos vitais, aos quais, doutro modo, não se daria entação pessoal. Apenas em teoria, agnosticismo pode significar
importância. Só assim podemos atingir a essência do fenômeno imparcialidade. Na prática, significa obediência aos próprios
econômico, que é também psicológico, biológico e moral; ana- instintos. A vida está toda inteira em suas posições. É impossí-
lisando-lhe o dinamismo, podemos atingir o novo conceito de vel permanecer neutro na luta entre o bem e o mal, não podemos
higiene econômica, de patologia e profilaxia econômicas. Estu- deixar de atingir determinado grau de evolução, de existir sob
dando o sistema de forças do fenômeno, podemos determinar- forma definida. Em todo ato, em todo campo, o espírito penetra,
lhe a anatomia e, reduzindo-o à substância de seu íntimo dina- e torna-se impossível não assumir uma posição moral qualquer.
mismo, podemos descobrir-lhe defeitos estruturais, de modo a A transformação biológica que conduz à nova civilização
mostrar-se, na realidade, péssimo o que nos parecia ótimo, por- encontra sua lei no evangelho; o evoluído é apenas o sábio que
que nos revela a devastação interior que o sistema clássico de o aplica. Procuremos observar, ainda, de novos pontos de vista
economia não sabe revelar-nos. Assim, também neste campo, e sob diversos aspectos, essa revolução biológica que leva do
chegamos ao evangelho e descobrimos novo utilitarismo, mais atual mundo humano a futuro mundo super-humano. A este po-
sólido e menos ilusório, mais evoluído, socialmente mais har- demos chamar nova civilização, nova ordem ou, então, reino de
mônico e profícuo. Então, o homem se torna verdadeiramente Deus, aquele de que há dois mil anos o evangelho nos fez a
senhor do dinamismo do fenômeno, pois adquire consciência de profecia e nos assinalou o inicio. O fenômeno enxertou-se na
seu funcionamento. Chegamos desse modo a muito mais com- história e foi percebido pelo pensamento das sumidades. É nu-
pleta e substancial disciplina das relações em que reside a ciên- clear em nossa vida. Assim, A Grande Síntese não é somente,
cia do futuro, disciplina necessária porquanto a convivência como dissemos, o plano regulador de nova civilização, mas
constitui fato insubstituível e cada vez mais ponderável e neces- também comentário ao evangelho, que há muito tempo lhe lan-
sário. Assim, a ordem social se fortifica, penetrando até mesmo çou as bases. De resto, a verdade é uma só. Compreende-se, por
nos motivos, transformando-se de edifício exterior formal em isso, que, quanto mais profundas são as verdades humanas, tan-
edifício interior substancial. Chegará o dia em que o furto, a de- to mais se afastam da periferia do relativo, mais se aproximam
sonestidade, o arrivismo serão tidos na conta de ingenuidade de do centro, do absoluto, e mais tendem a coincidir. Compreende-
involuídos obtusos, que não compreenderam ainda a impossibi- se que, quanto mais nos avizinhamos de Deus, tanto menos po-
lidade de algo verdadeiramente honesto nascer de fontes assim deremos, logicamente, esperar novidades. A Grande Síntese,
turvadas pelo mal, força destruidora por excelência. exatamente porque exprime a substância das coisas, não podia
O dia em que se compreender o evangelho, compreender- oferecer novidade, própria do mutável, do relativo e da forma,
se-á também que o amor ao próximo não constitui utopia ou mas apenas podia repetir a verdade eterna, que jamais muda.
sentimentalismo, mas é sólida e prática lei de vida, o modo Esse livro, portanto, poderia apenas constituir o desenvolvi-
mais lógico e utilitário de relações humanas. É natural que, se- mento e a demonstração de tudo quanto já se disse e revelou, de
meando desordem, apenas se possa colher desordem e que, para tudo quanto já pertence às religiões, à moral, à vida. As verda-
obtermos justiça, tenhamos necessidade de ser justos. des eternas voltam e tornam a voltar perante nossos olhos, ves-
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 61
tidas de acordo com as formas mentais do tempo; descendo, as- mas aperfeiçoadora, da lei mosaica”. Efetivamente, Cristo não
sim, até à psicologia do momento e acomodando-se com ele, viera “abolir, mas cumprir”. Essa continuação do passado,
tornam-se-nos cada vez mais acessíveis. Só as pessoas superfi- prossigamos, confirma tudo quanto dissemos antes, isto é, que a
ciais podem esperar continua novidade, uma das características verdade é una e, por isso, não podemos renová-la, mas apenas
de seu mundo relativo e efêmero. Ora, para nós, o primeiro ini- aperfeiçoar e completar-lhe a expressão. Mas acrescentávamos
ciador da grande revolução foi Cristo, que, por sua vez, era, ter sido Cristo o primeiro iniciador da grande revolução, no
também Ele, continuador. Seja o que for que se descubra ou se sentido de que quem aperfeiçoa e realiza, se é um continuador
invente, Cristo não muda. Suas palavras não passarão, e nada em relação ao passado em que se apoia e se eleva, é sempre um
podemos fazer senão segui-Lo. Ou o homem O compreende e iniciador quanto ao novo trajeto evolutivo que nele se inicia.
segue ou deverá renunciar a seu progresso. Cristo é um centro. Cristo é marco miliário do eterno progresso da vida, pedra-de-
Só nos resta gravitar em torno d‟Ele. Por mais que, através dos toque do pensamento humano; é, na história da civilização, o
milênios, pensadores e líderes procurem lei que resolva e regule “pomo de discórdia” em torno do qual, sob a forma de ódio ou
os problemas da vida humana, ninguém encontrou nem jamais de amor, para exaltar ou destruir, se concentram os esforços an-
encontrará outra igual à lei selada com sangue na cruz. Por isso tagônicos do gênero humano. Para explicar esses fenômenos,
devemos examinar de perto o pensamento social de Cristo, por- não basta a distinção simplista em “tipos” que a ciência estabe-
que esse pensamento constitui o fundamento da “Construção”. lece segundo as três psicopatias dominantes: sadismo, maso-
Certo dia Cristo sentiu a necessidade de expor com exatidão quismo e fetichismo. Os dois primeiros, isto é, os sádicos e os
seu pensamento aos apóstolos e às turbas, mostrando-lhes com- masoquistas, são os violentos e as vítimas, os heróis da prepo-
pletamente a sua doutrina, que, até aquele momento, apenas tência ou do sacrifício, em redor de quem se reagrupam os feti-
vagamente poderia penetrar-lhes na mente. Então, Cristo expôs chistas, quer dizer, os neutros que, em face do dinamismo, fun-
a síntese de seu programa no Sermão da Montanha. Não pode- cionam como massa, vivem de motivos alheios e representa-
mos fazer outra coisa senão citar aqui, a propósito, a bela pági- ções ideológicas, adorando ora uns ora outros. Não podemos
na da “Vida de Jesus Cristo” de Ricciotti (seguimento 318): compreender Cristo se não houvermos entendido todo o meca-
“Empregando terminologia musical, o Sermão da Montanha nismo fenomênico, toda a trama do funcionamento universal,
pode comparar-se a majestosa sinfonia que, desde o primeiro todo o plano evolutivo, através de que o pensamento de Deus se
compasso e com o ataque simultâneo de todos os instrumentos, exprime, progressivamente, na realidade. O progresso do mun-
expõe com rigorosa clareza os temas fundamentais; e são os do liga-se ao progresso da ideia cristã, e todos contribuem para
temas mais inesperados, mais inauditos deste mundo, totalmen- ele; como estímulo ativo, os que a afirmam e, como desencora-
te diferentes de qualquer outro tema jamais executado por ou- jamento negativo, os que a negam; de fato, a evolução, já o dis-
tras orquestras; no entanto apresentam-se como se fossem os semos, se processa por força desse contraste e avança apoian-
temas mais espontâneos e mais naturais para ouvido bem edu- do-se nas ações e reações produzidas entre esses dois extremos,
cado. E, realmente, até à época do Sermão da Montanha, todas resultando da íntima colaboração nascida dessa luta. A fase ma-
as orquestras dos filhos do homem, embora com variações de terialista não passou de simples impulso negativo, que, ao invés
outro gênero, haviam anunciado em uníssono que, para o ho- de repelir, aspira dirigir-se para a fase espiritualista. A negação
mem, a beatitude consiste na felicidade, a saciedade depende da constitui apenas o contrário da afirmação; liga-se-lhe, não pode
saturação, o prazer é efeito da satisfação, a honra é produto da viver sem ela, dela se nutre. E, esgotado seu impulso e exaurida
estima; enquanto o Sermão, pelo contrário e desde o primeiro sua função de resistência estimulante de reação criadora, por
compasso, demonstra que, para o homem, a beatitude consiste força da lei de equilíbrio, se transforma em afirmação.
na infelicidade; a saciedade, na fome; o prazer, na insatisfação; Cristo não é apenas fenômeno religioso, moral ou social. É
a honra, na desestima, mas tudo isso tendo em vista o prêmio fenômeno biológico. Entrosa-se com a vida, sua ação penetra-a
futuro. Quem houve a sinfonia fica sem cor à exposição desses profundamente. Inclui-se em seu dinamismo como força cen-
temas, mas a orquestra, prosseguindo imperturbável, volta aos tral, funde-se na expressão fundamental da Lei, quer dizer, do
temas fundamentais, separa-os, decompõe-nos, tece variações pensamento de Deus, que nos manda evoluir e civilizar-nos.
em torno deles; em seguida, repete no clangor dos instrumentos Quanto o Sermão da Montanha, através dos séculos, caminhou
metálicos outros temas timidamente expostos pelos instrumen- ao lado do homem! Embora ainda não se tenha transformado
tos de corda, corrige-os, modifica-os, torna-os sublimes, levan- em realidade, todas as suas frases se tornaram proverbiais, to-
do-os a alturas vertiginosas; ao mesmo tempo, faz desaparece- das as suas palavras constituem pedras angulares. Na Idade
rem num fragor de sons algumas velhas ressonâncias, ecos de Média, encontrou eco no sermão de São Francisco a respeito da
longínquas orquestras, excluindo-as da sinfonia; depois, funde verdadeira alegria. Agora, a humanidade, ao findar-se o segun-
tudo numa onda de sons, que, subindo muito acima da humani- do milênio, atingiu um ponto em que o motivo de Cristo se
dade real, atinge uma humanidade não-humana e se derrama apresenta de novo para novamente ser meditado. Estamos vi-
sobre ela e sobre um mundo imaterial e divino”. vendo novo episódio da grande batalha do espírito para con-
“Os antigos estoicos chamavam paradoxo o enunciado con- quista do progresso. O atual momento histórico, apocalíptico e
trário à opinião corrente; nesse sentido, o Sermão da Montanha doloroso, não tem outro significado. Guardadas as proporções,
é o mais amplo e mais radical paradoxo jamais dito. Nenhum o problema é substancialmente o mesmo, quer no tempo de
discurso proferido na Terra foi mais perturbador, ou melhor, Cristo, como hoje em dia: civilizar-se. Trata-se de dar ainda
mais revolucionário do que este; o que antes todos chamavam mais um passo no sentido do superamento da ferocidade e no
branco já nem recebe o nome de pardo ou escuro, mas exata- abrandamento dos costumes. O progresso caminha em direção a
mente o de preto, enquanto o preto agora se chama branco; o Deus, cujas manifestações mais elevadas são a bondade e a jus-
antigo bem passa para a categoria de mal, e o antigo mal, para a tiça. Esse é o caminho do cristianismo e o de toda a civilização.
de bem; onde antigamente o vértice se erguia altaneiro, agora A lei dos homens deve aderir cada vez mais à lei de Deus, deve
está colocada a base; onde a base se alicerçava coloca-se agora deixar transparecer sempre mais essa íntima substância. Ao
o vértice. Em face da revolução implícita no Sermão da Monta- mesmo tempo em que, evoluindo, se torna mais fino e sensível
nha, as maiores revoluções operadas pelo homem na Terra pa- e, desse modo, passa para fase mais adiantada, o homem perce-
recem infantis guerras de brinquedo...”. be quão bárbara e feroz era a fase anterior, na qual vivia satis-
Como o mesmo autor diz mais adiante, “o Sermão da Mon- feito no começo, e nota dissonâncias irritantes e imperfeições
tanha não quer apresentar-se como contraposição destrutiva, inaceitáveis justamente onde tudo lhe parecia perfeito e aceitá-
62 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
vel. Quando nova compreensão desponta no homem, por força senvolvida o permitir, porque justamente essa consciência é que
do processo evolutivo, nele também nasce nova insatisfação, lhes traça o limite e estabelece a proporção.
que o constrange a procurar formas mais civilizadas e harmôni- Quando Cristo viveu e morreu há dois mil anos, o mundo,
cas de vida. Dizer quais são essas formas constituiu a tarefa do preso a problemas imediatos e escravo de espetáculos de gran-
evangelho. E é exatamente a isso que também A Grande Síntese deza, de vício e de sangue, nem de leve imaginou a revolução
se propõe. O quadro da velha estrutura biológica está tornando- apocalíptica que, em longínqua e obscura província romana, se
se muito estreito para os espíritos renovadores; nele, o homem iniciava em silêncio. Ninguém imaginou que na ocasião, de fa-
se sente angustiado e se agita em meio de numerosas indaga- to, novo reino nascia na Terra e novo princípio começava a
ções, ao mesmo tempo que o passado transborda de seus velhos firmar-se. Isso mostra como os caminhos de Deus gostam de
limites. Começaremos a compreender a utilidade e a alegria que esconder-se nas formas de desenvolvimento normal (nas pará-
podem advir-nos de maior liberdade, impossível de obter senão bolas, a palavra de Deus cai e se desenvolve de modo natural,
à custa de maior sinceridade, resultante por sua vez de consci- como uma semente); como esses caminhos evitam a todo custo
ência mais profunda. O impulso dos acontecimentos de nossa o caráter maravilhoso e excepcional, que, em tais casos, deseja-
época consiste exatamente em conduzir o homem à compreen- do por nossa fantasia, constituiriam a violação mais gritante dos
são da conveniência de executar esse esforço de bondade, sem equilíbrios e harmonias de que se compõe a Lei. Os contempo-
o qual não se concebe o melhoramento da convivência social. râneos, deixando-se como sempre estar à superfície, natural-
Trata-se de tornar mais completa e espontânea a inclusão da lei mente nada perceberam do movimento profundo, percebido
de Deus na luta pela vida, isto é, da bondade na bestialidade, do apenas pelos videntes. Parece existir aí conexão, habitual na
livre convencimento na coação. Na prática, inclusive a lei do história, entre poder humano e embotamento espiritual. Os ex-
bem tinha de, no passado, revestir-se de sanções e utilizar a poentes intelectuais daquela época manifestam a incompreen-
vingança (o Deus dos exércitos e das vinganças), pois o hábito são mais completa. Coisa, de resto muito natural, pois viviam
da violência lhe era necessário para impor-se e ter eficácia. O do lado oposto da vida, no polo-matéria, enquanto o fenômeno
progresso obriga essas duras necessidades a se civilizarem, e a se processava no polo-espírito. Para o mundo daquela época, a
isso chegamos tão logo a maturidade, uma vez atingida, possa vida e os atos de Cristo se desenvolvem nas trevas e na indife-
permiti-lo sem prejuízo para o homem, isto é, quando este se rença e, quando acontece serem vistos, são mal compreendidos.
civilizou ao ponto de não ser mais preciso a força para obrigá- Até mesmo o povo de Israel, destinado a receber o Messias, es-
lo ao cumprimento da própria Lei. Só então pode a Lei abrir- pera a vinda de rei poderoso e conquistador e se considera lo-
nos os braços e o Deus da vingança tornar-se o Deus do amor. grado quando, ao contrário, se encontra em face de um reino
Isso aconteceu primeiro com Cristo e se repete agora. A Lei, nascido na humildade e no silêncio, em meio de mil obstáculos,
achando-se praticamente na necessidade de enfrentar a luta, te- com a morte ignominiosa de seu fundador. O povo ansiava por
ve de tomar necessariamente formas adaptadas a esse grau de um líder de reivindicações nacionais e de expansão material e
desenvolvimento, formas que, todavia, depois, foram tornando- não conseguia acostumar-se à ideia de que, ao contrário, se tra-
se cada vez menos adequadas aos graus mais elevados atingidos tava de renovamento mundial e de expansão espiritual. Nem
pela consciência humana. Em face desse desenvolvimento, es- um pouco dessa exterioridade clamorosa que golpeia os senti-
sas formas da Lei, para seres psiquicamente mais adiantados, dos. Nada! Na parábola se fala, isso sim, do grão de mostarda,
acabava transformando-se em escola de astúcia para evitar-lhes exatamente como exemplo de pequenez material. Aqui também
as insídias, em velado ensino da arte de fugir-lhes. A Lei, deste parece haver íntima ligação entre pequenez material e grandeza
modo, deixava de constituir, portanto, auxílio para a vida e se espiritual, e ao contrário! A incompreensão judaica atinge o
tornava uma prisão a evitar, mais um inimigo contra quem de- máximo no dia da entrada triunfal de Cristo em Jerusalém. Nes-
víamos aprender a lutar. Essa lei, quando posta em prática, era se dia, o povo, que clamava “Hosana! Hosana!”, pensava estar
absorvida na luta humana, reduzida a instrumento desta; assim, aclamando o fundador de um reino messiânico, mas terreno, e
acabava sendo modificada. Isso significava inverter-se-lhe a não o de um reino espiritual. Cristo permitiu e aceitou essa
função lógica, reduzindo-a a recrudescimento da luta pela vida, exaltação, que o subestimava, como testemunho de quão diver-
já de si dura. Porém, atingida determinada fase de maturação, sa era sua missão; naquele momento, os dois diferentes messia-
compreende-se que nos tornamos cruéis em nome de Deus, que nismos, o de Cristo e o da plebe, como que por acaso, se sobre-
muitos males se cometeram por causa do bem e muitos crimes puseram e coincidiram. Cristo aceitou o mal-entendido como
se praticaram em nome da verdade. Compreende-se, então, que, único testemunho possível de sua verdadeira realeza messiâni-
no passado, sob o pretexto de aplicação da justiça, o povo assis- ca, de que Ele tão pouco falava, por saber que ela não poderia
tia a exemplos de vingança e, assim, iludido pelo exemplo, se ser compreendida e admitida por parte de pessoas desejosas de
familiarizava com o espetáculo do ato sanguinário e educava- não fazê-lo. E, exatamente no ponto em que o povo acreditava
se. Compreende-se como a lei de seleção do mais forte diz res- começar o caminho do triunfo, aí Cristo já o havia percorrido e
peito a um plano biológico inferior, de que nos é lícito sair, e começava a palmilhar o da Paixão. Que exemplo de pobreza
como não constitui a única nem a última expressão das leis da aquela exaltação de Cristo, montado em pobre jumentinho,
vida. Vê-se também que estas, quando sabem manifestar-se quando a comparamos com as esplêndidas entradas triunfais
apenas sob a forma do primitivo equilíbrio-justiça da lei de tali- dos líderes vitoriosos através de todas as épocas! Ainda aqui se
ão e da força, então fazem desabrochar no indivíduo débil o as- nota a ligação entre riqueza formal e material e pobreza subs-
tuto, o traidor, o cínico, isto é, o maligno em que a força se sub- tancial e espiritual, e ao contrário! Instrutivos e invioláveis
roga. Está soando a hora de a Lei vir ao nosso encontro, dotada equilíbrios da vida, consequência da harmonia e justiça da Lei.
de maior bondade; de fato, a vida pertence a todos, e o princí- No meio de tanta incompreensão, ninguém poderia imaginar
pio da seleção do mais forte refere-se a fases evolutivas inferio- que, sob aparências tão singelas, se estivesse iniciando tão ca-
res, estando destinado a ser superado. Cada um de nós repre- tastrófica reviravolta no mundo daquela época, sob a forma de
senta uma força e, em ordenamento social mais consciente, até pacifismo, e que tão inesperado ataque se desencadeasse, diri-
mesmo uma utilidade. Ninguém, pois, deve ser esmagado, su- gindo-se de maneira imprevista contra “fronts” novos e, por is-
primido, eliminado, mas compreendido e valorizado. Eis-nos so, indefesos, onde aquele mundo encontrava-se desprevenido
em pleno conceito cristão. Eis o conteúdo da Boa-Nova de e, portanto, podia ser facilmente vencido. Assim, por falta de
Cristo. Porém essa nova distribuição de bondade, liberdade e compreensão, cai a sociedade israelita, que, prisioneira da for-
felicidade só será feita na Terra se uma consciência mais de- ma, acreditou, com a condenação de Cristo, assegurar sua mais
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 63
enérgica defesa e decisiva vitória. E pensar que, para chegar a faz, pois, naturalmente, parte do sistema. O homem pode esco-
esse ponto, sua própria classe dirigente, os sumos-sacerdotes, lher, mas, escolhido este ou aquele caminho, a lógica de seu
embora sabedores que Jeová permanecia o único e inconteste percurso domina-o inteiramente.
rei de Israel – tanto que, apenas a contragosto, toleravam em Assim se compreende como, na prática, todas as vitórias
Saul o primeiro rei humano – foram os primeiros a declarar não humanas da força são instáveis e transitórias, terminando em
existir outro rei senão César, isto é, um estrangeiro pagão. As- ilusão, enquanto na realidade, por força da lei de equilíbrio, pa-
sim, enquanto caiam no chão as depenadas águias romanas, o ra descer é antes necessário subir, e quem vence prepara a pró-
princípio da cruz conquistava o próprio coração do império. pria derrota. O Sermão da Montanha expõe esses equilíbrios.
Hoje, depois de dois mil anos de luta, compreendemos a impos- Por isso Cristo aconselhou a não resistir ao maligno, mas ofere-
sibilidade de enfrentar o problema social sem levar em conside- cer-lhe a outra face, contrapondo a bondade à ofensa. Seme-
ração o humilde e simples evangelho. Sempre vivo e atual, tor- lhante concepção pareceu modificação e total reviravolta, no
na-se fundamental para quem, como nós, se proponha o pro- entanto não passa de reordenamento e retificação de ideias, fa-
blema de construir. Embora não contenha em particular tudo zendo-as finalmente coincidir não com a ilusão, mas com a rea-
quanto em A Grande Síntese se expôs através de análise cientí- lidade. Os vencedores, pois, não passam de causadores de de-
fica e demonstração racional, o evangelho nos dá sempre os re- sequilíbrio, naturalmente destinados a sucumbir, mais cedo ou
sultados finais dessa operação lógica, naquele livro decompos- mais tarde, sob os escombros do edifício por eles construído. A
tos em seus elementos. A concordância entre princípios e de- moral a que chegamos está, desse modo, nos antípodas da mo-
monstração é prova que confirma e revalida. ral do mundo. Não é, pois, com a força que podemos construir.
O evangelho pode chamar-se o livro das harmonias e dos Esse é o princípio novo. O sistema humano, uma vez que atinge
equilíbrios. A novidade e a originalidade de seus princípios re- outros objetivos, não vistos pelo homem, é falso com relação à
side exatamente na justiça e no amor, em oposição aos princí- finalidade que a si mesmo propõe, e a história o demonstra.
pios do mundo, que são, ainda hoje, força e egoísmo. A pouco Construção estável só se torna possível com o sistema evangé-
empregada mas poderosa arma do evangelho, a mesma destes lico e equilibrado da justiça. Assim, com lógica mais simples e
escritos, é a verdade simples e espontânea, que se impõe por si realista, no evangelho se resolveu o problema da guerra, do de-
mesma porque persuade, e persuade porque satisfaz. Trata-se, sequilíbrio econômico, da luta de classe, da justiça social. Não
em relação ao mundo, de substancial modificação de seus ca- pode, pois, manter-se nada do que se constitui de íntimo dese-
minhos, da conquista de novas posições biológicas, da introdu- quilíbrio, exatamente por ser desequilíbrio de forças e lhe falta-
ção de novo principio na vida. A verdadeira força não consiste, rem elementos de estabilidade. Tudo quanto nasceu de abuso
de fato, em saber subjugar para vencer, mas sim na espontânea representa desequilíbrio, isto é, sistema de forças desequilibra-
posição de equilíbrio. O evangelho, colocando-nos em face aos do e incapaz de manter-se senão à custa de desequilíbrio pro-
dois princípios, ensina-nos a vencer com as armas deste último. gressivamente maior; representa, pois, sistema que, no seu pró-
Hoje, como naquela época, estamos diante do mesmo proble- prio princípio, carrega o germe de sua ruína. Por isso o homem
ma: a força não convence, a força não resolve, a força não ven- é tão ávido de energias, único meio capaz de sustentá-lo; mas,
ce. Dada a estrutura de nosso universo, fato objetivo que somos por mais esforços que faça, a lei de equilíbrio o assedia e se lhe
obrigados a admitir e não podemos alterar, o emprego da força contrapõe, para reconduzi-lo à posição exata, em correspondên-
significa o inicio de uma série de violências, impossível de con- cia com sua real função biológica. Já falamos disso tudo à pro-
trolar senão por meio de violências maiores, que não se acal- pósito da lei do merecimento, a que retornaremos mais tarde,
mam senão destruindo o inimigo. A premissa desse sistema é o examinando-a de ângulo individualista, relacionado com o pró-
egoísmo; o método é a expansão desordenada e semeadora de prio destino. Essas considerações escaparam a muitos líderes e
desequilíbrios no ambiente; a conclusão é o estado de ruína. fundadores de impérios. Na realidade, desempenharam eles
Ora, na realidade, pensar que a expansão ilimitada de egoísmo função bem diferente da imaginada grandeza. Muitas vezes, a
seja prejudicial apenas aos demais não passa de ilusão, pois a história atinge objetivos bem diferentes dos objetivos aparentes
vida tende, imparcialmente, a equilibrar todos os egoísmos. A que o homem se propõe e que constituem simples meio de in-
realidade é, pois, intimamente regida por uma Lei, isto é, feita duzi-lo à ação. Esgotada a função e atingido o objetivo, grandes
de ordem e, por isso, reage conforme a intensidade do estímulo, e pequenos atores são rapidamente liquidados.
isto é, à desordem responde com a desordem, ao choque violen- Nesses simples princípios evangélicos reside a única solu-
to com a dor, ao egoísmo com o aniquilamento. Enfim, a des- ção honesta para os problemas sociais. A vida humana em soci-
truição do inimigo, com a qual se esperava concluir, constitui edade é campo de forças em ebulição, em contínua rivalidade e
um absurdo; em primeiro lugar porque, em um mundo onde to- luta. A inconciliabilidade de tantas posições nos induz a obser-
dos os seres coexistem e tudo é comunicante, nenhum estado de var atentamente essas diretrizes tão disparatadas. Nas relações
ruína pode isolar-se sem repercutir em tudo ao redor; em se- sociais, as forças individuais mutuamente se reconhecem, se
gundo lugar porque quem acredita que a vitória seja a solução odeiam, se amam, ligadas pela interdependência dos vasos co-
ignora que o inimigo não é apenas destrutível forma exterior, municantes, pela relação entre o “dar” e o “haver”. Assim se
mas também vida, impulso, dinamismo, portanto indestrutível formam equilíbrios provisórios em contínua evolução. Eles se
como todas as coisas em substância. Apenas o obtuso involuído desenvolvem de acordo com determinada medida (passo), que
pode acreditar que a destruição aparente, apenas da forma, tam- permite se alojarem, nos interstícios do tempo, os aproveitado-
bém represente a destruição dessas forças imponderáveis. Elas res, os parasitas do equilíbrio, os ladrões de felicidade usurpa-
não morrem de modo nenhum e são invencíveis; acontece, po- da, pois não foi nem merecida nem ganha. Os míopes egoístas
rém, que, por força da reação, acabam sendo impelidas, para re- apressam-se a gozar, e morrem. Mas as forças por eles postas
equilibrar-se, a se moverem em sentido contrário, isto é, contra em jogo não morrem. E as gerações que morrem as deixam às
o próprio ofensor, restituindo-lhe o equivalente de sua ação, gerações que nascem, e estas devem aceitar, com o nascimento,
mas em posição inversa. O impulso, que parece caminhar em uma série de desequilíbrios ao longo dos séculos e dos milê-
direção da vitória, constitui, no entanto, verdadeira fábrica de nios. No destino coletivo, acontece com os povos o mesmo que,
inimigos, cavando um abismo diante de si mesmo; e as adesões no destino individual, sucede aos indivíduos, isto é, nossas
recebidas pelo dominador não significam convicções espontâ- obras nos acompanham a toda parte. São desequilíbrios econô-
neas e duradouras, e sim mentira, sob a qual se escondem o cál- micos, sociais, morais, políticos, psíquicos, orgânicos. As novas
culo e o interesse. A traição, logo ao primeiro sinal de fraqueza, gerações ou se reequilibram pagando; ou apenas os mantém,
64 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
suportando-os; ou aumentam-nos, arruinando ou deixando ruí- tástrofe de desproporção insuportável e permitido apenas na
na. São ódios, desajustamentos, dores; por toda parte vácuos a forma e na medida úteis às finalidades evolutivas da vida e do
preencher, equilíbrios a recompor. Nossos amados filhos paga- bem. A lei do dualismo, explicada em A Grande Síntese e por
rão por aquilo que desnecessariamente gozamos, ou gozarão nós mais adiante esmiuçada (cf. Cap. XXV: “O dualismo fe-
das forças por nós acumuladas. Quem aceita determinada posi- nomênico universal”), se em todas as coisas vê binômios, uni-
ção deve suportar-lhe a responsabilidade. Os recém-nascidos dades compostas de duas metades inversas e complementares,
são continuadores. Ai de nós, se já fomos impelidos no cami- mostra-nos também como todas as coisas têm o seu contrário.
nho da regressão. Então, o caminho fácil por natureza nos exi- Tal como o contraste condiciona a percepção, assim a contradi-
ge, para a volta, esforço tanto maior quanto mais nele já tiver- ção temida pelos lógicos constitui, pelo contrário, a base da vi-
mos avançado; e, quanto mais o declive aumenta e se torna pe- da e até mesmo do pensamento. O termo oposto representa o
rigoso, mais difícil é sabermos voltar atrás e nos recompormos. controle necessário, o freio inibitório, o contraimpulso proban-
Não há, então, solução possível, e o homem, na realidade, não te. A reação reforça a resistência, a oposição garante a verdade.
soube resolver essas posições senão à custa de sua ruína final. Quem conquista autoridade cria inimigos, é certo, mas apenas
Tal é, de fato, o sistema funcional da vida, e não podemos no campo em que a exerce e na medida em que a possui. Trata-
mudá-lo. Nenhuma força ou astúcia humana pode impedir que, se de compensações automáticas verificáveis em qualquer cam-
apenas determinada força se forme, lhe nasça ao lado uma força po, apenas uma força se manifesta, exatamente porque toda
contrária e inversamente proporcional. Assim que determinada unidade se constitui de uma dupla de contrários. O forte é forte;
autoridade se cria, ao mesmo tempo surge seu inimigo, do mas, quanto mais forte, mais inimigo atrai. O fraco é fraco; po-
mesmo modo que, tão logo se forma um organismo, lhe nasce o rém não cria inimigos, o inerme é benquisto. O homem desar-
parasita, seu micróbio patogênico específico. Do mesmo modo, mado atrai, o homem armado causa repulsa.
o oprimido, por força de natural lei de compensação, de gera- Muitas vezes, esses contraimpulsos se conservam em estado
ção em geração, espera através dos séculos o momento de debi- potencial, latente, à espera de condições adequadas à sua mani-
lidade do opressor. Todo indivíduo é mais ou menos uma mola festação. A vida social está repleta dessas forças, às vezes com-
comprimida e à espera de soltar-se, é um ódio em potencial ou primidas e concentradas como explosivo. E é nos momentos de
uma vítima já destinada ao sacrifício. A força atrai a revolta; o mudança de fase, de novas combinações, durante os quais, tran-
império, a revolução. Os vencidos tanto esperarão, que o desti- sitoriamente, a estabilidade dos equilíbrios precedentes se des-
no do próprio vencedor lhes trará consolo. É sua a culpa de ha- loca à procura de novos, é nesses momentos que as forças la-
ver pretendido vencer. Na história não se dá o mesmo? Todo tentes e comprimidas explodem. A evolução subentende e im-
poder atrai resistências que lhe constituem não só verificação e põe esses deslocamentos. Então, esses impulsos, que, em épo-
prova, mas também ameaça e o próprio fim. Só o amor desar- cas normais (porque equilibradas), repousavam em equilíbrio,
mado atrai e cria amigos. Di-lo o evangelho. Isto é, somos se- ao primeiro sinal de enfraquecimento de uma parte, despertam
nhores de constituir uma força e agir de acordo com ela; não e se enfurecem; de fato, com o deslocamento daquela parte e
podemos, porém, impedir o nascimento simultâneo de uma for- tendo-se presente, como em toda balança, que essas forças têm
ça contrária que a contrabalance e nos agrida. Por isso, se qui- posição relativa, elas conquistam nesse momento proporciona-
sermos resolver o problema da guerra, o único caminho é o do aumento e valor. A calma, a paz, é apenas o equilíbrio de
perdão, para resolver o problema do ódio, só há este caminho: o forças opostas que se guerreiam. Em face dessa mecânica da
amor. Eis o significado das palavras de A Grande Síntese (Cap. vida, se não a levarmos em consideração, não podemos con-
XLLI): “Existe apenas esta defesa extrema: o desarmamento quistar nenhuma posição estável. Se apenas como fenômeno
geral”. Afirmações simplíssimas, de lógica elementar, no entan- biológico podemos compreender o fenômeno social, o fenôme-
to difíceis de entender, e com que desastrosas consequências! no biológico, por sua vez, só pode ser entendido como fenôme-
O que não se pode perdoar ao nosso mundo racional é essa no dinâmico, isto é, como relação de forças. Para ter verdadeiro
irracionalidade de sua conduta, é esse erro basilar em seu cálcu- direito, torna-se necessário não haver pecado e abusado nesse
lo utilitário que, todavia, lhe constitui o núcleo de todos os pen- campo durante séculos. Só então, a bandeira, a roupagem, a
samentos. Contudo verifica-se que, realmente, a construção le- classe que o representa poderá dizer: esse direito me pertence.
vantada por Cristo, usando como força a simples verdade de- Do contrário, assistiremos a interminável sucessão de bandei-
sarmada, supera em tamanho e duração muitas construções. ras, de classes dominantes e dominadas, pois todos pecaram por
Como assim? Sabedoria do engenheiro que traçou o plano bem excesso. O segredo da estabilidade de uma posição é não ali-
equilibrado da construção. Sozinha, a força não pode fazer o mentar, ao seu lado, o contraimpulso compensador e destrutivo;
mesmo, pois não possui essas qualidades. Apenas o que se edi- é cercarmo-nos não de força, nem de ódio, mas de benevolência
fica sobre a verdade consegue crescer em extensão e profundi- e fé. Não há, pois, outro caminho: ou, de acordo com o sistema
dade, pois está solidamente plantado no campo de forças da vi- evangélico, abandonar a força, ou saber mantê-la sempre em
da. Mas observemos o fenômeno mais um pouco. Assim que, condições de defender-nos. Como, porém, não representa o
no dinamismo universal, uma corrente se caracteriza, isto é, tão equilíbrio espontâneo da Lei e deve lutar para manter-se, essa
logo uma força, isolando-se e individuando-se, manifesta-se, força, com o tempo, se gasta e esgota e não pode resistir por
logo se determina no próprio dinamismo universal, por força da muito tempo. Não nos resta senão nos prepararmos para passar
lei de equilíbrio, uma corrente contrária; esta, então, isolando- da parte dos vencedores para a dos vencidos. Defrontamos,
se e individuando-se, torna-se evidente como força oposta a pois, este dilema: perdoar ou, se queremos dominar, irmos
contrabalançar a primeira (eis o atrativo especial das coisas pro- acostumando-nos à ideia de que, mais tarde, pagaremos por is-
ibidas, exatamente porque proibidas). De acordo com esse prin- so. Eis o dinamismo íntimo que explica, com todo o rigor da
cípio, nenhum fenômeno foge aos limites preestabelecidos e, lógica, as afirmações do Sermão da Montanha.
embora sendo contínuo movimento de evolução, não se desen- A vida tudo registra e conserva, para mais tarde reagir. Cui-
volve senão de acordo com plano traçado pela Lei. Proíbe-se dado com a semente que plantamos. Em qualquer ato, educa-
desse modo todo desenvolvimento hipertrófico e unilateral, to- mos os outros e os outros nos educam. Uma posição social im-
do excesso de desarmonia e desproporção no conjunto. Assim, portante não pode manter-se pela força, mas apenas pelo exer-
toda manifestação pode processar-se apenas se enquadrada nos cício da função; a autoridade permanecerá de pé enquanto mis-
limites assinalados pelos princípios diretores. O desenvolvi- são; a riqueza será tanto mais segura quanto mais amplas forem
mento é, pois, dirigido harmonicamente, protegido contra a ca- suas bases, isto é, quanto mais estender-se dos estreitos limites
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 65
da utilidade individual para o campo da utilidade pública. “O problema econômico” e XCIII “A distribuição da riqueza”).
Qualquer posição, para resistir, mais do que na força deve fun- Este último já o comentamos em parte, no que diz respeito à
dar-se no merecimento, no valor intrínseco, na superioridade propriedade, no Cap. II deste volume: “O homem involuído e a
intrínseca de tipo, nas qualidades inscritas nos instintos, apenas propriedade”. Vejamos como o evangelho está de acordo com
lentamente formados por automatismo, por meio do método de tantas aspirações modernas e antecipa os novos ordenamentos
educação das raças animais. Tão-somente o que resiste, por ha- de nossos tempos. O advento da justiça social, grande realiza-
ver se fixado na personalidade, constitui força verdadeira, coisa ção a que o século XX aspira, o evangelho anunciou-o e prepa-
própria e, por isso, direito pessoal. Ai dos que querem vitória rou-o do modo mais substancial. Comecemos pela distribuição
esmagadora; cavam a própria sepultura. Ai dos improvisados da riqueza, o mais atual e angustioso problema, o problema prá-
distribuidores de justiça que vão além do necessário e invadem tico e básico da vida coletiva de todos os tempos. Como Cristo
o lado oposto da linha mediana do equilíbrio. Pagarão por isso. reequilibra os desajustamentos econômicos tão debatidos? A
A reação que preparam os atingirá também. A história nos mos- solução do problema da distribuição equitativa Cristo no-la dá
tra quanto é fácil e humano passar, embora com prejuízo, da sob forma substancial, completa e definitiva, porque equilibra-
parte dos revolucionários da justiça para a parte dos revolucio- da, e não sob a moderna forma de luta de classe, que não resol-
nários da injustiça. Todo excesso semeia ódio, que é contraim- ve, pois é desequilibrada. O método da luta não representa nada
pulso reprimido, conta a ser paga. Em relação a quem não pra- de novo e de resolutivo; não passa do comum e velho método
tica excessos, permanece-se espontaneamente indiferente. As- de enriquecimento por substituição. Esse método não chega a
sim, a vingança nada resolve, mas agrava o mal e, obtida a sa- solução alguma como sistema, pois se limita a substituir pesso-
tisfação, o credor passa à condição de devedor. A única solução as e classes sociais nas mesmas posições antigas. Por isso des-
verdadeira consiste na anulação do contraste, na neutralização perta profundamente o interesse de pessoas que o aproveitam,
da força, isto é, consiste no perdão. dando-lhes vantagens pessoais; não interessa, porém, ao pro-
O dinamismo da vida é corrente que capta todas as influên- gresso social, ao qual importa a estrutura orgânica da socieda-
cias, em todas as coisas vai buscar elementos formadores, assi- de, e não a utilidade pessoal, a renovação do ordenamento das
milando tudo quanto lhe age no ambiente em torno. Cada ato posições, e não as pessoas que as ocupam, a eliminação dos ve-
nosso dá e recebe, influencia e deixa-se influenciar, e tudo volta lhos erros e explorações ao invés da sua continuada repetição
às origens. Assim se explicam certos ódios instintivos, como o em proveito alheio. A moderna luta de classe não passa da ve-
votado pelo homem à cobra, ao escorpião e outros animais ve- lhíssima luta biológica, que, legitimando-se e assumindo fun-
nenosos, como o sente o empregado pelo empregador e ao con- ções de distribuidora de justiça, procura adquirir prestígio. Ve-
trário; se explicam também certos ódios de classe e de raça, cer- lho mimetismo que não subsiste em face das verdadeiras forças
tos tipos biológicos feitos de traição e de mentira. Em verdade, da vida. Isso não é equidade. A equidade, nesse caso, é apenas
para dominar, não basta vencer. Torna-se necessário, outrossim, um pretexto. O método empregado pela violência e pela prepo-
verificar que tipo biológico a ação do dominador cria. Para nós tência, no fundo, revela o mesmo abuso, fonte das costumeiras
todos, a vida constitui experiência, formação de qualidade. e infindáveis reações. E o homem, fascinado pela miragem do
Quem acredita que pode triunfar impunemente ou que o domí- bem-estar, continua acreditando na possibilidade do absurdo,
nio pela força represente ilimitado poder, não sabe que, ao con- isto é, que a usurpação possa produzir frutos estáveis e que bas-
trário, aquece no próprio peito uma raça de víboras prontas para te disfarçar a força com as vestes da justiça para obter aqueles
picá-lo e envenená-lo. Em última análise, nos ódios sociais há resultados definitivos que ela, por natureza, não pode dar. As-
sempre razão determinada, erro a ser reparado, equilíbrio a re- sim, os homens mudam, mas os erros continuam.
compor. Inútil disfarçar. A forma nada significa. Qualquer ato Apenas a equidade pode oferecer solução estável e conclu-
nosso é semente e, por isso, substancialmente se repete. Convi- siva, com a adoção de um sistema de equilíbrios, e não por
vência significa reação e educação recíprocas. O mundo hoje é meio de novas usurpações com que, em nosso proveito, acredi-
certamente um turbilhão de forças descontroladas, uma tempes- tamos corrigir as anteriores. Isso não é justiça, mas egoísmo. E
tade que a todos nos arrasta. Porém, se o reequilíbrio é difícil, quando a verdadeira justiça não se faz presente, as mesmas ra-
fatigante e remoto, isso não pode impedir que ele continue lógi- zões que hoje nos autorizam a, no domínio e bem-estar, substi-
co e necessário, como única via de salvação. tuir os seus detentores, vão amanhã autorizar que outros nos
substituam, e assim por diante. Forma-se então a muito conhe-
XX. O PENSAMENTO SOCIAL DE CRISTO cida e resistente cadeia de ações e reações intermináveis. Se
queremos chegar a alguma conclusão, essa equidade não deve
O exame crítico do fenômeno social, a observação de seus ser apenas aparente, mas substancial, nem estar somente nas
impulsos e efeitos consequentes, explica-nos e demonstra-nos formas, mas também nas almas. Noutras palavras, torna-se ne-
logicamente as afirmações do evangelho e alguns limites que cessário introduzir também no mundo econômico o conceito do
novas concepções modernas, aplicando-o sem querer, impõem equilíbrio, da ordem e da harmonia, fundamental em qualquer
ao direito, antigamente ilimitado e sem disciplina, de uso e abu- campo de forças e, por isso, inclusive na riqueza, que não passa
so, das pessoas e das coisas. A evolução social consiste exata- de caso particular. De acordo com ele, do mesmo modo que o
mente nesse contínuo e progressivo enquadramento das forças ódio só termina se lhe contrapusermos o amor, a ofensa se lhe
da vida, para, na ordem coletiva, transformá-las cada vez mais opusermos o perdão, e a violência se lhe antepusermos a paci-
em concerto de harmonias, em vez de desencadeamento de vi- ência, assim também o desajustamento e a luta não findam se-
tórias e violências. Nesse campo, o pensamento social de Cristo não contrapondo-lhes a verdadeira equidade e justiça.
antecipou de dois mil anos as tendências atuais e indicou tudo Cristo não diz aos pobres: rebelai-vos. O sistema é radical-
quanto, socialmente falando, apenas hoje começamos a com- mente diferente do sistema do mundo. Todavia, a este, que não
preender. Tais concordâncias corroboram estas nossas explica- compreende coisa alguma senão à luz crepuscular da vitória-
ções, concordâncias, aliás, bem naturais, porque o princípio da derrota, ele dá a entender que não vê no pobre um derrotado. Se
vida é um só e, na verdade, não pode mudar, embora expresso, não diz: “rebelai-vos”, muito menos diz: “sofrei passivamente”.
ontem, hoje e amanhã, sob forma científica, religiosa ou social. Diz, pelo contrário: “Vós, vítimas da injustiça, tolerai, tende
Nas páginas precedentes, desenvolvemos o Cap. XCI de A paciência”. Por que isso? É o que nos perguntamos. Como
Grande Síntese (“A lei social do evangelho”). Acrescentemos sempre, a filosofia de Cristo se completa num mundo ultrater-
agora algumas observações aos dois capítulos seguintes (XCII – reno, na íntima realidade das coisas, em que se completa e justi-
66 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
fica toda aparência percebida por nós. A razão, diz-nos Ele, re- afortunados e, com relação a eles, mudando completamente o
side em que a injustiça que vos oprime é apenas humana e, por tom do Sermão, mostra-lhes sua própria miséria, não lhes con-
isso, temporária, presa tão-somente a esta vida na Terra, não cede nem salvação nem trégua, indicando-lhes as graves obri-
passa de pequena injustiça secundária, incapaz de violar, como gações inerentes à sua posição e ameaçando-os com as conse-
de fato não viola, a bem maior justiça divina, que transforma o quências de seu inadimplemento. Desse modo, lógica e natu-
oprimido em credor. Ficai, pois, tranquilos, se ainda hoje so- ralmente, sem novos excessos e novas desordens, o mundo
freis injustamente, como pode parecer-vos. Deus é justo, e a in- econômico se reequilibra completamente, confiando a solução
justiça do momento será compensada, reequilibrada; vosso di- do problema não a sistemas sociais exteriores e coativos, mas
reito é verdadeiramente justo, vossa consciência não se engana ao simples, real e espontâneo funcionamento das forças íntimas
e será ouvida. O sistema do universo é perfeito, lógico, equili- da vida. E, logicamente, o reordenamento começa no indivíduo
brado, absolutamente estável. Mas o tipo normal, isto é, o invo- e em sua íntima convicção, ao invés de na coletividade e na co-
luído não sabe enxergar tão longe e leva essas promessas em ação; começa no ato generoso de dar, e não no de tomar, que é
brincadeira. Culpa de sua miopia. furto e violência. Só o “dar” livre e convicto reequilibra e sane-
A nova afirmação irrompe gritante no início do Sermão da ia, o “tirar” não; só mudando, antes de nada mais, as diretrizes
Montanha, enunciando-lhe de um só golpe os temas fundamen- psicológicas do caso particular, conseguimos estável transfor-
tais. Em suas antíteses percebe-se a inversão das posições, o jo- mação coletiva. Os sistemas do mundo de hoje são muito varia-
go das forças opostas, o dualismo do binômio de que esses ar- dos e, se correspondem a forte necessidade de justiça e expri-
gumentos constituem os extremos e servem ao equilíbrio das mem a tendência da evolução social na fase presente, estão
forças. Eis o texto (Lucas, Cap. 6): muito longe de possuir os requisitos necessários para poder ins-
“...Bem-aventurados vós, os pobres, porque vosso é o rei- taurar a sério a justiça social. Partindo da injustiça, da violên-
no de Deus. cia, não podemos chegar à justiça, mas apenas a nova injustiça.
“...Bem-aventurados vós, que agora tendes fome, porque Existe, pois, outra economia política, não baseada no “do ut
sereis fartos. des” das trocas do “homo economicus” ou no princípio hedo-
“...Bem-aventurados vós, que agora chorais, porque ha- nístico, mas assentada nos equilíbrios das forças em ação no
veis de rir. funcionamento da vida. Essa é a economia do evangelho. Se, de
“...Mas ai de vós, ricos! porque já tendes a vossa conso- simples relação de egoísmos humanos, a base da economia pas-
lação. sar a relação muito mais vasta, de impulsos biológicos, conse-
“...Ai de vós, que estais fartos! porque tereis fome. Ai de guem-se resultados imensamente maiores, tanto na profundida-
vós que agora rides! porque lamentareis e chorareis”. de quanto na excelência e estabilidade.
O problema resolve-se através das beatitudes. Quer dizer, os Observemos agora o pensamento de Cristo em relação à
pobres, os famintos, os atribulados, além de fraternalmente las- propriedade. Ele não enfrenta e resolve os problemas sociais
timados e reconfortados com o reconhecimento ao seu direito isoladamente, como muitas vezes fazemos, mas enquadrando-
de serem compensados, são considerados incontestavelmente os em soluções mais vastas e profundas e, por isso mesmo,
bem-aventurados, isto é, vencedores, afortunados; por outro la- mais completas. O preceito “ama o teu próximo como a ti
do, os que o mundo inveja como vencedores são tidos na conta mesmo” contém e resolve implicitamente todos os problemas
de vencidos, de desgraçados. Esse é o juízo de Deus, que se co- sociais. Esse enquadramento, se copia a amplitude dos direitos
loca no lugar do juízo humano. É assim que Deus julga. Por is- da jurisprudência romana, coordena-os no plano social e freia o
so, ó pobres, não vos arrogueis o direito, que só a Ele pertence, individualismo em beneficio do coletivismo, traçando precisa-
de fazer justiça. E justiça já vos foi feita. Querendo alcançá-la mente a tendência dos tempos modernos. Já existe, estabelecido
por vós mesmos, violentamente, perturbais o equilíbrio já exis- no evangelho, um princípio que se manifestará mais tarde, com
tente. Tendes razão, mas ides colocar-vos ao lado do erro; das um lento movimento na forma de cerco do arbítrio, da liberdade
culminâncias dos vencedores vos precipitais na miséria dos incontrolada, do abuso, movimento que, iniciando-se com o
vencidos; da harmonia dos planos divinos ides mergulhar no Cristo, continuou e continuará até à sua completa realização.
marasmo das baixas competições humanas. Perante Deus, já Assim, o absolutismo do poder público e da propriedade priva-
tendes razão. Bem-aventurados sois. Que mais podeis desejar? da se substituem por formas mais suaves e equilibradas. O “jus
Se não esperardes que a justiça venha de Deus, mas de vossa utendi et abutendi‟11 dos pagãos, egoisticamente ilimitado, raci-
violência e de vossa revolta, então passareis da parte dos credo- onalmente sofre cada dia maiores restrições em favor ao reco-
res para o lado dos devedores. Não tenteis legitimar vosso rou- nhecimento da utilidade pública, conceito que é conquista mo-
bo, dizendo que a propriedade é um roubo. De acordo com es- derna na concepção orgânica do Estado. Mas o evangelho, com
ses argumentos, que coisa seria vossa propriedade atual? Não dois mil anos de adiantamento, avançara muitíssimo, fazendo,
vedes, porém, que exatamente o vosso furto presente legitima o por motivos de utilidade pública, pesar como limitação sobre a
furto passado e estais no mesmo plano e imitais exatamente propriedade até mesmo a pobreza do próximo, de que não é lí-
aqueles a quem acusais? Por que razão apenas o vosso furto se cito desinteressarmo-nos. O conceito de utilidade pública es-
justificaria, mas o dos outros não? E vós, improvisados distri- tende-se assim até abranger, além dos interesses do Estado e da
buidores da justiça, é essa a justiça que distribuís? Não. À filo- coletividade, também os interesses do indivíduo infeliz; chega,
sofia do interesse falta lógica; quando pretendeis passar por jus- assim, a conquistar conteúdo biológico protetor, assume o cará-
tos, mentis. Não. Jamais é lícito roubar, nem mesmo dos la- ter de função conservadora da vida, torna-se expressão de leis e
drões, como facilmente acreditamos. Então, ao invés de justi- forças universais. Que sentido e alcance diferentes agora tem o
ceiros, também sois ladrões e pagareis por isso. A culpa é mal programa de igualdade econômica, isto é, o que visa à defesa
infinitamente maior do que a pobreza. Antes de mais nada, me- do direito fundamental de todos à vida!
recei, pois, sem merecerdes, nada podereis possuir com segu- Desse modo, o interesse coletivo não se detém e, com utili-
rança e, por isso, gozar (cf. Cap. VI deste volume: “A lei da dade geral, se avantaja sobre o interesse egoístico do indiví-
honestidade e do merecimento”). duo. A propriedade privada subsiste, cada vez menos como
Assim, esclarecidos e confortados os pobres, depois de, co- império arbitrário e cada vez mais como função social disci-
locando-os num pedestal de grandeza, havê-los protegido con- plinada, como serviço público. Mas exatamente o fato de as
tra os juízos humanos, depois de exortá-los a conservar a van-
11
tagem dessa preciosa posição, Cristo dirige-se aos ricos, aos Direito de usar e abusar. (N. da E.)
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 67
bases da propriedade privada se espraiarem na coletividade é a tado moderno; porém, neste livro, também se afirma que, sem a
sua completamente nova garantia de solidez, que antes, com a concomitante maturação íntima do indivíduo, esses sistemas
alternância de abusos e reações, ela não podia possuir. Quem exteriores e coativos, por isso desequilibrados, podem, abando-
jamais pensaria em atacar riqueza e propriedade de que todos nados a si mesmo, reduzir-se a asfixia, mentira, reação, instabi-
tiram vantagem? O peso dessas limitações se compensa, em lidade. Nada consegue durar, se não conseguirmos também per-
face dos equilíbrios da vida, com a estabilidade e o sossego; o suadir e educar. O indivíduo, se não for persuadido, embora so-
não esquecer o próximo, para o rico, se transforma em força fra e obedeça, poderá refugiar-se na inviolável liberdade do es-
protetora; o sacrifício aparente fica bem pago com nova garan- pírito. Todos os sistemas humanos fundados na coação natu-
tia de gozo. Assim, essa cessão à utilidade coletiva reduz-se à ralmente produzem, ao contrário, as reações já descritas. Torna-
vantagem que recai também sobre o particular. O pensamento se necessário, quando nos dispomos a construir, levar em conta,
evangélico caminha muito à frente das incompletas reformas não só no campo moral como também no social e utilitário,
modernas, fazendo do rico não mais simples proprietário, que aqueles equilíbrios de forças que o evangelho demonstra co-
trabalha em proveito próprio, mas administrador em proveito nhecer profundamente. Se não for assim, o método humano fi-
alheio. E o evangelho não chega a soluções tão radicais através cará na situação de retardatário relativamente ao de Cristo e
de sistemas distributivos artificiais e coativos, mas através do quem praticar este último, representativo de superamento da
individualismo mais completo e livre. Cristo não apela para as força, se tornará independente de tudo quanto dela se origina. A
coações estatais, mas se dirige tão-somente à convicção da ín- estratégia cristã, baseada na verdade e na justiça, pertence a um
tima maturação pessoal e ao irresistível funcionamento das leis plano superior ao plano humano da força e do império, por isso
vitais. No evangelho a palavra “verdade” suprime e substitui a é mais poderosa e vence o combate travado entre os dois pla-
palavra “sanção”. O grande abismo entre os dois sistemas, o nos, como acontece na luta entre involuído e evoluído. Assim,
evangélico e o coletivista moderno, é o mesmo que vai de os exércitos mostraram-se impotentes para defender Roma, en-
substância a forma. O primeiro emprega a paz, é equilibrado e quanto a cristandade, desarmada, se colocou a postos e venceu.
resiste; o segundo utiliza a guerra, é desequilibrado e não resis-
te. Em todo o sistema de Cristo não se fala em guerra e, por is- XXI. CRISTO PERANTE ROMA
so, sendo equilibrado, é solidíssimo. O princípio dissolvente,
que prega a desordem e a luta, foi dele completamente excluí- Não podemos compreender bem a revolução social iniciada
do, como terrível força desagregadora, que, antes de tudo, deve por Cristo e em seguida continuada lentamente através dos sé-
ser a qualquer custo mantida bem longe, se quisermos constru- culos, até ao decisivo e atual momento histórico, senão compa-
ir com solidez. Por essa razão toda agressão, toda violência, rando rigorosamente a psicologia da romanidade imperial com
todo ódio e todo choque, seja qual for a finalidade, deve sem- a do programa evangélico. O problema continua atual, porque o
pre ser considerado como absolutamente negativo, destruidor choque das forças contrárias é idêntico hoje em dia e o mundo
e, por isso, antissocial. O verdadeiro inimigo, que impede a so- se encontra nas mesmas condições; as duas concepções estão
lução de todo problema coletivo, está dentro de nós mesmos, nitidamente em luta. Observemos a estrutura da concepção so-
em nossos sistemas, nascidos de nossos instintos, em nossa po- cial romana, para em seguida verificar como o cristianismo, de-
sição de desequilibrados, no caminho que seguimos para re- sarmado, desfecharia o assalto exatamente às bases dos princí-
solvê-lo. As leis da vida são o que são. Não há outro caminho: pios que regiam toda a estrutura do império e, justamente por
ou as cumprimos e gozamos de suas vantagens ou nos descu- ser fase biológica mais evoluída, o poderia pacificamente supe-
ramos delas e sofremos as consequências. rar e vencer. O choque se dá, essencialmente, entre força e jus-
Daí se vê como a luta de classe constitui o meio menos ade- tiça, entre duas diferentes estratégias, que não combatem no
quado a esse objetivo. Menos danoso é o sistema de coação es- mesmo plano nem com as mesmas armas e falam línguas mutu-
tatal. O único sistema perfeito é o socialismo convicto e espon- amente incompreensíveis. Cristo e Roma estão face a face.
tâneo de Cristo, que não agrava a situação, pondo em choque os Simbolizam dois sistemas, vivos ainda hoje, ainda hoje face a
interesses egoístas, mas começa pela afirmação e tomada de face, e o problema continua atual. O estudo do dinamismo ín-
consciência da unidade espiritual; que não parte, como o socia- timo, já explicado, dos dois mundos, representados respectiva-
lismo humano, dos direitos e da luta, mas dos deveres e da paz. mente por Cristo e Roma, nos demonstrará sob forma racional o
Não se nega, por isso, a dura necessidade dos sistemas huma- significado íntimo desse choque.
nos, pois parece que, sem coação, nada se possa conseguir de O império romano representava a máxima realização da
involuídos; verifica-se tão-somente constituírem eles péssimo força, plenamente triunfante. O direito romano é, sem dúvida,
sucedâneo, de que nada de bom e conclusivo se pode esperar poderosa criação de gênio coordenador, admirável monumento
senão na percentagem do produto genuíno nele contida. O obje- de disciplina e organização, porém permanece sempre ao nível
tivo é sempre a justiça social; os métodos para consegui-lo é da força. Na violência mergulham as raízes do direito, que, ao
que diferem. Porém, aí onde predomina a intervenção do Esta- invés de quebrá-la, condenando-a, intervém para discipliná-la.
do, e ninguém pode desconhecer-lhe a necessidade e a utilida- É sem dúvida um passo à frente, indispensável primeira tenta-
de, torna-se necessário não esquecer o individualismo cristão, tiva no sentido de domesticá-la e reabsorvê-la; mas o princípio,
de raízes profundamente mergulhadas nas leis da vida e apto a tão distante do evangélico, é baixo, biologicamente adequado
suavizar, contrabalançar e completar o trabalho do outro siste- apenas ao tipo involuído, cuja inferioridade já examinamos. O
ma. De fato, individualismo e coletivismo são apenas os dois direito romano não se rebela contra esse princípio, mas o acei-
extremos do mesmo problema social e dois modos de resolvê- ta e, contentando-se com dignificá-lo, intervém para aprovar,
lo, que não se podem reciprocamente ignorar; são, como ho- tornar válido e legalizar o fato consumado. Da maturação evo-
mem e mulher, dois termos inversos e complementares, e a so- lutiva daqueles tempos não se poderia exigir mais. O Império
ciedade pode desenvolver-se apenas à custa do concurso e da nada mais era senão o método mais aguerrido, orgânico e legí-
colaboração harmônica de ambos. De fato, ninguém é mais co- timo de dominação. Mas fez-se tudo quanto a evolução bioló-
letivista que o individualista cristão; em nenhum programa há gica do tipo majoritário permitia. Por isso permanece de pé,
tanto coletivismo como no programa social de Cristo. Por isso é embora em sentido relativo ao momento histórico, a indiscutí-
mais fácil chegar ao coletivismo verdadeiro através do indivi- vel grandeza do Império e a função social de suas criações ju-
dualismo que do próprio coletivismo. Ninguém discute a im- rídicas. Os romanos, sem dúvida, introduziram ordem na força,
portância construtiva do senso orgânico representado pelo Es- que, assim, de impulso desagregador, se viu constrangida a
68 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
tornar-se instrumento de construção social. Comparado com a nível de Roma, não compete com o poder, não o trata de igual
indisciplinada violência do selvagem, esse fato constituiu sem para igual; obedece-lhe por dever, mais como homenagem ao
dúvida grande progresso. As províncias anexadas foram, de- próprio dever, isto é, ao valor dessa figura moral, do que ao
certo, exploradas, esmagadas, submetidas a servidão e a paga- poder considerado em si mesmo, quer dizer, à superioridade do
mento de tributos com que se alimentava o tesouro de Roma, domínio alheio. Seu respeito é mais pelo princípio do que pelo
mas foram também incorporadas ao grande organismo, gover- homem, que vale o que vale. Dá, pois, ao poder tudo quanto
nadas e, por isso, impregnadas do conceito, para elas superior, lhe diz respeito, como se tratasse de criança a quem não se ti-
de organicidade central que Roma lhes transmitia. A grandeza ram os brinquedos, tão pequeno valor se atribui ao que ele de
imperial se impôs, fora de dúvida, como mão de ferro sobre o fato é e reclama. Em substância, a atitude de Cristo perante a
mundo daqueles dias; não havia, porém, outro modo de civili- autoridade do mundo é a de respeitoso e dignificante desprezo,
zá-lo. Por isso, tudo estava biologicamente proporcionado, cor- porque, em relação ao céu, são desprezíveis o mundo e tudo
respondendo às necessidades da época. quanto lhe pertence. Realmente, Ele despreza a realeza terrena
Contudo o vício originário de que resultava toda a estrutura oferecida pelas turbas, sentindo-se rei, mas de reino bem dife-
do sistema, embora justificado e até mesmo enobrecido, cons- rente. Sua atitude em relação às autoridades constituídas não
tituía permanente acusação movida à romanidade, comparado poderia consistir na costumeira atitude humana, que, filha da
com os métodos mais evoluídos enunciados pelo evangelho. O força, não passa de servilismo ou, então, de rebelde tentativa
fato de Roma, máxima potência jurídica, ter sido a mãe do di- de subverter as posições, para, em seguida, ocupá-las; sua ati-
reito, jamais pôde impedir que suas raízes se embebessem no tude, muito ao contrário, porque deriva de princípio mais ele-
espírito de dominação e nas violentas conquistas da guerra. A vado, é naturalmente superior e quase de indiferença. Os gran-
mancha era considerar-se, mais tarde, plena e legítima a pro- des valores não residem lá onde o homem pensa, e os valores
priedade filha do furto, obtida apenas com o emprego da força. humanos não merecem tanta atenção. Considerados em si
Esse reconhecimento oficial do direito do mais forte, essa ade- mesmos, causam-nos mais piedade que inveja, se não contive-
são incondicional a esse principio moralmente inferior, revela rem mais elevado conteúdo moral de função e missão. Assim,
o baixo nível espiritual daquele povo e constitui acusação con- a posição de Cristo em relação a tudo quanto é tido no maior
tra ele. Acusação de egoísmo que, num mundo de civilização apreço como afirmação do homem da força, é negativa, de res-
mais adiantada, não lhe daria o direito de tornar-se nação se- peitosa abstenção, tão longe deste mundo estão os maiores te-
nhora das gentes. A força transformada em justiça, eis as bases souros da vida, tão diferente da posição em que se crê é a rea-
do Império Romano. O estudo que fizemos do valor da força lidade íntima das coisas, tão repleto de poder e riqueza está o
do dinamismo dos fenômenos sociais nos mostra as razões da outro reino, o do céu. Eis como o espiritual e o temporal se to-
queda daquele Império e de sua substituição pelo cristianismo; cam, sem que, porém, um invada o campo do outro. Tudo
mostra-nos que a violência gera contra seu autor reações ini- quanto Cristo tem em grande apreço é desprezado pelo mundo;
migas e destrutivas. Assim o cristianismo, representando prin- Cristo despreza tudo quanto pelo mundo é tido em grande con-
cípio mais elevado, tinha o direito de viver no lugar do antigo sideração. Que pôde o império de Roma contra Ele? A lei filha
princípio, que, encontrando-se com suas funções já esgotadas, da força não possuí outra arma senão a força; poderá constran-
ficou sepultado nas próprias ruínas por ele buscadas. Conceitos gê-Lo, Ele, porém continua livre no espírito. E, ameaçado por
esses ainda incompreensíveis para os romanos. O evangelho Pilatos, autoridade humana, responde-lhe que o poder vem do
estava acima de sua compreensão. alto, e não somente de baixo, quer dizer, é bem diferente do
A antiga Roma é grande, mas apenas no plano humano. Seu simples resultado de uma conquista, do exercício do império
gênio conquistador é grande. Para criar e aumentar sua riqueza, pelo vencedor, do arbítrio ou de simples vantagem. É, pelo
Roma guerreou contra o mundo durante sete séculos. Acumula, contrário, função social enquadrada em uma hierarquia de for-
depois se entrega aos prazeres e cai vítima de seu poder, é traí- ças e funções em direção a Deus; é comando em favor da obe-
da pela mesma riqueza em que acreditou. Erros no sistema, des- diência; consiste em dominar para servir, em impor-se, mas
truídos com poucas palavras de Cristo no Sermão da Montanha. sob a orientação de princípio e apenas enquanto em relação
Mas os positivistas da Antiguidade não O entenderam e foram com ele; constitui, pois, missão, dever, cumprimento da lei de
vítimas disso; para eles, tal filosofia era superestrutura refinada, Deus, a quem todos nós devemos prestar contas. Todo o siste-
vã e fictícia, sem ligação com a vida; não passava de discussão ma da força, sobre o qual Roma se ergue, acaba sendo tragado,
acadêmica, não interessada em modificar-lhe as bases, que naufragando aos pés desse sistema derivado de princípios tão
permaneciam firmes e significavam dominar. Meio a empregar: diferentes. Ao afastar a pedra do sepulcro, o Ressurrecto aba-
a conquista guerreira. Resultado: o solo provincial, propriedade lou até os alicerces o mundo que o circundava.
de Roma, os tributos pagos por aquelas terras ao proprietário. A força constituía a base do império. Cristo a substituiu pela
Os povos dominados são constituídos principalmente de venci- justiça. O egoísmo e o interesse dominavam em Roma; Cristo
dos, sujeitos a contribuição, escorchados pelo fisco, ajoelhados os substituiu pelo amor fraterno. Há vinte séculos já se anunci-
aos pés da “Urbs” administradora da justiça. O resto, o menos ou e teve início a atuação desses novos ordenamentos sociais,
importante, não interessa e, por isso, é magnanimamente dado de que hoje o mundo tenta aproximar-se de novo. E, enquanto
como presente, mas o poder judiciário supremo permanece em Roma fazia funcionar o plano da organicidade social, Cristo
mãos do magistrado vindo de Roma. iniciava o da justiça social, que ainda hoje provoca tanta luta.
Essa a situação com a qual Cristo se defrontou, esse o sis- Perante exército fundado na força, Ele vence com exército de
tema enfrentado por Ele, sistema de função histórica já esgota- pacíficos mártires. O sistema desarmado, porém mais elevado,
da e próximo do aniquilamento. Ele compreendeu Roma; Ro- vence ao sistema armado, porém menos evoluído. A estupefa-
ma, porém, não O entendeu. Ninguém, ou quase ninguém, no- ciente e incrível subversão dos valores torna-se realidade. A lei
tou Sua presença, que, no entanto, representava o futuro, o de Deus substitui a dos homens, e os vencedores deixam de ser
único futuro possível. Cristo se ergue diante de Roma e inau- os mais fortes, juridicamente organizados, para serem os justos,
gura diferente sistema fundamental, que, sendo de outra natu- os oprimidos, os vencidos, isto é, os credores, segundo o enten-
reza e pertencente a nova fase biológica, ataca o outro nas pró- dimento da Lei. Cristo proclama outras vitórias e exalta outro
prias origens e o vence. Cristo coloca-se em plano mais eleva- tipo de vencedor. O cidadão romano não podia entender nada
do e é dele que olha todas as coisas. Ele, embora impregnado disso. A solidariedade social não mais é garantida nem pelo di-
de dignificante respeito pela autoridade, não desce jamais ao reito, com a disciplina da força, nem pelos institutos jurídicos
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 69
coordenadores, e sim pela reciprocidade do dever e do amor, a da substituição de pessoas, mantendo-se as mesmas posições;
que livremente aderimos. Para o cidadão romano, essa nova e mas revolução à base de equilíbrios, de substância, de sanea-
convicta liberdade era anarquia; o superamento, absenteísmo; a mento, lenta, mas de posição estável, colocada organicamente
paciência, vileza; a obediência, debilidade; o sofrimento, derro- no dinamismo da Lei e da evolução, feita para durar, como
ta. Tão grande diferença impossibilitava a compreensão. A vem durando através dos séculos. E, assim, o império que ven-
conceituação do direito é atingida em cheio e abalada em seus cera as batalhas da força perde a batalha sem armas.
próprios fundamentos. O direito não é mais filho da força, o re- Observemos ainda mais de perto o encontro entre os dois
sultado de conquista, concessão ou pacto. O novo direito pres- princípios, na pessoa de seus representantes: Cristo e Pilatos.
cinde da força e, por constituir-se essencialmente de justiça, é Este, homem interesseiro, vil e insignificante, passou à história
até mesmo contrário à própria força. Baseia-se em princípio apenas porque se encontrou com Cristo, de quem não entendeu
completamente diverso do jurídico romano, participa de outro coisa alguma. O representante oficial do império de Roma, o
sistema e de outro mundo. Não se trata mais do direito humano intérprete da lei, a autoridade que deve dar o exemplo, embora
da força, mas do superdireito do merecimento. Não é mais o tente assumir atitude formal, é vazio por dentro e, por isso, tem
homem quem, tal como nos mercados, toma da balança e pesa o comportamento hesitante e equívoco, que deixa transparecer
“deve” e o “haver” dos direitos e obrigações, mas são as forças esse vazio interior e a insuficiência do sistema da força e da
íntimas da vida, de acordo com o critério da lei de Deus, que forma, isoladamente considerado. É inútil querermos esconder-
distribuem ou não os bens, premiam ou castigam. Perante esse nos na vida dessa maneira e justificar-nos, como se as aparên-
superdireito substancial, o velho conceito romano torna-se va- cias tivessem força de realidade e a forma valesse como subs-
lor formal, relativo, de referência, coisa miserável, mais digno tância. A verdade interior acaba, cedo ou tarde, revelando-se
de piedade que de ser combatido. Os líderes e os imperadores também no exterior, pois as reações dependem das convicções,
são derrubados do trono e, se nele permanecem, isso acontece que, ao mesmo tempo, lhes dão nascimento e lhes servem de
apenas enquanto são instrumentos de Deus. guia. Esse homem típico de sua época e do seu mundo, não
Desse modo, toda a diretriz humana varia, o mundo não possui nenhum senso interior que o guie, e a letra da lei não
mais se conserva fechado em si mesmo nem apenas em si basta para socorrê-lo no encontro supremo. Cristo lhe fala de
mesmo vê os seus objetivos, mas se abre para o céu e nele se verdades eternas, e ele pensa no imperador Tibério e na própria
completa. Entre a ideia romana e a de Cristo vai um abismo, o carreira; é um verme que rasteja no pó, algemado aos interesses
mesmo que vai do homem ao super-homem. Para o homem pessoais, e nem de leve suspeita do significado das palavras que
que atingiu o segundo, o primeiro perde naturalmente todo va- ouve; sua alma é surda, e Cristo, percebendo-o, não lhe respon-
lor. O reino da força, habituado a enfrentar o inimigo tangível de. Apenas um argumento a comove: ser ou não ser amigo de
e concreto, não estava preparado para resistir a esse assalto ne- César. “Se soltas este, não és amigo de César...” (João, 19:12).
gativo e foi vencido. Tudo isso constitui novo modo de conce- Confunde Cristo e seus acusadores na mesma raça inferior, pois
ber o mundo, nova corrente de pensamento. Ao mesmo tempo, um só direito e uma só grandeza podiam existir na sua mente:
a indiferença, grau mais baixo da desvalorização, é a roedora os do vencedor. Com a cabeça quadrada de romano e modelo
traça, íntima e invisível, que decompõe o velho mundo. As de todos os homens práticos e positivos, Pilatos não entende
coisas humanas, a vida do império, tornam-se consequências nada. Do alto de sua grandeza moral, armado de poder mais
secundárias; as bases da ação não se acham mais na Terra, o elevado e de autoridade bem diferente da autoridade moral do
centro de gravidade do universo deslocou-se, tudo gira em tor- representante da lei, Cristo perscruta-o íntima e demoradamen-
no de outro eixo e, mesmo quando é necessário ocupar-se das te, e cala. À grave, mas desprezível e distraída pergunta, atirada
coisas terrenas, tudo assume significado e função diversos. O sem o desejo de receber resposta: “Que é a verdade?” (João,
mundo transforma-se por dentro, e não por fora. A grande re- 18:38), quando proposta, como o foi, por indigno cético, Cristo
volução se processa em silêncio, na intimidade das almas. Tu- responde com o silêncio. Cristo despreza até mesmo a própria
do quanto era principal e preponderante acabou subordinando- defesa, pois prefere abandonar-se à Lei e à vontade do Pai a
se a algo novo, recém-nato, que, há pouco desconhecido, se render-se às razões humanas, que constituem a arma inaceitável
tornou agora o mais importante. O velho mundo não mais en- do sistema humano de Pilatos. Cristo não desce até esse plano.
contra rebeldes a serem submetidos, e sim mártires que, perdo- Pilatos pergunta-lhe: “Nada respondes? Vê quantas coisas testi-
ando, se deixam matar. E desnorteou-se. Como combater esse ficam contra ti”. Mas Jesus nada mais respondeu, de maneira
inimigo? A força, desprovida de inteligência, apressa-se a fa- que Pilatos se maravilhava (Marcos 15: 4-5). Não podia conce-
zer a única coisa que sabe: destruir. Mas engana-se, porque, na ber o método de Cristo e seus objetivos sobre-humanos. Para
realidade, não destrói. Pelo contrário, reforça o inimigo, pois, ele, era absurda a psicologia do martírio. Cristo respondeu-lhe
sem dúvida, as perseguições exaltam. Mata, porém cria heróis; apenas para dizer-lhe que em verdade era rei e para colocar no
causa morticínios, mas torna-se instrumento de propagação. devido lugar a autoridade deste mundo, traçando-lhe os limites
Então, a força revela-se o desencadeamento cego que verdadei- exatos. Pilatos diz-lhe: “Não me falas a mim? Não sabes tu que
ramente é, ignorante do jogo delicado de reações por Ele co- tenho poder para te crucificar e tenho poder para te soltar?”.
meçado, sem de modo algum compreendê-lo e, por isso, inca- Respondeu Jesus: “Nenhum poder terias contra mim, se de ci-
paz de furtar-se às suas consequências. O pensamento romano ma não te fosse dado” (João, 19:10-11). Assim, outro poder se
é apanhado por novo mecanismo, sob a forma de pensamento manifesta por detrás e acima do poder humano, transformando
inexplorado, cuja direção não pode assumir, por incompetência o árbitro vencedor em simples instrumento nas mãos de Deus.
e falta de preparação. O povo, principalmente, sem responsabi- Poderão objetar que Pilatos não era, certamente, tipo
lidade nos crimes do poder e bem próximo das fontes da vida, exemplar de magistrado romano e, por isso, não representava a
é o primeiro a receber a semente e a intuir, em sua simplicida- romanidade toda. Porém não se trata aqui apenas do caso de
de nativa, despida dos preconceitos e artifícios do saber. O po- um homem que, por baixeza, traia um sistema perfeito; trata-
vo, por instinto vital, percebe a verdade nova; o povo que sofre se, isso sim, de sistema que põe a nu os seus pontos fracos,
tem, por isso mesmo, os olhos abertos e os ouvidos atentos, pois não corresponde aos objetivos da vida e do progresso,
pois não dorme nas comodidades. Verdadeira campanha de re- quando o confiam a um homem qualquer e o fazem defrontar
absorção do ódio pelo amor, da violência pelo perdão. Não problemas mais elevados, fundamentais para a sociedade hu-
mais uma das costumeiras revoltas à base de desequilíbrios, mana. Quantas vezes, quem sabe, Pilatos não teria ouvido em
revoluções aparentes e fora de época, nem o habitual vaivém Roma as vazias e tediosas discussões de gregos filosofantes,
70 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
estabelecidas com propósito exclusivamente pecuniário, habi- dão, dizendo: Estou inocente do sangue deste justo: considerai-
tuando-se desse modo à ideia de que não se chegava a conclu- o vós. E, respondendo, todo o povo disse: O seu sangue seja
são alguma discutindo-se a respeito da verdade, conceito que, sobre nós e sobre nossos filhos” (Mateus, 27:24-25). Eis a figu-
em seu espírito, deveria ter adquirido o sentido negativo de va- ra “daquele que, por vileza, foi o autor da grande recusa”. A re-
cuidade e de mentira. Mas esse ceticismo, incapaz de levar a cusa foi grande e vil. Pilatos se convencera da inocência de
sério qualquer filosofia ou teoria, não era a forma mental de Cristo, pois o chama justo. Pergunta: “Pois que mal fez?”, por-
Pilatos apenas. Em sua psicologia aflora a do século, de que que percebeu a falsidade da acusação, movida apenas pelo ódio.
ele não era senão um expoente. Pela boca de Pilatos falam os “Porque ele bem sabia que, por inveja, os principais dos sacer-
tempos, já incapazes de acreditar seja lá no que for; fala o ma- dotes o tinham entregado” (Marcos, 15: 10, 14). Repete: “Não
terialismo de Roma, que os alimentava e representava. E assim acho culpa alguma neste homem” (Lucas, 23: 4, 22), e procura
como a Roma imperial não dispunha dos elementos necessá- libertá-lo, no entanto deixa-o caminhar para a morte. Poderia e
rios para saber compreender e levar Cristo a sério, também Pi- mesmo deveria ser juiz e administrar justiça, porém não soube
latos não o compreendeu nem o levou a sério, isto é, não se nem mesmo resistir à injustiça e transformou-se-lhe em instru-
mostrou capaz de fazer nem mais nem menos do que seu mun- mento e escravo. Todavia percebeu a injustiça e tentou evitá-la,
do sabia fazer. De um lado, Cristo; de outro, um mundo repleto mas só enquanto pôde fazê-lo sem muito trabalho e sem dano.
de incompetentes. Em Pilatos encontravam eco Roma e o seu No vão esforço de fugir à responsabilidade, Pilatos experi-
tempo. Ele era filho e produto de ambos, como o efeito que, li- mentou quatro expedientes. O primeiro foi mandá-lo de novo à
gado à causa, não pode deixar de exprimi-lo e representá-lo. presença de Herodes. O segundo, a flagelação, como simples
Não apenas substancial, mas até mesmo oficialmente, Pilatos castigo para, em seguida, pô-lo em liberdade. O terceiro, permi-
era, como magistrado, o representante do povo e do pensamen- tir ao povo escolher a libertação de Cristo ou a de Barrabás, o
to de Roma, da autoridade imperial, que de fato não o desa- ladrão e assassino. O quarto expediente, a tentativa de mover a
provou e, assim, lhe subscreveu o ato. Concordou com ele, lo- multidão à piedade, apresentando-lhe Cristo: “Ecce homo12!”.
go tornou-se coautora. A desonra do Gólgota não constituiu, Miseráveis contemporizações, subterfúgios vãos, imperdoável
pois, apenas erro e culpa do homem, mas também erro e culpa incerteza! O destino impunha a Pilatos que, em tão grande mo-
do sistema que fizera o homem assim e o obrigava a compor- mento, tomasse posição clara, porém este não soube fazê-lo e
tar-se desse modo. O erro continuou, de fato, por séculos e sé- calou-se para todo o sempre entre os vis e os irresolutos, “desa-
culos e sempre com novos mártires, exatamente porque esse gradável a Deus e a seus inimigos”.
sistema não era capaz de entender senão a autodefesa; encerra- Na realidade, Pilatos tem medo da multidão, cede às suas
do no próprio egoísmo, não sabia elevar-se a visões de conjun- intimações; a sentença que proferiu não resulta de julgamento
to tão vastas ao ponto de abrangerem a evolução do mundo. regular, é uma farsa. Entre tantos julgamentos, não houve um
Para lutar, é necessário ter afinidade e compreensão, ter al- só verdadeiro; no entanto Cristo foi reconhecido réu de morte.
go em comum que una e divida. Cristo e Pilatos representam Nesse momento, a justiça competente por direito humano não
dois mundos diferentes. Estranhos um ao outro, senhores de funciona e cala. Pilatos abdica do poder, pactua com a turba,
dois campos diversos, encontram-se por acaso, sem se haverem procura voltar as costas a essa responsabilidade que não tem a
procurado; cada qual raciocina com todo rigor lógico, mas o ra- coragem de assumir, no entanto sua obrigação era afirmar a
ciocínio de um e de outro são reciprocamente absurdos. Cristo inocência de que já se convencera, ao invés de deixar-se arras-
compreende perfeitamente ao outro e, por isso, cala. Mas, ao tar à condenação de Cristo. Serve de joguete para os juízes
contrário, a forma não compreende a substância, a força não que, conhecendo-lhe o lado fraco, o fazem decidir-se, amea-
compreende a justiça, mostra-se cega, apenas capaz de golpear çando-o da maneira mais eficaz: “Se soltas este, não és amigo
e, assim mesmo, de golpear às cegas, sem compreensão, dando- de César” (João, 19:12).
se a espetáculo tão escandaloso, que demolirá sutilmente, du- Assim, a história julga os juízes e processa a autoridade
rante séculos e séculos, o principio de autoridade baseado na processante. Esse foi o exemplo do representante do poder ci-
força. O poder humano condena e, assim, em virtude de poder vil, do procurador Pilatos, modelo da justiça humana baseada
mais alto, atrai sobre si a condenação do mundo. A força, no sistema da força, símbolo do involuído amoral, expressão do
quando não guiada pelo espírito, comete enganos e fracassa; e a espírito daqueles tempos, do homem que cede às pressões hu-
justiça mais perfeita do espírito triunfará apesar da injustiça manas e permanece indiferente às superiores realidades do espí-
humana. A batalha, sintetizada naquele primeiro encontro de rito. Permaneceu ainda por vários anos no seu ofício e não pa-
Cristo e Pilatos, continuará a travar-se durante milênios, se- gou por seu crime. Mas a justiça humana ficou manchada e, há
guindo o desenvolvimento dos impulsos que ela representa. Se, vinte séculos, não sai da berlinda. Sua posição em fato histórico
no drama, Cristo e o Sinédrio estão frontalmente opostos, como de tamanha importância será como um ferrete que ainda a se-
verdadeiros antagonistas, no campo moral do bem e do mal, guirá através dos tempos. A justiça humana desonrou-se. A in-
que lutam, porém não se entendem; ao poder civil nem mesmo justiça do Gólgota constituiu injustiça da justiça e descrédito
essa honra se concede. Judas e o Sinédrio vão direto aos seus permanente do resultado dos julgamentos humanos. Esse caso
objetivos. Pilatos é uma série de contradições, incertezas, mal- tornou-se o símbolo de todas as condenações do justo, tornou-
entendidos. A própria inscrição indicativa do titulo da condena- se exemplo clássico que começou a tradição, o hábito quase, de
ção, “Jesus Nazareno, rei dos judeus”, não passa de mal- erros judiciários providencialmente destinados a glorificar as
entendido. A mente de Pilatos girava em redor de centro total- vítimas e transformar-se em instrumento de seu triunfo. Propa-
mente diverso. Assim, para se esquivar, procura ridicularizar. gou-se desse modo o conceito de uma justiça superior, seguida
Para livrar-se de Cristo, manda-o a Herodes. Declara duas ve- por mártires e heróis, que devem pagar tributo à formal justiça
zes: “...não acho nele crime algum” (João, 19:4), e: “...nenhum humana, simples e honesta aplicação da lei do tempo. E, assim,
crime acho nele” (João, 19:6). E pergunta: “Pois que mal fez começou a ser notado na história a presença desse fenômeno
este?” (Lucas, 23:22). Portanto nenhuma culpa acha no acusa- necessário de contínuo superamento das ideias e das leis, com-
do, reconhece-lhe a inocência e deixa executar-se uma conde- preendendo-se sua função e dando-se o devido valor aos revol-
nação que podia e devia anular. Torna-se, desse modo, cúmpli- tados contra o antigo estado de coisas, revolta manifestada na
ce do Sinédrio, que, ao invés de promover um julgamento, tra- luta em prol de novo e mais elevado ordenamento. Em face
mava a morte já preconcebida e preordenada com propósito de-
liberado. “Então, Pilatos, (...), lavou as mãos diante da multi- 12
Eis o homem. (N. da E.)
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 71
dessa inexorável necessidade de evoluir, o respeito pela ordem derosa do que a balança e prevalece contra ela. A espada pesa e
existente caía do plano dos valores absolutos no dos relativos. E faz a balança pender do lado de quem a maneja, conquistou pa-
os habituais rebelados contra qualquer ordem, os habituais e in- ra si e a conserva para si. Não há outra solução: evoluir, evolu-
teresseiros homens de partido, tomaram da nobre auréola dos ir, evoluir, para tornar cada vez mais leve o peso da espada, que
mártires inovadores para com ela fingirem-se mártires também sobre nossos ombros a involução atual coloca. Evoluir ao longo
e, assim protegidos, satisfazerem-se com mais facilidade. Na do caminho traçado por Cristo. A espada é a desordem perten-
Terra tudo se utiliza. Porém, no coração humano, permanece cente ao passado, a balança constitui a ordem pertencente ao fu-
sempre inapagável o vestígio da iniquidade sofrida pelo grande turo. Trata-se de reequilibrar as forças desequilibradas durante
afirmador da verdade e do fundador de novo reino na Terra, a luta. A evolução caminha da espada para a balança. Do dile-
que é promessa ainda viva e vital, mesmo depois de vinte sécu- ma não saímos: ou melhoramos nesse sentido e, por meio da
los, e constitui a única esperança no futuro. bondade e da lógica, alcançamos a verdadeira justiça, superan-
Falamos de erro judiciário. O caso de Pilatos, porém, é do a força e pacificando-nos com a não-reação ou, então, conti-
muito mais grave do que quaisquer dos erros habituais imputá- nuamos a sofrer, quem sabe quanto, as consequências do siste-
veis à imperfeição humana. Compreendeu exatamente a ino- ma em vigor. No primeiro momento, sem dúvida, todos se
cência de Cristo e, por isso, o defende, mas apenas enquanto aproveitaram do justo e pacífico seguidor do evangelho. Se, po-
pode fazê-lo sem prejudicar-se. Quando não pode, o interesse rém, a força dá vantagem imediata, a lei de justiça está inscrita
julga mais conveniente mudar de rumo. Então, Pilatos, homem no coração do homem, que, por instinto, condena a força e se
da lei, aparentemente o homem talhado para o cargo, mas no sente obrigado a eliminá-la. Inaugurar novo método no mundo
íntimo reles aproveitador, revelando o espírito egoísta de seu feroz de nossos dias é, por certo, trabalho de mártires; mas a
tempo, entrega à morte a vítima inocente. Todavia, mesmo a verdade é que, sem martírio, não se inicia civilização nova.
limitada e apenas esboçada defesa que Pilatos faz da inocência Esse o significado daquele primeiro encontro da romanida-
de Cristo funda-se em razões bem diferentes daquelas capazes de com o cristianismo, primeiro impulso de renovação biológi-
de conduzi-la valorosamente até o fim. Se Pilatos compreen- ca. Problema relativo ao passado, ao presente e ao futuro. Hoje,
deu a inocência de Cristo, considera-o simples inocente, por dois mil anos depois, a humanidade aí retorna, um pouco mais
ele defendido em vista de relações jurídicas e por motivo de madura apenas, com ânimo e estilo diversos, sem a intuição e a
direito, e não por causa de razão situada acima do direito. paixão dos mártires, mas com atitude racional, armada de ciên-
Comporta-se, desse modo, como qualquer materialista míope, cia e técnica, de planos orgânicos sociais, de vastos recursos de
que não enxerga, através da forma, a profunda realidade das enquadramento, secundada por grandes massas, mais ágeis e
coisas. Da superioridade de Cristo em relação a todo o seu unificadas. O esforço é tremendo; a tentativa, enérgica; o mo-
mundo, da transformação social, da Sua missão e do Seu pen- mento, decisivo. De duas uma: ou sobre essas bases criar nova
samento, Pilatos não entende coisa alguma. civilização e melhorar a vida ou, então, suportar durante sécu-
Não podemos, sem dúvida, dizer que Pilatos seja Roma, isto los as tristes consequências do bárbaro e atual sistema da força.
é, toda a romanidade. Mas podemos afirmar que naquele mo- Sem dúvida, o pensamento social de Cristo é elevado, mas mui-
mento e por causa de sua conduta, outro tribunal se ergueu di- to elevado mesmo. Mas, exatamente por isso, pertence ao futu-
ante do tribunal humano e lhe aplicou a indelével marca da in- ro. A vida impõe o progresso e necessita ascender. O evangelho
fâmia; tudo isso se passou por obra e com os recursos da paz e é o cume, o objetivo máximo. Quem quer que suba, porém,
da mansidão. Por isso este é também um encontro de sistemas, tende a atingir o ponto mais alto. De tempestade em tempesta-
em que o da força leva a pior e permanece condenado através de, de revolução em revolução, a humanidade não pode ir a ou-
dos séculos. A força, embora juridicamente organizada, de- tro lugar. De guerra em guerra, não pode encontrar senão a paz.
monstrou ser instrumento capaz de, abandonado a si mesmo e O pensamento de Cristo representa o ciclo biológico da huma-
sem o concurso e a orientação do espírito, constituir não auxí- nidade. Ninguém lhe escapa. É o objetivo da vida e aguarda-
lio, mas obstáculo ao progresso; um meio para estabelecimento nos. Isso constitui verdade sempre nova; o tempo passa, e ela se
não de ordem, mas de desordem. Naquele dia se fez ao mundo torna cada vez mais verdadeira e atual, porque se aproxima ca-
esta advertência: Cuidado, essa concepção é insuficiente, falta- da vez mais da realização. O evangelho é um programa. A hu-
lhe algo de essencial. Completai-a. Ela tem sua razão de ser, manidade futura será fruto de sua execução.
mas deve progredir ainda. A legalidade não basta quando repre-
senta traição nem quando, como em alguns casos, ao invés de XXII. TEMPESTADE
função que impulsiona para a frente a evolução, pode transfor-
mar-se no freio que a detém. Ao homem não satisfaz mais tal Essa rápida sucessão de conceitos, até agora expostos por
justiça, que torna possível, embora nem sempre aconteça, con- alto, aconteceu em hora trágica para o mundo e move-se sobre
denar inocente e benfeitor e libertar malfeitor. Algo protesta no o fundo apocalíptico da maior tempestade jamais conhecida
fundo da alma humana, aí onde a Lei clama por justiça. A pela história. Este livro, que é sofrimento, não poderia nascer
consciência sabe distinguir, por isso condena o poder e a auto- senão em meio à grande dor de que suporta o peso e sintetiza o
ridade capazes de trabalhar pelo que não deveriam e de causar esforço. Iniciei o escrito em fins de março de 1944 e continuei-
dano ao bem e à vida, ao invés de defendê-los. Pilatos não é o ininterruptamente até o capítulo precedente, terminado no
Roma toda, mas, sem dúvida, significa um sistema jurídico que começo de junho, quando a guerra, progredindo na Itália, em
lhe revela as insuficiências, um estado humano involuído que direção ao norte, atingiu e ultrapassou Roma. Logo depois,
lhe demonstra a cegueira. Quando o ponto de partida é a força, aconteceu na França o desembarque do Atlântico. A primeira
então a dura necessidade de defesa individual e social pesa parte do volume escrevi-a, pois, nos fins daquele inverno pleno
sempre sobre a função judicante, que pode até tornar-se seu ins- de expectativa, em que o “front” italiano permaneceu estacio-
trumento, transformando-se em injustiça. Apenas Cristo atingiu nário em Cassino, e, não tendo o desembarque das Nações
a essência do problema, dizendo: “Não julgueis”. Quem, como Unidas em Anzio atingido proporções decisivas, em toda parte
o homem, está empenhado na luta, não pode conservar-se im- se esperava algum grande acontecimento resolutivo. No início
parcial e, por isso, não pode julgar. Onde pode encontrar-se um deste capítulo, o grande incêndio europeu reacende-se furioso
juiz sem mácula? Só em Deus, e é em Deus que o homem, insa- e o terrível rolo compressor da guerra põe-se em movimento
tisfeito com todos os demais, procura o verdadeiro juiz. Nas também na Itália, para avançar em direção ao Norte, através
mãos da justiça humana, baseada na força, a espada é mais po- das províncias do Centro, semeando também nestas o extermí-
72 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
nio. Este manuscrito, bem como a sua continuação, nele implí- caminho da vida apresentar curvas tão imprevistas e imprevisí-
cita, foram salvos graças apenas a milagre insistente e prolon- veis, que a razão fique inibida e se inutilize toda a nossa orien-
gado, isto é, por uma combinação de impulsos e movimentos tação? Não. O sábio deve conhecer todos os ataques possíveis,
de tal modo inteligentes e dotados de previsão, tão decidida- deve ter atingido filosofia completa, que encare todas as possi-
mente guiados e com tal tenacidade mantidos na mesma dire- bilidades da vida, deve ter achado uma verdade universal e sa-
ção, que justificava a presunção de estarem presentes por de- tisfatória, que lhe dê a razão de todo fato e o encaminhe à solu-
trás deles um conceito e uma vontade diretivos, excluindo a ção de todo problema. Queria e devia entender, possuir respos-
hipótese do acaso. A continuação do pensamento deste volu- tas que bem sabia não podiam ser obtidas senão por si mesmo.
me, neste ponto, é retomada nos fins de 1944, na devastada re- Há responsáveis? Quem são e onde encontrá-los nesse oceano
gião umbro-toscana, depois de passado o ciclone da guerra, is- de forças e de homens que é a sociedade? Podem os dirigentes
to é, depois de período de esforço físico e tensão nervosa ver- impor sofrimento a povos inteiros, ou será que eles não man-
dadeiramente excepcionais. Mas o espírito, sempre vigilante, dam senão na aparência e, realmente, obedecem, eles e também
tudo observara, julgara, registrara. todos os seus súditos, a leis e forças de que são apenas os expo-
Narremos agora alguns episódios da guerra, não por motivo entes? As causas, agora, são diferentes das visíveis; outra é a
de sua gravidade e importância exterior, que muitos terão expe- hierarquia dos responsáveis; todos são golpeados por outras ra-
rimentado de modo bem diferente, mas por causa do sentido in- zões internas, totalmente diversas das que se mostram externa-
terior com que foram vividos e pelo significado universal que mente. Os poderosos constituem o instrumento de outra inteli-
podem assumir, vistos assim em profundidade. Analisando, as- gência e executam planos diferentes dos seus; os verdadeiros
sim, esses casos humildes, até no seu sentido mais oculto, colo- responsáveis (quem os conhece!) apenas podem ser atingidos
camo-nos diante dos grandes problemas da vida; aprofundando pela justiça de Deus. Só Ele sabe avaliar, nós não sabemos; só
o olhar até às próprias raízes da realidade, damo-nos conta da Ele conhece a trama secreta da vida de cada um, por nós desco-
gênese dos acontecimentos. O pequeno fato individual, de su- nhecida; só Ele tem o poder, que não temos, de alcançar e gol-
perfície, adquire assim ressonâncias universais. Veremos, en- pear. A lógica do espírito nos faz procurar justiça perfeita, que
tão, aflorar no fato exterior aquela misteriosa realidade do im- não existe na Terra; onde encontrá-la? Até que ponto, caso por
ponderável, que se esconde profundamente; esse fato, mais do caso, o homem é livre e até que ponto chegam o poder e a ex-
que em sua aparência concreta, mostrar-nos-á o funcionamento tensão da fatalidade no destino? Qual o limite entre as duas zo-
dos princípios que o regem, das forças que o movimentam, isto nas e o equilíbrio entre as duas forças? São as grandes massas
é, a sua mais verdadeira realidade interior, aquela que, em todo responsáveis como massas, independentemente dos lideres, que
acontecimento, quase sempre nos escapa à observação. Assim, são responsáveis perante a Lei? São inexoravelmente arrastadas
observando profundamente, o longínquo e fugitivo imponderá- pelo determinismo histórico?
vel é trazido aos primeiros planos como figura central e, arreba- O homem pensava. Tais problemas, tão remotos para os
tado de suas misteriosas profundidades, é obrigado a revelar-se, demais, estavam-lhe muito próximos. Encontrava-se em pleno
mostrando o mecanismo da orientação interior impressa nos fa- turbilhão, a seu redor girava o “maelstrom” do mundo, e o vór-
tos exteriores. Veremos, desse modo, o Deus recôndito, que se tice tentava agarrá-lo também, a fim de arrastá-lo até ao fundo,
esconde de nós no superconcebível, aproximar-se em plena luz, em suas espirais. Tinha de defender-se. Mas, para defender-se,
vivo, presente na ação. Os episódios reduzem-se aqui à sua es- necessitava compreender. Um tipo normal não teria feito es-
sência de desenvolvimento de forças cósmicas dominadas pela forço maior que o necessário à defesa superficial, contentando-
vontade da Lei e pela inteligência de seus princípios. Deus res- se com tentativa de defesa. Ele, porém, exigia de si mesmo
plandece no fundo desses contrastes violentos. O bem e o mal uma defesa profunda, seguríssima, colocada muito além da ilu-
se defrontam, eterna substância das coisas. são costumeira. Esta sua reflexão, mesmo nesse momento, não
Era de madrugada, esplêndida madrugada de junho. Por um era inútil. Sob a tensão nervosa e o esforço, em pleno desen-
atalho que subia ao longo de uma riacho apertado entre os mon- volvimento da reação ao choque recebido, seu espírito ferido
tes, um homem fugia do homem, da cidade, da civilização des- expedia centelhas e seu cérebro clarões de relâmpagos. Como
truidora. Já no limite do esforço que suas forças de pobre sexa- sua vida, assim toda a sua reação era preponderantemente psí-
genário lhe permitiam, carregava o indispensável, apanhado às quica, isto é, se dava no campo em que aquele homem mais se
pressas, ao deixar a casa. Seguia-o a mulher, também carregada desenvolvera. Restringindo o problema aos elementos mais
de coisas, e a filha com a criança no colo. No encanto da pura pessoais e urgentes, procurava saber o que teria acontecido
madrugada estival, a fuga era triste, plena de terror. Tinham si- consigo. Para sabê-lo, interrogava a própria consciência, per-
do violentamente arrancados do ninho. Sobre as casas vizinhas, guntava a si mesmo se era ou não culpado e se, por isso, devia
na cidade, aviões haviam lançado bombas, semeando a morte e ou não ser responsabilizado. A ele, conhecedor do funciona-
a ruína. Ribombos terríveis e abalo de terremoto, estilhaçar de mento das forças da vida, parecia-lhe mais útil perscrutar a ló-
vidraças e chuva de pedras; depois, por toda parte, fumaça es- gica interior dos fatos, de preferência à sua aparência exterior.
cura e densa. A morte por esmagamento e, vizinho, seu hálito Apreender os acontecimentos nas fontes, nas causas, tal era o
ardente: o terror. Desse modo fugiam, sem saber para onde, por seu método. Que queriam as forças do destino nesse momento
instinto de animal perseguido, daqueles golpes terríveis que po- crucial? Esse era o problema e não podia ser outro em universo
deriam cair-lhes sobre a cabeça. Não havia abrigos antiaéreos. não sujeito ao acaso, mas dirigido por lei justa, lógica e inteli-
Fugiam desesperadamente, no paroxismo de esforço nervoso. gente. No passado, dera por acaso nascimento a algum impulso
Tudo em redor, no campo, em todas as criaturas, na erva, na e, por isso, a reação da Lei o ameaçava agora? A verdadeira
água, no ar, o eterno sorriso de Deus esplendia imutável. ameaça residia nisso, e não na materialidade da guerra. Será
Esgotada a reação ao primeiro choque, conjurado por mo- que essas forças, por ele mesmo colocadas em seu destino, o
mentos o perigo iminente, o fugitivo sentiu despertar dentro de culpavam agora, se erguiam ameaçadoras no seu caminho e
si, ainda mais potente, o eu interior e voltou a observar e a pen- iam pedir-lhe conta do que fizera até então? Ou, quem sabe,
sar. Como a beleza da ordem divina era suave e permanecia in- era inocente, e tudo quanto lhe acontecia em torno não passava
tacta nas coisas! Apenas o homem, rebelde, tentava impor a de mero incidente de superfície, não lhe dizendo respeito? Se
destruição. Por que a guerra? Por que esses momentos trágicos? não pendia sobre sua cabeça nenhuma sanção da parte de
Que pretendia, assim de surpresa, a lógica do destino? Fora, Deus, que coisa podia temer por parte dos homens? Rebuscan-
talvez, colhido de surpresa, sem preparação alguma? Pode o do na sua consciência, procurava saber qual dentre as forças do
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 73
passado estava tentando reaparecer e que natureza e potência glória, como não acreditara no poder e na riqueza, a imensa
possuía; queria descobrir que impulso queria agora manifestar- vantagem de haver-se acostumado a sofrer e a renunciar e estar
se exteriormente, dando vazão a seu dinamismo, completando moralmente preparado. Em sua vida não houvera senão traba-
sua oscilação desde a causa até ao efeito. Não havia, porém, lho, obrigações, dor. Esta a sua bandeira, seu repto, sua força,
tempo para detidas análises. Nos momentos decisivos e terrí- sua vitória. Apegara-se a valores indestrutíveis, tornara-se indi-
veis desaba o edifício das realizações humanas, a razão se em- ferente aos golpes do mundo. Sua pobreza era a sua riqueza;
baralha, uma síntese da verdade aparece completamente nua sua nulidade, a sua grandeza; sua inocência constituía-lhe o po-
perante a consciência e a voz de Deus logo soa clara. Dali a der e a salvação. Apenas a vida séria e dura e as pesadas fadigas
pouco parou; com a rapidez do relâmpago, seu espírito intuiu da vida ascensional não lhe haviam mentido nem traído. No en-
e, nisso, ouviu uma voz interior que lhe dizia: “Fuja; mas, vá tanto, em que situação talvez se encontrassem agora todos
para onde for, você não correrá perigo algum”. quantos, epicuristas e materialistas, se haviam rido à sua custa,
A pobre família, já bastante afastada da cidade e do perigo, como se tratasse de um louco? O apego deles às coisas materi-
diminuiu o passo, em silêncio. O homem, que ia na frente, sem ais constituía-lhes agora a causa de grande dor. Na hora da des-
voltar-se para trás, percebia a dor e o medo dos dois seres que- truição, porém, ele já se encontrava ligado ao indestrutível. Sua
ridos que o acompanhavam. Pareceu-lhe, então, estar supor- filosofia, e não a deles, é que resistia no momento da provação.
tando nos ombros o peso de imensa cruz, o peso da dor do Que triste espetáculo de avidez, de ferocidade, de loucura, de
mundo, que quase o esmagava. Irresistível impulso levava-lhe desespero, lhe apresentava esse mundo, que só acreditara nos
o espírito a gritar ao universo: “Sou inocente”. Depois se sur- valores terrestres! Não. O cataclismo não o apanhava de surpre-
preendeu a pensar: “Estranho, esse colóquio com Deus, logo sa, como a tantos. Acima de todos os sonhos de grandeza e de
nesse momento e nessas condições!”. Depois, percebeu como vitória, ele, que já vira como a dor constitui a realidade da vida,
estava cansado e as forças o abandonavam. Então, pensou: agora verificava como a dor é também a realidade da guerra. E
“Quem defende a vida? Quem me defende? Quem está ao meu via que o mais desmoralizado de todos os mundos, sem prepa-
lado agora, no momento do perigo? O Estado, talvez?”. Recor- ração moral para a dor, agora se encontrava diante de avalancha
dou as belas teorias que lhe foram ensinadas na escola, segui- de sofrimentos como a humanidade jamais conhecera igual.
das e acreditadas, e sorriu amargamente. Onde estava agora o Agora, podia finalmente comprovar, não desmentida mas cor-
Estado, esse ente gigantesco dos tempos presentes, todo- roborada pelos fatos, quanto era profunda a sabedoria do supe-
poderoso, que tudo exige, tudo recebe e, por outro lado, tudo ramento, através do desprezo das coisas humanas. Naquele
deveria dar? Ausente. Agora, o Estado tinha de pensar em si momento, diante de seus semelhantes, gozava da grande vanta-
mesmo e abandonava os indivíduos a seu próprio destino. As gem de haver compreendido a vida; de não haver caído no en-
construções sociais do homem estavam em ruínas; apenas não gano de suas miragens, que agora se desfaziam; de não haver
ruíam as construções divinas da vida. Esta, por suas reservas construído na areia; de não haver empregado seu esforço e in-
inesgotáveis, capacidade de adaptação e milenares experiên- vestido seu capital espiritual na obtenção de coisas efêmeras. A
cias da raça, soube estar sempre preparada para tudo, especi- quantos iludidos, pensava, não lhes vai cair a venda dos olhos,
almente nos povos que muito viveram e sofreram, pois nin- quando assistirem ao desmoronamento de todas as suas cons-
guém vive sem aprender e pessoa alguma sofre inutilmente. A truções! Ele tinha tido necessidade de desenvolver grande tra-
vida sabe muito bem passar sem a interferência do Estado. En- balho de concentração e sofrer muito para poder alcançar mun-
tão, as aquisições recentes evaporam-se e apenas permanecem do superior, e isso, aliás, sozinho, abandonado e escarnecido. O
as aquisições profundas e seculares. O homem pode fracassar, áspero caminho de sua maturação evolutiva estava juncado de
a vida não. Quando o homem se engana, a Lei, através de pro- lágrimas e sangue. Mas, agora, esse homem, tido na conta de
videncial lição de dor, o reconduz ao caminho reto da ordem, imbecil porque inimigo do desonesto arrivismo que leva ao rá-
e, assim, a vida se refaz e continua. Por ela continuamente vela pido sucesso, se achava na situação excepcional de quem con-
e a protege a Divina Providência, que constitui efetiva prote- seguira atingir mundo superior e nele encontrar a salvação pes-
ção biológica, defesa automática e poder saneador, íntima pro- soal, a mesma salvação negada aos outros, e por a salvo os seus
vidência manifestada pela sabedoria do sistema. Se, naquele tesouros, inatingíveis aí, onde a guerra não pode chegar.
momento, o Estado, providência humana, desabava, a provi- Há muito tempo ele aprendera a descrer do mundo e a viver
dência de Deus permaneceu firme. isolado. Mas, embora assim pudesse parecer, não estava só,
A riqueza, potência do mundo, teria talvez defendido esse como bem o sabia. Ninguém pode estar sozinho em nosso uni-
homem? Embora oferecesse milhões, na hora do perigo nin- verso. Jamais! A ignorância do ateu, o poder negativo do mal,
guém o ajudaria. Exatamente em momento de necessidade, o a revolta de Satanás contra a ordem reguladora de tudo não
dinheiro se tornava inútil. Se esse homem fosse um potentado, podem destruir Deus, que, não obstante a sua negação, conti-
cercado de servos e dependentes, seriam eles agora seus ini- nua a existir e a operar acima de seus assaltos. Trata-se, sem
migos mais ferozes, ocupados apenas em salvar a própria pe- dúvida, de imponderável que escapa aos grosseiros sentidos do
le. No momento decisivo, a riqueza e o poder, se ele os hou- involuído, mas nem por isso se torna menos real. Em torno da-
vesse possuído, tê-lo-iam traído; não caíra, porém, na inge- quele homem turbilhonava solene e imenso o ritmo das leis da
nuidade de acreditar no contrário. Vitor Hugo, nos primeiros vida, inteligentes, poderosas, ativas. Aquele homem solitário
capítulos de Os Miseráveis, fala, a propósito da decadência de estava imerso nessa divina atmosfera; aquele homem, aparen-
Napoleão, de marechais traidores, do senado que, depois de temente abandonado, estava próximo de Deus e, portanto, me-
havê-lo endeusado, o insultava e escarrava no antigo ídolo. E nos solitário e menos abandonado que tantos poderosos ídolos
tratava-se de Napoleão. Mas a lei, para fracos e poderosos, das multidões. O imponderável não lhe voltava as costas como
foi, é, e será sempre uma só. aos outros, mas lhe abria os braços. Ao lado daquele homem
Quem, pois, estendia a mão a esse homem, atirado à desgra- estavam o seu passado, suas obras, pois nossas obras nos se-
ça? Quem o acompanhava na fuga, ajudando-o a suportar o pe- guem, e a substância da lei de Deus, ao invés de força, é antes
so da desventura? Os amigos, os admiradores, quem o adulava de mais nada justiça, e não o contrário, como acontece no bai-
nos bons tempos? Não, ninguém. As perfumadas nuvens de in- xo mundo humano. Na hora fatal em que ruía o edifício social
censo, como fumaça inconsistente, haviam desaparecido no ar. e seus valores se subvertiam, sua defesa residia agora exata-
Vaidades humanas. Agora estava sozinho. No momento da mente em sua nulidade humana, por ele tão prezada. Em pri-
provação, verificava a imensa vantagem dele não acreditar na meiro lugar, porque a nulidade escapa mais facilmente às tem-
74 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
pestades, não lhes oferecendo superfície de resistência; em se- ximos. Em geral, as verdades humanas condicionam-se ao tem-
gundo, porque, como toda pobreza, significa principio de ino- po e ao espaço, são verdades de interesse e de partido. Trata-se
cência, crédito perante a lei de equilíbrio, direito em relação à de verdades que apenas interessam ao indivíduo ou ao grupo e,
justiça divina. Ele procurara defender-se por meio da própria por isso, mutáveis e passageiras. Estamos procurando a verdade
inocência, que encontrara em si mesmo, e não com o poder de verdadeira, que, longe de ser relativa e facciosa, tem de ser uni-
astúcia, de meios materiais ou de ajuda humana. Esta lhe pare- versal, interessar a todos os homens, estar acima do caso indivi-
cera ajuda mais poderosa que todos os auxílios humanos. Pro- dual e do interesse particular. Acima da verdade superficial,
curara a força em Deus e na consciência a resposta. Em silên- procuramos a verdade profunda, superior à simples opinião, in-
cio, gritara a sua inocência ao universo. Grito vindo do fundo dependente do espaço e do tempo, permanente, capaz de interes-
da alma, trágico e profundo, que não pode mentir. E o universo, sar a todos os homens indistintamente e válida para todos, fortes
dirigido por Deus, isto é, pela justiça, não pudera deixar de res- e fracos, poderosos e humildes, vencedores e vencidos, pois, nos
ponder, porque, do contrário, negaria a si mesmo. Invocara a maravilhosos equilíbrios da lei de Deus e no funcionamento or-
ajuda das forças ativas no seu plano espiritual, geralmente para- gânico do universo, todo ser tem lugar certo e razão de ser.
lisadas e afastadas, no plano material terreno, pela mal empre- Para quem compreendeu essa verdade, a concepção das
gada liberdade humana. Sentiu-se, então, fortalecido, levantou a coisas muda inteiramente. Quem compreendeu que a força
cabeça e, de olhar tranquilo, encarou o futuro. Ele estava no lu- humana não pode impedir a ação das forças cósmicas senão
gar que o dever lhe apontava. Isso bastava. Essa verificação in- momentaneamente e assumindo a responsabilidade pelos da-
fundiu-lhe na consciência sensação de paz e o inundou inter- nos, não diz mais: “Ai dos fracos e dos vencidos”, mas afirma:
namente de nova energia. O horizonte escuro tornou-se límpido “Ai dos culpados, embora vencedores”. O que tem valor per-
e permitiu-lhe enxergar claramente. A guerra, furacão humano, manente não é a posição material, e sim a posição moral. Exi-
não o atingia. Essa dor participava do destino dos outros, não me-nos da responsabilidade a inocência, e não a força, que, na
do seu. Aquelas armas não podiam matá-lo. Compreendeu, en- melhor das hipóteses, poderá retardar, mas nunca impedir a
tão, o sentido das palavras da voz: “Fuja; mas, para onde quer imprescindível reação da lei de justiça. De acordo com a lei de
que você vá, estará sempre em segurança”. A lei de Deus quer evolução, o futuro caminha em direção ao reino de Deus, que
que nossas penas sejam filhas de nossos crimes, e não da má pertence somente aos justos. O poder militar, a superioridade
vontade e prepotência alheias; quer que nosso destino apenas técnica, o dinheiro e a astúcia não podem destruir a lei de
possa ser construído por nós e só por nós. A grandeza e a justi- Deus, que participa essencialmente das coisas. Quem acredita
ça dessa Lei, naquele trágico momento, atingiram o homem que para vencer baste a força, representada por grande exérci-
com evidência tão viva, que seu terror se transformou em con- to, grandes recursos e organização dotada de férrea tenacidade,
fiança e em oração; em meio à dura provação, caiu de joelhos e não compreendeu que, no funcionamento das leis da vida, exa-
agradeceu ao Pai que está nos céus, tão pronto a amar-nos e tamente nesse apelo à força e à conquista violenta, como na
ajudar-nos, se nossa vontade espontaneamente lho permitir. guerra, reside o ponto fraco deste sistema, o qual, precisamente
Colocando-nos em face à realidade mais crua da vida, pu- por isso, traz em si mesmo o germe da própria destruição. En-
demos observar, em momento crítico, a transformação evangé- tão, o gigante de pés de barro desaba, seja qual for; o fato é
lica dos valores da terra em valores do céu e atingimos o resul- verdadeiro para quem quer que se encontre na situação de apli-
tado prático ou, mais precisamente, utilitário da invulnerabili- car essas leis, para quem quer que se encontre nessas condi-
dade e salvação, através do superamento da dor. Esse modo de ções. Não estamos expondo mera opinião, mas simplesmente
proceder pode ser incompreensível para o tipo humano normal verificando a existência de algumas leis da vida. O preceito
de nossos dias, que, quase sempre espiritualmente involuído, evangélico “Quem com ferro fere com ferro será ferido” ex-
põe em jogo outras leis e outras forças e não sabe compreender prime racional e inviolável lei biológica. Não fizemos outra
aquelas que vemos aqui em plena ação. Torna-se necessária, coisa senão estender a bem mais vasto campo o princípio da
pois, esta condição: a inocência; apenas ela permite visão cla- inocência acima exposto, mas tendo sempre em vista a guerra.
ra, apenas quem a possui pode invocá-la perante Deus. Não se Em face da agitação da atividade humana, é a sabedoria dessas
trata, por certo, de inocência universal e absoluta, que nenhum leis íntimas, colocadas nas raízes dos acontecimentos, que rege
homem, enquanto homem, pode possuir. Se a houvesse alcan- todas as coisas, por isso a força mais poderosa, que vence fi-
çado, já estaria bem longe deste lugar de sofrimento. Trata-se, nalmente, é a justiça. As exceções não passam de momentâ-
isso sim, de inocência particular, relativa a determinadas cul- neos desvios, concessões mínimas à liberdade humana, que,
pas e às provações correspondentes. Mais do que isso, as ino- para aprender, deve experimentar o erro; porém, cedo ou tarde,
cências humanas não podem ser, embora mais ou menos ex- são retificadas e reconquistadas através do áspero caminho da
tensas. Um é inocente em relação a um fato; outro é inocente dor. Para que o homem aprenda, a Lei deixa-se fraudar, mas,
em relação a outro fato; a mesma coisa se diga relativamente à depois, os iludidos devedores caem em si e reconhecem nela o
culpa. Por isso, são os destinos tão diferentes e todos se cum- único árbitro da vida. Explicam-se desse modo as oscilações
prem inexoravelmente. O destino daquele homem não continha da história. Com isso, neste capítulo, demos novos desenvol-
reações de violência e de sangue; estava, pois, imune desse la- vimentos e aplicações aos conceitos por nós já considerados
do em que os outros eram vulneráveis; não precisava, por isso, quando estudamos a lei do merecimento.
sofrer as provações a que os outros seriam submetidos. Estava, Continuemos seguindo as vicissitudes de nosso persona-
ao contrário, exposto a provas espirituais que os demais nem gem. Ei-lo numa casa de colono, atopetada de outros fugitivos.
sequer podiam imaginar, de lenta maceração e desmaterializa- A guerra, vindo do Sul, aproximava-se raivando, com rumor si-
ção, sujeito a prolongadíssimas agonias, à violência das tem- nistro e cada vez mais intenso, mordendo a terra com feroz en-
pestades psíquicas, ao choque contra as forças do imponderá- carniçamento. Tudo, como se estivesse carregado de ódio, ex-
vel, completamente desconhecidas pela generalidade das pes- plodia à traição. As casas, as pontes, os aquedutos, as instala-
soas. Ele, cônscio de seu destino, de seu passado e de seu futu- ções elétricas, as oficinas, as estradas e as ferrovias voavam. A
ro, compreendeu que a guerra não lhe dizia respeito e nenhum terra, sem exagero, tremia. Em plena noite, clarões sinistros
homem ou projétil poderia atingi-lo, se não o permitissem as iluminavam o céu escuro sobre a cidade em chamas. Contínuo
leis da vida, aplicadas a seu caso particular. ribombo de explosões e perigosos abalos sacudiam o ar. Nos
Em geral, na defesa da vida e na luta pela vitória, a inteli- campos, cada vez que apareciam aparelhos isolados ou em gru-
gência humana não vai além das causas e acontecimentos pró- pos, começava, em cadência acelerada, o canhoneio das bateri-
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 75
as antiaéreas vizinhas e sobre as cabeças caia chuva sibilante clusive à própria, então personifica o princípio destrutivo. O
dos estilhaços. Os grandes pássaros de prata, maravilha da téc- bem afirma e cria, e quem a ele se liga é obrigado à construção,
nica, tão belos no límpido azul do céu, desciam rápidos como inclusive à própria. Hoje, os construtores não podem senão es-
falcões, semeando morte, ou, então, chegavam de surpresa, em perar que a tempestade do mal se acalme e se canse. Isso é bru-
voo rasante, metralhando. Todos os flagelos da guerra se suce- tal, egoísta, desapiedado; mas, acima de tudo, é estúpido. Trata-
diam em crescente terror. Nas casas, não havia nem água nem se de força agitada e frenética, porque desequilibrada, de força
luz; faltavam as pontes e, por isso, nem se pensava em reabas- cega e absurda, cujo desenvolvimento termina na loucura, no
tecimento. Em compensação, a terra estava inteiramente mina- desespero, inclusive na própria loucura e no próprio desespero.
da, pronta a explodir sob o passo mais leve. Então, como se não Eis o clímax do método da força. Quão longe estamos das ca-
bastasse esse inferno, os soldados começaram a entregar-se ao racterísticas do bem, que é equilibrado, calmo, confiante, escla-
saque e à orgia. Embriagados com o vinho tirado às pobres me- recido! Ninguém pode destruir essas leis e impedir que sua ma-
sas, roubavam as últimas provisões. A propriedade estava prati- nifestação lhes revele a substância
camente abolida. Tornava-se necessário expor-se a novos peri- Assim, a guerra avançava como gigantesco rolo compressor,
gos para proteger, embora ameaçados de revólver, miseráveis trazendo morte e ruína, às cegas, ao acaso, até para civis iner-
sobras de tantos anos de privações. E, finalmente, o canhoneio. mes, crianças inocentes, mulheres inofensivas, doentes, velhos.
Baterias colocadas bem próximo atraíam chuva de granadas. A E a loucura destruía com exatidão científica, método racional,
todo momento podia dar-se o inesperado impacto; e ouvia-se lógica fria e sistemática, para obter o maior rendimento em mor-
todo tiro, às vezes isolado, às vezes em longas rajadas, mas te e ruína, à custa de esforço mínimo, como acontece na fabrica-
sempre perfeitamente decomposto em três tempos bem distin- ção das máquinas em série, na matança de reses. Mas essa ci-
tos: a explosão da partida do projétil, o sibilo do trajeto e o ruí- randa é um vórtice que não se mantém senão à custa de massa e
do do impacto. Prestava-se atenção ao sibilo, pois trazia a mor- de velocidade, isto é, acelerando continuamente sua fúria maca-
te consigo. Onde? Podia chegar a qualquer momento, pelo pró- bra, escancarando cada vez mais as fauces e envolvendo em suas
prio teto. A morte rondava permanentemente no ar. Ouviam-na espirais número sempre crescente de vítimas. Tem avidez delas,
sair dai; daí se esperava que ela chegasse. As vezes a morte atrai-as, prende-as e assim se alimenta e se robustece. Ai de
passava ao longe, às vezes caía a poucos metros de distância. quem pôs em movimento o “maelstrom” e se lhe confiou. Quem
Nosso personagem observava. Que força estava movimen- foi apanhado por ele não lhe escapa mais. No fundo, o que há é
tando esse inferno? Sentia no rosto a respiração do mal, ator- desespero para todos, vencedores e vencidos. Estamos vivendo a
mentada e cheia de cansaço. Era de certo a voz de Satanás. última consequência da filosofia nietzschiana. Seu super-homem
Quem a ouviu uma vez, não a esquece mais. É áspera, traidora, ideal arranca a máscara e mostra seu verdadeiro rosto de fera.
egoísta, homicida, destruidora. A explosão exprime essa voz, Nietzsche morreu louco. Loucura, naufrágio final do espírito, sa-
resume essa alma. É terrível ânsia de tudo despedaçar, esface- tânica ruína de rebeldes à Lei, conclusão fatal inserida no siste-
lar, aniquilar completamente. Tudo tem de ser reduzido a peda- ma e que diz respeito a quem quer que o siga. Eis os resultados
ços, emporcalhado, dilacerado, retorcido, queimado, cortado. É de ciência utilitária, amoral, de ciência sem consciência; as in-
o estilo lançado pela guerra, estilo Kaput, estilo moderno, estilo venções do gênio prostituídas ao interesse e envenenadas ao
destruição. Esse é o aspecto atual da Europa. É o estilo do mal. ponto de se tornarem instrumento de morte. A primeira aplica-
É psicologia, filosofia, método científico, loucura ajudada pela ção notável da conquista do ar foi o massacre da Europa. Não
lógica, pela técnica, pela inteligência. É o destrucionismo, últi- seria ótimo que os cientistas não comunicassem mais a seme-
ma fase do materialismo. É o último produto lógico da ânsia lhante mundo os resultados de suas descobertas?
desesperada que a civilização moderna acreditou ser dinamismo De tarde, enquanto a infernal voz de Satanás dominava a
criador, é o paroxismo da ação levado a grau de loucura, dese- planície, na miserável casa de colono, rezavam. É sublime falar
quilíbrio não admitido pela natureza, precipitação fatal de um com Deus, é reconfortante senti-lo bem perto, principalmente
ciclo e prelúdio de fatal mudança de rumo, que está presente nas horas terríveis. Rezavam com simplicidade e fé, na velha
em toda regressão. O mal está encerrado no tempo e, por isso, cozinha do colono, enfumaçada, pequena, pobre. Rezavam, ir-
tem pressa. Aí reside seu ponto fraco; ele não o ignora e, por- manados na mesma miséria, o camponês e o intelectual, o po-
tanto, corre. O culpado foge. É desesperado, incerto, desorde- bre e o rico; o rústico, morto de fadiga, e o homem fino, abatido
nado. O sábio trabalha com segurança e calma; assim trabalha e mal vestido. As grandes ideias da vida e da morte, do ódio e
melhor e com muito menos dificuldade. O erro representa do amor da família e dos filhos, do dever do sacrifício, estavam
grande diminuição de rendimento. Essa ansiedade do mundo ao alcance da compreensão de todos, formavam essa estrutura
não se poderia controlar e, por meio de aceleração contínua, da vida, instintiva e essencial, comum a todos. A prece sabia fa-
constituía instabilidade que deveria necessariamente terminar lar ao coração de todos. Em sua fé milenária, a raça, já longa-
na autodestruição. Isso revela o mal, cuja essência é a negação. mente experimentada nas desventuras, reencontrava sua força.
É raiva que quer ver tudo subvertido, despedaçado. Tudo deve A visão das excelsas coisas do céu, de um mundo melhor no
explodir, tudo se destina a matar. É o reinado da fera. Seu sis- além, confortava a miséria do momento. Nas asas da prece,
tema é a força; a vitória, mero pretexto, ilusão; a realidade, seu aqueles desventurados se sentiam transportados da dor à paz do
verdadeiro desejo é constituído pelo massacre. Eis aí o ponto a coração e à confiança na ajuda de Deus, e não ao brilhante e ci-
que chega e como termina o método da força. entífico desespero do mundo. Em meio daquela pobreza frater-
Por isso Cristo ensinou no Sermão da Montanha 13: “Ouvis- na, sentia-se vagar suave esplendor; era a figura de Cristo, que
tes que foi dito: Olho por olho, e dente por dente. Eu vos digo, estendia sobre todos as mãos protetoras, inclinava-se sobre toda
porém, que não resistais ao mal; mas, se qualquer te bater na dor para aliviá-la e, na soleira da porta da pobre cabana, se er-
face direita, oferece-lhe também a outra; e ao que quiser pleite- guia poderoso, desafiando a tempestade.
ar contigo e tirar-te a túnica, entregue-lhe também a capa...”. O Assim ia o tempo correndo, entre forçados ócios emprega-
mal sabe iludir-nos com suas miragens de grandeza e, assim, dos em meditação, perigos e aborrecimentos, terrores e espe-
desafoga a sua raiva. E quem acredita na força e a emprega tor- ranças. Por último, nova ameaça se juntou às demais: a caça ao
na-se instrumento da Lei e se liga inteiramente à destruição, in- homem. Militares armados entravam nas casas e requisitavam à
força a última mercadoria que restara: o homem. Certa tarde,
13
Trecho da Vida de Jesus Cristo, de G. Ricciotti, seguimento 327. (N. chegaram de surpresa à referida casa de colono. Muitos, alerta-
do A.) dos, se esconderam ou fugiram, alguns foram presos. Nosso
76 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
personagem estava na cama, cansado, e não fugiu nem se es- pondeu tranquilamente: “Não posso, estou muito cansado, vou
condeu. Não tinha força para defender-se. Gastara todas as cair ao cabo de poucos quilômetros, não tenho mais força físi-
energias no cumprimento do dever, isto é, protegendo, preven- ca. Sofro há muitos anos. Não posso suportar novas fadigas,
do, provando, encorajando. Não lhe restaram forças para pensar novos incômodos. Estou falando a verdade. Se não acredita-
em si mesmo. Aquela hora era, pois, a da Providência, seu der- rem, podem matar-me agora mesmo. Estou preparado”. O mili-
radeiro auxílio. Além disso, causava-lhe invencível repugnân- tar, que lhe falara, olhou-o com seus olhos metálicos e acres-
cia ter de defender-se sozinho, não confiar em Deus para confi- centou: “Você vir conosco, logo, ou eu disparar”. Nosso per-
ar em si mesmo e nos métodos de defesa humanos. Não podia sonagem repetiu: “Matai-me. Estou preparado. Sempre estive.
mudar seu sistema, que era o de chamar sobre si o cumprimento Peço apenas um minuto para falar com Deus. Ide até ao fim
do dever, ajudar os outros e confiar na Providência. Sua defesa nessa destruição. Estais armados até aos dentes e podeis fazê-
não era a do tipo comum, isto é, improvisada na última hora e lo impunemente. Quem pode deter-vos? Apenas o vosso dano;
superficial. Fugia da força como fugia da astúcia. Preferia a de- não o vedes, porém. Minhas armas são outras. Não o enten-
fesa longamente preparada na procura da invulnerabilidade que deis. Quem, pois, vos detém?”.
deriva do estado de inculpabilidade moral perante Deus, estado Em seguida, caminhou tranquilamente em direção a um es-
em que ele, há muito tempo, tinha procurado colocar-se. Mes- paço vazio da parede, nele apoiou as costas, estendeu os braços
mo na luta defensiva comum, empregava as forças de plano em cruz, fechou os olhos para o mundo exterior, reabriu-os para
evolutivo mais elevado, submetendo-as mais uma vez à expe- o outro lado da vida, esperou, rezando deste modo: “Senhor, em
rimentação, mas sempre confiante nelas, por havê-las visto fun- tuas mãos encomendo o meu espírito. Não permita se manche
cionar tantas vezes. Ele percebia que compete a Deus defender este homem com um homicídio, pois é da Lei que ele mais tar-
a quem, tendo empregado tudo no cumprimento do próprio de- de o pagará com sua morte. Forças cósmicas do bem, acorrei
ver, não possuía mais meios e forças para prover-se do necessá- contra as forças do mal que agora estão envolvendo este pobre
rio. Assim, quis, até nesse momento crucial, manter-se coerente cego para ligá-lo a nova dor e incorporá-la a seu destino; assim,
com os princípios que jamais o haviam traído. Pôs em prática, não será ele perseguido incansavelmente até que a reação do
portanto, seu método; antes de mais nada, permanecer, com ho- delito se esgote com sua morte violenta. Senhor, aqui está mi-
nestidade e plena consciência, tranquilamente no seu posto de nha vida, para que o bem, e não o mal, triunfe”. Daí, como su-
combate e de dever, até ao último limite; depois, nada mais lhe premo e concludente gesto, fez o sinal da cruz, isto é, o sinal da
restando, desinteressar-se por si mesmo, abandonando-se às dor, o sinal do amor e das maiores forças colocadas nas pró-
mãos de Deus com a fé mais completa. Percebia o profundo prias raízes da vida, o sinal do Senhor, símbolo e síntese da gê-
funcionamento das leis da vida e que estas não podiam mentir- nese e da criação principalmente em relação ao espírito. De-
lhe nem traí-lo; sentia-se participe da imensa organicidade do pois, pensou: “vem, ó morte, querida irmã, aceito-te alegremen-
todo e sabia que a mente diretora não podia permitir a dispersão te das mãos de Deus, pois assim me livras deste inferno”.
de parte alguma, por menor que fosse; tinha a nítida impressão Não tendo ouvido mais nada abriu os olhos. Seu olhar cru-
da indestrutibilidade fundamental do próprio ser. Posição, por zou o do oficial que o fitava; o olhar metálico e o olhar ardente
certo, estranha e incomum. Mas é inegável que as forças da vi- se defrontaram. O primeiro tentava compreender, e não o con-
da a percebiam, pois se adequavam a essa sua posição especial. seguia. Extenso abismo abria-se entre os dois. Ele sentia atra-
Ele via, então, a Providência tomar corpo na realidade e mani- ção e repulsão, fascínio e raiva, absoluto desejo de matar o re-
festar-se-lhe aos sentidos, de modo a tornar-se auxílio concreto; belde, como, aliás, havia ameaçado, e total incapacidade para
via Deus avizinhar-se-lhe e a justiça de Sua lei tirá-lo do peri- fazê-lo. Invisível potência o detinha. Ficou ali parado, perplexo
go. Sua experiência não era impregnada de dúvida, desconfia- com essa hesitação incomum, para decifrar-lhe o sentido, pro-
da, analítica, mas confiante, embriagadora e cheia de alegria, a curando descobrir que coisa o paralisara, que coisa se interpu-
que não era capaz de subtrair-se. Assim, de alma perfeitamente nha entre si e o homem, ao ponto de impedir-lhe o passo. Por
calma e visão absolutamente límpida, esperou o perigo. que essa inércia? O homem de ação e de ciência, habituado a
Observemos o encontro entre as duas forças contrárias. Tra- tomar conhecimento dos fatos, queria saber o porquê e a razão,
ta-se de dois princípios diversos, de dois métodos de luta, de por isso escrutava, olhando aquele homem enigmático que
dois mundos opostos. Espírito e matéria, bem e mal, se defron- tranquilamente esperava a morte. O homem de fé olhava o ofi-
tam e desafiam, cada qual com suas armas. Quem vencerá? O cial e lia-lhe no coração, muito embora ele não estivesse perce-
homem isolado, inerme, mas justo e, por isso, ajudado por bendo nada do que se passava consigo.
Deus? Ou o militar armado, sustentado pelo número, mas assis- Defrontavam-se os modelos de duas civilizações diferentes.
tido apenas por um organismo defensivo humano? Os mesmos O oficial era o produto de pseudocivilização científico-
conceitos e as mesmas posições, aqui considerados em seu as- mecânica, chegada às suas últimas consequências, civilização
pecto individualista, vimo-los na “Visão” (aspecto coletivo) re- rica, armada, astuciosa e potente, no entanto pronta a desabar.
ferida neste volume (Cap. XVI e XVII) e no encontro entre Do outro lado estava o representante de nova civilização, no
Cristo e Pilatos (Cap. XXI). Também vemos em Quo Vadis, de momento apenas embrionária, a única possível civilização ver-
Sienkievicz, São Pedro e Nero olharem-se por um instante fren- dadeira; um indivíduo desacompanhado, pobre, desarmado,
te a frente. Em Os Miseráveis, de Vítor Hugo, Mons. Myriel sincero, justo. O oficial não podia, com os olhos da carne, ver
permanece calmo diante da ameaça de Jean Valjean, deixando através da matéria e penetrar no segredo, que o perturbava, da-
que apenas sua inocência o defenda e, na noite do furto, vemo- quele homem enigmático e, mesmo armado, não tinha coragem
lo permanecer ileso, invulnerável, nas mãos do assassino, que de matá-lo. Este homem representava principio diferente, mais
se torna impotente para feri-lo. A veracidade dessa lei do mere- sublime e poderoso: o espírito. E o militar a si mesmo pergun-
cimento e o poder dessa força da justiça e da inocência foram, tava por que essa invencível resistência que, embora ele não
embora não demonstradas, percebidas pelos outros. conseguisse compreender, lhe chegava do imponderável, e
Nosso personagem, que estava na cama, vestiu-se e espe- qual o mecanismo dessa energia desconcertante, capaz de ini-
rou. Avisaram-no: “fuja, senão eles o prendem”. Sentou-se bi-lo desse modo. Nosso personagem fechou de novo os olhos,
calmo, escutando os passos dos militares que vasculhavam a esperando o estampido do tiro: a morte. Silêncio. Quando os
casa. Ouviu-os aproximarem-se. Um oficial escancarou a porta reabriu, o oficial desaparecera.
de seu quarto e, apontando-lhe o revólver, avançou até ao meio O homem esperou, mas ninguém se preocupou mais com
do cômodo. “Você vir conosco”, disse-lhe. Levantou-se e res- ele. A morte passara bem perto de si e não o quisera. Deus
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 77
passara bem junto dele. Atirou-se sobre o enxergão e adorme- lidade e, por isso, lhe fogem, temem a introspecção e, como
ceu como o fazia toda noite, tranquilo, agradecendo humilde- percebem estarem nus, procuram avidamente cobrir-se com
mente ao Pai que está nos céus, que desejara continuasse ele seus ouropéis. Mas os valores e as defesas estão dentro, e não
toda a trabalheira de sua vida. fora. Tudo quanto é externo se despedaça ao primeiro sopro da
tempestade. Assim é a vida.
XXIII. VINGANÇA OU PERDÃO Por isso podemos dizer com o evangelho: “Ai dos ricos, ai
dos vencedores, ai dos que gozam. Amanhã chorarão”. São
A moral da narrativa feita no capítulo anterior tem alcance coisas ditas e reditas pelos sábios; todavia, nesta vida turbilho-
universal e representa modificação completa da psicologia cor- nante, não passa pela cabeça de ninguém que devam ser leva-
rente, quando afirma serem todas as situações de nossa vida, das a sério. No entanto constituem a realidade mais profunda
boas ou más, consequência de nossa conduta. Pode ser que não da vida. O encontradiço tipo involuído não sabe compreender
nos recordemos de quando e onde semeamos na plantação de como, para quem evolui, a ilusão, em dado momento, desapa-
nosso destino, mas, sem dúvida alguma, semeamos. Sempre reça sem causar mágoa e como, sob o nome de ilusão, deva-
procuramos nos outros as causas de nosso infortúnio; elas, po- mos entender exatamente as coisas que a maioria das pessoas
rém, residem em nós, dentro de nós. Procuramos sempre incul- considera mais preciosas. De fato, o caminho evolutivo do sá-
par os demais, pois queremos encontrar um Cirineu que nos bio é juncado de descobertas muito mais maravilhosas do que
carregue a cruz. No entanto nós é que devemos carregá-la nos as científicas, proclamadas aos quatro ventos. Trata-se de des-
ombros. Isso tudo satisfaz a lógica, a lei de causalidade, a justi- cobertas verdadeiramente utilitárias e substanciais, completas e
ça e a liberdade humana. Os acontecimentos não nascem fora decisivas. Eis o verdadeiro sentido da vida, sentido que escapa
de nós, mas dentro; se algo nos golpeia, não é por motivo de al- ao entendimento das massas estúpidas e escravas, abandonadas
guém no-lo ter querido infligir, e sim porque nosso modo de à deriva, desejosas apenas de vegetar. Contudo, a realidade
vida, esse feixe de forças, o atrai ou, pelo menos, por ser vulne- material e exterior, que todos alimenta, tem as raízes mergu-
rável desse lado, lhe garante livre acesso, verdadeira porta aber- lhadas nessa realidade interior e dela não pode separar-se. E
ta. Nas infecções microbianas, não é a esterilização do ambien- pretendemos dominar os efeitos, combatendo-os quando já
te, impossível de conseguir, que decide a nossa saúde, mas, plenamente desenvolvidos, ao invés de extirpá-los no nasce-
acima de tudo, a resistência orgânica do indivíduo. Assim tam- douro. Todavia o sucesso material, tão ansiosamente desejado
bém, quanto às adversidades morais e materiais, não nos é pos- por nós, não podemos obtê-lo sem o concurso da força moral,
sível viver em um mundo inócuo nem se pode, também, esperar que não levamos em conta e, no entanto, a ele se liga estreita-
continuamente sua não-agressão; devemos, ao contrário, confi- mente. O imponderável, embora incompreendido e maltratado,
ar apenas nas qualidades individuais de resistência, de reação permanece indestrutível entre nós; não se deixa dominar e rea-
defensiva, de recuperação, isto é, naquelas forças por todos nós ge maleficamente, pois o nosso mau tratamento para isso quis
possuídas, porque as conquistamos e as incorporamos ao dina- pô-lo em ação. Se as forças da Lei, agindo sabiamente, não nos
mismo de nosso próprio destino. A moral da precedente narra- reeducassem por meio da dor, nossa civilização não saberia fa-
tiva é que nós mesmos devemos construir-nos, cada qual por si zer outra coisa senão conduzir-nos, por meio do bem-estar e do
e para si, e toda alegria ou dor, vitória e derrota constituem ex- abuso, à decadência física e moral.
perimento que se registra indelevelmente no livro de nossa vida Procuramos neste livro observar essas verdades sob todos es
e representam prova da qual nos interessa sabermos sair mais pontos de vista, conforme as várias formas mentais, servindo-
esclarecidos. Ou nos construímos e robustecemos, ou nos de- nos da lógica, narrando os resultados da experiência, apoiando-
molimos e enfraquecemos. Se, como tantos fazem, procurarmos nos na analogia e em relações com fenômenos de outro tipo. O
a vida apenas fora de nós, nas outras pessoas e nas coisas, se- problema que estamos enfrentando é o do melhoramento hu-
remos escravos, seus escravos. Só seremos livres se procurar- mano, e este coincide com o aperfeiçoamento do indivíduo. Po-
mos a vida dentro de nós. A moral é que podemos ser senhores demos, para isso, utilizar as grandes vias das reformas sociais e
de nosso destino, mas se torna necessário querê-lo e sabê-lo. É dos sistemas orgânicos de massa. Se aqui, porém, a ação é mui-
preciso, porém, viver em profundidade, viver vida consciente. to extensa, é necessariamente pouco profunda. De modo que, se
Não é a riqueza ou o poder, mas a vida interior, que nos dá a quisermos fazer a evolução humana avançar muito, temos de
independência e o domínio. Podemos viver no meio da guerra encaminhá-la pelo estreito caminho individual. Trata-se de mu-
e, no entanto, ter a paz no coração. A maior conquista consiste dar o sentido da vida. É preferível, pois, trabalhar no lado de
em chegarmos a ser e conservarmo-nos donos de nossa casa in- dentro a trabalhar no lado de fora do indivíduo, mais por livre
terior. Essa é a única direção útil do expansionismo para o novo convencimento do que por imposição, mais por maturidade do
homem, expansionismo que não acaba em carnificina. Em rela- que por organização. São múltiplas as estradas do progresso.
ção à nossa alegria e à nossa força, vale nossa casa interior mui- Essa maturação deve ter o caráter de espontaneidade. Por isso,
to mais que a exterior; podemos fazê-la ampla e sólida e con- apela-se para mais perfeito entrosamento da vida humana com
servá-la a nosso modo, em completa independência, em plena as leis biológicas. Da conquista de novo modo de conceber a
autarquia do espírito. Essa casa, porém, não a recebemos por vida, mais lógico e mais elevado, derivaria mudança no com-
herança; cada um de nós tem de construí-la com as próprias portamento individual e nas relações das pessoas entre si e com
mãos, pois é nossa de fato. Mas essa posse deve ser plenamente as coisas, o que traria grande vantagem para todos. Procuramos,
justa, isto é, constituir fruto de nosso trabalho. Essa casa é o aqui, fazer com que o homem moderno compreenda a enorme
verdadeiro refúgio na adversidade, o ninho de nossas alegrias, o vantagem de ser honesto. A humanidade de hoje crê ter-se de
cofre de nossos tesouros; mas é construção feita de forças, edi- súbito civilizado apenas porque descobriu alguma lei exterior
fício entretecido de invisíveis fios que se movimentam e neces- da vida, que lhe permite mais cômodo desfrutamento dos recur-
sitam nutrir-se diariamente de nosso trabalho, porque marcham sos naturais. Trata-se de domínio alcançado sobre algumas for-
para o futuro, são vivos e, se não forem alimentados, se desfa- ças tornadas em parte obedientes, para atingir bem-estar de que
zem. Há homens que, por fora, vivem em palácios luxuosos e, nos pomos a gozar, ignorando-lhe as consequências. Esse do-
por dentro, definham em casebres miseráveis, desleixados, tris- mínio também poderá servir para nos causar a morte cientifi-
tes, em ruínas. Nos momentos de desventura, seu mesquinho eu camente, em larga escala, porém não nos torna mais adiantados.
não encontra refúgio, pois as grandezas terrestres não podem Isso não pode chamar-se civilização. De mudanças profundas
oferecê-lo. Percebem a miséria da casa interior de sua persona- de orientação, que interessem à motivação da atividade huma-
78 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
na, nem se fala. Hoje em dia, a vida se apresenta feroz e desapi- das posições exprime outra ainda mais profunda, isto é, a ten-
edada como nos tempos pré-históricos. Não estar armado de dência que busca o restabelecimento do equilíbrio rompido. Ela
pedras lascadas, mas de metralhadoras; não estrangular o seu se deve à presença de uma terceira vontade, que nada tem de
semelhante com as mãos, e sim com os bancos, representa ape- comum com as verdades particularistas e relativas dos dois con-
nas progresso formal, substancialmente fictício. Civilização que tendores, isto é, a vontade imparcial e justa da Lei, cuja tendên-
deixa intactos os instintos bestiais do homem e, além disso, lhe cia constante consiste em corrigir e reabsorver o erro humano.
oferece meios mais poderosos de satisfazê-los, não merece o Perguntamo-nos agora: como se torna possível reequilibrar
nome da civilização. Hoje, ao invés de havermos progredido, esse binário que, tendo perdido o equilíbrio, não sabe recom-
descemos a tal ponto, que perdemos o sentido do que seja civili- pô-lo? O maior sonho do lutador consiste na vitória e conse-
zação e mudamos o significado dessa e de outras palavras su- quente aniquilamento do inimigo. Na verdade, porém, não pas-
blimes. A verdadeira civilização está mais dentro do que fora de sa de ilusão, pois o inimigo que representa uma força, é subs-
nós; é mais um poder das qualidades da personalidade que um tancialmente um imponderável, e participa de um organismo
poder originado nos meios exteriores e no domínio material; é universal em que, como já dissemos, nada se pode destruir e
progresso no espírito; implica em mudança do comportamento onde se torna impossível abrir-se o vácuo de sua aniquilação,
humano em profundidade, e não apenas em superfície. Em meio que representa, pelo contrário, tendência a preenchê-lo, irresis-
dessa nossa barbárie, os raríssimos sábios caminham em silên- tível vontade de compensação. O homem não pode de modo
cio, beneficiando e perdoando. O mundo ri-se deles. Mas neles nenhum neutralizar essa tendência, paralisar essa vontade su-
apenas reside o futuro do mundo, o único futuro sem sangue. perior. Como recurso, possui apenas a sua força e, para vencer,
As ações e as relações humanas podem ser estudadas como a ela se agarra com unhas e dentes. Mas a manutenção de arti-
jogo de forças e, assim, descobriremos suas leis. Aí esta o âma- ficial estado de equilíbrio, como o de seu domínio sobre o pró-
go da questão. Acreditamos que a lei do perdão significa pôr-se ximo, requer esforço contínuo, que se resolve, já o dissemos,
em situação de fraqueza e que o sistema de vingança e aniqui- em desgaste e, mais tarde, em inevitável cansaço. Desse modo,
lamento significa posição de força. Não compreendemos como não só pelas razões já precedentemente expostas, mas também
na realidade se dá o contrário, isto é, como o perdão nos liberta por esta, o sistema tende a inverter-se. A lei fundamental de
da reação e a vingança nos liga ao inimigo. Quando dois indi- justiça tende incansável e tenazmente à compensação, exer-
víduos estão em paz entre si, representam sistema de forças em cendo insistente pressão nesse sentido, e apenas encontrará paz
equilíbrio. Mas, apenas um dos dois tenta superar o outro, pro- quando completamente corrigido o precedente desequilíbrio.
curando invadir e dominar, não só o legítimo campo de sua li- Impossível, pois, resistir indefinidamente; de fato, para con-
berdade mas também o campo dos demais, esse sistema de for- servar de pé um sistema desequilibrado, seria necessário ampa-
ças não se mantém mais na posição natural e estável de justiça rá-lo continuamente por meio de incessante dispêndio de ener-
e se transforma em sistema desequilibrado, que tende esponta- gia. De um lado, temos o princípio-lei, que é vontade inteli-
neamente a voltar à primitiva posição de equilíbrio. Temos, gente armada de energia, calma, paciente, mas constante e ine-
agora, de um lado, rarefação e vácuo e, de outro, concentração xaurível. De outro lado, o homem armado de energia violenta,
e pressão; de um lado, derrota e danos e, de outro, vitória e van- mas inconstante e pouco duradoura, colocado perante lei de
tagens. Tudo poderia processar-se de acordo com a vontade do vontade diferente da sua e que não se deixa violar senão tem-
homem, que gostaria estivessem a seu favor essas mudanças, se porária e excepcionalmente, à custa de esforço persistente e
não existisse uma vontade superior a dirigir e equilibrar, a von- cansativo. O indivíduo poderá resistir, até mesmo vencendo
tade da Lei, que guia todos os fenômenos de acordo com equâ- por algum tempo, porém inevitavelmente chegará o momento
nime princípio de justiça. O fato é que essa lei existe, e um de se inverterem as posições. Portanto é fatal, como de fato se
princípio impõe o equilíbrio. Acontece então, automática e irre- verifica, que, cedo ou tarde, o sistema se decomponha e o ven-
sistivelmente, que, de um lado, a atração exercida pelo vácuo e, cedor passe à condição de vencido, e vice-versa. No reino da
de outro, a força de pressão tendem a estabelecer esse movi- força, vitória significa vitória. Mas, perante lei equânime, im-
mento de reação chamado vingança; esse movimento, se possui parcial, desejosa de que todos vivam, vitória significa débito
um fundo de justiça, pois tende a reequilibrar o sistema, lança-o do vencedor para com o vencido, débito a ser pago de qualquer
em novo desequilíbrio, constituído pela posição inversa, de que modo um dia. Então, que adianta vencer? Se não nos conten-
nasce nova reação, a contravingança, e assim por diante. Esta- tamos com resultados efêmeros nem damos crédito à ilusão,
belece-se, desse modo, cadeia de vinganças interminável, por- não é verdade que vitória e derrota representam o mesmo fe-
que através delas o desequilíbrio se mantém, permanece sempre nômeno? Trata-se de posições instáveis, solapadas pelo tempo,
a provocação originária, que não tem remédio. Assim, acontece de vantagens momentâneas, trabalhosas e arrancadas violen-
que, quando dois indivíduos, pela prática de algum abuso, se li- tamente aos naturais e inexoráveis equilíbrios da Lei. E assim,
gam a tal sistema de forças, este não sabe mais como resolver- em última análise, a vitória não passa de prelúdio da derrota, e
se, e os indivíduos permanecem, mesmo através de seus des- a derrota significa o prelúdio da vitória.
cendentes, indefinidamente emaranhados. Assim, até à consu- Se, pois, a vitória não resolve definitivamente o problema,
mação dos séculos, o fratricida Caim revive no homem. visto como de fato não reequilibra o sistema das duas forças, e
Continuemos a observar. Por um lado, a concentração cons- se a posição de estabilidade apenas pode ser garantida por es-
titui riqueza, superabundância de bem-estar, euforia biológica pontâneo equilíbrio dos dois impulsos opostos, a que devemos
causadora de engorda enervante, que desabitua da luta, diminui recorrer então? Sem dúvida, o sistema humano da vingança não
as capacidades, aniquila as defesas. De outro lado, a rarefação é atinge o objetivo previsto. Não se trata aqui de agravar, mas de
pobreza, incômodo, tormento originador de excitamento, que reabsorver o desequilíbrio originário, e isso apenas pode ser
anima ao combate, apura as capacidades, prepara e apresta o conseguido pelo perdão. Vimos que a primeira usurpação cau-
ataque. De um lado, pois, a pressão tende naturalmente a dimi- sara um primeiro desajustamento, que o sistema ativo-reativo
nuir; de outro, a tensão tende a aumentar. Assim, as duas forças em cadeia das vinganças não consegue eliminar. Para consegui-
do sistema, já ligadas, tendem a combinar-se de novo, mas em lo, torna-se necessário um ato igual e contrário, porque só um
posição inversa. E assim por diante. Tais são as vicissitudes de ato assim pode neutralizar o primeiro. É preciso, portanto, mo-
toda luta, de dois homens, famílias, facções ou povos. Existe, vimentar-se em sentido contrário; e só o perdão pode fazê-lo.
pois, enxertada no próprio sistema, uma tendência a compensar, Dirão, agora: Para que serve essa luta e porque as leis da
corrigir e eliminar os abusos iniciais. Essa tendência à inversão vida a permitem, se constitui erro? Serve para aprendermos o
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 79
modo de não cometer mais erros, pois, ao percorrermos o ca- a divina lei de justiça. Com o meu perdão, tu continuas nessa
minho da vingança, aprendemos a lei do perdão. O homem ne- triste posição; tu, pobre iludido, que te ris de mim porque pen-
cessita aprender, por isso Deus deixou-o livre. Não se trata, sas ter-me vencido. Muitos preferem comprometer-se cada vez
pois, de liberdade desenfreada e louca, mas de liberdade limi- mais, disputam corrida em direção ao aumento da dívida. Quan-
tada e protegida. A Lei cede no limite do necessário ao apren- to a mim, prefiro libertar-me por meio do perdão. Liga-te, isso
dizado do homem; deixa-o errar para que, depois, sofra as do- sim, com quem responder aos teus ataques. Eu, por meio do
lorosas consequências do erro. Age, porém, paternalmente, perdão, me liberto. Nada podes contra mim, sem que eu o quei-
pois, ao mesmo tempo que parece abandoná-lo, a Lei se mostra ra. Não tens o poder de infligir-me a dor que quiseres. Isso de-
sabiamente previdente, próvida e protetora, comprometendo-se pende apenas de mim e de minhas culpas. E, se eu tiver de so-
antecipadamente, por meio de lenta mas constante e tenaz frê-la, não a aceito de ti, que ignoras o porquê das coisas e ages
pressão, a recolocar tudo em seu devido lugar. E, de fato, ve- como cego; aceito-a apenas das mãos de Deus, a titulo de expi-
mos que, apesar de todas as desordens humanas, a Lei alcança ação merecida, de salutar purificação e, por isso, de benefício
esse objetivo. Desse modo, todo erro contém em si o germe de para minha redenção. Não és mais do que instrumento incons-
sua correção, a imperfeição se reduz a motivo de perfectibili- ciente guiado pela Lei, ser ignorante do que faz, merecedor de
dade contínua. O mundo constitui, assim, perene injustiça, que piedade, por quem devo orar. És pobre irmão ainda ignaro, que
representa poderosíssima aspiração à justiça. A vida é desequi- devo esclarecer e ajudar, irmão que está ferindo a sua própria
líbrio constantemente à procura de equilíbrio; é vingança avi- vida e ligando-se, sem sabê-lo, a nova dor, porque, acreditando
damente desejosa de alcançar a fase superior de perdão; é ânsia golpear-me, está golpeando a si mesmo. Irmão! Devo socorrer-
de ódio que não sossegará enquanto não reencontrar o amor. A te do perigo pelo qual estás passando. Mais tarde, depois de es-
Lei existe, sem dúvida, porque nossa consciência sabe exata- pontaneamente teres querido ligar-te, por mais que eu sofra e te
mente como as coisas deveriam ser perfeitas, embora ainda perdoe, nada poderei fazer por ti contra as consequências fatais
não o sejam e um abismo de dificuldades as impeçam de o se- de tua conduta; assim, deverás pagar inexoravelmente e na pro-
rem. De fato, o mundo apresenta-se como oceano de desequilí- porção de teu erro. Tu, não eu, rompeste o equilíbrio. Tu, não
brios e, por essa razão, sofre, exatamente porque não consegue eu, deverás, penando, reconstruí-lo. A redenção é demorada,
atingir o estado de equilíbrio, único, conforme o mundo mes- complexa e se processa átomo por átomo. Meu perdão me inte-
mo percebe, em que encontraria a paz. Torna-se evidente que ressa mais do que a ti. Cairás debaixo da força que tu mesmo
apenas o reequilíbrio poderá dar-nos a felicidade, mas esse re- libertaste. Ai de ti, se venceres. Tanto mais pagarás quanto mais
equilíbrio está bem longe de nós. O sofrimento do mundo não injustamente houveres vencido. Acreditas trabalhar fora de ti,
se deve a erros recentes, e sim milenários, a pavoroso amonto- em mim, no entanto trabalhas dentro de ti, em ti mesmo. Tudo
ado de erros, acumulados através dos séculos, difícil de elimi- quanto fizeres recairá sobre ti, porque tu o fizeste; não recairá
nar e impossível de reabsorver assim de um golpe. Hoje, tudo sobre mim, senão na proporção em que eu o houver merecido”.
está impregnado de erros e o ar encontra-se saturado de menti- A Terra é morada infernal, local de débito e de expiação,
ra; o mal que semeamos se transformou em nossa atmosfera. É lugar em que os homens gostam de endividar-se até ao pescoço,
preciso pôr-se a caminhar, lenta e tenazmente, pelo áspero ca- vivendo debaixo de chuva de fogo, aceso por suas próprias
minho da regeneração. Os resultados do abuso não podem ser mãos. Todavia, como a lei de Deus se mantém justa e boa! So-
corrigidos senão movendo-nos em direção contrária, subindo mos livres, mas responsáveis. E, quando lhe compreendemos o
de novo pelo caminho que havíamos descido. Na prática, o significado, que poder regenerador o sofrimento adquire! Todos
simples caso de duas forças contrárias, há pouco examinado, nós temos de responder apenas por nossas ações e não também
complica-se num interminável entrelaçamento de desequilí- pelas ações alheias; cabe-nos responsabilidade pelo esforço fei-
brios, que nos submete ao jugo de nosso destino de indivíduos to, não pelos resultados obtidos. A força máxima consiste em
e de povos, pobres autocondenados, exatamente como por ig- ser inocente. O ponto vulnerável à dor é apontado pela própria
norância ou má vontade queremos. Quanto mais perseverar- culpabilidade, quer dizer, não é a dor em si mesma que o de-
mos no caminho da força e da vingança tanto mais pioraremos termina, mas a própria debilidade que oferece o peito aos gol-
nossas condições, agravando o desequilíbrio. A única saída é pes da lei de justiça. Tudo quanto fazemos perdura, e quem de-
esta: o caminho do perdão, o caminho do amor, o caminho do ve não encontra salvação. Logo nós mesmos criamos nossa
evangelho. Quando encontrarmos um homem que emprega a vulnerabilidade, espontaneamente, por meio de nossas próprias
violência e se vinga, diremos: este é um involuído que está ações, de acordo com nossa própria vontade. A casa interior do
começando o longo aprendizado da vida. Quando virmos um culpado é indefesa, tem as portas escancaradas. Por qualquer
homem que repele a violência e perdoa, diremos: este é um lado, a dor pode entrar nela. Cabe culpa às portas abertas e a
evoluído que já viveu bastante e aprendeu a lição da vida. A quem as abriu. Então, as forças do nosso destino atraem as in-
tendência da evolução consiste em substituir a vontade ignara, vestidas dos malvados, que, nas mãos de Deus, se transforma-
egoísta, desagregante e usurpadora do indivíduo pela vontade ram em instrumentos de justiça, embora, considerados em si
consciente, altruísta, orgânica e pacífica do homem da Lei. mesmos, sejam injustos e incapazes de compreendê-lo. Os mei-
Eis em que consiste e para que serve civilizar-se. Não se tra- os punitivos estão à solta, o mal conseguiu libertar-se das alge-
ta apenas de idealismo ou de sentimento ou de bondade. Trata- mas e pode, porque Deus o permite, agir com plena liberdade.
se de atingir a fase do homem que já compreendeu. Este diz: Na Lei, o mal é escravo do bem, tem limites que não pode ul-
“Perdoo-te, ó inimigo, porque só assim me livro do mal que trapassar senão a serviço do bem. Esses instrumentos não são
quiseste lançar sobre mim. Não; conheço a Lei e não faço como constrangidos, mas utilizados. São, por isso, responsáveis na
muitos iludidos que caem na armadilha. Sei que sou livre. Não medida de sua compreensão e liberdade de agir e nessa medida,
aceito ligar-me a ti por laços de ódio ou de vingança; não acei- quando lhes couber a vez, hão de pagar pelo que fizerem. Mas,
to, porque sou livre, o mal que quiseste infligir-me. Perdoo-te. se sou inocente, que podem eles perante mim senão oferecer-
Esse mal te pertence; tu o geraste, não eu. Perdoando-te, deixo- me novas oportunidades de expiação e ascese? Meu inimigo
o recair sobre ti, não sobre mim. Se eu caísse na corriqueira ilu- pode atirar-me às costas todo mal que quiser; apenas o que eu
são do mais forte e reagisse, ofendendo-te também, e te causas- merecer me atingirá. Não responderei por ele, mas por mim. E,
se um mal que em mim se gerara contra ti, tornar-me-ia deve- se não respondo às ofensas, toda a culpa recairá apenas sobre o
dor, e não mais credor teu, e terias o direito de reter-me como ofensor. A medida de nossa dor no-la dá nossa culpabilidade.
escravo enquanto eu não te pagasse meu débito, de acordo com Fato importante como o desenvolvimento de nosso destino e fa-
80 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
to grave como o peso de nossa dor não podem ficar à mercê da e os problemas, inclusive os sociais e morais, são indistinta-
vontade de um estranho, que muitas vezes nada sabe a nosso mente propostos e resolvidos como cálculo de forças. Além
respeito. Sem nosso consentimento, não obstante os permanen- disso, a repetição, muitas vezes, é útil, porque um prego não se
tes contatos humanos, não se podem efetuar trocas de valores prega com uma martelada só. Nem sempre é fácil fazer um
ou de forças entre destinos. Nós é que fazemos nosso destino; conceito penetrar no cérebro humano, duro como pau.
este não passa de campo de forças cerrado e protegido, em cujo Enorme abismo separa as referidas raças. Os dois tipos se
centro está o eu, dirigindo e controlando tudo. Um estranho po- distinguem por dois diferentes modos de conceber a vida, duas
derá introduzir nesse campo apenas as forças que quisermos. diferentes formas de luta, dois diferente métodos de compor-
As responsabilidades são graves; as sanções, inexoráveis. Nada tamento, pelos quais eles se revelam claramente. Cada qual es-
mais justo do que liberdade completa e responsabilidades bem colhe o que mais se adapta a sua natureza, e basta essa escolha
definidas. Nada mais justo do que cada um responsabilizar-se para mostrar quem ele é. O involuído prefere a força, o evoluí-
apenas por aquilo que livremente fez. do a justiça; duas armas diferentes, adaptadas exatamente às
Já vimos alhures, a propósito da lei do merecimento e da mãos de que devem empunhá-las. Mas o primeiro ignora os
Divina Providência, quem, na luta pela vida, defenderá ao ho- complexos jogos do dinamismo da vida, é desarmônico em fa-
mem que confiou sua defesa à Lei, às mãos de Deus. Não ce da Lei, por isso fica isolado, não pode apoiar-se senão na
acreditem vá esse homem, segundo muita gente pensa, deixar própria força. O segundo tem consciência dos inúmeros recur-
de ser vingado. Renunciando a fazer justiça pelas próprias sos e da energia que escapam à percepção do primeiro; seu po-
mãos, ele a confia a juiz muito mais poderoso; quem perdoa tencial nervoso é mais elevado e, por isso, mais poderoso e pe-
entrega o culpado à lei de Deus, que, invisível e paciente, é netrante, mais apto a vencer as resistências; dessa superiorida-
também inflexível e inviolável, muito mais temível do que as de nem faz ideia quem se acredita composto apenas de corpo, e
sanções humanas. Os resultados do jogo da força, embora efê- não também, e principalmente, de espírito. Mas, ao lado dessas
meros, iludem porque são imediatos. Esse jogo não se realiza a suas capacidades intrínsecas, existe o fato de que o evoluído se
longo prazo. Com o passar do tempo, o justo se revela o mais harmoniza com a Lei, não está, pois, sozinho, sem outro apoio
forte e é quem vence por último. Há, sem dúvida, conveniência senão o de suas pobres forças, mas tem atrás de si a Lei a sus-
momentânea na exploração imediata das posições de honesti- tentá-lo; não sendo rebelde, em vez de nadar contra a corrente
dade que conquistam confiança. Quanto mais a retidão de uma da vida, abandona-se nela inteiramente e tem à sua disposição
verdade ou de uma instituição houver conquistado a estima as forças da vida, que o ajudam e o impulsionam. Temos, as-
pública, tanto maior atração exerce sobre homens inescrupulo- sim, de um lado a astúcia, oblíqua, complicada, torva, enove-
sos que procuram apropriar-se dela em busca de vantagens lada e, por isso, de movimentos embaraçados; do outro lado, a
pessoais. Quem mais fama tem de honesto esse é o ladrão. Mas inocência retilínea, simples, cristalina e, portanto, ágil e rápida.
a posição é instável e não se mantém. Cedo ou tarde, tudo de- A astúcia e a inocência digladiam-se. De acordo com a lógica
saba. Para civilizar-se a sério, o homem do futuro terá apenas dos homens, o evoluído deveria perder. Não obstante, muitas
de fazer um pequeno esforço de inteligência, para compreender vezes vence. Na realidade dos fatos, verificamos que vence.
a vantagem utilitária de ser honesto, vantagem considerada Vemos que, na prática, a força e a astúcia, métodos do involuí-
apenas do ponto de vista egoísta (nem pretendemos mais do do, não oferecem garantia segura de vitória. Procuramos, neste
que isso); compreender que tudo quanto podemos obter em- livro, compreender a razão disto. Há nas armas do evoluído al-
pregando a astúcia ou a violência, não passa de adiantamento go que não admitimos, pois, exatamente por ser muito sutil,
que, mais tarde, devemos devolver, e pagando muito caro; nos escapa à primeira vista; e precisamente esse imponderável
compreender que pretender fraudar lei invisível e onipresente é as torna mais poderosas; existe nelas previsão, logicidade, or-
ilusão própria de ignorantes; compreender que o mais forte não ganicidade e sabedoria íntima, que não incidem nos erros gros-
é o prepotente, mas sim o mais justo, e que o caminho do su- seiros da força bruta, há também equilíbrio espontâneo, que
cesso verdadeiro, permanente e durável, não é o dos arrivis- não se perde nos artifícios nem se enreda nas malhas da astú-
mos, tão admirados e seguidos, mas o do próprio dever. Evolu- cia. Na espada imaterial do arcanjo, lampeja, todavia, desco-
indo, o homem atravessou, na arte de conquistar os bens ne- nhecido poder que lhe permite vencer a revolta bestial de Lúci-
cessários à vida, a fase representada pelo método da força e, fer. Em presença do homem do dever, do homem evangélico
em seguida, a fase do método da astúcia. Agora, se não quiser, da paciência e do perdão, o homem da força ri-se sem dúvida e
com grande desvantagem para si, continuar na situação de in- o considera débil e maluco. Mas, envaidecido de sua força,
voluído, deverá entrar na fase representada pelo método da ho- iludido com sua astúcia, não compreende a estratégia do outro,
nestidade. Sem essa premissa, todos os sistemas coletivos que estratégia muito mais completa e profunda. A força do evoluí-
buscam justiça social mais completa contêm apenas ilusão, do reside na compreensão. A ameaça que pesa sobre o involuí-
mentira e pretexto para injustiças cada vez maiores. Sem esse do consiste na sua incompreensão.
fundamental progresso individual, é inútil acreditar em qual- No capítulo “Tempestade”, descrevendo a dolorosa fuga de
quer tentativa de progresso coletivo. um homem, dissemos que na hora do abandono, quando a ri-
queza e o poder falharam, o homem não estava sozinho como
XXIV. NOSSO LIVRE DESTINO pensava, mas a seu lado estavam seu passado e suas obras, pois
nossas obras nos acompanham. Estas, uma vez acabadas, repre-
A humanidade compreende exatamente duas raças bem dis- sentam impulso fatal que testemunha, fala e age por nós. Somos
tintas: a dos evoluídos e a dos involuídos. Insistamos mais um nós mesmos que, depois de havermos estado na posição de cau-
pouco nesse conceito, que, aliás, já desenvolvemos neste livro. sa, reaparecemos agora na de efeito. Suas fases de desenvolvi-
Não vá o leitor surpreender-se com o que pode parecer-lhe re- mento no tempo entrosam-se perfeitamente, pois representam o
petição. Nestes casos, o pensamento retorna, mas diversamente desenvolvimento de uma força e de um movimento. Dentro da
orientado, enriquecido de novas considerações, associado a no- fatalidade dessa lei, é-nos concedida a liberdade de escolher, re-
vas ideias, visto sob perspectivas mais amplas. Muitas vezes, a tificar e até mesmo de corrigir a trajetória. Mas esta, uma vez
repetição é apenas aparente, e a volta ao mesmo conceito se de- estabilizada, arrasta-nos. O involuído não o compreendeu ainda
ve ao fato de que todos os fenômenos obedecem ao mesmo e acredita-se senhor de ilimitado arbítrio, com capacidade para,
princípio. Especialmente nestes últimos capítulos, o pensamen- a seu talante, fazer e desfazer os acontecimentos de sua vida.
to gravita em torno do mesmo centro (a Lei e seus equilíbrios), Míope, vive apenas do efêmero presente. A estratégia do evolu-
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 81
ído adere à realidade muito mais profunda das coisas, equilibra- haver completado o ciclo experimental. A liberdade é interior,
se com as forças da vida e, no passado e no futuro, abrange está no íntimo da personalidade, no reino das motivações, e daí
muito mais vastos períodos de tempo. Dessa estratégia mais a atividade se dirige para a periferia, expandindo-se no mundo
ampla participa a consciência pura, fator sem dúvida estranho à exterior da manifestação, que constitui o reino do determinis-
luta (se a tomarmos na acepção vulgar), em que a honestidade mo. Assim, vincular-se ao determinismo, ou extinguir-se nele,
não serve de ajuda, mas de estorvo. O mundo de hoje confunde corresponde às características dos dois mundos, interior e exte-
arbítrio com liberdade e, quando clama pela liberdade, intima- rior, que as forças motoras dos nossos atos percorrem, nascendo
mente deseja o arbítrio, o abuso, a licenciosidade; não compre- no primeiro, bem no íntimo da personalidade, e exaurindo-se no
ende que, exista ou não autoridade humana, estamos, isso sim, segundo, na periferia, no mundo exterior.
permanentemente enquadrados nas invisíveis leis da vida; não Com a constante germinação de novas ações, continuamente
sabe que a autoridade, o poder e a hierarquia dessas leis jamais nos aguarda liberdade intacta e permanentemente nova, porém,
diminuem. O mundo de hoje, infelizmente involuído ainda, não na fase de sua maturação, um fardo de fatalidade sempre nos
compreende como essa desordenada agitação chamada liberda- acompanha. Envolve-nos como a atmosfera, formando uma es-
de não atinja o objetivo previsto por quem a ela se entrega, isto pécie de casca dinâmica que nos aprisiona a personalidade. É a
é, libertar-se de encargos e sanções; não compreende como, nêmese da vida. Pode aniquilar-nos ou exaltar-nos, exatamente
através dessas sanções, a Lei cada vez mais fortemente o repele, como, ontem, queríamos que acontecesse hoje. Essas criaturas,
fazendo-o mais tarde sofrer tanto mais amargamente quanto tal como os filhos refletem as qualidades dos pais, testemu-
mais loucamente tentou rebelar-se. A história é essa. Quem nham o passado, querem viver, mostrar-se e agir tais quais são;
compreendeu as leis da vida sabe que a retidão constitui ele- e não podemos destruí-las nem fazê-las calar. Gritam e querem
mento fundamental do sucesso verdadeiro e duradouro e que a como as queremos. Podem afirmar: este é inocente, ou então:
desordem e o arbítrio podem conquistar-nos apenas escravidão este é culpado. Podem bendizer e maldizer, premiar ou exigir
e dor, porque, dada a estrutura de nosso universo, só uma liber- punição. Se foram acionadas pelo bem, tenderão a salvar-nos;
dade se torna possível: a liberdade segundo a Lei. A liberdade se foram acionadas pelo mal, não se deterão enquanto não hou-
em desacordo com a Lei é impossível. verem conseguido nossa desgraça. Isso acontece porque repre-
Observemo-lhe o mecanismo. As forças que no passado fo- sentam causa que exige o correspondente efeito, impulso dese-
ram postas em movimento por nossas ações, uma vez em jogo, joso de esgotar-se na direção em que o lançaram. Seja qual for
representam vontade autônoma, impulso que, por inércia, tende a sua natureza, boa ou má, tenderão sempre a seguir seu cami-
automaticamente a continuar movendo-se e a nos levar para a nho até o fim e apenas sossegarão quando houverem consumido
frente, segundo a direção inicial. Se, a princípio, movimenta- todo o impulso recebido. Na realidade, o bem e o mal existem
mos nossas obras, agora elas é que nos movimentam, arrastam- personificados nessas forças. As do mal nos perseguirão como
nos para onde ontem queríamos, e não para onde queremos ho- as Fúrias coléricas, gritando aos quatro ventos as nossas culpas,
je. O passado não morre, mas revive sempre no presente. As e, pedindo vingança, se atirarão contra nós, mordendo e dilace-
nossas obras nos acompanham por toda parte. Em face dessa rando. A tragédia humana está repleta de exemplos disso. Co-
estrutura orgânica da vida (relação de causa e efeito a longo mo poderemos defender-nos de inimigo que está dentro de nós
prazo), por força da qual o presente se preparou no passado e o mesmos? Impossível fugir-lhe, impossível fazê-lo calar-se. Não
futuro se prepara no presente, a filosofia do “carpe diem” é ma- há barreira de força ou de astúcia capaz de detê-lo. Eis que o
nifestação de inconsciência. A liberdade, que imaginamos sem- armadíssimo involuído agora está desarmado, o lutador não sa-
pre virgem e completa, assim o é apenas na fase inicial de nos- be mais lutar, o forte está intimamente minado e gasto; eis que,
sas ações. Não pode ela permanecer indefinidamente no terreno através das vias sutis do imponderável, o involuído é vencido
neutro da escolha, então fixa-se, condensando-se no determi- pelo fato. Amedrontado pelo impalpável inimigo que ele não
nismo representativo do encadeamento, por continuação, ao consegue entender, sofre e, examinando-se, procura entender.
impulso realizado, que, uma vez iniciado, constitui uma força Essas forças são inexoráveis, são o destino, representam a lei de
em nosso destino; dessa forma, a liberdade é ligada às conse- Deus, a inviolável justiça que tentamos violar e fatalmente põe
quências do impulso, cuja continuação já se torna impossível as coisas de novo em seu lugar. Os recursos humanos clamam
impedir, a não ser com novo impulso corretivo contrário. As- contra esses poderes silenciosos do fato, que aniquilam toda de-
sim, as obras que fizemos espontaneamente tornam-se vivas e, fesa, transpõem qualquer porta, seja do rico, seja do pobre, do
como se fossem animadas de vontade própria, são ativas e, na poderoso ou do humilde. Apenas uma coisa detêm esses pode-
qualidade de criaturas nossas, agem por nós. Nossa personali- res, uma coisa inofensiva como o dedo de uma criança, leve
dade é fenômeno contínuo, em que os momentos sucessivos de como a asa de um anjo, imponderável e suave como uma prece:
seu futuro se ligam estreitamente e cujas forças, por nós susci- a inocência. Ser inocente! Essa coisa tão pequena se ergue dian-
tadas, uma vez determinadas e colocadas em ação, não podem te do esmagador poder da força e o detém, porque isto é o que a
ser anuladas depois, enquanto não se desenvolverem e se esgo- Lei quer: que o honesto encontre defesa e a justiça triunfe.
tarem completamente. Essas forças constituem nossa força, tan- Se, ao contrário, em nosso passado não pusermos o mal,
to em qualidade como em quantidade; desse modo, o passado e mas o bem, as criaturas por nós geradas serão de natureza to-
o presente participam de nós. Representam a definição de nós talmente diversa. Com o passar do tempo, elas também cres-
mesmos, a coisa consumada, difícil de mudar, e vivem em nos- cerão, tornar-se-ão maduras para produzirem seu efeito no
so destino sob a forma de fato, mas não como realidade absolu- mundo exterior das manifestações causais e, em lugar de cer-
ta, pois, pelo contrário, é sempre susceptível de retoques e mo- car nossa vida de inimigos que vomitam dor sobre nós, esta-
dificações no incessante movimento da vida. No entanto vamos rão ao nosso lado, cariciando-nos, protegendo-nos, encorajan-
vivendo, e todo fato novo que nos acontece a cada dia, se já não do-nos, como bons amigos nossos. O involuído ignora que o
o vinculamos, é livre, mas vivendo-o, a ele nos ligamos por presente não se improvisa nem se constrói à custa apenas do
meio de nossas ações. Assim vivemos com a nossa liberdade presente, mas se compõe em grande parte do passado, e que a
vinculada a isto ou àquilo, enquanto o impulso não se esgotar e vida, no seio de organismo complexo e perfeito como o uni-
a trajetória não desaparecer. Mas o fio da vida, desenovelando- verso, não é louca aventura, mas desenvolvimento lógico e
se, sempre traz consigo nova liberdade virgem, que sucessiva- orgânico. Nada se tira do nada, mas todas as coisas vão e vol-
mente vamos vinculando e cristalizando no determinismo, até tam nas ondas do tempo, se ligam aos grandes ritmos da Lei,
que a abandonemos assim cristalizada no passado, depois de se entrosam em suas causas – de que, aliás, não podemos
82 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
prescindir – e não podem progredir senão por graus e por fa- mental do indivíduo é a tal ponto respeitada, sem lesar o princí-
ses: germe, desenvolvimento, manifestação, exaustão. No pio de responsabilidade, que ele pode sempre separar seu desti-
universo tudo se entrosa, e isso por força da lei de causalida- no do destino alheio, conservando completa autonomia de traje-
de, que a tudo liga no decorrer do tempo. Nada vem à luz do tória em meio do mais complexo entrelaçamento de forças, e
sol senão através de filiação, isto é, através dessa derivação atingir os objetivos que quiser, gozando da liberdade de perder-
causal, por força da qual tudo revive sempre, indestrutível nas se em meio à salvação geral ou de salvar-se em meio da perdi-
consequências em que necessariamente se continua. Como no ção universal. O resultado é garantido, quer o do bem, quer o
filho se desenvolve o pai, na árvore a semente e na ação o mo- do mal. O justo pode, portanto, avançar com seu binário, mes-
tivo, assim também, por entrosamento individual, toda causa mo se for colocado num mundo de demônios. Perante Deus, o
continua no seu efeito. Em seu movimento evolutivo através que vale é o seu passado, suas obras, seu merecimento. A Lei
do tempo, todo fenômeno oscila entre estes dois extremos de responde no mesmo tom em que a chamarmos e é rica a ponto
um dualismo que não se isola numa forma impenetrável (prin- de possuir qualquer tom. Ao justo torna-se possível, assim, ape-
cípio-fim), mas se articula continuamente, no termo final, com lar não mais para a força ou a astúcia, sistemas de luta por ele
novo termo inicial e assim se prolonga até o infinito. superados, mas para a justiça divina e dela receber a resposta
Portanto, se, por lei de causalidade, tudo é filho do passado, adequada, isolada em meio a vasto oceano de respostas diferen-
a vida nos aparece então como jogo amplo e complexo, de pro- tes, sendo-lhe possível receber tratamento de bondade e de sal-
longada preparação, no qual a vitória é determinada por dina- vação em meio de cataclismo universal. Assim, o evoluído po-
mismos acumulados que afloram de um depósito interior, reple- de caminhar de acordo com destino todo seu, independente do
to ou vazio, rico de provisões boas ou más, úteis ou venenosas, destino de seus semelhantes e, até mesmo, de sua própria hu-
o misterioso depósito da alma, que passa despercebido ao invo- manidade. Enquanto os demais, devido aos seus métodos de lu-
luído. As posições terrenas são aparentes e enganam. Assim, ta, destroem-se mutuamente, arrastados pelo turbilhão da força
quanto à substância, pode o pigmeu ser um gigante, e o gigante e ligados à própria destruição pelo ódio recíproco, o evoluído,
ser um pigmeu. Eis a força invisível de tantos inermes, a gran- isento das culpas do mundo, poderá seguir um destino todo seu,
deza recôndita de tantos humildes. A posição humana exterior é de alegria e de paz. As forças do imponderável terão formado
fictícia. A casa interior pode ser habitada por amigos ou inimi- em torno dele uma camada protetora, uma defesa salvadora,
gos, pelo bem ou pelo mal, por anjos ou demônios. Eis a arma que o tornará invulnerável, porque inocente, em meio dos mais
moral do evoluído: as boas obras, o cumprimento do dever. Isso graves perigos que arrastam os outros.
o isentará das sanções e o inocentará das culpas. Nosso passado Deixemos aos juristas o estudo das vias da justiça humana.
já está feito. Ele traçou a trajetória de nossa vida. Do mesmo Preferimos aqui nos ocupar do estudo da justiça divina, onde
modo que, após longa evolução biológica, foi construído nosso reside a gênese das adversidades que nos golpeiam. Que im-
atual tipo biológico tal como ele é, resistente a toda deformação porta o instrumento que no-las inflige, se ele mesmo muitas
rápida e a toda mudança, assim também, depois de longa cami- vezes lhes ignora as causas? O importante é possuir a chave do
nhada, formou-se e definiu-se nossa constituição moral, reser- mistério e resolver o problema de saber evitar o dano. O siste-
vatório de instintos alojados no subconsciente e radicados em ma da justiça divina é sumamente respeitador da liberdade in-
passado remoto. A forma é definida, mas não definitiva, pois o dividual, porém absolutamente inflexível no campo das res-
transformismo continua em processo, e nada pode jamais con- ponsabilidades. Contudo a liberdade inicial é inviolável. De
siderar-se imutável. Permanece sempre aberta a porta da expia- acordo com a Lei, a base do fenômeno social é o individualis-
ção e da correção, porque a liberdade, embora presa às conse- mo, sendo que o fenômeno coletivo representa, pelo contrário,
quências do passado, mantém-se inviolada e inviolável, sempre um agregado, um organismo de individualismos que, embora
capaz de dar novos impulsos ao destino e, através de novos es- se combinem tendo em vista destino global mais vasto, perma-
forços, corrigir-lhes, a seu bel-prazer, a trajetória. O futuro é necem separados e inconfundíveis. A necessidade de o indiví-
sempre livre, se lhe tiramos o peso do passado que nos inibe. duo assumir determinada atitude em relação à sociedade não
A característica principal desse mecanismo de forças con- lhe tolhe, de fato, a autonomia mais completa. Por essa razão
siste na possibilidade de isolarmos nosso destino do destino cada um de nós pode revelar-se e afirmar-se de acordo com a
alheio. Ao lado de cada um de nós falam e agem nossas pró- sua própria natureza. O rebanho tem plena liberdade de andar
prias obras, e não as obras alheias. Cada qual pode semear no cegamente à deriva, à mercê dos seus elementares impulsos
seu terreno o que quiser, e ninguém pode semear por nós. A animais, e o sábio pode, se quiser, estabelecer-se no deserto e
semeadura é livre, mas a colheita é obrigatória. Portanto livres, aí realizar sua vida independente. Trata-se de independência
mas responsáveis. Completa liberdade para semear o bem ou o interior, e nela as construções humanas exteriores exercem in-
mal; absoluta obrigatoriedade de colher o fruto da semente que fluência relativa. Desse modo, entre indivíduo e massa podem
se lançou ao solo. Por isso o sábio procura, em causas profun- abrir-se hiatos abissais, que não se preenchem, e a evolução
das e remotas, as raízes de sua situação atual e prepara, com pode impelir o solitário hiperevoluído e vidente para fora da
grande antecedência, o seu futuro. Não tem importância que os órbita dos destinos normais, ao ponto de fazê-lo transpor as
outros ignorem essas leis. Quem erra paga na mesma moeda e, fronteiras da raça humana e entrar no domínio de humanidades
pagando, aprende. Mas a maravilhosa justiça da lei divina con- evolutivamente superiores à nossa. Esse tipo de ascensão é
siste em cada um de nós permanecer livre e, seja qual for o am- biologicamente possível. Que faz então esse indivíduo? Tendo
biente em que viva, poder, à sua vontade, perder-se ou salvar- percorrido o ciclo das provas terrestres que os demais estão
se. A beleza de tudo isso consiste no fato de que essa liberdade apenas iniciando, já conquistou a sabedoria pela qual os outros
é sempre garantida e o indivíduo permanece independente, ainda vivem, lutam, sofrem. A Terra naturalmente não é mais
sempre absoluto senhor do próprio destino, para construí-lo a o seu reino. Acabado o seu trabalho de expiação ou missão e
seu modo, em qualquer tempo e lugar. Assim, num mundo em cumpridos todos os seus deveres para com os seus irmãos me-
que o ignorante involuído, através de seus sistemas, impera e nores, nada mais lhe resta senão partir. A Terra não lhe inte-
triunfa, ninguém pode impedir ao evoluído, que não é ignoran- ressa mais, porém aos outros interessa. Na Terra, ele se sente
te, de escolher seu caminho, segui-lo e colher frutos copiosos. estrangeiro e o é mesmo, sendo tratado como tal. A vida hu-
Conforme a ação praticada, assim a Lei dá a cada um a resposta mana, para ele agora inaceitável, expulsa-o de seu seio.
adequada e funciona ao mesmo tempo, mas de modo diferente, Já noutros trabalhos insistimos e jamais cansaremos de in-
em planos e formas diversos. Desse modo, a liberdade funda- sistir nos deveres do irmão mais velho para com os irmãos
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 83
mais novos; a toda superioridade são inerentes pesadas obriga- isso, não podem mudá-los. Nem a vida nem a ascensão podem
ções, fadigas que não assoberbam os inferiores, deveres que se ser detidas. Poder-se-á rechaçá-lo e até mesmo matá-lo, porém
cifram em obras, renúncia e exemplo. Tarefas pesadas pesam não se poderá destruí-lo. Nenhuma força pode mudar-lhe a na-
na vida do evoluído; ele o sabe e afronta o sacrifício. Por força tureza nem impedi-lo de continuar sendo o melhor. Em deter-
da lei de fraternidade, é permitido que o involuído usufrua dele minado ponto, as amarras do mundo, dolorosas amarras, se
gratuitamente, desfrutando de graça o sacrifício do mártir, que rompem. Ele não tem mais o que dizer, dar ou fazer. O céu o
ele mesmo, muitas vezes, é o primeiro a agredir e a sacrificar. espera. Embora devesse servir e sofrer preso ao mundo, ele há
Isso não deixa de ser justo. Essa lei de fraternidade participa da muito tempo, pelo peso específico, se distinguia da massa, in-
estrutura do universo, como consequência de sua organicidade capaz de compactuar com a maioria e de integrar-se no reba-
e hierarquia na unidade do todo. É, pois, fundamental e inex- nho. Finalmente, tudo chega ao fim, toda obrigação se esgota, o
tinguível. Mas a própria lei de justiça limita essa doação fra- sacrifício se consuma: “consumatum est”. Com essa apoteose
terna, que ameaça transformar-se na destruição das mais im- no terreno do super-humano, fecharemos este livro.
portantes conquistas da vida, representadas pelo tipo biológico Ao lado de seu modo especial de conceber a vida, exata-
do evoluído. A natureza protege os seus valores, e este, mais mente a dor constitui uma das notas características do evoluído.
do que todos, deve ser protegido, por ser o mais custoso e pre- Por que razão o super-homem é condenado a sofrer mais do que
cioso. As vias do evoluído são diferentes das vias da maioria, a o homem comum? Exatamente por motivos inerentes à sua po-
trajetória de seu destino projeta-se francamente para fora da sição. Se as verificações precedentes tendem a reafirmar os di-
órbita das experiências terrestres normais, as distâncias se reitos do individualismo em face da moderna tendência coleti-
acentuam, as formas mentais não se compreendem mais. O vista, que tenta reabsorvê-lo, devemos reconhecer o esforço e a
evoluído torna-se um bólido que, lançado no espaço, emigra fadiga que isso representa. Os coletivismos oferecem à preguiça
do plano humano. O evoluído iniciou espontaneamente essa do homem normal a comodidade de confundir-se e esconder-se
ascensão, que agora o envolve e arrasta. A estrutura desse jogo nas massas, de deixar-se guiar e arrastar pelos líderes, de en-
de forças o leva agora ao ponto crítico, que consiste nessa cé- contrar proteção no número; tudo isso constitui o instinto su-
lula já madura destacar-se da massa imatura da humanidade. premo e a defesa da nulidade. Nada nos causa mais piedade do
Considerados a constituição e o funcionamento desse dina- que ver essas almas pensando em série, vivendo de imitação;
mismo, em dado momento ninguém pode impedir a inexorá- essas consciências nutrindo-se de produtos já confeccionados e
vel, fatal, separação dos destinos e dos trabalhos. Então, tendo anulando-se no número. Kant dizia: “É apenas máscara de ho-
cumprido a tarefa, o evoluído vira as costas para o mundo e vai mem pensando com o sistema alheio”. A sociedade constitui-se
embora, abandonando-o às suas próprias forças, para que ele, à em grande parte de máscaras, isto é, de rostos fictícios; por de-
custa do próprio esforço, como é justo, e não do alheio, conti- trás deles não existe personalidade alguma. Os coletivismos
nue o caminho da própria evolução. O individualismo, que protegem e encorajam essa nulidade. Podem tornar-se até mes-
constitui o substrato da organização social e a dirige, recobra a mo via de acesso para a irresponsabilidade. E o indivíduo, con-
supremacia. A justiça divina exige e impõe a reafirmação dos fortavelmente, abandona parte da liberdade, com o fito de exi-
direitos do solitário, incompreendido e espezinhado. Então, o mir-se à correspondente porção de responsabilidade. Chega-se,
material biológico elaborado e complexo se destaca do materi- desse modo, à exploração do progresso, ao parasitismo indivi-
al primitivo e rústico. Tendo-se tornado diferente nos instintos dual do coletivismo, em que o indivíduo inepto se enquadra de
e na raça, deseja ardentemente reencontrar indivíduos de seu bom grado, a fim de abandonar-se à indolência. No entanto, de
tipo, inencontráveis na Terra; suspira por mais elevadas e ade- quanta liberdade goza o indivíduo individualista! Por outro la-
quadas formas de vida. Deixa de lado todas as questões do do, quantas iniciativas e responsabilidade não lhe pesam nos
mundo; não o interessam mais. Não se incomoda mais com os ombros! Essa posição oposta constitui o antídoto apto a aniqui-
tipos de problemas das pessoas que o habitam, não lhe dizem lar os parasitas de todo sistema, sempre prontos a tirar proveito
mais respeito. Os problemas mais torturantes, pelos quais a dele, escondendo-se em seus ângulos mortos. O individualismo,
humanidade tanto sofre e luta, os sistemas sociais, econômicos, pelo contrário, ressalta, expõe às vistas, porque isola e, isolan-
políticos, não mais lhe atingem em seu frágil invólucro corpó- do, define os responsáveis, quer dizer, os conscientes. Se, de
reo, prestes a ser por ele abandonado. Então, se ainda quiser- um lado, o enquadramento orgânico das massas consegue edu-
mos seguir o indivíduo selecionado nessas ascensões biológi- cá-las, oferece também o perigo de transformá-las em rebanhos
cas, absolutamente excepcionais, fora-de-série e extramassa, de indivíduos mantidos pelo Estado, de escravos que obedecem
deveremos virar as costas para o mundo e aventurar-nos em ter- para poder viver como vagabundos; oferece, outrossim, o peri-
reno que o leitor comum achará irreal e desinteressante, em ter- go de suprimir ou abrandar a luta mestra da vida. No momento,
reno que penetra no imponderável e no inconcebível. Chega-se, o super-homem é o indivíduo menos enquadrado e mais isola-
desse modo, fora da órbita humana, a uma atmosfera rarefeita, do que pode existir e, por isso, o mais exposto, embora seja o
de natureza diferente, em que se tornam atuais as atitudes remo- mais livre e o mais consciente. Sua vida é tipicamente antipa-
tas. Tudo quanto nos preocupou até agora permanece lá embai- rasitária completamente descoberta, bem afastada de agrupa-
xo, nos pântanos da Terra. À força de lutar, sofrer e ascender, o mentos protetores, de concessões cômodas e de cambalachos.
evoluído penetrou em nova forma de vida, que aos olhos dos É a vida mais nobre e gloriosa, mais seletiva e criadora, mas
demais surge como remoto e inatingível sonho. Para que pudés- também a que mais fatiga. Sua vida significa alta tensão levada
semos continuar, depois de esgotado o exame dos problemas ao espasmo, bem-estar material sacrificado à ideia; significa
terrestres, precisaríamos levar o leitor muito além do que lhe é aborrecimento, luta, paixão, intensíssimo trabalho de constru-
possível conceber em relação aos problemas do céu. ção biológica. Não lhe é lícito abastardar-se no rebanho. Tudo
O evoluído está sozinho. Gênio, herói ou santo, o super- isso, se enriquece a vida, também a torna difícil e dolorosa. O
homem, por mais humilde e humilhado que seja, tem consciên- evoluído não pode furtar-se ao trabalho, vivendo de imitação,
cia de sua verdadeira natureza de indivíduo maduro e do natural nem resolver os problemas sem esforço, sem pensamento, sem
desequilíbrio que o leva a destacar-se da Terra. Os inferiores risco e sem iniciativa, à custa de atos coletivos em série, aban-
ignaros gostariam de rebaixar-lhe o nível até eles, por força dos donando-se à direção alheia, deixando-se ir à deriva. Não faz
mal compreendidos princípios de igualdade. Poder-se-á humi- parte do número, e o número protege.
lhá-lo, porém jamais fazê-lo retroceder. As classificações e os Consideremos agora outro fato. Seu utilitarismo é a longo
enquadramentos humanos não criam valores intrínsecos e, por prazo, enquanto o involuído, pelo contrário, quer compensações
84 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
próximas, imediatas. Por exemplo, observemo-lo em relação ao va-nos o poder espiritual. A dor pode piorar os maus, mas, sem
problema da autoridade, já tratado alhures. O evoluído, orien- dúvida, melhora os bons. Em algumas vidas, a dor é episódica,
tando sua atividade segundo o plano orgânico do universo, con- fenômeno incidental. Trata-se de primitivos. Noutras, a dor
cebe a autoridade como dever e como missão. O involuído, apresenta-se como plano fundamental que lhes dá sentido e va-
inorgânico, rebelde e egoísta, concebe-a tão-somente como lor, é estável, é fenômeno em profundidade. Trata-se, então, de
prêmio concedido ao mais forte, ao vencedor na luta pela vida. indivíduos maduros. A alegria constitui a experimentação dos
Parece-lhe natural o desfrutamento de toda posição de coman- inexperientes na vida, primeira experimentação elementar e
do, como também natural lhe parece o esmagamento do venci- juvenil. É ingênua, cheia de simplicidade, espontânea. Quando,
do. Na luta pela vida no plano do involuído, a autoridade cons- porém, a taça da alegria está cheia até às bordas, agora a lei de
titui atributo do vencedor, como a submissão é atributo do ven- evolução nos proporciona experimentação bem mais profunda,
cido. Ainda desconhece o conceito de justiça. Para ele, o de- a fim de nos fazer descobrir verdades mais recônditas e remo-
pendente é inferior, escravo que deve ser calcado aos pés e ex- tas, que ainda não podem ser reveladas aos primitivos. Quando
plorado, sendo absurdo considerá-lo irmanado no mesmo orga- o destino do evoluído se destaca da Terra e dos destinos dos
nismo, como indivíduo que, por isso, deve receber educação e demais homens, então a dor aparece como experiência dos
auxílio. Assim é que, através de compensação de equilíbrios, a maduros, dos fortes e dos justos, amadurecida, complexa e
autoridade raramente se apoia no amor de pai, mas se regula profunda, como verdadeiro campo de ação do evoluído. A ale-
pelo temor, e o dependente a tem, por isso, como inimiga natu- gria é atmosfera natural dos que há pouco começaram a viver,
ral. De fato, autoridade e subordinado, governo e súdito, são dos recém-chegados de graus inferiores de evolução. A dor é,
duas forças contrárias e complementares que reciprocamente se por sua vez, o ambiente normal dos velhos que exauriram toda
influenciam, se educam, se plasmam. Sem direitos, como o as experiências desta terra e, por isso, partem para mundos me-
consideram, ao vencido não lhe resta senão sofrer e esperar a lhores. Aqueles são inexpertos; estes são sábios, que aprendem
ocasião propícia para rebelar-se, rechaçar a autoridade e pôr-se a lição e terminam o aprendizado. As posições se invertem: pa-
em seu lugar, não para cumprir-lhe as obrigações, mas apenas ra aqueles, significa sujeição; para estes, desprendimento.
desfrutar-lhe as vantagens. E assim por diante, cada um por sua Quem parte e quem chega, quem deve viver nesta fase e quem
vez. O evoluído não pensa desse modo. À sua psicologia tanto já viveu nela, o involuído e o evoluído, dois estilos de vida.
esses métodos como o desfrutamento dessas posições repugnam Cada qual tem sua tarefa a cumprir.
extremamente. Seu utilitarismo é bem mais amplo e consciente; Estamos agora em condições de compreender que a diferen-
paira sobre esses efêmeros resultados, imediatos mas imorais. ça de raça entre involuído e evoluído não passa, em última aná-
Para ele, todo encargo social não constitui afirmação e amplia- lise, de diferença de idade. E também se nos torna fácil com-
ção do eu, mas função e serviço. Manzoni demonstrou havê-lo preender a razão de o involuído preferir o método de luta e o
entendido muito bem quando escreveu: “Não é justa a autorida- evoluído inclinar-se para o da justiça. O método da força revela
de de um homem sobre os demais, senão quando se exercita no o primitivo, que, se a ele recorre, é porque é exuberante e inex-
interesse deles”. Quando o evoluído respeita a autoridade sem perto, ou melhor, rico de energia e pobre de sabedoria. O evolu-
considerar-lhe o mérito, é porque a abrange em sua concepção ído, por sua vez, já chegou ao fim da estrada que o primitivo
de autoridade, embora ela não corresponda à realidade dos fatos mal começa a percorrer. Já está cansado, gasto; esgotou sua
e isso signifique, da parte dele, apreciação moral superior a que carga dinâmica, agora transformada em experiência. Pobre de
essa autoridade merece. O evoluído não julga, respeita; não dis- energia, rico de sabedoria. Permanece conscientemente sintoni-
cute, obedece. Em face de autoridade exercida com espírito in- zado com os princípios da Lei. Noutros termos, no físio-
voluído, o máximo que o evoluído faz é manter-se em respeito- dínamo-psiquismo, isto é, na evolução trifásica do universo, o
so absenteísmo, pois a isso o constrangem. Ao contrário, o in- involuído representa a fase dinâmica, e o evoluído a fase psí-
voluído subestima a autoridade, discute-a, julga-a, tenta conde- quica ou espiritual. A vida da humanidade percorre o trajeto
ná-la e, ao primeiro sinal de fraqueza, agride-a, a fim de apos- necessário à passagem de uma posição à outra, quer dizer, à
sar-se de suas vantagens. Estamos bem longe ainda do plano transformação da força em consciência. O evoluído já transpôs
superior de estima e fé, de compreensão e justiça, do plano em a passagem. O involuído ainda não, pois não sabe pensar senão
que os dois termos (autoridade e súdito) não se encontram na agindo, não concebe a ideia senão como fato, isto é, formal-
posição de rivais, mas na de colaboradores. Essa atitude de obe- mente concreta. Trata-se de elaborar matéria prima rude, forne-
diência e respeito (aí onde seria necessário, isso sim, defender-se cida pela força, que possui a carga dinâmica necessária para le-
por causa da existência palpável de agressão e defesa) constitui var a efeito a experimentação, em que essas forças paulatina-
no plano social um dos gravames da vida do evoluído. O poder mente se esgotam. O evoluído, por sua vez, apresenta-se com
humano possui recursos; o evoluído não. Todos aspiram ao co- material já elaborado; quanto a ele, esse impulso já atingiu o
mando; o evoluído obedece. Os outros se julgam cheios de direi- objetivo desejado, superando a sua fase de transformismo. Na-
tos; o evoluído só tem obrigações. Os demais homens trabalham da se perde, nada se destrói. Os jovens valem tanto como os ve-
em grandes grupos, compensando-se com riquezas e honrarias, o lhos, e os velhos tanto como os jovens. Trata-se apenas de posi-
evoluído trabalha em silêncio ignorado e pobre. Num mundo as- ções diferentes, com valores e qualidades diversos. A quantida-
sim, o evoluído não pode ser senão mártir. de transformou-se em qualidade; a obtusa e rude exuberância
Na sua vida, porém, há bem mais profunda e substancial tornou-se sabedoria consciente e refinada. Se o dinamismo bio-
causa de sofrimento que não esses desacordos de relações e es- lógico se degrada e esgota, vai mais tarde ressurgir, sob forma
sas incompreensões. E essa causa também é inerente à sua po- diversa, como poder espiritual. Apesar da equivalência substan-
sição. Pelo menos neste mundo, a dor constitui, sem dúvida, a cial, os dois extremos são diferentes e não conseguem harmoni-
nota fundamental da gênese. No pomar da vida, os frutos mais zar-se. Cada um dos dois condena aquilo que não possui, exalta
nutrientes ficam ao lado da sombra, mas entendamos: sombra aquilo que possui, dá valor a tudo de que necessita e despreza
segundo a matéria, luz segundo o espírito. A alegria não ali- tudo quanto não lhe serve. O sábio percorreu o ciclo, pois é
menta; a dor, sim. Só ela corta, escava, plasma e torna maduro, exatamente para isso que a força existe, serve e lhe foi dada. O
transforma e renova. Em resumo: revela e cria. A alegria dura sábio elaborou dentro de si um sucedâneo que, para quem como
muito pouco, nos rouba as energias e nos deixa completamente ele está desse modo transformado, a substitui com vantagem.
vazios e adormentados. A alegria é dissipadora; a dor nos leva Para o primitivo, forte mas ignorante, reservam-se os duros
de novo às fontes vitais, nos concentra e refaz as energias, ele- golpes consequentes aos erros praticados durante a experimen-
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 85
tação, golpes não mais temidos pelo sábio, porque já aprendeu em abstrações filosóficas, e sim tornar a vida mais clara. Por
a evitar a prática desses erros. Que imenso dispêndio de energia essa razão, aos raciocínios complicados, preferimos simples-
para assimilar apenas algumas ideias! Isso nos mostra a impor- mente a linguagem do bom senso e dos fatos; aliás, Newman
tância e o poder da ideia. Não tivemos, para conquistá-la, de convenceu-nos de que “a conclusão de um silogismo, sozinha,
empregar e consumir tanto dinamismo, de que a ideia é o equi- jamais convenceu alguém; jamais!”.
valente? Isso nos demonstra a necessidade da compreensão so- Até agora, estivemos desenvolvendo argumentos que, de
bre que tanto insistimos. No plano do universo, portanto, a força preferência, se relacionam com a Terra e a vida coletiva (ou de
reduz-se a instrumento de experimentações, a reserva de energi- relação) no nível biológico dominante, ou seja, no plano do in-
as de cujo consumo depende a compreensão, isto é, a construção voluído. São, portanto, argumentos referentes a tentativas, a lu-
da consciência. De um lado, a força dos jovens; doutro, a expe- tas, a incertezas, em que se entremeiam o incessante e penoso
riência dos velhos. No organismo universal, cada coisa tem fun- trabalho de construir e de promover a demolição que possibilite
ção bem determinada e está no lugar exato. Os jovens valem pe- reconstruir, na cansativa tarefa de plasmar mil e uma vezes a
la posição que ocupam, e os velhos também. A vida obriga-os a matéria, a fim de, através de experimentos sucessivos, chegar à
trabalho alternado, que mutuamente se compense; durante o pe- compreensão. Estamos em pleno reino da força e da ignorância
ríodo em que suas qualidades encontram campo para manifestar- humana, dos violentos desequilíbrios da injustiça, no reino da
se, eles trabalham ativamente de modo a imprimir um cunho es- traição e da mentira. O evoluído penetrou no espírito da Lei,
pecial à história e a impulsionar de algum modo o progresso. aderiu a ele, repousa na paz de seus equilíbrios e na suave mu-
Todo ser pode sempre dar algo de útil. E o jovem audaz e bata- sicalidade de seu ordenamento; volta-se para trás horrorizado e
lhador, mas inexperto e inconsciente, vive para tornar-se o velho apenas suporta tal mundo porque a isso é obrigado, mas deseja
cansado e pacífico, mas sábio, às vezes por ele desprezado. ardentemente fugir. Procuremos acompanhar-lhe a fuga para
Dá-se com a força e a sabedoria o que se dá com a alegria e outros mundos, para outras realidades superiores que, embora
a dor. Estão ligadas estreitamente. A alegria juvenil, que nos para o mundo se afigurem sonhos, tão longe estão de nossa vi-
vem de sermos fortes, leva-nos, através da ilusão da vitória, à da, no entanto a iluminam, mostrando-nos a ordem perfeita rei-
realidade dolorosa de que nasce a sabedoria. Para o involuído, nante aqui embaixo também, porém não na superfície, onde, em
espontaneamente desejoso de alegria e senhor natural da Terra, caótica desordem, tudo nos parece fora do lugar exato. Ao lado
que é o seu mundo, a dor terrena é sufocação, asfixia, mutilação da vida exterior que tantos vivem, existe outra, interior, mas
da vida material, que constitui para ele todo o bem desejável. E, igualmente real e poderosa. Se a primeira se mostra mesquinha,
para o evoluído, que já se considera um desterrado na Terra, es- podemos, ajudados pela segunda, torná-la intimamente grande.
sa dor constitui a última experiência amarga num mundo supe- Embora não possamos mudar as condições de nossa existência,
rado, experiência que lhe abre as portas para a expansão da vida nossa conduta será capaz de enobrecê-la e nos possibilitará,
em outros mundos mais adiantados, únicos em que doravante com nossa flama interior, tornar luminoso até mesmo o ato
lhe é possível viver. Essa dor representa o meio de romper gri- mais simples e comum. O maravilhoso e o sublime podem a
lhões já por demais pesados e preparar futuro melhor. No céu, o cada passo nascer dentro de nós, nas circunstâncias mais hu-
evoluído encontra a alegria que o involuído procura e encontra mildes. A própria vida de Cristo entreteceu-se exteriormente de
na Terra. A festa da vida está sempre no amanhã, nesse futuro pequenos episódios, comuns e vazios de sentido, se considera-
melhor que, pelo menos relativamente, está na posição por nós dos em si mesmos, e determinados pela miséria espiritual de
ocupada. A dor, que o involuído amaldiçoa e teme, é amada e todos quantos o circundavam. E, todavia, sua vida continuou
abençoada pelo evoluído. O involuído tem a dor na conta de sendo sublime. Nossa vida é exatamente igual ao que somos. O
destrutiva; o evoluído a considera construtiva. Tudo depende do ambiente e as circunstâncias influem apenas na vida dos débeis,
sujeito. O sábio, que viveu e, portanto, sabe, não incide mais nas que não as dominam e, além disso, se deixam dominar por elas.
ilusões humanas e recebe a dor, utilizando-a na função criadora; Daí, em face da miséria espiritual, tantas coisas mais importan-
ri-se dos primitivos e de suas alegrias, que não lhes deixam na tes na vida passam despercebidas. Aí onde os indivíduos madu-
consciência senão saciedade, cinzas do cansaço e náusea. ros veem e fremem de entusiasmo, os outros passam desperce-
Eis aí várias causas da dor do evoluído. Se, muitas vezes, bidos de tudo, correndo no encalço de futilidades. Apenas
sua vida é trágica, a dor a transforma em altar de oferendas quando possuímos grande alma e nos anima grande paixão, nos
em que se consuma o holocausto supremo. E, enquanto os colocamos no mesmo nível dos grandes acontecimentos da vi-
primitivos se debatem entre a morte e a dor, o evoluído repre- da; aí, compreendemo-lhe o valor, respondemos às vozes su-
senta ardente chama de sacrifício a Deus. No incêndio, ele se blimes que vêm das profundezas do universo ilimitado, onde
consome feliz, pois sabe que, depois desta vida, vida muito cada qual vê e apreende conforme a própria acuidade visual.
mais sublime o espera. Assim, as verdades correspondem às vistas, às capacidades, à
evolução, e variam desde as mais grosseiras e materiais até às
XXV. O DUALISMO FENOMÊNICO UNIVERSAL mais refinadas e espirituais. Onde um sussurra e chora porque
percebe a mão de Deus, aí mesmo outro sorri e despreza, por-
No capítulo anterior resolvemos o debatidíssimo e contro- que não percebe e não compreende coisa alguma. Todos se aba-
vertido conflito entre determinismo e livre-arbítrio, descendo às lançam a julgar; quem, no entanto, acredita estar julgando as
raízes de problema filosófico e prático, do qual em A Grande coisas, acusa e julga a si mesmo. O caos de opiniões é ordena-
Síntese apenas pudemos tratar por alto. Agora descemos às par- mento, equilíbrio, desordem que se harmoniza de novo num
ticularidades, cuidamos dos pormenores, entregamo-nos à ex- plano mais elevado, onde encontra possibilidade de acordo. Há
posição completa desse problema, impossível de fazer naquele quem ouça e há os surdos também. Todos nós apenas podemos
livro, destinado principalmente, como dissemos, a dar o rumo viver em nosso nível, de acordo com o que somos. A alma, a
geral e o quadro orgânico de nossa problemática. O leitor ali vida interior, é que dá ao homem a medida das coisas. O eu as-
poderá encontrar-lhe apenas a exposição sistemática. Vamos, semelha-se a um vaso que não pode conter nada além de sua
mas sempre de acordo com o esquema de A Grande Síntese, de- capacidade. Fiquemos tranquilos. O sublime não contagia. Os
ter-nos no exame de alguns pontos mais controvertidos, enri- grandes pensamentos, as grandes paixões, as grandes ações
quecendo-os cada vez mais e aproximando-os da realidade da permanecem solitários. O mundo está sempre pronto a compre-
nossa vida. Desenvolvemo-los e aprofundamo-los, mas também ender e aplaudir o que se encontra no seu nível. O melhor não
lhes damos aplicação prática, pois não objetivamos perder-nos pode afirmar-se senão lentamente e à custa de martírio, que não
86 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
chega a interessar o mundo. Diz Schuré em Sonho de Minha sar qual ritmo caracteriza e distingue as duas formas de vida. O
Vida: “É mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agu- mundo exterior, da matéria, da vida física e sensória, podería-
lha do que uma ideia nova penetrar no cérebro dos homens”. E mos imaginá-lo caracterizado por ondas longas; e o mundo in-
Máximo Gorki acrescenta: “Quem nasceu para andar de rastros terior, do espírito, da vida psíquica e intuitiva, caracterizado por
não pode conhecer a alegria do voo”. Pior ainda nos faria pen- ondas curtas. Essas duas ondas existem nos fatos, sem dúvida;
sar em face dos heroicos pregoeiros da verdade, o rifão popular: mas é lógica a existência de onda típica individual, distintiva da
“Vulgus vult decipi, ergo decipiatur”. personalidade, reveladora das notas fundamentais do caráter.
Em geral, o mundo interior fica entregue aos poetas, artis- Mais tarde, esses ritmos pessoais se entrosam e se fundem em
tas, místicos, isto é, à classe considerada mais ou menos inútil outros ritmos mais amplos: familiares, nacionais, mundiais etc.
pelos homens práticos. Desse mundo, no entanto, emana a Neles, a observação nos revela correspondências e oposições.
força propulsora do progresso, a única luz que nos ilumina e Nos países meridionais, por exemplo, ricos de calor e luz solar,
atenua a miséria da vida quotidiana, embora materialmente as forças vitais preferem revelar-se exteriormente, através de
muito rica. O evoluído foge para esse mundo mais adiantado e manifestações sensórias. Essa espécie de expansão forma tipo
aí se reencontra. Mundo espiritual, onde existe a única liber- humano fisicamente exuberante, expansivo, de inteligência vi-
dade que não se chama abuso e torna-se possível distender-se vaz e realista. Há, sem dúvida, entre raça e ambiente certa rela-
a tensão das férreas necessidades da vida material. Nesta, o ção de ritmo, que, neste caso, poder-se-ia chamar ritmo de on-
elemento moral é menosprezado e apenas palidamente aparece das longas. Nos países nórdicos, onde, pelo contrário, domina o
nos últimos planos; nesse novo mundo, ao contrário, guinda- frio e a umidade e a luminosidade são menores, as forças vitais
se aos primeiros planos, como fator fundamental. Trata-se de se expandem, de preferência, intimamente, sob formas reflexas.
dois mundos inversos e complementares, em que nossa exis- Isso determina a preponderância de tipo humano de inteligência
tência se divide e se completa, de acordo com a grande lei de dobrada sobre si mesma, introspectiva, menos viva, profunda,
dualidade. Até agora, os contrapusemos como duas posições nebulosa. Mesmo o desenvolvimento físico é mais lento. Esse
antagônicas, que mutuamente se excluem na conquista do diferente ritmo vital poderíamos chamá-lo ritmo de ondas cur-
campo da vida. Mais atento exame desses mundos em relação tas. É claro que, com o passar do tempo, os ritmos entre ambi-
a essa lei nos permitirá, até mesmo nesse dualismo, reencon- ente e indivíduos acabam por sintonizar-se, por viver simbioti-
trar a unidade, considerando os dois termos opostos como se camente; a coexistência (diríamos, mesmo, a coabitação) entro-
fossem os dois aspectos do mesmo princípio. Veremos tratar- sa-os e harmoniza-os; a personalidade absorve e incorpora, fa-
se de existência dúplice, de duas formas de vida, entre as zendo-o seu, o tipo de vibração dominante, conserva-o e, de-
quais o ser oscila em seu caminho evolutivo, de acordo com pois, torna a irradiá-lo, como se ela mesma o tivesse produzido.
as possibilidades da fase alcançada. O exame confirmará a lei, A vida é sensível e tudo registra, assimila, devolve. Assim, as
revelando-nos dela aspectos novos. manifestações raciais são típicas e diferentes, de Verdi a Wag-
Devemos reportar-nos ao Cap. XXXIX de A Grande Sínte- ner, do catolicismo ao protestantismo, de Dante a Goethe. O
se, “Principio de trindade e de dualidade”, cujo conhecimento ambiente concorre para dar seu tom característico à psique co-
presumimos. Aí, o leitor encontrará o mesmo problema agora letiva e aos líderes que a representam, de modo que as próprias
exposto, mas intimamente relacionado com a cosmogonia uni- atividades e funções se plasmam de maneira diferente. Mas, em
versal. Ao invés, destas páginas poderão derivar algumas apli- toda parte, mesmo nos campos mais disparatados, esse dualis-
cações e desenvolvimentos particulares, como, por exemplo, mo perdura. O pensamento da própria Igreja equilibrou-se entre
essas duas vidas, exterior e interior, de que estamos falando a tese e a antítese, entre Pedro e Paulo, isto é, entre a corrente
agora. Na ordem universal, todo fenômeno se apresenta como judaico-cristã de tipo particularista e a corrente greco-cristã de
campo de forças fechado, fato que lhe caracteriza a individua- tipo universalista, como se equilibrou, mais tarde, entre Agosti-
lidade e lhe limita a ação. O eu fenomênico está encerrado em nho e Tomás, quer dizer, entre a corrente platônico-intuitiva e a
seu ritmo interior, equilibrado em duplo e inverso movimento corrente aristotélico-racional. O próprio mundo está dividido e,
respiratório, em oscilação que constitui a base da íntima elabo- no entanto, unido entre os seus dois extremos, ou seja, entre a
ração chamada evolução. Essa bipolaridade é universal. Toda civilização ocidental, materialista, e a civilização oriental, pre-
unidade se nos apresenta como formada de duas partes iguais ponderantemente espiritualista. Toda unidade factual se deve ao
em que, contradizendo-se, ela se inverte e se compensa, mas equilíbrio de duas metades opostas e contrastantes. Por isso não
também encontra sua estrutura simétrica e equilibrada. Esse se pode falar que, dos dois elementos postos em presença um
vaivém de forças antitéticas em campo fechado, essa corres- do outro, este seja superior ou inferior àquele, e ao contrário.
pondência de antíteses e simetria, de inversão e complementa- Como já dissemos, relativamente a jovens e a velhos, um tipo
riedade, esse íntimo ritmo dualístico compõe a fisionomia que vale tanto quanto o outro. O dinamismo, que é o mesmo em úl-
o pensamento e a vontade da Lei imprimiram às individuações tima análise, assume formas diversas, mas substancialmente
fenomênicas, quer dizer, significam estrutura orgânica e funci- equivalentes. Enquanto num caso (ondas longas) se desenvolve
onal. É do que vamos tratar profundamente agora. O princípio como quantidade, noutro (ondas curtas) se desenvolve como
de ordem, fundamental na Lei, transforma o universo, desde o qualidade, isto é, encontra-se sob a forma de potencial ou pres-
fenômeno máximo ao fenômeno mínimo, em sistema equili- são. Já nos referimos neste volume (Cap. IX – “Das Trevas à
brado, orientado, ritmado e periódico. Faz-nos, por isso, com- Luz”) à relação dos efeitos dinâmicos entre amperagem e vol-
preender e sentir a criação como fato fundamentalmente har- tagem no campo da eletricidade, e entre volume e pressão na
mônico, rítmico, musical. mecânica dos líquidos. Reencontramos a inversão dos dois ex-
Embora tenhamos posto frente a frente as duas vidas, a ex- tremos no dualismo entre outras posições, como, por exemplo,
terior e a interior, a da matéria e a do espírito, a vida é una e os- luz e sombra, dia e noite, primavera e outono, equador e polos,
cila entre estes seus dois extremos inversos e complementares. verdade e erro etc., pois não existe ser algum que não contenha
Trata-se de duas formas comunicantes, de bipolaridade da vida. essa oposição de ritmos contrários.
É perfeitamente possível e verifica-se continuamente a passa- Continuando a observar, verificamos correspondências ain-
gem do mundo da matéria ao do espírito e ao contrário, que se da mais remotas e relações novas. O tipo espiritual, de expan-
completam através de funções compensadoras, atraindo-se por são interior, aparece-nos também como de sintonização notur-
força da lei de simpatia estabelecida entre os contrários. O con- na (cf. o volume As Noúres), azul, lunar, hipersensual e super-
ceito da musicalidade existente na ordem universal nos faz pen- sensória, inimigo da ação, da matéria, da vida física animal.
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 87
Esse tipo é esquivo, solitário, silencioso, sofredor, sensitivo, dade e decadência, não coincide com a trajetória da atividade
pacífico e, em relação ao mundo, negativo. É um “não-ser”, re- psíquica, que, quando o indivíduo evoluir ao ponto de possuí-
lativamente a este último. Ao contrário, é um “ser” em face do la, se atrasa, isto é, floresce e definha muito depois da ativida-
imponderável, que é um “não-ser” para os outros. Estes são de corporal, como se necessitasse, para melhor desenvolver-se,
constituídos pelo tipo material, de expansão exterior, de sinto- da atenuação dos processos da vida vegetativa. A maioria das
nização diurna, vermelha, solar, sensual e sensória, amiga da obras-primas surgiram quando os autores tinham de quarenta a
ação, da matéria, da vida física animal. Tipo audaz, sociável, sessenta anos. A morte seria, então, o caso-limite de máxima
bulhento, gozador, voluntarioso e agressivo, mostra-se positivo decadência física e de afirmação espiritual, a passagem com-
perante o mundo. Trata-se de atitudes relativas e opostas. Cada pleta de uma forma vital em ondas longas a outra em ondas
uma delas significa ou afirmação ou negação, que se invertem curtas. As duas vidas são inversas e opostas. Durante a perma-
relativamente à negação ou à afirmação do outro termo. Trata- nência na Terra verifica-se a oscilação entre uma e outra, con-
se de alta ou de baixa frequência. Em meio dos jejuns, das re- forme o poder adquirido pelo indivíduo em qualquer campo e
núncias e dos sofrimentos, os santos estavam sempre absortos de acordo, também, com o ritmo e o tipo de onda dominante
em contemplação, que é apenas visão interior. A espiritualida- em sua personalidade. Quanto ao involuído, em que preponde-
de, vida sutil de alta frequência e notas agudas, substitui a ra o desenvolvimento físico, não pode haver, sem dúvida, en-
animalidade, vida vegetativa de baixa frequência e notas gra- fraquecimento orgânico capaz de nos revelar uma espirituali-
ves; o baixo potencial transformou-se em alto potencial, ampe- dade nele inexistente. Mas, se a evolução a houver suscitado,
ragem em voltagem, o volume em pressão, a vida grosseira dos não podemos pôr em dúvida que o enfraquecimento físico pro-
sentidos na hipersensibilidade refinada, o mundo físico desma- gressivo, o desgaste da vida de ondas longas, favoreça a vida
terializa-se no imponderável. Os dois lados da vida continuam de ondas curtas. A vitória de uma se torna possível somente
sempre opostos e complementares. Reencontramos aqui a com o enfraquecimento correspondente da outra. Noutras pa-
mesma razão inversa observada entre força e sabedoria, entre lavras, o enfraquecimento orgânico pode funcionar como reve-
alegria e dor, entre jovens e velhos. A exuberância vital daque- lador da personalidade rica e profunda, mas preexistente.
les reside na força e na alegria, na expansão física; a destes es- Quando, porém, nada existe, como lhe é possível revelá-lo?
tá na sabedoria, na dor, na expansão espiritual. As lutas, as fa- Quanto à dor, acontece o mesmo. Se, na sua forma mais ime-
digas, as conquistas, tudo é diferente. Os sentidos das proje- diata e evidente, ela nos revela sua função preponderantemente
ções dinâmicas são diametralmente opostos. A vida oferece criadora, no entanto constitui prisão, asfixia e mutilação para o
dois lados opostos, em cuja complementariedade se completa; eu, que tende à expansão. Mas essa opressão que se exerce
desse equilíbrio lhe advém a unidade perfeita. num plano pode resolver-se em compressão capaz de elevar o
Todas as manifestações humanas adquirem essa colabora- potencial, a pressão, de transformar a frequência da onda, e is-
ção diferente e passam de um para outro tipo. Uma pessoa gos- so tudo ao ponto de obrigar a personalidade, quando lhe pos-
ta do que outra detesta; para uns é vida o que para outros re- sua os elementos, a expansão diferente, em plano de vida mais
presenta morte. O próprio Sermão da Montanha exemplifica a elevado, isto é, de fazer a vida do ser, desde que maduro, as-
mudança dos valores terrenos, considerados de ponto de vista cender da forma vegetativa animal à forma espiritual. A dor
material, em valores celestes, considerados de ponto de vista pode assim constituir instrumento de progresso, como quando,
espiritual. A própria morte, para o homem material, é morte barrando a passagem às fáceis ressonâncias inferiores dos jo-
apenas; para o espiritual, vida. É evidente o contraste. A vida gos materiais, abre as portas às sintonizações superiores dos
oscila do extremo do sadismo (onde a vitória consiste na afir- gozos espirituais. Trabalho mais difícil, esforço para atingir
mação egoísta, no esmagamento do próximo) ao extremo opos- tensões mais altas, porém elemento de progresso, pois o ritmo
to, do masoquismo (onde a vitória consiste na altruísta negação vibratório do espírito, em alta frequência, se reforça, se com-
do eu, no amor ao próximo, na tolerância, no sacrifício, na der- pleta, se estabiliza na personalidade. A personalidade sofre,
rota). A evolução caminha amparada por ambos os impulsos. debate-se, mas acaba sendo controlada e, assim, não consegue
Perguntamo-nos, então: relativamente a esse dualismo, em que explodir; é até mesmo constrangida a fazer uma conquista que,
sentido caminha a evolução da vida? Para os indivíduos, assim mais tarde, será sua e a levará a bendizer a dor, transformada
como para as famílias e os povos e, portanto, para a humani- em instrumento de progresso.
dade também, a vida caminha da juventude até à velhice, com Um esclarecimento se torna necessário agora. No leitor
todas as alterações de qualidade decorrentes dessa passagem. atento, que se lembra do Cap. XLVIII – “Série evolutiva das
Essa passagem, aliás, significa inversão de características, exa- espécies dinâmicas” e o Cap. LXXXV – “Psiquismo e degra-
tamente porque é mudança de posição de um extremo a outro. dação biológica”, ambos de A Grande Síntese, pode surgir cer-
Por isso, a evolução da vida oscila entre o ritmo de ondas lon- ta dúvida se confrontar esses capítulos com frases como estas
gas e o de ondas curtas, o baixo e o alto potencial, a quantida- deste livro: “O mundo da matéria podemos imaginá-lo caracte-
de e a qualidade, a baixa e a alta frequência. A evolução, por- rizado por ondas longas; o do espírito, por ondas curta... Trata-
tanto, nada muda à substância, mas somente à forma, e o que a se de alta e baixa frequência... Animalidade, vida vegetativa,
torna possível é um ritmo interior de frequência vibratória. A notas graves: baixa frequência; espiritualidade, vida sutil, no-
vida dos velhos não significa destruição, mas apenas inversão tas agudas: alta frequência. A evolução da vida caminha, por-
formal da vida dos jovens. As duas vidas, a espiritual e a mate- tanto, do ritmo em ondas longas ao ritmo em ondas curtas, do
rial, são inversas e, portanto, antagônicas; o enfraquecimento baixo ao alto potencial, da baixa à alta frequência. Na evolução
ou atrofia de uma condiciona o desenvolvimento da outra. No da vida é a onda longa que se funde na curta”. Nos referidos
sistema compensado e equilibrado da natureza não pode haver capítulos de A Grande Síntese afirma-se, ao contrário, que, ao
hipertrofia sem a correspondente atrofia. Assim, verificamos longo da série das espécies dinâmicas, a frequência vibratória
constantemente existir relação inversa entre saúde física e vida diminui, enquanto a amplitude aumenta. Aí parece, portanto,
espiritual, tanto assim que, quando a vida tende a enfraquecer- que a evolução caminha para a diminuição de potencial, repre-
se na forma orgânica, também tende a sensibilizar-se e a mani- sentada pelo decréscimo da frequência vibratória e pelo au-
festar-se sob formas mais refinadas, em planos mais elevados; mento de amplitude de onda. Neste capítulo dizemos, pelo
por outro lado, em organismo fisicamente desenvolvido e exu- contrário, que a vida caminha das ondas longas para as curtas,
berante, geralmente não cabe vida interior sutil e sublime. A da baixa para a alta frequência, com elevação de potencial. Há
trajetória da atividade física, em seu desenvolvimento, maturi- contradição nisso? Não. Expliquemo-nos.
88 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
Cada uma das três fases evolutivas do nosso universo se re- sultado final de toda degradação não é a morte, mas a ressur-
solve, finalmente, em decomposição final, que, relativamente à reição em plano mais elevado. A entropia constitui apenas a
matéria, se chama desintegração atômica; para a energia, toma revelação do desgaste resultante do trabalho da elaboração
o nome de degradação dinâmica; e, quando se refere à vida, evolutiva, desgaste que desempenha também a necessária fun-
diz-se degradação biológica. E, de fato, a vida, considerada ção de destruir uma forma, que, por força da lei de evolução,
como dinamismo biológico, caminha para a baixa frequência e sempre progride e se aperfeiçoa. Não é verdade que por toda
o aumento do comprimento de onda, e isso até ao esgotamento parte, até mesmo em nós, em nossa vida como em cada um de
e à morte em seu caráter de vida vegetativa animal. Este é ape- nossos atos, encontramos sempre essa lei de morte e ressurrei-
nas um caso do fenômeno de entropia, isto é, da tendência dos ção? De outro modo não poderia haver renovamento e evolu-
fenômenos ao nivelamento dinâmico e à extinção na quietude. ção. A forma necessita de desfazer-se e refazer-se continua-
Essa entropia, se existe nos fenômenos, não é constante e per- mente para prosseguir no caminho ascensional do ser, que vai
pétua; se fosse, já teria feito sentir sua ação, e o universo já es- assumindo-as sucessivamente, de acordo com suas necessida-
taria morto, no entanto vemo-lo em contínuo progresso. Deve des. A morte condiciona a vida.
existir nele, e é lógico que exista em sistema equilibrado como Agora compreender-se-á mais facilmente o que neste capí-
nosso universo, a parte inversa e compensadora do fenômeno tulo estamos dizendo, isto é, como a destruição biológica con-
da entropia, isto é, tendência paralela e complementar à cons- duz à construção espiritual. Agora, podemos verificar como,
trução, reconstrução de potencial e de frequência, que equilibre apesar de toda forma tender a degradar-se na baixa frequência
e anule a tendência à destruição e à degradação de potencial e à e em ondas longas, ela se reconstitui mais tarde em uma forma
diminuição de frequência representada pela entropia. A forma superior, de alta frequência e ondas curtas. Eis por que, embo-
de toda fase evolutiva também se sujeita, sem dúvida, a desgas- ra a vida do indivíduo e a da humanidade se desgastem no cur-
te que termina em desagregação. Esta, porém, é apenas aparente so da juventude à velhice, em progressiva diminuição de po-
e não se verifica se tomarmos em sentido absoluto o termo. A tencial biológico, que caminha para a baixa frequência e as
destruição não incide na substância, mas apenas na forma, e re- ondas longas, desse desgaste nascem o espírito, a consciência,
duz-se a renovamento, condicionador da evolução. Na realida- a sabedoria, resultado de experiências da vida, cujo fruto é o
de, se os fenômenos diminuem de intensidade, se esgotam em espírito, em elevado potencial, alta frequência e ondas curtas.
sua forma atual, se desgastam, envelhecem e morrem, nem por A vida, enquanto vida apenas, caminha para a baixa frequência
isso se aniquilam e anulam. A substância de coisa alguma pode e as ondas longas; como espírito, porém, se reconstitui em on-
ser destruída; ressurge de outra maneira, e isso acontece exata- das curtas, rápidas e poderosas. No plano da vida, o processo
mente como resultado da elaboração da fase precedente, em que de enfraquecimento de frequência, alongamento de onda e de-
a forma se degrada, mas a substância evolui, impregnando essa gradação de potencial continua exatamente como dizem os re-
forma situada em plano mais elevado e igualmente real, embora feridos capítulos de A Grande Síntese, e isso até à exaustão e à
ela escape aos nossos sentidos. Esta ressurreição, sob forma di- morte. Desse processo, porém, surge o espírito, como produto
versa, da substância imortal é que se encarrega da reconstitui- sintético dessa elaboração biológica. É o que se afirma neste
ção do potencial, da alta frequência em ondas curtas. Assim, na capítulo. Parece que no fim de cada período evolutivo, do per-
desintegração atômica, a matéria não desaparece senão como curso de cada fase, desgastada a forma que lhe é própria, as
matéria, mas renasce na qualidade de energia de alto potencial e forças do universo se contraem e concentram-se em uma forma
frequência em ondas curtas (gravitação); do mesmo modo, no sintética, de potencial mais elevado e filha da forma preceden-
caso da degradação dinâmica, essa energia vai-se degradando, te, que morre. Assim, apesar de tudo, o ser se fortalece, se
de gravitação passa a eletricidade. Aniquila-se como potencial, aperfeiçoa, cada vez mais se reaproxima de Deus. Isso porque
frequência e comprimento de onda, mas finalmente morre como a degradação não passa de processo negativo de anulação da
energia e renasce sob a forma de vida. Se considerarmos a de- forma, anulação aparente, de que nada subsiste senão a forma
gradação biológica, veremos que por sua vez a vida se desgasta, renovada e outro trecho percorrido no caminho da evolução. A
enfraquecendo-se como potencial, frequência e comprimento de degradação é, na realidade, apenas íntima elaboração constru-
onda, mas por fim não se extingue senão na qualidade de vida tiva, e seu resultado não é a extinção, mas a evolução. O de-
vegetativa animal e renasce, como espírito em fase mais adian- senvolvimento de determinada fase evolutiva é um percurso
tada, em nova e mais evoluída forma de existência, de alto po- expansionista, caminhando do centro para a periferia; mas é
tencial, alta frequência e ondas curtas. E assim por diante. também um caminho que, no fim de cada um desses períodos,
O fenômeno da entropia não representa, pois, toda a evolu- implica ter sido percorrido intimamente um caminho inverso,
ção, mas apenas o período destrutivo da forma de uma fase com que o fenômeno evolutivo se compensa, completa e ree-
evolutiva, período que constitui a aparência e o efeito de ínti- quilibra, porque, contemporaneamente, percorreu no seu outro
ma elaboração a ele correspondente na intimidade do fenôme- polo um caminho da periferia ao centro. Assim, a manifestação
no e representa correlato período reconstrutivo, cujo resultado jamais termina em dispersão por afastar-se de sua fonte; pelo
é o nascimento da nova forma, mas em fase mais adiantada. contrário, é novamente atraída pelo poder divino, que tudo re-
Assim, a evolução recomeça a marcha e, em meio da destrui- ge, e reconduzida ao contato com as forças diretivas de que o
ção da forma, a substância progride desse aparentemente mis- outro lado do processo tendia a afastá-la. Sem esses equilíbrios
terioso meio de recuperação de energia, que outra coisa não é compensatórios, o universo se esgotaria por degradação. A
senão a resultante dos equilíbrios das forças do sistema. A en- própria lei de dualidade nos mostra a estrutura desse fenômeno
tropia, portanto, é apenas aparente, a aparência assumida pela de compensação. Se de um lado há degradação, do lado oposto
realidade do transformismo evolutivo. De fato, não se trata de deve necessariamente existir reconstrução. Assim acontece na
dispersão nem de nivelamento, mas de elaboração. O processo verdade, e os resultados, que não significam morte, mas vida,
de reconstrução se desenvolve subterraneamente e nada tem de põem-no em evidência. Trata-se apenas de dois momentos de
científico, mas o resultado aparece-nos como nova forma que, processo evolutivo único. Por necessidade de equilíbrio, de-
mais poderosa, renasce em plano mais adiantado. Chamamos vem ser inversamente proporcionais. O nascimento implica na
entropia à destruição apenas da forma, condição de renova- morte; a morte, na vida. A degradação biológica constitui con-
mento evolutivo. A parte inversa e complementar do fenômeno dição do processo genético do psiquismo, como a degradação
se encarrega de reconstruir, equilibrando-o em seus dois mo- dinâmica se revela condição do processo genético da vida e a
mentos inversos e complementares. Prova-o o fato de que o re- desintegração atômica condiciona o processo genético da
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 89
energia. Os dois momentos são pressupostos um do outro e re- no da noite, enquanto que, para os tipos em ondas longas, ela
ciprocamente se impõem. Cada fase acaba degradando-se. está no mundo, no reinado do dia. Há, pois, temperamentos
Nasce jovem, de elevado potencial, ondas curtas e alta fre- adequados a viver na vida e temperamentos adequados a viver
quência, e morre velha, de potencial baixo, ondas longas e bai- na morte. Nossa própria vida cotidiana se divide em dois turnos
xa frequência. E, ao morrer, gera fase de ascensão mais adian- diferentes: o dia, vida física, prática, concreta, sensória, à luz
tada e mais próxima de Deus. Essa lei se estende a todas as solar, em ondas longas; e a noite, vida espiritual, de sonho, in-
coisas. Esclarecido esse ponto, continuemos. corpórea, no imponderável, à luz azul, lunar, em ondas curtas.
Quem a experimentou sabe muito bem que a vida espiritu- A vida é contínua; de dia vivemos a vida dos vivos, de noite a
al, em que reside o futuro biológico, se caracteriza pela alta vida dos mortos. As duas faces inversas do mesmo fenômeno se
tensão; sabe também a fadiga que representa ser constrangido alternam. E, enquanto uma forma prepondera, a outra se atenua
a elevar o próprio potencial, a habituar-se a vibrar em ondas e espera o seu despertar. De noite, a vida física adormece e se
curtas e em alta frequência. Exprimindo-se assim, procuramos afirma a vida interior, intuitiva, vidente. De dia, a vida interior
dar a entender mais facilmente aquilo em que consiste a evolu- permanece entorpecida, deixando o campo livre àquela. Trata-
ção, traduzindo em termos científicos o fenômeno de espiritua- se como de duas linhas de visada diferentes, mas tomadas pelos
lização, que, em geral, não é entendido lato sensu 14 como fe- olhos da mesma pessoa: uma durante o dia, míope, capaz de
nômeno biológico, mas apenas no caráter de fenômeno religio- perceber todas as minúcias dos objetos próximos, precisa, con-
so. O ritmo vegetativo da animalidade mostra-se mais lento, creta; outra durante a noite, presbita, boa para distinguir os ob-
menos fatigante, menos potente, é de ondas longas e baixa fre- jetos afastados, as visões panorâmicas, mas vaga, sonambúlica,
quência. O sofrimento, que amadurece e desmaterializa, ex- onírica. As horas da madrugada são as mais profundas, as me-
prime o esforço de habituar-se a viver em ritmo mais rápido e lhores para a atividade espiritual e, por outro lado, as piores pa-
intenso, mais laborioso e fatigante, porém mais potente. A evo- ra o enfermo que sofre no plano físico, são aquelas em que ge-
lução constitui, em substância, aceleramento de frequência de ralmente o homem morre, pois compreendem o período de
vibração; a dor aí funciona como excitante, espécie de trans- maior depressão do dia todo, de ritmo vibratório mais curto, o
formador de potencial. Através da evolução, a substância per- mais afastado do ritmo longo, lento, vegetativo, diurno.
manece idêntica; a quantidade transforma-se em qualidade; a Todo o nosso ser está saturado desse dualismo inverso. A
força, como vimos, torna-se conhecimento; a ignorância do in- própria luta pela vida, fato fundamental, assume duas formas
voluído passa a ser a sabedoria do evoluído; a violência torna- extremas: a positiva, de agressividade (conquista); e a negativa,
se justiça; e o caótico desequilíbrio da desordem e do abuso de resistência (conservação), ambas válidas. Sobre esse dualis-
transforma-se nos harmônicos equilíbrios da ordem divina. Por mo também se apoia o fenômeno biológico básico da sexuali-
força da evolução, o concreto caminha para o abstrato; a ação, dade, tanto assim que a encontramos, como oposição de termos
através da experimentação, transforma-se em conceitos e qua- em nossa própria carne. De fato, os tecidos todos se compõem
lidade; a atividade material, em atividade espiritual; o trabalho, de células; e a célula, de dois elementos contrários e comple-
em contemplação. No homem primário, o pensamento é con- mentares: o núcleo e o protoplasma. Até mesmo a unidade celu-
creto, não se concebe a ideia senão revelada por fatos concre- lar, que está na base de nossa estrutura orgânica, é bipolar, con-
tos; a palavra mostra-se mais como gesto (isto é, síntese inspi- forme a lei de dualidade. O núcleo, originário do espermatozoi-
rada na ação) do que como conceito; o pensamento é mais ex- de masculino, vibra em ondas curtas; é de radiações azuis, vo-
pressão por meio de palavras e gestos do que meditação; toda luntarioso, dinâmico, como o próprio espírito. O protoplasma,
manifestação espiritual permanece sepultada num invólucro oriundo da célula-ovo feminina, vibra em ondas longas; é de
material. Apenas o evoluído atinge a concepção abstrata, ima- radiações vermelhas, sensual, pacífico, acumulador, como a vi-
terial, que se mantém por força própria, sem ligações ou apoios da vegetativa. O núcleo é eletricamente positivo; o protoplas-
físicos. Nele, os membros de simples instrumentos de ação se ma, negativo; eis os dois termos antitéticos que, da intimidade
transformam em antenas transmissoras e receptoras de radia- de nossa própria carne, do indivíduo ao desenvolvimento bioló-
ções. O evoluído parece inerte, mas sua ação, que aparenta um gico e social, representam cisão e compensação de qualidade e
“não-fazer”, pois foge às formas e percepções comuns, desen- divisão de trabalho, por força do qual o princípio masculino as-
volve-se no imponderável. Ela desmaterializa-se em ritmo sume tarefa inversa e complementar da atribuída ao princípio
mais sutil, poderoso e penetrante. O futuro abrange a passagem feminino. Ao primeiro desses princípios, a virilidade, em ondas
da vida animal à espiritual; para que esta se desenvolva, aquela curtas, incumbe o dinamismo criador, a função de, por meio de
tem de morrer, pois se torna impossível a coexistência de dois estímulos revolucionários periódicos, reanimar, reativar a onda
ritmos diversos. São antagônicos, mas reciprocamente se ligam longa da feminilidade que, se tende a conservar, a proteger,
e continuam. Na evolução da vida, a onda longa é que acaba acumular, tende também ao enfraquecimento e à estagnação.
terminando em onda curta. Progredir significa conquistar onda Essa atividade genética e conservadora equilibra-se na atividade
curta. É a forma do futuro. Mas, superada a fadiga do acelera- oposta do princípio masculino, diretora e distributiva. A este se
mento e a dor da asfixia em plano inferior, a vida, transforma- confia a iniciativa da evolução; ao feminino, a elaboração da
da, e não destruída, continua mais intensa e alegre, num plano matéria-prima; o princípio masculino plasma, o feminino recebe.
mais elevado. Trata-se de ressurreição. Assim, a morte não é Mas o primeiro também é eminentemente destrutivo, enquanto o
igual para todos. A noite não é trevas para os notívagos. A segundo domestica e civiliza. O fato de suas naturezas serem in-
morte só é morte para os tipos involuídos, animais e vegetati- versas torna-os incompletos e leva-os a se atraírem reciproca-
vos, isto é, em ondas longas; para os tipos evoluídos, espiritu- mente. Assim, os dois princípios, na luta para se destruírem, se
ais, ou seja, em ondas curtas, a morte significa vida. Todos nós apertam no mesmo abraço. Ai de nós se, compensando-se e
somos relativos, limitados e estamos fechados numa das meta- combinando-se, as duas funções não se equilibrassem. Então,
des da vida. Mas sempre a experiência oposta, a outra metade, reciprocamente expurgadas do excesso individual, a destruição
está pronta a compensar-nos e completar-nos. Tudo pode do dinamismo positivo se transforma em construção, e a passi-
transformar-se. A vida em ondas curtas representa a morte da vidade do dinamismo negativo se torna civilização. Da combi-
vida em ondas longas, mas constitui a vida dos tipos em ondas nação dos dois princípios nasce a evolução; o masculino e o fe-
curtas. A vida deles não reside na Terra, e sim no além, no rei- minino são o pai e a mãe daquele filho chamado progresso.
Esse dualismo imprime-se em todo o nosso ser. Das alturas
14
Sentido elevado. (N. da E.) da personalidade desce até à intimidade de nossa carne, até à
90 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
célula, onde, aliás, está insculpido e donde sobe de novo até à gastou nisso imensos períodos de tempo. Não é demais imagi-
síntese máxima do ego, tornando-se antagonismo entre espírito nar que a evolução consiste em lenta aceleração do ritmo vi-
e matéria. Esse contraste, que se verifica sem cessar e constitui bratório, em transformação do potencial elétrico no sentido de
a base da evolução, reencontramo-lo até mesmo no mais íntimo frequências mais altas, de ondas cada vez mais curtas; nem é
de nossa estrutura orgânica, na divisão e união dos dois sexos. fora do comum pensarmos que isso aconteça no processo cha-
Pode acontecer que as correntes de consciência, que se manifes- mado desmaterialização e espiritualização. A matéria viva de
tam em nossa personalidade e a caracterizam, se relacionem nosso organismo, sensível a todos os choques externos, de que
com essa bipolaridade das células e nesta se encontre a chave registra os recentes e lembra os antigos, palpitante ao impulso
do mistério do subconsciente, dos instintos, das ideias inatas, da de forças internas e externas, sofre continuamente a ação das
hereditariedade; pode acontecer que a recordação atávica se vicissitudes da vida social, as asperezas da luta, a hostilidade
acumule e transmita através dessas células eternamente repro- ambiente. Deve, por isso, elaborar-se e mudar por força. O
duzidas por filiação direta, das células destacadas dos progeni- homem, os povos, a humanidade significam vida, e a vida é
tores, isto é, o espermatozoide e a célula-ovo. Não podemos, como um projétil que percorresse trajetória pré-determinada.
agora, perder-nos em divagações a respeito da gênese e da es- Tudo se transforma, nada pode deter-se. A carga elétrica, im-
trutura da personalidade de que mais adiante falaremos. Mas, pulso inicial que acompanha o nascimento do ser e anima o
sem dúvida, o problema espiritual não pode isolar-se do fisio- percurso do projétil, tende ao esgotamento, e então começa o
lógico; os dois se ligam estreitamente. É verdade que as corren- ramo descendente da trajetória. O dinamismo acaba cedendo,
tes espirituais nos penetram o organismo até ao interior da célu- primeiro no campo orgânico e em seguida no campo psíquico,
la, cuja estrutura é bipolar, quer dizer, contém o germe das duas exatamente porque neste campo se desenvolveu tardiamente. O
vidas, das duas vibrações e radiações, dos dois ritmos funda- último destes dinamismos parece filho do dinamismo orgânico,
mentais da existência. Também é verdade que a vida é um fe- de que representa a resultante e o objetivo, o efeito residual
nômeno elétrico, não da eletricidade por nós usada em vários mais bem elaborado da causa. Isso faz pensar que, assim como
aparelhos. Trata-se de quantidades enormes de energia, de po- se verifica em relação ao indivíduo, as funções espirituais re-
sicionamento alveolar e de baixo potencial; trata-se de um presentam o futuro da raça, sua futura fase de evolução, e, tam-
grande número de elementos (vários milhões de células), cada bém na humanidade, se desenvolvem mais tarde. Tanto assim
um com capacidade energética mínima; poderíamos mesmo di- que esse psiquismo corresponde a complexidade orgânica cada
zer um número infinito de causas infinitesimais. Num extremo vez maior, necessidades de defesa cada vez mais difíceis, pois o
da vida há como que uma pulverização dinâmica; noutro, uma drama se torna sempre mais inçado de problemas e requer, por
espécie de concentração sintética e unitária em torno do ego. isso, estratégia cada vez mais sábia e rica de mil e uma qualida-
Também neste sentido se verifica uma oscilação entre os dois des. Do contrário, o indivíduo não triunfa. E tudo nos faz pen-
extremos opostos e complementares. As raízes do psiquismo sar que, analogamente, a evolução deve alcançar, também nos
mergulham profundamente nos misteriosos meandros da estru- seus mais altos graus, a coordenação atingida nos mais baixos,
tura orgânica. Considera-se que o material dessa construção é, como, por exemplo, na estabilização atômica e celular. Tal co-
como primeiro elemento, o átomo, e as moléculas as primeiras mo o passado criou formas hoje estáveis, assim também o futu-
construções atômicas em que os átomos se ordenam sistemati- ro estabilizará formas bem mais complexas. Por que razão o
camente. Para chegarmos até à célula, precisamos antes consi- princípio protetor da vida não deveria presidir também à defesa
derar a formação dos corpúsculos chamados micelas, compos- das construções biológicas do futuro, mais sublimes e delica-
tos de um grânulo recoberto por uma espécie de casca (substân- das? A criação é fatigante, laboriosa, lenta, mas contínua.
cia peri-granular). Água circula entre o grânulo e essa espécie Baseados nessas considerações, agora podemos definir mais
de casca. A micela é dotada de movimento contínuo, chamado precisamente a lei de dualidade, até mesmo relativamente à
movimento Browniano. A micela é, pois, constituída de molé- evolução. Assim:
culas que, por sua vez, se constituem de átomos, em dois gru- “Todo indivíduo constitui unidade dupla, isto é, equilibrado
pos de matéria, um positivo e outro negativo, como, por exem- paralelismo de forças emparelhadas, mas antitéticas. Ou me-
plo, a célula. Essa bipolaridade corresponde, desde o átomo à lhor, toda unidade compõem-se de metades inversas e comple-
célula e aos organismos extremamente complexos, a um es- mentares, em contraste e em equilíbrio. Desse contraste nasce a
quema geral da criação, estabelecido de acordo com a lei de du- elaboração íntima que se chama evolução”.
alidade. O esquema fundamental dos fenômenos universais é A evolução, portanto, resulta de processo bipolar, destruti-
simples e válido para quaisquer grandezas e planos evolutivos. vo-construtivo. Já vimos de que modo o mal se torna necessá-
O próprio átomo compõe-se de um núcleo central positivo e de rio às finalidades do bem. Dessa lei se infere que, se toda uni-
elétrons (ou cargas elétricas negativas) que gravitam em torno dade é um binômio, tudo é necessariamente luta e guerra, mas
dele, à semelhança do sistema solar e seus satélites. O princípio também paz; tudo é ódio, mas amor também. Poderemos até
dualístico manifesta-se em toda parte. Encontramo-lo impresso mesmo dizer que, por força da íntima estrutura dualística dos
no desenvolvimento da trajetória típica dos movimentos feno- fenômenos, portanto do fenômeno biológico também, e em vir-
mênicos examinada na 1a parte de A Grande Síntese, desenvol- tude do dinamismo de duas forças opostas, a positiva e a nega-
vimento resultante da alternância de períodos inversos, evoluti- tiva, a masculina e a feminina, produz-se uma autoelaboração
vos e involutivos, de progresso e retrocesso. interior, também chamada evolução, que faz a vida humana
É natural que esse dualismo permaneça até mesmo na sín- progredir do tipo animal, vegetativo, espiritualmente involuí-
tese máxima da personalidade. E assistimos não somente à do, sensual, sensório, físico, em ondas longas, para o tipo su-
pulverização de seu dinamismo causal como também à de sua per-humano, psíquico, evoluído, sensitivo, espiritual, em ondas
estrutura material que, se de um lado, o máximo, se desfaz na curtas, ou seja, transformar-se de besta em super-homem. Se
espiritualidade da alma, de outro desaparece na imaterialidade essa elaboração íntima conduz a vida humana a um ritmo que
dos últimos de seus elementos constitutivos. Não deve, pois, vai das ondas longas às curtas, leva-a também a caminhar do
causar estranheza imaginarmos que essa imaterialidade se re- dia para a noite, afasta-a da luz e do calor qual sol poente, des-
solva no dinamismo de uma polaridade elétrica e de um ritmo materializa-a por força de maturação íntima; do mesmo modo
vibratório radiante, em maravilhosa orquestração de harmonias que, na desintegração atômica, a matéria se transforma em
equilibradas e compensadas com as dissonâncias relativas. A energia, a vida humana extingue-se como forma física, a fim
vida, portanto, se elaborou através de atividades mínimas, mas de, em outros ambientes, ressuscitar sob nova forma espiritual.
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 91
Estamos discutindo estes problemas e, ao mesmo tempo, poucas portas abertas penetra vasto mar de ondas, mas o restan-
aplicando a lei acima exposta. De fato, também a ideia consti- te nos escapa à percepção. Quem sabe quantas irradiações mais
tui um binômio de forças (isto é, forças inversas e complemen- estão vibrando no ar, chamando-nos, e não sabemos captá-las!
tares) e, por isso, como todo debate representa uma oscilação O resto nos parece silêncio e trevas! Quanta vida e quanta bele-
entre os dois extremos opostos do mesmo conceito e conduz za nos passa despercebida! A ciência, descobrindo novos méto-
àquela íntima autoelaboração que é a maturação do pensamen- dos de registrar vibrações, oferece-nos uma espécie de sentidos
to, isto é, sua evolução. O leitor pode encontrar por si mesmo artificiais que nos abrem novas vias sensórias; rasgam-se novas
muitas outras aplicações dos princípios aqui expostos. Mesmo clareiras iluminadas. Depois, trevas como antes, o interminável
a radiestesia se baseia em dois tipos de movimentos pendulares inexplorado. A matéria se evapora; diríamos mesmo, espiritua-
inversos e correspondentes ao bem e ao mal, isto é, capazes de, liza-se em nossas mãos. Sua composição química não basta pa-
seja qual for o objeto, revelar-lhe as radiações favoráveis ou ra esgotar o conhecimento de sua natureza. No universo tudo
nocivas. Se o movimento é circular, pode ser no sentido horá- está animado de vida, de inteligência, de relações e de trocas.
rio (sentido do movimento dos ponteiros do relógio) e no sen- Toda individuação tende a ser sintonizada pelo ambiente e a re-
tido anti-horário; se é retilíneo, falamos em sentido longitudi- agir, buscando impor ao ambiente sua sintonia. Neste mútuo
nal e sentido transversal. processo de modificação, tende-se à concordância, à recíproca
A tudo isso se poderia objetar que o princípio de causalida- mimetização rítmica. Pôr-se de acordo com a ordem é o cami-
de não basta para explicar a fase superior de evolução que, re- nho que oferece menor resistência e dá maior rendimento, é a
presentando estado mais complexo, significaria “mais” obtido tendência constante e a resultante final que a estrutura do sis-
de “menos”, isto é, efeito superior à causa. A objeção se justifi- tema de forças necessariamente impõe. Por maiores que sejam
caria se o funcionamento do universo dependesse apenas de re- os antagonismos, tudo não passa de coexistência, de sensações
lação causal. Não se concebe, aliás, desproporção entre causa e recíprocas, de vibrações em comum. A coexistência no mesmo
efeito nem desenvolvimento maior do que o conteúdo do germe ambiente implica a inevitabilidade das trocas e, por isso, a re-
poderia dar. Na realidade, porém, o fenômeno não se desenvol- ciprocidade das influências exercidas. A relatividade de cada
ve como as aparências nos fazem supor. O funcionamento do qual implica a necessidade de procurar nos outros, para com-
universo não para, e, além de orgânico e contínuo, é evolutivo, pensá-la, o próprio complemento. Assim, antes ou depois, tudo
quer dizer, é intérmina florada de vida; a mecânica representada se adapta por força de concordância recíproca; por maior que
pelo princípio de causalidade constitui apenas o processo de seja o desacordo, acaba sempre por dissolver-se, harmonizan-
elaboração dessa florescência. Em resumo, na evolução, mais do-se no consenso. De fato, embora dividido pelo individua-
do que simples relação entre antecedente e consequente, verifi- lismo, tudo está ligado por essa complementariedade; embora
ca-se o desenvolvimento de algo latente na intimidade do ser e afastado e separado pela antipatia e repulsão existente entre
a sua manifestação no mundo exterior. Os dois momentos, cau- semelhantes, tudo é reaproximado e reunificado pela simpatia
sa e efeito, não surgem, portanto, ligados por uma relação de e atração que se estabelece entre contrários.
igualdade, porque no centro, na causa, no germe das coisas, se A estes contatos cada qual responde conforme sua sensibili-
concentra o invisível poder do pensamento de Deus, poder que dade; e evolução é sensibilização, isto é, dilatação contínua das
se expande e se desenvolve na manifestação exterior, por nós vias da percepção bem como do poder e da alegria de perceber.
mais claramente perceptível. Todavia, se observarmos mais Cada um reage conforme suas particulares capacidades seletivas
atentamente, verificamos a existência dessa relação de igualda- de sintonização; assim, o musicista para as ondas sonoras; o pin-
de entre causa e efeito, não na forma, mas apenas na substância. tor para as ondas luminosas, o pensador para as ondas psíquicas,
Os nossos sentidos, porém, só percebem a relação formal. A o romântico poeta para as ondas vitais do amor. Quanto mais a
igualdade foge, pois, à apreciação dos sentidos. Se existe na vida é espiritualmente profunda, mais nos dá o senso do ritmo e
substância, onde o equilíbrio tem de ser perfeito, não existe na nos transforma o ser em concerto de harmonias. No gênio triun-
forma, que é tudo quanto o homem percebe e, efetivamente, dá fa exuberante riqueza de percepção, a hipersensibilidade abre
a sensação de disparidade entre causa e efeito. inúmeras portas à ressonância, as irradiações penetram e os seus
registros se amontoam febrilmente. Onde o homem comum per-
XXVI. A MÚSICA - A VIDA DUPLA cebe poucas sensações e duas ou três ideias com que enfeita o
simplíssimo esquema de sua vida, o gênio deve saber movimen-
O capítulo anterior nos deu apenas ligeira ideia da maravi- tar-se, orientar-se, cair e levantar-se, em meio da vertiginosa
lhosa simetria de impulsos e da correspondência de ritmos ori- complexidade de sua imensa orquestração perceptiva.
entadores da ordem de que se compõe o funcionamento orgâni- Todo esse movimento origina-se de desequilíbrio que pro-
co do universo. Nossa vida é força que navega em oceano de cura, e enquanto procura, o seu reequilíbrio. Se aquele constitui
forças; toda força é vontade que a anima, pensamento que inte- o impulso motor, significa também transitória mudança de fase,
ligentemente a dirige, é tipo de vibração, é radiação. Tudo se instrumento de evolução, e acaba sendo, naturalmente, reabsor-
move, ouve, registra, recorda e responde. Apesar de algumas vida no equilíbrio. Embora haja desordem na superfície, na ca-
cacofonias, tudo se harmoniza em maravilhosa sinfonia, tudo se mada mais profunda reina a harmonia, a que todas as coisas
articula em grandiosa arquitetura de ritmos. A ciência apenas tendem, e o ser, quanto mais evolui, mais se lhe aproxima e
nos deixa entrevê-la. O homem, para percebê-la, dispõe somen- mais a sente. A sintonização rítmica é o estágio final de todas
te de sentidos embotados e dela tem ideia muito vaga. O tato, as alterações dinâmicas. Encontrado o equilíbrio, o objetivo foi
sentido fundamental geral, nos dá sensação ampla, mas genéri- atingido, o problema está resolvido, o ser fica saciado e o mo-
ca e elementar. Os outros sentidos, particulares derivações e es- vimento cessa, mas para recomeçar em plano mais elevado e
pecializações do tato, permitem contatos mais íntimos e perfei- em desequilíbrio mais complexo, iniciando novo movimento. E
tos com o ambiente. Assim, o gosto constitui aperfeiçoamento assim por diante. Se o dinamismo é consequência do desequilí-
do tato, o olfato é especialização do gosto, o ouvido deriva do brio, este, por sua vez, deriva do dualismo existente em cada
olfato, a percepção da luz origina-se da percepção do som. Na ser e implica unilateralidade, isto é, carência que o torna in-
ascensão há ordem, progressão evolutiva. Ao progressivo aper- completo e, por isso, o incita ao movimento em busca de com-
feiçoamento do sentido corresponde, quanto ao dinamismo, a plemento. Mas, se a natureza nos onera com a necessidade, para
transformação da quantidade em qualidade; o comprimento da que ela nos constranja ao movimento e, assim, façamos expe-
onda diminui à proporção que a frequência aumenta. Por essas rimentos e evoluamos, propicia-nos também os meios de satis-
92 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
fazê-la. Há sempre outro termo apto a dar-nos riqueza necessá- vão-se diferenciando e multiplicando ao infinito. Por isso todas
ria para realizarmos troca e conseguirmos satisfação, apenas te- as coisas guardam estreita analogia entre si; não é por mero
nhamos tido o trabalho de encontrá-la. Assim, os seres estão acaso que, para descobrimento do desconhecido, tanto se recor-
fraternalmente unidos, e o universo pode organizar suas cons- re em A Grande Síntese, como também fazemos aqui, ao prin-
truções de relações, seus edifícios de forças. Assim, tudo se cípio da analogia. O espírito adere instintivamente à alegria do
move e se renova, fugindo à cristalização, e, no movimento, ritmo, em que percebe terminadas as asperezas da luta e as do-
torna-se possível a evolução. lorosas dissecações do caos. Toda harmonia é uma festa, pois
Todas as coisas são movidas por essa combinação de altos nos eleva, nos aproxima de Deus, centro irradiador de todas as
e baixos, de qualidades inversas e complementares. Cada ter- harmonias. O paraíso deve consistir em no sintonizarmos com
mo vai procurando reequilibrar-se no seu contrário e, assim, ritmos sublimes do universo. O problema da felicidade talvez
encontrar repouso. Desse modo, todo elemento se liga a seu seja apenas questão de sintonia, ou seja, de colocar-se em fase
oposto e, por isso, até mesmo no árduo trabalho de autoelabo- com radiações superiormente harmônicas.
ração, é arrastado rumo à evolução. O progresso está implícito Esses conceitos podem lançar nova luz sobre o problemas
no sistema, como resultante, e o estado de equilíbrio representa da evolução da arte e, especialmente, da música. Podemos, as-
evolução acabada, estado de paz, que é a fase final de todas as sim, tecer agora considerações mais profundas a respeito de al-
guerras da luta pela vida. Na natureza, os objetivos existem pa- guns de seus aspectos, de que, aliás, já falamos no último capí-
ra serem atingidos. O universo atual está em fase de desequilí- tulo de A Grande Síntese, “A Arte”. Nele dissemos o seguinte
brio, base do dinamismo criador, e isso significa que está em em relação à música: “Nossa atual fase artística consiste no
fase criadora e evolutiva. Para as forças e os fenômenos que o aniquilamento, no abandono da forma. Estais na última fase de
conseguem, o equilíbrio representa a fase de chegada, de satis- queda... O progresso artístico não passa, em substância, de pro-
fação, de repouso final em terreno que jamais permanece ino- cesso de harmonização... Como todas as coisas, a música mo-
perante e sossegado, por isso é também fase de morte e, em derna evolui em profundidade... em sua 3 a dimensão de sinfo-
seguida, de superamento. O equilíbrio entre os dois contrários nia... O futuro consiste em continuar tornando cada vez mais
pode, com efeito, ser perturbado pelo menor choque, porque as ampla a estrutura sinfônica...”.
forças do universo estão perfeitamente entrosadas. Então, os Aprofundemo-nos. Se observarmos a música de nossos dias,
equilíbrios se rompem para se porem de novo em movimento, principalmente se a relacionarmos com a que a precedeu, veri-
como desequilíbrios, até recuperarem novos equilíbrios de paz. ficamos separação, diversidade e desacordo fundamentais. A
Mas, a cada união e a cada troca, também corresponde nova música de ontem nos aparece como música resolutiva, estágio
prova e nova experimentação; a volta ao trabalho, após o re- final de pacificação; a de hoje, no entanto, surge como música
pouso, significa superamento do passado e trabalho mais pro- revolucionária, estágio inicial de luta. Hoje, na música, predo-
dutivo, mais sábio, mais profundo. Assim, toda necessidade, mina a dissonância, o desequilíbrio dos ritmos e dos tons. No
desequilíbrio, esforço e criação se relacionam estreitamente; campo artístico, isso tudo exprime o atual ciclo biológico, em
desse modo, a luta e a dor constituem instrumentos de evolu- que, na manifestação viva de destrucionismo, de decadência
ção, isto é, de construção de equilíbrio, de ordem, de harmo- moral, de queda evolutiva no materialismo e de espiritual estri-
nia. Trata-se de cadeia de momentos necessariamente ligados dor humano, nos afastamos dos superiores ritmos divinos. É re-
em série, até que atinjam seu objetivo. O estado de determi- volução, ruína, destruição, o que, não obstante, também pode
nismo é, portanto, apenas a parte conclusiva, o ponto de che- transformar-se em reconstrução, com elementos novos e, por
gada em que o livre arbítrio, cristalizando-se nas qualidades isso, de bases mais largas e objetivas, dirigida para fins mais
adquiridas, deixa de oscilar e, em consequência, perde, em da- elevados. É, sem dúvida, luta, esforço, desordem; mas represen-
do campo, a sua função e razão de existir. Então, as qualidades ta no caos abundância de novas relações, de que surgem novas
estão bem caracterizadas e fixadas e já funcionam por simples possibilidades. Essa a característica de nossa época, ao mesmo
automatismo, como se fossem instintos. tempo infernal, perigosa e notável.
Concebido dessa maneira, o funcionamento do universo ad- Até há poucos anos a música constituía processo harmôni-
quire significado musical. Quanto mais profundamente obser- co, em que o choque sonoro tendia a composição amigável, a
vamos, mais evidente nos parece a sinfonia dos ritmos. Pode- solução pacífica. A música moderna, expressionista, tende, pelo
mos exprimi-la de muitas formas: geométrica, matemática, ar- contrário, a estado em que predominam a inimizade e a luta.
tística, poética, musical, filosófica, heroica, moral. Mas é sem- Modernamente, a fadiga de nos colocarmos acima do acordo
pre a mesma ordem que, no tempo, se revela como ritmo e, no fundamental, resolutivo, pacífico, calmo, não é mais descontí-
espaço, como simetria; ordem que, dinamicamente, é equilí- nua, entremeada de seguidas pausas para descanso; é, isso sim,
brio; moralmente, justiça; artisticamente, beleza; humanamente, desesperado impulso que não consegue mais resolver-se e
bondade. Arquitetura, poesia, música, a própria bondade, tudo acalmar-se num acordo. A dissonância se transforma de exce-
são ritmos. Há pensamentos musicais; sistemas morais que, ção em regra. Os choques continuam, acumulam-se, perse-
como o evangelho, sintonizam com os mais sublimes ritmos do guem-se numa luta sem tréguas. Daí nasce um estado de tensão
universo, isto é, estão mais próximos da ordem divina. A pala- permanente, de irredutível hostilidade, que, se de um lado de-
vra de Cristo está saturada de vibrações construtivas e vitais. O senvolve ao máximo o dinamismo das correntes sonoras, por
gênio, porque sabe encontrar relações novas entre as coisas, re- outro lado reduz-se a simples paroxismo de instabilidade tonal,
vela-nos novas harmonias e nos aproxima do pensamento de que dá o sentido revolucionário da desordem caótica. Isso está
Deus. A música nos dá alegria, porque nos patenteia a ordem agravado pela instabilidade rítmica (mudança de ritmo), hoje
que constitui a própria essência da divindade e condiciona a fe- muito em moda. Existe aí, sem dúvida, abundância de elemen-
licidade suprema. Tudo quanto é harmônico nos eleva, melhora, tos novos, mas ainda no informe eruptivo, no estado caótico de
dá-nos a paz, que consiste no equilíbrio. Há tanto ritmo num te- desequilíbrio, isto é, na posição mais afastada daquela harmo-
orema de geometria como no cálculo matemático, nos proces- nização que constitui elemento evolutivo e representa o grau de
sos dinâmicos e nos químicos, nas leis físicas e nas leis morais, evolução artística. Verificamos, pois, a existência de duas ten-
em astronomia como em estética e em filosofia, tanto num raci- dências contrárias (outra manifestação da lei do dualismo), luta
ocínio como num destino. No universo, um tipo fundamental de acerada e mais viva; e a luta, sem dúvida, serve de base à cria-
vibração ressoa e multiplica-se em mil tonalidades, alturas e ção. Verificamos inegável introdução de fatores novos na mo-
dimensões; os esquemas basilares são simples e, repetindo-se, derna arte musical, em que surgem novos recursos e se mani-
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 93
festa ampliação de bases construtivas, e isso constitui benefício, pode negar que, assim como o mundo exterior, o mundo interi-
germe de progresso. Mas, aí, verificamos também existência de or seja imenso, infinito abismo. Os dois impulsos se chocam e
estado de desequilíbrio, que, se pode ser dinamizante e, por is- se combinam, e daí nasce a vida. Luta criadora. O universo ir-
so, genético, é desordem também, e desordem significa involu- radia e exerce pressão para, através dos sentidos, penetrar no
ção, ao passo que ordem quer dizer evolução. Eis a grande eu. O eu recebe, experimenta, adapta-se, assimila; irradia, reage
questão: saberemos dominar essa desordem, transformando-a para, por sua vez, penetrar e, assim, dominar e plasmar o ambi-
em ordem? Esse dinamismo terminará em construção ou em ente à sua imagem e semelhança. Dupla irradiação, portanto, do
destruição? O gênio humano terá o poder de torná-lo genético, mundo exterior para o interior e ao contrário. A lei de dualida-
disciplinando-o em construções superiores? Saberá reequilibrar de, a coexistência dos dois mundos e suas atividades, esse du-
esse ameaçador desequilíbrio no plano de harmonias mais su- plo sentido de irradiação, nos faz pensar na existência de partes
blimes e complexas? Ou será que a corrente modernista nos inversas e complementares nas vias sensoriais já referidas, de
prenderá os pulsos e arruinará completamente a arte? canais de saída que correspondam e fiquem em sentido contrá-
Hoje, sem dúvida, vivemos como se fôssemos vulcão ativo, rio aos dos canais de entrada; faz-nos pensar, ainda, na possibi-
e a música atual constitui apenas um momento da psicologia lidade de inversão das vias sensórias, em que estas passam a
de nossa época, que, em qualquer ramo de atividade, se apre- percorrer o caminho sensorial também do interior para o exteri-
senta como desesperada tentativa para encontrar valores novos. or. Até agora, vimos o movimento dessas irradiações apenas em
Atualmente, ao invés de próximos, estamos muito afastados da uma direção: do exterior para o interior. É lógico que, por ne-
sistematização e da alegria da harmonização; estamos, hoje, cessidade de equilíbrio, deva também existir o movimento em
em pleno período de retrocesso e destruição, que nos lembra o sentido contrário. Paralelamente, a natureza dos canais, se é
descrito no Cap. XXII – “Tempestade”, deste volume. Esse es- material na entrada, deve assumir forma espiritual na saída. A
tilo musical pode ser tolerado apenas como fase preparatória e sinfonia dos ritmos complica-se. Examinemos o problema ago-
de transição. O futuro da música não reside na desarmonia, ra. Veremos, então, novos aspectos do funcionamento da lei de
mas, ao contrário, na complexidade e profundeza. Se não vol- dualidade. Isso diz respeito inclusive à arte, que, através da ins-
tarmos a percorrer esse caminho, o único aberto à evolução piração, vai até às fontes íntimas para vivificar-se.
musical, também do ponto de vista musical afundaremos na Beethoven era completamente surdo quando escreveu a
barbárie. Essa liberdade exagerada de ritmos significa ruína da Nona Sinfonia. Morreu com 57 anos (1827) e, com 29, come-
ordem, decadência e destruição. Depois dos grandes clássicos çou a ficar surdo. No entanto a impossibilidade de ouvir não
não houve mais boa música. Não temos, frequentemente, senão interrompeu a produção genial; parece mesmo haver coopera-
cerebralismo, elucubração, artifício intelectual sem inspiração do para sublimá-la, tanto assim que seus trabalhos vão mos-
alguma, virtuosismo técnico, isto é, paródias, sucedâneos, de- trando-se mais inspirados à proporção que a surdez aumenta.
generação. Talvez estejamos agora na parte mais baixa da on- Contudo, tinha ele de ouvi-las. Se não, como poderia concebê-
da, na noite escura que precede a aurora. Assim cremos e espe- las, avaliá-las, trabalhá-las? Beethoven as ouvia, embora sim-
ramos. Ouvido acostumado às velhas arquiteturas musicais, ples sensações, com a mesma nitidez e exatidão que a percep-
que, embora mais simples, alcançaram alto grau de equilíbrio, ção exterior permite. Sua percepção era, pois, diferente, mas
suporta com dificuldade, sem dúvida, essa espasmódica e caó- de igual poder, canalizada por outras vias, as vias interiores. A
tica mudança de fase dos ritmos e o choque dessa dolorosa ru- atividade do musicista, que era a maior possível exatamente no
ína estética. E o espírito, para aderir e aceitar, espera que tudo campo de ação do órgão deficiente, mostra-se independente
se reordene nos novos equilíbrios. Não somente a música, mas dele. A concepção, é claro, vinha inspirada de dentro de sua
a arte em geral, corre perigo. E, infelizmente, isso não aconte- personalidade. Mas como que essa concepção se transformava
ce apenas com a arte. Esses desequilíbrios significam a interfe- em percepção e, através da sensação, era conseguido o contro-
rência de novas forças; mas, se não soubermos dominá-las, ar- le? Esta condição nos faz pensar no caso de um homem que,
riscamo-nos ao esfacelamento completo. Saberemos, sob o para degustar qualquer prato, apenas se limitava a ler um trata-
fardo dessa nova riqueza, subir em direção ao objetivo final da do de culinária. Podem as vibrações que excitam os órgãos dos
vida e da arte, que é a harmonização? As revoluções devem sentidos provirem de dentro, e não de fora? Parece não só que
saber resolver-se em novos ordenamentos; e exatamente para os próprios sentidos podem ser impressionados por dois lados
conquistá-los é que elas surgem. Apenas isso pode justificá- (dualismo), isto é, por vibrações vindas de fora e por vibrações
las. Tudo quanto hoje fazemos está condicionado, depende da oriundas de dentro, mas também que o fato do órgão externo
ordem conquistar esse domínio sobre a desordem e a violência deixar de funcionar não isola a consciência do indivíduo, e
revolucionária se enquadrar, da tentativa obter resultado, da sim, pelo contrário, o estimula a compensar-se, buscando ou-
inspiração retornar e o espírito nos sintonizar de novo com os tros meios de comunicação. Além disso, parece que, nessa tro-
grandes ritmos da vida. Nossos antepassados, mais simples do ca, o sentido ganha em refinamento tudo quanto perde em ob-
que nós, haviam-no alcançado; somos mais ricos e complexos, jetivismo e materialidade, fazendo-nos pensar que as vibrações
mas devemos saber ganhar a luta e realizar o imenso trabalho podem usar vias imateriais de comunicação. Embora continu-
de progredir e consegui-lo também. em sendo do tipo correspondente aos vários sentidos, elas as-
Até mesmo o problema da arte se nos apresentou sob a for- sumem forma bem mais sutil, espiritualizando-se, ao mesmo
ma de antagonismo de forças em que atua o universal dualismo tempo em que a produção do gênio se sublima e espiritualiza.
da Lei. Equilíbrio e desequilíbrio, luta, harmonização, presu- Parece também que a compressão ocasionada pelo fechamento
mem sempre esse dualismo, binômio de forças, princípio que das janelas dos sentidos, abertas do lado físico para fora, au-
está sempre nas raízes da gênese e da evolução. Para onde quer menta correspondente capacidade receptiva, em razão da aber-
que nos voltemos, sempre os dois termos opostos, que se atra- tura de janelas sensórias do lado psíquico para dentro. Já ob-
em e se repelem, que se amam e se odeiam. Duas vidas, a inte- servamos esse fenômeno de compensação na dor como instru-
rior e a exterior; dois tipos humanos, o involuído e o evoluído; mento de evolução, no enfraquecimento físico agindo como
dois ritmos, um longo e lento, outro curto e rápido. No começo elemento de sensibilização, compensação, aliás, que facilmente
deste capítulo, falamos ligeiramente das diferentes vias sensori- se observa no desenvolvimento orgânico e psíquico (o braço ou
ais por onde os ritmos do ambiente penetram na personalidade a perna remanescentes são sempre mais fortes, e os infelizes
humana. Mais uma vez, dois termos, dois mundos: o interior e quase sempre mais inteligentes). A natureza, de estrutura bipo-
o exterior, o eu e o universo. Qual dos dois o maior? Ninguém lar equilibrada, consegue desse modo compensar-se, remedian-
94 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
do as suas imperfeições com o reforço obtido no lado corres- fragma que está suspenso entre os dois mundos, dá-se nas vi-
pondente ao de sua debilidade. A vida, quando se lhe fecham as brações a transformação própria da passagem de um mundo
portas da expansão, retrai-se, volta-se sobre si mesma e, ao in- material para um mundo imaterial. Depois que o cérebro é ul-
vés de crescer horizontalmente, cresce em profundidade, em trapassado, a telegrafia-com-fio se transforma em telegrafia-
outra direção e segundo outra dimensão. Realiza, desse modo, sem-fio; a vibração, como acontece na transmissão radiofônica,
outros experimentos, adquire qualidades diferentes; a duplici- liberta-se do suporte de seu condutor e, apoiando-se apenas no
dade de sua estrutura lhe permite afirmar-se igualmente, reali- éter, torna-se livre, radiante. Assim o cérebro se relaciona com
zando-se de acordo com desenvolvimento diferente. duas formas de vida, a material e a espiritual; a primeira o atin-
Nosso corpo, isto é, nossa parte visível, é apenas a metade ge através de vibrações canalizadas pela rede do sistema nervo-
do organismo humano. Como decorrência da aplicação da lei so; com a segunda ele se comunica por meio de radiações livres
de dualidade e dos princípios acima expostos, concluímos que a no espaço. O cérebro não é, portanto, apenas a central nervosa
outra metade deve possuir características inversas e comple- em que se coletam, em síntese, as correntes elétricas do orga-
mentares. Uma das metades é matéria; a outra, espírito. Este nismo físico, mas é também estação transmissora, parecida com
organismo se comunica com dois mundos e pode perceber suas estação de rádio ou de televisão. Eis como o cérebro se liga ao
vibrações opostas, recebendo dos dois lados e por duas vias de termo final de todo o percurso: o espírito. Só agora está com-
percepção: a fisiológica direta e a espiritual inversa. Trata-se de pleto o caminho que vai do objeto exterior ao eu cognoscente.
duas vidas que disputam entre si o predomínio sobre a persona- Estes são os vários pontos do trajeto completo: objeto exterior,
lidade. Porque são complementares, se completam; mas, sendo cristalino, retina, nervo óptico, cérebro, espírito. À proporção
contrárias, reciprocamente se excluem. Assim, quando a vida que progride, a corrente dinâmica sofre várias transformações
física sensória adormece no sono, no transe, ou se debilita em até atingir o cérebro e, para poder continuar progredindo, já
razão de moléstia ou velhice, como já observamos, então a vida agora no reino espiritual, desmaterializa-se e adquire forma ra-
psíquica pode revelar-se e surgir com mais nitidez na tela da diante, isto é, a forma característica do espírito, pois, para que
consciência. Observemos o duplo funcionamento dos sentidos. possamos comunicar-nos com os outros, temos de falar a mes-
Os dois mundos vibram e irradiam nas duas direções opostas ma linguagem. Qualquer um pode facilmente imaginar e fazer o
em que a vida se desenrola. Examinemos em particular a per- gráfico representativo desse percurso.
cepção visual, que é análoga à acústica, olfativa, táctil e assim Assim é que, por esse caminho e através dessas transfor-
por diante. É bem conhecido o processo óptico por meio do mações, a percepção sensória pode chegar ao espírito. A ver-
qual a imagem se reproduz na retina, mas invertida, e depois é dadeira visão não se realiza, portanto, no cérebro, mero dia-
transmitida ao cérebro pelo nervo óptico e, finalmente, percebi- fragma intermediário e transformador de energia, mas acima
da na posição normal. Onde o mundo físico termina, o mundo dele, do outro lado do binômio vital. De fato, a síntese óptica
psíquico principia. O órgão central é o cérebro, suspenso entre final é muito mais do que simples registro cerebral. Enquanto
dois mundos, como diafragma sensível capaz de registrar as vi- no particular existe a forma receptiva da vida, no outro lado,
brações provenientes de um e de outro. Esse órgão, porém, não além da matéria, do organismo físico e dos seus vários órgãos,
basta para realizar a síntese visual. Mas, afinal, com que é que inclusive o cérebro, o estágio final é processo sintético, unitá-
vemos? Não vemos com os olhos, pois percebemos já na posi- rio, é juízo, confronto, coordenação e reação. O cérebro apenas
ção normal a imagem que se forma invertida na retina. Não registra e, desempenhando o papel de secretário ou escrivão, se
vemos apenas com o cérebro, porque, se causarmos alteração encarrega da conservação mnemônica. Somente no espírito, a
no nervo óptico, não percebemos coisa alguma, embora a ima- que o cérebro é órgão subordinado, realiza-se esse trabalho
gem continue a formar-se na retina do olho intacto. E, se os ór- complexíssimo e laborioso, onde se movem as forças imateri-
gãos permanecerem intactos e o caminho estiver livre até ao cé- ais, inteligentes e conscientes, que tudo sabem, querem e diri-
rebro, isso basta para que o fenômeno da visão se realize? Mas, gem. O cérebro está para o espírito assim como o olho está pa-
se o espírito está distraído ou preocupado, com a atenção volta- ra o cérebro. Só o espírito diz: Eu. O cérebro não pode dizê-lo,
da para outro objeto, e é colhido de surpresa, ou se não se inte- porque não passa de um órgão. A confluência e a combinação
ressa em ver ou não quer ver, ou então se a vibração, por ser de suas correntes dinâmicas se dá, certamente, através dos
habitual, não lhe atrai mais a atenção, nesses casos a visão não condutores elétricos do organismo, concentrando-se na perife-
se verifica. No entanto o fenômeno óptico é mecânico, consis- ria capilar, em contato com as células. Mas a síntese completa
tindo na transmissão de vibrações que chegam automaticamente depende do ego, e não do órgão. Há muitos órgãos e funções,
ao cérebro, quando encontram caminho livre. Portanto, naque- porém o eu é único; não é instrumento guiado, mas centro que
las condições, a vibração atingiu o cérebro e foi registrada, mas guia. Apenas ele é consciente; todo o trajeto precedente não
a visão não se realizou. Desse modo, quantos atos automáticos, passa de inconscientes movimentos automáticos. No espírito, a
secundários, continuamente escapam à nossa consciência! A vi- vibração, que se tornou radiante, atingiu o termo final, depois
são que o eu percebe e sente não se dá, então, no cérebro, mas de haver passado, para atingi-lo, por vários graus de transfor-
além do diafragma, bem mais longe, do outro lado da vida, no mação, através de vários órgãos especializados, de capacidades
lado imaterial, isto é, no espírito. É durante esse trajeto que de- e funções diferentes, tendo percorrido um caminho com dois
ve dar-se alguma transformação nas vibrações; dessa transfor- trechos, onde o primeiro situa-se num mundo e o segundo em
mação derivaria o fato, doutro modo inexplicável, de que a outro, ainda que os órgãos se relacionem estreitamente e as fa-
imagem readquire a posição normal. A ciência não vai além das ses, sendo contíguas e sucessivas, formem um caminho de-
células nervosas cerebrais; mas, além do órgão de recepção sembaraçado e contínuo de um extremo a outro. Com isso, a
(olho), de transmissão (nervo óptico) e registro (cérebro), o ca- primeira metade do trajeto foi percorrida, e o período de ida
minho deve continuar até seu objetivo final: a sensação. Só o está completo e acabado. Nada mais nos resta senão examinar
espírito sente. Através de todos esses transformadores interme- a segunda metade do circuito, isto é, o trecho de volta, a parte
diários, a vibração é filtrada, destilada, cada vez mais desmate- inversa e complementar em que a primeira se completa e cuja
rializada, porém não para. Quem a apreende e a faz sua, no es- existência é indicada e imposta pela universal lei de dualidade.
pírito, é a consciência. Porém, quando se chega ao cérebro, o Portanto observemos agora como a corrente se move em senti-
organismo físico termina; de que modo então se pode, partindo do contrário, desse modo completando o ciclo.
daí, prosseguir a caminhada até ao espírito? Como e através de As vibrações não são geradas somente pelo mundo exteri-
que vias pode estabelecer-se comunicação? Chegadas ao dia- or, mas também pelo mundo interior. O mundo imponderável
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 95
da personalidade é muito mais vasto e rico que o dos fenôme- concreta, enquadrada nas dimensões do espaço e do tempo, ca-
nos tangíveis. Não o vemos, muito embora saibamos da sua nalizada e dirigida para vias cada vez mais centrais. De outro
existência. Representamo-lo através de imagens, pelas quais lado, o espírito sintetiza e unifica no eu todas as sensações; os
ele nos é revelado no campo das sensações, mantendo-nos uni- canais cedem lugar às radiações livres, sem condutores; a cap-
dos em torno do mesmo modo de sentir. Se essas imagens fos- tação torna-se sintética, geral, imaterial, em dimensões supe-
sem vazias de significado, não subsistiriam; se subsistem, é respaciais e supertemporais, partindo daquilo que, para a re-
porque são animadas por uma realidade interior per se stante15, cepção sensória analítica do plano material, é o resultado final
que de algum modo percebemos e instintivamente aceitamos. da elaboração e destilação ao longo do trajeto. A vibração po-
Ouvimos dentro de nós a voz do imponderável e a exprimimos de percorrer a estrada nos dois sentidos, com resultados diame-
por meio de símbolos; através deles, manifestamos nossa sen- tralmente opostos. Naturalmente, percorre a via fisiológica
sação e, assim, entendemo-nos uns aos outros. Esses símbolos comum, que transmite ao espírito os estímulos do ambiente. A
continuam vivendo entre nós e evoluem conosco. Conhecemo- outra via é menos conhecida, menos comum, mas existe.
los e somos capazes de reconhecê-los. Por detrás deles palpita Quando a vibração percorre o caminho em sentido inverso,
a realidade que sentimos e eles nos manifestam. Não importa transmite ao ambiente os estímulos do espírito, que nascem de
que essa realidade se situe no imponderável. Continua sendo movimentos da alma, muito bem conhecidos por todos nós,
realidade assim mesmo. Os símbolos desempenham precisa- pois, embora não possamos vê-los, sentimo-los profundamen-
mente a função de materializá-la no campo do sensível, isto é, te. Mesmo sendo excepcional a inversão do circuito sensório,
de torná-la capaz de nos impressionar os sentidos através da não serão as nossas manifestações vitais todas provenientes do
via normal de percepção sensória de que já falamos. As ima- interior? E em que consiste nossa vida senão na contínua mani-
gens não constituem, portanto, simples fantasia e forma inútil, festação de nosso espírito? Ao lado de cada uma de nossas ati-
mas têm alma, e é ela que nos fala; são projeções tiradas do vidades exteriores existe a correspondente atividade interior,
mundo espiritual que há sobre o nosso, formas materiais que que a dirige e guia, condicionando-lhe de modo absoluto a ati-
revestem as figuras imateriais. Trata-se de percepções que se- vidade. Assim, a cada ação fora corresponde um efeito dentro;
guem caminho inverso da normal e são opostas a ela, derivan- o movimento exterior penetra no interior, imprimindo-lhe e
do daquele mundo interior que ninguém pode ver com os olhos gravando nele as suas características. Da mesma forma, o mo-
da carne, mas que é visto perfeitamente pelos do espírito. vimento interno se transmite para o lado externo, manifestan-
Como é que podem, no entanto, a vibração e a sensação do-se em infinidade de expressões.
descer do mundo espiritual até este mundo material? Que cami- Voltemos, porém, ao caso particular do fenômeno óptico e
nhos percorrem para atingir nossos órgãos sensórios? A posição observemos como ele funciona em sentido inverso. Agora, a
inversa que os dois mundos guardam entre si contém implici- vibração originária constitui um estado do espírito, um fenô-
tamente e nos mostra que, ao lado de um caminho, existe outro meno imponderável. O primeiro trecho do percurso não se faz
na direção contrária. Trata-se da estrada de volta, que constitui através de condutores, mas sim por via radiante. E é desse mo-
a indispensável segunda metade do circuito completo. Tivemos do que são atingidas as células cerebrais, que nada mais nada
a ocasião de examinar o percurso que vai do exterior para o in- menos são do que aparelhos receptores de radiação. Ao primei-
terior. Consideremos agora o percurso contrário, isto é, o que ro contato com a realidade concreta, após serem captadas, es-
caminha de dentro para fora. Neste caso, o trajeto por nós já tas radiações transformam-se e, revestindo-se de imagens, as-
considerado em sua posição normal se inverte e passa a percor- sumem o aspecto de representação no mundo material. O abs-
rer em sentido contrário, nesta ordem, os seguintes pontos: es- trato concretiza-se, o genérico especifica-se, reduzindo-se a
pírito, cérebro, nervo óptico, retina. Aí, a fonte da corrente di- um de seus casos particulares, pois, enquanto o período inver-
nâmica não se situa mais no ambiente material externo, mas so representa processo de espiritualização, este representa pro-
sim no ambiente espiritual interno; não emana do objeto, mas cesso de materialização. Prosseguindo do cérebro para a retina,
do sujeito. O processo se inverte totalmente, e as transforma- a vibração define-se e concretiza-se ainda mais, até atingir a
ções não se realizam no sentido da desmaterialização, e sim da sua forma óptica, que corresponde à forma física. Chega-se as-
materialização. A corrente que provém do espírito é, em princí- sim à formação de uma imagem verdadeira na retina. O olho
pio, radiante, e o cérebro não é mais aparelho transmissor, mas realmente registra a projeção, que não provém do exterior, mas
apenas receptor, exatamente como se fosse um aparelho de rá- sim do interior, embora com idênticos resultados visuais. Ten-
dio ou de televisão, que capta essa energia radiante para que, do a corrente percorrido todo o percurso, de um polo ao outro,
em seguida, percorrendo a rede nervosa, possa, através do ner- o processo está completo, independente da direção que tenha
vo óptico, atingir a retina. Desse modo, a imagem, passando se desenvolvido, e o sujeito sente sensação semelhante à nor-
através de vários órgãos transformadores, pode chegar ao mun- mal, de modo que ele acredita estar vendo no espaço, sob for-
do material e assumir-lhe as características. Portanto os dois ma concreta e vinda do ambiente exterior, aquilo que não pas-
mundos, o espiritual e o material, o imponderável e o tangível, sa da projeção materializada de uma forma imaterial, impossí-
se comunicam. Ao primeiro chega, como representação imate- vel de encontrar naquele ambiente. Tudo isso é tido como fruto
rial, o equivalente da forma material; ao segundo chega, como de alucinação, algo de irreal, produto de estados patológicos;
representação material, o equivalente da forma imaterial. As- no entanto isto em nada reduz a normalidade do fenômeno, em
sim, através de uma série de trocas, o conteúdo de cada um dos sua qualidade de fato natural, nem diminui a veracidade da
mundos se derrama no outro, e em cada um, embora transfor- sensação, que, em lugar de constituir expressão do mundo ex-
mado, encontramos sempre o outro. terior, como acontece nos casos mais comuns, é tão-somente
A estrutura desses dois mundos contíguos e comunicantes expressão do mundo interior. Assim, nas visões, a imagem efe-
não é idêntica. De um lado, temos um meio sensório-analítico; tivamente se forma na retina (como no caso de Bernadette de
de outro, uma forma sintético-unitária. De um lado, o cérebro Lourdes), do mesmo modo que, em relação às vozes (caso, por
se ramifica por todo o corpo, através da rede nervosa, como se exemplo, de Joana D'Arc), a vibração acústica se forma no ou-
o quisesse polvilhar de células nervosas sensitivas para captar vido, dando-se a mesma coisa quanto aos outros sentidos. A
todas as vibrações do ambiente; os canais das vias sensoriais única diferença consiste em que não vem de fora a excitação,
são especializados; a captação é analítica, particular, definida, mas de dentro, o que, aliás, pode-se compreender facilmente,
porque ambos os mundos estão repletos de energias em plena
15
Sustenta-se por si mesma. (N. da E.) atividade. Uma vez que o mundo interior não é, como o mundo
96 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
exterior, igual para todos, pois são muitas as capacidades espi- mas sim duas: a normal vida concreta da matéria e a inversa vi-
rituais e diferentes os graus evolutivos, explica-se desse modo da imponderável do espírito. Esse é outro mundo, imenso como
por que a sensação, seja ela visual, auditiva etc., é absoluta- o mundo físico, no entanto muita gente não o vê, não o com-
mente pessoal e incomunicável nesses casos, só podendo ser preende, não lhe admite a existência. É realidade negada por
captada apenas pelo sujeito que se encontre em condições ade- muitos. Por aí se vê o abismo de incompreensão que divide os
quadas. Desse fato deriva a desconfiança que ele provoca e a seres diversamente desenvolvidos. Muitas das coisas aqui nar-
pecha de patológico que gratuitamente lhe atiram. radas se referem exatamente a essa vida, inacessível para tan-
Tudo isso pode completar as observações do volume As tos; dos conceitos aqui registrados, muitos baixaram, nas asas
Noúres, estudo crítico da técnica receptiva com que se escre- da inspiração, do mundo íntimo do espírito, isto é, graças à in-
veu A Grande Síntese. Agora podemos explicar melhor o fe- versão do sentido normal da corrente vibratória. A “Visão”,
nômeno da inspiração. Trata-se da captação de noúres ou cor- narrada em dois dos capítulos precedentes deste volume, for-
rentes de pensamento que emanam de centros espirituais e fi- mou-se opticamente na retina, mas de olhos fechados, graças à
cam vibrando no espaço. Ainda neste caso, o fenômeno se dá projeção interior, com a mesma sensação causada pela visão
por via radiante, porém o receptor não é mais o cérebro, e sim óptica normal. Estas páginas constituem viva aplicação dos
o espírito do indivíduo, que, exatamente para pôr-se em condi- princípios já expostos; são estas afirmações nada mais nada
ções de captar essas correntes, deve antes de mais nada colo- menos que resultado experimental.
car-se em estado de vibração harmônica ou sintonização. O Cada uma das duas vidas, consideradas de per si, representa
mesmo fenômeno pode dar-se entre os espíritos de dois ou a metade da dupla vida total. A verdadeira vida completa é bi-
mais homens quando, ao invés de se comunicarem pelo meio nômio bipolar e bifronte. Eis nova aplicação da universal lei de
mais demorado, projetando o pensamento através do cérebro, dualidade. E, até mesmo neste caso, o binômio se equilibra em
nervos, órgãos vocais, até à palavra, preferem transmitir e re- dois termos inversos e complementares. Observemos mais ain-
ceber diretamente por via radiante, muito mais rápida (telepa- da. Temos espírito e corpo, o imponderável e a matéria, consci-
tia). Portanto o impulso psíquico também pode partir de outro ência e fenômeno, o eu e o ambiente, a vida interior e a exteri-
eu, não importa se encarnado ou desencarnado. Nessa primeira or, contemplativa e ativa, a percepção espiritual e a percepção
fase, o pensamento está em estado radiante puro. Assim de- fisiológica, a impressão subjetiva proveniente do mundo interi-
terminada, por causas próprias ou alheias, a vibração que se or e a impressão objetiva proveniente do mundo exterior. O
faz sentir no espírito é transmitida, da maneira já explicada, primeiro termo é eletricamente positivo, o segundo, negativo; o
deste centro ao cérebro e aos outros órgãos sensitivos. Nem primeiro é em ondas curtas, o segundo, em ondas longas; um é
todas as percepções, sobretudo as de ordem superior, precisam de alta, o outro, de baixa frequência. Na passagem de um a ou-
percorrer, para serem sentidas, todo o período de retorno até tro extremo e ao contrário, deve dar-se mudança de sinal, de
chegar ao órgão sensório, pois, caso se mostrem suficientes, comprimento de onda e de frequência (muito mais notável que
podem deter-se nos primeiros estágios da transformação. a simples normalização das imagens ópticas). Ao nascer, en-
Quando se trata de conceitos, basta, para serem percebidos, tramos no segundo tipo de vida e dele saímos ao morrer. Ao
que o cérebro os capte, tornando-se desnecessário, especial- morrer, entramos no primeiro tipo de vida e dele saímos ao
mente quanto aos intelectuais, em absoluto, que entrem em jo- nascer. A própria lógica da arquitetura do universo impõe todos
go as vias sensoriais. Assim, na captação noúrica, o pensamen- esses equilíbrios. A verdadeira vida, completa e íntegra, oscila
to desce do mundo espiritual, onde se encontram tanto a fonte continuamente de um a outro de seus polos. Só assim, percor-
transmissora como o eu receptor, que primeiro funciona como rendo alternativamente uma e outra metade, o ser incompleto
antena e, depois, como transformador, isto é, canal em que se pode viver a vida integral. O tipo comum está na Terra, do lado
realiza o processo de materialização da ideia, processo diame- que parece vida, mas é morte, se visto do lado oposto. Para os
tralmente oposto ao normal, que consiste na espiritualização da do além, ele parece indivíduo entorpecido, à mercê da ilusão
percepção sensitiva. O primeiro desses fenômenos encontra- dos sentidos. O evoluído sabe viver não apenas a vida dos vi-
mo-lo na fé, na arte, na intuição, na inspiração, nas revelações. vos, mas também a vida dos mortos. De um lado é dia, do ou-
O cérebro, portanto, é órgão bipolar e diafragma central tro, noite; de um é lado, luz, do outro, trevas. Tudo, logicamen-
que, suspenso entre duas vidas, pode ser percutido pelas duas te, conforme a posição em que nos encontramos. Na Terra, para
opostas aparências da realidade. Observemos mais um pouco. os vivos, a via direta e normal da percepção é a fisiológica; a
De acordo com a capacidade do ser, as correntes podem mover- inversa e excepcional é a via espiritual. Para os mortos, ou me-
se numa ou noutra direção. Geralmente, por serem os indiví- lhor, para os vivos de além-túmulo, a via direta e normal da
duos mais desenvolvidos física do que espiritualmente, a vibra- percepção é a espiritual; a via inversa e excepcional é a via fisi-
ção vai da matéria ao espírito. Excepcionalmente, porém, as ológica. Entre as duas formas de sensibilidade existe a mesma
correntes podem movimentar-se ao ponto de provocar a proje- relação que entre vigília e sono; a primeira caracteriza-se por
ção sensorial em sentido inverso, quando o indivíduo é espiri- percepção límpida e exata; a segunda nos oferece percepção va-
tualmente forte e, em compensação, fisicamente fraco. Esse fa- ga e sonambúlica. Quando o estado ativo se manifesta num lado
to, aliás, já foi por nós devidamente frisado. Para inverter a di- da vida, as qualidades do lado oposto permanecem latentes, em
reção da corrente, torna-se necessário que também seja inversa estado de espera e repouso. Assim, o desenvolvimento se dá
a potência dos dois termos extremos. O gênio, o artista, o santo, graças a essa atividade alternada, em que cada uma funciona por
na qualidade de seres inspirados, são espiritualmente fortes e sua vez, enquanto a outra parte, a antítese do binômio, permane-
nisso superiores à média; pertencem ao tipo evoluído. Na vida ce à espera. Essa oscilação entre atividade e repouso, entre au-
vegetativa do involuído não é possível nem concebível essa re- sência e presença, entre vida e morte, constitui o ritmo do fenô-
versão de sensibilidade. O indivíduo normal geralmente conhe- meno vida, em relação a cujos ritmos se fazem as harmonias
ce e vive apenas a primeira metade do fenômeno, pois é limita- universais. O fenômeno vida não pode constituir exceção dessa
do, atrófico e, por isso, funciona muito mal no que diz respeito lei de simetria, de justiça compensadora. Em nosso universo, tal
ao espírito. Os tipos desenvolvidos, porém, conseguem perce- como está construído, não passa de absurda qualquer posição de
ber em ambas as direções e tomar consciência não só da vida desequilíbrio não compensada pelo correspondente impulso con-
material projetada no espírito, mas também da íntima vida espi- trário. Uma única exceção faria desabar todo o edifício.
ritual, percebida como projeção sensorial. Podem, desse modo, A percepção inversa, espiritual, pode dar-nos ideia do tipo
viver não apenas uma vida – aquela mais comum, vegetativa – de sensações dominantes no além-túmulo. Além disso, se apa-
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 97
recem também neste mundo e, portanto, existem como fato ob- descem na Terra e fator da fecundação espiritual da matéria. A
jetivo e experimental (clarividência, inspiração, visões, profe- tarefa do artista consiste em plasmar a forma que nos revele o
cia), é-nos lícito perguntar para que servem as qualidades su- imponderável, representando-o a nossos olhos; deve, pois, ins-
pernormais, tendo em vista as finalidades biológicas. E não nos pirar-se em valores eternos; se, no entanto, vai buscar inspira-
esqueçamos de que, na natureza, todas as coisas existentes, pelo ção em coisas rasteiras, representando os valores terrenos, o ar-
simples fato de existirem, devem ter objetivo determinado. Tra- tista trai e deixa de cumprir a própria missão. Dos equilíbrios
ta-se de qualidades que esperam sua vez de entrar em atividade; da vida participam também as atividades supranormais, que ou-
estão adormecidas agora, mas viverão na outra vida, que cha- tra coisa não representam senão legítima função biológica. Por
mamos morte. Por isso, enquanto a sensação terrena resulta da aí se vê que a sociedade humana precisa também do artista, do
vibração específica de uma série de células enfileiradas à ma- inspirado, do gênio, do santo; tipos que, embora quase sempre
neira de canais condutores, a sensação, no além-túmulo, é cau- incompreendidos e maltratados, são indispensáveis, a quem ca-
sada por um estado vibratório sutil (de ondas curtas e alta fre- be a tarefa de, enfrentando sozinho todo risco e canseira, mer-
quência), que, todavia, abrange todo ser imaterial. Teremos gulhar nos abismos do mistério, apoderar-se-lhe dos valores e
sensações de grande extensão e alcance, se comparadas com as trazê-los até ao plano humano, a fim de dinamizá-lo, orientá-lo
sensações limitadas mas precisas da vida terrena; no entanto, e dirigi-lo. A matéria não é autossuficiente, sabe viver e pro-
para nós que estamos chumbados às vias limitadas dos sentidos, gredir apenas se animada pela divina centelha do espírito.
pareceriam evanescentes, imateriais, indefinidas, flutuantes e Aqueles seres, ainda raros, representam na sociedade as células
sonambúlicas. A sensibilidade do desencarnado é difusa, não especializadas na função evolutiva. O involuído mostra-se in-
possui órgãos específicos aptos a captar vibrações particulares e capaz de progredir sozinho e fortalecer-se, por isso necessita
definidas; sensibilidade, para nós, estranha e fantástica, como dessas antenas reveladoras e desses canais dinâmicos. Os sábios
que adormecida, em transe; sensibilidade não de minúcias co- equilíbrios da Lei suprem-lhe essa incapacidade, fornecendo-
mo a nossa, mas de conjunto, mais sintética que analítica. As- lhe esses apoios. Ele, então, crê. Quem se revela incapaz de ver
sistimos neste caso a uma espécie de vaporização da sensibili- por si mesmo é constrangido a acreditar piamente em quem vê
dade (entendida de acordo com o sentido terreno), que, em por ele. Quem não sabe, à custa dos próprios meios, subir o ás-
compensação, aumenta de potência relativamente às qualidades pero caminho espiritual se vê obrigado a apoiar-se em quem o
de generalização e abstração, opostas àquelas qualidades mate- sabe e a depositar confiança em quem, tendo visto, dá testemu-
riais, junto às quais suas intensidades se debilitam. Assim, a nho de tudo quanto viu. Por isso quem sabe assume o compro-
verdadeira solução dos problemas reside mais na intuição do misso de testemunhar a verdade; quando se cala, trai sua função
que na razão; a centelha reveladora brilha no espírito intuitivo, biológica de célula evolutiva, mesmo que proclamar a verdade
e não no cérebro raciocinante, que não cria, mas apenas explica possa às vezes levar ao martírio. Na divisão do trabalho da vi-
e aplica. Da parte do corpo, temos o espaço e o tempo, ou seja, da, a parte que lhe toca é essa. Se não puder oferecer a todos a
o limite. Da parte do espírito, o infinito e a eternidade. A extin- prova direta do que, por transcender as capacidades e experiên-
ção dos limites implica presciência do futuro e ubiquidade. O cia comuns, se mostra inconcebível, sua vida de evoluído, ori-
eu espiritual vê longe, vê o conjunto, é bem orientado, sábio, entada de modo bem diverso, deve ser tão sublime, que consti-
olimpicamente calmo. O eu vegetativo está encerrado no espa- tua prova bastante. Desce, desse modo, até nós a evanescente
ço e no tempo, isto é, na prisão do limite, está sujeito a fatigan- realidade do espírito, que, embora constitua a própria alma de
te corrida para superá-lo, anseia pela evasão, é analítico e deso- nossa vida concreta, é por ela sempre negado; alcança-nos as-
rientado, vive e percebe apenas as particularidades, entre coisas sim esta estranha e longínqua realidade que gostaríamos de es-
insignificantes e transitórias. O mundo de além-túmulo é o dos quecer e, no entanto, estamos continuamente seguindo, invo-
valores morais; o mundo de aquém-túmulo é o dos valores ma- cando-a nas preces, representando-a nos ritos, materializando-a
teriais, da luta, do trabalho, da riqueza. Tudo isso, naturalmen- nas criações artísticas. A humanidade concorda de tal modo
te, presume adequado desenvolvimento até mesmo em relação com a existência do invisível, que, com fundamento nesse
ao lado espiritual da vida. Mas o senso moral emana do espíri- acordo, tornou-se possível o aparecimento das religiões. Se es-
to. Sem ele, não podemos alimentar a esperança de encontrar as tas existem e possuem tanta importância histórica e social,
qualidades que lhe são inerentes. Do lado de lá, atividade espe- exercendo poderosa influência na vida dos povos, conclui-se
culativa e abstrata; deste, atividade utilitária e concreta. Duas daí que elas satisfazem uma necessidade, um instinto e, por is-
formas de vida, duas linguagens completamente diferentes: so, desempenham uma função. De fato, na natureza, todo apelo
contemplação e ação. Todo mundo tem virtudes e qualidades que exige resposta possui significado bem determinado. Nor-
próprias e uma escala de valores exclusiva. No topo da escala malmente, somos incapazes de, sozinhos, chegar até ao espírito;
de valores terrestres coloca-se o interesse egoísta; no cume da não o vemos, embora nos chame e nos atraia. Ele nos foge e, no
escala de valores espirituais estão a bondade e a justiça. O entanto, está entre nós; comove-nos e nutre-nos. A realidade
evangelho e o reino dos céus pertencem ao mundo do lado de quotidiana, colocada bem no outro extremo da vida, nega-o,
lá; são luzes que dali promanam, revelando-os para nós. Cada embora lhe presuma a existência. Assim, através dessa via sen-
um de nós imagina o paraíso a seu modo e luta para conquistá- sorial inversa por nós examinada, o espírito desce até nós e se
lo, ou do lado de cá ou do lado de lá. Quem hoje goza na Terra comunica conosco. Eis o que aconteceu quando São Francisco
amanhã sofrerá na outra vida; quem hoje sofre no mundo, ama- escutou o crucifixo de São Damiano falar, Joana D'Arc ouviu as
nhã gozará no céu. O Sermão da Montanha, quando diz “Bem- vozes de Donremy, Teresa Neumann viu a paixão de Cristo, a
aventurados os que sofrem; amanhã gozarão”, exprime a lei de beata Ângela de Foligno escreveu movida por inspiração, São
dualismo e equilíbrio, mostrando uma das aplicações de sua ló- João viu na Ilha de Patmos o drama do Apocalipse. Tanto na
gica e justiça supremas. Quem executa bem suas tarefas neste visão como na audição supernormais, a percepção vem do
mundo, executa mal suas tarefas do lado de lá, e ao contrário. mundo interior, e não do mundo externo. Isso levou muita gen-
Os valores se invertem. Assim, a sublime loucura da pobreza se te a acreditar que se tratasse de tipos de alucinações: patológi-
explica como condição necessária de grande riqueza espiritual. cas apenas porque anormais, irreais simplesmente porque origi-
A qualidade do espírito é a sensibilidade, e todo espiritual é nadas de projeções subjetivas. No entanto a subjetividade cons-
um sensitivo. O evoluído é o tipo biológico que conhece tam- titui-lhe exatamente a característica lógica e natural. A sensação
bém essa outra vida e os seus valores. Tudo isso o involuído ig- se origina de vibração que não provém do mundo exterior, mas
nora. Aquele tipo biológico é o canal por onde estes valores sim do mundo interno; não deriva de fonte objetiva dotada de
98 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
existência própria, independente do sujeito, per se stante, em si ra não pode dar. A sensibilidade do evoluído fica na fronteira
mesma igual para todos, embora esta, mesmo neste caso, não de dois mundos, e sua psique se enriquece com as experiências
seja percebida do mesmo modo por todos. Assim se explica e nascidas de duas realidades diversas. Muitas vezes, o mundo in-
justifica a subjetividade da percepção, isto é, por que a luz e o terior lhe oferece muito mais do que o mundo externo. Mas, se-
som apenas possam ser percebidos pelo sujeito. Os homens ja quem for o indivíduo, por mais rudimentar e inerte que se
normais não percebem coisíssima alguma. Embora presentes, mostre seu espírito, a percepção interior sempre dá sinal de si,
não veem nem ouvem. Para que tivessem idêntica sensação, embora fraco; não existe quem, em algum momento da vida,
igual capacidade de ver e ouvir, deveriam encontrar-se nas não a tenha experimentado, mesmo embrionariamente. Quem
mesmas condições particulares e excepcionais do sujeito. Como viveu o fenômeno inspiração sabe como é lábil e pronto a eva-
isso se torna muito difícil, não lhes resta senão tentar reconstru- nescer-se qualquer conceito espiritual cuja radiação ainda não
ir, deduzindo-a do estado do sujeito, essa fugacíssima realidade haja alcançado o cérebro, e como, só então, o sujeito adquire
íntima. Quando a ciência estuda esses fenômenos, o germe da consciência desse conceito e se torna senhor dele. Sabe que a
incompreensão já se encontra nas suas premissas, isto é, na dú- solução dos problemas percorre vias absolutamente indepen-
vida, no seu método de investigação, que utiliza a experimenta- dentes dos processos lógicos e racionais, surgindo como um re-
ção objetiva, e na sua atitude sensória, cerebral e racional. Tan- lâmpago que, ao iluminar uma zona de pensamento, traz com-
to no êxtase como na prece, não nos armamos de instrumentos preensão instantânea. Poincaré, no seu livro Invention
de análise, de aparelhos de laboratório, para aumentar nossa ca- Mathématique, registra nestes termos o fato: “O que nos fere a
pacidade de observação, mas sim nos abandonamos inteiramen- atenção desde logo são as aparências de súbita iluminação, re-
te à visão introspectiva, fechando os olhos e concentrando-nos, veladoras de longo e prévio trabalho anterior”. O autor observa,
olhando para dentro de nós mesmos, do lado do espírito, isto é, à custa de experiência própria, que, nesses casos, o pensamento
exatamente na direção contrária à seguida pela ciência. O anta- se caracteriza pela rapidez, subtaneidade e certeza imediata.
gonismo entre ciência e fé (embora não se apoie em razão subs- Quando menos se espera, apresenta-se à nossa mente a solução
tancial, visto que ambos constituem apenas os dois extremos de problemas já de há muito propostos. Poderíamos citar inú-
opostos da verdade, dois aspectos da realidade) nasceu preci- meros trabalhadores intelectuais, como, por exemplo, Goethe,
samente do fato de que a fé diz respeito ao mundo interior, ao para quem a criação artística não passava de revelação. Isso nos
espírito, e a ciência se refere ao mundo exterior, à matéria. To- mostra como grande parte de nós mesmos opera fora do campo
das essas nossas afirmações parecem fantasia aos olhos da ci- da consciência lúcida, onde se manifestam apenas os resultados
ência justamente porque não resultam da observação, e sim da de numerosos processos de elaboração e maturação. Nesses ca-
introspecção, exames orientados para direções diametralmente sos, quão pouco influem nossa vontade e nosso esforço! Nossos
opostas. O positivismo científico constitui uma das metades da conceitos podem ficar adormecidos dentro de nós, bem recalca-
realidade completa. A outra metade é a realidade dos artistas, dos e invisíveis nos planos mais profundos da consciência. Não
poetas, santos, pensadores, místicos, inspirados e de todos os obstante, desenvolvem-se e se aperfeiçoam, como se, aí nessas
homens do espírito. profundidades, reencontrassem a ordem divina e se fortaleces-
sem graças à retomada de contato com a essência e as origens
XXVII. A PERSONALIDADE HUMANA (1a PARTE) das coisas. Mais cedo ou mais tarde, porém, uma vibração afim
os desperta e, por sintonia (as outras vibrações não o conse-
Agora que percorremos caminho tão comprido, podemos fi- guem), os faz reaparecerem, como um relâmpago, no campo da
nalmente enfrentar o problema da personalidade humana. Po- consciência. Percebe-se facilmente que se trata de criação pura
rém, antes de mais nada, observemos mais uma vez os proble- e simples; constitui conquista de espírito, que exulta por desse
mas precedentes. O estudo da lei de dualidade nos conduziu à modo aproximar-se de Deus. A meditação prepara o fenômeno,
visão da vida total e completa, unidade mais ampla que a unila- coloca a matéria-prima no abismo do espírito, propõe o pro-
teral vida física. Nada mais lógico que, como todas as individu- blema e lança a interrogação. Silêncio. A mente debate-se no
alidades, também essa unidade se divida em metades justapos- redemoinho do pensamento, não consegue escapar-lhe e logo se
tas. A vida completa, como um pêndulo a oscilar continuamen- cansa e esquece. Mas pôs em liberdade uma força que continua-
te, vai de um a outro de seus extremos e, percorrendo esse ca- rá agindo. Onde? Como? Esquecemo-la, chegamos quase a ig-
minho oscilante, evolui, não como vulgarmente se pensa, isto é, norá-la. E eis que de repente ressurge, transformada, fortaleci-
através de simples evolução biológica terrestre, mas sim através da, luminosa. E antes se nos mostrava obscura e cansada! A
de evolução dupla, inversa e complementar: a material terrena e alma, então, grita, como Arquimedes pelas ruas de Siracusa:
a espiritual ultraterrena, a do corpo e a do espírito. Uma vez “Eureka, eureka”. Quem viveu o fenômeno inspiração sabe que
que tudo é bipolar, é lógico que também o homem deva passar a concepção mais profunda corresponde a uma posição psiqui-
por duas experiências opostas: a da vida ativa e a da vida con- camente inerte, de desatenção passiva, de distração relativa ao
templativa. Para conceber a existência no além-túmulo, basta- assunto ou, mais exatamente, a um estado de inexistência do
nos imaginá-la como o inverso da existência terrena. Diz-se que pensamento ativo normal; sabe que, quanto mais rápido e per-
a psique contém apenas os resultados consequentes das experi- cuciente for do ponto de vista sensorial e quanto mais, em rela-
ências possíveis no ambiente que a cerca, isto é, não pode ser ção à vontade, tender para a pesquisa e a observação, tanto mais
impressionada senão por elementos oriundos do mundo exteri- esse pensamento serve de obstáculo à intuição. Sabe também,
or. Essa crença, se podemos explicá-la como resultante da con- por experiência, que toda atividade reflexa de atenção e contro-
cepção comum que se faz da vida, ou seja, da meia-vida, e não le, toda tentativa consciente no sentido de passar do estado pas-
da vida completa, todavia não corresponde à realidade. Quem sivo de contemplação ao estado ativo de apreensão (recordação,
possui a vida terrena e a vida espiritual sabe muito bem que a controle, raciocínio, escrita etc.), destrói a miragem e faz as
psique contém, em quantidade e variedade, muito mais do que ideias se desvanecerem.
o ambiente externo pode oferecer e que grande parte de nossos Isso tudo nos mostra uma grande verdade: a criação inspira-
conhecimentos pode, por vias interiores, provir de outras reali- da constitui fenômeno de colaboração entre o homem e Deus,
dades. Os sonhos, a intuição e a inspiração nos proporcionam portanto não resulta, como se poderia crer, apenas da vontade e
sensações e resultados diferentes dos sensoriais, filhos da expe- da ação, mas também do cumprimento da Lei, na obediência a
riência terrena, oferecem-nos concepções diversas das comuns Deus, a quem devemos entregar-nos sem reservas. Mostra-nos
concepções racionais, demonstrando conhecimentos que a Ter- também que a finalidade criadora se atinge ativa e passivamen-
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 99
te, não só se impondo às sábias forças vitais, mas também dei- ção da consciência. Membros não nos faltam; o que nos falta é
xando-se arrastar por elas. A sabedoria egípcia resumiu num cabeça. Os fatos acumularam-se demais; falta-lhes o senso uni-
aforisma esse conceito: “o arqueiro atira ao alvo esticando e tário da coordenação. Há cento e poucos anos, Augusto Comte
soltando o arco; o nadador chega à praia nadando e, ao mesmo escrevia em seu curso de Filosofia Positiva, anunciando o ad-
tempo, deixando-se levar pelas ondas”. Em consequência da lei vento do período atual: “O presente período é a idade da espe-
universal de dualidade, também esse fenômeno resulta do equi- cialização, graças à universal preponderância do particular so-
líbrio de duas partes inversas e complementares. Portanto, bre o espírito de conjunto”. A observação muito minuciosa nos
quando queremos, fazemos tudo quanto é necessário; somos, tornou míopes. G. B. Shaw chega a dizer: “Ninguém pode ser
porém, tão ignorantes, limitados e imperfeitos, que necessita- puro especialista sem ser perfeito idiota, no mais rigoroso sen-
mos de ser guiados por uma sabedoria que nos supra de nossa tido do termo”. Leonardi na introdução de seu livro A Unidade
ignorância e por uma força capaz de trabalhar onde a nossa não da Natureza (1933), acrescenta: “Seria necessária uma classe
o consiga mais. E além de nossas possibilidades está a Lei, ple- de cientistas que, sem entregar-se inteiramente à cultura especi-
na de natural sabedoria, saturando a corrente de tudo com o alizada, se ocupasse unicamente da determinação do espírito
pensamento de Deus. Portanto parte de nossa melhor atividade das diversas ciências, descobrindo-lhes o nexo, a fim de deter-
pode consistir em obedecer à vontade de Deus. Assim, depois minar-lhes os princípios comuns”. Henri Poincaré, no seu livro
de fazermos nossa parte do trabalho, nossa obrigação cessa e A Hipótese e A Ciência, afirma que “também as ciências, inclu-
convém abandonarmo-nos à Providência. Por isso o mundo sive as mais exatas, necessitam de certa inspiração e devem
consegue, em caótico estado de inconsciência, falar sobre as- seus progressos ao fatigante trabalho das faculdades subconsci-
suntos dos quais não entende absolutamente nada. Do ponto de entes”. Em seguida acrescenta: “É quase infinito o número de
vista racional, isso se chama inconsciência, pois o homem não fenômenos, por isso não podemos submetê-los todos a experi-
prepara e, além disso, ignora o seu futuro. Mas, do ponto de ências... A menos que se queira conseguir simples acumulação
vista da intuição, no instinto em que a Lei se faz ouvir, essa ati- de fatos... pois a experimentação nos dá apenas certo número de
tude representa, em essência, maravilhosa fé na sabedoria e na pontos isolados; torna-se necessário ligá-los”. Não basta, por-
proteção divina. E a vida, sabedora desta proteção, vai progre- tanto, que a observação registre e a experiência controle; não
dindo. Apenas desse modo se justifica o fato de querermos con- caminhamos de modo algum senão à luz da intuição. Esta, na-
tinuar a viver e a nos reproduzir para irmos ao encontro de futu- turalmente, deve submeter-se ao controle da experimentação,
ro pleno de espantosas incógnitas, embora saibamos que a vida que, sozinha, jamais abandona os atalhos experimentais para
nos oferece apenas canseira e dor. percorrer a estrada real do conhecimento. Ao lado das pequeni-
A intuição constitui fenômeno espiritual e, por isso, revela e nas experiências particulares, espalhadas pelo infinito mundo
cria. A razão, ao contrário, é função cerebral e portanto, mais fenomênico, é necessária também a experiência unitária do ego,
do que à concepção de grandes ideias reveladoras, orientadoras único a quem se torna possível aproximar-se do pensamento di-
e sintéticas, se destina às pequenas ideias da vida terrestre, al- vino. Para subirmos pelos caminhos do espírito, necessitamos
gumas aplicações práticas e analíticas. A ciência atual sofre de uma atitude de fé e de prece. Os caminhos da dúvida e do
desvantagem ao ignorar a vida do espírito e não dispensar-lhe controle sensório nos levam para o lado da matéria, para a peri-
cuidado algum. Esta ciência, porém, é filha da fase materialista feria, afastando-nos cada vez mais do centro. Os primitivos,
do pensamento humano – fase racional, em antítese com a fase que em lugar de senso de análise, como nós, possuíam senso de
intuitiva – e limita-se, em consequência, ao lado terrestre, práti- síntese, enfrentavam de modo diferente o mesmo enigma que
co, utilitário e material da vida. Pelo menos enquanto não for nos assoberba. Enquanto enfrentamos o mistério como a um
superada essa fase, somente o conhecimento correspondente a verdadeiro inimigo, armados de todos os recursos e todas as as-
esta condição será possível para a ciência moderna. Enquanto túcias, para derrotá-lo, dominá-lo e submetê-lo a nós, os antigos
isso, permanece na zona de experimentos e análises, afastada se aproximavam dele com palavras sagradas e solenes, que sus-
do campo de intuições e sínteses. Isso a torna incompleta, muti- citavam no coração dos homens o silêncio e a veneração. Hoje
lada pela falta de orientação e visão de conjunto necessárias pa- em dia, porém, não mais queremos tanto contemplar, compre-
ra dirigir as pesquisas e chegar a uma conclusão. De fato, a ci- ender e harmonizar-nos, e sim intervir na natureza, operar, in-
ência moderna tem finalidades utilitárias e não sabe pô-las de fluindo nos ritmos da vida para submetê-los ao nosso desejo, o
lado. Essa unilateralidade representa lacuna e defeito graves. É que mais parece um assalto à Divindade. E é isto que nossa
necessário também a síntese. Mas a síntese não se consegue se- época intenta. Semelhante experimentação se conduz por tenta-
não através da intuição, isto é, trabalhando no polo oposto ao tivas, com movimentos completamente desorientados, na com-
que a ciência trabalha: o polo espiritual. Ativa do lado material, pleta ignorância das consequências e reações que possam de-
a ciência acumula conhecimentos, porém não fecunda. Falta-lhe sencadear. Isso é extremamente perigoso em universo tão orgâ-
a centelha do espírito. É necessário, sem dúvida, acumular co- nico e interdependente, num campo de forças tão sensíveis e
nhecimentos materiais, mas é necessário também que, assim equilibradas. Ninguém desconhece a importância da contribui-
como acontece no binômio sexual, mais tarde o outro termo in- ção do método positivo experimental. Afirmamos, isso sim, a
tervenha e os fecunde. Se isso não se der, coisa alguma pode necessidade de completá-la com a contribuição oferecida pelo
nascer. Quem afirma ser verdadeiro apenas o que pode ser de- método intuitivo. Do mesmo modo que a vida, a ciência é bipo-
monstrado experimentalmente exprime apenas um lado da ver- lar; e, assim como estivemos à procura da vida total e completa,
dade; ignora a outra metade, que afirma serem fruto de inspira- procuramos agora a ciência completa nos seus dois ramos: ra-
ção, resultado mais do espírito do que da experiência e do labo- zão-análise e intuição-síntese. A intuição não é considerada
ratório, todas aquelas verdades fautoras do progresso científico. como caso excepcional e pouco apreciável, mas elevada a ver-
Como consequência das observações até aqui feitas, assinala- dadeiro sistema de pesquisa. Os resultados do objetivismo, que
mos, para o bem da ciência, o perigo que para ela constituí a vêm de baixo, deveriam fundir-se com os resultados do subjeti-
exasperação analítica de nossos dias, limitando-a a acumular vismo, vindos do alto. Deveriam dividir entre si as duas fases
experiências ao invés de se estender à descoberta de relações do trabalho: uma consistindo em encontrar, a outra em analisar
remotas; o perigo da especialização divergente devida ao pre- e demonstrar. Por que motivo, então, nos é tão difícil encontrar
domínio desse método analítico. Se não ocorrer mudança de di- na prática conceitos assim fáceis de compreender, tão lógicos e
reção, que inteligentemente nos impulsione para direção con- persuasivos? A razão é que a intuição apenas pode ser exercida
vergente e conclusiva, esse caminho nos conduzirá à pulveriza- por tipo biologicamente selecionado, isto é, pelo evoluído, mas
100 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
dele há poucos exemplares, e mesmo esses, cedo ou tarde, aca- plicam as comparações, a que tantas vezes recorremos, entre os
bam sendo eliminados pela sociedade na luta pela vida. fenômenos morais e físicos e a relação unitária dos campos
A sede dessas fontes particulares, a que agora voltamos a mais díspares. Tal como a personalidade humana, também o
atenção, se encontra na personalidade humana, imenso pro- universo é bipolar e construído segundo o mesmo princípio. A
blema cujo resumo procuraremos fazer nestas últimas páginas, unidade máxima, ao invés de constituir-se exceção, confirma a
a título de coroamento desta obra. Não poderíamos enfrentá-lo lei de dualidade. Essa bipolaridade é a estrutura interna do mo-
antes de propormos a solução de tantos outros problemas até nismo, que é dualístico. As observações que até agora fizemos
agora tratados, que lhe servem de orientação e dos quais o pro- e culminaram no estudo da personalidade humana, corroboram
blema da personalidade serve de fecho. Começamos a falar da esse conceito e resultam nesta conclusão. Os dois termos do bi-
personalidade nos fins do Capítulo XXVI. Mas era necessário nômio, embora extremos opostos e distintos do fenômeno, es-
percorrer outro caminho e antepor outras demonstrações para tão indissoluvelmente unidos, funcionam conjugados, condici-
que agora pudéssemos continuar elaborando a conclusão. Na onam-se reciprocamente, podem ser considerados como luz e
parte final daquele capítulo, definimos a lei de dualidade. Não sombra um do outro. São, portanto, distintos e distinguíveis:
pode fugir à lei universal o problema que agora nos preocupa. Criador e criação, alma e corpo. Princípios diferentes, porém,
Até mesmo essa individuação constitui, por isso, unidade du- pelo fato de serem complementares, são de funcionamento úni-
pla, isto é, formada de metades inversas e complementares, em co, indivisível, reciprocamente condicionado e, portanto, equi-
choque e em equilíbrio. Também nesse caso nasce desse cho- librado, de modo que a queda de um termo importa na do outro.
que aquela elaboração íntima que lhe constitui a evolução. No esquema de nosso universo, pelo menos tal qual se nos re-
Vimos as características dos dois termos da unidade e agora re- vela hoje, não tem sentido a sobrevivência de um termo só; o
tomamos o contato com eles. Portanto a personalidade humana equilíbrio de impulsos que o rege impõe não se possam os dois
é bipolar: espírito e matéria, alma e corpo – equilíbrio e dese- termos separar sem ruína total. Isso não é simples hipótese ou
quilíbrio. Do movimento das duas partes, que se entrechocam, teoria filosófica, mas verificação objetiva do estado atual das
nasce a elaboração evolutiva. As duas partes são amigas e ri- coisas. Portanto o eu central, no universo e na personalidade
vais, atraem-se e repelem-se, procuram-se e evitam-se; estão humana, está presente na intimidade até mesmo do último áto-
ligadas uma a outra para que assim possam viver, mas, tão lo- mo de seu organismo físico; é ao mesmo tempo, como já dis-
go uma delas se enfraqueça, a mais forte predomina e invade o semos, centro e periferia. Deus encontra-se no centro e em toda
campo da outra. Dissemos que as raízes do psiquismo mergu- parte. Como poderia, doutro modo, estar em toda parte? A cau-
lham profundamente nos meandros misteriosos da estrutura sa está no efeito e o efeito na causa. Transcendência e imanên-
orgânica. Acrescentamos agora que as causas e as razões da cia constituem os dois polos do mesmo binômio. O hipersensí-
estrutura orgânica estão sediadas na parte mais elevada do vel evoluído, que, como São Francisco, sente e, por isso, não
campo do psiquismo. O mistério do espírito estende-se até à pode negar essa presença de Deus em todas as coisas, não é
intimidade da célula, cuja complexa estrutura já estudamos. A panteísta. E não constitui panteísmo afirmar que o binômio
vida palpita num e noutro polo, desde a inconfundível indivi- Deus-universo, espírito-matéria, é inseparável e igualmente re-
dualidade sintética e unitária à extrema ramificação sensorial, lacionado em recíproco funcionamento; não o constitui, tam-
à infinita multiplicação celular, à analítica pulverização feno- bém, dizer que os dois termos, embora opostos, se acham tão
mênica ambiental. O eu é duplo, não fica no centro apenas, impregnados um do outro, que qualquer um deles, presente e
mas também na periferia; ora analítico, para captar e absorver ativo, penetra profundamente no campo do outro. Tal o signifi-
experiências, ora sintético, para resumi-las e destilar-lhes as cado em A Grande Síntese: “Monismo, ou seja, o conceito de
qualidades; no centro, permanece idêntico a si mesmo, como um Deus que, ao mesmo tempo, é a criação” (Cap. VI); “Em
eu inconfundível; na periferia, flutua em meio a experiências todas as suas manifestações, Deus é onipresente” (Cap. XI);
mutáveis. A corrente move-se em duplo sentido: o mundo inte- “Tudo deve reentrar na Divindade” (Cap. LXIII); “Não temais
rior nutre-se das vibrações provenientes do mundo exterior, diminuir-lhe a grandeza dizendo que Deus é também o universo
mas acaba dominando-o e plasmando-o à sua vontade. A ativi- físico” (idem). Esses conceitos vamos aprofundá-los e esclare-
dade celular repercute na atividade psíquica, e ao contrário. O cê-los mais no próximo volume Problemas do Futuro.
eu pode ser concebido como centro apenas enquanto pudermos Voltemos ao problema da personalidade humana. Já disse-
relacionar-lhe a ideia complementar de periferia. Assim, a per- mos que a evolução biológica resulta de evolução dupla e in-
sonalidade espiritual pode significar a síntese de inteligência versa: a material, terrena, e a espiritual, ultraterrena, realizando-
celulares, e o oceano de micro-organismos celulares, inclusive se através de duas experiências opostas, isto é, de vida ativa e
o átomo e seus elétrons, representará o veículo dessa persona- de vida contemplativa. Quem realiza esse trabalho? E como se
lidade, como corpo, roupagem da alma. O espírito, uma vez divide ele? O espírito, de sinal positivo, masculino, dinamiza e
que é o centro, pertence a todos os pontos da periferia; é o cen- dirige a evolução. Preside às experiências da vida. Emprega-as
tro e, ao mesmo tempo, a periferia. para elaborar-se e, por conseguinte, elaborar também o seu cor-
No homem se repete em pequena escala o plano construtivo po, aperfeiçoá-lo, desmaterializá-lo. O espírito evolui em dire-
do universo. O microcosmo é feito à imagem e semelhança do ção a planos cada vez mais elevados, arrastando atrás de si o
macrocosmo. A natureza obedece a esquemas únicos e simples, veículo material, quer dizer, utiliza corpos cada vez mais sutis,
repetidos em todos os estágios evolutivos e em todas as dimen- adaptados à sua fase evolutiva e às formas relativas de vida.
sões, presentes em todas as complexidades, de maneira que, pa- Compreende-se que, para poder fazer experiências, o espírito
ra dirigir e animar tudo, basta um único princípio, método e di- sempre necessita de um corpo na função de outro extremo do
namismo. As infinitas manifestações fenomênicas obedecem a binômio; para isso, não importa esteja o corpo desmaterializado
um só motor e a um só tipo diretivos. E isso de um extremo a ao ponto de parecer incorpóreo. Ele sempre constitui veículo
outro, dos mais complexos agregados às unidades mais elemen- adequado à finura e à sensibilidade do espírito, dadas pelo grau
tares (por exemplo: do sistema solar ao átomo). Assim todo fe- de evolução atingido pelo indivíduo, que, graças ao seu peso
nômeno não passa, em substância, de uma espécie do mesmo especifico, se equilibra, escolhendo um ambiente onde as pro-
modelo; todas as formas se calcam no esquema originário de vas sejam proporcionadas às qualidades adquiridas por ele. Por-
que derivam os demais. Torna-se fácil, portanto, compreender a tanto o organismo corpóreo, de ondas longas e baixa frequên-
analogia entre todos os fenômenos e justificar-lhes o parentes- cia, segue o caminho da evolução do espírito, isto é, aproxima-
co. Daí a possibilidade de reduzi-los a tipo único; assim se ex- se dele, morrendo e ao mesmo tempo renascendo no extremo
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 101
oposto, de ondas curtas e alta frequência, transformando sua vi- damentais que constituem a personalidade, o segredo da vida
bração em vibrações deste último tipo – em uma palavra: espi- consiste em saber encontrar a harmonia.
ritualiza-se. A corrente de vibrações que sobem das múltiplas As correntes vibratórias que nos percorrem a personalidade
experiências sensoriais e convergem para a síntese espiritual fluem, portanto, de quatro fontes, representantes de quatro
fornece as forças a elaborar; ao mesmo tempo, porém, uma cor- mundos, quatro sínteses, fruto de longo passado. São: 1) O
rente paralela desce do espírito ao organismo, invade-o com ti- eterno eu espiritual; 2) O ambiente terrestre; 3) O elemento pa-
pos de energia cada vez mais bem elaborada, quer dizer, de on- terno; 4) O elemento materno. Se grafarmos a reta da bipolari-
das cada vez mais curtas e frequência cada vez mais alta; desse dade vertical sobre a reta da bipolaridade horizontal, obteremos
modo, lentamente, o potencial de toda a personalidade se eleva o desenho de uma cruz, em que os quatro termos correspondem
de um extremo a outro, inclusive na parte física. Dessa oscila- aos quatro braços. Na cabeça da cruz teremos o espírito; nos
ção de atividade, conexão e repercussão de forças, deriva a evo- pés, o ambiente-matéria; no braço esquerdo, o elemento paterno
lução. Embora a evolução se opere graças ao princípio ativo, o e, no direito, o materno. As experiências ambientais, se quise-
negativo também colabora; não fora ele, e faltaria ao primeiro a rem atingir o espírito, devem atravessar o organismo físico. As
matéria a ser plasmada, a substância com que construir. Obser- correntes vibratórias oscilam de cima para baixo e de baixo pa-
vamos nesse caso a mesma divisão de trabalho existente entre ra cima, da direita para a esquerda e da esquerda para a direita;
homem e mulher. O organismo físico coleta e acumula; o espí- em todas as direções se trava luta. A personalidade representa o
rito dinâmico elabora e progride. O primeiro engorda, pregui- resultado dessa luta, a síntese desses elementos, por isso pode
çoso e vegetativo, saciando-se assim que satisfaça os instintos ser múltipla, como se oscilasse entre os diferentes polos extre-
de conservação e de reprodução; o segundo gasta a vida vegeta- mos. No plano orgânico-psíquico (já vimos que o espírito não
tiva na consecução de fins mais elevados, bate-se e atormenta- reside no cérebro), a luta se trava entre a personalidade paterna
se na ânsia de evoluir. Esse é o duplo aspecto da vida. e a materna e explode na puberdade. Uma das duas personali-
No entanto esse dualismo espírito-matéria não basta para dades vence, firma-se e constitui a dominante, em que prevale-
esgotar o problema da personalidade. Não é a única bipolarida- ce o tipo de um dos dois progenitores. Como acontece na coe-
de da vida essa antítese entre periferia e centro, entre as corren- xistência, o mais fraco cede o passo no ponto em que o mais
tes ascendentes e descendentes, pelas quais se distribui entre os forte conquista e, desse modo, se estabelece a harmonia. Ven-
dois termos, o positivo e o negativo, a atividade evolutiva. A cida, nem por isso a personalidade morre; continua, modesta-
esta bipolaridade, que poderíamos figurar como bipolaridade mente, como força subordinada, a gravitar em torno da princi-
vertical, na qual, do ponto de vista evolutivo, a matéria está em pal, como os planetas em torno do sol do sistema a que perten-
baixo e o espírito em cima, imaginaríamos superposta uma bi- cem. A natureza não a abandona nem a despreza; utiliza-a, con-
polaridade horizontal, na qual o princípio biológico positivo, fiando-lhe funções mais modestas, porém necessárias, como,
derivado do núcleo do espermatozoide paterno, e o princípio por exemplo, o controle representado pela oposição e pelas mi-
biológico negativo, derivado da célula-ovo materna, se situam à norias, para equilibrar, refreando-o, o domínio exclusivo e a
direita e à esquerda da bipolaridade vertical. A consciência hu- manifestação repentina e irrefletida da personalidade dominan-
mana, portanto, é o ponto de convergência da orquestra de vi- te. Reflexão significa controle recíproco entre duas tendências;
brações provenientes dessas quatro grandes vias, determinado quando elas entram em conflito, a hesitação aparece. Daí as di-
pelo cruzamento dos dois binômios. É disso que somos consti- ferenças de vontade, a tragédia dos impulsos opostos da consci-
tuídos, é disso que somos filhos e parentes, desse conjunto or- ência. Quando uma das forças vence, a vencida se retira para a
gânico de forças e correntes, algo muito mais complexo e ex- sombra, contentando-se em viver vida apagada, à espera da des-
tenso que a carne dos nossos pais, por mais que essa carne te- forra, assumindo, enquanto isso não acontece, a direção de fun-
nha vivido e traga inscrita em si mesma a sua história. A perso- ções modestas, mas sempre pronta para assumir a direção geral,
nalidade humana abrange os dois binômios, isto é, encerra em tão logo a força vencedora se canse e baqueie.
si quatro elementos que necessitam fundir-se, embora lutem pa- Entre os dois elementos há vários graus de fusão. Há indi-
ra se destruírem, dois desequilíbrios de forças à procura de ree- víduos, os chamados impulsivos, em que uma das personalida-
quilíbrio, isto é, duas fontes de movimento, de contraste, de des venceu tão nitidamente, que domina pacificamente, sem
sensação. Conforme concordem, forte ou fracamente, deles de- resistência, todo o campo da ação, pois a parte oposta o aban-
rivará estado de maior ou menor entrosamento ou de maior ou donou inteiramente e nenhum controle exerce mais sobre ele.
menor contraste e poder criador, gerando, desde as notas graves A decisão, assim, torna-se fácil, simples, automática, retilínea,
até às mais agudas, mais ou menos profunda e extensa gama de sem lutas, oscilações e dúvidas. São poucas as forças empe-
ressonâncias e riqueza de sentimentos. A personalidade serve nhadas na luta, por isso encontra-se rapidamente a solução. Pa-
de campo de batalha a essas forças, que se encontram dentro rece até rapidez o que, no entanto, não passa de simplicidade e
dela e podem ser calmas e concordantes ou impetuosas e dis- pobreza de meios. Outros, ao contrário, tardam a definir-se e,
cordantes ao ponto de transformá-la em violento explosivo. A apesar disso, são ricos e complexos; neles, o desequilíbrio não
personalidade pode, assim, manifestar-se sob tantos aspectos se resolveu pela pacificação estática e continua alimentando a
quantas são as posições por ela assumidas, variando de um ex- contradição. Neles, as duas personalidades, ambas prepotentes,
tremo a outro, isto é, de um estado de passividade inerte a outro concorrem contemporaneamente em todos os atos, levando-
de intenso dinamismo criador, derivado de desequilíbrio que, lhes tal riqueza de forças propulsoras e contraditórias, que as
caso não se saiba dominar, pode precipitar-se na loucura. Pro- divisões se tornam muito mais laboriosas. Daí deriva completa
curou-se identificar o gênio com a loucura, não porque ambos gradação de manifestações volitivas e de capacidade decisória,
possuam algo de comum, como estado e resultados, pois a dife- gradação que varia desde a ação imediata até à irresolução; da
rença entre os dois termos em nenhum outro caso é tão profun- ausência de controle observável no impulsivo até um controle
da, mas porque o desequilíbrio originário do dinamismo criador tão rigoroso, que paralisa a ação (Hamlet); da ação desorienta-
do gênio fica a um passo apenas da anarquia espiritual da lou- da até à orientação inativa, isto é, a reflexão paralisante. Tudo
cura. A superioridade do gênio, porém, reside exatamente na isso depende das características dos dois elementos: paterno e
capacidade de domínio e de coordenação das próprias forças, de materno. Estes, quando são muito dissemelhantes do ponto de
que jamais perde o controle. Domínio e coordenação muito vista biológico, não se fundem, ou se fundem mal. Desse fato
mais fáceis para o homem normal, dotado de recursos bem mais resultam todas as anormalidades descritas na fenomenologia
escassos. Em todo caso, porém, em face desses elementos fun- psiquiátrica; as conformações mentais em que predominam a
102 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
dissonância e a instabilidade; o desequilíbrio dinamizante mas deve, à custa do próprio esforço, fazer novas aquisições e au-
perigoso, que, controlado e reconduzido a ordem superior, po- mentar aquele capital, investindo-o em novas combinações,
de constituir o gênio, mas, se abandonado a si mesmo, desfar- empregando-o na atividade que lhe é própria, completando-o
se-á na loucura. Geralmente, porém, os dois estímulos, paterno com novas aquisições, obtidas experimentalmente no meio am-
e materno, acabam por harmonizar-se. Se a diferença for de- biente. Este patrimônio, assim aumentado, a personalidade deve
masiado grande, nascerá um caráter mais ou menos estável e por sua vez devolvê-lo à circulação, gratuitamente como o re-
equilibrado, verdadeiro mosaico de tendências. Se pensarmos cebeu. Se, porém, são estas as fadigas comuns da vida, podem
nas infinitas combinações em que estes elementos determinan- existir outras bem diferentes, das quais o homem normal esca-
tes podem agrupar-se na reprodução, compreenderemos que a pa. Nelas, a existência torna-se muito mais complexa, a luta fi-
natureza pode produzir uma inexaurível quantidade de tipos. ca áspera e a harmonização é mais difícil; porém, em compen-
Na realidade, não existe o tipo normal, isto é, o tipo médio per- sação, a vida torna-se mais rica de desequilíbrios dinamizantes
feito e absolutamente equilibrado. Portanto também não existe e criadores, quando surge e atua com forças preponderantes o
o tipo completamente anormal, absolutamente patológico. A elemento espiritual, servido por uma bagagem de experiências
vida, a cada passo, nos oferece exemplos de compensação! pessoais extensamente desenvolvida e, por isso, tão desejoso de
Quem não vence hoje, amanhã talvez vença! Desses desequilí- viver vida própria e de afirmar-se perante os outros elementos
brios podem nascer novidades, coisas originais, personalidade da personalidade, que chega a desafiá-los e a combater contra
brilhante, se soubermos dominá-los, coordená-los e discipliná- eles. Então, a personalidade, mais extensa e mais rica, represen-
los, transformando-os, assim, em qualidade preciosa, a única ta concerto de ressonâncias mais complexo, transforma-se tam-
que pode oferecer contribuição inédita ao pensamento e ao bém em campo de batalha bem mais vasto; neste, a harmoniza-
progresso. A natureza, embora pareça proceder por tentativas, ção é muito difícil de obter, pois a síntese unitária do ego não
sabe corrigir o erro; sempre, de algum modo, nos compensa se verifica somente no plano orgânico-psíquico, mas também
daquilo a que nos expõe; deixa-nos cair para nos ensinar a nos no plano espiritual, mais elevado. É o caso do tipo evoluído.
levantarmos; expõe-nos aos assaltos, mas nos guia à vitória e, Neste caso, portanto, todo o extenuante trabalho que deriva do
com esta, à aquisição de novas qualidades, ao enriquecimento conflito entre as forças da personalidade, da concordância ou
do nosso patrimônio de capacidade e defesa. Todos os golpes discordância dos ritmos, não se limita apenas ao binômio hori-
recebidos são registrados no livro da vida, onde tudo fica es- zontal pai-mãe e ao ambiente, mas se estende para as zonas ele-
crito, de modo a poder ser lido em qualquer tempo. A moléstia vadas do espírito; é aí, e não no plano biológico, que este tipo
tende a imunizar-nos, o erro a instruir-nos, a queda a reequili- vai procurar a sua solução. As correntes dinâmicas, então, na-
brar-nos, a fraqueza a fortalecer-nos. Tudo acaba sendo utili- vegam e se cruzam em todos os sentidos. A luta biológica, do
zado e transmitido, e a vida imortal, desse modo, enriquece e homem contra a mulher (pai-mãe) e da mulher contra o homem
acumula grande acervo de complexas heranças através de pro- (mãe-pai), se cruza com a luta moral, do espírito contra a maté-
longadíssimas experiências milenares, que o nosso organismo ria (espírito-ambiente), e com a luta material, da matéria contra
incorpora e possui como riqueza oriunda da imensa sabedoria o espírito (ambiente-espírito). Assim, os antagonismos do bi-
biológica, que, aliás, cada um de nós carrega consigo sem se- nômio vertical martelam o corpo físico e dão nascimento ao
quer imaginá-lo. Desse modo, na batalha entre as duas forças processo de maceração, que amadurece e evolui. Já observamos
contrárias, a natureza surge como grande harmonizadora, de- essa elaboração evolutiva, a qual estamos continuando a exa-
monstra ser potência benfazeja, sábia, previdente e protetora, minar. Desse trabalho intenso nascem indivíduos cada vez mais
que transforma os desequilíbrios em elementos dinâmicos e especializados. Mas, se por um lado parece que a natureza ca-
criadores, as dissonâncias em harmonias, o dinamismo contra- minha para o individualismo, isto é, para o separatismo que iso-
ditório em personalidade original e potente. la e afasta do corpo social o indivíduo, doutro lado vemo-la,
Essas observações são válidas apenas no campo estritamen- mais tarde, procurar o reequilíbrio dessa tendência, apoderan-
te biológico; não bastam para resolver o problema da responsa- do-se do indivíduo e engendrando-o nas múltiplas unidades so-
bilidade moral e esgotar o da hereditariedade. A personalidade ciais constitutivas dos coletivismos modernos. Isto porque a cé-
humana também resulta de outras forças e de outras posições. lula-indivíduo não se diferencia para isolar-se da ordem da na-
Já analisamos a luta no interior do binômio horizontal, porém tureza em proveito próprio, mas sim para ser empregada numa
não observamos ainda a que se trava na intimidade do binômio ordem social muito mais vasta, com funções adequadas às qua-
vertical, com a qual a primeira se harmoniza. Acima dessas in- lidades características adquiridas.
compatibilidades biológicas situa-se o mundo moral do espírito; Já dissemos que a visão estritamente biológica não basta pa-
abaixo está o mundo exterior, com todos os seus golpes e resis- ra esgotar o problema da hereditariedade. A ciência limita-se a
tências. A personalidade resultante dos dois elementos (pai e levar em conta os dois elementos do binômio horizontal e o
mãe) cruza-se e combina-se com a constituída pelo binômio es- elemento inferior do binômio vertical, porém não leva em con-
pírito-matéria, eu interno e ambiente externo. A personalidade sideração o elemento superior deste último. Assim, para ela, os
completa resulta de todos esses elementos e movimentos. Que instintos e ideias inatas, qualidades adquiridas mediante a expe-
riqueza! Porém, como nos desgasta essa luta! A natureza, tão riência ambiental e, graças a infinitas repetições, transformadas
amiga ao definir as suas construções sob forma concreta e pre- em automatismos, não seriam conquistados pela eterna perso-
cisa, não tolera ócio e preguiça, mas exige permanente colabo- nalidade espiritual, capaz de conservá-las e restituí-las em
ração mútua dos valores e correspondência rigorosa entre a qualquer momento em que forem úteis, através de prolongada
forma e a substância. Se chega a completar-se, a harmonia de- série evolutiva de vidas corpóreas, menos significativas e en-
rivada da fusão dos elementos herdados da linha paterna e ma- cerradas na oscilação nascimento-morte, mas sim adquiridos
terna, deve por sua vez lutar contra o ambiente para, também em virtude de uma espécie de memória biológica celular, onde
nessa outra dimensão, conseguir harmonizar-se. É a isso que, seriam depositados e conservados.
nos casos mais comuns, se limitam as fadigas da vida no seio Em A Grande Síntese, Cap. LXIX – “A Sabedoria do Psi-
da natureza, que também se revela economizadora de energias. quismo”, entre os coleópteros citamos o ceramyx miles, como
No entanto, mesmo limitada a esses elementos e embora utili- exemplo de sabedoria imensamente superior à organização e
zando-se do patrimônio hereditário constituído das numerosís- aos meios que possui. Acrescentemos, agora, o caso, ali apenas
simas experiências adquiridas, alcançado nos dois reservatórios esboçado, de um himenóptero, o sphex, cuja fêmea, ao lado
continuamente cruzados, paterno e materno, a personalidade dos ovos, que põe na areia, coloca um inseto por ela previa-
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 103
mente paralisado com um golpe de ferrão, para que sirva de de um lado a referida atividade cinética e, de outro, a impres-
alimento à futura larva. Ora, o sphex atinge a vítima exatamen- sionabilidade cinética. Trata-se, talvez, de atividade eletro-
te no ponto onde, no dorso, se encontra o gânglio nervoso que magnética. Daí derivaria a memória celular. Se os vários ele-
preside ao movimento. Desse modo, obtém a provisão repre- mentos componentes forem reagrupados de conformidade com
sentada pelo inseto, que, por estar paralisado, não pode sair do a lei das unidades coletivas (cf. A Grande Síntese, Cap.
lugar e se conserva em boas condições porque continua viven- XXVII) e os movimentos atômicos fundamentais estiverem
do. Como é que o sphex conhece anatomia e anestesia? Quem presentes em todos os organismos mais complexos, existirá a
lhe ensinou esse fato anátomo-fisiológico? Dirão: a experiên- possibilidade de se conseguir sínteses progressivas, até chegar-
cia. Mas os insetos vivem poucos meses e as larvas, quando se à síntese máxima, que se nos revela sob a forma de consci-
nascem, já os pais e toda a geração precedente desapareceram. ência. Os resultados cinéticos da experiência, desse modo, se
Onde, pois, o ensino e a imitação? Ou esse inseto possui, tal- imprimiriam em todas as células do corpo e, graças à heredita-
vez, sensibilidade bastante para perceber as radiações transmi- riedade, se transmitiria e receberia essa sabedoria adquirida pe-
tidas pelo gânglio nervoso e poder desse modo encontrá-lo? Se la raça, comum a todos, de que cada indivíduo seria depositá-
fosse assim, quem o mandou atacá-lo e o informou das conse- rio, para usá-la em benefício próprio, conservá-la, enriquecê-la
quências? Quem responde pelo raciocínio que relaciona todas e, enfim, transmiti-la aos descendentes, em benefício deles, e
as fases do processo lógico? Ninguém pode negar a existência assim por diante. Essa sabedoria, percorrendo os órgãos nervo-
de princípio inteligente nesse inseto e, se não é possível que sos e cerebrais, se concentraria, de acordo com o princípio das
ele o tenha criado, então lhe foi transmitido. Por que caminho, unidades coletivas, na síntese máxima do psiquismo, derradei-
porém? Porventura, as células é que conservam a memória ra resultante das experiências da vida.
atávica? Mas basta esse caminho? São as células capazes de Já o dissemos, porém, que é sabedoria a ser aumentada e
semelhante síntese racional? Isso quer dizer psiquismo. Depo- transmitida. O trabalho, portanto, é duplo: de nova experimen-
sita-se ele nas células? Existe outro psiquismo? Este conserva tação, tendo em vista o aumento, e de conservação do velho e
a memória de todas as experiências vividas durante milênios e, do novo, tendo em vista a transmissão. Temos, pois, dois tipos
no presente caso, até mesmo as inerentes ao estado de simples de registro cinético: o recente e o atávico, o novo e o velho, o
inseto. Será a conservação desse tão precioso patrimônio here- que nós fazemos e o que foi feito pelos nossos antepassados.
ditário, acrescido do novo patrimônio que a experiência conti- O primeiro conduz à captação e fixação dos movimentos de
nuamente lhe acrescente, confiada à memória celular ou a um variação da espécie; o segundo representa, na raça, as quali-
organismo imaterial em que se registram e fixam definitiva- dades mais íntimas e mais estáveis, fixadas em todas as célu-
mente, sob a forma de qualidades adquiridas, as correntes vi- las, não por via de aquisição, mas de hereditariedade. As duas
bratórias oriundas do ambiente? diferentes funções, isto é, o desvio e a conservação das traje-
De acordo com a ciência, a memória biológica residiria na tórias, seriam confiadas a dois sistemas celulares: de um lado
célula, que traz inscrita em si mesma sua prolongadíssima his- os conjuntivos, ou seja, os tecidos de nova formação embrio-
tória, cujo conteúdo lhe foi transmitido através da filiação e nária, e de outro o sistema de todas as demais células. Dois
da derivação dirigida pela célula germinativa hereditária. A sistemas, portanto, que culminariam em duas sínteses psíqui-
essa história do passado cada vida acrescenta a própria expe- cas: a primeira, temporária, individual, representando a por-
riência, soma-a à precedente e, com esta, assim completada e ção de vida pessoal do indivíduo; a segunda, coletiva, eterna,
corrigida, a transmite. Tratar-se-ia de uma espécie de reencar- representando a espécie e a continuidade da vida. Dois psi-
nação celular; a continuidade das vidas sucessivas não seria quismos, pois: o psiquismo ativo, trabalhando para armazenar
confiada à sobrevivência de um princípio espiritual supercor- novas qualidades e construir o ego através das experimenta-
póreo, mas à persistência das impressões celulares. É verdade ções, registrador, receptor, assimilador e fixador de novas ex-
que o ambiente atua e continuamente nos impressiona o ser, a periências biológicas a serem transmitidas ao outro sistema; e
repetição fixa nele hábitos ou automatismos, tendentes a radi- o psiquismo atávico, conservador, que, sob a forma de quali-
car-se sob a forma de instintos (cf. A Grande Síntese, Cap. dades hereditárias e de instintos, de ideias inatas e capacida-
LXV – “Instinto e Consciência Técnica dos Automatismos”). des adquiridas, faz ressurgir e restitui tais experiências. Os
Também é verdade que todas as nossas experiências se regis- dois sistemas giram em torno um do outro, de acordo com o
tram e transmitem por hereditariedade. Mas o problema con- costumeiro esquema do binômio de forças contrárias e com-
siste em saber como, por que via e por que mecanismo a célu- plementares, de que resulta a composição do binômio de toda
la se impressiona e conserva as impressões. unidade, de conformidade com a lei universal de dualidade.
Para compreender, torna-se necessário reduzir o fenômeno Tudo isso não deixa de ser persuasivo, mas permanece in-
à pura substância cinética. Trata-se, agora, de várias correntes solúvel o problema da conservação das impressões, isto é, das
de vibrações, de ritmos, de movimentos ondulatórios que se novas características cinéticas que se vão continuamente for-
transmitem e se imprimem. Já os examinamos nos capítulos mando nos movimentos atômicos. Como conciliar a permanen-
precedentes. Os movimentos vibratórios do ambiente externo te identidade do ego, não obstante a mudança de suas qualida-
penetram no organismo através das vias nervosas e sensoriais. des e a renovação completa e contínua do material constitutivo
Essa penetração contínua constitui fato indiscutível, e essas vi- do organismo? E, então, não será possível que, ao invés de à
as são portas escancaradas. Nosso organismo é também uma memória celular, a conservação das impressões seja confiada à
orquestração de ritmos. Os movimentos vibratórios entram, memória espiritual sediada no organismo imaterial que cha-
avançam, invadem a estrutura orgânica cada vez mais intima- mamos alma? Se a vida é metabolismo, é uma corrente, então
mente, percorrem-lhe e saturam-lhe as vias, penetram-na sem- o que lhe impede a dispersão e mantém a unidade? Ao nascer,
pre mais. Têm de parar no último termo que nossa decomposi- já trazemos conosco, sem dúvida, os resultados de um passado.
ção analítica nos dá a conhecer, isto é, imprimir-se-ão sob a Mas onde foi esse passado inscrito: na intimidade da célula ou
forma de desvios nas trajetórias já existentes dos movimentos do espírito? É difícil, sem sombra de dúvida, imaginar uma
atômicos (cf. A Grande Síntese, Cap. LV – “Teoria dos Movi- transmissão hereditária fundada na reflexão de vibrações pro-
mentos”), movimentos atômicos dos quais resulta, em grau de duzidas por um organismo espiritual que, introduzindo-se no
complexidade progressiva, o sistema cinético-dinâmico mole- organismo físico, através das vias imateriais invisíveis da per-
cular, micelar, celular, orgânico, psíquico. O fato de a repeti- cepção interior, lhe guie o desenvolvimento (ideoplastia). Po-
ção funcionar como determinante de automatismos, confirma rém não mais difícil do que conceber uma transmissão heredi-
104 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
tária através apenas da célula genital, com capacidade de con- tro, também está em qualquer ponto da periferia, sendo ao
ter-lhe todos os desenvolvimentos futuros e, depois, guiá-los mesmo tempo o centro e a periferia. Dissemos também que a
na reconstrução do ser completo. Tanto mais porque este sis- memória atávica, a sabedoria adquirida pela raça, está confiada
tema não pode ser suficiente para transmitir todas as impres- a todas as células do corpo e nelas se difunde. Mas, então, falar
sões registradas pela espécie, pois as melhores experiências, as desse sistema é, em última análise, o mesmo que falar do espí-
da maturidade, adquiridas depois da idade da reprodução, que rito, pois sua substância pode traduzir-se cientificamente numa
é fenômeno juvenil, não seriam transmitidas, permanecendo orientação de cinética atômica e, dessa maneira, manifestar-se
incomunicáveis. Perder-se-iam, então, as melhores aquisições, como psiquismo até mesmo na intimidade da célula. Surge en-
e a vida dos solteiros, por não haver sido utilizada, não teria tão esta pergunta: O espírito constitui a causa ou o efeito do
utilidade alguma para a raça. Ora, como é que a natureza, em sistema? Ou, melhor, o espírito representa o motor determinan-
ponto dessa importância vital, pode deixar que lhe roubem os te das correntes de consciência que dirigem o funcionamento
resultados mais preciosos e custosos? Como é que ela, previ- do organismo, ou é a síntese das correntes de consciência deri-
dente e econômica, poderia abandonar as experiências mais vadas dos sistemas celulares?
importantes da vida, de natureza espiritual, que se adquirem Para Renan “a alma resulta das forças do corpo”. Podemos,
até mesmo em plena senilidade? Como é possível tão flagrante no entanto, colocar que, se é natural que a síntese de correntes
contradição com a habitual economia da natureza? As melho- de consciência derivadas dos sistemas celulares atinja o plano
res conquistas se dispersariam, tantas fadigas se tornariam vãs biológico, como poderá ele, então, elevar-se até ao mundo mo-
e seu resultado ficaria destruído; isso tudo constituiria uma gri- ral, tão absolutamente diverso, do ponto de vista qualitativo?
tante contradição num universo em que nada pode ser destruí- Harmonizemos o antagonismo. Geralmente, o homem, por mo-
do e, portanto, também essas forças, como tudo aliás, devem tivo da luta que sua natureza bipolar lhe impõe, apesar de divi-
ressurgir. E como poderia progredir uma raça incapaz de acu- dido, se conserva unido. O materialismo e o espiritualismo,
mular senão experiências elementares e juvenis? De que se ambos unilaterais, manifestam apenas a parte que possuem da
alimentaria o progresso, fato espiritual e de realidade inegável? verdade. Se nos perguntarem se o espírito constitui causa ou
Não. Não é possível que a vida seja mutilada desse modo, exa- efeito do sistema, respondemos com as mesmas palavras por
tamente no centro do seu tão perfeito sistema, que se tornaria nós já empregadas: a causa está no efeito e o efeito na causa.
imperfeito precisamente no seu ponto mais substancial, pois, Trata-se apenas de dois termos da mesma unidade bipolar, de
com o desaparecimento das experiências mais sublimes da ra- um caso particular da lei universal de dualidade. Atingimos o
ça, fechar-se-ia o caminho do progresso. limite em que se supera o binômio e se resolve a contradição.
A herança fisiológica, portanto, não basta. Se os filhos se Tocamos, agora, o limiar do mundo superior em que desaparece
parecem com os pais, muitas vezes não se parecem e, até mes- a grande ilusão da forma e tudo se unifica na mesma verdade.
mo, os superam. O gênio não é hereditário. O fenômeno, sem
dúvida, deve ser bipolar; não pode constituir exceção da lei XXVIII. A PERSONALIDADE HUMANA (2a PARTE)
universal de dualidade. Na realidade, se tudo é dúplice, a here-
ditariedade também deve sê-lo, quer dizer, deve processar-se O desenvolvimento dos últimos capítulos nos permite ima-
pelos dois caminhos possíveis, em posições e com funções ginar o jogo de forças e o entrelaçamento de ritmos que consti-
complementares. Dois são os eixos constitutivos da personali- tuem o íntimo dinamismo de nossa vida. Só penetrando assim
dade (pai-mãe e eu-ambiente), duas as suas formas de luta, dois na intimidade do imponderável, poderemos compreender tudo
os sistemas de forças e duas as evoluções (material e espiritual), quanto escapa ao homem que vive na superfície. Este ignora o
portanto é lógico não só que as formas de hereditariedade tam- maravilhoso mundo circundante de que, aliás, ele mesmo se
bém sejam duas, correspondendo aos dois eixos, mas também compõe. Esse mundo escapa em grande parte à própria ciência,
que cada forma de luta tenha objetivo determinado e cada tipo que, por seguir orientação positivista e utilizar o método obje-
de evolução, como todo sistema de forças, possua canal de tivo-experimental, em vez do intuitivo, não pode atingi-lo.
transmissão privativo. As forças não param, e as experiências Desse modo, a opinião científica em voga a respeito do pro-
acumuladas devem dar algum resultado. Quem se limita exclu- blema da personalidade é incompleta, apesar de haver estabe-
sivamente à hereditariedade fisiológica, esquece o imenso lecido diversas verdades no campo biológico e psicológico.
mundo do espírito, dos valores morais, onde, em atmosfera de Para compreensão geral do fenômeno, torna-se necessário se-
plena responsabilidade, nosso destino se cumpre. guir-lhe a oscilação completa, de um a outro extremo do ser,
Percorremos os caminhos da ciência, para permanecermos de conformidade com o mesmo esquema da construção e fun-
positivos, e chegamos aos movimentos atômicos, a desvios de cionamento do universo. O homem, de fato, encontra projeta-
trajetória, a ações e reações cinéticas, à absorção de ritmos, a das, na sua estrutura e na sua vida, as linhas essenciais do fe-
movimentos de correntes vibratórias. E eis que tudo se desma- nômeno cósmico. A oscilação vai do espírito à matéria e volta,
terializa em nossas mãos e se traduz no imponderável, caracte- com sinal contrário, da matéria ao espírito, reproduzindo a ca-
rístico do espírito. Quando chegamos ao fim do caminho, per- da momento os dois grandes períodos da criação: involução e
cebemos que o fenômeno como que se desfez, e dele não resta evolução. No homem e na criação, o pensamento se materiali-
senão o jogo de forças, a estrutura de vibrações, o dinamismo za na ação até encontrar a forma concreta que o revista e o ex-
imaterial, que possui muitas das características do espírito e prima, e isso através da fase intermediária do dinamismo voli-
das suas invisíveis atividades. Mas, então, o contraste, na apa- tivo; e, ao contrário, a ação se desmaterializa no pensamento,
rência verdadeiro, entre materialismo e espiritualismo, não destilando-se sob a forma de experimentação realizada, a fim
passa de simples questão de palavras, pois, afinal, tudo termina de, na consciência, fixar-se como qualidade adquirida ou ins-
no mesmo ponto, descobrindo a mesma verdade e dizendo, em tinto. A cada oscilação, o eu aumenta e se dilata, para retomá-
substância, a mesma coisa. Quando acabamos de percorrer os la e continuá-la cada vez com mais intensidade; o físio-
caminhos da ciência e da matéria, exclamamos: Mas isso é o dínamo-psiquismo, íntima trindade do monismo universal, no
espírito! E, de fato, é o espírito mesmo. Já vimos que, no bi- cosmo e no homem, não é apenas estrutura orgânica, mas tam-
nômio espírito-matéria, ele se encontra até mesmo no polo bém funcionamento. Na oscilação, um dos extremos, embora
oposto e que o mistério do psiquismo se estende até à intimi- transformando-se, transporta-se inteiramente para a posição do
dade da célula. Dissemos que o eu é dúplice, não estando ape- outro extremo e ao contrário; assim, o ser vai e vem, vem e
nas no centro, mas também na periferia; que o espírito, no cen- vai, sem cessar, de um a outro de seus dois polos. O princípio
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 105
trinitário, em sua fórmula estrutural, não passa de consequên- são ativa, em concentração reflexiva, é que o resultado trará
cia do principio de dualidade. Tão logo o binômio é animado vantagem (como premissa de nova expansão evolutiva). Eis o
pelo dinamismo vital e a contradição, não mais estática, se põe que acontece. O primeiro impulso da ciência nasce no espírito,
em movimento, formam-se, na oscilação de um termo a outro, amadurecido por precedentes experiências, resultando daí mai-
as correntes de ida e de retorno; então do antagonismo e da fu- or conhecimento. A este trabalho do último século, sucede o
são nasce terceiro termo, que constitui fase intermediária, traço atual trabalho de atuação experimental. O espírito, achando-se
de união e resultado das trocas. É novo ser, terceiro elemento, ainda em fase primitiva, encontra-se em face de experiência
filho do binômio pai-mãe e da íntima oscilação dessa unidade desconhecida, que, feita por inexperientes (como acontece com
dualística, que descarrega uma na outra as suas metades inver- as crianças), produz, como já dissemos, dor e erro. Chegamos
sas. Estando completo o desenvolvimento das forças do siste- então ao fim da terceira fase, que conclui o ciclo da jornada. A
ma, essa nova individualidade se destaca do binômio e perma- dor abre o ciclo de retorno, marca a nova direção a seguir, o
nece autônoma e independente, mas incompleta e à procura de início da subida, a nova gênese. Não mais agindo ou desenvol-
sua metade complementar, para, juntas, formarem novo binô- vendo-se, mas meditando em dolorosa reflexão sob os golpes
mio e, através da troca de correntes, novo ser intermediário, e recebidos pela reação das forças da Lei, dados em consequência
assim por diante. Desta forma, da estrutura dualista do univer- de esforços improfícuos. Completa-se, portanto, lentamente o
so, do principio fundamental de dualidade, deriva o principio ciclo inverso da assimilação, resultado doloroso mas benéfico
trinitário, que representa o esquema da técnica genética. da experiência humana neste período. A meta final é compre-
O movimento dessa troca é dinamismo interior da unidade ender. O ponto de chegada está no espírito, na conquista de
formada de duas partes iguais e, por isso, apenas influi na estru- maior sabedoria, que representa maior base para início de novas
tura íntima dessa unidade. Mudança só acontece em sentido re- experiências. Com o ciclo experimental, feito de dinamismo
lativo; a substância permanece invariável e o monismo intacto. centrífugo de descentralização, e com o ciclo inverso de assimi-
O movimento volta sempre sobre si mesmo; cada uma das duas lação, constituído por um dinamismo centrípeto de centraliza-
formas extremas do ser constitui apenas posição diferente no ção, o ar de que se nutre a evolução biológica completou sua
seio da mesma unidade, não representa senão a metade do oscilação e se prepara, firmando-se em tal base, para nova e
mesmo ciclo. O ponto de chegada é ao mesmo tempo ponto de mais vasta oscilação, e, assim, até ao infinito. As verdades rela-
partida; do mesmo modo, o ponto de partida é ponto de chega- tivas do homem, por ele expressas, uma a uma, de forma abso-
da. Os extremos se tocam. luta, serão as etapas deste caminho, o mesmo caminho da única
Todos esses conceitos já foram expostos no Cap. VIII – “A verdade progressiva. A história dos acontecimentos sociais na-
Lei”, de A Grande Síntese. Mas, enquanto nesse livro os apli- da mais é que a história do desenvolvimento da personalidade
camos ao fenômeno universal, aqui os consideramos especial- humana, cujos movimentos observamos.
mente em relação ao fenômeno da personalidade humana. En- Movamos o prisma de observação. No ciclo de assimilação
tre as duas fases extremas ou posições limites da oscilação en- que finaliza o dinamismo centrípeto da concentração, onde e
tre espírito e matéria, pensamento e ação, princípio e forma, há como os frutos da experiência se depositam na personalidade?
uma fase intermediária de passagem: energia, vontade ou mo- Confrontemos as teses acima acenadas com a teoria do sub-
vimento. No homem, assim como no universo, do qual ele é consciente. Fala-se tanto disso nos nossos tempos! Trata-se,
imagem, a transição do primeiro momento para o terceiro, dá- porém, de um conceito que, se verdadeiro, não está completo.
se através do segundo, que, na ida (subindo), tem sinal positivo A natureza unilateral dos métodos de pesquisa hoje adotados,
e, na volta (descendo), se inverte em sinal negativo. Em outras só podia revelar a metade racional e material do fenômeno,
palavras, o espírito ou pensamento (1 o momento) como inicia- deixando de lado a parte intuitiva e espiritual. Esta é represen-
dor ativo da transformação do princípio na forma material (3 o tada pelo superconsciente. Desenvolvamos aqui tudo o que,
momento), para chegar à sua ação plasmadora, se ativa como completando o pensamento de A Grande Síntese no Cap. XX –
vontade, vestindo-se de energia (2o momento). Portanto, cada “O Subconsciente”, já dissemos no volume Ascese Mística (ci-
ato nosso é uma exteriorização do espírito: um conceito (1 o) tado no prefácio). A personalidade humana não é um ponto,
que se manifesta em dinamismo (2 o) e conclui numa realidade mas uma zona onde se distinguem três partes: o subconsciente,
exterior (3o). No caminho de volta, porém, a atividade do mo- o consciente e o superconsciente. Portanto os resultados da ex-
mento intermediário muda-se em passividade, a vontade em periência não se transmitem a um único ponto, mas se deposi-
receptividade, o homem de ação em homem contemplativo, tam e registram diversamente pelas várias partes da zona. En-
justamente porque não estamos mais em fase de emanação, quanto o subconsciente representa a assimilação completa de
mas de reabsorção; as portas do ego estão abertas para o inte- velhas experiências em estratificações antigas, de onde elas
rior, não para o exterior, e a direção do dinamismo fenomênico emergem como instintos, ou seja, constitui o núcleo conquista-
invertida. Por isso as funções afirmativas e positivas da vonta- do pela consciência biológica confirmada pela vida prática, o
de, tão úteis à ação, são um estorvo, representando impulsos superconsciente, no extremo oposto, representa a zona de espe-
negativos no caminho da volta, onde atua por sua vez o sensi- ra, onde se registram as experiências de vanguarda, pela qual
tivo, o espiritual, o místico. se antecipa o futuro, zona que não está, como a outra, no fim,
No período atual, descobrindo algumas leis da natureza, o mas na frente da evolução. Estes são os dois termos da perso-
homem conquistou maior domínio sobre a energia, meios de nalidade humana. Em baixo, na escala da evolução, está a zona
maior manifestação de si mesmo, através da ação no mundo da da animalidade, o que é próprio da besta; no alto está a zona do
matéria. Tais meios deram força ao dinamismo positivo de ida, espírito, o que é próprio do super-homem. Num extremo, a só-
fase por que atravessa atualmente a humanidade. O espírito, po- lida, estável, mas primitiva e elementar experiência do passa-
rém, motor e diretor destes meios, permaneceu o mesmo; a sa- do, firmada como patrimônio adquirido, representando um ma-
bedoria não recebeu um impulso proporcional. Com a mentali- terial de uso continuamente aprovado pelas condições ambien-
dade de um primitivo, o homem atualmente se encontra em po- tes; no outro extremo, as experiências em formação, novas, in-
der de meios poderosos como nunca esteve. Por isso o terceiro certas, instáveis, mas audazes, elevadas, complexas, desenvol-
termo do ciclo, do qual se está avizinhando, nada mais é que er- vidas, representando não o patrimônio adquirido, mas o novo
ro (resultado de tentativas inexperientes) e, portanto, sofrimento patrimônio em vias de aquisição, não a evolução que se conse-
(compressão involutiva). Somente no segundo tempo, quando o guiu alcançar, mas sua continuação, não a personalidade já
movimento de vida se inverte em movimento de volta, a expan- constituída, mas o seu complemento. A primeira experiência
106 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
está escrita na carne; a segunda, no espírito. A personalidade é, se, no primeiro caso, de um instinto que se elevará à altura evo-
portanto, não um ponto, mas uma zona em movimento, alcan- lutiva da razão e, no segundo, de uma razão que chegará à altu-
çando assim o dinamismo íntimo que a amadurece, fazendo-o ra evolutiva da intuição. Enfim, entre instinto, razão e intuição
subir na escala da evolução. Neste sentido, a personalidade não a diferença está no grau de trabalho para a captação e assimila-
é imóvel, mas se desloca da terra para o alto, caminhando com ção das experiências. A intuição atua no superconsciente, que é
os pés (subconsciente) no passado e com os braços esticados uma antena estendida como antecipação em direção aos mais
(superconsciente) no futuro. altos e inexplorados graus de evolução, para captar o novo, o
Entre tais extremos, porém, há um terceiro termo, uma zona inédito, o futuro. A razão atua no consciente. Não funciona por
intermediária: o consciente. Qual a sua função? Que acontece raios, como a intuição, é menos rápida, porém mais contínua,
ao centro do sistema? Nas partes inferiores, onde está finda a mais ordenada, mais segura. Precisamente porque se projeta pa-
assimilação, dispensa-se novo trabalho de registro, estando tu- ra menos alto, é mais equilibrada, porém mais curta e limitada.
do, salvo adaptações e modificações, confiado ao automatismo O instinto é obra terminada, cujos resultados perdem-se no sub-
de instintos já conquistados. Esta parte acha-se sepultada no in- consciente, depositando-se nesse magazin de reservas, como
consciente, sem participação da consciência, não sendo mais patrimônio da personalidade, que aí pode reabastecer-se segun-
zona de desequilíbrios, de formações, de trabalho, mas sim de do suas necessidades. À medida que se avança, a fase evolutiva,
equilíbrio e êxtase. A parte superior, não sendo manifestação inicialmente conseguida somente pelos raios da intuição, torna-
nem contínua nem ativa para o tipo normal, constitui apenas es- se domínio normal e controlado da razão, cumprindo a função
forço excepcional. Este trecho, onde ainda não se formaram de- de assimilação, que encontramos terminada no instinto.
sequilíbrios e atividades com o impulso das forças do ambiente, Portanto, três fases: captação pela intuição, assimilação pela
geralmente fica sepultado no inconsciente. Se a personalidade razão, depósito pelo instinto. Conquistam-se assim, aos poucos,
estende suas raízes às profundezas do subconsciente e eleva su- os graus de evolução, parecendo que descem para o homem,
as ramificações às alturas do superconsciente, a vida ferve no quando é o homem que sobe a eles. Assim, a experimentação
tronco; a zona do trabalho intenso de novas formações está avança pela escala evolutiva, eleva-se em complexidade e difi-
normalmente no centro. Sendo esta uma zona de trabalho, de- culdade para o alto. O inédito, o superior, antes compreendido
sequilíbrio, contrastes e, portanto, ativa e criativa, ela é lúcida e pela intuição, atividade do superconsciente, é fixado pela razão,
consciente. A personalidade, em sua zona central, brilha na luz atividade do consciente, no instinto, produto do subconsciente.
máxima da consciência, luz que se dilui gradativamente nas du- Trata-se de experiência progressiva que se lança para o alto,
as zonas limítrofes, a inferior e a superior, até se extinguir dominando-o. É este o trabalho da personalidade humana, o
completamente além dos dois extremos, onde se encontram tra- conteúdo, o escopo da existência. A vida é conquista e adição
ços das evoluções situadas fora do campo da personalidade. É contínuas. O ego lança-se ao inexplorado, agarra-o, assimila-o e
uma luz entre dois riscos de trevas, onde o que está latente, seja não descansa enquanto não o transforma em qualidade própria,
memória ou pressentimento, dorme e desperta aos poucos; de- carne de sua carne. Assimilação espiritual paralela à orgânica.
pois disso, o nada em relação à personalidade, pois está além de Tudo é adição e desenvolvimento evolutivo, seja do corpo ou
qualquer capacidade de sintonização, por ressonância, das vi- seja da alma, quer se trate de conquista individual ou espiritual,
brações do ambiente. E tudo em posição relativa à evolução do quer seja material e econômica ou moral. Na frente está o su-
indivíduo, caminhando da besta ao super-homem, do subcons- per-homem, ameaçado por todos os perigos; depois vem o ho-
ciente ao superconsciente, da carne ao espírito. mem, que controla e confirma com sua análise na prática da vi-
O que para o consciente é trabalho atual, para o subconsci- da; enfim a besta, feita de instintos e imitação, pronta a se apo-
ente constituirá passado vivido, mas não morto, pois sua síntese derar dos úteis resultados do esforço total. Assim, a conquista
sobrevive sepultada em seu íntimo como resultado da operação se adianta, o homem se eleva e o patrimônio dos instintos se
que é atualmente desenvolvida pelo consciente. A síntese resul- avoluma. O subconsciente nada mais é que um consciente deca-
tante chama-se instinto e, enquanto no plano do consciente, en- ído, um raciocínio escrito em sangue, um resultado selado pela
contra-se na fase de formação e análise. Ai, o equilíbrio ainda experiência e fixado a fogo no instinto. O consciente não é nada
não estabilizado e as resultantes dos contrastes ainda indefini- mais que o superconsciente coordenado, disciplinado, equili-
das permitem o trabalho de criação, que, no subconsciente, já brado; a intuição trazida à razão e submetida ao seu controle;
terá terminado suas aquisições. O instinto é superior como ma- elemento incerto e transitório, embora sublime, enquadrado
turidade formativa, mas inferior como nível evolutivo. A razão transitoriamente à realidade da vida. Do mesmo modo, o sub-
pertence a um plano superior, é a forma mais complexa e mais consciente foi ontem consciente, isto é, campo ativo das forma-
nova do instinto. Este, síntese da análise feita pelo subconscien- ções atualmente cristalizadas no instinto, e o raciocínio, a seu
te, é mais velho e, em seu nível, mais perfeito que a razão. Esta tempo, foi outrora intuição. E, ao contrário, o atual consciente
é um processo em formação, de análise, de experiência incom- será amanhã subconsciente; a luta atual de formação individual
pleta, mas em vias de sê-lo; é fase inicial de assimilação de e social, que é raciocínio com a vida, fixar-se-á em seu produto
qualidades novas, mas em grau mais elevado de evolução. Os feito de qualidades assimiladas (instintos). O atual superconsci-
resultados da análise serão síntese amanhã; a razão que procura ente, amanhã, será consciente, isto é, a intuição incompreendida
e escolhe tornar-se-á mais tarde instinto que já sabe e conhece. será normalmente sotoposta aos processos racionais. O involuí-
A intuição pertence a um plano ainda mais alto; é a forma ainda do e o normal tornar-se-ão, portanto, conscientes na zona atu-
mais complexa e mais nova da razão. Elevando-se pela evolu- almente coberta pelo superconsciente, no campo onde hoje é
ção, o que se ganha em agudeza e perfeição perde-se em estabi- consciente a única exceção biológica representada pelo evoluí-
lidade de equilíbrio e solidez. No alto voa-se; em baixo, anda- do. Completa-se, assim, por sucessivas estratificações o proces-
se. No alto, o domínio dos espaços, mas os riscos e incertezas so de aperfeiçoamento da personalidade.
das tentativas; em baixo, o passo lento e pesado, mas o contro- Ainda uma observação. A personalidade, como dissemos,
le, a segurança, a certeza. Por isso o raio intuitivo do gênio é não é ponto, mas zona em que se distinguem três partes: sub-
controlado pela razão. Assim, tal como os resultados desta se- consciente, consciente e superconsciente. A elas correspon-
rão o instinto de amanhã, também as funções excepcionais da dem, segundo o próprio grau de desenvolvimento e plano de
intuição se regularão em funções normais, como as atuais fun- atividades, três tipos biológicos: a besta, o homem e o super-
ções da razão. E, igualmente, assim como esta é um instinto em homem, e três formas de ação: o instinto, a razão e a intuição,
formação, também a intuição é uma razão em formação; trata- funções diretivas alcançadas pelo indivíduo segundo seu grau
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 107
de evolução. E a estas correlacionam-se três formas de traba- do extremo do subconsciente ao extremo do superconsciente,
lho (em sucessão inversa): captação, assimilação e armazena- gerando, na oscilação entre estes dois termos, o terceiro com-
mento. Como o universo, a personalidade humana é uma trin- ponente da trindade: o consciente. Dissemos que esta é a zona
dade em caminho pela escada da evolução. No homem, encon- do trabalho. Isto significa que representa a zona de vibração,
tramos o físio-dínamo-psiquismo do cosmos. O pensamento, enquanto as outras duas representam, relativamente à posição
na forma humana, se materializa passando do superconsciente do indivíduo, as zonas de descanso. Portanto, dizer que o cons-
ao subconsciente, através do dinamismo do consciente. Temos ciente, com a evolução, tende a passar do nível inferior a um
também aqui, portanto, não uma simples estrutura, mas um superior, é o mesmo que dizer que o estado cinético se desloca
funcionamento. No ciclo experimental que acabamos de ver, o para estados evolutivos mais elevados, isto é, que o movimento
dinamismo vem do subconsciente em direção ao superconsci- toma ritmo vibratório cada vez em mais alta frequência e ondas
ente, tentando a experiência e conquista do alto; no ciclo de as- cada vez mais curtas. O mesmo fenômeno aqui observado com
similação, o dinamismo desce do superconsciente ao subcons- terminologia e de um ponto de vista psicológico, pode ser ob-
ciente, operando o armazenamento, a fixação dos resultados da servado, como nos últimos capítulos antecedentes, como vibra-
experiência. À descentralização segue-se a concentração no ção e fenômeno dinâmico, de um ponto de vista cinético. A
ego. Este dinamismo dúplice e inverso é o passo segundo o mesma verdade pode ser traduzida em várias formas, segundo a
qual a personalidade progride. posição e perspectiva escolhida pelo observador. Se, para co-
Antes de notar novos paralelos e correspondências e antes modidade de estudo, é necessário isolar os vários aspectos, na
de observar o reencontro das correntes ascendentes e descen- realidade eles coexistem unidos.
dentes na zona lúcida da consciência, reassumamos e comple- Encontramos, portanto, os vários tipos humanos, do extre-
temos os dois conceitos fundamentais desenvolvidos até agora mo involuído ao extremo hiperevoluído, distribuídos por todas
neste capítulo: 1) a natureza trifásica, e não puntiforme, da per- as alturas na escala da evolução, em diferentes posições, onde a
sonalidade humana; 2) o movimento ascensional desta zona tri- altura, a profundidade e os vários estados psicológicos e vibra-
fásica. Temos, portanto, três zonas na personalidade: de ações tórios que lhes correspondem são relativos a cada personalida-
consumadas, de ações atuais e de tentativas e explorações. Re- de. O que para alguns é superconsciente, personalidade futura,
presentam o trabalho feito, o que se faz e o que se fará, isto é, a embrional, ainda a ser acabada, para outros é consciente em
atividade passada, presente e futura, ou ainda, a lembrança, a formação ou mesmo subconsciente, isto é, personalidade instin-
ação e o pressentimento. Somente a zona do trabalho é consci- tiva já construída. O que para o involuído é futuro, para o evo-
ente. Para o alto e para baixo este clarão nítido se perde grada- luído é passado. Todo indivíduo caminha, seja qual for sua po-
tivamente nas trevas e o dinamismo desaparece na inércia. sição, para um plano relativamente superior ao que ocupa. As
Acima e abaixo, imersas na inconsciência, estão as zonas cre- zonas de subconsciente, consciente e superconsciente são, por-
pusculares, onde a consciência sente as sombras vagarem incer- tanto, relativas ao desenvolvimento do indivíduo e podem ocu-
tas, embrião de futuros motivos ainda sonolentos no marasmo, par diferentes graus na escala da evolução. Todo o sistema tri-
ou restos de motivos destruídos na indiferença do esquecimen- fásico da personalidade se movimenta e avança pelo condutor
to. O passado sobrevive no consciente como síntese, o futuro aí de suas várias zonas, tendo à frente o superconsciente, no cen-
nasce como antecipação. A consciência está repleta e se nutre tro o consciente e no fim o subconsciente. O sistema é único,
do presente em construção. No subconsciente está escrita nossa igual para todos, mas a sua posição é, para todos, relativa, isto
história; no consciente, o esforço da subida; no superconscien- é, em graus evolutivos diversos, de tal modo que não possa dar
te, o futuro. O primeiro representa o patrimônio acumulado; o a estes termos senão valor relativo. Este é genericamente dado
segundo, a atividade com que se fazem as provisões; o terceiro, por nós aqui em relação a um tipo médio, situado com o cons-
a zona das expectativas e possibilidades, das tentativas e for- ciente no plano da razão, com o subconsciente no plano dos
mações futuras. As três zonas estão ante a experimentação nes- instintos e com o superconsciente no plano da intuição e do es-
tas posições: de quem já recebeu o depósito, de quem o está re- pírito. Expomos aqui o sistema, a estrutura da personalidade, e
cebendo e de quem o espera. O eu sente no campo onde está não sua posição evolutiva, que muda para cada caso em particu-
ativo, e não onde está latente. O sistema está em movimento lar. Neste sistema, o ego consciente é dado por uma zona lúci-
evolutivo, e a zona ativa do registro, o consciente, não é a da, de operações, situada no centro de duas zonas obscuras, e o
mesmo para todos. Os três tipos biológicos: a besta, o homem e todo não fica estático, mas em movimento ascensional. O ego
o super-homem, têm seu centro consciente em três alturas di- percebe a própria existência unicamente na zona consciente do
versas: a besta, no subconsciente (instinto); o homem, no cons- sistema, que, segundo o desenvolvimento individual, tem altu-
ciente (razão); o super-homem, no superconsciente (intuição). ras evolutivas diversas. Conforme estas, cada um explora, to-
Com a evolução, o centro consciente tende a passar do nível in- ma, elabora, assimila e, assim, de acordo com sua posição e na-
ferior ao superior. Na escala da evolução, uns são conscientes, tureza, agindo através do esquema geral do fenômeno, constrói
poder-se-ia dizer, à altura da cabeça; outros, à altura do ventre; a própria individualidade segundo particularidades especiais. A
e outros, à altura dos pés. Uns têm a cabeça abaixo do nível dos captação, o registro e o armazenamento das experiências pode
pés de outros, e alguns têm os pés acima do nível da cabeça de ser feito em alturas diversas, segundo a escala evolutiva, mas o
outros. Do involuído ao evoluído, os tipos se escalonam em to- processo e o método são idênticos para todos, e o resultado é
dos os níveis, mas a compreensão só é possível entre os que se sempre ascensão, autoconstrução, progresso da fase evolutiva
acham à mesma altura, tendo, portanto, partes comuns de res- subconsciente à fase consciente e superconsciente.
sonância, isto é, que vibram, como já dissemos em capítulos Terminado este conceito da relatividade das posições e do
precedentes, com o mesmo comprimento de onda, velocidade e movimento do sistema, completemos agora o exame de seu as-
frequência vibratória, que é o que justamente diferencia o grau pecto estático com outras comparações. Terminado o problema
de evolução. A evolução caminha do subconsciente ao super- da conquista, voltemos à questão da estrutura da personalidade.
consciente, da besta ao super-homem, como das ondas longas e Até aqui, estabelecemos relações do subconsciente, consciente
baixa frequência às ondas curtas e alta frequência. Há, portanto, e superconsciente com a besta, o homem e o super-homem;
correspondência entre subconsciente, instinto, animalidade, on- com o instinto, a razão e a intuição; com o armazenamento, a
das longas e baixa frequência, tal como há correspondência en- assimilação e a captação; com o ato terminado, o atual e o futu-
tre superconsciente, intuição, espiritualidade, ondas curtas e al- ro; com a recordação, a ação e o pressentimento; com o passa-
ta frequência. Também a personalidade é um binômio que vai do, o presente e o porvir; com a cauda, o centro e a cabeça, no
108 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
caminho da evolução. Mas tudo isto ainda não é suficiente. humana. A célula, na orientação a que obedecem seus íntimos
Como e onde se localizam as sedes destas diversas funções? movimentos atômicos, traz inscrita a sua longa experiência e,
Onde são depositados, elaborados e captados os respectivos re- por inércia, não deixa esgotarem-se os impulsos recebidos do
gistros? Ligamo-nos aqui aos conceitos dos últimos capítulos. ambiente, agora transformados em conhecimento por si mesma
A sede do subconsciente, seus paralelos e atividades, está na es- adquirido. E, desse modo, continua a emitir correntes de or-
trutura celular, nos tecidos, na carne da raça, zona de animali- dem, aviso, consentimento, proibição. A razão apreende, pro-
dades, de instintos, de memória biológica. As experiências pri- cura tomar consciência e, quase sempre, embora não compre-
mordiais e fundamentais da vida fixaram-se em automatismos enda, obedece a essa sabedoria mais profunda porque a reco-
nestas profundas e antigas estratificações biológicas, comuns ao nhece verdadeira, pois, embora sepultada nas profundezas da
homem e ao animal. Frequentemente, para o homem, este é o célula e nas trevas do subconsciente, essa memória biológica
seu passado, a zona situada no extremo mais profundo da evo- continua participando do seu ego. O subconsciente, que tudo
lução. A sede do consciente está no sistema celular escolhido, registra e de tudo se recorda, está sempre por detrás de nós, pa-
selecionado, no ápice da evolução animal, aperfeiçoada até às ra nos guiar; executa por nós, automaticamente, inúmeras ati-
portas do espírito, com funções psíquicas: o sistema nervo- vidades e resolve, em nosso lugar, grande quantidade de pro-
cerebral, zona humana da razão, zona dos mais recentes feitos blemas, sem perturbar nem agravar o consciente. Simples divi-
biológicos, ainda não fixados em automatismos, ainda em pro- são de trabalho. Representando o patrimônio comum e a sabe-
cesso de formação, fase central da evolução do ego, fase de doria da vida, o subconsciente diz respeito à hereditariedade fi-
elaboração e livre escolha. Obedece-se a instintos inconscientes siológica, pela qual se transmite. A célula constitui-lhe, de fa-
da carne, mas raciocina-se com o cérebro. Frequentemente, as- to, a sede e o canal de transmissão. O subconsciente contém o
sim é o homem atual. A sede do superconsciente está situada capital hereditário que, mais do que ao indivíduo enquanto in-
além da parte material sensitiva e do organismo físico, no im- divíduo, pertence à vida. É riqueza que recebemos ao nascer,
ponderável, no espírito. No Cap. XXVI – “A Música – A Vida como bagagem necessária para percorrermos o pedaço de ca-
Dupla” deste volume, vimos suas relações com o sistema cere- minho representado por uma existência. O patrimônio indivi-
bral, onde a vibração, separando-se de seu nervo transmissor, dual, diferenciado, que não se transmite por hereditariedade fi-
torna-se radiante, livre, de ondas curtas e alta frequência. Estas siológica celular, mas sim, como vimos, por hereditariedade
qualidades, ainda não conseguidas no plano inferior, permitem espiritual, está situado no espírito. Vivendo como corpo, acu-
ao superconsciente a transmissão telepática, a captação noúrica, mulamos o primeiro desses patrimônios e, vivendo como espí-
a visão sintética da verdade, isto é, o uso natural e normal do rito, o segundo. Bem poucos, porém, possuem esse patrimônio
método intuitivo, próprio do superconsciente. Tudo isto repre- individual; a humanidade, em sua maior parte, encontra-se
senta a zona super-humana, o mundo do evoluído, o reino do ainda nos alicerces de sua construção espiritual, que, no atual
espírito, a fase mais elevada da vida humana, que o homem la- estado evolutivo, não pode ser o resultado de esforço coletivo,
boriosamente vai conquistando, formando sua estrutura espiri- e sim individual. O superconsciente é produto pessoal diferen-
tual, fase situada acima de nossa evolução humana. Para a mai- ciado e, por isso, não obedece à hereditariedade comum, que
oria, isto é futuro, exceção. Raciocina-se com o cérebro, mas se processa através dos caminhos da carne.
unicamente o espírito é capaz de intuição. Podemos, agora, concluir a exposição do problema da here-
Para o homem comum, a zona lúcida, a fase atual, é a cere- ditariedade, de que já cuidamos no final do capítulo anterior. A
bral. Normalmente, esta é a sede consciente do ego. Este se es- vida é bipolar e, por isso, uma hereditariedade adequada garan-
tende pelas duas outras zonas, porém inconscientemente. O te a continuidade de cada um de seus dois extremos: a fisiológi-
ego cerebral e consciente acha-se no centro da personalidade, ca responsabiliza-se pela transmissão do subconsciente; a espi-
entre seus dois extremos contíguos, o subconsciente e o super- ritual pela transmissão do patrimônio do superconsciente. Por-
consciente, em contato e comunicação recíproca com ambos, tanto, duas vias, dois canais abertos, um material e outro imate-
beneficiando-se pelo instinto e intuição relativamente ao seu rial, ambos adaptados à transmissão dos resultados das experi-
desenvolvimento e potência. Todas as correntes da personali- ências de dois organismos diversos: o corpo e o espírito (Cf. as
dade trifásica, de qualquer plano em que estejam, reencontram- palavras de Cristo a Nicodemos: “O que se gerou da carne é
se no ego cerebral, central, consciente, unindo-se no campo da carne; o que nasce do espírito é espírito”: João, 3:6). Do sub-
consciência às duas zonas laterais extremas, fazendo convergir consciente e do superconsciente, os dois diferentes patrimônios
para aí as próprias aquisições, com as quais são representadas. acumulados no passado, vividos por nós em ambas as formas e
Conhecemos suas vozes, distinguimos três fontes e três corren- por nós mesmos, nos dois campos, herdados, emergem no
tes: a voz do instinto, a voz da razão e a voz da consciência. A consciente, oferecendo-lhe suas úteis produções. A carne adqui-
primeira e a última vêm de longe, são produtos-sínteses; a se- riu a própria experiência e a repete; o espírito adquiriu a sua e a
gunda é presente, atual, analítica. oferece. A criança desenvolve-se plasmada por ambas as forças,
A razão apreende, controla, discute. Constitui às vezes cujo desencadeamento ela mesma preparou; cresce debaixo
campo de batalha entre as diversas correntes, quando estas di- dessa dupla orientação e influência, útil e necessária em ambas
vergem entre si ou da razão e a harmonização se torna difícil. as formas. Trata-se de simples restituição, é propriedade nossa
Nasce então a interferência das vibrações, e a luta se estabelece que nos volta às mãos e nos diz respeito, porque esses dois pa-
entre os vários impulsos. São por demais conhecidas essas tem- trimônios, na medida em que existem, nós os conseguimos com
pestades íntimas. Porém, especialmente no evoluído, de super- nosso trabalho. Cada um dos dois transmite a si mesmo e, em
consciente mais desenvolvido, se desencadeia com mais vio- seguida, age como força, mas operando cada qual no seu pró-
lência a guerra entre o superconsciente e o subconsciente, entre prio campo; cada um constitui impulso que, por força da lei de
o passado e o futuro, e ao contrário; entre espírito e matéria; en- causalidade, se liga ao próprio passado, de que constitui conse-
tre os dois extremos da evolução, que se batem pela posse da quência e continuação, e se imprime no eu atual, plasmando-lhe
consciência, como campo de realizações. o corpo e o espírito. Esse impulso representa a incorporação já
O subconsciente contém o patrimônio coletivo adquirido, acabada, a zona já formada e, por isso, fatal de nosso livre des-
as reservas da raça, o decálogo da vida animal, inscrito na car- tino (cf. Cap. XXIV – “Nosso Livre Destino”, deste volume).
ne e no sangue. A célula o conhece muito bem, graças à repeti- Tal como a memória biológica reconstitui o organismo físico,
ção milenar que ratificou as experiências originárias. Esse é o repetindo a história celular, continuada agora através da heredi-
alicerce do edifício biológico, o ponto de partida da evolução tariedade biológica, assim também o espírito reconstrói a per-
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 109
sonalidade moral, repetindo-lhe a história, agora continuada ra avaliá-las e controlá-las por meio da lógica, da observação e
através da hereditariedade espiritual. O espírito, amparando-se da experiência, e relacioná-las com os conhecimentos atuais.
nos instintos do subconsciente delegados à vida animal, plasma Isso não significa, porém, que não tenhamos já feito aqui um
a criança, compondo-lhe a personalidade e, quase inpercepti- trabalho de coordenação. Esses conceitos, aos quais, como
velmente, atingindo-lhe o cérebro (o consciente) pelas vias ima- sempre acontece com o método intuitivo, chegamos tempestuo-
teriais (que sabemos serem conscientes no evoluído) de percep- samente, intermitentemente, rebeldes a todo registro metódico,
ção interior inversa (cf. Cap. XXVI – “A música – A Vida Du- obedecendo a leis diferentes das leis da concatenação lógica e
pla”, deste volume). da conexão de ideias, que se atraem por afinidade vibratória
O corpo, o cérebro e o espírito constituem, pois, as sedes da (fenômeno da ressonância), conceitos sintéticos, mas racional-
personalidade trifásica (subconsciente, consciente e supercons- mente indisciplinados, aqui já foram, tão logo retirados ao su-
ciente), nas suas três funções: instinto, razão e intuição. A per- perconsciente, reprimidos, coordenados e enquadrados sistema-
sonalidade humana, una e trina como o universo, possui, por- ticamente no consciente. Eliminadas a irregularidade e a inter-
tanto, o organismo instintivo da besta, o cérebro raciocinante do mitência, o relâmpago torna-se luz regulada e contínua, permi-
homem, o espírito intuitivo do super-homem. Três zonas, três tindo que se veja o caminho. Este domínio da intuição dinâmica
funções, três sedes. À proporção que evoluímos, o domínio da e rebelde num concatenamento racional é um dos maiores es-
intuição torna-se, como vimos, o domínio da razão e, em segui- forços necessários à exploração do supernormal, sendo, toda-
da, o domínio do instinto. As três zonas representam, também, via, disciplina imprescindível, sem a qual tornar-se-ia inútil o
três fases de acréscimo. Quanto mais progredimos, porém, tanto método intuitivo. De outro lado, tal método permite a compre-
mais a função é precária e a forma imatura. Se no alto vemos o ensão contínua e progressiva dos problemas por captações su-
mais evoluído, vemos também o mais novo e menos completo. cessivas, como o estão demonstrando estes “comentários” à
A elevação e a estabilidade são inversamente proporcionais. A Grande Síntese, pelos quais pode-se provar que tal livro não
intuição, mais elevada e mais ampla, vive em equilíbrio mais tem propriamente um fim, podendo ser desenvolvido ad infini-
instável que qualquer outro. A razão, mais restrita e chão a tum16. Se os esquemas fundamentais então expostos são sim-
chão, fica bem mais embaixo, mas se mostra muito mais sólida ples e unitários, torna-se agora ilimitado o número de combina-
e segura e, exatamente por isso, é muito mais adequada ao con- ções possíveis entre as posições da forma. Realmente são esses
trole da intuição. O instinto, por ser o de conteúdo mais ele- os caminhos da natureza, também seguidos por nós: chegar por
mentar e limitado, fica no ponto mais baixo possível, no entan- meios extremamente simples ao infinitamente complexo, par-
to revela-se o mais garantido pela estabilidade de equilíbrios e tindo de princípios elementares ou temas fundamentais, repe-
segurança de experiências. Três graus de elevação e, em razão tindo-os em alturas, dimensões e combinações diversas. Dua-
inversa, três graus de solidez. Assim, o animal, servido pelo lismo universal. A criação – num polo, simples e, noutro, com-
instinto, é, no seu plano, o mais seguro e perfeito, embora me- plexa; centralmente unitária e de incomensurável multiplicida-
nos adiantado do ponto de vista da evolução e mais limitado de na periferia; imutável no absoluto e instável no relativo – é,
quanto ao domínio; seu instinto é mais seguro e perfeito do que ao mesmo tempo, perfeita e imperfeita; se, por um lado, incli-
a discussão racional, em relação a ele insegura e oscilante; esta, na-se para formas e existências efêmeras, por outro lado é assi-
por sua vez, comparada com os arriscados voos da intuição, naladamente eterna em seus princípios vitais. Os dois polos se
mostra-se muito mais positiva e garantida. É natural, porém, a pressupõem e se subentendem. Pelo princípio universal da opo-
instabilidade e o perigo aumentarem à medida que deixamos de sição dos contrários, segundo a lei do dualismo, a forma transi-
rastejar como vermes e começamos a andar e a voar. Toda for- tória do lado matéria presume e impõe, do lado espírito, a pre-
ma de atividade tem lugar apropriado e função determinada. A sença de uma vida eterna correspondente.
vida não se arrisca, senão em excepcionais emersões, às gran- Pelo lado forma ou matéria, uma das características do ser é
des altitudes. Quer ficar tranquila, e fica mesmo, em plena mas- a caducidade, portanto a necessidade de contínua troca para so-
sa, nas suas próprias bases. breviver, de ininterrupto renovamento para suprir, com as en-
Ainda uma observação. Não vá o leitor surpreender-se, por- tradas, as perdas e saídas, tornando-se a vida uma corrente onde
que, nestas páginas, não estamos mais formulando hipóteses, é necessária e implícita a presença de um dinamismo animador
mas fazendo contínuas afirmações. Isso decorre do fato de, por e dirigente, em que tudo na forma se reencontra, sem o qual es-
brevidade, estarmos dando aqui apenas as conclusões, pois que- ta não se pode suster. O limite desse complemento, que contra-
remos que este livro seja construtivo e, portanto, deixamos de balança o binômio e o equilibra com um elemento e impulso
lado toda discussão, como elemento negativo. Vemos então que inverso, é o espírito. Ele realiza precisamente a reparação con-
tudo isso resulta do método intuitivo adotado neste trabalho. A tínua, sem a qual a caducidade não seria renovamento vital,
dúvida, a hipótese, a espera da confirmação espiritual e o horror mas morte. Sem tal presença ativa do espírito, encarregado da
às conclusões pertencem ao método racional. O método intuiti- contínua manutenção, isto é, de tudo alimentar, sustentar e re-
vo, que nos leva à obtenção desses conceitos, tem característi- parar interiormente, aí onde é seu lugar, nada se manteria, nada
cas completamente diferentes. A intuição, por sua própria natu- haveria de sobreviver. Tal caducidade da vida é a sua fraqueza,
reza, vê, não discute, aceita as conclusões como estado de fato, o seu perigo, a sua lida. O mal, a dor, a morte estão continua-
não analisa para atingi-las, não duvida, não experimenta; ape- mente fustigando. Tudo se decompõe, e é sempre necessário re-
nas sente. Por isso naturalmente diz “é”, e não “poderia ser” ou construir. O ritmo do fenômeno vital acha-se ligado ao ritmo
“suponhamos que seja”. A verdade lhe surge já completa, e não fatal do tempo, dentro do qual, se abandonado a si mesmo, ex-
em estado de elaboração. Chegamos a esses conceitos graças a tingue-se e morre. As contínuas relações que o sustêm não po-
visões interiores, não dirigidas do cérebro para fora como as dem sofrer intermitências. Se para, vem a morte. A caducidade,
observações sensoriais, mas do cérebro para dentro, por meio fraqueza congênita da vida, subentende e impõe o movimento
de audição espiritual. Aqui, a personalidade humana se nos ininterrupto. Esta é sua condenação: fragmentar-se no relativo,
apresenta funcionando como acima dissemos, e aquelas afirma- de única tornar-se múltipla; cair do eterno no findável, do infi-
ções encontram aplicação direta. Eis um primeiro controle ex- nito na prisão do limite; ter a necessidade de reconstruir, com o
perimental das teorias acima expostas, por sua correspondência cansaço de um condenado e o sofrimento de um decaído, tudo o
à realidade, pelo menos neste caso. Reconhecemos ser justo que desmoronou, mas permanece como um sonho, um lamento,
que, a seguir, em um segundo estágio, a razão analítica, graças
16
a seu método positivo, se apodere dessas sínteses intuitivas, pa- Sem limites (N. da E.)
110 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
um ideal. Esta reconstrução chama-se evolução, e todo este levando fatalmente às portas do progresso e do resgate. Todo
complexo trabalho ligado à estrutura da personalidade represen- este sofrimento se chama vida.
ta o necessário e constante esforço para cumpri-la. A divisão da unidade em duas partes, tornando o homem in-
O mesmo princípio universal do dualismo estabelece que, completo, faz dele um partidário. Não sabendo ser senão uma
estando num polo do sistema a divergência, no outro esteja, parte da verdade, sente necessidade, para alcançar o seu com-
por compensação, a concórdia. A vida, portanto, fica conde- plemento na parte oposta, de discutir e lutar. Ele possui a ver-
nada a romper-se e recompor-se constantemente; a isolar-se dade fragmentada, não a verdade na sua unidade e totalidade.
no egoísmo e dedicar-se à união; a separar-se no individua- Seu poder de concepção não sabe ir além; acha-se imerso no
lismo e a reajustar-se na vida social. A própria personalidade, particular, no relativo, na contradição. De qualquer lado que es-
em seus extremos, subconsciente e superconsciente, está divi- teja na discussão, sente-se ausente da outra parte e, por isso, so-
dida, mas todas as correntes convergem para o centro, o cons- fre e procura indenizar-se. Sob as aparências do antagonismo,
ciente, reunificando-se no ego. A própria personalidade se di- expressão da oposição dos termos, deseja e procura aquilo que
vide em dois polos: pai e mãe, espírito e matéria; estes, po- é o próprio objeto de seu combate, aparentemente para destruí-
rém, se reencontram nela, fundindo-se numa única individua- lo, mas, na verdade, tentando apoderar-se dele, devorá-lo, assi-
lidade. Para cada ser, a existência consiste no mesmo processo milá-lo, tornando-o parte de si mesmo. Por esta única razão,
de reconstrução da antiga síntese. O múltiplo deve retornar à combate não só para que seu adversário, igualmente incompleto
unidade. Eis a constante labuta da vida, a essência da evolu- e desejoso de completar-se, não o devore, não o assimile, mas
ção: sofrimento, porém tendo como meta a felicidade. Segun- também porque ele próprio, sendo imperfeito, é sequioso de
do a lei de dualidade é imprescindível que, se, num extremo, o aperfeiçoar-se no outro. Eis o que é a vida: o estrugir de uma
limite da involução é a dor, no extremo oposto, o limite da batalha que é unicamente desejo de amor.
evolução seja, pelo contrário, a felicidade. Assim a dor é, a A luta pela vida nasce do dualismo, unilateralidade e pri-
um tempo, redenção, reerguimento, reconquista, possuindo a vação, havendo sempre atrás do amor o ódio, e atrás do ódio,
função de reconduzir ao progresso, que culmina em triunfo. E, o amor. Embora cada ser egoisticamente se incline a isolar-se
deste modo, nos ensina a lei do sistema. do todo, continua fazendo parte do todo e, por mais que deseje
O homem nasce incompleto. É por todos os lados molesta- dominar para impor-se aos outros, na verdade não passa de
do por privações, sempre vulnerável e sensível, num ambiente um pobre que procura completar-se. Reaparece então uma bi-
indiferente ao seu dano e à sua dor. O sistema supõe a vida polaridade inversa: conquanto o egoísmo seja indispensável à
como um campo de provas. As investidas são ininterruptas, vida do indivíduo, sem altruísmo não pode haver nem fecun-
mas a sensibilidade é proporcionada às provas, e as provas à didade, nem geração. O primeiro, que parece conservar e
sensibilidade. Da interação recíproca nasceu a mútua educa- acumular, torna-se um fator de separação e destruição; o se-
ção, uma simbiose de forças que, nas contínuas relações e tro- gundo, que parece dissipar, constrói e une. Todas as possíveis
cas, se contrabalançam. O ego e seu ambiente se conhecem, atitudes da vida humana acham-se compreendidas no binômio
um está disposto a se encontrar com o outro, demonstrando egoísmo-altruísmo, composto de dois termos contrários que se
profunda presciência de suas mútuas qualidades. São as har- completam. E todo esforço está compreendido num sistema de
monias da vida. Até a luta tem suas harmonias, sem as quais equilíbrios que o torna possível somente dentro dos limites
seria absolutamente impossível qualquer aproximação ou equi- impostos pela Lei, sem possibilidade de causar desordens ao
líbrio. Luta e harmonia se subentendem; se a primeira está funcionamento universal. Assim, a luta se transforma em ele-
num extremo do binômio, a segunda deve necessariamente ser mento de fecundidade e construção; não é, como pode pare-
de natureza oposta e situar-se no extremo oposto. Se há luta e cer, caos e destruição, mas fator de evolução regulado, onde
sofrimento, há também proporção entre resistência e ataque, há compensação e equilíbrio; o eu luta para se assegurar con-
entre ação e reação. A Lei, portanto, manifesta automatica- tra tudo e contra todos, mas, por lei, tem necessidade de ou-
mente a sua ação, de acordo com a sensibilidade do indivíduo, tros para unificar-se com a totalidade. Todo elemento está, por
e, proporcionando o tom de voz à sensibilidade, consegue fa- lei, unido ao seu oposto, de modo que altruísmo e egoísmo,
zer-se ouvida por todos. Quanto mais insensível e surdo o ho- atração e repulsão, impulsos contraditórios, contrabalançando-
mem, tanto mais forte a Lei grita, tanto mais violentos são seus se, equilibram-se perfeitamente.
golpes, tanto mais difíceis suas provações. Tudo nasce corroído interiormente por essa autocontradição
O homem é um binômio, dividido entre os dois extremos de que cada ser traz em seu íntimo e em seu exterior. Porém, ao
sua personalidade, dividido no sexo, na contradição contida pe- mesmo tempo, tem em si o remédio necessário. A própria con-
lo antagonismo de todo pensamento ou ato, na luta que, em seu tradição, que supõe extermínio, subentende a construção, tor-
consciente, trava-se entre subconsciente e superconsciente, na nando-se princípio evolutivo de rejuvenescimento. Portanto não
divergência entre seu mundo interno e seu mundo externo. Em se pode dizer imperfeita uma natureza que traz no íntimo de sua
contínuo movimento a fim de preencher suas falhas, aflige-se imperfeição tanta beleza: a Lei, que, apesar das aparências de
com os desejos de suas qualidades contrárias. Satisfazendo-os, desordens e desalinho, é a própria substância da ordem e disci-
vê restabelecerem-se a desproporção e o descontentamento, que plina. É verdade que a natureza é falha, insegura em suas tenta-
o tornam desiludido pela impossibilidade de alcançar a paz que tivas, sempre cega em frente ao desconhecido, porém, ainda
proviria da sua completa satisfação. As duas partes em que se que tenda a cair e pecar, que enorme poder de restauração, que
fragmentou a antiga unidade parecem condenadas a perseguir- riqueza de possibilidades! Que variedade de doenças, mas que
se mutuamente, sem jamais se alcançarem. A meta de chegada abundância de remédios! Continuamente perseguida, furtiva-
se distancia mais e mais ou, se alcançada, reaparece sempre mente ameaçada a cada passo, a vida prossegue ininterrupta,
mais longe. O desequilíbrio acelera a corrida, mas, conseguida triunfando de todas as negações. Também aqui, a realidade é
a felicidade do repouso, restabelece-se a desproporção e a ne- bipolar: exteriormente imperfeita, porém, em seu íntimo, real-
cessidade de novo movimento para tranquilizá-lo. A alegria da mente perfeita; corruptível e transitória na forma, mas substan-
tarefa cumprida foge sempre. A imperfeição congênita muda-se cialmente incorruptível e eterna. Enquanto tudo ao seu redor se
em contínua necessidade de perfeição. Sublime e terrível con- deteriora e acaba, seu interior é uma fonte inexaurível de fe-
dição de sofrimento e felicidade, de escravidão e liberdade, de cundidade e rejuvenescimento. Em meio à instabilidade de
miséria e triunfo. Negação originária que em si contêm implíci- transformação nas formas-efeito, permanece intacta a estabili-
tos todos os elementos da afirmação. Condenação de origem, dade do imutável no princípio-causa. Daí nasce a beleza e a ne-
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 111
cessidade do movimento. Tudo roda em contínua erosão, sem Fragmentou-se a personalidade, porém não se quebrou por
que nada se destrua; tudo é tomado de assalto, mas a vida con- completo. Foi lançada na discórdia, mas pode se reconstituir
tinua ilesa. Do movimento, nasce a grande ilusão, a periferia na harmonia. Perdeu sua plenitude, está condenada a viver à
complexa, mutável, fugidia; porém só na periferia. Descendo custa de ininterruptas substituições, ligada às vicissitudes da
um pouco abaixo da superfície revolta do oceano, encontrare- vida e da morte, que a impelem além ou aquém do limite, con-
mos a calma. A verdade simples, inalterável, divinamente tran- tudo sua ascensão é lei fatal, fatalidade de culpa, fatalidade de
quila está no centro. Embaraço, instabilidade, incerteza, baru- evolução, inevitável e necessária conquista de felicidade. Se a
lho, desordem, luta, sofrimento, tudo aumenta à proporção que dor e o esforço são impostos, do mesmo modo o são seus pre-
nos distanciamos do centro. Quanto mais perto dele, tanto mai- ciosos frutos. Olhando-se o exterior, fica-se pessimista; procu-
or estabilidade, segurança, harmonia, ordem, paz, contentamen- rando o íntimo das coisas, a única conclusão possível é o oti-
to. Na periferia, a complexidade e multiplicidade desorientam, mismo. A injustiça é aparente, a justiça real. A vida é penosa,
mas no centro se dissolvem em princípio simples e unitário, mas a lei de Deus se esforça continuamente para eliminar as
onde a direção é evidente. As almas que, afastando-se da vida más inclinações e libertar das sombras a luz, do mal o bem, da
exterior da matéria e dos sentidos, sabem interiormente apro- dor a alegria, procurando transformar o Getsêmani em glorifi-
ximar-se de Deus, conhecem por experiência a verdade destas cação. Através de infinitas oscilações entre um e outro polo de
afirmações. O primitivo, que vive superficialmente, não vê se- sua existência, o eu renasce, cicatrizando a grande ferida da
não desordens, mas quem vai ao fundo da substância encontra a separação. Elevando-nos sempre mais para o Alto, um dia
ordem perfeita. Portanto, sendo diverso o poder de visão, quem compreenderemos que era necessária a prisão do espírito no
só vê desordem e caos é negativo e materialista, e quem encon- corpo, neste irmão menor, instrumento de aperfeiçoamento;
tra ordem e harmonia é positivo e espiritualista. Para quem olha veremos que era inevitável o impacto da matéria inimiga, para
de fora, com a análise racional e experimental, o universo é dé- que se fortificasse nossa resistência e nos instruíssemos com a
dalo inextricável de contradições, sabedoria incerta e falha; experiência, permitindo-nos reconstruir tudo através de provas
precipitação cega para a autodestruição, dissipação incontida; é e dificuldades. Compreenderemos então quanta sabedoria se
construção desconexa, onde as partes não se adaptam, incom- originou da prisão no tormento da contradição íntima, algema-
pleta, corroída pela maldade, pelo cansaço, pela dor e pela mor- dos a um inimigo, rodeados por um ambiente de assaltos e ne-
te. Porém tanta imperfeição e corruptibilidade é apenas externa, gações. Compreenderemos a utilidade de estarmos ligados ao
aparente. Um olhar mais profundo, com a síntese intuitiva, des- inimigo, completamente imersos na luta incessante, universal e
cobre um universo que funciona perfeitamente, como desen- inevitável, destruidora mas reconstrutiva.
volvimento lógico, potência construtiva, sabedoria e segurança
de ação, conexão de partes, capacidade de compensação e repa- XXIX. SÃO FRANCISCO NO MONTE ALVERNE
ração, isto é, um organismo completo, incorruptível, inexaurí- (1a PARTE)
vel. Isto somente pode tornar-se evidente se soubermos chegar
ao centro. Somente agora pode ser compreendida a oração de A Chegamos, finalmente, a estes últimos capítulos, em que o
Grande Síntese (Cap. LXVII – “A Prece do Viandante”): “Na- caminho, após o trecho percorrido neste livro, fecha-se numa
da posso pedir-te, Senhor, porque na tua Criação tudo é perfeito pausa, para depois, talvez, continuar mais para adiante. Este
e justo, até meu sofrimento e minha momentânea imperfei- novo episódio para no ponto culminante de sua manifestação,
ção...”. Portanto o que se procura é a própria adesão à vontade retira-se para o outro extremo da eterna oscilação do ser, mu-
de Deus. A fórmula “pulsate et aperietur vobis”17 pertence ao dando para dentro o sentido de seu deslocamento, a fim de,
plano humano; o “fiat voluntas tua”18, ao super-humano. De fa- após haver narrado e demonstrado, poder atingi-la de novo. De
to, Cristo, no Getsêmani, usou esta última. É esta a diferença da fato, a vida processa por meio desse deslocamento alternado, de
oração do involuído e do evoluído. dentro para fora e de fora para dentro, as duas fases inversas de
O involuído sofre sua dor sem compreender-lhe a função, o todos os atos. A oscilação pendular entre tese e antítese, segun-
evoluído, de superconsciente culto, compreende-a perfeitamen- do a qual tudo se move e se equilibra, impõe que a introspecção
te. Exalta-se na luta entre consciente e superconsciente, como e a manifestação se sucedam no tempo.
na elaboração criadora. Sente-se dividido entre dois extremos, Ao longo de nossa caminhada neste volume, a vastidão dos
perseguido pelo desejo insaciável de se completar. Os dois ex- problemas sociais foi gradativamente diminuindo à proporção
tremos de seu ser estão em mundos opostos, o espírito de um que se aprofundava na complexidade do problema individual; o
lado, o corpo de outro, querendo cada qual dominar tudo sozi- campo apequenou-se, mas o potencial se elevou. Até mesmo na
nho, desencontrando-se no consciente. Que brilho intenso pro- forma, portanto, este livro reproduz o fenômeno evolutivo, que
voca esta batalha! A pátria terrena impõe-se por suas necessi- lhe constitui o problema central. Partimos do problema dos
dades práticas, mas do íntimo chama com voz possante a lon- grupos, da questão social coletiva, que, por causa da extensão e
gínqua voz do céu. Há olhos insensíveis, mudos, vazios, sem involução, se coloca na base da pirâmide humana, e subimos
alma, inertes e silenciosos. Há olhos cheios de tempestades, que até ao problema dos pouquíssimos evoluídos, à questão indivi-
vê lutarem as forças do espírito e percebe a atmosfera vibrante dual, que se coloca no vértice dessa pirâmide. Alcançamos,
dos grandes esforços construtivos; olhos abertos também para desse modo, alturas a que a massa não pode aspirar, a formas
outro lado da vida, revelando-nos sua complexidade, falando de de vida que apenas podem ser atingidas pela excepcional emer-
coisas misteriosas e longínquas, ultrapassando os limites, en- são biológica. Completamos, assim, uma oscilação entre os dois
xergando até no abismo do universo interior de onde emergem, extremos da vida humana: o coletivismo e o individualismo. De
resplandecendo da luz que dele emana. Falam-nos de outros fato, ao progredir, a história oscila entre o sistema social iguali-
mundos que viram, trazendo-nos recordações em seus olhares, tário e disciplinador de multidões e a exaltação do indivíduo
esses olhos que choraram e pediram, deixando transparecer nes- excepcional, autônomo e rebelde, e, graças aos dois extremos
te mundo a imagem neles impressa da divindade. Se soubermos contrários, se compensa e se completa. O sistema social, coor-
entendê-los, teremos o testemunho da outra realidade distante denando os elementos necessários, disciplina-os, constrói o in-
que foge aos sentidos e não se manifesta neste mundo. divíduo; da emersão do indivíduo resulta o sistema. Ambos es-
tes termos são necessários e colaboram no mesmo processo bio-
17
Batei e abrir-se-vos-á. (N. da E.) lógico de evolução. Agem alternadamente na história e, assim,
18
Seja feita a tua vontade. (N. da E.) equilibram suas funções no que têm de contraditórias. O pro-
112 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
gresso alimenta-se nas duas fontes. Agora, depois de havermos sim, o evoluído recusa uma fingida extensão de domínio, que
tratado dos numerosos problemas das multidões e chegado às para ele se resolve em mentira, pois trata-se em substância de
bordas do abismo da personalidade, o último passo tem de ne- aumento de escravidão; ele repele as miragens que o ligam aos
cessariamente nos colocar exatamente no ponto culminante da grilhões da posse e, tornando-se o mais possível independente
evolução humana, além do qual o espírito se desembaraça da de tudo e de todos, volta as costas a todas as conhecidas lison-
forma corpórea para assumir formas superiores, que, por en- jas da vida. Não faz questão de superioridade, mas de maturi-
quanto, nem mesmo podem ser concebidas pelo homem co- dade. Cada um de nós exerce a função exata no seu plano e está
mum. Para chegar, porém, a esse ponto, devemos refazer de no lugar certo. Mas também está na lei de justiça e equilíbrio
novo todo o caminho, subindo aos poucos, através de vários que todos os que aprenderam a desempenhar funções mais ele-
problemas, esgotando antes de mais nada o da própria persona- vadas devem ir exercê-las onde isso se torne possível, quer di-
lidade humana, do qual iremos tratar agora, observando um de zer, em outros mundos, mais adiantados e mais adequados. A
seus casos particulares mais evoluídos e complexos. Trata-se de natureza, econômica como é, conhece muito bem e, por isso,
emersão escolhida entre as mais conspícuas e espirituais, embo- não desperdiça os seus valores; o funcionamento orgânico do
ra não seja a única nem tenha apenas esta forma. universo e a grande marcha evolutiva não podem parar; a asce-
Todos obedecem aos impulsos expansionistas do eu. A ex- se, depois de realizada intimamente, impõe inexoráveis mudan-
pansão constitui a primeira e mais evidente expressão vital. Es- ças, inclusive à forma. O ciclo deve continuar na fase seguinte,
te é o esquema do ser: manifestar-se por meio de individuações o fruto maduro deve destacar-se da árvore, o homem evoluído
sintéticas, resultantes de concentração de forças no eu, mas su- deve destacar-se da humanidade. Por mais que, por bondade,
bordinadas a inverso período de descentralização, por meio do humildade ou amor, se dedique a seus semelhantes, o evoluído
qual a personalidade humana se manifesta como sistema ex- é irresistivelmente impelido cada vez mais para cima, no afliti-
pansionista. Desse modo, o binômio se completa e os impulsos vo turbilhão da vida.
se equilibram. Para a maioria, contudo, essa expansão se dá Fechemos o pedaço de caminho percorrido neste livro, con-
horizontalmente, em superfície, e somente ocorre verticalmen- templando esse momento sublime através de um caso excelso,
te, em altura, quando se trata de emersão biológica. A expan- em que um tipo de personalidade madura foge, como se fora
são do tipo normal dirige-se à posse, o que, por reciprocidade, um projétil, do campo das atrações terrestres e se atira no es-
significa sujeição; a expansão do supernormal se dirige para a paço infinito. O fruto, elaborado e amadurecido no ponto mais
libertação, que significa domínio. O normal, inexperto, vítima alto das ascensões biológicas, o produto mais bem acabado da
da ilusão, tenta dominar, mas acaba sendo dominado, procura vida humana, destaca-se da árvore que o produziu. Bem pró-
libertar-se e acaba agrilhoando-se. Conhece apenas a expansão ximo da morte, em que ele ressurge no limiar de vida muito
terrena e, por isso, mostra-se avidíssimo, como hoje acontece, mais ampla, veremos um ente não mais humano, embora pare-
de munir-se de energia, necessária para aumentar seu raio de ça, nascer para a realidade iminente de um mundo superior,
ação em superfície e sua capacidade de agir em profundidade, que se abre diante dele, revelando-se a ele num supremo lam-
a fim de que a afirmação de si mesmo atinja a matéria o mais pejo espiritual como prelúdio de paradisíacas sensações interi-
extensa e profundamente possível. Mas, desse modo, não toma ores. Esse mundo constitui o céu de Cristo. Este ser que, em-
conhecimento da expansão vertical, que lhe escapa à percepção bora pareça, já não é mais humano foi Francisco de Assis; o
e com ela a conquista do volume, quer dizer, de uma dimensão momento sublime, da derradeira ruptura das órbitas terrenas e
superior. As duas atitudes em face da vida correspondem a du- do lançamento no infinito, se passou num incêndio de luz e
as posições e concepções totalmente diversas. O primeiro tipo amor, nos cimos do Monte Alverne.
revela-se muito pequeno, espiritualmente falando, para que Relatemos a singela história dos Fioretti, acrescentando à
não possa alojar-se comodamente na pequenina casa do corpo. parte já citada no volume Ascese Mística (Cap. XV – Segunda
Sua única ambição consiste em ampliá-la, de modo a construir Parte) os precedentes do maravilhoso acontecimento:
para si mesmo prisão cada vez mais bela e vasta, anexando-lhe “...aproximava-se a Festa da Cruz de setembro. Certa noite, na
todas aquelas dependências do corpo, chamadas posses, rique- hora em que se costuma rezar as matinas, frei Leão foi ter com
zas, honras, poder. O evoluído revela-se muito desenvolvido São Francisco e, tendo dito da cabeceira da ponte, como se cos-
espiritualmente para que não se sinta sufocar no ambiente ter- tumava: „Domine, labia mea aperies‟19, São Francisco não lhe
restre. Prova a sensação que sentiria um animal transformado respondeu. Frei Leão não voltou para trás, como São Francisco
em planta. Com efeito, a vida física, se a compararmos com a lhe ordenara, mas, com boa e santa intenção, atravessou a pon-
ilimitada liberdade de movimentos do espírito, poderá parecer, te, entrou-lhe devagar na cela e, não o encontrando, supôs esti-
a quem já a experimentou, como a imobilidade da árvore com- vesse ele na floresta ou, então, entregue à oração em algum lu-
parada com a agilidade dos animais. O evoluído prestes a sair gar. Saiu e, à luz do luar, foi procurando-o cuidadosamente na
da crisálida terrena, já tendo saboreado a vida em dimensões floresta. Finalmente, ouviu a voz de São Francisco e, aproxi-
superespaciais e supertemporais, sente de fato, nas dimensões mando-se, viu-o de joelhos, com o rosto e as mãos voltados pa-
exatas, os grilhões do corpo e dos limites impostos pelo plano ra o céu, a perguntar com grande fervor: „Quem sois, ó Deus,
evolutivo da matéria. Sente a angústia da vida terrena, tolera-a dulcíssimo senhor meu? E quem sou eu, vosso vilíssimo ser-
como expiação ou missão; não espontaneamente, mas por de- vo?‟. E repetia sempre as mesmas palavras, sem dizer mais na-
ver; seu íntimo impulso expansionista segue rumo vertical, não da. Por isso frei Leão ficou muito admirado, levantou os olhos e
tem em vista ampliar e enriquecer a prisão, mas sim libertar-se fitou o céu e viu vir descendo belíssimo e esplêndido facho de
dela. Não há outro sistema sério para resolver as dores da vida. fogo, que pousou sobre o corpo de São Francisco; da chama
Descobriu os truques da ilusão e não se deixa mais iludir. Já ouvia sair uma voz que falava com São Francisco, mas frei
sabe que os domínios humanos, na realidade, não passam de Leão não distinguia as palavras. Quando viu isso, julgando-se
servidão e, por isso, não se dispõe a consegui-los mais; reco- indigno de estar assim tão perto daquele santo lugar, onde se
nhece serem eles necessários para os primitivos, como meio de dava aquela admirável aparição, e temendo, além disso, ofender
experimentação, e compreende-lhes a função nesse plano; não a São Francisco e perturbar-lhe a consolação caso São Francis-
pode, porém, aceitá-los, pois executa trabalho completamente co lhe percebesse a presença, afastou-se silenciosamente e, fi-
diferente. É justo que, de acordo com sua capacidade, cada um cando de longe, esperava ver o fim de tudo aquilo. Olhando
maneje na vida os instrumentos a que mais se adapte. Aquele
19
que sabe, porém, dá a cada um deles o valor que merece. As- Senhor, abrirás meus lábios. (N. da E.)
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 113
atentamente, viu São Francisco estender três vezes as mãos na Depois de grande espaço de tempo e de colóquio particular, a
direção da flama; finalmente, depois de grande espaço de tem- admirável visão desfez-se, deixando o coração de São Francis-
po, viu a chama voltar para o céu. Então mexeu-se, e São Fran- co abrasado em vivo fogo de amor divino e imprimido-lhe na
cisco percebeu-lhe a presença por causa do barulho de seus pés carne maravilhosa imagem dos estigmas da Paixão de Cristo.
esmagando folhas, e disse-lhe que o esperasse e não se movesse Nos pés e nas mãos de São Francisco começaram a surgir os
do lugar. Então, frei Leão, obediente, ficou parado e esperou- horrendos sinais dos pregos, exatamente como a visão lhe mos-
o... São Francisco, aproximando-se, perguntou-lhe: „Quem és?‟. trara no corpo de Jesus crucificado, que lhe aparecera sob a
Frei Leão, tremendo, respondeu: „Sou frei Leão, meu pai!‟. E forma de serafim; e, assim como as mãos e os pés do serafim
São Francisco lhe disse: „Por que vieste até aqui, frei carneiri- apareciam com as marcas dos cravos, também as de São Fran-
nho? Não te disse eu que não me andasses espionando? Diz-me, cisco tinha impressa, nas mãos, nos pés e no lado, a imagem e
em nome da santa obediência, se viste ou ouviste alguma coi- semelhança de Cristo crucificado. Embora se empenhasse em
sa‟. Frei Leão respondeu: „Pai, ouvi-te falar e dizer muitas ve- esconder os gloriosos estigmas, tão nitidamente impressos em
zes: Quem sois, ó dulcíssimo Deus meu? E quem sou eu, verme sua carne, a necessidade obrigou-o a escolher frei Leão, o mais
vilíssimo e inútil servo vosso?‟, e em seguida lhe pediu devo- simples e puro dos frades, ao qual tudo revelou, deixando-o ver
tamente para explicar tais palavras, que não havia compreendi- e tocar aquelas santas chagas e enfaixá-las em trapos, para mi-
do. Então, vendo São Francisco que Deus concedera ao humil- tigar-lhes a dor e receber o sangue que delas saía. Finalmente,
de frei Leão, por sua simplicidade e pureza, a graça de contem- tendo São Francisco terminado a quaresma de São Miguel Ar-
plar algumas coisas, concordou em revelar-lhe e expor-lhe o canjo, dispôs-se por divina revelação a voltar para Santa Maria
que ele pedira, e falou assim: „Naquela flama que viste estava dos Anjos, como, juntamente com frei Leão, lhe era convenien-
Deus, falando-me sob aquela mesma aparência com que outrora te voltar. Assim, partiu e desceu o santo monte”.
falara a Moisés... Mas toma cuidado, não andes espionando-me Isto nos contam as Fioretti, deixando os acontecimentos
por aí. Volta para a tua cela com a bênção de Deus e toma bem envoltos numa atmosfera de lenda e sonho. Que há de objetivo
conta de mim, pois, dentro de poucos dias, Deus fará tão gran- e real nesta narração? O fenômeno aqui é visto de longe, do
des e maravilhosas obras neste mesmo monte, que todos ficarão plano comum da vida humana; do supernormal não se veem
maravilhados; e fará, também, algumas coisas novas, que Ele senão efeitos físicos, aquilo que pode ser percebido pelo nor-
nunca fez em proveito de criatura alguma deste mundo...‟. Da- mal. Não chega até nós senão uma projeção dos fatos nos sen-
quele momento e daquele ponto em diante, São Francisco co- tidos. A história, depois, passou de boca em boca, e quem a
meçou a libar e a sentir mais abundantemente o dulçor da divi- narra não assistiu os acontecimentos, nem viu de perto qual-
na contemplação e das visitas divinas. Entre elas, logo depois, quer testemunho; somente frei Leão sabe alguma coisa. Não
uma preparatória da impressão dos estigmas. Foi assim. Na recebemos senão um pouco de luz vista de longe, através do
véspera da Festa da Cruz de setembro, estava São Francisco em espaço e do tempo, um reflexo filtrado pela psicologia dos nar-
oração na sua cela, quando o anjo do Senhor lhe apareceu e lhe radores. Para nos aproximarmos do fenômeno é necessário pe-
disse da parte de Deus: „Vim confortar-te e recomendar-te que netrá-lo, reencontrá-lo dentro de nós mesmos. Da redução por
te prepares e te disponhas, humildemente e com toda a paciên- nós percebida, devemos tentar alcançar o seu esplendor primi-
cia, para receber o que Deus quer fazer em ti‟. São Francisco tivo, revê-lo em sua realidade; devemos não somente observá-
respondeu: „Estou preparado para suportar com paciência tudo lo, mas procurar senti-lo e revivê-lo como realmente aconte-
quanto meu senhor queira fazer em mim‟, e, dito isto, o anjo ceu. Isto é possível pelos caminhos do espírito. O olho normal,
partiu. No dia seguinte, isto é, no dia da Cruz, São Francisco, que vê o exterior e não sabe penetrar até às realidades espiritu-
por ocasião das matinas, de madrugada, se pôs a orar diante da ais, não percebe senão indícios. Não temos aqui a história do
porta da cela, com o rosto voltado para o nascente; orou e, per- que realmente aconteceu, mas de uma parte desse fenômeno
manecendo por muito tempo em oração, começou a contemplar grandioso, que pôde se refletir na pequenez do olho comum.
devotamente a Paixão de Cristo e sua infinita caridade. Tanto Este não poderia perceber com clareza o supernormal, que,
cresciam nele o fervor e a devoção, que, por amor e compaixão, portanto, lhe aparece envolto em névoas de mistério, como al-
todo ele se transformava em Jesus. Estando assim inflamado go velado, perdido nas alturas do milagre. Para a comum per-
nessa contemplação, nessa manhã mesmo viu descer do céu um cepção concreta, o mundo espiritual desaparece no irreal.
serafim com seis resplendentes e flamejantes asas, que, voando Mesmo as vidas do Santo narram genericamente, sumariamen-
velozmente, aproximou-se de São Francisco ao ponto de este te, este momento, que não só é o ápice de sua perfeição como
poder discernir e ver perfeitamente haver nele a imagem dum o de toda a humanidade, em sua subida à procura de Deus e do
homem crucificado. (...) Estando imerso nessa admiração, foi- espírito. Momento crucial e decisivo da evolução, libertando o
lhe revelado pela aparição que a Divina Providência lhe pro- ser da animalidade humana, fuga ao mundo, às suas restrições,
porcionava aquela visão a fim de que compreendesse dever ao nosso modo de viver e sentir, para entrar numa fase de vida
transformar-se, não por martírio corporal, mas incendendo-se mais elevada, exaltação do amor até à divindade. O olho nor-
mentalmente, em imagem perfeita de Cristo crucificado. Duran- mal do historiador não vai além dos efeitos físicos, não penetra
te essa aparição admirável, todo o Monte Alverne parecia arder a substância, não pode, portanto, dar-nos a realidade destas ex-
em chamas esplêndidas, que, como o sol, iluminava os montes ceções. A história para no exterior, sendo-nos de pouca valia.
e os vales dos arredores; os pastores, que velavam por ali, ven- Por isso mesmo não pode dar-nos detalhes de coisas profun-
do o monte em chamas e tantas luzes em torno, ficaram com das, esfumando-se em lendas. No campo místico, milagroso,
muito medo, isso de acordo com o que mais tarde eles mesmos fora de nossa realidade, rodeado de luz, mas muito distante e
contaram aos frades, dizendo-lhes até que as chamas permane- irreal, o fenômeno foge à nossa percepção, tornando-se inaces-
ceram sobre o Monte Alverne pelo espaço de uma hora. Assim sível à nossa experiência, à nossa observação objetiva.
também, diante da claridade dessa luz, que resplendia nas jane- Realmente, não é nada fácil avizinhar-se de semelhantes fa-
las das estalagens da região, alguns muladeiros se levantaram tos. Por momentos, parece que o mesmo fenômeno, pudicamen-
na Romagna, crendo haver surgido o sol material, e carregaram te, mostra-se envolto em mistério, porque lhe repugna tomar
seus animais e, tendo-se posto a caminho, viram a referida luz forma material; parece que lhe seja impossível ou não lhe seja
apagar-se e aparecer o sol material. Na aparição serafínica, permitido apresentar-se claramente ao olho humano, sob a luz
Cristo manifestou-se e disse a São Francisco algo secreto e su- crua dos sentidos, e que, para ser encontrado, é preciso utilizar-
blime, que São Francisco jamais quis revelar a pessoa alguma... se mais a fé, do que a crítica histórica e científica. Sente-se que
114 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
o profano é justamente desprezado. A própria natureza do fe- aplicação lógica e fornecem explicação. O Cap. XXV deste vo-
nômeno o exige. Não é permitido ao olho vulgar, além da ho- lume, sobre o dualismo universal fenomênico, distingue duas
menagem que deve prestar à santidade, o direito de penetrar no vidas: a exterior e a interior, a material e a espiritual. Trata-se
sagrado retiro de mistério, onde se ouve a voz de Deus. Trata-se de dois mundos diversamente constituídos. O fenômeno do Al-
de coisas altas e sublimes, que se desfazem neste mundo de ma- verne pertence ao segundo. Vimos que este mundo é individua-
téria e de armas; existem e não existem, e, se nos aparecem, lizado e caracterizado por ritmo próprio, por uma forma de vi-
procuram e devem se esconder para a própria defesa, prestes a da. Vida que é expansão para o íntimo, introspectiva, intuitiva,
desaparecer no imponderável, horrorizadas pelo contato brutal ativa, espiritual, incorpórea, desenvolvida como qualidade, evo-
com a matéria terrena. Estes fenômenos, portanto, não podem, luída; ritmo de ondas curtas, alta frequência e potencial, de sin-
neste mundo, aparecer em plena luz. À maioria só é possível tonização noturna, azul, lunar, supersexual e supersensória; vi-
crer e venerar. Segue-se daí que as mentalidades racionais e ci- vida por tipo biológico solitário, silencioso, sofredor, sensitivo
entificas voltam-se para outras coisas, sentindo-se, por tudo is- e pacífico, negação do mundo. Tais as características dos fenô-
so, autorizadas a classificar o fenômeno entre os fatos da arte, menos espirituais, entre os quais, embora em nível infinitamen-
da lenda, do sonho e nada mais, chegando ao extremo de duvi- te superior, se inclui o fenômeno de Alverne. Segundo a lei do
dar de sua realidade objetiva, negando tudo materialistamente. dualismo, estamos no polo oposto ao ritmo e forma de vida ma-
Os fatos são bem diferentes. O fenômeno realmente existiu. terial da animalidade humana, cujas características são opostas.
É racional e cientificamente possível. Para afirmá-lo e demons- O não-ser no mundo da matéria estabelece no espírito o ser do
trá-lo, como o faremos, é necessário primeiramente tê-lo re- mundo imponderável. Eis então o que se nos apresenta de fato.
construído e sentido por meio da intuição e da fé, tê-lo vivido A visão não é sensória, exterior, mas interior: é contemplação.
interiormente, no espírito, para reduzi-lo aqui em forma racio- A vida vegetativa é mortificada por jejuns, renúncia, sofrimen-
nal e compreensível, porque o fenômeno, em sua profunda rea- tos. O ser vive de vida sutil, de notas agudas, penetrante, inten-
lidade, não pode fazer-se sentir ou ser narrado; como percepção sa; poder-se-ia dizer de alta voltagem, quase imaterializando-se
direta é incomunicável a espíritos comuns. Isto não significa em forma de energia radiante, constituída de ritmo vibratório. A
destruí-lo, mas reforçá-lo, já que sua realidade, de outro modo, exaltação vital está toda na expansão espiritual. A projeção di-
fugiria, sendo, portanto, facilmente negada. Achegar-se a ele nâmica do ser dirige-se para a substância, o absoluto, Deus. A
para melhor compreendê-lo não é irreverência. Assim, podere- forma, o relativo, as coisas terrenas estão superadas. O tipo bio-
mos analisá-lo e, analisando-o, explicá-lo, defini-lo, mostrando lógico já superou a fase da evolução humana, separando-se de
sua realidade objetiva, elevando-o assim a mais elevado signifi- nossa forma de existência e alcançando outra mais elevada. O
cado. Estudando sua estrutura íntima, não negamos nem diminu- ritmo da vida animal se transformou, através do longo caminho
ímos sua supernormalidade, antes a confirmamos. O prodígio da evolução, em ritmo de vida espiritual. O transformismo evo-
compreendido continua sendo prodígio, mesmo tornando-se-nos lutivo superou a fase humana, alcançando outra superior, mais
mais acessível e capaz de imitação. A intuição é compreensão e aproximada à divindade. Eis as características do fenômeno de
amor, não destruição; em vez de nos afastar, avizinha-nos desse Alverne e do seu protagonista.
modo espiritual onde se dão tais fenômenos. Trata-se de fazer Nossa pesquisa não o destrói; exalta-o. Tudo o que disse-
sentir o irreal como real, fazendo-o descer das alturas onde se mos neste volume nos mostra como ele verdadeiramente alcan-
encontra até este nosso mundo racional. E, se também esta pro- çou o limite supremo da evolução humana, estando aqui em seu
cura não tiver, por imperfeição de seu instrumento humano, a verdadeiro lugar, na conclusão deste tratado, no vértice da pi-
capacidade de conseguir o escopo desejado, ficará, contudo, râmide humana, no ponto supremo da evolução. Possui em sua
como tentativa honesta, feita com fé e em boa-fé, inspirada não mais legítima forma, embora em relação a seu tipo, as caracte-
por desejos de destruição, mas de construção espiritual. rísticas do evoluído que indicamos como meta dos esforços
Entramos no mundo da realidade supersensória, imponderá- humanos, como modelo do futuro tipo biológico. Esta conclu-
vel, situada no polo oposto da realidade sensória e material de são nos mostra São Francisco, neste momento, entrando triun-
nosso mundo terreno. Já falamos de São Francisco em diferen- fante nos umbrais de um mundo super-humano. O Alverne re-
tes fins e sentidos nos volumes As Noúres (Cap. IV – Os Gran- presenta precisamente um caso típico do fenômeno final da
des Inspirados) e Ascese Mística (Segunda Parte, Cap. XV – evolução humana, por isso foi estudado no fim destas conside-
Irmão Francisco). Para podermos nos avizinhar ainda mais de- rações. Vemos aqui o esgotamento da vida no plano físico (o
le, é necessário nova caminhada de fadiga e dor, de onde nas- organismo consumido pelas penitências) e a sua ressurreição no
ceu o pensamento destas páginas de conclusão. Somente após plano espiritual; a extinção do dinamismo animal pela deterio-
esta nova maturação, depois de estabelecidos e resolvidos no- ração e a sua ressurreição em forma radiante. Vemos São Fran-
vos quesitos, é possível encarar racionalmente tão complexo cisco alcançar um estado espiritual que representa o mais alto
problema, para o qual convergem tantos outros, presumindo ou- potencial suportável na fase da evolução humana, seu limite
tras tantas soluções menores. Podemos pormenorizar mais ain- supremo, além do qual a forma material se extingue. Chega-se
da, aplicando tudo isto a um caso real. Neste trabalho de caráter a este estado por etapas, pois a frequência de vibrações, o au-
sobretudo racional e de pesquisa, falamos presentemente ao mento de ondas e a obtenção de potencial elevado progridem
homem racional em particular, ao homem que não crê e não paralelamente, desde o pensamento concreto, que não sabe
sente, para fazer que também ele compreenda este raro e incrí- existir senão materializando-se em ação, às ondas cerebrais do
vel fenômeno vivido por São Francisco no Alverne, seu signifi- pensamento simples e comum, ao pensamento abstrato, à intui-
cado científico, evolutivo e biológico; e ainda para dar a nós ção do gênio, à oração sempre mais elevada até ao êxtase e uni-
mesmos base lógica aos arroubos de fé e afirmações místicas e ão espiritual com Deus. Trata-se de ondas cada vez mais rápi-
intuitivas desenvolvidas sobre este argumento em outros volu- das, portanto, mais penetrantes, mais poderosas, mais imateri-
mes. Ante tais fenômenos, poderemos não só crer e venerar, ais. Por fim, o espírito consegue a forma radiante, imaterializa-
chorar e amar, mas também pensar e compreender. O fenômeno da, independente da forma corporal.
do Alverne tem seu lugar e naturalmente se enquadra, também O enfraquecimento do organismo age, no presente caso,
ele, na filosofia dos fenômenos que vimos desenvolvendo em A como revelador da personalidade espiritual. As leis da fome e
Grande Síntese e nesta explanação. do amor (cf. História de um Homem, Cap. XXIII: “O Evange-
É nestes capítulos conclusivos que se confirmam as teorias lho e o Mundo”) já estão superadas. O amor, por fim, se desma-
precedentes, convergentes para este ponto, onde encontram terializou com funções puramente espirituais (cf. A Grande Sín-
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 115
tese, Cap. LXXXII – “A Evolução do Amor”). Para aqui con- ser geradores de vibrações. O mundo do espírito, que se abre
vergem e aqui se aplicam as teorias expostas anteriormente. A para as alturas da evolução, isto é, em direção à divindade,
dor, transformada em perfeita alegria, cumpriu toda sua função acha-se deste lado do ser, e não do lado sensório exterior. Está
criadora e é parte integrante do fenômeno de transumanização dentro de nós, no íntimo, dirigido ao cerne das coisas e dos se-
do Santo. Acham-se fechadas as portas do vício, abrem-se as res, onde está a substância, o absoluto, o imutável, e não na pe-
portas da virtude, e o ser, impelido e guiado pela renúncia, cor- riferia, onde se encontra a forma, o relativo, o transitório. A
re para elas a expandir-se. O fruto do martírio já está maduro; o evolução é elaboração que, levada sempre mais para a profun-
espírito, afinal, depois de tantas lutas com a carne, triunfa; a vi- didade do ser, o faz despertar e viver sempre mais perto de
da, outrora mortificada, ressurge mais intensa. O processo cons- Deus. As percepções e manifestações espirituais vêm daí; a al-
trutivo-destruidor da evolução chega ao ápice de sua fase hu- ma as consegue segundo o grau de sutileza e transparência con-
mana. O fenômeno do Alverne confirma completamente todas seguido por seu invólucro material; a realidade excitante, neste
as nossas afirmações precedentes. O fato de havermos concebi- caso, está situada não no exterior, mas no interior, e a sensação
do o fenômeno espiritual como fenômeno igualmente biológico é o último produto de um esforço inverso ao precedente normal,
deu-lhe mais força, ao mesmo tempo que encontrou para ele isto é, como dissemos, de uma inversa percepção espiritual su-
uma explicação científica e racional. A maceração dos santos pernormal. Os termos deste caminho inverso percorrido são:
não é mais utopia ou crença, mas processo evolutivo, método espírito, cérebro, nervo ótico, retina. A fonte da corrente dinâ-
de imaterialização e espiritualização, isto é, impulso à degrada- mica excitadora da percepção não está mais no ambiente mate-
ção biológica, que é condição para a ressurreição espiritual no rial externo, mas no ambiente espiritual interno. Tratando-se de
imponderável, elemento indispensável ao aceleramento da fre- radiações espirituais, não podia estar em outro lugar. A sede na-
quência no ritmo da vibração e transformação do potencial im- tural dos fenômenos espirituais e de sua origem é precisamente
pulsionador da evolução. Sua meta é a harmonização na ordem o mundo interior, do espírito, mundo que se abre para a divin-
divina, e que harmonização maior com a criação e Deus que a dade, que está em nosso interior, no centro do universo, e não
realizada no Alverne? Cessou todo o barulho, a alma fundiu-se na periferia do ser. Somente o involuído, incapaz de sentir uma
em paz na vontade divina, e a criação, naquela noite sublime, realidade diferente de seu mundo físico, pode crer que estas
fez eco, em sua ordem material, à ordem espiritual, sintonizan- realidades sejam inconscientes e inexistentes unicamente por-
do-se e fundindo-se numa única harmonia. Para confirmar que escapam à sua percepção. No entanto, para quem consegue
quanto dissemos no Cap. X deste volume, “O Problema do sentir profundamente, nada há de extraordinário. Não sabem
Mal”, vejamos neste caso como o ser, quando chega a um vérti- todos que a mesma e solidíssima matéria, em sua essência, é
ce da evolução, alcança relativamente sua autodestruição, de- imponderável? A ciência já não nos mostrou que, tão logo pe-
pois de cumprir seu dever a serviço e para triunfo do bem. netramos na íntima essência das coisas, tudo se imaterializa?
Enquanto o Cap. XXV nos dá elementos para definir e clas- Imaterializar-se significa espiritualizar-se, passar da forma tran-
sificar o fenômeno do Alverne e as características biológicas do sitória à eterna substância, da ilusão à realidade, do relativo ao
ser que o vive, o Cap. XXVI, sobre o dualismo da vida, dá-nos absoluto, o que é o mesmo que caminhar para Deus.
a estrutura interior e funcional do mesmo fenômeno. Somente Eis, portanto, como aconteceu o fenômeno do Alverne. O
confrontando-o em relação à função orgânica do universo é que dinamismo originário é radiante, movido por estados vibrató-
poderemos compreendê-lo. Trata-se de um fenômeno de sinto- rios de substância imaterial adequada ao mundo espiritual. O
nização entre o humano, levado pela evolução até às portas do cérebro capta e registra, como se fora receptor radiofônico, esse
super-humano, e o divino. Para chegar a isto, o ser deve conse- dinamismo transmitido sem fio. Assim, a realidade espiritual se
guir uma forma de vida de ritmo vibratório tão sutil e poderoso, concretiza em imagem que, através do nervo ótico, é conduzida
que possa penetrar no âmago das coisas e, aí, harmonizar-se à retina e gera a percepção ótica. Obtém-se, portanto, sob forma
com a ordem interna da criação. Só o evoluído é capaz de cap- sensória, a equivalente expressão do imponderável, de outro
tar e perceber as radiações da realidade interior do espírito. Por- modo impossível de traduzir em termos de sensação. Obser-
tanto as vias de comunicação não são as normais, exteriores, vando os olhos do indivíduo inspirado (os de T. Neumann, por
sensórias, mas sim interiores e imateriais. Precisamente no já exemplo), sentimos que, apagados para o mundo, não veem
citado Cap. XXVI, sobre o dualismo vital, observamos o meca- coisa alguma da realidade exterior, mas contemplam, como
nismo destas comunicações por via interior com o mundo ima- verdadeiro vidente, vaga e profunda realidade. Já expusemos os
terial do espírito e mostramos sua realidade, tão objetiva quanto princípios do fenômeno e, até mesmo, já os aplicamos. O olho,
a realidade deste nosso mundo material. A percepção, nestes de fato, registra uma projeção, com resultados visuais, não ori-
casos, segue os canais de volta correspondentes, em sentido undos, porém, de realidade externa, mas de realidade interna; é
contrário aos canais normais de ida, percorrendo um caminho natural que os fenômenos espirituais, evolutivamente mais ele-
sensório que vai do interior para o exterior. Neste caso, os ór- vados, não possam ter sede e origem na periferia, no exterior,
gãos sensoriais são sujeitos a vibrações provenientes do interi- na forma, que é menos evoluída, mas apenas no centro, na parte
or, nada tirando à existência objetiva da realidade excitante das de dentro, na substância; é também natural que, por força do
percepções, de que resulta o fenômeno. E é natural que, quanto principio de dualidade, esses fenômenos se transmitam de ma-
mais a vida se muda de sua forma material em espiritual, tanto neira inversa à dos fenômenos materiais. Não se trata de aluci-
mais nela se normaliza esta nova forma de sensibilidade, pela nação nem de ilusão ótica. Nossos olhos, quando olham para
qual se substitui a percepção fisiológica direta e normal por dentro de nós, veem tão realmente como quando olham para fo-
uma percepção supernormal, inversa e espiritual. O processo é ra. Tudo se resume em saber olhar, em saber sentir as vibrações
facilitado, como já dissemos, pela deterioração física (degrada- do mundo espiritual e, principalmente, em possuir um mundo
ção biológica) e depende do grau de imaterialização (momento espiritual dentro de si mesmo. O próprio vácuo interior é que
destrutivo) e espiritualização (momento reconstrutivo) alcança- nos leva a acreditar na irrealidade desse mundo, supranormal
do pela evolução. Vimos como, no caso normal, as várias partes apenas à percepção do normal, que por isso lhe nega a existên-
do caminho, para a percepção visual, são: objeto externo, lente cia. Trata-se de um problema de potencial interior, de desen-
ocular, retina, nervo óptico, cérebro e espírito. Na última etapa, volvimento espiritual, de refinamento orgânico, de sensibiliza-
a corrente dinâmica deixa qualquer base física, imaterializando- ção conseguida por evolução. Se o fenômeno ocorrido no Mon-
se em forma radiante. Mas vimos que não só o mundo externo te Alverne constitui caso sublime e excepcional, é, no entanto,
mas também o interno e imponderável da personalidade, podem para alguns temperamentos evoluídos, suscetível de experimen-
116 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
tação, embora em grau e sob forma diversos. Para tanto, torna- to. Quando, porém, produz modificações no estado da matéria,
se necessário que sejam evoluídos, porém já vimos que, no o fenômeno torna-se domínio comum, principalmente se a alte-
mundo, domina o tipo oposto, além do que, na Terra, as opini- ração se revela permanente. Para os demais, não resta senão o
ões são em grande parte elaboradas pelo tipo involuído, para caminho da fé ou da prova, representado por esse último resul-
seu uso e consumo. Em face dessa psicologia, ninguém pode tado atingido no seu plano material. Relativamente a isso, ob-
sentir, compreender, nem admitir nada disso. É questão de adi- servemos que não se trata de materializações ectoplasmáticas,
antamento evolutivo. Torna-se necessário seguir e amar essa isto é, de novas formações em sentido mediúnico, mas de per-
realidade interior, buscá-la como um alimento e com ela viver cepções e projeções do imaterial por vias internas e de trans-
em estreito contato. É indispensável nos sintonizarmos com ela, formações operadas na matéria já existente. Os fenômenos
através das preces, aproximarmo-nos dela por desmaterializa- sempre se aproveitam da via de menor resistência, que, no caso
ção, à custa de sofrimento, destruindo em nós a animalidade do evoluído, é exatamente a via interior.
humana. O fenômeno que estamos analisando, nos oferece tudo A simpatia nos levou a escolher São Francisco, entre tantos
isso em grau elevado. Quando todas essas condições se verifi- outros, como tipo de evoluído, para nos determos apenas nesse
cam nesse grau de intensidade e elevação, o fenômeno pode setor particular das formas evolutivas. Mas sempre se trata, sem
adquirir tal potência, que o dinamismo radiante originário não dúvida, de ponto culminante, de homem que atinge a fase su-
chega apenas a transformar-se em visão, mas em fato objetivo, per-humana e, no momento crítico, faz chegar ao nosso mundo,
até mesmo no que diz respeito à realidade externa, como o ca- por seu intermédio, reflexos do mundo superior a que ele per-
so, por exemplo, da lesão muscular dos estigmas. Então, a ima- tence e que, embora sob tantas formas diversas, representa o fu-
gem espiritual interior não só se materializa sob a forma de turo da humanidade.
imagem ótica, mas consegue até mesmo impor-se às leis físicas
e orgânicas comuns e causar na carne alterações permanentes XXX. SÃO FRANCISCO NO MONTE ALVERNE
das células e tecidos. Já vimos como, relativamente à sua estru- (2a PARTE)20
tura íntima, a própria célula não passa de movimentos atômicos
e cargas elétricas. As formas exteriores constituem apenas a Depois de havermos racionalmente individualizado, em su-
ilusória roupagem, resultado desse dinamismo imaterial. Quan- as características, o fenômeno do Monte Alverne, segundo o
do reduzimos os fenômenos materiais e espirituais ao seu de- esquema por nós aqui traçado de sua estrutura, agora procure-
nominador comum, quer dizer, à sua estrutura cinética, então mos compreender e reviver, espiritualmente, esse grande acon-
compreendemos facilmente essas concomitâncias e correspon- tecimento, na moldura em que a história o enquadrou.
dências. Os efeitos verificados no fenômeno do Monte Alverne Quem já subiu até ao alto do Monte Alverne, em Casenti-
mostram o elevado grau de potência radiante da fonte transmis- no, e visitou a Capela dos Estigmas terá lido a inscrição cen-
sora e a enorme capacidade sensitiva do organismo receptor. tral: “Signati, Domini, hic servum Tuum Franciscum, Signis
O fenômeno é, pois, perfeitamente possível e se verifica de Redemptionis nostrae”21. Esse é o lugar em que Cristo apare-
acordo com as qualidades do indivíduo receptor. Quem não as ceu a Francisco e este recebeu os estigmas. Para baixo, a rocha
possui não percebe coisíssima alguma. As radiações mais po- abre-se num abismo; subindo em direção do pico e da floresta,
derosas podem estar-lhe ao lado e até mesmo envolvê-lo com- encontra-se logo a gruta de frei Leão, o único companheiro do
pletamente: ele continua cego e surdo. A visão permanece na Santo, o único ser humano que, embora contrariando proibição
estreita dependência do estado e das qualidades individuais. O expressa, se aproximou dele e o observou naquele instante su-
indivíduo imaturo fica do lado de fora, não é admitido a parti- premo. Por isso, entre tantos frades, é escolhido para curar as
cipar do fenômeno; sua visão exclusivamente exterior, não pe- chagas dos estigmas. O grande acontecimento deu-se em 1224,
netra na intimidade das coisas. Para ver no íntimo das coisas, na madrugada de 14 de setembro, festa da exaltação da Cruz.
torna-se necessário, sem dúvida, olhar de dentro de si mesmo Em 30 de setembro, Francisco deixou o Alverne para sempre.
para o interior delas. Assim, a historieta se limita à verificação Acompanhado de frei Leão, “carneirinho de Deus”, desceu
dos efeitos, cujas causas, refugiando-se no miraculoso, lhe es- montado num burro até Santo Sepulcro, onde parou num le-
capam inteiramente. Frei Leão é o único que percebe alguma prosário e, por esse caminho, voltou para Porciúncula, onde
coisa. Vimos, pois, o fenômeno verificar-se no grau permitido morreu dois anos depois, em 4 de outubro de 1226 (“De Cristo
pela potência espiritual, pelo desenvolvimento, pela maturida- recebeu o último selo, que seus membros dois anos carrega-
de evolutiva e pela íntima sensibilização do sujeito. Tudo de- ram”). Frei Leão, que celebrou missa, foi amigo e confessor de
pendeu apenas dos seus poderes de percepção nesse campo. Francisco, confidente e testemunha de numerosos aconteci-
Desse modo, a visão só é percebida pelos indivíduos maduros mentos espirituais íntimos, viu e tocou os estigmas e “costu-
e, portanto, é fato estritamente pessoal. Para que outros a per- mava tirar os pensos de pano tintos de sangue para colocar no-
cebam, torna-se necessário que estejam nas mesmas condições vos”. Em 1224, na época destes acontecimentos, ele e o Santo
de sintonização e recepção. Apenas proporcionalmente às suas ainda eram moços. Frei Leão teve mais tarde tempo de recor-
capacidades espirituais é que podem parte do fenômeno, como dar e meditar, pois morreu Beato em Assis, em 14 de novem-
frei Leão, ou então coisíssima alguma, como acontece na mai- bro de 1271, isto é, 45 anos mais tarde. Foi em Alverne que o
oria dos casos. Isso é muito natural, tratando-se, como se trata, Santo escreveu para ele a Bênção, na segunda quinzena de se-
de registrar, por meio das vias interiores, formas imateriais que tembro de 1224, logo depois de recebidos os estigmas. Escre-
não encontram símile nas formas materiais do mundo exterior. veu-a com a mão trespassada e sangrenta:
Para perceber as formas materiais, faz-se necessário possuir, e “Benedicat tibi Dominus et custodiat te,
em bom estado de funcionamento, os correspondentes órgãos Ostendat faciem suam tibi et misereatur tui,
sensoriais; nada mais natural, portanto, que, para perceber a Convertat vultum suum ad te et det tibi pacem,
realidade espiritual, devamos possuir, e absolutamente livres, Dominus benedicat te, Frater Leo.”22
as vias interiores que nos põem em comunicação com o lado
oposto, com o imponderável. O que pertence ao espírito não 20
Escrevi este capítulo em Santo Sepulcro (Arezzo), em frente do
podemos percebê-lo senão com recursos espirituais, isto é, Monte Alverne. (N. do A.)
com processos diametralmente opostos aos nossos processos 21
Assinalai, Senhor, este teu servo Francisco, com os sinais da nossa
sensoriais comuns. A projeção da realidade interior (projeção redenção.
22
ótica, acústica, tátil etc.) fica limitada exclusivamente ao sujei- Deus te abençoe e te guarde,
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 117
“Que o Senhor te abençoe, frei Leão”. No autógrafo, o ajuda e proteção. A cela de Leão estava um pouco mais acima
nome de Leão está dividido pelo Tau ou cruz, sigla de Fran- da Rocha onde Francisco orava. Mergulhado no profundo si-
cisco, e essa palavra está dividida bem no meio para indicar, lêncio do céu e da terra, imerso na infinita paz da noite, Leão
na fusão dos dois nomes, a estreita união das duas almas. esperava. Não se ouvia o menor ruído. As tempestades do espí-
Mais tarde, frei Leão de próprio punho acrescentou, em letras rito não encontram eco na matéria. Porém fervorosa prece
vermelhas bem pequenas: “Beatus Franciscus scripsit manu abrasava-lhe a alma. Que insuportável desejo de aproximar-se,
sua istam benedictionem mihi frati Leoni”. 23 A Bênção está de compreender, de imitar! Que atração e que temor! A espiri-
escrita numa folha de papel pequena. Frei Leão, enquanto vi- tualidade de Francisco causava-lhe medo; naquele momento e
vo, sempre a trouxe consigo. naquele lugar, causavam-lhe vertigem a misteriosa proximida-
Relativamente à manifestação exterior e sensorial, nada se de de Deus, o contato com o infinito, a sensação do sublime. E
pode acrescentar à belíssima história dos Fioretti. Que aconte- o amigo estava quase a precipitar-se naquele abismo de potên-
ce, porém, no interior dela, na intimidade do fenômeno? Frei cia e de mistério, que o fazia tremer. Estava de espírito suspen-
Leão tenta acostumar-se a essa outra realidade, penetrando-a so, jungido a afetuosa angústia pela sorte do Santo, temia pela
por meio dos sentidos e da fé. E volta a ver a flama e a ouvir a vida do querido “pai”, que, refugiando-se no desconhecido e
voz que vem de dentro dela; não consegue, porém, entender desaparecendo na vertigem dos céus, para ele se tornava ina-
nem uma palavra. Sua percepção interior não consegue mais do tingível. Tinha medo do sublime e também temia pelo Santo,
que isso. Mas intui o resto e fica de lado, reverentemente. En- que poderia queimar-se inteiramente no divino incêndio. Exa-
tão, o amigo Francisco, que entendeu tudo, conta mais tarde tu- minando-se interiormente, fica triste por não poder segui-lo e,
do quanto Leão não pôde ouvir. Só o amor e a fé podiam indu- incapaz de progredir para o alto, ser obrigado a permanecer no
zi-lo a isso. Porque, de repente, Francisco se torna reservado e sopé da montanha da santidade, ficando sozinho na Terra, em
procura disfarçar, por humildade, reverência, temor e por causa meio à própria miséria. E chora com pena de si mesmo. Mas,
do pudor de que sempre se reveste o sublime. Nesses momen- logo em seguida, se esquece de si e pensa no amigo, pensa na
tos, sentimos necessidade de estar sozinhos com Deus. Então, sua grande missão daquele instante e quer continuar vivendo
ordena de novo a frei Leão que não ande espionando e pede-lhe apenas para executá-la. E transborda de alegria por seu triunfo
que tome cuidado com ele, pois sabe o incêndio espiritual que no mundo divino. Mas esse mundo divino, de que o amigo se
vai lavrar-lhe no corpo. Francisco percebe a aproximação do apodera, com seu peso, magnitude e poder, volta mais uma vez
incêndio. Já o envolvem línguas de fogo que saem do incêndio, a esmagá-lo, a esmagar o pobre frei Leão, que se amedronta
antecipando-o e preparando-o. E Francisco ouve dentro de si ainda mais. E se amedronta principalmente por causa de seu
um anjo de Deus, advertindo-o do que está para acontecer. No amado amigo, sobre quem recai todo o peso do infinito, daque-
dia seguinte é a Festa da Cruz de setembro. E agora, a história la imensidade esmagadora em que a alma se perde. Por isso,
dos Fioretti não é mais tão minuciosa e se torna vertiginosa, le- escuta, reza, alegra-se, extravia-se, crê e espera. Pequena tem-
vando-nos de um golpe ao momento em que, naquela madruga- pestade, reflexo da terrível tempestade que se apodera do San-
da, o fenômeno se processou, de modo a ser percebido até to. Além disso, Leão ignora. Tomado de medo, admira de lon-
mesmo pelo homem normal. E nada mais nos diz. Que aconte- ge a para ele inatingível santidade do amigo; intui, porém não
ceu durante aquela noite, no extremo oposto do fenômeno, no compreende tão incomuns colóquios com Deus. Não podemos,
seu lado espiritual? Quais os derradeiros estágios que o torna- portanto, ver a substância do fenômeno através dos olhos de
ram possível? O fenômeno já vinha amadurecendo lentamente, frei Leão, ainda fechados naquele momento. Apenas mais tar-
durante toda a vida do Santo, desde que começou a ouvir “vo- de, depois da morte do Santo, é que vão abrir-se, contemplan-
zes” em São Damiano; a maturação se acelera intensamente no do os divinos crepúsculos de Assis, através da saudade que
Monte Alverne, durante os dias precedentes, e, embora atingis- sentia por Francisco, defendendo-lhe as ideias, amando-o e
se o clímax pouco antes da alvorada, o fenômeno tinha-se pro- chorando-o. Aí então é que, meditando sobre o que ouvira da
cessado com intensidade durante a noite, nos seus claros- boca do amigo, se maturará até ao ponto de compreendê-lo
escuros e contrastes de forças. Acompanhemos até ao ponto perfeitamente. Para nós, porém, a compreensão do fenômeno
maior da curva o ciclo de sua maturação. ainda permanece na sombra.
Observemos. Francisco está na rocha dos estigmas. Frei Francisco contemplara demoradamente, na véspera, o suave
Leão está um pouco afastado, mais para cima, em sua cela. crepúsculo. E, sem dúvida, verdadeira véspera de batalha havia
Embora não possa ver muito bem no meio daquelas pedras e sido a jornada anterior, pois, na vida, tudo é luta, sobretudo a
galhos de árvore, tão perto está, que pode ouvir tudo. Perma- conquista espiritual. A noite precedente fora consumida no fogo
nece acordado, procurando ver, mas, por obediência, não ousa devorador da oração, porque o paroxismo do amor realmente é
aproximar-se. Procura estar atento ao menor ruído, porque, se voraz. Francisco sentia que estava para chegar ao zênite de sua
não deve andar observando, tem de, no entanto, proteger o vida, ao momento crítico da última separação da Terra. Quem
Santo. “Tome bem conta de mim, porque dentro de poucos di- sempre foi a aplicação viva do evangelho, está maduro para se
as Deus fará grandes maravilhas neste monte...”. Tinha-lhe si- desligar de qualquer forma terrena de vida. Mas, para aí chegar,
do, pois, confiada a guarda do amigo. Discreto, afastado, como quanto caminho! Antes de ousar lançar olhares a um futuro ma-
demonstração de respeito, e ao mesmo tempo próximo, por ravilhoso, ele hesitava, recordando o passado. Nas primeiras
força do amor, estava pronto para, se necessário, acudir em seu horas da noite, antes de afrontar sua ressurreição na divindade,
socorro. Ambos estavam esperando que, a qualquer momento, apresentava-se diante dele seu passado humano, cheio de fadi-
acontecesse algo de extraordinário. Francisco estava mais em- gas e sofrimentos. Quanto caminho de São Damiano ao Monte
baixo, mais afastado do Monte e mais isolado da terra, em ci- Alverne! Revivendo todas estas coisas, enorme cansaço pare-
ma da rocha vertical dos estigmas, guardado de perto pelo afe- cia esmagá-lo; sua vida física agonizava e, agonizando, chora-
to do amigo, que, até nesse momento supremo, lhe servia de va sua destruição, oprimindo-o com seu pranto. Seu corpo ain-
da jovem, embora subjugado, sofria derradeira tentação: a tris-
Mostre a ti sua face e compadeça-se de ti,
teza de não ter vivido para si, de não poder mais viver. Esvazi-
Incline para ti seu rosto e te dê paz, ado do espírito, tornava-se mais sutil a inutilidade do sacrifí-
O Senhor te abençoe Frei Leão. cio. “Senhor, não me compreenderão! Não me compreenderão,
23
O Beato Francisco escreveu com sua própria mão esta benção para como não nos compreenderam!”. As forças do mal assaltaram-
mim, Frei Leão. no então no ponto mais alto e precioso de sua vida: sua missão
118 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
de santo. Talvez um assobio sinistro tenha soado a seus ouvi- les adjacentes como se fora o próprio sol. A chama continuou
dos: “é inútil teu amor, tua paixão. Cumular-te-ão de louvores, visível (portanto era ainda noite) por mais de uma hora (antes
mas a traição não tardará”. E Francisco, como Jesus no Ge- do dia); tanto que muladeiros que se dirigiam para a Romanha
tsêmani, certamente chorou pela incompreensão, reformas, foram despertados pela luz nos albergues, levantaram-se, car-
traições e adaptações que haveriam de submeter a sua obra, pa- regaram seus animais e puseram-se a caminho. Só então viram
ra reduzi-la a nada. Seu ânimo foi tomado de profunda tristeza que a luz se extinguia e se levantava o verdadeiro sol. Por sua
e mortal abatimento, como se lhe pusessem uma mordaça, su- própria lei e pelas condições das radiações ambientes, o fenô-
cumbindo momentaneamente. Junto à agonia física, a agonia meno só podia acontecer neste momento, antes da aurora.
espiritual. Nas primeiras horas da noite, deve ter travado tre- Trata-se de fenômeno de harmonização com a divindade,
menda luta contra as trevas e o mal. onde a sintonização do sujeito receptor com a fonte transmisso-
Em tais fenômenos há ritmo de períodos característicos e ra deve ser acompanhada e fortalecida de radiações circunstan-
fases opostas em equilíbrio. Assim como para Cristo, antes de tes, cuja contribuição é igualmente indispensável. Para isso
seu martírio físico no Gólgota, houve, na noite precedente, o concorrem não só fatores espirituais, como também condições
martírio moral do Getsêmani; também com Francisco, antes de especiais de dinamismo ambiente, porque se trata de universal
sua crucificação pelos estigmas, houve certamente uma crucifi- orquestração de forças, e forças de todo tipo. É inadmissível
cação de dor no espírito. Sintonia lógica entre fenômenos seme- qualquer dissonância, seja nas alturas, seja nas profundezas.
lhantes. A tentação noturna é a contraparte, a primeira metade Deus é harmonia, ordem suprema, e sua manifestação não age
do fenômeno, negativa, em oposição a seu segundo momento, senão em atmosfera de harmonia e ordem perfeitas. É necessá-
positivo, o triunfo do espírito. O mal, a negação, teve seu turno rio, além da hora apropriada, a atmosfera pura das altas monta-
como condição e preparação do bem, a afirmação. Francisco, nhas, a paz dos bosques, a vastidão dos espaços, o céu límpido
portanto, para chegar à união com Cristo, devia naturalmente e estrelado, o silêncio, a solidão. Para se dar a harmonização
reviver-lhe as dores morais do Getsêmani antes de reviver-lhe o que constitui o fenômeno, é preciso não só a sintonização do
sofrimento físico da crucificação. Foi permitido ao mal que sujeito humano com Deus, mas de todas as criaturas que o ro-
vencesse por momentos. O contraste entre as forças involuídas deiam, e as forças da matéria e da vida são, também elas, cria-
da matéria e as outras forças do espírito tornava-se cada vez turas de Deus. Recordemos que tudo vibra, que todo ser, toda
mais violento na fase final da luta. Antes de definitivamente forma, mesmo material, desprende de seu íntimo radiações que
triunfar na luz, foi desferido o assalto mais forte das trevas. An- são vida, expressão do pensamento, da potência e da presença
tes de conseguir sua perfeita sintonização com as supremas de Deus. Deus está em todas as coisas. As vozes da natureza
harmonias do divino, antes de poder unir-se a Deus na harmo- nos falam d‟Ele. Atrás da aparência, toda forma é efeito de uma
nia de um íntimo acordo de todas as criaturas e forças irmãs, sua íntima substância imaterial, que a mantém em vida pela
Francisco certamente teve que atravessar, na escuridão da noite, continua reconstituição e pertence ao mundo espiritual, trazen-
a tempestade de ruídos e dissonâncias desencadeada pelo cho- do um traço, embora mínimo, da face de Deus. Só assim, con-
que caótico de forças involuídas, desarmônicas, ainda não dis- templando essa face interior da natureza, é que poderemos nos
ciplinadas na ordem superior. No Alverne, não seria novidade aproximar dele. Aqui se revelou esta forma interior, só percebi-
para o Santo se as forças do mal destruíssem o Monte, fazendo da por espíritos amadurecidos. Por isso Francisco era capaz de
precipitar suas pedras. As primeiras horas da noite, as mais tris- ouvir em todas as coisas, forças e criaturas, a voz de Deus pre-
tes e profundas, eram as mais próprias para semelhantes assal- sente. E, no alto do Monte Alverne, naquela hora, cada ser, ca-
tos; mas, às primeiras horas da manhã, a vitória já era certa. da coisa, árvores, rochas, pássaros e estrelas, ofereceu reverente
O ritmo da vida é duplo e inverso, diurno e noturno, material a homenagem de sua contribuição. A criação assistiu, vibrou,
e espiritual. Já vimos suas características. As primeiras horas da ofertou-se, acompanhou com sua íntima presença e perfeita
noite trazem consigo os últimos e mais profundos ecos das horas harmonia as núpcias da criatura com o Criador. Não foi unica-
do dia, ressentindo-se de sua proximidade e retardando-se, en- mente uma oferta cega, insensível, mas verdadeira resposta à
quanto, à meia noite, o ritmo se inverte até à manhã, cuja espiri- participação, donde podia nascer unicamente verdadeira sinto-
tualidade, por sua vez, se retarda até às primeiras horas do dia. nia, acordes livres e perfeitos. Deus está em todas as coisas,
Tal ritmo acha-se deslocado em relação ao ritmo da luz. As pri- como ordem, e como tal se manifesta. Não pode, portanto, fa-
meiras horas da tarde parecem carregar o peso de toda a escória lar-nos, nem poderemos subir até Ele, se a harmonia não for
da vida física diurna, dos encontros e asperezas da luta material. perfeita. Para que Francisco pudesse sentir a presença de Deus,
O mundo diurno é de expansão exterior, de sintonização solar, era preciso estar em harmonia com a natureza, e ao contrário.
vermelha, sensual e sensória, material e animal, de ondas longas, Pois qualquer dissonância nos afasta do íntimo das coisas, ao
baixa frequência, notas profundas, e baixo potencial em face do qual só poderemos chegar com a perfeita harmonia.
espírito. É o mundo do involuído: forte na carne, débil no espíri- O fenômeno só podia acontecer naquele lugar, naquela hora,
to. Também aqui, este momento do ritmo vital presume e espera com aquele homem. Isto está no íntimo da criação. São estas as
seu momento oposto, dado pelo poder do espírito. regras musicais da orquestração que origina tais acontecimen-
Gradativamente, porém, a tempestade do mal se acalma, tos. Era necessária a transparência matutina de sutil atmosfera
para e passa. É na segunda metade da noite que, superada sua que não obstaculizasse ou absorvesse as radiações provenientes
fase negativa, se inicia a fase positiva do fenômeno. Esgota-se tanto da terra como do céu, radiações telúricas e estelares. Era
e cala-se a vida material, revivendo no imponderável. Entra- necessária também a doce estação de setembro, quando o sol é
mos no período de reconstrução da frequência de onda, do po- oblíquo, o calor do estio calmo em suas primeiras quenturas ou-
tencial, em seu período espiritual. Vimos suas características. tonais, quando se aquietou o fervor estivo da vida; estação em
É uma vida sutil, imaterializada, interior, vigorosa, penetrante, que a exaltação da parte física, ao contrário da espiritual, dimi-
de ondas curtas, alta frequência e grande potencial, de notas nui de ritmo e se esvai. O princípio de harmonia e sintonia exi-
agudas e radiações noturnas, violetas, lunares. As condições gia manhã tranquila, límpida, diáfana. O perfeito equilíbrio das
ambientes, que lhe são relativas e harmônicas, acentuam-se pe- forças primordiais permitiria à natureza entoar a nota funda-
la aurora, depois do que tendem novamente a inverter-se na fa- mental da sinfonia, elevando ao redor do fenômeno, em perfeita
se diurna. Vemos nos Fioretti que o fenômeno aconteceu mais consonância, um fundo musical harmonioso, que a faria vibrar
ou menos uma hora antes do nascer do sol, e que o Monte Al- qual caixa de ressonância, a fim de nela apoiar e elevar a har-
verne resplandecia pela chama que iluminava os montes e va- monia muito mais sutil do fenômeno místico.
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 119
Do mesmo modo, eram indispensáveis as condições particu- voz não chegava ao pico, nem perturbava aquela paz divina.
lares em que se encontrava o sujeito, isto é, seu estado de com- Mais longe ainda se perdia o ribombar seco da voz cavernosa do
pleto esgotamento físico, de maceração orgânica, que eleva o mal. Ele, como toda criatura, de acordo com sua natureza no
potencial de vida do espírito, estado de degradação do dina- equilíbrio entre as forças do universo, também estava em seu lu-
mismo vegetativo, que ajuda sua transformação em dinamismo gar, para confirmar, e não para violar a ordem divina. O mal, lá
espiritual. Enfim, era preciso o elemento fundamental: o ho- em baixo, revolvia-se num mar de trevas. Do alto, do ilimitado
mem; um homem que tivesse conseguido, por longa prepara- resplandecer das estrelas, chovia sobre a terra uma luz indecisa.
ção, a maturidade; capaz de suportar e superar, diante de Deus, Era uma radiação difusa e penetrante, tremor agudíssimo do
a hora critica da revolução biológica, lançando-se como um bó- éter, acariciando os seres, por toda parte transmitindo seu ritmo
lido no mundo do espírito e saindo para sempre da órbita das a toda criatura; vibrando de alta frequência, quase espiritual, tri-
trajetórias terrestres. Era preciso que este homem, no extremo nado agudíssimo, constante, sutil. Paz: cantavam as estrelas,
do sacrifício, no vértice do amor, abrisse os braços para Deus e obedecendo à ordem divina. Esta a orquestração do universo que
a ele se atirasse ardente de fé e louco de paixão. acompanhava o desenrolar-se do fenômeno; viva em cada nota,
Era noite alta, e parecia que se tornara imóvel antes de se feita de conceitos, de forças, de formas, feita do pensamento e
destruir no dia. Nos dois horizontes opostos, o crepúsculo e a poder de Deus, que tudo movimenta e vivifica. Sobre esse fundo
aurora calavam-se. A luz solar que, neste hemisfério, é quente, de tão imensa sinfonia vibrava a alma do Santo, respondendo às
rósea, viva, direta, estava agora envolta em sombras. Difundi- notas graves das criaturas irmãs que com ele cantavam em coro.
do pelo céu, somente um pálido reflexo de miríades de estre- Por sua vez, elas respondiam numa única música que, em sínte-
las, luz tão diferente, fria, argêntea, sutil, imaterial. A mais se, dizia: Deus. Assim, bem de longe, através da criação, teve
humilde e calma sinfonia noturna sucedeu à grande sinfonia do começo o colóquio entre Francisco e o Criador.
dia. Harmonia inversa, em tom menor, solitária e melancólica, Era o último dia da lunação; ia surgir a lua nova, que, por-
de expectativa e meditação. Eis que a vida não mais se lança tanto, nesse momento não aparecia no firmamento 24. A noite
ao exterior para se expandir e crescer, mas se recolhe em si pa- navegava triunfante para o momento de sua mais intensa espiri-
ra se compreender. Durante a noite, a vida renasce inversa, en- tualidade. A música universal seguia em diversas alturas a espi-
volta em sonhos; toda nota de luz, de som, de forma, revive ritualização da hora e a tensão cada vez mais crescente da alma
aveludada em vozes delicadas, que refletem o dia, suavizadas de Francisco, num crescendo de harmonia e perfeição. Vibra-
por transparências irreais, espiritualizadas em contornos inde- ções e acordes sucediam-se em planos sempre mais elevados,
finidos, vagas, submissas, sutis como um eco de acordes dis- cada vez mais claros e puros. Ele, o mais perfeito dos seres, o
tantes. É a hora em que o universo cessa de falar materialmen- mais nobre, o mais vizinho a Deus, confortado pelo amor que
te, do exterior, e passa a falar espiritualmente, de suas profun- espalhava e que agora lhe era restituído, rodeado pela natureza
dezas. Olha-nos então com seu olhar interior, que não vê a ajoelhada em veneração, entoava, seguido por toda a orquestra,
forma, mas o mistério de suas causas, observa nosso interior e seu mais sublime canto. Parecia guiar a marcha ascensional da
nos convida à introspecção. Foi em meio a esta imprecisão de vida. E tudo, em perfeita harmonia, progredia, em ritmo cada
formas, neste supremo silêncio da ilusão humana, que o espíri- vez mais vivo e poderoso, para a aurora, o incêndio. Ao mesmo
to preparado de Francisco podia, cantando as criaturas, recon- tempo que o ritmo aumentava de potencial, a respiração torna-
quistar a corrente de manifestação divina até chegar à sensação va-se ofegante, suspensa de enorme tensão, temendo um cho-
de Deus. Sua alma ouvia as infinitas vozes da criação, abria-se que. Parecia que a terra se inflava e se erguia para seguir o San-
como flor ao sol da manhã, ao mesmo tempo que ao redor co- to em seu arrojo divino, que parecia querer arrastar consigo to-
meçava, mais límpida e sutil, a sinfonia do universo, abriam-se dos os seres para Deus e abraçar em seus braços abertos todas
os céus e do alto chovia luz espiritual. Na diáfana imensidão as criaturas irmãs, incendiando-as em sua divina paixão de su-
da noite desapareceram os horizontes. A terra não era mais ter- bir. Estas pareciam querer unir-se ao arauto da vida, seu men-
ra. Do alto do Alverne parecia infinda vastidão, sem limites sageiro perante Deus, e impeli-lo a subir ainda mais alto, até ao
como o céu, e com ele tão idêntico, que era uma única e indi- trono do Eterno, para levar até lá suas vozes e para que, lá, o
visível imensidade. O céu e a terra eram então a imagem do in- Santo recebesse o último selo de sua missão. A vida parecia ati-
finito. No alto, na vertigem do azul, abriam-se os misteriosos rar-se alegremente à subida, para matar sua sede de sublime. O
abismos das estrelas, espaços sem limites, onde os olhos e a fenômeno já havia começado e devia cumprir-se até o fim. Ca-
mente se perdem. Deus é ainda mais profundo e distante, da minuto acelerava-lhe o ritmo. Francisco tem atrás de si o
mesmo estando tão perto; a alma o encontra quando está para acordo universal das forças que o estimulam e, diante de si,
se perder. A visão dos céus se mostra a nossos olhos como a Deus, que o atrai. Não pode mais voltar. Não é mais dono da si-
visão de Deus: parece cair no nada, e aí encontramos tudo. tuação. Deve aceitá-la humildemente de Deus. Cairá inevita-
Francisco, de pé sobre a rocha, de braços abertos, contem- velmente no incêndio, que se alastrará pelo monte.
plava. Deixava-se acompanhar e guiar pela voz de todas as cria- A história dos Fioretti, como o evangelho, não podia ser in-
turas irmãs para o Criador comum. A maré imensa das radiações ventada. Os dois livros pressupõe e fazem sentir, na simplicida-
de todas as coisas parecia elevar-se com ele para Deus, harmo- de de sua história, um profundo conhecimento dos fatos espiri-
nizando-se em uma orquestração cada vez mais doce e espiritu- tuais, que não podem ser improvisados nem inventados pela al-
al. Cada ser era uma nota falando-lhe de Deus. Tudo falava à ma do povo. O narrador dos Fioretti fica, na ingênua simplici-
sua alma sensível, e ele tudo ouvia e compreendia. A vibração dade, fora do fenômeno, limitando-se a contar os fatos exterio-
mais profunda vinha da terra e subia como um trovão pelas ro- res. No entanto este modo de ver, tão material, coincide com sua
chas ásperas do monte. A relva emitia uma nota mais cheia, substância espiritual, com a profunda realidade do fenômeno.
mais vizinha da vida, majestosa, severa. Os pássaros, os insetos, Ora, a experiência comum das coisas terrestres não é suficiente
os outros animais adormecidos, as ervas, ressonavam ao redor, para fornecer-lhe elementos de semelhante história, que não pa-
numa respiração tranquila. Mais ao longe, na interminável des- rece, mas deixa transparecer tanta sabedoria. O modo como é es-
cida, nos montes, nos vales e planuras, as forças da vida repou- tabelecido e se desenvolve o fenômeno, a moldura que tão bem
savam em paz. Em paz, as criaturas abandonavam-se confiantes o cerca, a hora, o lugar, o homem, o comum, o prodigioso, o ma-
nos braços da sabedoria e providência da lei de Deus. A tempes-
tade do mundo, onde o homem se amedronta e se consome, es- 24
Tal fato foi depois confirmado por resposta do Observatório Astro-
tava longe, lá em baixo, nas cidades agitadas e cansadas. Sua nômico de Capodimonte (Nápoles). (N. do A.)
120 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
terial e o espiritual, tudo está perfeitamente equilibrado e, com clusão deste trabalho, que lhe serve de base, procuramos dele
os meios mais simples, com a espontaneidade das almas virgens, demonstrar, por meios científicos e racionais, a possibilidade e a
nos dá imediatamente o sentido da verdade. Francisco está sus- realidade, que a mesma ciência e razão às vezes negam. Procu-
penso no vértice de uma rocha, entre a terra e o céu, ao mesmo ramos reconstruí-lo pelo método da inspiração, isto é, por intui-
tempo só e acompanhado por todos os seres, com a alma aberta ção e sintonização noúricas. Procuramos restituí-lo à vida, para
a todas as vibrações do universo, diante de Deus, que, em alta que nos alimente, nos guie, nos arrebate, como fenômeno bioló-
voz, através de todas as criaturas, lhe diz: presente. Deus lhe fala gico que interessa à nossa evolução humana. Apresentamos São
por tudo que existe, pela organização funcional do universo, pe- Francisco no vértice da evolução humana, como um dos muitos
las harmonias da vida, pela alegria e pela dor, fala-lhe no fundo modelos de nosso futuro, para que alguém tente imitá-lo na me-
da alma, por toda a parte e sempre presente. Temos necessidade dida do possível. Temos necessidade de São Francisco, especi-
não só de um Deus que é causa transcendental e longínqua, mas almente hoje. Onde a ciência materialista nos iludiu prometen-
sobretudo deste Deus atual, imanente e presente. Doutra forma, do-nos uma riqueza traiçoeira, que nos empobreceu o espírito,
ficaremos órfãos e sós, sem esperança de ver algum dia o que São Francisco nos oferece a riqueza espiritual e a alegria, mes-
seja do rosto de Deus. Ele existe, e é preciso senti-lo no meio de mo numa vida pobre e simples. A ciência ainda não soube fazer
nós. Não é nem pode ser um pai inatingível, por si mesmo triun- tão grande descoberta: fazer os homens contentes com meios
fante nos céus, colocado numa distância insuperável. Assim é simplíssimos. Podem dizer: “enganando-os com ilusões”. Mas a
apenas para quem raciocina friamente, o que nos aproximaria civilização, o que fez para o tão esperado paraíso na Terra, que
muito pouco de Deus. Francisco o alcançou porque começou por está sempre para se realizar, senão traições? São Francisco nos
olhar na terra seus reflexos, servindo-se deles para subir até ensinou a libertarmo-nos de tantas das necessidades que nos es-
Deus pelos caminhos íntimos da fé; porque, para chegar ao Cri- cravizam, criadas pelo progresso para exploração; ensinou-nos
ador, passou por todas as suas manifestações nas criaturas. Al- (e em que condições!) a alegria perfeita que o mundo desconhe-
cançou-O porque seguiu mais os caminhos do coração que os da ce. Como se sentia rico com tão pouco; como nos sentimos po-
inteligência, e preferiu a imolação e o amor ao raciocínio. bres com tanta riqueza! A moderna ciência materialista jamais
Eis que se aproxima o momento supremo. Francisco come- conseguirá invenção semelhante: dar sensação de riqueza a
ça a rezar, voltado para o oriente. Sua querida Assis também es- quem vive pobremente. Quem destrói as aparentes utopias da fé
tá desse lado, onde logo o primeiro pressentimento vago da au- pode destruir valores morais inestimáveis, que são imenso poder
rora começaria a delinear o horizonte. A noite atingia sua hora de resistência. No céu e na terra existem muitas coisas que so-
mais espiritual, hora de sonhos alados, de luzes diáfanas e irre- mente são impossíveis aos ignorantes. Intuições supremas, que
ais, hora profunda de mistério e silêncio. Eis Francisco diante ultrapassam os limites de nossa miserável vida cotidiana, são in-
do fim supremo: Deus. Quantas etapas para aí chegar, quantas dispensáveis à vida de indivíduos e de povos, cumprindo há sé-
pequenas tentativas de sintonização em sua vida! Aproxima- culos sua função, apesar de todas as negações.
ções parciais foram concedidas em São Damião, em Greccio,
na ilha de Trasimeno, na Porciúncula, na lagoa de Veneza e em CONCLUSÃO
tantos outros lugares de solidão e beleza. Tinha sido preparado
por investida e contatos progressivos, até à perfeita sintoniza- O fecho deste livro representa novo trecho de caminho per-
ção com Deus. O invólucro físico de sua alma se sutilizava gra- corrido, mais uma pedra do edifício espiritual. Esta obra desen-
dativamente pela penitência, seu ser tornou-se mais sensível e, volveu também, como continuação e comentário de A Grande
por sua vez, preparado pelo jejum, pela oração, pela solidão e Síntese, a grande luta humana entre a luz e a sombra, o presente
pelo sacrifício. Eis que as forças do universo rodam diante de e o passado. Cada passo nosso, no estudo do contraste entre a te-
Francisco. Subiu a tal ponto, que as vê convergir para um único se e a antítese, foi caracterizando a síntese. Este trabalho consti-
centro e é capaz de ouvir a música paradisíaca de sua harmonia. tui novo desafio lançado ao mundo, não a esta ou àquela de suas
É a ordem das coisas que canta os louvores de Deus. Francisco pequenas divisões feitas à base de interesses, mas ao mundo to-
é arrebatado em êxtase, está fora de si de tanta alegria e tensão. do e à sua psicologia, aos seus valores, como antítese do reino
A grande orquestração do mundo vibra anunciando a chegada dos céus, da imponderável realidade do espírito. É desafio que o
da glória do Rei, que vem ao encontro de seu servo. Abrem-se mundo da justiça lança a todo o mundo da força. Longínqua e
os céus, o monte se incendeia, inundando a terra de luz. As humilde ressonância do evangelho, rebela-se, como ele, contra o
criaturas, imóveis, olham reverentes, prostradas mais abaixo, ao mundo e emprega na guerra as armas da paz. O evangelho, a que
redor, distantes, temendo tocar tão alta tensão, diante da qual nada podemos acrescentar ou tirar, constitui de fato o nosso fa-
sentem que suas formas se desfazem. No alto ficam dois únicos rol; e Cristo, que, com as armas do amor, desafiou a força bruta,
seres: Deus e Francisco. O universo é um grão de areia que se Cristo é para nós o modelo supremo. Roma não o entendeu, na-
funde e some. Não mais se vê o sol em seus reflexos infindos, turalmente; não o entenderam também as multidões apaixonadas
mas em seu real esplendor. À extrema alegria e tensão de espí- que o seguiam e talvez preferissem aclamá-lo como rei de um
rito, deve ter seguido na matéria terrível choque e sofrimento reino terrestre; nem mesmo o compreenderam os apóstolos, que
imenso. Mas, para o espírito, é felicidade naufragar e perder-se apenas esperavam vitórias materiais; não o compreende, final-
na infinita divindade. Tocamos o inexprimível, e as palavras mente, nossa época, divorciada do espírito. Desse modo, Cristo
faltam. Estamos no limite extremo do sublime. O próprio Santo viveu no meio da incompreensão dos que mais próximos esta-
contou tudo isto da melhor maneira: calando-se. vam d'Ele e do silêncio de seus contemporâneos, como ainda
Só nos é possível olhar de longe, como os muladeiros que hoje vive em meio da incompreensão e do silêncio dos nossos
iam à Romanha; olhar através da história, da lenda, da arte, da tempos. Ninguém Lhe ligou importância enquanto vivo. Roma
fé, porque nossas tentativas de reconstrução por intuições não estava plenamente satisfeita do próprio esplendor. O cérebro que
vão além. Aquele incêndio projetou na visão interior de Fran- dirigia o mundo todo nem de longe poderia suspeitar que um
cisco uma forma luminosa: Cristo. Mas o incêndio envolveu bárbaro obscuro, perdido lá nos confins de uma terra de escra-
também o corpo do Santo, que ficou marcado em sua carne pe- vos, estivesse lançando a semente, viva até hoje, da renovação
los sinais da Paixão. Pois é lei que a união não se pode alcançar do mundo. Quando Ele morreu, pensaram que Sua figura tinha
senão com a semelhança e a subida só é possível pela dor. desaparecido completamente e Sua instituição havia entrado em
Tudo isto será por alguns relegado como lenda ou fantasia. agonia. Mais tarde, porém, de um só golpe, inesperadamente,
Não podem admitir o fato. Colocando este fenômeno como con- Seu pensamento se propagou e conquistou o mundo todo, até
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 121
transformar-se em sinal de contradição na história da civilização ência. Neste livro, a questão religiosa do progresso espiritual
humana. Hoje, como ontem, e como amanhã, o mundo ou é a é também considerada como fase de evolução biológica, por
favor de Cristo ou contra Cristo. Indiferente é que ninguém pode isso o fenômeno moral continua verdadeiro, mesmo se enqua-
ficar. Ninguém pode ignorar-lhe ou destruir-lhe o pensamento. drado na ciência, que, assim, não fica destacada nem diferente
Está nas próprias raízes da vida, tem valor fundamental na reali- do evangelho, mas enquadrada nele. Por isso este livro faz o
dade biológica. Quem se espelha nesse pensamento, quem a ele que a ciência não pode, isto é, conforta moralmente a dor, até
adere, por uma questão de simples reflexo se engaja na luta apo- mesmo em termos racionais.
calíptica das ascensões humanas. Se a Grécia criou a beleza e a Apesar das várias tentativas de nivelamento a que hoje nos
sabedoria e Roma o direito, Cristo elevou o amor ao papel de inclinamos na busca da justiça social, os homens não são, não
força de coesão social, introduzindo no mundo conceito novo, podem ser e jamais serão iguais. A justiça é necessária, mas,
inédito e original, que se tornará a unidade de medida do pro- em razão da estrutura biológica do planeta, não nos pode ser
gresso humano. Quem, como nós, se ocupa principalmente dis- dada pela igualdade, pois, na Terra, a igualdade não correspon-
so, não pode deixar de tomar conhecimento d'Ele e seguir o ras- de à realidade e, por isso, é absurda e impõe-se coativamente. A
tro luminoso de Seu exemplo. humanidade, no entanto, compõe-se de seres de diversíssimo
Nossos tempos lembram aqueles em que Ele viveu. Enquan- grau evolutivo, que vão da besta ao anjo. Para o primeiro tipo, o
to o mundo romano, em pleno fastígio da força, se desfazia no ambiente terrestre representa o máximo de evolução e de aper-
ceticismo, o suave e humilde mundo cristão, amparado no po- feiçoamento biológico, de bem-estar e de felicidade; para o se-
der da fé, construía em silêncio. A história parece divertir-se gundo, o mínimo de tudo isso, apenas provações, verdadeiro in-
com seus personagens, destruindo os mais poderosos, exaltando ferno. Entre os dois extremos oscilam mil e um estados inter-
os mais humildes, demonstrando-nos obedecer a desígnios que mediários. Vivem, materialmente, lado a lado, confundidos,
não se identificam com os dos homens. Muitas vezes, até mes- ajudando-se e alternando-se no labor evolutivo, mas inconfun-
mo os mais espertos e astutos denotam grande cegueira em face díveis quanto à natureza, que permanece diferente, de modo a
dos acontecimentos futuros, e a história conduz governantes e permitir, mais tarde, a volta de cada um a seu lugar exato. Os
governados a situações inesperadas. Acontece que os fortes indivíduos adiantados, embora poucos, não estão nesta ou na-
tombam e os humildes triunfam, o mínimo se torna máximo e quela raça, nesta ou naquela nação, mas distribuem-se por toda
ao contrário, as mais sólidas construções desabam e as mais dé- parte, e seus objetivos são, acima de tudo, superterrenos. Os in-
beis continuam de pé. Enquanto o homem arquiteta planos, a divíduos evoluídos não constituem casta com o objetivo de do-
história, instável e repleta de surpresas, faz os acontecimentos minar neste mundo, nem raça nacional de finalidades imperia-
se desenvolverem de acordo com o plano diretivo por ela elabo- listas; pelo contrário, reconhecem-se à primeira vista e confra-
rado, bem diferente do formulado pela razão humana. Não po- ternizam-se onde quer que se encontrem e sua vida, finalmente,
deremos compreender esse plano interior sem antes entender o já se dirige para fora deste mundo, que eles superaram. Na Ter-
funcionamento orgânico do universo. Nenhuma orientação polí- ra, o tipo besta goza, o tipo anjo sofre; o primeiro destrói, o se-
tica, nenhuma filosofia e nenhuma interpretação da história atu- gundo cria; um ignora, o outro sabe; um pede, toma, prende-se,
am senão apenas em função desse conhecimento mais amplo. o outro dá e se desliga. São essas as verdadeiras diferenças de
Como existem dois planos históricos, um exterior e aparen- substância, que distinguem e separam, as únicas que têm valor.
te, outro interior e real, a história se desenvolve através de duas Neste livro, partimos do involuído e chegamos ao evoluído. O
espécies de acontecimentos: os exteriores, visíveis e ruidosos, problema coletivo ficou embaixo, nos primeiros degraus, por-
que todos acompanham e a história registra, e os interiores, in- que, desenvolvendo-se em extensão, não pode desenvolver-se
visíveis, silenciosos e subterrâneos, que as pessoas e a história em altura. Já vimos que, como é justo, quando o evoluído aca-
não veem senão quando finalmente se manifestam em frutos bou de sofrer no calvário do dever, de altruísmo e de dor, vai
concretos e maduros. Assim, os períodos de incubação e de para sempre embora deste mundo. Este fim constitui o objetivo
germinação, tão importantes quanto os de desenvolvimento e dos que têm longo caminho a percorrer e representa conforto
plenitude, passam despercebidos e permanecem secretos. A his- para quem está ansioso por atingi-lo.
tória é uma florescência de acontecimentos, dos quais não per- “Coragem!”, dizemos a quem sofre. Não superestimeis as
cebemos nem o intenso e íntimo trabalho preparatório, onde re- liberdades e os programas humanos; libertai-vos individual e
side seu significado, nem a calma subterrânea em que continu- definitivamente. O caminho da libertação existe sim. A conde-
amente se elaboram. E, desse modo, muitos fatos continuam nação não é eterna. Vós mesmos podeis empregar, em vosso
sem explicação lógica. Existe a conquista bélica, material, das próprio benefício, as leis da vida e transformar-vos, evoluindo.
terras, dos corpos e dos haveres, mas também existe a conquista O caminho livre, a única fuga possível do inferno terrestre,
pacífica, espiritual, das almas e dos valores morais. São estes os consiste precisamente na evolução. Não há outro. Na verdade,
dois extremos da história, seu aspecto visível e seu aspecto in- esse caminho subentende sofrimento e esforço, mortificação,
visível. Não apenas as multidões, mas até mesmo os próprios purificação e imaterialização; é árduo e difícil, mas o único se-
apóstolos, ao invés da expansão interior, no plano do espírito, guro e positivo. A evolução coletiva, em massa, é demasiado
conceberam a expansão exterior, no plano material. Cristo, po- lenta para os de mais boa vontade e muito simples para os mais
rém, esclareceu e retificou mais tarde, mostrando através de fa- adiantados. Quem quer concluí-la depressa deve abandonar a
tos que sabia vencer interiormente, apesar das aparências exte- corrente e agir sozinho. Esse caminho é a redenção ensinada
riores da derrota. Mostra-nos a história como podemos chegar à por Cristo. Por isso Ele disse:
afirmação sem as manifestações exteriores que a assinalam; cri- “Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados.
ar e vencer em silêncio; conquistar também por meio de expan- “Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, por-
são interior; e ir muito mais longe pelos caminhos pacíficos da que serão saciados.
convicção, que satisfaz, do que pelos caminhos bélicos da ação, “Bem-aventurados os perseguidos por causa da justiça, por-
que constrange. E, também nisso, obedecemos ao evangelho. que deles é o reino dos céus.
Mas o presente volume, que estamos concluindo, não tem “Alegrai-vos e exultai, porque a vossa recompensa é grande
apenas significado espiritual, moral e social, mas também bio- no reino dos céus...” (Mateus, 5).
lógico. É, acima de tudo, construtivo; consegue explicar tudo, O evoluído, que entende e sofre, compreende o valor destas
sem negar coisa alguma; cria e relaciona, mas nada destrói; palavras. Sabe que a ressurreição só é possível depois da paixão
eis sua contribuição. Assim como respeitou a fé, respeita a ci- e que Cristo pôs em prática leis biológicas, demonstrando-lhes
122 A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO Pietro Ubaldi
a inexorabilidade. Não há outra porta para escapar à dor senão souros humanos, isto é, os excrementos da vida. O involuído,
essa estreita e difícil. O evoluído tem os olhos fixos no Ge- que crê tê-lo subjugado, roubou-lhe apenas as pedras do cárce-
tsêmani, fase de evolução biológica para todos. re, para com elas construir sua prisão; é um ludibriado, vítima
O problema final deste livro, depois de todos os outros, é a de sua própria ignorância. Tanto esforço para roubar de uma
salvação do evoluído. Há três tipos humanos predominantes (cf. vida apenas os despojos, a ele deixados pelo evoluído, que vai
A Grande Síntese, Cap. LXXVIII – “Os Caminhos da Evolução para mundos melhores, carregado de riquezas bem diferentes.
Humana”): A distância percorrida já é enorme, e o abismo que divide os
1) O tipo sensorial, que vive exteriormente nos sentidos; é o dois tipos não pode mais ser eliminado. A justiça divina existe,
selvagem, que forma grande parte até mesmo de povos civili- portanto, se há gozo para o pecador, haverá felicidade para o
zados. Sua fé e sua vida baseiam-se na força. justo. Lázaro e o rico avarento estarão eternamente distantes:
2) O tipo racional, que vive mais internamente, no cérebro; “Abraão disse: (...) há entre nós e vós um grande abismo, de
é o cerebral, tipo que, embora muitas vezes constitua a classe maneira que os que querem passar daqui para vós não podem,
culta e dirigente, ainda continua egoísta, isto é, isolado e, em nem os daí passar para cá.” (Lucas, 16:26).
geral, desorientado. Sua fé e sua vida baseiam-se na astúcia. Dirigimos ao evoluído, ápice biológico, estas palavras de
3) O tipo intuitivo-espiritual, que vive ainda mais interna- conforto. A maior parte da humanidade ainda se encontra fora
mente, no espírito; é o evoluído, exceção biológica, sábio, al- de seu campo e destas derradeiras conclusões. É fatal, por jus-
truísta, irmanado a todos os outros seres do universo, enqua- tiça divina, que cada ser volte a seu lugar, segundo o próprio
drado no seu funcionamento orgânico, em que representa uma merecimento e valor.
parte e tem uma missão. Sua fé e sua vida baseiam-se na ho- Fechamos assim este volume. Este novo trabalho, salvo da
nestidade (cf. Cap. VI, deste volume – “A Lei da Honestidade destruição da guerra, dos sofrimentos, das contrariedades, do
e do Merecimento”). Esse tipo constitui o ponto nevrálgico abatimento físico e moral, está terminado. Se aprouver a Deus,
deste nosso livro. amanhã recomeçaremos. Tudo está nas mãos de Deus, tudo a
Cada tipo supera o outro pelo grau de evolução, bem como Ele pertence. Fazer de sua vontade nosso perfeito guia é a feli-
no progresso da vida interior, o que significa aumento gradual cidade máxima, porque nos leva pela alegria ou pelo sofrimen-
de potencial, vida cada vez mais intensa, criação de novas to, pela vida ou pela morte, ao nosso maior bem possível. Basta
formas, maior enquadramento e fusão nas forças biológicas e segui-la, satisfeitos e felizes.
cósmicas. O evoluído representa o super-homem, o tipo ideal, Amanhã, o esforço continuará ainda a traçar os aspectos in-
o resultado de experimentações terrestres, a meta biológica do finitos do mutável e multíplice no relativo; continuará a narrar
planeta. A ele, e não mais às massas de que falamos no início, outros acontecimentos misteriosos, para cavar novos sulcos
dirigimos esta conclusão. Em favor dele, reafirmamos de novo nas almas, em diferente clima histórico, com nova maturação
os seus meios de defesa, frente à agressividade dominante no de ambiente interior e exterior, de destino individual e univer-
meio em que, no entanto, tem de viver. Toda sua defesa reside sal. Estamos presos aos limites, algemados pelas dimensões
na evolução, ou seja: desse nosso mundo; só nos resta caminhar no tempo, para o
1) Em sua sensibilidade, que lhe tornou mais aguda a capa- amanhã! Este novo trabalho é concedido a todos, como semen-
cidade de percepção, permitindo-lhe sentir mesmo à distância, te jogada nos campos, para que esse futuro seja mais completo,
no tempo e no espaço, prevenindo-o contra os perigos. mais elevado e mais feliz para todos.
2) Em seu conhecimento e sabedoria, em seu enquadramen- Gubbio, Sexta-feira Santa, 1945.
to universal, que o defendem das ilusões comuns, erros e sofri-
mentos correspondentes. CONCLUSÃO (DA II TRILOGIA)
3) Em sua comunhão com as forças cósmicas, a que está
unido e que intervêm, defendendo-o e socorrendo-o segundo Com este volume, A Nova Civilização do Terceiro Milênio,
for justo, isto é, de acordo com o merecimento, e não por direi- encerra-se a segunda trilogia, isto é, o segundo ciclo, que é
to de conquista. calmo, de assimilação, sequência do primeiro, que é explosivo,
4) Na certeza de sua libertação da Terra por meio da mor- fruto da inspiração. O primeiro ecoa e ressurge no segundo.
te, uma vez que, para isso, estabeleceu o centro de sua vida e Através dos seis momentos e dos dois ciclos, assisti à revela-
de seus tesouros fora da concepção normal, ou seja, fora do ção progressiva de minha personalidade. Estas páginas, no
campo dos instintos e atrações comuns e, portanto, da zona fundo, nada mais são que a história do apocalíptico drama por
das agressões. mim vivido. Que peregrinação longa e tempestuosa! Sem pre-
Sem dúvida alguma, a luta do futuro se travará entre o in- tensões sistemáticas, narrei, com verdade psicológica, como se
voluído e o evoluído, porque é esta a mais substancial diferen- desenvolveu minha personalidade. Não se diga porém: este só
ça entre os homens: o tipo biológico. Não esperemos, porém, sabe falar de si próprio. Porque o meu drama é o drama de to-
que o evoluído empunhe armas. Sua estratégia consiste preci- dos; a vida é uma só, e o meu caminho é também o vosso ca-
samente na mudança radical dos métodos humanos. Seu cam- minho, o mesmo de todos. Falando de mim, falo de vós, que,
peão é Cristo, que vence com a bondade, a justiça, o sacrifício, como eu, estais na mesma evolução do mundo. Creio haver vi-
e se impõe por merecimento intrínseco, e não pela força das vido a suprema aventura, a aventura mais trágica e tremenda
armas. A economia do evoluído não é a economia da posse ou que o homem possa conhecer. Tive a força de dominá-la e con-
do domínio, mas da renúncia, da providência divina. Se seu tá-la a vós. Mas isso não é tudo. Estou num remoinho imenso,
sistema não fosse completamente diverso dos sistemas terre- na imensa voragem da moderna vida humana. O meu drama
nos, não representaria nenhuma vitória sobre eles. O evoluído, fundiu-se no drama universal. Senti-lhe a imensa paixão, em
quando é agredido por um inferior, não responde humanamen- meio de profundo sofrimento.
te, com violência, mas angelicamente, com bondade. Distin- Meu espírito triunfa, mas o corpo está cansado. Tentei su-
gue-se do involuído precisamente por não usar arma alguma. perar a vida animal, mas a vida se vinga no mesmo plano ani-
Sua força é a Lei, isto é, Deus. Esta se encarregará de fazê-lo mal que eu quis negar. Talvez se aproxime a boa irmã morte,
triunfar e protegê-lo. A evolução é fatal. Está no plano da cria- morte para o corpo, vida para o espírito. Talvez esta seja a
ção e é vontade expressa de Deus. condição para que eu possa agora ouvir e entoar um canto mais
Portanto o evoluído não deixa a seu irmão primitivo, que sublime. Levo apenas esta mágoa: eu poderia ter feito mais e
quer prejudicá-lo e espoliá-lo, senão seu invólucro vazio, os te- não fiz; e não pude porque tive de despender as maiores ener-
Pietro Ubaldi A NOVA CIVILIZAÇÃO DO TERCEIRO MILÊNIO 123
gias de minha vida na luta pela vida, luta imposta a todos neste Com este volume, fecha-se o segundo ciclo de uma tragédia
inferno terrestre, luta impiedosa ao lado do involuído. Os auxí- individual na tragédia universal. Enquanto o mundo emprega
lios foram raros; agradeço-os imensamente. Mas, em geral, sua atividade em acumular meios materiais para ruína e destrui-
devo bem pouco a meus semelhantes, que só me deram des- ção e a atividade teorética nada cria, mas sim apenas varia con-
gostos e sofrimentos. Agora, não está falando a Sua Voz, que tinuamente a estéril disposição de meios já mortos, resíduos da
tantas vezes guiou minha mão nestes trabalhos, mas sim a mi- criação dos gênios, este livro é uma ponte lançada para o infini-
nha pobre humanidade abalada. to. Substitui a atual cultura exterior, que, em vez de condenar,
O motivo dominante nas duas trilogias é um único, o que serve aos instintos inferiores e é utilizada como meio para revi-
para o leitor superficial parecerá repetição. O tema é uma alma gorá-los, por uma cultura de substância, de reerguimento bioló-
que se aperfeiçoa, é a humanidade que se redime pela dor. Ten- gico, que tem valor, porquanto apta para formar um homem
tei-o porque assim me estava determinado. Os tempos moder- melhor. Ao diabólico esforço das polêmicas corrosivas de pala-
nos têm forma própria de martírio incruento. Só Deus sabe se a vras contra palavras, à tendência separatista de Satanás, repre-
vitória me sorriu ou se fui vencido; se minha tentativa foi útil sentada pelo espírito de antítese de nossos tempos, pusemos em
ou vã. Em Sua imensa piedade, me julgará mais pelo que tentei contraposição um contato mais íntimo com a essência da vida,
ou esperei fazer que pelo que realmente fiz. Há somente três um espírito construtivo de colaboração e amor. O mundo cientí-
lustros, minha pobre pena escrevia sua primeira mensagem fico, politicamente fragmentado e dividido, dissecado até às ra-
(Natal de 1931): “No silêncio da noite sagrada, ouve-me... Le- ízes pelo separatismo, desorientado em face das grandes finali-
vanta-te e fala...”25. Falei, e aquela voz se espalhou pelo mundo. dades do ser, tentamos reunificá-lo, levá-lo às fontes da vida,
Começou então a longa viagem de exploração no abismo dando-lhe novamente seu verdadeiro significado. Que não haja
interior, o abismo de todos, da vida, de Deus. E não retratei mundos separados, unidades demográficas ou circuitos econô-
com minhas pobres palavras senão a sombra da vertigem ex- micos, disciplinas científicas ou afirmações várias de Deus da-
perimentada. Em alguns momentos, o esforço titânico me ar- das pelas religiões, mundos rivais em que explode o ódio, mas
rebatou da órbita terrestre, para que depois eu aí tombasse de unidade biológica de todos os seres, avançando pelo mesmo
novo e sofresse mais. Assim sou: apocalíptico contraste de caminho da evolução, irmanados pelo esforço de redenção, se-
aspirações e misérias. Disse tudo sinceramente, diante de res amigos, intimamente unidos pelo amor; uma vida menos
Deus e da morte. Não tenho culpa de que tudo isso possa pa- hostil, mais ampla, mais franca, mais comunicativa, entre seres
recer à mentalidade moderna megalomania ou forma patológi- que se compreendem. Isto quer dizer abolição de fronteiras, vi-
ca de elefantíase espiritual. Neste caso, a vida é assim mesmo. tória, libertação, progresso, pois é a unificação que nos faz su-
E eu, além de ator, também fui, como quem lê, espectador e, bir até Deus. Na atual época dos separatistas, isto é, dos filhos
mais do que a causa, fui envolto pelo turbilhão do infinito. de Satanás, esta é a voz dos unificadores, isto é, dos filhos de
Vivi a agonia proveniente do tormento de necessitar do im- Deus. Só assim a realidade fragmentada poderá reencontrar em
possível e não saber alcançá-lo. Senti em mim o desespero nós sua unidade, e os horizontes de nossa vida poderão dilatar-
cósmico do ser que quer subir e não sabe. Meu lamento é tão se e descobrir novas praias longínquas e desconhecidas. A vida
grande como a Terra, lamento do homem que procura na dor a de hoje adquiriu a trágica sabedoria das grandes horas em que
sua redenção. É o lamento de Prometeu acorrentado, o lamen- reina a dor. O intelectualismo que hoje domina o pensamento é,
to de quem traz no coração sublimes sonhos e verifica que a diante desta realidade patente, vão e inútil. Crentes ou não, es-
dura realidade cotidiana o desmente sempre. Por isso tudo, o tamos todos pregados à cruz de Cristo. Na caminhada sem fim,
conjunto da presente obra valerá mais pela tentativa do que quisemos indicar o único caminho de salvação.
pelo que realmente foi feito. Isso, de meu lado humano. Mas é Para aqueles que ainda não veem, concluamos com as pala-
certo que tal obra foi inspirada e querida pelo céu. Deus, por- vras de São Paulo: “Ninguém se iluda: se algum dentre vós ima-
tanto, conhece-lhe os fins e aplicações futuras. gina possuir a sabedoria deste mundo, torne-se louco para se
Algumas almas têm uma espécie única de ambição nostálgi- tornar sábio; porque a sabedoria deste mundo é loucura diante
ca da eternidade e não sabem viver senão em um contínuo esfor- de Deus.” Certamente muitos não entendem. Mas, antes de sor-
ço para fazer descer dos céus um raio de sua luz que ilumine a rir como céticos, é bom refletir que os fundamentos da socieda-
tenebrosa noite da Terra. É a Divindade que clama neste inferno de geralmente foram estabelecidos por homens de fé, e não por
terrestre. Embora toda a vida física a desminta, aquela voz con- homens apenas de ação. Estes vivem da vida alheia; fecundam,
tinua a clamar; e, mesmo que o ser caia, ela ainda clama. Embo- mas não criam; ajudam, mas não despertam a vida. Aqueles, pe-
ra pareça loucura, ela nos convida a lançarmo-nos na voragem lo contrário, parecem utopistas e loucos, mas a fazem surgir, es-
do mistério, irresistivelmente. É sempre Deus que clama. O ab- palhando centelhas de luz; são os sábios sonhadores que dão os
soluto lá está e nos atrai; a ânsia de alcançá-lo nos devora, e o maiores impulsos à humanidade, e não os práticos. É bom lem-
sentimos inatingível. O contingente, porém, nos acabrunha, nos brar que o homem mais dinâmico e revolucionário não é o que
cerca, nos estorva, asfixia-nos. Eis o grande drama! A matéria é grita e assalta, mas o que pensa, penetra a verdade e a anuncia
inerte, e o espírito, que quer vivificá-la, desce luminoso a seus sem agredir; que o homem mais demolidor no presente é o que
escuros antros, tão escuros que aí agoniza e parece extinguir-se. pacificamente cria no futuro, limitando-se, diante do mal, a su-
Aqui do mundo, a alma ainda ouve o apelo divino e percebe de- portá-lo com paciência, a denunciá-lo cândida e, se preciso, he-
sesperadamente a impossibilidade de responder. Daí nasce o roicamente a todos. É bom recordar que o ataque mais poderoso,
drama da discórdia, mas também o contraste criador. o ataque extremo, é desfechado, sob forma mansa e persuasiva,
Hoje, meu corpo cansado, ferido pela tempestade, chora sua pelos verdadeiros demolidores, que atingem as raízes, e não pe-
catástrofe humana, contingente; o espírito a oferece a Deus em los que seguem os caminhos da força, que agem externamente e
holocausto e, como senhor, espera com alegria o futuro. Em que apenas excitam reações; o verdadeiro assalto é aquele que, atra-
forma de vida ressurgirá das espirais dessa morte já aceita? A vés do amor e da verdade, leva à convicção.
que extremos chegará a grande batalha? Bem o sei, já o disse, Pietro Ubaldi
mas pergunto a mim mesmo, para repeti-lo ainda, e o direi, se GUBBIO, Páscoa de 1945
continuar a viver. Poder ver finalmente o mal aprofundar-se no
abismo da autodestruição e o bem vencer: eis a grande paixão. FIM
25
“Mensagem do Natal” do livro Grandes Mensagens. (N. da R.)
O MISSIONÁRIO
Vida e Obra de Na primeira semana de setembro de 1931, depois da grande decisão fran-
ciscana, Cristo novamente lhe apareceu e, desta vez, acompanhado de São

Pietro Ubaldi Francisco de Assis. Um à direita e outro à esquerda, fizeram companhia a Pie-
tro Ubaldi durante vinte minutos, em sua caminhada matinal, na estrada de
Colle Umberto. Estava, portanto, confirmada sua posição.
Em 25 de dezembro de 1931, chegou-lhe de improviso a primeira mensa-
(Sinopse) gem, a Mensagem de Natal. Por intuição ele sentiu: estava aí o início de sua
missão. Outras Mensagens surgiram em novas oportunidades. Todas com a
mesma linguagem e conteúdo divino.
O HOMEM No verão de 1932, começou a escrever A Grande Síntese, a qual só termi-
nou em 23 de agosto de 1935, às 23h00min horas (local). Esse livro, com cem
Pietro Ubaldi, filho de Sante Ubaldi e Lavínia Alleori Ubaldi, nasceu em capítulos, escrito em quatro verões sucessivos, foi traduzido para vários idio-
18 de agosto de 1886, às 20:30 horas (local). Ele escolheu os pais e a cidade mas. Somente no Brasil, já alcançou quinze edições. Grandes escritores do
onde iria nascer, Foligno, Província de Perúgia (capital da Úmbria). Foligno fi- mundo inteiro opinaram favoravelmente sobre A Grande Síntese. Ainda outros
ca situada a 18 km de Assis, cidade natal de São Francisco de Assis. Até hoje, compêndios, verdadeiros mananciais de sabedoria cristã, surgiram nos anos se-
as cidades franciscanas guardam o mesmo misticismo legado à Terra pelo guintes, completando os dez volumes escritos na Itália:
grande poverelo de Assis, que viveu para Cristo, renunciando os bens materiais 01) Grandes Mensagens
e os prazeres deste mundo. 02) A Grande Síntese - Síntese e Solução dos Problemas da Ciência e do Espírito
Pietro Ubaldi sentiu desde a sua infância uma poderosa inclinação pelo
03) As Noúres - Técnica e Recepção das Correntes de Pensamento
franciscanismo e pela Boa Nova de Cristo. Não foi compreendido, nem poderia
sê-lo, porque seus pais viviam felizes com a riqueza e com o conforto proporci- 04) Ascese Mística
onado por ela. A Sra. Lavínia era descendente da nobreza italiana, única herdei- 05) História de Um Homem
ra do título e de uma enorme fortuna, inclusive do Palácio Alleori Ubaldi. As- 06) Fragmentos de Pensamento e de Paixão
sim, Pietro Alleori Ubaldi foi educado com os rigores de uma vida palaciana. 07) A Nova Civilização do Terceiro Milênio
Não pode ser fácil a um legítimo franciscano viver num palácio. Naturalmen- 08) Problemas do Futuro
te, ele sentiu-se deslocado naquele ambiente, expatriado de seu mundo espiritual. 09) Ascensões Humanas
A disciplina no palácio, ele aceitou-a facilmente. Todos deveriam seguir a orien- 10) Deus e Universo
tação dos pais e obedecer-lhes em tudo, até na religião. Tinham de ser católicos
Com este último livro, Pietro Ubaldi completou sua visão teológica, além
praticantes dos atos religiosos, realizados na capela da Imaculada Conceição, no
de profundos ensinamentos no campo da ciência e da filosofia. A Grande Sínte-
interior do palácio. Pietro Ubaldi foi sempre obediente aos pais, aos professores, à
se e Deus e Universo formam um tratado teológico completo, que se encontra
família e, em sua vida missionária, a Cristo. Nem todas as obrigações palacianas
ampliado, esclarecido mais pormenorizadamente, em outros volumes escritos
lhe agradavam, mas ele as cumpriu até à sua total libertação. A primeira liberdade
na Itália e no Brasil, a segunda pátria de Ubaldi.
se deu aos cinco anos, quando solicitou de sua mãe que o mandasse à escola, e
O Brasil é a terra escolhida para ser o berço espiritual da nova civiliza-
aquela bondosa senhora atendeu o pedido do filho. A segunda liberdade, verdadei-
ção do Terceiro Milênio. Aqui vivem diferentes povos, irmanados, indepen-
ro desabrochamento espiritual, aconteceu no ginásio, ao ouvir do professor de ci-
dentes de raças ou religiões que professem. Ora, Pietro Ubaldi exerceu um
ência a palavra “evolução”. Outra grande liberdade para o seu espírito foi com a
ministério imparcial e universal, e nenhum país seria tão adaptado à sua mis-
leitura de livros sobre a imortalidade da alma e reencarnação, tornando-se reen-
são quanto a nossa pátria. Por isso o destino quis trazê-lo para cá e aqui com-
carnacionista aos vinte e seis anos. Daí por diante, os dois mundos, material e es-
pletar sua tarefa missionária.
piritual, começaram a fundir-se num só. A vida na Terra não poderia ter outra fi-
Nesta terra do Cruzeiro do Sul, ele esteve em 1951 e realizou dezenas de
nalidade, além daquelas de servir a Cristo e ser útil aos homens.
conferências de Norte a Sul, de Leste a Oeste. Em oito de dezembro do ano se-
Pietro Ubaldi formou-se em Direito (profissão escolhida pelos pais, mas ja-
guinte, desembarcaram, no porto de Santos, Pietro Ubaldi acompanhado da es-
mais exercida por ele) e Música (oferecimento, também, de seus genitores), fez-se
posa, filha e duas netas (Maria Antonieta e Maria Adelaide), atendendo a um
poliglota, autodidata, falando fluentemente inglês, francês, alemão, espanhol, por-
convite de amigos de São Paulo para vir morar neste imenso país. É oportuno
tuguês e conhecendo bem o latim; mergulhou nas diferentes correntes filosóficas e
lembrar que Ubaldi renunciou aos bens materiais, mas não aos deveres para
religiosas, destacando-se como um grande pensador cristão em pleno Século XX.
com a família, que se tornou pobre porque o administrador, primo de sua espo-
Ele era um homem de uma cultura invejável, o que muito lhe facilitou o cumpri-
sa, dilapidou toda a riqueza entregue a ele para gerencia-la.
mento da missão. A sua tese de formatura na Universidade de Roma foi sobre A
Em 1953, Pietro Ubaldi retornou à sua missão apostolar, continuou a re-
Emigração Transatlântica, Especialmente para o Brasil, muito elogiada pela ban-
cepção dos livros e recebeu a última Mensagem, Mensagem da Nova Era, em
ca examinadora e publicada num volume de 266 páginas pela Editora Ermano
São Vicente, no edifício “Iguaçu”, na Av. Manoel de Nóbrega, 686 – apto. 92.
Loescher Cia. Logo após a defesa dessa tese, o Sr. Sante Ubaldi lhe deu como
Dois anos depois, transferiu-se com a família para o Edifício “Nova Era” (coin-
prêmio uma viagem aos Estados Unidos, durante seis meses.
cidência, nada tem haver com a Mensagem escrita no edifício anterior), Praça
Pietro Ubaldi casou-se com vinte e cinco anos, a conselho dos pais, que es-
22 de janeiro, 531 – apto. 90. Em seu quarto, naquele apartamento, ele comple-
colheram para ele uma jovem rica e bonita, possuidora de muitas virtudes e fina
tou a sua missão. Escreveu em São Vicente a segunda parte da Obra, chamada
educação. Como recompensa pela aceitação da escolha, seu pai transferiu para
brasileira, porque escrita no Brasil, composta por:
o casal um patrimônio igual àquele trazido pela Senhora Maria Antonieta Sol-
11 ) Profecias
fanelli Ubaldi. Este era, agora, o nome da jovem esposa. O casamento não esta-
va nos planos de Ubaldi, somente justificável porque fazia parte de seu destino. 12 ) Comentários
Ele girava em torno de outros objetivos: o Evangelho e os ideais franciscanos. 13 ) Problemas Atuais
Mesmo assim, do casal Maria Antonieta e Pietro Ubaldi nasceram três filhos: 14) O Sistema - Gênese e Estrutura do Universo
Vicenzina (desencarnada aos dois anos de idade, em 1919), Franco (morto em 15) A Grande Batalha
1942, na Segunda Guerra Mundial) e Agnese (falecida em S. Paulo - 1975). 16 ) Evolução e Evangelho
Aos poucos, Pietro Ubaldi foi abandonando a riqueza, deixando-a por con- 17) A Lei de Deus
ta do administrador de confiança da família. Após dezesseis anos de enlace ma- 18) A Técnica Funcional da Lei de Deus
trimonial, em 1927, por ocasião da desencarnação de seu pai, ele fez o voto de
19 ) Queda e Salvação
pobreza, transferindo à família a parte dos bens que lhe pertencia. Aprovando
aquele gesto de amor ao Evangelho, Cristo lhe apareceu. Isso para ele foi a 20 ) Princípios de Uma Nova Ética
maior confirmação à atitude tão acertada. Em 1931, com 45 anos, Pietro Ubaldi 21) A Descida dos Ideais
assumiu uma nova postura, estarrecedora para seus familiares: a renúncia fran- 22 ) Um Destino Seguindo Cristo
ciscana. Daquele ano em diante, iria viver com o suor do seu rosto e renunciava 23 ) Pensamentos
todo o conforto proporcionado pela família e pela riqueza material existente. 24) Cristo
Fez concurso para professor de inglês, foi aprovado e nomeado para o Liceu São Vicente (SP), célula mater. do Brasil, foi a terceira cidade natal de Pie-
Tomaso Campailla, em Módica, Sicilia – região situada no extremo sul da Itália tro Ubaldi. Aquela cidade praiana tem um longo passado na história de nossa
– onde trabalhou somente um ano letivo. Em 1932 fez outro concurso e foi pátria, desde José de Anchieta e Manoel da Nóbrega até o autor de A Grande
transferido para a Escola Média Estadual Otaviano Nelli, em Gúbio, ao norte da Síntese, que viveu ali o seu último período de vinte anos. Pietro Ubaldi, o Men-
Itália, mais próximo da família. Nessa urbe, também franciscana, ele trabalhou sageiro de Cristo, previu o dia e o ano do término de sua Obra, Natal de 1971,
durante vinte anos e fez dela a sua segunda cidade natal, vivendo num quarto com dezesseis anos de antecedência. Ainda profetizou que sua morte acontece-
humilde de uma casa pequena e pobre (pensão do casal Norina-Alfredo Pagani ria logo depois dessa data. Tudo confirmado. Ele desencarnou no hospital São
– Rua del Flurne, 4), situada na encosta da montanha. José, quarto No 5, às 00h30min horas, em 29 de fevereiro de 1972. Saber quan-
A vida de Pietro teve quatro períodos distintos (v. livro Profecias – “Gêne- do vai morrer e esperar com alegria a chegada da irmã morte, é privilégio de
se da II Obra”): dos 5 aos 25 anos  formação; 25 aos 45 anos  maturação in- poucos... O arauto da nova civilização do espírito foi um homem privilegiado.
terior, espiritual, na dor; dos 45 aos 65 anos  Obra Italiana (produção concep- A leitura das obras de Pietro Ubaldi descortina outros horizontes para uma
tual); dos 65 aos 85 anos  Obra Brasileira (realização concreta da missão). nova concepção de vida.

Você também pode gostar