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ÉTHIKE E HEDONÉ:

REFLEXÕES AO PROCESSO DE INTERIORIZAÇÃO DA MORAL E DA FÉ

Prof. Ms. Ocir de Paula Andreata1

“O supremo mal, o maior e mais extremo dos males, é ser afetado


excessivamente pelo prazer...” (Platão, Fédon, 83c).
“Rogo-vos, pois, irmãos, que apresenteis os vossos corpos em sacrifício
vivos, santo e agradável a Deus, que é o vosso culto racional” (Paulo, Rm 12,1)
“Graças ao exercício e à meditação, porém, muitos homens chegam a
dominar-se a ponto de menosprezarem todo prazer inferior” (Orígenes, cf.
Boehner & Gilson, 1985, p.68).
“Dai-me a castidade e a continência; mas não já!” (Agostinho,
Confissões, VIII, 7,17)

RESUMO

Neste artigo, em forma de breve ensaio, pretende-se retornar ao tema do prazer e da


ética, agora refletindo sobre seus confrontos e encontros, como processo histórico na
Antigüidade, desde o nascimento do pensamento moral ocidental pela filosofia ética
grega, passando pela tradição moral religiosa judaico-cristã, até sua síntese pela
teologia da Patrística, notadamente pela instrumentalidade de Agostinho. Queremos
enxergar neste processo, o triunfo da moral e da fé como fundamento de uma tradição
ocidental eminentemente negativa com respeito ao corpo, ao desejo e,
consequentemente, ao prazer, negando-lhe um lugar de positividade e estabelecendo
até mesmo uma batalha pela castidade, amálgama da subjetividade de culpa do
homem ocidental, fato ainda presente no debate ético atual.

Palavras-chaves: sexualidade, moralidade, prazer e religião.

1
OCIR DE PAULA ANDREATA, é teólogo, pela FTBP; psicólogo, pela UTP; sexólogo, pela UTP-
UGF; mestre em filosofia ética, pela UGF/RJ; membro da PIB-Curitiba; professor da FEPAR.
Podemos pensar que a ética (éthike) e o prazer (hedoné) são duas
dimensões em permanente conflito na subjetividade do homem ocidental,
primeiramente como categorias opostas de sentimentos, mas, em seguida,
como pólos necessariamente complementares ao equilíbrio do caráter moral.
Também podemos perceber esta dimensão subjetiva nascendo ao longo
de um contexto histórico no mundo ocidental antigo, correspondente ao centro
do mundo bíblico, mais acentuadamente no momento de transição entre os
Testamentos, uma “plenitude dos tempos” (pleróma toû kronou, Gl. 4,4) no
desenvolvimento da consciência moral, social e espiritual do homem ocidental.
É comum pensar-se que, por toda a extensão da antigüidade, desde os
tempos mais remotos, o conhecimento da vida e a interpretação da realidade
se dava proeminentemente pela via do mito (mythós), isto é, pela relação
religiosa com a natureza. Mas também que, por volta do século VI aC, com o
nascimento da filosofia na Grécia clássica, surge a razão (logós) como via de
compreensão e relação com a realidade. Neste momento, nasce a ética como
categoria racional de compreensão e controle dos impulsos humanos e, na
medida em que se impõe, estabelece a reflexão como fonte principal de
formação do caráter pessoal e social do homem ocidental.
No contexto do mundo clássico, segundo a leitura do helenista francês
Pierre Hadot (2004), a reflexão filosófica passa a ser a própria atividade de
interioridade do espírito grego, um modo de vida reflexivo. E o eixo desta
interioridade racional grega é a virtude moral (areté).
Mas é bem verdade que, atravessando-se o Mar Egeu, encontramos
também o mesmo processo de interiorização ou “subjetivação” da moral no
homem do velho mundo oriental, berço da humanidade, com o florescimento da
cultura de um humanismo literário, na produção de uma rica literatura de
sabedoria. No ambiente bíblico veterotestamentário, na comunidade judaica
pré e pós-exílica, este movimento de interiorização do sujeito também
acontece, através da literatura sapiecial bíblica, como também pela pregação
ética dos profetas, convocando o povo mais à reflexão de seus atos e à prática
da justiça, do que propriamente a oferenda de sacrifícios.
Assim, podemos pensar que após o século VII aC inicia-se um intenso
processo de construção da subjetividade humanística no homem do Ocidente.
1. Éthike e Hedoné: a subjetividade ocidental em conflito.

A questão principal que se apresenta é que o prazer (hedoné) é eleito o


foco principal de um verdadeiro combate tanto da ética filosófica (éthike),
quanto da moral religiosa judaico-cristã. Dos gregos clássicos, a partir do séc.
VII aC, até Agostinho (354-430), ao longo da história deste período, o tema do
prazer esteve sempre na ordem-do-dia do pensamento filosófico e teológico.
Até Agostinho, há uma crescente recepção e síntese da herança destas
duas tradições culturais distintas: o cimento da tradição das éticas gregas, em
conexão com a tradição da moralidade religiosa judaico-cristã. O próprio
Agostinho vivenciou esta síntese em sua própria experiência existencial, dada
sua própria inquietação e conflito para com o gozo do prazer, a que se impõe
deixar para abraçar o Cristianismo, como bem mostram suas Confissões.
Mas a inquietação de Agostinho é também a inquietação de todos,
filósofos gregos e romanos como teólogos da Patrística, só mudando de
intensidade. Ë o sentimento de culpa, gerado pela manifestação contínua do
desejo e pela experiência do gozo do prazer que arremete o filósofo ao sol da
razão para refúgio na compreensão, e o teólogo à vida piedosa em busca de
solução para este conflito da alma.
Portanto, é na interioridade e racionalidade que se trava o combate,
tanto de compreensão quanto de domínio de si, o que resulta em rica e extensa
produção teológico-filosófica, de importância capital ao pensamento ocidental.
Podemos tentar, então, buscar uma síntese deste tema na tradição
ocidental, partindo de aspectos fundamentais das éticas gregas e do
desenvolvimento paralelo de elementos da herança moral no ethos judaico-
cristão, onde se dá o conflito entre a ética e o prazer na subjetividade ocidental,
levando-se em conta, ainda, o contínuo confronto da moralidade bíblica com a
moralidade religiosa das culturas circundantes orientais e greco-romana.
Neste contínuo confronto estão, de um lado, a união entre fé e sexo na
prática religiosa de cultos da fertilidade nas culturas do Oriente Médio, bem
como os costumes permissivos sociedade greco-romana, e de outro, o
combate da Revelação do monoteísmo com o simbolismo do politeísmo.
Do lado europeu, o desenvolvimento da subjetividade ética se dá pela
reflexão racional; no Oriente Médio, pela experiência histórica da fé.
Desta forma, o fio condutor percorre um roteiro histórico do pensamento
na Antigüidade, das reflexões sobre o prazer nos clássicos e helênicos, aos
romanos; depois, atravessando o Mar Egeu, nos reflexos da moralidade
judaico-cristã sobre as culturas orientais próximas à Palestina, que servem de
pano de fundo ao contexto bíblico.
Esta tomada de vista estabelece uma fronteira mais ampla à
compreensão da dimensão histórica do pensamento ético, a respeito do prazer.
Como apontamos, a vida do primeiro filósofo cristão e principal figura da
Patristica, Agostinho de Hipona, ao final deste período de tradições paralelas,
serve para exemplificar este conflito na subjetividade do homem ocidental.
Robert Markus (2003, V.1, p.43), falando da síntese entre filosofia e teologia na
experiência de Agostinho, diz que: “Em alguns capítulos bem conhecidos das
Confissões (VII,9; 20; VIII,2), Agostinho sublinha o papel desempenhado pelos
livros de Platão na história de sua conversão ao cristianismo: eles prepararam
o caminho”. O próprio Agostinho confirma: “Foi então que li algumas obras de
Platão, por quem, sei, nutres grande admiração...” (De Beata Vita, I, 4). Na
obra Confissões ele demarca também influência das obras de Aristóteles e dos
neoplatônicos (Confissões, IV, 16,28; VII, 9,13).
A interioridade filosófica, na Antigüidade clássica ocidental, de acordo
com o helenista francês Jean-Pierre Vernant (2003, p.88), tem origem quando
ganha uma dimensão cosmológica, a partir do redimensionamento da
organização social da pólis, onde a areté (virtude) passa a ser o ponto de apoio
da reflexão moral, já a partir da mitopoética clássica de Homero e Hesíodo, e
mais intensamente com o advento das artes e do teatro grego, principalmente
com o nascimento da tragédia, no áureo kairós dos séculos VI e V aC.
Para ele, portanto, a evolução social e política da cidade-estado (pólis)
grega traz consigo a revolução de uma “organização do cosmos humano”
(p.87), que diz respeito tanto à compreensão que o homem passa a ter de si
mesmo, como também de seu lugar na ordem e harmonia do universo
existente, pelo qual estabelece a eudaimonia (felicidade) como télos, que se dá
na eu zen (vida boa), sendo esta, essencialmente, vida moral.
Assim, por toda esta extensão da Antigüidade, o agir humano passa a
ser objeto da reflexão racional e de enquadramento por “éticas cosmológicas”,
quer pelos sistemas filosóficos, quer pela doutrina moral cristã.
Como bem mostra Pierre Hadot (2004, p.18), para o homem grego, a
própria filosofia passa a ser vista “como um modo de vida” e, assim, como
“escolha de vida moral”, vida virtuosa regida por “exercícios espirituais” (p.103).
Esta tradição grega de “ética das virtudes”, como observa a filósofa
francesa Monique Canto-Sperber (2003, V.1, p.95), desde pré-socráticos como
Heráclito e Xenócrates, a concepção de justiça já é vista como vida de acordo
com a “ordem e harmonia” no cosmos e o bem da alma como “ordem e
harmonia interior”. Logo, o mal passa a ser relacionado à “desarmonia e
deficiência” (endéia) na natureza moral do sujeito, causado pelos “movimentos
da alma” (kínesis), na direção das paixões (pathé), as quais devem ser
controladas ou mesmo eliminadas.
Portanto, cedo esta tradição dá um lugar de mal ao prazer! Como o
mostra Sócrates, pelo testemunho de Platão: “O supremo mal, o maior e mais
extremo dos males, é ser afetado excessivamente pelo prazer...” (Fédon, 83c).
No Cristianismo, herdeiro e disseminador da moralidade bíblica do
hebraísmo-judaísmo, este “cosmológico-ético” grego, no dizer de Luc Ferry
(2004, p.189), encontra a novidade de uma “imanência da transcendência”,
pela fé que o nascido Cristo representa a própria encarnação do “lógos” divino
num ser humano. Tal novidade traz a promessa inédita de salvação imediata
na história do sujeito, e inaugura uma “ética do amor e do cuidado ao outro”,
sob a “emergência escatológica” iminente do Reino (p.229), cuja exigência
maior é entendida pelos Apóstolos e Patrística como a renúncia de si.
Na tradição teológica de Paulo, este “cosmológico-ético” ganha aspectos
de emergência de realização histórica, tendo em vista a "iminência
escatológica” com que vê a parousia (volta de Cristo à Terra), que se reflete em
rígidas exigências de ascetismo e moralidade na vida cotidiana, já que exorta
em “tempos de fim” (1Cor. 7,29).
Assim, a idéia grega da hedoné (prazer), como “desarmonia do cosmos
da alma”, encontra eco e forma uma nova tradição na moralidade cristã,
talhada pelos Pais cristãos ao longo dos primeiros séculos, como renúncia de
si e do corpo, tal como declarava Orígenes, na leitura de Boehner & Gilson
(1985, p.68), que “Graças ao exercício e à meditação, porém, muitos homens
chegam a dominar-se a ponto de menosprezarem todo prazer inferior”.
2. Legado da ética grega: a interiorização da moral.

No âmbito da filosofia a ética é uma disciplina, que propõe compreender


os critérios e valores que orientam o julgamento da ação humana,
esclarecendo como determinada conduta seja moralmente errada ou correta.
Segundo Ferrater Mora (2001, Tomo II, p.931), a expressão “ética”, vem
da raiz semântica de “ethos”: ta êthé (os costumes, em grego) e mores
(hábitos, em latim), referindo-se à idéia de costumes, hábitos, modos de agir.
Na exegese lingüistica grega o termo “ethos” é referido em duas grafias
com significados diferentes: êthos (com êta inicial), designando o conjunto de
costumes normativos da vida de um grupo social, morada, caverna, no sentido
do ser vivo em seu êthos-habitat; e a forma éthos (com épsilon), referindo-se à
constância do comportamento, hábito gerado pela práxis, e as condições do
agir prático do indivíduo na vida cotidiana regida pelo éthos-costume; ambas,
apontam à realidade histórico-social dos costumes dos indivíduos.
Em seu dicionário de teologia, Jean-Yves Lacoste (2004, p.272), refere-
se à ética como estudo sistemático da moral, forma de normatizar, descrever e
sistematizar as regras, obrigações, valores e virtudes de uma sociedade,
colocando-as no contexto de suas tradições históricas.
Num sentido histórico da evolução semântica dos termos, conforme
demonstra Miguel Spinelli2, o termo grego éthos (épsilon) foi difundido a partir
do dramaturgo Ésquilo, indicando fundamentalmente aquilo que é a tradição, o
costumeiro, o usual ou o habitual. E a modificação para êthos (êta), faz
remontar ao poeta mitológico Homero, significando o mesmo hábito, costume e
uso, mas no sentido de um modo humano “construído” de viver.
Mas o conceito de ética como disciplina da Filosofia, disseminou-se a
partir de Aristóteles3, pois ainda que os socrático-platônicos o tenham usado,
foi ele o primeiro a defini-lo como um sistema em separado, como “filosofia da
ação” (éthike pragmatéia), pelo exercício das virtudes morais e investigação ou
reflexão metódica da éthea ou costumes (Metafísica II, 1, 993 b19-23).

2
SPINELLI, Miguel, em O Daimónion de Sócrates, artigo na Revista Hypnos Nº 16, 2006, p.32-61, cita
Aristóteles na Ética a Nicômaco, II, 1,1103a 17-18, como referência ä etimologia do termo.
3
LIMA VAZ, Henrique C., em Escritos de Filosofia IV, Introdução à Ética Filosófica 1, 2002, p.12-13,
faz diferenciação entre “ética” e “moral” seguindo o conceito hegeliano de desenvolvimento histórico do
“ethos”, a partir da evolução do conceito desde um certo “saber ético” produzido pelos hábitos e costumes
culturais de um povo, até um sentido lato de “ética” como sistema racional filosófico (p.57-66).
Uma gama de pensadores preferem usar amplamente o termo ética,
abordando duas dimensões: uma referindo-se àquele sistema filosófico que se
volta para uma dimensão mais transcendente da existência humana, de modo
reflexivo e adjetivo, que se atém aos princípios e fundamentos que regem a
vida e ação humana; outra, à uma dimensão mais imanente do cotidiano,
especifica da ação em si e das regras de conduta.
Mas, na cultura do senso-comum, geralmente as pessoas fazem
separação nestas duas realidades da vida humana, designando a reflexão
transcendente da existência como “ética” propriamente dita vida e a existência
imanente dos usos e costumes como “moral”. Talvez este “senso” advenha das
diferenças existentes nas tradições e modo de vida dos ethos grego e romano.
Aristóteles via a ética como “doutrina dos costumes” e a diferenciava
entre “éticas da razão” (dianoéticas) e “éticas das virtudes” (éthike ta areté) ou
ética da ação virtuosa. Com as dianoéticas, virtudes intelectuais, o homem
serve à vida na pólis; com as éticas das virtudes, à ação prática consigo
mesmo, em ordem, justiça, temperança e amizade.
Deste modo, a ética ganha também o sentido de produção de um saber
que se articula a partir da reflexão de pensadores e que deve ser repassada
ou ensinada aos interessados nela, possibilitando-se, assim, uma educação
para a virtude (paidéia), visando a vida boa como excelência de vida (eu zen).
O orador romano Cícero diz que o começo da reflexão racional e teórica
em ética é atribuído ao socratismo (Tusculanas, V, 10-11). Canto-Sperber4,
entretanto, vê antecedentes da ética nos pré-socráticos, nas obras literárias
dos poetas, dramaturgos e mesmo dos sofistas contemporâneos de Sócrates.
É bem verdade que Sócrates demarca nova etapa na investigação ética,
quando coloca como método a reflexão crítica, a exposição de noções morais
com enunciados verdadeiros, fundamentados na racionalidade e visando ao
exame de nossa própria vida, criticando as falsas crenças e buscando
coerência entre nossos pensamentos e nossos comportamentos, que levem ao
aperfeiçoamento de nós mesmos.

4
CANTO-SPERBER, M., síntese em Antigüidade, In: Dicionário de Ética e Filosofia Moral, 2003, Vol.
I, p.94-106, e no artigo Os Antigos Conosco, Trad. Edson Resende, Paris, Revista Sprit, 2002 (p.8-15).
O desenvolvimento intenso da racionalidade entre os gregos para
explicar os fenômenos da vida põe o humano em lugar de primazia, gerando
um antropocentrismo para a vida social e política, centrado na capacidade de
interioridade deste novo ser humano. Obviamente, na medida que a religião
passa a ser substituída pela razão na condução da vida, a moral é que se torna
o novo limite supremo aos impulsos humanos.
O problema é que este limite da moral social é sempre flexível, na
proporção da evolução histórica do pensamento. Mudam-se os sistemas
racionais, mudam-se as regras de conduta. O homem fica mais esclarecido de
seus impulsos e motivações, mas seus ideais e ações ficam mais pervertidos.
Para continuar garantindo a “ordem e harmonia” do cosmos humano,
social e cultural, a própria moral também sente seus limites de ir além,
conduzindo este “animal político”, pela via de “éticas cosmológicas”, à
felicidade da vida plena, conquanto que esta “vida plena” (eu zen) seja primeiro
as obrigações da vida na pólis, para depois, como prêmio a esta vida pública, o
gozo da imortalidade pelo retorno ao Uno.
Todavia, como vimos, a filosofia ética não cessa seu devir de procurar
novas compreensões e de propor novos sistemas de conduta, encontrando aí
seu próprio limite, tendo também, peremptoriamente, enfraquecido a fé.
É neste contexto histórico que o Cristianismo ganha projeção no mundo
antigo, ao propor a vida cristã como basicamente uma moral (Mt 5-7), apoiada
pela fé num só Deus, tendo, como “lógos divino” se manifestado em carne na
“pessoa” de Jesus Cristo (Jo. 1,1-3), nada também mais consoante ao
pragmatismo da mentalidade e estilo de vida romana.
Assim, podemos pensar que a reflexão moral antiga começa no séc. VII
aC e se encerra com o desenvolvimento do pensamento cristão, quando
desaparecem totalmente os autores que invocam o testemunho de escolas
socráticas e helenísticas, e o Cristianismo passa a assumir sozinho a
condução da vida moral ocidental, subjugando a própria filosofia à ortodoxia da
teologia, por toda a Idade Média, porém já sofrendo crescente processo de
rupturas com o devir da Escolástica e da Renascença, e que explodirá no
advento das ciências, das grandes descobertas e da Reforma Protestante.
Mas, voltando ao ponto para fechar a síntese, não se pode negar,
portanto, o inexorável legado da interioridade moral da racionalidade grega.
Para Homero e Hesíodo (cerca séc.X-VIII aC), a ordem e harmonia da
natureza física (physis), a cosmogonia, é resultado dos deuses. Os
pensadores pré-socráticos buscaram na physis uma substância original, um
princípio ativo único gerador das coisas (arché). Heráclito de Éfeso (c. 540-470
aC), explica o cosmos como “ordem e harmonia” do “múltiplo no um”, através
do contínuo fluxo de forças opostas num todo dinâmico e divino, o “Lógos”.
Este mundo (cosmos), que é o mesmo para todos, nenhum dos deuses
ou dos homens o fez; mas foi sempre, é e será um fogo eternamente vivo,
que se acende em medidas e se apaga em medidas. (Fragmento B 30)5

A partir de Heráclito a idéia de cosmos associada à concepção de lógos,


uma “razão ordenadora do caos” (Frag. B 1), a ordenação racional e de
consciência das coisas num todo harmônico e dinâmico. Quer dizer, são as
primeiras respostas racionais à realidade existente, sem a mitologia.
A vida na pólis (politika), conforme Vernant (2003, p.50), faz evoluir o
pensamento ocidental sobre a emancipação dos cidadãos (demoscratos), a
ação da justiça (diké), da lei (nomos), do julgamento (krinen), entre outros.
Esse quadro urbano define efetivamente um espaço mental; descobre
um novo horizonte espiritual. (Idem, p.51).

A pólis é um universo espiritual da vida; portanto, a cidade, a sociedade,


como a alma, é o logos que se torna proeminente sobre outros instrumentos. E
isto se torna modelo para a “organização do cosmos humano” (Vernant, p.87).
Mas nesta mudança da vida na sociedade, a contribuição da religião
também é importante para o nascimento do direito e da moral, onde surge uma
nova imagem ideal da areté, como vida social, moral, virtuosa e cidadã.
Nos agrupamentos religiosos, não somente a areté se despojou de seu
aspecto guerreiro tradicional, mas definiu-se por sua oposição a tudo que
representasse como comportamento e forma de sensibilidade o ideal de
habrosyne: a virtude é o fruto de uma longa e penosa áskesis, de uma
disciplina dura e severa, a meleté; emprega uma epiméléia, um controle
vigilante sobre si, uma atenção sem descanso para escapar às tentações do
prazer, à hedoné, ao atrativo da moleza e da sensualidade, a malachia e a
tryphé, para preferir uma vida inteira votada ao ponos, ao esforço penoso.
(Vernant, 2003, p.88).
Nasce, então, uma “laicização acentuada do pensamento moral”, onde o
ideal de virtude da moderação (sophrosyne) influencia a política dos séc. VI-V
aC, aliada à intensa crítica dos trágicos, historiadores, filósofos e legisladores
5
HERÁCLITO. Fragmentos. Pré-Socráticos. Em Os Pensadores, SP, Nova Cultural, 1978, estão os
fragmentos que restam do pensamento de Heráclito. Também recentemente surgiram outras publicações.
como Sólon, sobre reta justiça (dikaiousyne) e leis mais justas (eunomia). E,
assim, este modelo também se “subjetiva” para servir à vida do sujeito moral,
através do famoso axioma do “cuidado de si”.
Virtude de inibição, de abstinência, consiste em afastar-se do mal, em
evitar toda impureza: não somente recusar as solicitações criminosas que um
mau demônio pode suscitar em nós, mas manter-se puro do comercio sexual,
refrear impulsos do eros e de todos os apetites ligados à carne, fazer
aprendizagem... O domínio de si de que é feita a sophrosyne parece indicar,
senão um dualismo, pelo menos uma certa tensão no homem entre dois
elementos opostos: o que é da ordem do thymós, a afetividade, as emoções,
as paixões, e o que é da ordem de uma prudência refletida, de um cálculo
raciocinado. (Vernant, 2003, p.94).

Esta herança da reflexão grega de ética como “interioridade da moral”,


torna o exercício da filosofia um “modo de vida” e uma espiritualidade como
“vida segundo o espírito” (theoría).
A dignidade do comportamento tem uma significação institucional;
exterioriza uma atitude moral, uma forma psicológica, que se impõem como
obrigações; o futuro cidadão deve ser exercitado em dominar suas paixões,
suas emoções e seus instintos. (Idem, p.96).

Por isso, esta ética grega é, acima de tudo, uma “ética da felicidade”
(eudaimonia), que pressupõe o cidadão ser educado nos valores do espírito.
Aristóteles distingue entre a felicidade que o homem pode encontrar na
vida política, na vida ativa – é a felicidade que pode conduzir à prática da
virtude na cidade -, e a felicidade filosófica que corresponde à theoría, isto é,
a um gênero de vida consagrado totalmente à atividade do espírito. (Hadot,
2004, p.121).

E a essência desta ética eudaimônica é a “consciência moral” regida


pela virtude, simplicidade e testemunho público de justiça e retidão de caráter,
que tão bem caberá no cerne da cultura religiosa da tradição judaico-cristã.
A concepção da interioridade do princípio moral sob a forma da
consciência foi abundantemente comentada na tradição cristã. Ela foi
preparada pelo pensamento grego, e particularmente pela predicação estóica,
na qual a primazia da consciência revela a orientação primordial do homem
para o bem. (Canto-Sperber, 2005, p.47).

Mas, o que qualifica esta vida “espiritual e moral” como felicidade?


Canto-Sperber (2003, V.1, p.613) afirma que a cultura grega, desde Homero,
buscou avidamente a felicidade na vida terrena e elegeu a virtude, contraposta
ao vício, como caminho, apesar da devassidão e licenciosidade com que vivia
sua sociedade, cheia dos felizes prazeres da vida comum.
Cálicles, no diálogo Górgias (492 c), de Platão, sugere que a felicidade
seja exclusiva do hedonismo dos prazeres do corpo, das relações interpessoais
e sociais. Mas, sua sugestão soa aos demais como um imoralismo
intemperante. Então, Sócrates propõe a busca da felicidade na moralidade da
virtude. E esta se torna a qualidade principal da eudaimonia.
Esta “felicidade da moralidade” torna-se no próprio “sentido da vida”
humana e estabilidade pela vida toda.
A idéia de sotéria (salvação) grega está dentro desta concepção de
felicidade como estabilidade, onde o conceito de mal está no desprazer, na dor
e no sofrimento, resultados da hedonë, o.prazer!
Aristóteles chama a atenção para o fato de que toda forma de prazer
tem sua contrapartida na dor (EN, II, 3,5-10). Para os estóicos, todo e qualquer
ato, atitude ou evento que cause o desprazer da dor deve ser evitado, a fim de
se alcançar a felicidade do estado de aponía (ausência de dor) e da apathéia
(ausência de perturbação) das paixões. Mesmo os epicuristas, que defendiam
uma “ética do prazer”, ainda assim é prazer de examinar os desejos e realizar a
ataraxia (imperturbabilidade, tranqüilidade) da vida simples.
A moralidade torna-se o télos da felicidade e do sentido da vida e isto
significa renúncia aos prazeres inferiores dos apetites carnais e busca pelos
superiores prazeres racionais. Portanto, é a virtude que se torna o prazer!
Aristóteles e Epicuro defendem o uso moderado dos prazeres naturais e
necessários à vida humana, exceto os sexuais!
Este é o processo de subjetivação da moral ocidental. Em Platão o
impulso do prazer é da ordem do ilimitado (ápeiron) e o gozo só antecipa o
desejo de repetição de um novo gozo e a dor da eterna incompletude ( Filebo,
54c-55a); logo, o prazer é “perturbação da ordem e espiritualidade da alma”.
É esta qualificação do “prazer corporal como mal”; mal que tem origem
na deficiência que a alma sofre ao entrar no corpo mortal e que se manifesta
como perturbação espiritual, pela busca incessante do desejo por saciedade.

3. Legado do ethos judaico-cristão: interiorização da fé e da moral.


Ao refletirmos sobre o tema do prazer na ética dos antigos, visualizamos
como a produção contínua de conceitos morais sedimentou um cimento de
base que vem da mentalidade ética grega, instalando um conflito entre desejo,
moral e culpa na subjetividade do homem ocidental.
Esta vertente de tradições éticas gregas começa a encontrar-se com a
teologia judaica, antes de Cristo, principalmente entre os intelectuais judeus da
rica comunidade de Alexandria. Com a disseminação do helenismo no mundo
antigo com Alexandre Magno, após 330 aC, houve crescente absorção de
filosofias gregas pela teologia, destacadamente ao platonismo da terceira
Academia e ao estoicismo, que bem serviria ao espírito do vindouro mundo
romano. Filon de Alexandria (c.200 aC) se destaca na ligação filosofia-teologia.
É importante lembrar que, nesta época, há uma paidéia em franco
desenvolvimento na comunidade judaica da Palestina, isto é, a educação se
amplia e ganha lugar de obrigatoriedade ao jovem judeu. E é por esta época
pré-cristã, plena de humanismo, que surgem grandes escolas rabínicas na
Palestina, que irão estabelecer influentes tradições teológicas, como a Escola
do rabino Shamai e a Escola de Hilel. Nesta última, segunda a tradição cristã,
Paulo estudou na sua juventude6.
Mas, a reflexão sobre o tema do prazer, no âmbito da moral, não será
abrangente se não levar em conta o contexto histórico sociocultural das
sociedades orientais, grega, judaica e romana, que formam o pano de fundo de
todo este desenvolvimento da subjetividade moral ocidental.
Obviamente que tal contexto histórico é amplo demais para ser
abordado com profundidade em toda sua complexidade em poucas linhas, nem
é objetivo deste trabalho. Todavia, é importante colocar os principais pontos em
tela para a reflexão do encontro e amálgama entre estas duas correntes: a
moral e a fé; a ética e a liberdade do prazer; a filosofia e a teologia.
Como dissemos, então, vemos aí uma recepção a partes das filosofias
éticas gregas, tanto pelo judaísmo como pelo futuro cristianismo,
aprofundando-se no desenvolvimento do pensamento teológico da Patrística.
A moralidade judaica tem suas raízes na longínqua cultura semítica, cuja
história percorre o escopo bíblico. A reflexão sobre o prazer, focalizado neste

6
Esta tradição é referida, por exemplo, nos clássicos dicionários bíblicos de John D. Davis, 1977, p.449 e
no Novo Dicionário da Bíblia, 1988, p.1217.
ambiente religioso, aproxima o tema da moralidade às religiões e às tradições
culturais destas sociedades.
Em todo o escopo histórico do Antigo Testamento, ao longo do
desenvolvimento social israelita, há mais liberdade e positividade7 para com o
prazer que a abordagem filosófica grega, como mostram literaturas poéticas
orientais sobre o amor e as relações afetivas, como bem exemplifica a
coletânea de poemas bíblicos de amor no Cântico dos Cânticos.
Mas, na medida em que o monoteísmo cada vez mais se debateu contra
a poligamia para estabelecer a monogamia, cresce um lugar de negatividade
ao prazer na literatura religiosa judaica, no exato momento em que começa a
tradição filosófica grega, reforçando a vida moral, justa, piedosa e virtuosa.
Este processo, a que chamamos de subjetivação da moral e da fé, traz
como resultado que esta ética de virtudes potencializa a culpabilidade do
sujeito moral e religioso. A tradição das éticas cosmológicas gregas ganha a
emergência da escatologia judaico-cristã. E, quando o cristianismo traz a
mensagem de proeminência da realização do reino de Deus na realidade
histórica do individuo e da comunidade, aqui e agora, a teologia cristã pecaliza
o desejo, proporcionando uma renúncia ao corpo e uma negação ao prazer.
A subjetivação ou interioridade moral contra o prazer se dá nos gregos
pela via da reflexão filosófica e no judaísmo pelo discurso e experiência da fé.
O filosofar grego, conforme anuncia Pierre Hadot (2004, p.103), também
constitui em si uma “teologia”, enquanto cada sistema prescreve “exercícios
espirituais” como parte da meditação filosófica. De modo geral, todas as
recomendações dos filósofos para a “salvação” (sotéria) do indivíduo dizem
respeito à vida moral, visam dirigir o comportamento, propiciar o bem e levar o
ser humano a alcançar a felicidade da vida boa na existência terrena. A
singularidade desta “espiritualidade filosófica”, porém, é o fato de ela advir da
reflexão racional, no pleno exercício de liberdade e autonomia do sujeito moral.
É óbvio que a moral cristã é releitura e aprofundamento da moral judaica
veterotestamentária. Todavia, precisamos enxergá-la, como indica o professor
Lima Vaz (2002, p.170), invertendo sua ótica em relação à ética grega: a moral

7
Textos e aspectos destas literaturas são encontrados nos historiadores: Jacques Le Goff, Paul Veyne,
Claude Mossé, François Lebrun, Georges Duby, Philippe Ariés, e outros, em Amor e Sexualidade no
Ocidente, POA, L&PM, 1992; em Reay Tannahill, O Sexo na História, RJ, Francisco Alves, 1983; e em
Jean-Louis Flandrin, O Sexo no Ocidente, SP, Brasieliense, 1988.
judaica não advém da livre reflexão racional, mas da vivência social da fé
religiosa monoteísta ao longo do desenvolvimento do ethos. É contrária à
autonomia (autarchéia) grega, pois pressupõe, de um lado, uma relação de
dependência do fiel para com Deus, e de outro, um comprometimento deste
com a comunidade e o próximo.
A religião judaica, como observa Paul Ricoeur, é essencialmente uma
religião da culpa. E esta culpa ganha uma tônica distintamente subjetiva, na
simbologia do ser preso a um fardo opressivo, quanto mais é despertada a
consciência da condição humana perante a perfeição do divino. Mas, para
Ricoeur, esta “interiorização da culpa” traz “progresso à consciência”, na
medida em que abandona a realidade coletiva externa e focaliza a realidade
subjetiva interna, pois a culpa tende a individualizar-se (1970/6, p.682).
E é em meio a isso que Jesus aparece pregando: “tomai sobre vós o
meu jugo..., pois o meu fardo é leve e o meu jugo é suave!” (Mt. 11,29-30), pois
o “jugo do amor” alivia a culpa do “fardo da lei”, na subjetividade daquele que o
segue, imitando seu exemplo.
A conduta cristã, seguindo a doutrina veterotestamentária de que “O
justo viverá pela fé” (Hab. 2,4), é, assim, regida mais como modo de vida de fé
do que pura moral, conforme corrobora Canto-Sperber (2005, p.47): “A palavra
evangélica, que recomenda a renúncia, a castidade, a pobreza e a humildade,
é pois mais uma fé que uma moral”.
O lugar desta nova ética da “Boa Nova” do Evangelho (euaggelos) de
Cristo, conforme Canto-Sperber (Idem, p.46), não é de fácil definição; pois, ao
mesmo tempo em que pressupõe dependência em obediência filial a Deus-Pai
(Mt. 6,26-34; Jo. 15,7-14), prega a possibilidade da experiência de nova e
radical liberdade (Jo. 8,30-37), tudo sob a regência da “regra de ouro” da práxis
cristã em prol do próximo, à qual Jesus resumiu toda a Revelação: “Tudo o que
quereis que os homens voz façam, fazei antes vós a eles, pois isto é a Lei e os
Profetas” (Mt. 7,12).
A identificação da divindade (theós) na pessoa de Jesus (Christós),
como o interpreta São João no prólogo do seu Evangelho, dizendo que “o
Logos se fez carne e habitou entre nós, e vimos a sua glória...” (Jo. 1,14), é um
desvio radical na herança grega sobre a transcendência do ser divino.
A respeito deste fato histórico significativo à ética, o filósofo Luc Ferry, ao
considerar a aproximação do “cosmológico-ético” grego à cosmologia judaico-
cristã, chama este “momento cosmológico” de uma verdadeira “imanência da
transcendência”, quando o Lógos se faz homem ! (Ferry, 2004, p.231).
Neste ponto a mensagem da Boa Nova traz uma segunda mudança
radical que se imprimirá no modo de vida cristã, ao juntar as exigências morais
deste “cosmológico-ético” à expectativa de uma “escatologia”, ou seja, a
iminência do “fim dos tempos”, que se desenvolve em todo o Novo Testamento,
a partir da afirmação feita por Jesus de que “voltaria outra vez” (Jo. 14,1-3),
conhecida como a doutrina da Parousia, ou da Segunda Vinda de Cristo.
Em suas origens, o cristianismo, tal qual se apresenta nas palavras de Jesus,
anuncia a iminência do fim do mundo e o advento do reino de Deus, uma
mensagem totalmente estranha à mentalidade grega e às perspectivas da filosofia,
pois ele se inscreve no universo de pensamento do judaísmo, que sem dúvida,
subverte, dele conservando certas noções fundamentais. (Hadot, 2004, p.333).

É, pois, sob esta perspectiva e neste contexto que Paulo doutrina sobre
o tema do prazer e seus tópicos como a sexualidade, o matrimônio e a
castidade, como “em tempos de fim”, gerando uma urgência na realização do
Reino e rígida exigência moral, “por causa da angústia do tempo presente”
(1Cor 7.26,29), doutrina que se sedimentará como teologia na Patrística.
E em fim, que visão bíblica do prazer da sexualidade Agostinho herda,
como sintetizador da doutrina cristã? Basicamente a visão que virou tradição a
partir de Paulo: pecalização do desejo, renúncia ao corpo e negação do prazer.
Fica claro que, apesar de estabelecer normas sociais para a
sexualidade, a moral bíblica do Antigo Testamento é menos repressora que a
do Novo. Os livros sapienciais trazem uma visão mais humana e integradora da
sexualidade, com riqueza poética e valorização do prazer, contendo até mesmo
um livro de erótica, segundo a interpretação literal, o Cântico dos Cânticos!
Também faz-se necessário apontar que a moralidade torna-se central no
ethos judaico quanto maior fica a luta empreendida, por seus profetas, ao longo
de sua história, por distinguir o pudor da fé monoteísta contra a sensualidade
do politeísmo baalista das culturas religiosas circunvizinhas.
No período pré-cristão, a proximidade de crenças como as da religião
persa influíram na concepção judaica da origem do mal e sua associação ao
corpo e ao prazer. É razoável, ainda, inferir-se que também houve influência
das éticas gregas na teologia judaica, mormente por sua vertente Alexandrina.
Em Jesus, porém, vê-se maior liberdade de expressão, comunicação e
troca de afetos, com inovadora valorização às mulheres, muito além dos lideres
religiosos de sua época, pouco enfatizando questões de moral sexual.
Já em Paulo, primeiro doutrinador do cristianismo, encontramos um
esboço de teoria geral de moral sexual cristã, que é seguida pelos demais
escritores neotestamentários e serve de base à teologia patrística, cuja
influência se mostrará acentuada no pensamento de Agostinho. Contudo,
devemos considerar o fato de que a moralidade sexual preconizada por Paulo
tinha o propósito de valorizar a pessoa e as relações humanas, em um combate
contra a liberalidade da sociedade greco-romana, apoiando-se também em
valores éticos gregos como a opção pela abstinência e o ascetismo estóico.
Ao interpretar o discurso de Jesus, que projeta a culpa na motivação
antes do ato, como forma de desmascarar a hipocrisia legalista judaica (Mt
5,28), Paulo culpabiliza o desejo (concupiscentia) como fonte do mal no interior
humano. O olhar filosófico de Giulia Sissa 8 nota nisto a diferença de estratégias
das éticas grega e cristã sobre o prazer e o desejo: o que antes era insaciável e
irrefreável é agora facilmente alcançável e corruptível ao corpo, templo santo!
Concordamos que a ética da Patrística, como reitera Benetti (1998, 294),
em meio a este sincretismo de idéias, imprimiu novos valores cristãos sobre a
sexualidade, nesta ordem: a) superioridade da virgindade sobre o matrimônio;
b) o prazer sexual submetido à continência, mesmo dentro do matrimônio; c) o
ato sexual conjugal como concessão somente para a procriação e ilícito com
qualquer elevação de gozo; d) o celibato e a abstinência como virtudes
superiores. Os “bens do matrimônio” passam a ser apenas: a procriação, a
fidelidade dos cônjuges, o cuidado mútuo dos cônjuges, e o impedimento à
fornicação, que é sexo antes do matrimônio.

8
SISSA, Giulia (1999, p.105), faz importante observação da tradução latina de São Jerônimo para o texto
de Jesus (Mt 5,28): “só em olhar... já adulterou no coração com ela” (iam stupravit in corde suo), onde o
termo iam, “já”, coloca a realização do desejo na velocidade do tempo presente, na forma de “ato no
desejo”, e que para a Patrística, a partir de Jerônimo, o coito passa a ser stuprum (estupro, agressão), em
sentido pejorativo, no sentido de que a relação sexual é agressão do marido à esposa.
O surgimento da tradição cristã monástica9, a partir da experiência
pessoal de Santo Antônio, no Egito em 270, crescentemente influiu grupos de
cristãos a abandonarem a vida secular para tornarem-se padres e freiras em
mosteiros e conventos, como opção total de renúncia à sexualidade e fuga da
pecaminosidade da sociedade, mormente das grandes metrópoles da época.
Contudo, como diz Meeks (1997, p.131), nas relações cristãs dos
séculos I-II, o casamento não é abolido e os milhares de membros comuns da
Igreja tinham de se haver com a vida cotidiana, que incluía o matrimônio, filhos,
família e as interações sociais de sobrevivência, vida esta, como defenderam
Aristides e Diagneto, em cartas ao imperador, em tudo “comum e igual” aos
demais cidadãos, bem distante da pureza ascética dos “retiros” monásticos.10
Para um entendimento mais profundo das razões da tradição cristã de
negação ao corpo e renúncia ao prazer, deve-se levar em conta também as
influências de grupos místicos, como o gnosticismo e maniqueísmo, além da
possível contribuição de autopurificação ascética pela metafísica neoplatônica.
Chega-se, assim, já em Agostinho, às portas da Idade Média, a uma
consolidação de “novas virtudes na ética cristã”, como doutrina de exortação
aos fiéis comuns e imposição moral aos sacerdotes: piedade, castidade,
celibato, virgindade aos solteiros, abstinência aos casados e proteção à família.
A “conversão”, fenômeno subjetivo da luta do espírito contra a carne,
ritualizado publicamente no “batismo”, que torna-se o rito iniciático do
cristianismo, impõe ao cristão profundo senso de responsabilidade ética de
uma beata vita, como cidadão do céu e peregrino no mundo.
Portanto, esta é a herança que Agostinho receberá e o contexto moral
que servirá aos seus debates teológico-filosóficos, centrados em sua própria
experiência pessoal, gerando um dos momentos mais decisivos na história da
construção ética do ocidente, que se tornará em alicerce do sentimento
ocidental para com o debate entre a ética e o prazer.

9
Ver: BROWN, Peter. Corpo e Sociedade, Op. Cit., p.182-203; também SALISBURY, Joyce E. Pais da
Igreja, Virgens Independentes, Trad. Tânia Marques, SP, Scritta, 1995, p.25-66, com extensa
apresentação da sexualidade na Patrística, principalmente sobre os primeiros conventos de freiras e sobre
santas virgens, grupos que passam a ser incentivados como opção de santidade radical.
10
Meeks, em As origens da Moralidade Cristã: os dois primeiros séculos. Trad. Adaury Fioretti. SP,
Paulus, 1997, traz sínteses destes importantes primeiros documentos cristãos (p.131ss).
Como dissemos, em Agostinho, tem-se um encontro e síntese da
filosofia com a teologia e um esboço de ortodoxia da doutrina cristã. Ele
mesmo diz ter-se iniciado entusiasticamente na filosofia pelo estoicismo de
Cícero: “Porém, o amor da sabedoria, pelo qual aqueles estudos literários me
apaixonavam, tem o nome grego de Filosofia. (Confissões, III,4,8).
Em seguida, diz que conheceu também textos platônicos e aristotélicos
(De Beata Vita, 1,4; Confis. IV,16,28); e, sobretudo, textos neoplatônicos de
Plotino e Porfírio, com que certamente mais se depara (Confissões, VII,9,13).
Contudo, após a conversão, critica e recusa estas filosofias, para dar
primazia à teologia e exaltar a busca da espiritualidade cristã. Nas Confissões,
diz recusar o neoplatonismo por este não admitir a possibilidade da encarnação
do Lógos (VII,9,14) e o platonismo por este não contemplar a perfeição nas
coisas criadas, como revela as Sagradas Escrituras (VII,20,26). Mas, no Da
verdadeira religião, ao confrontar o platonismo com o cristianismo, ressalta
muitos elementos essenciais de um no outro.
Acima de tudo, como mostra Pierre Hadot (2004, p.339), a doutrina
cristã da Patrística, anterior a Agostinho, desde os primeiros Pais Alexandrinos
como Justino, Clemente e Orígenes, é fortemente influenciada pelo platonismo
e estoicismo. Agostinho, no De Vera Religione (III, 3), faz concordar o
cristianismo com o platonismo, no que se refere a necessidade do sujeito,
através da razão, depurar a alma dos erros, distorções e falsas opiniões que
vêem dos sentidos, pois somente a alma racional e intelectual é capaz de
usufruir a contemplação da eternidade de Deus e de nele encontrar a vida
eterna (Hadot, p.352).
Resta a crítica de que a recepção do cristianismo ao platonismo e ao
estoicismo é ampla. Para Pierre Hadot, a diferença consiste no fato de que o
platonismo não pôde converter as massas e desprendê-las das coisas terrenas
para orientá-las para as coisas espirituais, como fez o cristianismo (p.353).
Para o martelo crítico de Nietzsche, no prefácio de Para além do bem e
mal, meramente “o cristianismo é um platonismo para o povo” (1987, p.16).
Mas, após mais de dois mil anos, terão eles razão, frente ao triunfo do
cristianismo, mesmo sob o crítico fenômeno do denominacionalismo?

CONCLUSÃO: triunfo da fé moral e atualização do debate ao tema.


Após percorrer o roteiro deste contexto histórico, pela filosofia e teologia,
encontramos fios condutores que ligam os dois caminhos tradicionais da ética
sobre o tema do prazer, os quais são o caminho ocidental da filosofia grega e o
caminho oriental da moralidade judaico-cristã.
Dos gregos ao cristianismo de Agostinho, vê-se intensa inquietação
moral, fonte também de uma rica produção de reflexão, filosófica e teológica.
Esta preocupação moral com o prazer que se autoconcede e com o
bem-estar que se pode alcançar com seu controle já está presente na tradição
filosófica grega, dos pré-socráticos aos clássicos e helenistas. A busca de
compreensão, através da reflexão, de critérios e valores que orientem a
conduta humana para alcançar a felicidade, suscita um contínuo confronto da
razão com o “desejo” e com sua manifestação no “prazer”.
Platão havia dito que as epithymiai (desejos) têm caráter de aplestía
(insaciabilidade) e vêem da endéia (deficiência) da alma, quando esta sofre o
aprisionamento no corpo pela encarnação. As aphrodísiai (prazeres do amor)
são páthe (paixões), apetites inferiores que vêem da alma concupiscível.
Assim, os desejos são irresistíveis e irrefreáveis; por isso, impulsos perigosos!
Esta tradição platônica de ética, de que a felicidade (eudaimonia) é
essencialmente moralidade ou vida moral, se impôs, fortalecendo o
conhecimento e o exercício da razão. Portanto, uma felicidade pelo agir moral
que busca estabelecer a virtude como padrão de ética e a reflexão sua fonte.
A partir deste fundamento os sistemas éticos gregos buscam saber e
determinar quais sejam os bens apropriados à vida virtuosa, com o fim de se
alcançar a felicidade, sendo que é a felicidade que passa a dar sentido à vida.
Do conjunto da tradição das éticas gregas, as concepções elaboradas por
Platão são as mais influentes no pensamento cristão até Agostinho. A virtude
do conhecimento é a fonte da iluminação interior, capaz de elevar a alma
humana. Também a idéia de ordem e harmonia da natureza da alma é
prioridade e o “orgulho” (superbia), como perturbação da alma, é a fonte do
“pecado original”, cujo sinal no corpo é a libido, essência do impulso do prazer.
Vê-se, pois, a consagração desta tradição platônico-cristã que privilegia
a alma e o espírito, em detrimento do corpo e de sua conexão com a natureza,
fundamento que estabeleceu uma moral cada vez mais negativa e repressora
ao prazer, entendido sempre como fonte do mal, enraizado na corporeidade.
Todavia, antes disso, no outro lado do mar Egeu, a tradição bíblica
veterotestamentária incluía o corpo e o prazer em seus escritos de sabedoria e
poesia, como partes integrantes da “vida boa” para os hebreus. Mas, no
período pré-cristão, confrontando-se com o liberalismo da sociedade greco-
romana, o judaísmo ganha o iminentemente ascetismo quanto ao prazer,
preconizado pela tradição ética do helenismo.
E, neste momento histórico, há um encontro entre a tradição moral
judaica com o legado ético da filosofia grega.
É verdade que a abordagem de Jesus sobre o prazer é de mais
sensibilidade que todos os mestres e líderes religiosos de seu tempo, fundando
uma ética do amor e da interioridade. Mas, com Paulo, principal doutrinador, a
moral cristã ganha um tom rabínico e moralista à questão da sexualidade.
Tanto a tradição paulina como a petrina e joanina estabelecem restrições
ao prazer da sexualidade, ao considerar que os cristãos viviam “tempos de fim”
(parousia), pelo que deviam buscar vida santa e separada do ”mundanismo” da
sociedade greco-romana e viver como “peregrinos no mundo”.
Esta teologia impôs-se como moral, corroborada e desenvolvida ao
longo das discussões teológicas dos Pais da Igreja. Tal legado teológico chega
até Agostinho e serve-lhe de base, principalmente quando lê as Epístolas de
Paulo, como nos mostra a intimidade de suas Confissões, trazendo sentido à
inquietação de sua própria experiência pessoal de vida, reflexões e escritos.
Podemos ainda visualizar, para além de Agostinho, o impacto de seu
pensamento e em particular de sua obsessiva busca de uma normativa
universal para o prazer, principalmente em obras exortativas como a De Bono
Coniugali, e outras, que serviram de base para ações e normas do cristianismo
medieval sobre as relações sociais, interpessoais e conjugais.
E, para mais além, as próprias Confissões, sua mais célebre obra, serviu
como método de exteriorização da experiência espiritual pessoal, exemplo de
conversão cristã e de modelo à proeminente prática litúrgica da confissão e dos
manuais de penitências, que se impuseram como tradição no trato ao prazer.
A crítica filosófica contemporânea tem atualizado o debate ao tema do
confronto entre a ética e o prazer, objeto desta reflexão.
Michel Foucault diz, em A vontade de saber, que o homem cristão, como
um “animal em confissão”, a tudo se obriga fazer passar pelo lógos: “A pastoral
cristã inscreveu como dever fundamental a obrigação de fazer passar tudo que
diz respeito ao sexo pelo moinho sem fim da palavra” (1984, V.1, p.80).
Tal “fenomenologia da confissão”, instalada como novidade pela prática
cristã à cultura ocidental, no trato para com a culpa, também é objeto de análise
de Paul Ricouer, em Culpa, ética e religião, que a ênfase cristã na “experiência
do pecado” evidenciada pela confissão reforça a culpa. Portanto, “é a esta
experiência e a esta linguagem que devemos recorrer; ou melhor, a esta
experiência em sua linguagem; pois é a linguagem da confissão que traz à luz
do discurso uma experiência carregada de emoções, medo e angústia. A
literatura penitencial manifesta uma inventividade lingüística que marca o
caminho para a explosão existencial do sentimento de culpa” (1970/6, p.680).
Hannah Arendt observa, em O conceito de amor em Santo Agostinho,
que o pensamento de Agostinho e a magnitude de sua “ética do amor”, serviu
de fundamento à teologia da Reforma e às igrejas protestantes históricas: “Da
Idade Média até Lutero, o nome de Santo Agostinho era autoridade tanto para
os ortodoxos como para os hereges, tanto para os reformadores como para os
paladinos da Contra-Reforma. O próprio Lutero referiu-se a ele e considerou-se
um dos seus sucessores, tal como recusou Tomás de Aquino e, com ele, a
tradição aristotélica enquanto pensamento do ‘filósofo insensato’” (1997, p.173).
Também há, no debate atual, a defesa de um “retorno à moralidade” no
mundo contemporâneo, conturbado, principalmente pela escalada da violência
e descaso nas relações interpessoais e sociais. Contudo, tal emergência
apresenta-se de forma iminentemente laica, arreligiosa.
André Comte-Sponville, interrogando-se sobre a moralidade das
sociedades ocidentais de hoje, em O capitalismo é moral? (2005), busca
emoldurar um quadro ideal para a situação atual, especialmente européia, que
reforça o retorno da ética; contudo, sob a já consolidada proclamação de
Nietzsche da “morte de Deus” (A Gaia Ciência, 2006, p.110).
A questão, para ele, diz respeito à falência da religião como controle
social da moral, é a “autoridade moral” da religião que morreu.
Comte-Sponville diz que o próprio Nietzsche não ignora que Deus, se
existe, é por definição imortal; mas, com o fim do poder de coerção moral da
religião, Deus está vivo hoje, aqui e agora, mas de modo individualizado e
subjetivado. Contudo, acirra-se o individualismo por causa deste “fim da
religião”, onde o triunfo não é exatamente do ateísmo, mas, sim, da
“negligência” e “falta de ligação”, numa “comunidade sem comunhão”, pois “no
fundo era Deus que respondia à pergunta ‘que devo fazer?’” ((2005, p.36-38).
Nisto, Comte-Sponville argumenta a favor da emergência da moral no
“processo de laicização” ou “secularização” da vida atual, no sentido de que:
“necessitamos tanto mais de moral quanto menos temos religião” E reitera: “A
religião... inclui uma moral, que, por incluí-la, a torna secundária. Se a religião
desaparece, a questão moral retorna ao primeiro plano” (p.35, .40, 41).
Com esta questão concorda Luc Ferry, em seu ensaio O que é uma vida
bem-sucedida?, onde, também partindo da visão nietzscheana, apresenta a
impossibilidade de qualquer moral, natural (como a estóica) ou religiosa (como
a judeu-cristã), que se baseie na ordem do que chama de “cosmológico-ético”,
dado que atingimos a era do “fim das transcendências” (2004, p.33, 51).
Sua proposta é de um “humanismo moderno ou a laicização do mundo”,
com total emancipação do indivíduo e de um “humanismo do homem-Deus” ou
“a vida boa em harmonia com a condição humana” (p.49, 303).
Richard Rorty e Gianni Vattimo, em O futuro da religião, reiteram a
emergência da moral em tempos de “pós-metafísica”, pelo mesmo argumento
de que é o indivíduo, em plena liberdade de racionalidade e laicidade, que deve
responder à vida moral, havendo-se com suas próprias escolhas, pois: “A
democracia, a hermenêutica e o cristianismo, de um ponto de vista pós-
metafísico, não são métodos para a descoberta da verdade... Qualquer futuro
depende da capacidade da cultura de consumir todas as razões de conflito e de
assumir como tarefa o programa da secularização” (2006, p.38).
Contudo, dizem, o mundo não pode abrir mão de contribuições sociais
que historicamente a religião cristã consolidou na cultura ocidental, como a
“solidariedade e a caridade”. Logo, “A única verdade que o Evangelho nos
revela é o apelo prático ao amor, à caridade”. E apontam para um “cristianismo
sem Deus” e uma “fé liberta da metafísica objetivista que pensa demonstrar,
com base na ‘sadia razão natural’, a existência de um ser supremo” (p.39, 55).
Mas, Monique Canto-Sperber, em A inquietude moral e a vida humana,
insurge-se contra a idéia de retorno da moral tornada “quase religião” ou
próxima do “espírito de religião”, como defendem Lipovestsky, Ferry e Comte-
Sponville, e que a moral deve eliminar a religião para se impor ou que é preciso
ser ateu para se falar de moral (2005, p.39, 44).
A moral, diz, “é principalmente um recurso do pensamento”, por que
“essencialmente reflexiva e crítica”. Contudo, estes críticos a tomam como mera
“tirania de lei”. Esta pretensão de “moral sem religião” é totalmente injusta com
o legado ético e social do cristianismo, ignorando que “Uma literatura exegética
de grande riqueza foi dedicada a essas questões” (p.40, 44, 49).
É a “interioridade do princípio moral” o grande legado da tradição ética
grega e esta “ética” torna-se “consciência” na vida cristã, “na qual a primazia da
consciência revela a orientação primordial do homem para o bem” (p.47).
Também o Papa Bento XVI, em sua Encíclica Deus Cáritas Est (2006),
trata do tema da ética e do prazer da sexualidade. Primeiro, revisa o conceito
de amor definido nos termos gregos do eros, philia e agápe. Mostra o amor
descrito no texto bíblico de Antigo e Novo Testamento. Diz que o Novo só faz
menção à “ágape”, mas que éros e ágape têm diferença e unidade (Cap.3, p.5).
Critica a ética grega, pois os gregos “viram no eros, sobretudo, o
inebriamento, a subjugação da razão por parte duma ‘loucura divina’, que
arranca o homem das limitações da sua existência e... faz-lhe experimentar a
mais alta beatitude”. Também critica o uso do amor erótico pelas religiões como
“perversão religiosa” nos “ritos de fertilidade”, e ao deboche de Nietzsche de
que “o cristianismo teria dado veneno ao éros, que, embora não tivesse
morrido, daí teria recebido o impulso para degenerar em vício” (Cap. 4-5, p.6).
Hoje não é raro ouvir censurar o cristianismo do passado por ter sido
adversário da corporeidade; a realidade é que sempre houve tendências
neste sentido. Mas o modo de exaltar o corpo, que assistimos hoje, é
enganador. O éros degradado a puro “sexo”, torna-se mercadoria, torna-se
simplesmente uma “coisa”, que se pode comprar e vender; antes, o próprio
homem torna-se mercadoria. (...) A aparente exaltação do corpo pode bem
depressa converter-se em ódio à corporeidade. Ao contrário, a fé cristã
sempre considerou o homem com um ser uni-dual, em que espírito e matéria
se compenetram mutuamente... Sim, o éros quer-nos elevar “em êxtase” para
o Divino, conduzindo-nos para além de nós mesmos, mas, por isso mesmo,
requer um caminho de ascese, renúncias, purificações e saneamentos.
(Bento XVI, 2006, Cap.5, p.7).

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