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HERÓIS  DE  TODAS  


AS  ÉPOCAS  

 
SUMÁRIO  

1.   UM LUGAR NO DESERTO .......................................................................... 2  

2.   NUVENS TEMPESTUOSAS ........................................................................ 5  

3.   PRESOS EM UMA CAVERNA ..................................................................... 9  

4.   DEUS ENVIA UMA NUVEM ....................................................................... 14  

5.   NOVA LUZ NA EUROPA ............................................................................ 18  

6.   AMEAÇA DA SABÓIA ................................................................................ 24  

7.   A RESPOSTA DOS ALPES ....................................................................... 30  

8.   EXTINGUIU-SE UMA LUZ ......................................................................... 36  

9.   TEMPESTADE E PRAGAS ........................................................................ 43  

10.   MOEDAS DE OURO PARA O MARQUÊS ............................................. 47  

11.   DEZOITO HOMENS CONTRA MIL......................................................... 55  

12.   HOMENS QUE LUTARAM COMO LEÕES............................................. 62  

13.   UM POVO EM EXÍLIO............................................................................. 68  

14.   A VOLTA GLORIOSA.............................................................................. 74  

15.   DEFESA DE LA BALSIGLIA ................................................................... 80  

16.   JOGADOS NOS VAGALHÕES DA GUERRA......................................... 86  

17.   OS ÚLTIMOS MARCHAM NA VANGUARDA ......................................... 93  


1. UM LUGAR NO DESERTO

Entre os elevados Alpes do noroeste da Itália, onde os picos lembram


dedos apontando o firmamento, aninham-se vales férteis e atapetados de relva.
Esses vales, que se estendem longamente, ao coração das alterosas
montanhas, abrem-se uns para outros mediante estreitos passos. Por mil anos
esses vales abrigaram um povo humilde que queria ser fiel a Deus não
seguindo a igreja de Roma.
Os vales forneciam boas moradas ao povo de Deus. Torrentes de águas
provindas de altitudes cobertas de neve, regavam a terra. O povo plantava os
alimentos, criava ovelhas e gado, cultivava pomares e vinhedos de dúlcidos
frutos. E em virtude de suas estradas estreitas e da muralha de montanhas que
os circundava, os vales demonstraram-se magnificentes fortalezas naturais que
protegiam o povo nos tempos de tribulação vinda dos inimigos. Muitas vezes
alguns homens a combater por trás de barricadas mantiveram à distância
milhares de soldados furiosos que tentavam penetrar pelas estreitas gargantas.
O apóstolo João referiu-se a esse povo várias centenas de anos em
antecipação, quando escreveu o último livro da Bíblia. No duodécimo capítulo
do Apocalipse ele mencionou uma bela mulher a enfrentar dragão feroz. Essa
mulher representava a verdadeira igreja de Jesus ao passo que o dragão
simbolizava Satanás e seus seguidores. João disse que a mulher fugiria do
dragão e encontraria lugar de refúgio no deserto.
Um homem por nome Pedro Valdo começou a pregar verdades bíblicas
por volta de 1170. Os padres chamavam suas crenças heresias, o que quer
dizer que qualquer coisa que discordasse dos ensinos da Igreja Católica
Romana. Muitos dos cristãos dos vales alpinos seguiram os ensinos de Valdo,
e assim ficaram conhecidos como valdenses.
Por longos anos viveram os valdenses sossegados em seus vales entre
as montanhas, em paz com os vizinhos católicos das cidades e vilas das
planícies. Possuíam a Bíblia em sua própria língua, e faziam cópias
manuscritas e partilhavam com outros. Como os valdenses temessem que a
preciosa Bíblica lhes fosse algum dia tirada, decoravam o mais possível partes

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dela. As próprias crianças eram capazes de repetir de cor livros inteiros da
Bíblia.
Padres da próxima cidade de Turim visitavam três vezes os valdenses,
procurando persuadi-los a aceitar os ensinos da Igreja Católica Romana e
obedecer às leis do papa, mas não logravam muitos conversos. Os pastores
valdenses, chamados barbas, ensinavam seus rebanhos a ser puros,
bondosos, amigáveis com todos. Mantinham o amor de Deus no coração e
desejavam partilhar com outros as bênçãos que fruíam.
Os valdenses consideram dever seus disseminar o verdadeiro
evangelho de Jesus. Sabiam que muitas pessoas nas cidades sentiam-se
descontentes com a religião católica, mas vagavam nas trevas buscando a
salvação. Encontravam essas pessoas nos caminhos, fazendo longas
peregrinações a lugares santos. Os padres haviam-lhes dito que se poderiam
salvar por suas obras. Os valdenses começaram a fazer planos para levar o
evangelho a essa pobre gente que não possuía a Bíblia para por meio dela
aprenderem a verdade.
Os valdenses sabiam que os dirigentes católicos os chamavam hereges,
por eles não obedecerem às leis do papa. Sabiam que os chefes dessa igreja
aprisionavam por vezes hereges e entregavam-nos ao governo para serem
queimados na estaca. Assim, resolveram eles trabalhar cautelosamente,
segundo as instruções de Jesus a Seus discípulos, de que precisavam ser
“prudentes como as serpentes e simples como as pombas.”
Eles adotaram um plano bem simples. De seus tranqüilos e abrigados
vales, saíam jovens que viajavam por grande parte da Europa, não no caráter
de missionários, mas como vendedores ambulantes, levando sedas e cetins,
jóias e pratas para vender. Ao chegarem em uma casa cuja família lhes dava a
impressão de acolher bem o evangelho, falavam-lhe cautelosamente do plano
da salvação. Oravam muitas vezes nesses lares e, antes de partir, deixavam
em geral alguma porção da Bíblia, um dos evangelhos, talvez o livro dos
Salmos, ou uma das epistolas de Paulo. Os valdenses tinham outro método de
disseminar suas crenças. Alguns de seus jovens mais inteligentes partiam de
casa, no vale, e iam às grandes escolas em Paris, Milão, Bolonha, Barcelona,
ou mesmo Roma. Misturavam-se nessas universidades com os outros
estudantes, conversando com eles e fazendo-lhes perguntas. Levavam assim
muitos deles a aceitar os ensinos dos valdenses.
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Ao descobrir a igreja católica, isto é, seus dirigentes, o progresso dos
valdenses ficaram muito irados. Ordenaram que eles fosse pegados e mortos
onde quer que estivessem. Proibiram o povo de aceitar quaisquer partes da
Bíblia da mão de visitantes. Insistiram com os dirigentes de universidades para
não permitirem que os valdenses nelas entrassem.
- Mas, indagavam os professores, como podemos distinguir os
estudantes valdenses de seus companheiros?
- Se os senhores virem um que não juro nem joga, não bebe nem briga,
é provavelmente um valdense.
As autoridades católicas apanhavam muito dos valdenses longe de seus
vales natais. De ordinário, davam-lhes a escolher entre renunciar a sua fé ou
ser queimado no poste. Poucos renunciavam à fé e entravam na igreja papal,
só para salvar a vida.
Essas vítimas eram levadas para fora dos muros da cidade, amarradas a
um poste, amontoando-se lenha ao seu redor. Se bem que amassem a vida,
nunca mais ergueriam os olhos para altaneiras montanhas de sua terra. Ao
verem, porem, a lenha sendo amontoada em torno de seus pés, as palavras de
Jesus lhes acudiam docemente ao espírito, dando forças, e por vezes mesmo
alegria, na hora da provação. Lembravam-se da promessa: “Sê fiel até à morte,
e dar-te-ei a coroa da vida.”
Detiveram-se os valdenses com sua obra missionária por causa de tais
tragédias? Não. Outros surgiam para ocupar o lugar dos que haviam tombado.
O papa em Roma ficava mais irado ao receber, de vários lugares da Europa,
noticias que contavam da obra dos valdenses. Acho que tinha de ser feita
alguma coisa. Não somente precisavam de ser mortos os valdenses
apanhados nas vilas e cidades, mas era preciso que fossem soldados aos seus
vales e destruíssem completamente os hereges. Concitaram seus cardeais e
altos dignitários da igreja. Confabularam por longo tempo, fazendo planos para
trazer de volta os valdenses à igreja, e destruir todos quantos se não
quisessem submeter.

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2. NUVENS TEMPESTUOSAS

Do outro lado dos Alpes dos valdenses, vivia um maior grupo de


“hereges”, os albigenses. Estes ocupavam muitas florescentes cidadezinhas e
vilas no sul da França, à margem do Rio Ródano. Povo laborioso, seu governo
considerava-os dos melhores súditos.
Subiu em 1198 um novo homem ao trono papal. Tomou o nome de
Inocêncio III. Tornou-se o mais poderoso papa que já governara em Roma, e
forçou a maioria dos reis e dominadores da Europa a obedecer-lhe aos
mandos. Castigava severamente aos que o não faziam. Esse papa convocou
os chefes de sua igreja para discutirem a maneira melhor de destruir os
albigenses e os valdenses.
Por esse tempo, os valdenses haviam levado suas doutrinas a muitos
lugares da Europa. Pequenos grupos de pessoas residentes em Nápoles,
Polônia, Alemanha, Morávia, Boêmia e Inglaterra, adoravam a Deus da mesma
maneira que o povo dos vales. Na França, porém, havia uns duzentos mil
albigenses. Inocêncio III decidiu destruí-los em primeiro lugar.
Proclamou uma cruzada, ou guerra santa, contra os albigenses. Nos
países dominados pelo papado em toda a Europa, os padres leram a
proclamação do papa. Ele convidava todos os homens para se unirem em um
exército que marchasse contra os albigenses. Prometia-lhes as casas, terras e
bens dos hereges que matassem. Assegurava-lhes também que todos os
soldados mortos na cruzada seriam perdoados de seus pecados, e teriam um
lugar perto no Céu.
Em resultado, reuniram-se no sul da França homens de quase todos os
países europeus, avolumando-se em grande exército. Grande parte dele, no
entanto, consistia em ladrões, homicidas e aventureiros que esperavam
enriquecer-se com os bens dos hereges.
Os albigenses não possuíam soldados, nem fortalezas, nenhum meio de
defesa. Ficaram indefesos enquanto a horda de cruzados invadia seu belo país
roubando, matando, queimando. O exército reduziu a outrora florescente região
a uma ruína, e ao terminar a cruzada, os albigenses haviam sido destruídos.

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Apenas alguns haviam conseguido escapar pelas montanhas e reunir-se aos
valdenses.
Pouco tempo depois da cruzada, o papa Inocêncio III morreu, e os
hereges sossegaram em relativa paz.
Mais de um século após, tornou-se papa João XXII. Lera a respeito da
cruzada de Inocêncio III contra os albigenses, e mandou dois espias aos vales
dos valdenses a fim de averiguar ali as condições. Os espias ouviram falar de
uma reunião a que assistiam centenas de pastores e chefes valdenses. João
viu prontamente que a cruzada de Inocêncio III não destruíra todos os hereges.
Antes de poder completar a obra, porém, esse papa, João XXII, também
morreu. Os vales ficaram em paz por outros trinta anos.
Ano tornar-se papa, Clemente VI queria ver destruídos todos os
valdenses, sendo posto fim a sua obra na Europa. Escreveu aos reis da França
e de Nápoles, incitando-os a lançar cruzadas contra os valdenses e seus
seguidores. Escreveu uma carta especial a Joana, esposa do rei de Nápoles,
concitando-a a ajudar a limpar os vales pela destruição dos hereges que viviam
ali.
Os reis de França e de Nápoles, entretanto, hesitaram. Os valdenses
achavam-se entre seus melhores cidadãos. Eram prósperos, pagavam
prontamente os impostos, não causavam perturbações a suas autoridades. Por
que haviam os reis de destruir tão valiosos cidadãos? De modo que os
monarcas da Europa quietamente passaram por alto as instruções papais, e os
valdenses aumentavam em número à medida que passavam os anos de paz.
Vieram então anos maus para o próprio papado. Um francês que se
tornara papa, mudou a corte de Roma para a cidade francesa de Avignon.
Cerca de setenta anos se passaram antes que outro papa, Gregório XI,
fizesse voltar o papado de Avignon para Roma. Gregório morreu um ano
depois, e o papa novamente eleito enraiveceu os cardeais que o haviam
elegido. Elegeram então outro papa, que logo se estabeleceu novamente em
Avignon.
O papa francês, é claro, afirmava que era o único papa verdadeiro, e
amaldiçoava o de França. Muita gente não sabia a qual seguir. Um terceiro
papa foi eleito em 1409 para substituir os outros dois, mas nenhum deles
queria resignar. Agora, três papas pretendiam o poder supremo, cada um

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amaldiçoando os outros. Só em 1414 um homem reconquistou o domínio
supremo do papado.
De maneira que, por cem anos, os vales valdenses ficaram mais ou
menos em paz, visto nenhum dos papas ter tempo de molestá-los.
Realmente, a perseguição nunca cessou por completo. A igreja romana
mandava homens chamados inquisidores para verificar quais não prestavam
culto segundo o papado, para serem mortos. No ano de 1400, um desses
inquisidores aprisionaram cento e cinqüenta homens, mais várias mulheres e
crianças, e levaram-nos a Grenoble, onde foram mortos.
Enlevados com esse primeiro esforço bem sucedido, o inquisidor Borelli,
resolveu repetir. Desta vez, ele sabia que os valdenses estariam alerta, de
modo que esperaram até metade do inverno quando a neve bloqueava os
desfiladeiros. Então, com seus soldados, penetrou no vale e marchou sobre a
cidadezinha de Pragelas. Alguns os viram vindo, numa longa fila de figuras
negras contra a alvura da neve, e bradou um alarme para a vida. Os pais
pegaram suas crianças, jovens levaram os velhos e os doentes. As sombras de
uma longa noite hibernal caíam quando os soldados chegaram à vila, e
seguindo os rastos recentes na neve, pronto alcançaram a procissão em fuga.
Mataram muitos dos fracos e inválidos, tingindo de rubro sangue a brancura da
neve. Então caíram as trevas, os soldados voltaram à vila e passaram a noite
nas casas abandonadas de seus moradores. Os fugitivos não tiveram
descanso naquela tremenda noite. Procuraram atravessar o passo da
montanha de S. Martinho, para outro vale valdense, mas na escuridão e na
tempestade, muitos se perderam. Alguns caíram de elevados rochedos. Outros
emergiram na neve para nunca mais se erguer. A luz da manhã revelou terrível
espetáculo. Muitos dos valdenses tinham pés e mãos congelados. Alguns
carregavam crianças que haviam morrido durante a noite. O povo achou
cinqüenta crianças mortas nos braços de suas mães, caídas na neve profunda
à beira do caminho.
Essa grande tragédia teve lugar na véspera do Natal, e até hoje pais e
mães em Pragela contam a seus filhos a história do mais triste Natal que já
passou naquele vale.
Se bem que os valdenses sofressem muito durante essas perseguições,
sobreviveram ainda. Quando a igreja ou as autoridades estatais prendiam seus
missionários na França, Inglaterra, Alemanha ou Itália, e lhes tiravam a vida,
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outros jovens de boa vontade lhes tomavam o lugar. Finalmente, muitas
autoridades eclesiásticas acharam que os missionários valdenses tinha de
acabar, e que a única maneira de consegui-lo seria destruir toda a nação
valdense.
Em 1487, o papa Inocêncio VIII reinou em Roma. Lembrou-se de como
um papa anterior, do mesmo nome, destruíra os albigenses na França. Ele
queria tornar-se tão famoso como seu predecessor, de modo que proclamou
longa declaração acerca dos valdenses, apontando-os como os piores hereges
do mundo. Pedia que fossem todos mortos.
“Caso não reneguem sua fé,” declarou o papa cheio de ira, “sejam
esmagados como serpentes venenosas.”
Ele começou por procurar um homem que organizasse uma cruzada.
Escolheu Cataneo, famoso capitão italiano. Então o papa escreveu ao rei de
França e a Carlos II, duque de Sabóia, ordenando-lhes que enviassem
exércitos para ajudar Cataneo a destruir os hereges. Concitou todos os
católicos romanos a virem em auxílio de Cataneo. Uma vez mais reuniu-se um
exército para exterminar os hereges, e mais uma vez o papa prometeu aos
soldados que poderiam guardar para si todos os bens dos hereges que
matassem.
Em Turim, Cataneo reuniu-se com seus outros oficiais, e fez os planos.
Um contingente reunir-se-ia em França e atacaria os valdenses daquele lado,
ao passo que ele avançaria com seu exército do lado da Itália. Mediante ataque
por dois lados ao mesmo tempo, esperava destruir os valdenses por completo,
e esmagar-lhes para sempre a fé.

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3. PRESOS EM UMA CAVERNA

Cruel mas ousado capitão por nome La Palu, dirigiu os soldados que
avançavam contra os valdenses do lado francês dos Alpes. Com seus homens,
atacou ele primeiro o povo que morava em Valouise. Alguns pastores de gado
lá muito alto na encosta da montanha, viram-nos descendo e correram
velozmente à vila para advertir o povo. Os valdenses observaram os inimigos
vindo pelo passo na montanha, e verificaram que La Palu tinha vinte vezes
mais soldados em seu exército do que eles poderiam mandar contra ele. Nada
poderiam fazer senão fugir. Pondo em carroças os velhos, as mulheres e as
crianças, com provisões de mantimento, e tangendo seus rebanhos de cabras,
ovelhas e gado diante deles, começaram a subir as íngremes encostas do
monte Peloux. Entoavam salmos de Davi enquanto ascendiam mais e mais alto
acima do vale. O cimo elevava-se acima deles. Os abismos ressoavam ao som
de suas vozes.
Alguns dos idosos e fracos ficaram para trás. Os inimigos apressavam-
se atrás deles, matando os que ficavam apartados dos outros. A maioria do
grupo, todavia, chegou a bem conhecida caverna no flanco da montanha. Para
ali correram eles com seus animais. As mulheres e as crianças foram à pressa
bem para o fundo, nas escuras profundidades da gruta, ao passo que os
homens ficaram à entrada, prontos a resistir a qualquer ataque dos soldados
para forçar a entrada. Tinham pilhas de grandes pedras para arremessar na
cabeça de quem quer que fosse que tentasse trepar para a caverna.
La Palu viu o perigo, e sabia que seria fatal dirigir seus homens,
destreinados nessa espécie de luta, sob a aba da caverna. Ao contrário,
conduziu-os ao redor da montanha, e trepou neta pela retaguarda. Conduziu-os
diretamente a um ponto sobre a boca da caverna. Servindo-se de cordas
trazidas com o fim de enforcarem os valdenses, os soldados baixaram alguns
deles à plataforma diante da gruta.
Os valdenses não havia previsto um ataque de cima, e pareceram
paralisados de temor ao observarem os inimigos. Haveria sido fácil matar
aquele primeiro e pequeno grupo de soldados, mas aquele povo havia vivido

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por tanto tempo em paz, que a idéia de lutar, mesmo por sua vida, parecia-lhes
estranha.
Uma vez que seus inimigos haviam tomado conta da boca da caverna,
os valdenses retiraram-se muito para o interior, mediante bem conhecidos
caminhos. Os soldados de La Palu não ousavam penetrar no coração da
caverna sem guia. Compreendendo o perigo que adviria a seus homens
naquele estranho lugar escuro, o capitão ordenou a seus soldados que
ajuntassem grandes montes de capim dos lados da montanha. Eles
amontoaram-nos alto, na boca da gruta, e puseram-lhes fogo. Silenciosamente
lá embaixo, no mais fundo interior da caverna, rolavam grandes nuvens de
fumo. Os valdenses não tinham nenhum meio de escapar, e morreram
sufocados.
Ao todo, três mil pessoas pereceram naquele abismo. O exército
destruíra toda a população de Valouise, e os valdenses nunca mais ocuparam
aquele belo vale.
La Palu conduziu então seus homens a outro vale, matando o povo e
destruindo-lhes os lares. Ao chegar a notícia de sua vinda, antes dele, muitos
do povo fugiram pelas gargantas para vales mais protegidos. Todavia tantos
dos valdenses perderam a vida, que logo os soldados de La Palu verificaram
que não podiam carregar os despojos que apanhavam das moradas de suas
vítimas. Naturalmente os soldados esperavam que uma guerra tão proveitosa
havia de continuar por longo tempo.
O ultimo vale em que La Palu entrou foi Pragelas, cuja população fora
tão terrivelmente afligida na véspera de Natal oitenta e sete anos atrás. Os
cruzados caíram de improviso sobre a vila. Muitos desprevenidos lavradores
caíram nos campos enquanto ceifavam suas colheitas. Outros, fugiram em
busca dos cimos das montanhas. Alguns destes, não havendo sabido da sorte
do povo de Valouise, refugiaram-se nas cavernas, onde La Palu repetia a
tragédia. Seus soldados ateavam fogo à boca dessas grutas, e o povo que se
achava no interior sufocava.
Nem todo o povo de Pragelas morreu. Havendo-se recuperado do
choque do inesperado ataque, voltavam-se ousadamente contra os invasores,
e atacaram-nos. Na maioria os soldados de La Palu haviam sido bandidos e
ladrões antes de se unirem aos cruzados, e não sabia lutar. Ao serem

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assaltados pelos valdenses, fugiram aterrorizados. Muitos deles morreram no
vale que haviam esperado conquistar tão facilmente.
Entrementes, do lado italiano dos Alpes, o legado papal Cataneo, dirigia
seu exército através das planícies do Piemonte e ao sopé dos montes em que
ele se preparavam para uma guerra, que esperava, extirparia toda a colônia
valdense. Os habitantes das vilas próximas da planície, compreendendo que
não poderiam resistir com êxito, voltaram para suas fortalezas da montanha.
Os soldados saquearam suas casas, e meteram-lhes fogo.
Vendo pouca perspectiva de resistir a tão poderoso exército, os
valdenses enviaram dois de seus homens mais idosos e sábios para pleitear
com Cataneo. Eles afirmaram que obedeciam unicamente à Palavra de Deus, e
propuseram-se a renunciar a qualquer doutrina que os padres pudessem
provar ser contrária ao que a Bíblia ensinava. Como eles falassem
mansamente, Cataneo pensou que deviam ser um povo fraco. Assim, zombou
deles e mandou-os embora com terríveis ameaças do que havia de acontecer a
menos que se submetessem.
Pensando que não precisavam empregar todo o exército contra gente
tão pacífica e contrária à guerra, dividiu-se em dois bandos separados,
pretendendo mandar cada grupo a um vale diferente. Devia, porém, descobrir
que os valdenses não eram tão fracos como pareciam.
O exército de Cataneo avançou até à cidadezinha de La Torre.
Acharam-na deserta, havendo o povo fugido para os vales mais inacessíveis.
Pelo caminho que ladeava o belo rio de Pelice, continuaram os soldados
papais sua jornada, passando por Vilaro e outras vilas enquanto subiam ao
vale de Lucerna. Do alto do vale, foram à cidadezinha de Bóbio, que facilmente
tomaram, pois seus habitantes haviam fugido também para as montanhas.
Como os soldados de Cataneo não haviam encontrado oposição, começaram a
considerar-se muito bons soldados.
Enquanto um bando avançava para o vale de Lucerna, o outro voltou-se
em outra direção a fim de destruir os hereges no vale Angrogna, centro do país
dos valdenses.
Entretanto os soldados que haviam tomado Bóbio com tanta facilidade
resolveram subir pela garganta da montanha até Prali, matar-lhe os habitantes,
continuando depois para os vales de San Martin e Perosa. Marchariam dali
para Angrogna e se uniriam ao outro ramo do exército. Estaria finda a guerra, e
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as montanhas livres de hereges. Estavam certos de que o papa ficaria
contente, e abençoá-los-ia.
Certa manhã, setecentos soldados marchavam de Bóbio para Prali. À
medida que os homens galgaram mais alto pela escarpada senda, puderam ver
a vila de onde haviam vindo, lá embaixo. Com as armas na mão e tendo sobre
si a pesada armadura, fatigaram-se em breve da subida. Paravam com
freqüência para descansar ou refrigerar-se com as frescas águas da corrente
que lhes atravessava o caminho. Acima deles, elevavam-se os poderoso picos
dos Alpes, mas esses homens não tinham tempo de olhar às belezas da
criação de Deus. Pensavam apenas na vila que em breve iriam atacar, o povo
que iriam matar, e os despojos que haviam de pilhar.
Atingiram finalmente o ponto culminante do passo. Alegres por haverem
terminado a longa ascensão, começaram sua descida, certos da vitória na vila.
Os soldados de Cataneo, porém, não suspeitavam de que os aguçados
olhos de um jovem lá muito embaixo haviam-nos visto a moverem-se, vindo do
topo do desfiladeiro, e ele fizera soar o alarme vale afora. Homens deixaram
seu trabalho e foram correndo de todas as direções. Alguns levavam espadas,
outros machados, outros foices, e outros ainda simples fundas, todos, porém,
possuíam coração valoroso, braços robustos, e firme confiança em Deus. Bem
sabiam eles que sua vida e a de sua mulher e seus filhos dependiam da ação
ousada daquele dia. Poderiam eles derrotar o exército que, lentamente, descia
a montanha em sua direção?
Os soldados de Cataneo acharam a descida de novecentos metros
quase não fatigante como havia sido a subida. Quando chegaram afinal ao
vale, estava grandemente dispersos. Vindo através da floresta, viram eles
então os fortificados valdenses ergueram-se-lhes através do caminho prontos a
lutar na defesa de seus lares.
Soltando um débil brado, os cansados soldados papais precipitaram-se
para seus inimigos, mas tudo em vão. Os valdenses, não só derrotaram os
invasores, como os destruíram. Dos setecentos homens que haviam subido a
montanha e descido sobre Prali, unicamente um fugiu montanha acima nas
trevas que se adensavam. Ali, numa fenda por traz de um bando de neve,
ocultou-se ele por vários dias, até que a fome e o frio o enxotaram afinal para
fora. Entrou então, humildemente na vila de Prali, para lançar-se sobre a
misericórdia dos homens que ele viera matar.
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Satisfeitos com sua vitória, os valdenses cuidaram do fugitivo, depois
mandaram-no de volta através da garganta da montanha para relatar ao
comando em Bóbio que só ele dos setecentos soldados escapara à espada
dos valdenses.

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4. DEUS ENVIA UMA NUVEM

Ao compreenderem os valdenses que Cataneo e seus soldados


pretendiam realmente destruí-los, decidiram lutar pela vida e pela fé. Sabiam
que jamais poderiam enfrentar um exército em campo aberto de batalha.
Sendo simples agricultores, poucas eram as armas que possuíam. Começaram
então uma grande retirada para as fortalezas interiores de suas montanhas.
Milhares, velhos e jovens, com rebanho e gados, deixaram os sorridentes
campos nos sopés dos montes, e jornadearam para os vales interiores de
Lucerna, San Martin, e especialmente de Angrogna.
Espiões contaram a Cataneo esse movimento, e foram-lhe agradáveis
as notícias. Dessa maneira, pensou, todos os seus inimigos estariam
concentrados em dois ou três lugares, e poderiam ser destruídos de uma vez.
Não haviam ainda chegado aos ouvidos do capitão as notícias da total derrota
de seus destacamentos no vale de Lucerna.
Entrementes os valdenses ocuparam-se em preparar todas as armas
que eles sabiam fazer. Alguns possuíam espadas. Bom número armou-se de
arcos e flechas. Entrando o exército de Cataneo pela extremidade mais baixa
do vale de Angrogna e caminhando pela estreita estrada que ladeava a
corrente, chegaram em breve ao principal grupo dos valdenses. Estes haviam
erguido rude barricada de toros através da estrada. Diretamente atrás da
barricada achavam-se os homens, dirigindo as defesas. Na retaguarda, os
velhos, as mulheres e as crianças reunidos numa concavidade para proteção.
Regozijando-se com a oportunidade de usar as espadas contra o povo
que haviam sido levados a desprezar, as forças papais soltaram exclamações,
e precipitaram-se para vencer aquela frágil linha por trás da barricada. Estes
despediram uma chuva de setas, e por um momento pareceu como se a linha
valdense fosse cair. As mulheres e as crianças, que observavam com corações
trementes, caíram de joelhos e ergueram os braços para o Céu, e clamaram:
"Ó Deus de nossos pais, ajuda-nos! Ajuda-nos!"
Os soldados papais ouviram-lhes o grito, e ergueram outro brado,
antecipando a imediata vitória. Um deles, o capitão Le Noir, homem orgulhoso
e obstinado, adiantou-se, chamando os valdenses de covardes.
- Orem, exclamou, vejam que benefício isto lhes traz. E puxando para
trás o elmo de cobre, continuou em tom de mofa: - Nada os pode salvar agora!
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Mal proferira essas palavras quando vigorosa seta, atirada por Pierre
Revel, acertou-o na testa, entre os olhos. E caiu morto.
Com uma exclamação, todos os valdenses em linha arrojaram-se para
frente. Desconcertados pela perda de seu campeão, os soldados papais
começaram a fugir. Os valdenses perseguiram-nos por todo o vale afora,
acampando-se mais uma vez aquela noite na entrada de Angrogna.
Esta derrota desalentou e enraiveceu Cataneo. No dia seguinte, pôs
novamente suas forças em marcha, trilhando o mesmo caminho até chegarem
ao mesmo lugar de sua derrota na véspera. Para surpresa sua, ninguém
acharam ali. Avançaram firmemente, observando com cuidado, não fossem cair
em qualquer armadilha, mas não puderam ver ninguém.
Subindo adiante o vale, que se tornava gradualmente mais estreito,
descobriram estreito desfiladeiro, lavado através dos anos pelas águas geladas
da corrente de Angrogna. Um trilho conduzia através dessa passagem -
passagem tão estreita, que não mais de dois homens podiam andar ao lado um
do outro. Alto, acima das águas, aquele desfiladeiro levá-los-ia sem dúvida ao
vale interior, onde esperavam encontrar os valdenses acampados em volta de
seu quartel general em Pra Del Tor. Cataneo estava certo de que se pudesse
segui-los, seria capaz de os destruir a todos e pôr termo vitorioso à campanha.
Ousadamente, ordenou a seus soldados, que penetrassem no
desfiladeiro, lugar verdadeiramente tremendo. Por vezes a densa folhagem das
árvores ocultava as águas do rio. A encosta da montanha erguia-se íngreme
para a direita do caminho, novecentos metros em direção ao céu. Através da
vereda marchava o exército de Cataneo, dois a dois, em longa e estreita fila.
Os valdenses haviam estado a observar cada movimento de seus
inimigos. Espias nos flancos das montanhas, haviam assinalado a entrada dos
invasores na garganta. Colocaram forte guarda no local em que o trilho se
alargava na saída para o vale em que eles se haviam refugiado. Tinham
vigorosa fé em Deus, e criam que Ele os havia de proteger. Exatamente como
o faria, não o sabiam eles. Talvez abalasse a terra e fizesse desmoronar os
montes sobre a cabeça de seus inimigos. Talvez fizesse chover saraiva sobre
eles. Ou quem sabe? O anjo do Senhor os ferisse como outrora às hostes de
Senaqueribe.
Olhando para cima, notaram espessas nuvens escuras reunindo-se nos
cimos das montanhas que olhavam ao vale. Enquanto observavam, fascinados,
15
aquelas nuvens começaram de manso a baixar pelo flanco do monte, vindo
mais e mais baixo. Haveria o Senhor escolhido as nuvens para salvá-los? Mais
baixo, e mais ainda, desciam elas, pairando enfim sobre o abismo em que os
soldados morejavam trilho acima, cerrando-o de cima abaixo e excluindo a luz
do dia.
Pasmos com as sombras que haviam caído subitamente sobre eles, os
soldados papais se detiveram, sem ousar mover-se à frente ou retroceder. Os
valdenses soltaram alta exclamação. Subiram aos montes acima da garganta e
começaram a rolar tremendas rochas para baixo. As grandes pedras
esmagaram dúzias de soldados do papa onde se encontravam. Eles foram
tomados de pânico. Procuraram fugir mas, na escuridão, perderam o caminho.
Muitos caíram na corrente embaixo. Poucos daqueles que tão confiadamente
haviam entrado no abismo à luz do dia hora antes, voltaram para contar a
Cataneo sua derrota.
Desanimado com esta segunda derrota, Cataneo voltou com seu
exército para La Torre. Enquanto ali esperava, cogitando como relataria seu
fracasso ao duque de Sabóia, recebeu a notícia da completa derrota dos
destacamentos enviados por ele aos vales de Lucerna e Prali. Possuído de
supersticioso medo de que talvez caísse também sob as espadas desses
lavradores montanheses, desceu à planície do Piemonte para estabelecer novo
quartel-general.
Desse novo ponto enviou Cataneo pequenos destacamentos volantes de
homens a várias partes dos vales, prosseguindo por um ano com essas táticas
hostlizantes. Os soldados surpreendiam muitos valdenses, separando-os de
seus lares. Queimavam-lhes as moradas e espalhavam-lhes o gado, as
ovelhas e cabras. Os invasores, porém, sofriam mais pesadas perdas ainda.
Os valdenses colocavam espias em vários pontos para manter cerrada
observação dos movimentos inimigos. Turmas volantes de montanheses se
organizaram para manter afastados os soldados que Cataneo mandava aos
vales.
Em meio de tudo isso, os valdenses continuavam a orar pela paz e a
ordem, de modo que pudessem voltar a seus lares e trabalhar sem temor
desses repentinos ataques. Finalmente, o duque de Sabóia resolveu terminar
com as perseguições. Mandou um enviado aos vales, convidando o povo a

16
quem não lograra conquistar a enviar representantes a uma conferência de
paz.
Doze de seus homens mais sábios viajaram para Turim, onde falaram
com o duque. Ele lhes fez muitas perguntas curiosas acerca de suas crenças
religiosas, e eles lhe explicaram sua fé, mostrando como simplesmente
procuravam seguir a Bíblia.
O duque pôde ver que lhe haviam sido ditas muitas mentiras acerca dos
valdenses. Exprimiu a esses representantes seu profundo pesar pelas perdas
que haviam sofrido. Ele não sabia em que realmente eles criam. Antes de os
enviados voltarem para os vales, o duque fez solene promessa de que as
perseguições cessariam. Fez ao mesmo tempo um estranho pedido.
- Ser-me-ia possível ver uma dúzia dentre vossas crianças?
Os homens valdenses entre olharam-se surpresos, cogitando por que
quereria o príncipe ver seus filhos. Concordaram, então, em mandar buscá-las.
Algumas semanas depois, doze mães acompanhavam os filhinhos à presença
do príncipe. Ele olhou atentamente às crianças, e pareceu surpreendido do que
viu. Mais perplexos ficaram os valdenses.
- Que é que surpreende Vossa Excelência? Indagaram.
- Essas crianças parecem ser inteiramente normais. Sabem o que me
disseram?
- Não, senhor. Não temos nenhuma idéia.
- Os padres me disseram que os filhinhos dos valdenses nasciam com
um olho só no meio da testa, e que também tinham quatro filas de dentes
pretos.
Os enviados sorriram, apontando as suas crianças sadias e alegres. O
príncipe pôde ver que os padres lhe haviam mentido.
Com a promessa de seu príncipe de que não seriam mais perturbados
por causa de religião, os valdenses regressaram aos vales. Por cinqüenta anos
não foi feita mais nenhuma tentativa de destruir os valdenses.

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5. NOVA LUZ NA EUROPA

Terminara a guerra. Dos lugares de refúgio entre as montanhas, das


cavernas ou espessas florestas, volveram os valdenses a seus torrões natais.
Tinham muito a fazer reconstruindo as moradas destruídas pelo fogo,
plantando novas árvores e semeando searas que substituíssem as que haviam
sido destroçadas. Muitas famílias nunca mais seriam as mesmas. Pais e
irmãos haviam sido mortos em batalha. Mães haviam sido derribadas enquanto
fugiam de seus lares. Muitas crianças haviam sido raptadas, para nunca mais
serem vistas, colocadas em escolas católicas entre as cidades da planície.
Contristados olhavam os valdenses suas igrejas arruinadas. Dificilmente
havia alguma escapado à tocha do invasor. A despeito de todas as suas
tribulações sentiam-se os valdenses cheios de reconhecimento por sobreviver
sua pequenina nação quando parecia que seria totalmente destruída. Sob as
sombras dos picos altaneiros, sob a cúpula azul do firmamento, os pastores
podiam outra vez realizar reuniões em massa. O povo entoou hinos e fez
orações de ações de graças a Deus por havê-los poupado.
Acerca de uma questão, entretanto, os valdenses tinham opiniões
divididas. Deviam eles reconstruir suas igrejas arruinadas? Os pastores e
membros mais idosos da comunidade, pensavam que sim; os mais jovens,
porém, não julgavam isso prudente.
"Assim que reconstruirmos nossas igrejas", diziam, "o povo as verá e
ficará zangado, e lançará outra guerra contra nós. Melhor nos seria ter culto em
nossas casas e efetuar reuniões gerais nas florestas, onde nossos inimigos
não nos verão. Então nos deixarão em paz." Relutantemente, concordaram os
mais velhos com esse plano.
Agora que a guerra terminara, os valdenses permaneceram a salvo
enquanto se mantivessem em seus vales. Com essa paz e segurança,
entretanto, veio outro problema. Agora, que não mais tinham que lutar por sua
religião, muitos perderam de vista a fé. Não se reuniam regularmente para os
serviços religiosos, e em alguns vales não se reuniam absolutamente. Mesmo
seu antigo zelo quanto a levar o evangelho a outras partes da Europa,
desapareceu. Se bem que alguns ainda viajassem para outros países,
evitavam fazer qualquer coisa que suscitasse a ira das autoridades

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eclesiásticas. Haviam sofrido terrivelmente e não desejavam despertar
novamente a ira dos inimigos.
Alguns valdenses foram ainda mais longe no procurar esconder sua
religião. Sabendo que não poderiam viajar em segurança corno conhecidos
valdenses, iam aos padres, e pediam um papel que dizia que eram bons
católicos, e não deviam ser molestados. Os padres cooperavam com a
condição de que freqüentassem a igreja católica romana, e seus filhos fossem
batizados nessa fé. Muitos valdenses, julgando assegurar a paz para si e os
seus, fizeram o que os padres exigiram. Afinal, raciocinaram, os padres não
precisavam saber nunca o que eles ensinavam aos filhos em casa.
Ao verem os mais idosos, homens e mulheres, que a fé e o zelo de seu
povo estavam enfraquecendo, entristeceram-se muito. Fizeram o que lhes foi
possível para animar cada um a erguer-se pela defesa da fé que haviam
recebido de seus pais, a fé pela qual tantos, tantos haviam dado a vida. Não
mais, todavia, decoravam as crianças longas passagens da Bíblia, e tornou-se
cada vez mais difícil encontrar jovens dispostos a aceitar a árdua e muitas
vezes perigosa vida de pastor.
Então, valdenses que haviam estado a viajar por terras estrangeiras
voltaram aos vales natais com novas estranhas e excitantes. Na Alemanha, na
Suíça e na França haviam eles encontrado cristãos que não mais iam à missa,
que não obedeciam ao papa, nem lhe freqüentavam a igreja. Esse povo
possuía a Bíblia, e acreditava que pela fé em Jesus é que se salvariam.
Oravam a Deus e recusavam confessar os pecados a qualquer padre. Não se
curvavam diante de imagens, nem faziam longas peregrinações.
Essas notícias emocionaram os habitantes dos vales. Cada um fazia
perguntas. Onde haviam esses cristãos achado uma religião tão semelhante à
deles?
Naturalmente, se bem que esses viajantes não o compreendessem,
haviam testemunhado começos da grande Reforma iniciada por Martinho
Lutero, Melâncton, Zwínglio e outros. As semelhanças entre as crenças dos
protestantes, como esse povo veio a ser chamado, e as dos valdenses,
surpreenderam o povo dos vales. As notícias dos valdenses surpreenderam
também os protestantes. Alguns dos dirigentes protestantes visitaram os vales
valdenses para estudar e comparar as duas crenças religiosas.

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Quando chegaram os ministros protestantes, sentiram-se ao mesmo
tempo satisfeitos e entristecidos. Falando com os pastores valdenses,
verificaram, para alegria sua, que esse povo rejeitava os ensinos da igreja
papal, e que ensinava as mesmas idéias bíblicas dos protestantes.
Entristeceram-se, porém, por haver-se enfraquecido a fé religiosa do povo das
montanhas. Insistiram em que fossem reedificadas as igrejas em ruínas.
Aconselharam os valdenses a deixarem de assistir aos serviços religiosos
romanos, mesmo que fosse por amor da paz.
Os valdenses, envergonhados de que esses novos seguidores de sua fé
tivessem de repreendê-los, puseram-se prontamente a reedificar suas igrejas.
Deixaram de assistir aos serviços católicos e de permitir que seus filhos fossem
batizados pelos padres.
"Convoquemos um concílio de todos os cristãos que crêem na Bíblia e
se recusam a obedecer ao papa", insistiram alguns pastores. Mensageiros
partiram para a Suíça, a Alemanha, a França e a Itália, convidando os
protestantes daquelas terras a mandarem delegados.
Em outubro de 1532, reuniu-se a assembléia em Chamforans, colônia no
vale de Angrogna, centro do território valdense. Por seis dias continuaram as
reuniões, e ao encerrarem-se, os dirigentes haviam redigido uma declaração
de que os valdenses e os protestantes partilhavam as mesmas verdades.
"Que podemos fazer por nossos irmãos na Suíça e na França?"
perguntaram os valdenses. "Que podemos nós dar que se demonstre para eles
do maior valor?" Depois de muita discussão, resolveram traduzir e imprimir a
Bíblia na língua francesa. Os valdenses, nenhum dos quais era rico,
arrecadaram 1.500 coroas de ouro. Pediram a um homem por nome Olivetan
que fizesse a tradução da obra. Seu primo, o famoso erudito protestante João
Calvino, ajudou-o nesse trabalho. Em 1535 foi impressa a Bíblia em francês.
Ela se demonstrou grande bênção aos protestantes de língua francesa em toda
parte. Assim pagou a velha igreja dos Alpes seu débito para com os
protestantes que tanto haviam feito para ajudar a reacender a fé religiosa no
coração dos vales valdenses.
Durante os vinte e oito anos seguintes, caiu sobre os valdenses, terrível
perseguição. Em 1537, padres persuadiram o duque de Sabóia, que dominava
na planície do Piemonte e naquelas partes dos Alpes em que viviam os
valdenses, que devia, para salvar sua alma, destruir os hereges. O duque
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consentiu. Ordenou a um nobre por nome Barsour, que organizasse em
exército, vencendo então e destruindo todos os valdenses que se recusassem
voltar à igreja católica.
Barsour apressou-se a obedecer as suas ordens. Com quinhentos
cavalarianos e soldados, avançou ele ousadamente pelos vales a dentro,
dirigindo o ataque principalmente no vale de Angrogna. Os valdenses, porém,
fizeram-no recuar para fora do país. Furioso, ele atacou valdenses que haviam
vivido pacificamente nas planícies em torno de Turim, e lançou centenas deles
na prisão.
Muitos foram queimados nos meses que se seguiram, entre eles,
Catalan Girard. Mesmo enquanto estava atado à estaca, com a lenha
amontoada, em torno de si, ele só pensava nos circunstantes que não
conheciam a Cristo.
"Tragam-me duas pedras", pediu ele pouco antes de ser tempo de atear
fogo a seus pés. Alguém trouxe duas pedras. Segurando uma em cada mão,
ergueu-as alto e começou a atritá-las uma contra a outra.
- Pensais que podeis extinguir nossas igrejas por vossas perseguições.
Ser-vos-á tão possível fazer isso quanto a mim, com minhas débeis mãos,
esmagar estas pedras. Então, quando as chamas já lhe saltavam ao redor, ele
cantou hinos enquanto pôde.
Os valdenses lá nos vales ouviram contar esses martírios. Queria isso
dizer, perguntavam temerosos, que as perseguições do passado, que os não
haviam perturbado por muitos anos, haviam voltado a afligi-los agora? Muitas
pessoas contavam histórias que lhes haviam sido narradas por seus pais dos
terríveis tempos de outrora. Recordavam o que sofrera a igreja quando
Cataneo e seus grupos de bandidos lhes haviam devastado os vales.
Tornariam eles a ver novamente aqueles horrorosos dias? Começaram a orar e
a buscar a Deus, rogando que, em Sua misericórdia, salvasse Seu povo.
Deus lhes ouviu as súplicas, mas talvez não pela maneira que eles
haviam esperado. O rei da França desejava invadir a Itália. Para isso fazer,
precisava conduzir seu exército pelos Alpes. O melhor caminho o levaria
através dos desfiladeiros em poder dos valdenses. Assim, mandou ao duque a
solicitação de passar pelos vales dos valdenses.
O duque de Sabóia, não querendo ver os franceses na Itália, recusou
esse pedido. Lembrou-se então de que aqueles desfiladeiros estavam nas
21
mãos dos valdenses, o povo que ele estava perseguindo e buscando destruir.
Imediatamente, resolveu fazer a paz com seus fiéis súditos para que não
abrissem eles aquelas passagens e deixassem os franceses atravessá-las.
Mandou ordem a Barsour que cessasse os ataques contra eles. Pôs mesmo
em liberdade os que ainda se achavam na prisão, e eles voltaram para casa
em regozijo.
O rei de França, porém, penetrou na Itália por outro caminho, A guerra
prosseguiu por vários anos. Ao voltar afinal a paz, os vales tornaram-se parte
do domínio da França. Durante os três séculos que se seguiram, aqueles vales
passaram de um lado para outro entre a França e o Piemonte por várias vezes.
Se bem que cessassem por cerca de vinte anos os ataques diretos nos
vales, continuou ainda a perseguição aos valdenses fora dos vales. Um de
seus mais doutos pastores, Martin Conon, foi à cidade de Genebra a falar com
João Calvino. De volta, passou pelo Dauphiné, onde as autoridades o
prenderam, acusando-o de ser espia. Ele provou que isso não era verdade.
Entretanto, entre seus papéis, os captores encontraram demonstração de que
ele era alguma coisa muito pior aos seus olhos — herege. Condenaram-no
imediatamente à morte. Haveriam querido queimá-lo no poste, mas temeram
grandemente o efeito de suas últimas palavras nos espectadores. De maneira
que, na calada da noite, tiraram-no da prisão, levando-o ao rio Isere, onde o
afogaram.
Os que foram aprisionados e mortos incluíam um homem que causou
grande impressão em seus captores. Bartolomeu Heitor, humilde vendedor de
livros, caiu em mãos de um padre, que o arrastou a Turim, e ali o acusou de
vender livros heréticos.
- Foste preso no ato de vender livros que contem heresias, disse juiz.
Que tens a dizer?
- Se a Bíblia é heresia para o senhor, é verdade para mim.
- Mas empregas a Bíblia para fazer os homens deixarem de ir à missa.
- Se a Bíblia faz com que os homens deixem de ir à missa, é prova de
que Deus não a aprova, e de que a missa é idolatria.
O juiz não pôde suportar essa espécie de conversa. Adiantando-se e
apontando com o dedo o prisioneiro, gritou: - Retrate-se!
- Tenho falado apenas a verdade, respondeu o valoroso colportor. Posso
ou mudar a verdade como o faria com uma roupa?
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Por vários meses conservaram os juízes Bartolomeu na prisão,
esperando que se viesse a retratar. Os juízes temiam que queimar valdenses,
só tornaria o povo mais disposto a aceitar a fé dos hereges, e assim hesitavam
em queimá-lo em público. Finalmente, porém, levaram Bartolomeu perante
grande multidão, e queimaram-no na estaca.
Em 1559, os vales voltaram à posse do duque de Sabóia. Por esse
tempo, o rei de França e o duque assinaram um tratado, do qual um dos
termos exigia que o duque destruísse todos os hereges. Uma tempestade mais
negra e mais terrível do que qualquer outra que eles houvessem sofrido até
então, irrompeu sobre a cabeça dos valdenses.

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6. AMEAÇA DA SABÓIA

Um dia, dia funesto, mandou o duque de Sabóia mensageiros galopando


em seus cavalos a toda cidadezinha e vila de seu território, incluindo os vales
valdenses. Estes tremeram à sua chegada, pois já rumores corriam com
respeito a sérias tribulações que se aproximavam. Nos cartazes de praças de
cidades e vilas, colocaram os mensageiros proclamações assinadas pelo
duque. Rostos ansiosos e corações trementes, reuniu-se o povo para ler a
mensagem do duque. Em geral, escolhiam um homem para ler em voz alta a
proclamação. Após a leitura, o povo se olhava um ao outro, abismado. Poderia
ser isso possível? Haveriam ouvido direito? O leitor repetiu, palavra por
palavra.
Qualquer pessoa, em qualquer lugar do território do duque de Sabóia,
que fosse ouvir pregadores protestantes, seria multado a primeira vez, dizia a
notícia. Se apanhado pela segunda vez, seria enviado às galés, para ali passar
o resto de sua vida como escravo.
Os valdenses mal dormiram aquela noite. Tampouco trabalharam muito
nos dias que se seguiram. Não podiam compreender como seu governador
pudesse publicar edito tão cruel. Parecera sempre homem tão bom, e sua
esposa era protestante.
Não sabiam, entretanto, que haviam chegado à corte do duque,
mensageiros do papa e dos reis de França e de Espanha, os mais poderosos
dominadores da Europa, advertindo Emanuel Phil-berto de que, se ele não
destruísse os hereges de seu reino, enviariam seus exércitos, e fá-lo-iam por
ele. Caso isso acontecesse, ele nunca mais governaria os vales, advertiam.
Na esperança de que pudessem mudar o edito, os valdenses
escolheram dois de seus líderes para entregar um protesto na corte do duque.
Mui humildemente rogaram eles para que seu povo não fosse condenado sem
oportunidade de falar em sua própria defesa. Eles haviam sempre pago seus
impostos fielmente. Não existia crime nos vales das montanhas. Nenhum
criminoso valdense jazia a definhar nas prisões do duque. Nunca haviam eles
molestado seus vizinhos católicos. Advertiram o duque de que, viesse ele a
derramar-lhes o sangue, este clamaria a Deus como o sangue de Abel, e a
maldição de Caim viria sobre sua casa. A duquesa, que simpatizava com os
valdenses, juntou suas lágrimas e súplicas às dos embaixadores. O duque
24
despediu seus visitantes e prometeu reconsiderar a questão. Os éditos ficaram
suspensos até que viesse ordem posterior aos valdenses.
O duque de boa vontade pouparia a vida desses súditos pacíficos e
obedientes. Os chefes católicos da Europa, no entanto, insistiam para que ele
fosse adiante com a tarefa de sua destruição, e ele não ousou recusar. Todavia
esperou ainda por três meses, esperando que algum milagre o habilitasse a
poupá-los. Também os valdenses aguardavam ordem posterior, na esperança
de que o decreto fosse radicalmente mudado. Seus inimigos, porém, não
podiam refrear a ansiedade. Bandos de desordeiros começaram a atacar as
vilas montanhesas, matando o povo e apoderando-se de seus bens. A
princípio, os valdenses não reagiam em combate. Certamente pensavam que
seria melhor o combate aberto do que tal situação.
No esforço de ganhar mais tempo, o duque mandou seu irmão, Filipe de
Sabóia, aos vales, para tentar persuadir o povo a voltar à igreja de Roma.
Homem bondoso, Filipe escutou a um sermão dos "hereges", e achou-o boa
doutrina. Convidou então o povo a escutar alguns padres que ele trouxera
consigo, e eles concordaram. Os padres, porém, não puderam provar pela
Bíblia que os valdenses estavam errados, de modo que não converteram
ninguém. Desanimado, Filipe relatou ao duque sua falta de êxito. Os
embaixadores da Franca e da Espanha e o papa tornaram-se mais exigentes
que nunca.
"Só há um meio de destruir a heresia, e esse é atacar o povo a fogo e espada",
insistiam. "Nunca eles darão ouvidos aos padres." Com relutância lançou o
duque outro edito em que declarava guerra aos valdenses. A fim de abreviar a
campanha, mandou por toda parte da Itália uma ordem convidando todos os
homens a unirem-se a seu exército e ajudar a vencer os valdenses. Bandidos,
desordeiros, ladrões e criminosos de toda espécie juntaram-se aos soldados
regulares no prepararem-se para invadir a terra dos valdenses.
O papa oferecia grandes recompensas a todos quantos se unissem a essa
cruzada. Como havia feito o papa Inocêncio 11 na cruzada contra os
albigenses, o papa agora prometia que se alguém morresse combatendo os
hereges, seus pecados seriam perdoados, e ele teria certa a salvação. Os
soldados sabiam também que, sendo bem-sucedidos no combate, poderiam
saquear as cidades e vilas dos valdenses, apoderar-se de tudo quanto eles
quisessem.
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O conde La Trinita, homem cruel e sanguinário, tomou o comando do primeiro
grupo, de 4.000 homens, e avançou afoitamente para as montanhas.
Tendo às portas o inimigo, os valdenses humilharam-se, jejuaram e oraram.
Participaram juntos da Santa Ceia. Mandaram depois seus velhos, homens e
mulheres, suas esposas e as crianças para os vales mais interiores, enquanto
eles se preparavam para deter o exército dos inimigos. Se bem que toda
população dos vales por esse tempo atingisse apenas a dezoito mil pessoas,
contava apenas cerca de mil e quinhentos combatentes.
O exército piemontês penetrou na extremidade inferior do vale de Angrogna, e
estendeu-se em ordem de batalha. Pequeno grupo de valdenses permaneceu
em seu terreno e combateu varonilmente para impedir que o inimigo avançasse
mais pelo vale. Lutaram toda a tarde, mas os valdenses não podiam fazer
recuar o exército muito maior. Muito poucos dos homens possuíam espadas. A
maioria deles lutava com arco e flechas, ao passo que alguns tinham apenas
fundas.
Quando o Sol se pôs, nenhum dos lados obtivera nenhuma vitória, mas os
valdenses haviam sido empurrados para trás vale acima. Lançando de lado
suas armas, os soldados de ambos os lados acenderam fogueiras e
prepararam sua refeição.
Subitamente, um brado de regozijo dos piemonteses interrompeu a calma
vespertina. No cimo de um monte próximo haviam eles visto as silhuetas dos
valdenses desenhadas contra o firmamento, ajoelhados com os braços
estendidos para o céu, e rogando o auxílio de Deus. Outro som ainda
interrompeu o riso dos soldados. De algum lugar, nas trevas, ouviram eles o
firme bater de um tambor. Este parecia vir mais e mais próximo.
— Isto é outro exército que vem de auxílio dos valdenses! — exclamou um
capitão. A idéia de serem atacados por número superior de forças,
principalmente na escuridão, encheu os soldados de terror. Foram possuídos
de pânico. Centenas de homens voltaram-se e fugiram do campo de batalha,
atirando fora suas armas enquanto corriam. Perderam todo o terreno que
haviam conquistado durante o dia, e não se detiveram enquanto não se
acharam a vários quilômetros vale abaixo. Alguns valdenses, entretanto,
rolaram pedras sobre os soldados que fugiam. Na manha seguinte, os
valdenses recolheram as armas dos invasores, tão precipitadamente lançadas

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fora. O conde La Trinita perdera sessenta e sete homens, ao passo que
apenas três dos valdenses haviam tombado.
Os valdenses, tão assustados pelo ruído do tambor como seus inimigos,
estavam ansiosos de saber quem o havia tocado. Uma investigação revelou
que uma criança encontrara um velho tambor e começara a tocá-lo só para
divertir-se. Por essa maneira tão simples respondera o Senhor as orações de
Seus desamparados seguidores.
Em grande ira com o que ocorrera, La Trinita conduziu seu exército às
expostas cidades valdenses fora dos vales das montanhas. Ali os soldados
queimaram e pilharam sem misericórdia. Mataram apenas poucos, entretanto,
pois a maioria do povo já se retirara para o fundo entre as montanhas. Três
vezes mais La Trinita tentou entrar no vale de Angrogna com seu exército, e
três vezes os valdenses os repeliram com grande prejuízo.
Finalmente, La Trinita compreendeu que teria dificuldade em vencer esses rijos
montanheses. Talvez fosse mais fácil subjugá-los por outra maneira. Sabia que
os valdenses eram inteiramente verdadeiros, e sem dúvida esperariam que os
outros homens fossem semelhantes a eles. Mandou então mensageiros sob
uma bandeira de trégua ao acampamento dos valdenses, levando a mensagem
de que desejavam a paz. Sempre felizes de cessar a luta, alguns dos
montanheses entraram no acampamento do conde.
Ele primeiro os lisonjeou, dizendo quão bravos eram eles, e que bons soldados
tinham sido. Disse depois que evidentemente o papa fora mal informado a seu
respeito, pois ao que parecia não eram hereges. Caso desejassem a paz,
precisavam fazer apenas algumas coisas.
— Quais são as suas exigências? — perguntaram os cautelosos enviados
valdenses.
— Apenas permitir que alguns padres entrem em seus vales c em suas igrejas,
e (ligam missa aí.
Os valdenses pensaram que isso seria possível. Afinal, eles poderiam purificar
outra vez suas igrejas depois da partida dos padres. Consideraram o assunto
com seu povo. Os pastores insistiram com eles em que não fizessem nenhuma
concessão, mas o povo, ansioso de paz, concordou. Padres viajavam pelos
vales, mas os exércitos não se retiravam.
— Que mais precisamos nós fazer? — indagaram os ansiosos valdenses.

27
— Os senhores devem depor suas armas, e deixar-me estabelecer guarnições
em suas vilas para ajudar a manter a paz. Ao mesmo tempo, devem mandar
delegados ao duque e pedir-lhes Lermos de paz.
Os valdenses discutiram isso. Novamente os pastores insistiram contra, mas
uma vez ainda o povo resolveu confiar na palavra do conde. Os soldados
deste, entretanto, continuavam a saquear e matar os valdenses. Pela terceira
vez, seus enviados entraram no campo do conde.
— Que mais precisamos fazer?
— Precisam mandar embora cada um de seus pastores. É minha última
exigência. Se assim fizerem, então a guerra terminará.
Com grande tristeza, mandaram os valdenses embora seus pastores. Profunda
era a neve nas gargantas das montanhas e embaixo em Pragelas, vila
protestante francesa.
La Trinita tinha agora o povo inteiramente na mão. Com a saída dos pastores,
o espírito deles parecia de todo quebrantado. Soldados papais ocuparam os
vales, queimando, saqueando e matando o povo. Os soldados caçavam o povo
pelas florestas, matando-os a tiros como a animais selvagens.
Seguiram um ancião a grande distância montanha acima. Um soldado
piemontês compeliu-o gradualmente para trás, à beira de um penhasco.
Julgando fruir o vê-lo cair, avançou para o homem a fim de precipitá-lo de cima
para baixo. Nesse soldado, porém, o valdense viu um inimigo de seu povo.
Agarrando o atacante pelos joelhos, atirou-se da aba levando consigo o
soldado a morte a muitos metros abaixo.
A destruição continuava. O exército enxotava o gado, as ovelhas, as cabras.
Despedaçavam os moinhos com que o povo moía seu trigo. Derribavam as
árvores frutíferas, e entulhavam os poços com pedras. Evidentemente, o conde
intentava matá-los de fome. Efetuou muito mais pelo engano do que jamais
fizera com seus soldados.
O derradeiro golpe veio quando os deputados voltaram de falar com o duque.
Os valdenses no vale de Angrogna reuniram-se para ouvir a mensagem de seu
príncipe. Antes, porém, de os delegados falarem, o povo conheceu pela tristeza
de seus semblantes, que haviam fracassado.
Com gemidos e soluços, deram ao povo as tremendas notícias. A casa de
Sabóia recusava fazer a paz. Os valdenses tinham sua decisão — ou voltar à
igreja de Roma, ou ser completamente exterminados. O duque começara a
28
arregimentar outro grande exército para terminar a obra que os homens de La
Trinita haviam começado.
O povo assombrado necessitava desesperadamente agora do sábio conselho
de seus pastores. Compreendiam quão grandemente haviam eles sido
enganados por La Trinita.
Ainda que soubessem qual seria a resposta, os delegados perguntaram: —
Vocês estão dispostos a ir à missa e voltar para a igreja de Roma?
Mãos erguidas para o céu, o povo deu a resposta. Suas desafiadoras palavras
ecoaram pelos vales das montanhas: — Não! Não! Nunca!
"Mas dentre os que resistiram ao cerco cada vez mais apertado do poder
papal, os valdenses ocuparam posição preeminente. Durante séculos as
igrejas do Piemonte mantiveram-se independentes; mas afinal chegou o tempo
em que Roma insistiu em submetê-las. Alguns houve, entretanto, que se
recusaram a ceder à autoridade do papa ou do prelado. Estavam decididos a
manter sua fidelidade a Deus, e preservar a pureza e simplicidade de fé. ... e ali
preservaram a liberdade de culto a Deus. ... Sua crença religiosa baseava-se
na Palavra escrita de Deus - o verdadeiro documento religioso do cristianismo."
EGW em O Grande Conflito, pág. 64
Que possamos sempre resistir às duras provas em nossa vida estando ao lado
de Cristo, negando a tudo que nos afaste dEle com um forte "Não! Não!
Nunca!". Amém!

29
7. A RESPOSTA DOS ALPES

Antes de muitos dias, os valdenses até nas mais remotas vilas ouviram a
tremenda escolha que lhes era oferecida pelo duque de Sabóia. Enquanto os
sinos soavam o alarme, homens e mulheres largavam seu trabalho, reuniam-se
nas praças das vilas para discutir o assunto. Solenemente, apresentaram os
homens mais idosos a questão ao povo.
- Estais vós dispostos a entregar vossas igrejas aos padres, a aceitar-
lhes os ensinos, a renunciar à fé que recebemos de nossos pais?
- Impossível! bradou o povo. Todavia, caso não se rendessem, que
futuro se lhes antolhava, a eles e a seus filhos? O duque declarara
positivamente que exterminaria os valdenses e daria seus vales a outro povo,
caso eles não se rendessem.
Naquela hora de desespero, o povo pensou naturalmente com anseio
em seus amados pastores. Aqueles bons homens, porém, viviam agora em
Pragelas, do outro lado dos altaneiros e nevados Alpes. Alguém sugeriu que
eles fossem convidados a voltar.
- Achais que eles virão? Perguntaram os mais novos. Pensai quão mal
os tratamos. Recusamos dar-lhes ouvidos quando nos advertiam contra aceitar
os termos de La Trinita.
- Certamente eles voltarão, asseguravam os mais idosos. Eles dariam a
vida por nós, se necessário fosse.
- Mandemos então buscá-los imediatamente. Se tivermos de morrer,
pereçamos todos juntos. Eles trarão consigo a benção de Deus. Quem sabe se
Deus não operará em nosso favor e nos livrará como fez a nossos pais?
Assim, mensageiros atravessaram os Alpes. Os pastores não hesitaram
em atender ao chamado de seu povo. De volta pelas montanhas seguiram eles
os mensageiros e mais uma vez tomaram o cuidado das vilas.
- Esta é vossa oportunidade de mostrar ao mundo que sois homens
verdadeiros, exortaram. Lembrai-vos, servimos o poderoso Deus do Céu, que
ajudará Seu povo agora com a mesma boa vontade com que ajudou aos
israelitas outrora pelo Mar Vermelho.
Não mais falou o povo de render-se. Os pastores convocaram uma
grande reunião geral. Uma vez que todo o povo não se podia ajuntar em uma

30
casa de reunião, uniram-se na floresta. Ali protestaram lutar unidos por seus
lares e sua fé.
Purificaram primeiro suas igrejas usadas por meses pelos padres que La
Trinita espalhara pelos vales. Destruíram toda imagem, pintura e vela. Então os
pastores entraram e pregaram a Palavra de Deus ao povo.
Passavam os dias da semana a preparar-se para a grande luta que lhes
estava adiante. Todo o dia e muitas vezes até altas horas da noite, o povo
trabalhava ainda. Toda casa se tornou uma fábrica em que faziam mosquetes,
balas, espadas, lanças, e mesmo arcos e flechas. Fizeram barricadas ao longo
dos trilhos das montanhas, as quais deteriam qualquer exército que procurasse
entrar nos vales.
Um grupo de valdenses desceu ao vale para purificar o templo de Vilaro.
Encontraram, de caminho o primeiro bando dos soldados e La Trinita,
marchando vale a dentro para receber a rendição dos hereges. Seguiu-se uma
luta breve e intensa, e os valdenses derrotaram os soldados, que fugiram para
Vilaro. Os valdenses seguiram-nos e sitiaram-nos. Em vão enviou La Trinita
três bandos de soldados para libertarem seus homens. No décimo dia de
cerco, os soldados renderam-se. Os valdenses pouparam-lhes a vida e
escoltaram-nos até La Torre.
La Trinita ficou furioso quando soube da perda de Vilaro, e decidiu lançar
uma vigorosa campanha. Primeiramente, porém, tentou sua velha astúcia,
mandando emissários com oferta de paz aos valdenses, caso eles
satisfizessem certas condições. O povo, todavia, não se deixaria enganar uma
segunda vez, e os mensageiros voltaram para contar que os valdenses
estavam preparados para lugar.
Os valdenses sentiam-se agora prontos para o ataque que aguardavam
a qualquer hora. Colocaram espias nos cimos da montanha para observar os
movimentos do inimigo. Organizaram “esquadrões volantes”, grupos de
homens prontos a precipitar-se para qualquer ponto atacado no momento em
que tivessem notícia. Com cada um desses grupos iam dois pastores cuidariam
também dos feridos, orariam pelos moribundos, e estimulariam os valdenses a
serem misericordiosos no dia da vitória.
Sabendo que nunca poderiam esperar defender todos os seus vales, a
maior parte da nação reuniu-se uma vez mais no vale de Angrogna. Com eles,

31
foram suas mulheres e filhos, gado, cabras, ovelhas, toda a comida que lhes foi
possível carregar.
Sabendo que, se pudesse conquistar esse vale, o resto da luta seria
fácil, La Trinita resolveu fazer aí seu primeiro ataque. Por um dia inteiro
batalhou seu exército próximo à entrada daquela grande fortaleza, buscando
derrotar os defensores do desfiladeiro. Ao por do Sol, reconheceu o conde que
seus soldados não haviam feito nenhum progresso, se bem que muitos
houvessem sido mortos. Na manhã seguinte, fez retirar as tropas, e discutiu
com os capitães o que deviam fazer.
Duas semanas mais tarde, ele estava para fazer novo ataque. Desta
vez, o exército entraria no vale de três direções. Um dos corpos de soldados
marcharia pela garganta do Rio Angrogna. O conde esperava que todos os
valdenses precipitar-se-iam para combater aquele grupo. Entrementes, outra
tropa atravessaria as montanhas e entraria no vale do lado de leste, enquanto
um terceiro grupo ainda, desceria do lado do norte. Caso um ataque falhasse,
estava ele certo, um dos outros havia de ter êxito.
Na manhã do ataque, espias valdenses viram primeiro o grupo que
marchava pela estreita garganta acima, e deu o alarme. Seis jovens valdenses
correram ao ponto ameaçado, e esperaram. Assim que os soldados de La
Trinita apontaram, as espingardas dos valdenses dispararam com tão quente
fogo em cima da subdivisão do regimento, que os invasores detiveram-se
confusos. Na estreita garganta não podiam andar mais de dois soldados ao
lado um do outro. Enquanto os soldados de La Trinita caíam diante das
espingardas dos seis valdenses, foi-se amontoando um muro de homens
mortos. O pânico apoderou-se então dos que ainda se encontravam no
desfiladeiro, e ficaram impossibilitados de avançar. Incapazes ficaram eles na
apertada trilha, ouvindo os estampidos dos mosquetes das paredes da
passagem. Não podendo suportar por mais tempo a terrível tensão, sacudiram
de sis as armas e, com gritos de terror fugiram de volta pelo caminho por que
tinham vindo.
De repente, soou outro alarme. Um dos espias viu outro contigente que
marchava montanha acima pela garganta para entrar em Angrogna do lado de
leste. Um segundo grupo de valdenses precipitou-se encostas acima, atacou
os invasores, e forçou-os à fuga, montanha abaixo.

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Entrementes, o terceiro grupo galga ainda outro desfiladeiro de
montanha, tentando penetrar o vale do lado do norte. Mais uma vez se fez
ouvir o alarme dos espias, mas a essa altura os valdenses já tinham poucos
soldados disponíveis para mandar contra a nova ameaça. Sabendo que os
invasores precisariam de passar por estreito desfiladeiro antes de penetrar no
vale, eles se espalharam em emboscadas ao redor da boca da passagem.
Fatigados e sem fôlego devido à longa ascensão e íngreme descida, surgiram
do desfiladeiro os invasores. Perante eles, jazia o belo vale. Lançando-se para
a frente, exclamaram uns para os outros:
- Apressemo-nos! Apressemo-nos, Angrogna é nossa!
Então, saltando de sua emboscada de todos os lados dos assustados
invasores, os valdenses caíram-lhes em cima como um redemoinho. Sabendo
que os valdenses tinham menos soldados que eles, os piemontês lutaram
desesperadamente, e a batalha prosseguiu furiosa. De súbito, porém, os
valdenses, que haviam sido vitoriosos em outros pontos do vale vieram
apressadamente em auxílio de seus irmãos. Derrotaram os soldados de La
Trinita, matando muitos e dando caça aos restantes na subida ao monte que
havia pouco tinham atravessado.
O conde, furioso de que todos os três contingentes de seus ataques
houvessem sido derrotados, zomba de seus homens.
- Que há com vocês? Perguntou. Aqueles valdenses não são soldados,
são simples lavradores que não sabem lutar!
- Se aqueles homens não sabem lutar, nesse caso tampouco nós!
Responderam os homens.
Mais uma vez La Trinita retirou seu exército para as planícies do
Piemonte. Resolveu esperar reforços antes de tentar novamente. Não teve
muito que esperar. O rei de Espanha mandou um regimento; o mesmo fez o de
França. De repente, ele tinha sete mil homens. Pondo em movimento seu
exército, partiu novamente para as montanhas, determinado a apagar a
desonra de suas derrotas anteriores.
Dirigiu pela terceira vez o principal ataque contra o vale de Angrogna.
Um domingo de manhã, toda a comunidade valdense reuniu-se para adorar em
vasta encosta relvosa. O vale ecoava aos sons dos hinos entoados pelo povo.
Outra vez os pastores liam-lhes as promessas de Deus. Mais uma vez eles
prometeram nunca renegar sua fé.
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Súbito, um jovem espia correu sem fôlego para o ajuntamento dos fiéis,
indicando as montanhas circunvizinhas. Olhando para o alto, viram os
valdenses os soldados de La Trinita penetrando no vale de três direções ao
mesmo tempo.
Alguns valdenses apressaram-se em direção do lugar em que a escura
garganta do Angrogna abria-se para o vale, e aí detiveram um grupo dos
invasores e fizeram-nos voltar atrás. Fortes barricadas, os valdenses lutavam
para empurrá-los para trás. A batalha prosseguiu por horas, e ao fim do dia os
soldados compreenderam que sua tentativa de penetrar no vale fracassara
mais uma vez.
Haviam morrido na batalha alguns dos mais bravos capitães de La
Trinita. O próprio conde, presente ao combate, segundo dizem, sentou-se e
chorou ao ver amontoados, os corpos de seus soldados mortos. Nunca mais
zombou ele de seus homens por não haverem derrotado os simples
montanheses. Quietamente, fez La Trinita a retirada de seu exército, voltando à
planície.
Desanimado, desejava o conde não haver nunca empreendido
conquistar os hereges. Resolveu, porém, fazer um derradeiro esforço para
restaurar sua reputação perdida. Por sugestão sua, o duque de Sabóia solicitou
que os valdenses enviassem deputados a Turim para discutir termos de paz
com seu príncipe.
Por esse mesmo tempo, La Trinita reuniu todos os seus soldados e
conduziu-os em marcha noturna mais uma vez para Del Tor, esperando
surpreender os valdenses. Com seus deputados discutindo termos de paz em
Turim, não seria provável que estivessem suspeitando ataques. Dando uma
palavra de animação a cada um de seus capitães. La Trinita enviou seu
exército uma vez mais pela estreita garganta de mais de três quilômetros que
conduzia ao vale que ele por meses tentara capturar.
Haviam terminado os serviços religiosos matinais, e os valdenses iam-se
espalhando para seus vários deveres, quando um grito de advertência soou
nos ares.
- O desfiladeiro! O desfiladeiro! Soldados vêm subindo pelo desfiladeiro!
Sem tempo para reunir todo o contingente valdense, um punhado de
bravos montanheses pegou seus mosquetes e correu ao ponto de maior
perigo. Quando os primeiros dois inimigos foram entrando no vale, saídos da
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boca da garganta, os valdenses atiraram, derrubando-os. Os dois seguintes
tombaram do mesmo modo, em cima dos seus companheiros. Depois, mais
dois. Calmamente, os valdenses continuaram atirando e carregando outra vez
seus mosquetes. Mais e mais alto se foram empilhando os mortos, até que os
soldados no desfiladeiro não podiam avançar.
Como nos anos anteriores, alguns valdenses treparam pelas encostas
da montanha sobranceiras à estreita passagem. Não tardou, grandes pedras
vieram rolando em cima dos soldados piemonteses, esmagando dúzias deles
onde se encontravam. Não é de surpreender que mais uma vez se apoderasse
dos restantes terrível pânico. Tentaram fugir, mas era demasiado estreito o
trilho. Dezenas e dezenas de soldados foram empurrados pela borda do
penhasco para a morte nas rochas que ladeavam a corrente.
La Trinita e seus oficiais acampavam a uns três quilômetros de distancia.
Quando seus soldados haviam partido na noite anterior, ele fizeram votos para
que antes de o dia terminar, eles tornassem rubras as águas do rio com o
sangue dos valdenses. Por volta de metade da manhã, chegou a ele um de
seus homens em grande excitação.
- O Angrogna está se tingindo de vermelho! Bradou.
- É o sangue dos hereges, explicou o jubiloso general. Pra Del Tor caiu,
e o sangue dos hereges corre pelo rio!
Não tardou muito, porém, alguns soldados que haviam escapado da
garganta entraram cambaleando no acampamento piemontês, levando a
notícia da destruição de outro exército. Uma vez ainda La Trinita aprendeu que
seus esforços para entrar no vale de Angrogna haviam fracassado. O sangue
no rio era o de seus próprios soldados. Naquele mesmo dia reuniu os restantes
de seus homens, e partiu. Nunca mais voltou.
As conversas de paz continuaram, e no fim o duque de Sabóia deu por
terminada a guerra. Não mais insistiu para que o povo que ele não lograra
vender voltasse para a igreja de Roma. Devolveu-lhes todas as suas terras.
Quase um século se passou antes que fosse feito outro grande esforço
para destruí-los. Volvamos agora a duzentos anos atrás, e vejamos o que
haviam estado a fazer os valdenses em outra parte da Itália.

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8. EXTINGUIU-SE UMA LUZ

As janelas da hospedaria eram lavadas pelos fortes borrifos da chuva. O vento


soprava em rajadas, sacudindo as cortinas. Acidentalmente desceu um jato
extra pela chaminé, espalhando fumo pela sala, e disseminando cinzas pelo
soalho. Ao pé do fogo estavam sentados dois jovens chegados dos vales
valdenses. Haviam vindo a negócio à cidade de Turim, capital do Piemonte. No
dia seguinte, deviam voltar ao lar, nas montanhas.
- Gostaria de poder encontrar trabalho aqui em Turim — disse um deles
pensativo.
- Como, você perdeu o amor pelas montanhas?
- Oh, não! Jamais o poderia fazer. Mas a vida ali se torna de ano para
ano mais difícil. O sítio de meu pai é pequeno, e tenho quatro irmãos. Que
faremos com a terra? Como podemos casar-nos e viver em nossa vila quando
as propriedades já estão demasiado pequenas para sustentar-nos?
O outro jovem acenou solenemente.
- Você tem razão. Também eu tenho pensado no problema. Mas você
não se atreveria a trabalhar aqui em Turim. Bem depressa os padres
descobririam que você não estaria assistindo à missa, e seus dias não seriam
muitos.
Um estranho que acabara de jantar deteve-se à mesa, não distante do
fogo. Estivera escutando a conversa dos dois rapazes. Ergueu-se então, deu
alguns passos, aproximando-se deles.
- Desculpem-me a interrupção — disse ele no tom melodioso dos
italianos do sul da península. — Se os senhores confiarem em mim, poderei
levá-los a um lugar em que há abundância de boa terra para plantação. Não
temos suficientes habitantes para cultivá-la, entretanto, de modo que os
senhores seriam ali bem-vindos.
- Onde fica essa maravilhosa terra? — perguntou um dos jovens,
admirado.
- É no sul da Itália, e chama-se Calábria. Eu próprio moro ali, e posso
assegurar-lhes que os nobres ali acolheriam bem cidadãos honestos, diligentes
como os senhores.

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- O único problema seria quanto a nossa religião — observou
gravemente um dos rapazes —. O senhor vê, não pertencemos à igreja
romana.
O estranho sorriu. — São hereges? Bem, não posso dizer que sou muito
fiel católico, por minha parte. Entretanto, penso que esse problema poderia ser
resolvido. O rei de Nápoles governa com muita tolerância a Calábria. Uma vez
que os senhores paguem seus impostos fielmente, não teriam nada a temer.
Poderiam mesmo eleger seus próprios juízes. Que acham disso?
- Não nos achamos em situação de dar-lhe uma resposta imediata.
Precisamos voltar à casa, expor esse plano a nossos pastores e anciãos, e ver
o que eles pensam a respeito. Estará o senhor visitando Turim por algum
tempo de maneira que possamos voltar a discutir posteriormente este assunto?
- Espero estar aqui ainda por uns três meses, e o dono desta hospedaria
poderá sempre dizer-lhes onde me podem encontrar.
Passando a um dos moços um pedaço de papel em que escrevera seu
nome, o estranho inclinou-se e voltou a sentar-se a sua mesa.
Alguns dias mais tarde os moços regressaram a seus vales, nos Alpes.
Falaram entusiasticamente com os mais idosos acerca da sugestão do
estranho. Cinqüenta anos antes, tal idéia seria imediatamente rejeitada; as
condições, porém, haviam mudado grandemente durante a década anterior. A
terrível perseguição dos albigenses na França trouxera em resultado milhares
de refugiados a transpor os Alpes, situando-se entre os valdenses. Se bem que
eles cultivassem cuidadosamente cada pedacinho de terra boa nos vales,
todavia ainda a fome lhes entrava por vezes em casa, em particular durante os
longos e frios invernos. Mais de uma vez as famílias tinham de volver-se para
as castanhas, de que havia abundância ao longo das correntes, para sua
alimentação hibernal.
- Por que não enviar dois de nossos melhores homens a espiar a terra
como fizeram os israelitas outrora antes de entrarem em Canaã? — sugeriu um
dos pastores. — Eles podem voltar e dizer-nos se a terra é fértil; podem
descobrir também o melhor caminho de chegar ali. Caso a terra se demonstre
fértil e o governo tolerante, isso poderia ser grande bênção para nós. Além
disso, naquela terra distante pode haver gente a quem possamos levar o
evangelho.

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O povo escolheu portanto dois bons cidadãos que viajaram através da
Itália em direção à Calábria, a ver que tais eram ali as condições. Voltaram com
animadoras novas.
- Toda sorte de frutos cobrem as belas colinas, disseram. Nas planícies,
há vinhas e castanhais. Nos terrenos elevados achamos nozes e muitos tipos
de árvores úteis. A relva cresce espessa, e nossos animais haviam de ficar
viçosos. Conversamos com alguns do povo que ali vive agora, e disseram-nos
que raramente vêem neve no inverno. É positivamente um país muito rico, e
com poucos habitantes.
Antes de muito tempo um grande grupo de emigrantes partiu dos vales
que por gerações haviam sido seu torrão natal. Levaram consigo uma versão
da Bíblia em sua própria língua. Foram precisas várias semanas para fazer a
longa viagem. Sua mobília ia empilhada em carros rústicos, puxados por
animais de carga. O gado, as ovelhas e cabras, seguiam a comitiva.
Depois de chegar ao novo país, dois dos dirigentes foram a Nápoles
para falar com o rei Fernando, que elaborou um convênio, garantindo aos
estranhos certa porção de terras. Ali poderiam eles viver em liberdade,
governarem-se a si mesmos e adorar a Deus conforme quisessem.
Não tardou que a região mudasse de aspecto. Tornou-se uma das mais
prósperas, frutíferas seções dos domínios do rei. Este, e o marquês de
Spinello, ficavam cheios de regozijo ao verem o país prosperar, e viam quão
ricos ficavam os valdenses. A maneira pronta por que os valdenses pagavam
todos os impostos, era-lhes particularmente agradável.
A. fim de evitar dificuldades com a todo-poderosa igreja de Roma, os
valdenses consentiram mesmo em pagar os dízimos que os padres exigiam.
Durante o meio século que se seguiu, vários grupos seguiram os pioneiros que
ali se foram estabelecer, na cálida e fértil terra sulina.
Para que a fé religiosa dos valdenses da Calábria não viesse a
enfraquecer, iam regularmente pastores dos Alpes pregar nas igrejas,
permanecendo cada um ali por dois ou três anos. Voltava então um, e outro lhe
ia ocupar o lugar. O papa em Roma sabia dessas colônias de hereges, mas o
povo vivia pacificamente, sossegado, e pagando com fidelidade seus dízimos.
O rei de Nápoles e os nobres, achavam proveitoso permitir que os valdenses
se estabelecessem em colônia em seu país. Passaram-se mais algumas
décadas tranqüilas.
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Veio então o tempo da Reforma protestante. A Alemanha, partes da
Suíça, toda a Dinamarca, Suécia e Noruega, romperam com a igreja romana, e
recusaram-se a dar-lhe qualquer dinheiro mais, ou obedecer aos mandamentos
papais. Ao chegarem as notícias nas colônias na Calábria, o povo regozijou-se.
Mal podiam crer que o povo agora pudesse pregar livremente o verdadeiro
evangelho de Jesus em muitas partes da Europa.
O espírito missionário começou a agitar novamente o coração dos
valdenses na Calábria. Ficaram convencidos de que tinham um dever de
ensinar o povo que vivia nas cidades e vilas vizinhas o que dizia respeito ao
amor de Jesus, e que orar aos santos e confessar os pecados aos padres não
era necessário. Começaram também a duvidar de seu costume de pagar
dízimos à igreja papal. Escreveram à igreja-mãe nos Alpes, pedindo que lhes
fossem enviados alguns pastores missionários.
Os pastores dos vales cogitaram quem deveriam mandar. Lembraram-se
então de um italiano que passara por seus vales dois anos antes, a caminho
para estudar na escola de Calvino em Genebra. Enviaram-lhe uma mensagem
convidando-o a ir como pastor missionário para as colônias na Calábria. O
jovem, Jean Pascale, não era cego aos perigos que haveria de enfrentar. Bem
sabia que todo esforço para disseminar os ensinos protestantes na Itália
suscitaria a ira da igreja estatal.
- Por que havia de ser você o escolhido para ir? — perguntou sua bela
noiva, Camila Guerina.
- E meu país — respondeu Pascale com tristeza — sei a língua, e
aquele povo é meu povo.
Jean decidiu aceitar o convite, e preparou-se para partir. Ao chegar o
triste dia de sua partida, Camila caminhou a seu lado pela estrada. Finalmente,
tinham de separar-se. Passando-lhe os braços em torno do pescoço, ela
exclamou dolorosamente: "Ai! tão perto de Roma, e tão longe de mim!" Ali, de
pé, acompanhou com os olhos seu amado até que ele lhe foi oculto numa
curva do caminho. Cheia de pesar, regressou à casa, para nunca mais o ver.
Chegando à Calábria, Jean se pôs imediatamente a pregar. Entrava com
ousadia nas cidades e vilas próximas e, Bíblia na mão, ensinava ao povo,
advertindo-os contra os falsos ensinos de Roma. Os padres ficaram
enraivecidos. Um grupo deles foi ter com o marquês de Spinello, exigindo que
os hereges fossem castigados. Com muita relutância, o marquês mandou que
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todos os valdenses em sua região, aparecessem perante ele juntamente com
os pastores.
Quando Pascale com seu rebanho compareceu perante o nobre, o
marquês falou-lhes asperamente, prendeu o pastor, e despediu seus
seguidores exigindo que se conformassem com os ensinos da igreja católica
romana. Fez com que Pascale fosse levado para Nápoles e amarrado com
cordas cruéis, tão apertadas, que lhe cortavam a carne, dos braços e das
pernas. Então seus captores lançaram-no em uma prisão escura e imunda.
Enquanto ele estava na prisão, um de seus irmãos, católico, foi visitá-lo
na prisão. Seu encontro foi na verdade triste. Bartolomeu apelou para Jean
retratar de seus erros, e entrar para a igreja de Roma. Ofereceu metade de sua
fortuna, caso Jean renunciasse a sua fé; rogou, porém, em vão. Pascale estava
preparado para morrer por sua fé, mas nunca a ela renunciaria.
Da prisão, escreveu Jean a sua noiva, indicando que provavelmente não
se encontrariam mais na Terra, mas exortando-a a ser fiel ao evangelho,
lembrando-lhe que se haviam de reunir no Céu. Pouco depois disto foi Pascale
levado para Roma, onde foi atirado numa prisão ainda pior do que aquela em
que estivera em Nápoles.
Havendo afastado o pastor, o marquês e o inquisidor que lhe fora
enviado de Roma para extirpar a heresia, pensaram que pouca dificuldade
haveria com os valdenses. Primeiro, o inquisidor chamou o povo de San Sexto
a uma reunião, e disse-lhes que deviam assistir à missa, ou serem destruídos.
Deu-lhes prazo até ao dia seguinte para decidir.
Silenciosamente, durante as horas de escuridão noturna, o grupo
escapou, indo buscar refúgio na floresta. O inquisidor foi à próxima cidade. Ali
fez fechar as portas da cidade de maneira que ninguém pudesse sair para as
florestas. Chamou então o povo, e disse-lhes que o povo de San Sexto todo
havia concordado em assistir à missa. Recomendou-lhes que se submetessem
igualmente à igreja.
Crendo no que ouviram, o povo consentiu em assistir à missa. Então as
portas da cidade foram abertas, e souberam que haviam sido enganados.
Deplorando sua fraqueza, decidiram unir-se a seus amigos de San Sexto nas
florestas, mas seu marquês, com promessas de reforma, persuadiu-os afinal a
permanecer.

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O inquisidor mandou dois contingentes de homens armados contra o
povo de San Sexto. Os soldados seguiram a pista do povo às cavernas em que
estavam, e mataram-nos. As muitas pedras roladas de cima sobre os soldados
pelos valdenses, desanimaram-nos de galgar muito longe atrás dos hereges. O
inquisidor chamou em seguida mais soldados, e um contingente maior reuniu-
se em torno dos valdenses, agora firmemente entrincheirados numa fortaleza.
Como os valdenses tivessem pouco mantimento, resolveram procurar
fazer paz com os inimigos. Sob uma bandeira de trégua, um de seus líderes foi
ao acampamento do exército papal.
- Se nos deixarem ir em paz — disse ele aos soldados —
atravessaremos a Itália em direção a nosso antigo torrão natal, ao norte, e
nunca mais os perturbaremos. Mas os soldados não mostraram nenhum
interesse.
- Isso não — disseram-lhes. Ou se entregam e renunciam a fé, ou serão
destruídos.
O mensageiro voltou com as tristes novas. — Não podemos fazer coisa
alguma senão defender-nos até morrer. Não podemos e não havemos de
renunciar a nossa fé.
Outra vez avançaram os soldados, apenas para serem enfrentados por
mais pesada chuva de pedras do que a anterior. As pedras mataram alguns, e
feriram muitos outros.
Então o vice-rei do exército publicou um edito, prometendo perdoar a
todos os bandidos, foragidos e criminosos que se quisessem unir em outro
esforço para reduzir os valdenses em suas fortalezas. Em resposta a esse
convite, grande número de homens se reuniram. Eles conheciam veredas
secretas através das montanhas, e serviram-se desse conhecimento para
aproximar-se do forte por todos os lados. Trepando por grandes rochas,
arremeteram contra as barricadas, e esmagaram os bravos defensores, que
foram todos mortos na luta. Homens, mulheres e crianças morreram juntos. Os
soldados se apoderaram então dos antigos lares dos valdenses e todos os
seus bens. Valdenses de outras cidades da Calábria foram reunidos em
prisões, e mortos.
Com a destruição dos valdenses, foi-se a prosperidade da Calábria. Os
bandidos e salteadores sabiam lutar e matar, mas não sabiam lavrar a terra ou

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cuidar de animais. Gradualmente, desapareceram as colónias dos valdenses
na Calábria.
O derradeiro ato da tragédia teve lugar em Roma. Por uma brilhante
manhã primaveril, todos os sinos se puseram a tocar a um tempo na cidade
imperial. A grande ponte que conduz ao pátio do castelo de Sto. Angelo foi
descida, e os cidadãos da cidade se aglomeraram aos milhares sobre ela.
Dentro em pouco o povo apinhou-se no pátio. De um lado, achava-se sentado
o papa Pio IV, rodeado pelo brilhante aparato de cardeais, bispos e padres. No
centro do pátio erguia-se um tablado com um poste de ferro, uma cadeia e um
monte de lenha.
Depois de encher-se o pátio, abriu-se vagarosamente a porta de ferro de
uma prisão subterrânea. Os espectadores ouviram o tilintar das cadeias,
enquanto um jovem tendo impressos na face sofrida os vestígios do sofrimento,
arrastou-se pelo recinto em direção ao tablado.
- Herege! Herege! Filho do diabo! — foram os gritos que ecoaram de
todos os lados. Uma tempestade de assobios saudou o jovem prisioneiro
enquanto ele ia arrastando as cadeias até o estrado, subindo então os degraus
com dificuldade, lentamente. Ao chegar à plataforma, voltpu-se e enfrentou o
povo. Ao erguer as mãos cobertas de cadeias, foi grande o silêncio que caiu
sobre a multidão. — Boa gente — disse Pascale, o prisioneiro — vim aqui
morrer, hoje por confessar minha crença em meu divino Mestre e Salvador,
Jesus Cristo. De boa vontade dou minha vida por Ele, que deu a Sua por mim.
O moço voltou-se então e encarou o papa. Com um gesto em direção ao
pontífice, acusou-o de ser o assassino do povo de Deus, o inimigo do
evangelho de Cristo, citou-o então, a ele e a todos os seus cardeais a
comparecerem um dia perante o tribunal de Deus, onde seriam sentenciados
por seus crimes contra aqueles que amavam a Jesus.
O papa e seus cardeais, sentindo-se desconfortáveis por seu ataque,
acenaram ao executor para apressar a morte. Ele prendeu Pascale ao poste,
pôs fogo à lenha.e observou as chamas a consumi-lo. Suas cinzas foram
reunidas e lançadas no rio Tibre, que as levou ao Mar Mediterrâneo.

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9. TEMPESTADE E PRAGAS

Enquanto Pascale e seus seguidores sofriam na Calábria, os valdenses


lá nos vales alpinos haviam estado a lutar contra o conde La Trinita e seu
exército. Não foi senão a 5 de julho de 1561, nove meses depois da execução
de Pascale em Roma, que o duque de Sabóia assinou um tratado de paz com
os valdenses. Então, o povo que se abrigara em Pra dei Tor por tantos meses,
partiu em pequenos grupos para seus vales natais.
Muitas famílias tiveram uma dolorosa chegada ao lar. Os soldados
piemonteses haviam-lhes queimado as casas, destroçado sítios e arruinado os
pomares. Haviam derribado as vinhas e enchido de sujeira os poços. A perda,
porém, de muitos de seus rapazes mais promissores na guerra causava aos
valdenses a dor maior. Muitos anos se passaram antes que desaparecessem
as cicatrizes daquela guerra, e aos vales volvesse a prosperidade.
A falta de víveres tornava-se o mais urgente problema do povo. Passara
já o tempo de semear, ao terminar a luta no meio do verão. Ao chegar o
outono, era lamentavelmente pouco o que tinham a colher. Por essa época,
também, chegaram alguns dispersos vindos das desoladas colónias da
Calábria, e contaram tristemente o extermínio de seu povo. Os valdenses
deram-lhes as boas-vindas, mas isso importava em mais bocas para alimentar
durante aquele primeiro inverno, longo e doloroso, que seguiu à guerra.
As nações protestantes haviam observado a luta dos valdenses com
interesse e ansiedade. Ao chegarem a seus líderes as notícias dos celeiros
vazios daqueles pobres irmãos, não perderam tempo em enviar auxílio. O
grande reformador João Calvino, vivo ainda em Genebra, chefiou o movimento
de angariar provisões e roupas para os necessitados protestantes dali. Muitos
dos príncipes alemães, igualmente, fizeram coletas. Sem essa oportuna ajuda,
os valdenses haveriam perecido de fome durante aquele inverno.
Mais aflições, porém, sobrevieram ainda aos povos dos vales alpinos. Ó
duque de Sabóia sentia-se profundamente humilhado por seus exércitos
haverem fracassado em derrotar os agricultores das montanhas. O duque
enviou Castrocaro, que fora coronel sob as ordens de La Trinita, como
governador dos vales. Ele fora uma vez aprisionado pelos valdenses, tratado
bondosamente, sendo depois libertado. Em seu coração, no entanto, ardia um

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sentimento de raiva contra os próprios que tão misericordiosos haviam sido
para com ele.
Antes de Castrocaro assumir seus novos deveres, recebeu instruções de
duas pessoas. Primeiro, da bondosa duquesa, que era também protestante, e
rogou-lhe que protegesse seu povo lá nas montanhas. O segundo visitante, o
arcebispo de Turim, instigou-o a fazer tudo ao seu alcance para converter os
hereges ao catolicismo. O governador deu-lhe sua palavra de que faria tudo
quanto lhe fosse possível.
Assim que o novo governador chegou a La Torre, que escolhera para
sua capital, começou a causar perturbações aos súditos. Primeiramente,
ordenou que mandassem embora muitos de seus melhores pastores. Em
seguida, enviou ao duque uma falsa informação, dizendo que os valdenses
estavam se preparando para rebelar-se e renovar a guerra. O duque enviou ao
governador um regimento a mais para habilitá-lo a manter a paz nas
montanhas. O governador construiu então reforçados fortes para guardar as
entradas dos vales.
Aos cansados valdenses essas coisas pareciam às vezes mais duras de
suportar do que a guerra franca. Enviaram mensageiros ao duque, em Turim,
indicando os maus tratos a eles infligidos, e suplicando fim a suas aflições. O
governador, porém, envenenara por tal forma o espírito do duque, que lhes
falou asperamente, acusando-os de se prepararem para romper a paz, e
mandou-os de volta sem nenhuma esperança de mudança.Is-to fez o
governador mais ousado do que nunca. Mandou notícias de que em breve os
valdenses teriam de decidir se voltariam à velha igreja, ou aceitariam a morte.
Em suas aflições, o povo pensou mais uma vez em seus poderosos
amigos da Alemanha. Mandaram apelos, rogando aos príncipes que
interviessem e procurassem persuadir o duque a tratá-los com justiça. A triste
história tocou o coração de Frederico, eleitor do Palatinado, que se
compadeceu de seus irmãos das montanhas. Escreveu vigorosa carta
lembrando ao duque que Deus ouve o clamor dos oprimidos. "Cuide vossa
alteza de não guerrear voluntariamente contra Deus", escreveu ele, "e não
perseguir a Cristo em Seus membros. Considere vossa alteza que a religião
cristã foi estabelecida por persuasão e não por violência."
Não sabemos se o duque respondeu à carta do eleitor. Mudou, porém,
seus métodos. O governador parou com suas ameaças e atormentacões.
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Morrendo o duque, foi sucedido por seu filho. Sua mãe recomendou-lhe com
insistência que investigasse o que estivera fazendo o governador. Ao ser feito
isso e descoberta a maldade do homem, o duque mandou soldados para
prendê-lo. Então, Cas-trocaro reuniu um bando de homens maus e fugiu em
busca de refúgio numa fortaleza. Por algum tempo, defendeu-se bem, mas
finalmente teve de render-se. Foi escoltado por soldados a Turim, onde foi
sentenciado a prisão, para passar ali os últimos anos de sua vida.
Pelos cinquenta anos restantes, os valdenses viveram livres de guerra.
O ano de 1629, entretanto, trouxe calamidades que quase os destruíram.
Primeiro, uma tromba de água entre algumas das mais altas montanhas,
ocasionou enchentes de rios e inundações que arrebataram casas, gado,
ovelhas e gente. Em setembro soprou nos vales um vento gelado,
desarraigando os bosques de castanheiros, cujos frutos haviam servido tanto
aos valdenses em tempos de fome. Uma segunda tromba de água que
arruinou por completo a colheita das uvas, seguiu-se quase imediatamente.
Os pastores valdenses reuniram-se para uma sessão de jejum e oração.
Ao considerarem eles então os seus problemas, mal sabiam que uma
tempestade muito pior que qualquer das calamidades anteriores irromperia em
breve em seus vales.
Um exército francês sob o comando do Marechal Schonberg, penetrou
nos vales naquele verão, ocupando-os por várias semanas. Infelizmente,
muitos dos soldados de Schonberg haviam vindo de regiões francesas
infestadas por praga. Não demorou que essa terrível doença atacasse o povo
das montanhas. Durante os meses quentes de julho e agosto, caíram eles
como o grão sob a foice. Quatro dos pastores morreram em julho, e sete em
agosto. Restaram apenas três pastores; um em Lucerna, um em San Martin, e
um em Perosa. Esses três pastores encontraram-se no vale de An-grogna para
estudar a maneira de prover direção espiritual a seu povo flagelado.
Resolveram pedir à igreja protestante da Suíça em Genebra que lhes enviasse
homens de Deus que substituíssem os pastores que haviam tombado.
Naquele inverno a praga diminuiu, mas na primavera seguinte voltou
mais violentamente do que nunca. Um dos três pastores restantes também
caiu. Famílias inteiras jaziam de cama e morriam juntos. Segundo o cálculo dos
relatórios, de metade a dois terços da população total do vale caiu pela praga.
Não sobreviveram trabalhadores suficientes para fazer a ceifa do trigo. As uvas
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apodreceram nas videiras. Cidades e vilas outrora cenários de laborio-sidade,
jaziam agora silenciosas. Um pastor perdeu quatro de seus filhos. Entrando e
saindo nos lares dos doentes e moribundos, esse homem de Deus, Pierre
Giles, viveu durante a praga para cuidar de seu povo afligido.
A igreja protestante da Suíça atendeu ao apelo dos valdenses, e
mandou uma porção de pastores. Acharam que não se deveria permitir que a
luz do evangelho bruxuleasse e se extinguisse nos vales. Os novos pastores
falavam apenas francês, e dirigiam todos os serviços nessa língua. Logo os
valdenses começaram a compreendê-la, pois seu próprio idioma era uma
mistura de francês e italiano. Não mais chamavam seus pastores de barbas,
mas ministros. Amavam os ministros suíços por suas maneiras suaves e atos
de bondade.
O século de paz aproximava-se do fim. Pudessem os valdenses penetrar
no futuro, e contemplariam nuvens ainda mais negras a se condensarem. O
trono de Sabóia era ocupado por Carlos Emanuel II, jovem inexperiente. No
trono da Franca estava Luiz XIV, o mais poderoso monarca do século. Esses
dois governantes levariam os valdenses à beira da destruição.

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10. MOEDAS DE OURO PARA O MARQUÊS

Nem todos os valdenses moravam nos vales entre as montanhas.


Alguns viviam em vilas no sopé de colinas dos Alpes, e à margem de correntes
que fluíam dos vales. Também católicos ali moravam. Numa dessas vilas
residia uma meninazinha valdense chamada Maria. Esta, tinha uma
companheirinha católica, cuja casa ela freqüentava, e cujos pais a tratavam
bem.
Os pais de Maria não se importavam que ela visitasse um lar católico,
porque achavam que ía compreendia a Bíblia muito bem para suas crenças
religiosas serem abaladas.
Certo dia, a mãe da menina católica levou Maria à grande igreja católica
na vila, e mostrou-lhe as belas pinturas e imagens, velas e o altar coberto de
panos dourados. Maria nunca vira coisa semelhante, e pensou que tudo aquilo
era muito bonito. Depois disso, com frequência, a mãe católica perguntava a
Maria se ela não gostaria de tornar-se católica também. Mas a meninazinha
valdense apenas abanava a cabeça negativamente. A senhora resolveu mudar
de método.
- A não ser que você prometa tornar-se católica um dia, não posso
permitir que você venha brincar com minha filha — disse ela a Maria uma
ocasião. — O padre vai ficar muito zangado se descobrir que minha menina
brinca com uma herege. Venha, prometa-me apenas que um dia você vai se
tornar católica.
Maria assustou-se, mas desejava continuar a brincar com sua
amiguinha. De modo que respondeu: — Minha mãe e meu pai não gostariam
que eu fizesse isso.
- Eles nunca o vão saber de minha boca, e você também não deve dizer
uma palavra a esse respeito. Vamos, simplesmente diga que um dia você se
tornará católica.
Maria olhou ao rosto sorridente da mulher. Então, devagar, acenou que
sim.
- Muito bem. Quando você tiver mais idade, farei com que o padre venha
e lhe ensine todas as coisas que você precisa saber. Agora, corra e vá brincar.
Maria procurou não mostrar a preocupação que a perturbava, quando
voltou para casa. Nem por todo o mundo ela queria que seus pais soubessem
47
o que ela prometera a sua vizinha católica. Continuaram as visitas diárias, mas
de algum modo, muito da alegria que nelas sentia desaparecera. Então um dia,
para terror seu, ela encontrou ali o padre, esperando para batizá-Ia com um
pouco de água benta que trouxera.
- Não, não, não ainda! Não posso batizar-me hoje. Espere mais!
- Você sabe o que acontecerá se você morrer antes de eu batizá-la na
igreja verdadeira? — perguntou o padre.
Tremendo, Maria não pôde senão sacudir a cabeça.
- Você vai direto para o inferno e queimará ali para sempre, e nunca
mais sairá dali. Pense nisso. Quando eu vier a próxima vez, você precisa estar
pronta para o batismo.
Desta vez, Maria ficou realmente atemorizada. Sua mãe viu logo que
alguma coisa perturbara a filha. Por algum tempo, Maria recusou-se a
responder às muitas perguntas de sua mãe. Depois de um pouco, ela rompeu
em pranto, e contou tudo a respeito de suas conversas com a senhora católica
e com o padre. Grandemente alarmada, a mãe contou ao marido tudo quanto
acontecera. Ambos sabiam que por muitos anos os piemonteses haviam
roubado crianças valdenses, levando-as para conventos de frades e de freiras
na planície, para serem criadas como católicos.
Temendo que sua filha fosse arrebatada para longe, o pai de Maria
primeiro proibiu-a de visitar a casa de sua amiguinha. Arranjou ao mesmo
tempo que ela fosse levada à noite para ficar com uma parenta em uma vila
distante, onde ficou por vários meses.
No outono, depois da colheita das uvas, o povo da vila onde estava
Maria fez uma festa. Os pais da menina foram para a ocasião, e a visitar a fi-
Ihinha. Como se sentiram felizes ao ver a pequena bem e feliz! Passaram um
dia muito agradável, até que, de repente, viram um bando de cerca de trinta
homens a cavalo, galopando rapidamente em direção a eles. Chegando os
soldados ao círculo daquela vila, apearam-se. Um deles precipitou-se para a
frente, tomou Maria nos braços, e foi-se correndo antes que o povo aterrado
pudesse fazer qualquer coisa para detê-los. Os soldados galoparam então vale
abaixo, desaparecendo no crepúsculo da noite.
No decorrer das semanas e meses que se seguiram, os contristados
pais buscaram por todos os modos possíveis descobrir para onde fora Maria
levada. Nenhum dos juizes falava no assunto com os pais. Quando os meses
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se foram arrastando em anos, os pais de Maria desistiram da esperança de
tornar a vê-la ou de ouvir notícias a seu respeito.
Sete anos mais tarde, o pai ouviu que Maria, agora uma mocinha,
encontrava-se num convento em Novara, onde se tornara freira. Só depois de
ela haver feito todos os votos, consentiram as freiras que Maria escrevesse
uma carta a sua mãe. Lendo-a, os tristes pais compreenderam que alguém lhe
ditara o que devia escrever. E sabiam que jamais haviam de conhecer toda a
história. Ficaram no entanto aliviados por saber que sua filha vivia.
A mãe de Maria, compreendia, entretanto, que jamais tornaria a ver sua
filha. Em consequência de sua contínua tristeza, a saúde alterou-se, e contraiu
tuberculose. Então, ao tempo em que Maria deveria ter vinte anos, a abadessa
escreveu que a menina morrera de febre. Coração quebrantado, a mãe morreu
pouco depois. Anos mais tarde, soube-se que seus raptores lhe haviam dado a
es; colher ao chegar ela aos dezoito anos. Ou casar com um nobre católico
com grande fortuna, ou tornar-se freira. Como ela não quisesse casar, fora
forçada a fazer-se freira.
O que aconteceu a Maria, sucedeu também a centenas de outras
crianças valdenses. Os pais, esmagados de desgosto, rastrearam muitas vezes
seus filhos até lares católicos em Turim e outras cidades próximas. Ao rogarem
que lhes devolvessem seus filhos, recebiam sempre a mesma resposta; " — Se
os senhores se tornarem católicos e forem batizados na igreja verdadeira,
então lhes devolveremos seus filhos.
Com tristeza volviam os destituídos pais pelo mesmo caminho ao
desolado lar sem os filhos ou as filhas. Não há nenhum registro de qualquer
val-dense renunciar à fé a fim de reaver filho ou filha. Em 1622, o papa
Gregório XV estabeleceu uma nova sociedade na igreja católica — a
Sociedade para a Propagação da Fé. Seu desígnio era extirpar a heresia, fosse
por trazer os hereges para a igreja católica, fosse exterminando-os. Dentro de
poucos anos a sociedade estendera-se na Espanha, na França e na Itália.
Em toda cidade e vila católica na Europa, o povo coletava dinheiro para
essa sociedade. Os padres empregavam o dinheiro para comprar os que se
achassem em dificuldades. Quando sabiam de um negociante protestante que
ia à falência, ofereciam-lhe grande soma de dinheiro, caso se batizas-se na
igreja romana. Caso um desafortunado viajante protestante fosse aprisionado e

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metido em uma prisão, o padre ia visitá-lo, oferecendo-lhe liberdade e mais
uma importância em dinheiro, se ele se batizasse na igreja católica.
Pelo ano de 1650, fora estabelecido um ramo dessa sociedade em
Turim, capital do reino de Sa-bóia. Seus membros determinaram que os
valden-ses que morassem pelas proximidades, ou teriam de aceitar a fé
católica ou ser destruídos.
A marquesa de Pianeza tornou-se um dos principais sustentáculos
dessa sociedade em Turim. Ela não tivera um comportamento correto em sua
mocidade, e a consciência a perturbava. O padre disse-lhe que se ela quisesse
devotar seu tempo e fortuna à grande tarefa de converter os hereges, todos os
seus pecados lhe seriam perdoados. Assim, ela deu muito de seu dinheiro à
Sociedade para a Propagação da Fé e Extermínio dos Hereges.
Para começar a obra de ganhar os valdenses, a marquesa mandou um
grupo de monges capuchinhos pregar aos hereges dos vales. A princípio esses
homens julgaram que haviam de converter facilmente os valdenses, e
desafiaram ousadamente os pastores a discussões públicas. Os ministros,
porém, conheciam a Bíblia, e podiam com facilidade provar que os monges
estavam em erro. Embaraçados, eles voltaram a Turim, e relataram à
marquesa de Pianeza que não haviam feito nenhum converso. Culpavam de
sua derrota os pastores valdenses.
A marquesa convocou os membros de seu concílio para ver que novo
plano poderiam fazer para extirpar a heresia de Sabóia.
- Poderemos persuadir o duque de que é seu sagrado dever destruir
esse ninho de hereges? — perguntou um padre zangado.
- Não — respondeu a senhora. — Eu sei que ele está resolvido a não
romper a paz de seu reino atacando os valdenses.
- Se tão-somente os hereges fizessem alguma coisa irrefletida que
suscitasse a ira do duque!
- Creio que seria necessário esperar longo tempo por tal coisa. Eles
vivem muito pacificamente.
Depois de discutir o assunto por longo tempo, um dos monges pensou
afinal em um plano que, acharam, iria funcionar. No dia seguinte, o monge
encontrou dois homens que concordaram em entrar nos vales e procurar atrair
os valdenses em algum gesto precipitado.

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Esses homens disfarçaram-se em viajantes valdenses. Uma vez no vale,
assistiram à reunião de um concílio geral. Disseram ao povo que o duque
planejava levantar um exército para destruí-los. O convento de capuchinhos,
disseram, era um ninho de espias, tramando sua destruição. Então outro
homem, a quem esses estranhos haviam subornado, interveio, dizendo que
também ele havia ouvido isso, e sabia que era verdade.
- Vamos assaltar o mosteiro, expulsar os frades e queimar o edifício —
incitou um dos espias.
Assim podemos mostrar ao duque que não dormimos, e não podemos
ser chacinados como ovelhas.
Alguns líderes do grupo concordaram. Naquela mesma noite,
apareceram diante do mosteiro, expulsaram os frades, e puseram fogo no
prédio. Prontamente chegaram ao duque notícias desse feito. Naturalmente,
ele ficou zangado ao saber disso, mas a marquesa e seu concílio, jubilaram.
Finalmente, haveria guerra. O duque convocou um exército de seis mil homens
para marchar contra Vilaro e liquidar com todos os protestantes.
Novas a esse respeito chegaram a Leger, o mais sábio e melhor dos
pastores valdenses. Foi imediatamente a Vilaro, onde juntou positivas provas
de que os homens que haviam tramado esse ato eram pagos pela Sociedade
para a Propagação da Fé. Com essas provas, foi ele a Turim, a fim de expô-las
perante o duque surpreendido, o qual cancelou imediatamente seu plano de
castigar os valdenses. Membros da Sociedade, profundamente zangados por
haver seu plano falhado, decidiram fazer ainda outra tentativa de provocar os
valdenses à violência.
Os protestantes de Vilaro trabalharam duramente, e repararam em breve
o mosteiro danificado pelo fogo. Os frades voltaram e votaram destruir a igreja
protestante dali. Uma vez que a igreja não distava muito do mosteiro, puseram-
se a abrir um túnel que iria dar diretamente embaixo do santuário protestante.
Planejaram arrastar vários barris de pólvora diretamente para debaixo da casa
de reuniões dos valdenses. Então, quando a congregação enchesse o edifício,
poriam fogo aos explosivos, fazendo voar pelos ares o edifício e todos quantos
ali se achassem.
Esse tremendo plano poderia haver tido êxito, não acontecesse que uma
mulher que ia andando pela rua certa manhã, ouvisse um ruído vindo
diretamente de debaixo de seus pés. Ela foi falar com o prefeito da cidade,
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contando o que ouvira. Se bem que não crendo muito em sua história, ele
concordou em investigar. Guiado pela mulher, os dois voltaram na manha
seguinte àquele lugar. Colocaram um tambor no solo diretamente sobre o
ruído, que puderam ouvir distintamente. Colocando uma moeda sobre o
tambor, viram, para surpresa sua, que ela se movia regularmente. Golpes
amortecidos se podiam ouvir através da terra embaixo deles.
Uma investigação nos prédios adjacentes, logo revelou o túnel, e
evitaram assim horroroso desastre. Todavia esse acontecimento encheu os
valdenses de temor, pois viram que seus inimigos não se deteriam diante de
coisa alguma em seus esforços para destruí-los.
Em seguida a marquesa foi ter com o duque Carlos Emanuel II, pedindo
que publicasse um edito banindo os mais importantes pastores valdenses do
país. Como o duque houvesse recebido algumas cartas ameaçadoras do papa,
concordou, e emitiu o decreto. Isto forçou alguns dos pastores a fugirem para a
Suíça, outros para a Holanda, e outros para a Alemanha.
Por volta desse tempo, saíram algumas novas leis para atormentar os
valdenses. As leis fechavam-lhes as igrejas, e ordenavam às cidades
protestantes de Bóbio, Vilaro, Angrogna e Rora a construir casas de missões
para os padres capuchinhos, e fornecer-lhes mantimento. Proibiam qualquer
estrangeiro de chegar aos vales, sob pena de morte. Essa lei impedia que
novos pastores da Suíça substituíssem os que haviam morrido da praga ou
sido banidos.
Não muito depois disso, a marquesa de Piane-za caiu muito doente,
compreendeu que iria logo morrer. Em seu leito de morte, mandou chamar seu
marido, de quem estivera separada por muitos anos. Cogitando o que ela
quereria com ele, o marquês entrou no quarto da doente. Ela saudou-o e logo
explicou sua perturbação.
- Temo grandemente que haja de ser castigada porque não pude
converter os hereges dos vales. Não posso morrer em paz a menos que você
me prometa que levará avante a obra da Sociedade, nunca desistindo
enquanto os valdenses hereges não hajam voltado à verdadeira igreja. Aceita
essa responsabilidade?
O marquês hesitava. Esta não seria exatamen-te a tarefa que ele
escolheria.

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- Tenho depositado grande soma de dinheiro na mão do arcebispo —
continuou ela — e já o instruí a dar a você, quando os vales forem limpos de
hereges. Por favor, prometa que fará isso por mim.
Os olhos do marquês abriram-se muito, surpreendidos. Considerava isso
boas novas, na verdade. Estendeu a mão e confirmou o acordo.
- Será segundo o seu desejo. Hei de cumprir fielmente seus desejos.
Poucas horas depois, a marquesa morria. O marquês decidiu ganhar a
fortuna que o aguardava no palácio do bispo o mais depressa possível. E sabia
de uma única maneira de converter os hereges — matá-los.
Apressando-se, foi ter com o duque, persuadindo-o a publicar um edito
ordenando aos valdenses que habitavam em Lucerna, Fenile, Bubiana, Bi-
querásio, San Giovani e La Torre a deixarem seus antigos lares, e retiraram-se
para os vales centrais de Bóbio, Angrogna e Rora, dentro de vinte dias, ou
serem mortos. Esse edito privava os valdenses de suas terras mais férteis. E
continuava, dizendo que aqueles que renunciassem à fé protestante, não
precisavam retirar-se.
Esse decreto, publicado a 25 de janeiro de 1655, em meados do inverno,
ocasionou aos valdenses grandes sofrimentos. Profunda era a neve nos vales,
enchentes avolumavam os rios e as montanhas achavam-se cobertas de gelo.
Nem uma família, porém, entre os milhares que moravam nos distritos incluídos
no edito concordou em ficar em suas terras e assistir à missa. Em lugar disso,
famílias puseram de parte seus pesados artigos de mobília, ataram suas
escassas provisões de alimentos e roupas em fardos, e com rebanhos de
ovelhas e cabras marcharam penosamente das cidades em que seus
antepassados haviam vivido por séculos. Fugiram para os'valdenses que
residiam em regiões mais favorecidas.
Os valdenses consideraram sua situação. Não tinham suficiente solo nos
três vales que lhes restavam para produzir mantimento para toda a nacão.
Certamente, pensaram, seu príncipe não podia compreender quão impossível
lhes seria viver ali, empilhados uns contra os outros.
Mais uma vez escolheram um grupo de homens mais sábios da nação e
enviaram-nos a Turim para pleitear com o duque. Alguns oficiais ouviram-lhes a
triste história. Muitos anos atrás, salientaram os valdenses, seus pais haviam
assinado tratados com duques anteriores, que lhes davam o direito de viver
nas outras cidades e vales. Acaso pretendia o duque agora violar aqueles
53
tratados? Descreveram as deploráveis condições dos fugitivos, e mostraram a
tragédia que a nação enfrentava caso o duque não lhes concedesse mais terra
em que viver.
Os ouvidos do príncipe, porém, haviam sido envenenados por mentiras.
Ele nem sequer se encontrou com os delegados. Os oficiais, porém,
asseguraram aos valdenses que a questão seria considerada. E eles tiveram
de satisfazer-se com essa promessa.
Então os valdenses foram detidos em Turim até 17 de abril, pois seus
inimigos não queriam que eles voltassem e alarmassem o povo dos vales, a
quem esperavam tomar de surpresa. Naquela mesma noite; à meia-noite, o
marquês de Pianeza saiu secretamente de Turim à testa de um exército de
quinze mil homens. Queria, mais do que nunca, ganhar o ouro que sua mulher
havia deixado com o arcebispo.

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11. DEZOITO HOMENS CONTRA MIL

La Torre, a maior das cidades valdenses, ficava na confluência de três


rios. Um descia do vale de Angrogna, e um do vale de Rora. A corrente maior,
o Pelice, chegava depois de regar o vale de Lucerna. A presença do marquês
de Pianeza e seu exército próximos dessa cidade, pôs os habitantes
desassossegados.
O exército do marquês constituía-se principalmente de soldados
piemonteses, com alguns regimentos emprestados pelo governo francês.
Contava também com dois mil exilados irlandeses a quem Cromwell expulsara
de seu país. Os valdenses tinham apenas três mil homens armados para
enfrentar os quinze mil soldados do marquês.
O marquês de Pianeza descobriu que os homens de La Torre haviam
levantado uma barricada guardando a principal entrada da cidade. Ordenou a
seus homens que a atacassem imediatamente, mas tão fortemente
defenderam-na os valdenses, que depois de várias horas de renhido combate,
ele retirou o ataque. Durante a noite, um grupo de piemonteses moveram-se de
manso para o outro lado da cidade. Pela manha, atacaram os valdenses de
dois lados. Os sobrepujados valdenses escaparam por um caminho não
guardado para as montanhas, com perda de poucos soldados apenas.
As notícias da luta travada correram célere até às mais afastadas vilas
valdenses. Os homens deixaram seus sítios, pegar os mosquetes, as espadas,
ou fundas se não possuíam armas melhores, e apressaram-se aos pontos
ameaçados, prontos a enfrentar o inimigo e proteger suas famílias.
O marquês mandou numerosas patrulhas armadas em várias direções,
tentando capturar os vales. Alguns desses contingentes conseguiram
surpreender os habitantes das vilas. Queimaram-lhes as moradas, mataram
homens e mulheres, e levaram-lhes os filhos para as escolas católicas em
Turim e outras cidades na planície. Na maioria dos casos, porém, os valdenses
conseguiram derrotar seus inimigos, embora por vezes sobrepujados em
número na proporção de dez contra um. Grupos de soldados piemonteses
voltaram a La Torre com a notícia das perdas de quinhentos a seiscentos
homens. Os soldados não lograram forçar a entrada em qualquer dos vales
maiores.

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De Pianeza começou a pensar se ele ganharia um dia a fortuna que sua
mulher lhe deixara. Lera a respeito das fracassadas expedições de Cataneo e
de La Trinita em tempos passados. Talvez sua missão terminasse em derrota
também.
Como La Trinita antes dele, resolveu recorrer aos ardis. Na manhã de
quarta-feira, 21 de abril, com um sonido de trombetas, apareceram arautos do
marquês diante dos surpreendidos valdenses em suas trincheiras. Sendo-lhes
perguntado o que desejavam, declararam que os valdenses deviam enviar
deputados ao quartel-general, para falar com o marquês que não desejava
derramar sangue, mas simplesmente restaurar a paz. O marquês, disseram,
estava preparado para fazer um ajuste que satisfaria a todos. Isto pareceu
gratas novas aos soldados lavradores, de modo que, no dia seguinte, seus
deputados chegaram a La Torre para ver De Pianeza.
Ele recebeu os valdenses com a máxima cortesia, e expressou seus
desgosto pela guerra e o sofrimento que havia causado. O duque de Sabóia,
afirmou, dera-lhe autoridade para fazer a paz, de modo que o povo pudesse
voltar a seus lares sem temor ou perdas posteriores.
- Que devemos nós fazer para restabelecer a paz? Perguntaram os
deputados.
- Só há uma condição. O duque pede-lhes que recebam um regimento
de seu exército em cada um de seus vales principais, para que aí permaneçam
por algum tempo, e ajudem a manter a ordem.
Os deputados curvaram-se e retiraram-se para levar os termos aos
vales. Reuniram um concílio, a que concorreu grande número de pessoas. Os
pastores acharam imprudente permitir que os soldados entrassem nos vales, e
fizeram força para que esta parte do ajuste fosse rejeitada. O povo, porém,
cansado de privações e sofrimentos, queria paz. A maioria sobrepujou com
facilidade os poucos pastores, e mandaram dizer ao marquês que aceitavam
os termos.
Prontamente entraram nos vales de Lucerna e de Angrogna os soldados
piemonteses, estacionando nos lares dos valdenses. Estes, pouco mantimento
tinham agora, pois sofriam os efeitos de sustentarem os fugitivos de outros
vales durante o inverno. Partilharam, entretanto, o que tinham com os
soldados, cederam-lhes seus leitos, e trataram-nos com tanta cortesia quanto

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os soldados permitiam. Mal suspeitava aquele povo simples que os soldados
que abrigavam seriam em breve seus assassinos.
Três dias passaram em paz. De Pianeza colocou soldados nas entradas
e saídas de cada vale para cortar qualquer possibilidade de escape. Então, às
4 da manhã do sábado, 24 de abril de 1655, partiram tiros do castelo de La
Torre. A esse sinal, ergueram-se os soldados, e começaram um massacre
mais cruel que qualquer coisa já registrada de um povo civilizado. Ninguém
saberá jamais quantos morreram naquela primeira hora, mas os gritos do povo
torturado indicava centenas de vítimas. Dentro em pouco, o fumo das casas
enchia os céus. As correntes velozes tingiam-se de sangue. Ao tentarem os
valdenses fugir para as montanhas, os soldados os seguiam e matavam. Esses
soldados inventaram métodos inauditos de tortura e morte para o povo
valdense. Apenas alguns conseguiram escapar pelas montanhas.
Findo o massacre, De Pianeza planejou em seguida destruir Rora,
pequena colônia separada de La Torre por uma cadeia de montanhas. As
novas do massacre não podiam chegar a Rora prontamente em virtude dos
passos da montanha se encontrarem bloqueados pela neve. Sua população
sabia apenas que fora assinado um tratado de paz. De Pianeza escolheu
quinhentos de seus melhores soldados, despachando-os contra Rora.
Ordenou-lhes que destruíssem a vila e todos os seus habitantes, trazendo seus
animais e bens para La Torre.
De Pianeza, porém, ignorava que vivia em Rora Josué Giavanelo,
homem de grande coragem e um dos mais notáveis capitães que já haviam
vivido nos vales. Relanceando o olhar para o alto, enquanto trabalhava certa
manhã, viu Giavanelo uma linha de pontos negros movendo-se pela vereda
que conduzia ao vale. O capitão compreendeu num momento que eram
soldados, e suspeitou de seu objetivo. Largando o arado, apanhou o mosquete
e correu ao encontro do inimigo. A caminho, apanhou mais seis companheiros
que concordaram em ajudá-lo. O pequenino grupo de sete homens apressou-
se para a frente ao longo do trilho na floresta a fim de enfrentar os quinhentos!
Giavanelo colocou seus homens onde podiam ficar de emboscada ao
inimigo enquanto caminhavam através de estreita garganta da montanha. De
ambos os lados erguiam-se gigantescas rochas. Os soldados piemonteses
moviam-se descuidosamente avante, longe de sonharem com perigo da parte
dos habitantes de Rora, vila de não mais de umas trinta famílias.
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Um repentino troar de mosquete sobressaltou os soldados.
Compreenderam que haviam sido descobertos. Sete homens caíram naquele
primeiro disparo. Os outros pararam, olharam em redor, mas não viram
ninguém. Os mosquetes tornaram a falar, e mais soldados caíram. Foram
tomados de pânico, pois não tinham a mínima idéia de quantos atacantes se
poderiam ali encontrar.
- Salvem-se! Estamos perdidos! Gritaram os homens enquanto se
voltaram para fugir pelo trilho por que haviam descido. Giavanelo seguiu-os por
uns seiscentos metros, até certificar-se de que não voltariam por algum tempo.
Naquela mesma tarde alguns dos homens mais idosos de Rora
atravessaram a montanha para La Torre, e queixaram-se ao marquês do
ataque daquela manhã a sua vila. De Pianeza fingiu-se grandemente
surpreendido.
- Vocês fizeram bem em lutar para expulsar aqueles que os atacaram.
Devem ter sido bandidos, pois certamente não foram meus soldados. Voltem a
suas famílias, e não temam. Empenho-lhes minha honra de que nenhum mal
lhes sucederá.
Giavanelo ouviu essas palavras e promessas, mas não se enganou.
Estava certo de que o marquês ordenara o ataque, e de que certamente iria
tentar de novo. Alistou portanto dezoito homens que prometeram lutar com ele.
Doze possuíam mosquete e espadas; os outros seis, só fundas. Depois de
postar espias, o valoroso capitão esperou o ataque.
Efetivamente! Na manhã seguinte um dos espias divisou outro grupo de
soldados penetrando no vale por outra direção. Novamente Giavanelo pôs seus
homens de emboscada e aguardo o inimigo, que marchava
despreocupadamente pela floresta, sem suspeitar perigo. De súbito, foram
assaltados por uma chuva de pedras das fundas dos valdenses. Os soldados
marchavam tão juntos, que nem uma pedra errou o alvo. Os piemonteses
preparavam-se para atirar, quando o estampido dos mosquetes mostrou-lhes
que os inimigos também tinham carabinas. O chuveiro de pedras tornou-se
mais sério, e logo as carabinas renovaram a carga. Como no dia anterior, o
pânico apoderou-se dos soldados. Atirando fora suas armas, fugiram montanha
acima. Os valdenses perseguiram-nos até ao cimo do desfiladeiro, onde
deslocaram grande pedras que mandaram montanha abaixo esmagando,
infligindo mais perdas nos invasores e aumentando-lhes o terror.
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Foram pela segunda vez deputados de Rora entrevistar-se com o
marquês de Pianeza. Desta vez, ele não procurou fingir que os soldados não
eram seus, antes explicou que haviam sido feitos alguns ataques contra o povo
de Rora, e ele mandaram seus soldados a investigar. Mas agora verificara que
as acusações eram falsas, e eles não seriam perturbados outra vez. Deviam
voltar a sua vila, e não se preocupar com um ataque.
Mais do que nunca havia o marquês ficado furioso agora. Sabia que
apenas um punhado de homens defendera Rora, e decidiu capturá-la e destruí-
la. Na manhã seguinte, mil homens saíram de La Torre. As forças estavam
divididas e preparadas para entrar no vale de quatro lados. Seu número era tão
grande, que Giavanelo achou que seria loucura tentar detê-los. Ele e todos os
habitantes da vila retiraram-se para uma fortaleza na encosta da montanha, de
onde poderiam observar e aguardar sua oportunidade de atacar.
Os piemonteses chegaram, regozijando-se por não haverem encontrado
nenhum inimigo no caminho. Penetraram na vila, saquearam-na, e
apoderaram-se de tudo que fosse de valor, mas não encontraram ninguém.
Antes de irem-se embora dali, os soldados atearam fogo a algumas das casas.
Depois, carregados com o despojo, puseram-se a caminho de volta a La Torre.
Giavanelo estivera estivera à espreita do momento favorável. Tinha-o
agora. Primeiro, porém, ajoelhou-se e deu graças a Deus por que duas vezes
dera a vitória a seus homens. Pediu coragem e força de coração ao preparar-
se ele para libertar seu povo dos inimigos mais uma vez.
Seguindo caminhos secretos através das montanhas que tão bem
conhecia, o capitão colocou seus homens em pontos estratégicos acima e na
frente dos piemonteses. Ao chegarem os inimigos, os valdenses atacaram-nos
vigorosamente. Os soldados do marquês, julgando passado todo o perigo
foram apanhados de surpresa. Jogaram fora os despojos que haviam colhido, e
só buscaram fugir às balas, setas e pedras disparadas pelos valdenses.
Apenas alguns chegaram de volta a La Torre para informar o marquês de que
seu terceiro esforço para destruir o povo de Rora terminara ainda uma vez em
desastre.
Num paroxismo de raiva, Pianeza ordenou que todo o seu exército se
preparasse para marchar contra Rora. Quando o capitão Mário, o chefe do
regimento irlandês, gabou-se de que, com seus soldados, ele prontamente

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venceria o pequeno grupo de hereges, Pianeza deu-lhe permissão de
demonstrá-lo.
Avançando ousadamente com seus irlandeses, ele encontrou a mesma
catástrofe dos outros contingentes. Os valdenses atacaram-nos de súbito das
alturas, rolando pedras de grandes dimensões sobre os soldados, muitos dos
quais foram esmagados. O próprio capitão foi empurrado para a beira de um
penhasco, e caiu da altura numa corrente. Seus soldados manobraram para
salvá-lo. Levaram-no malferido de volta a La Torre, onde ele morreu dois dias
depois.
Pianeza ficou mais furioso que nunca. Esperara assegurar riqueza,
honra e glória pela destruição dos hereges dos vales; em lugar disso, esses
lavradores-soldados haviam-lhe derrotado milhares de duas melhores tropas.
Nem um do grupo de Giavanelo lhe caíra nas mãos. Não admira que o duque
de Sabóia se queixasse posteriormente de que a pele de cada valdense lhe
custara quinze de seus melhores soldados.
Pela última vez, Pianeza convocou seu exército na praça de La Torre,
escolheu três grupos de soldados, em número de dez mil, ao todo, e mandou-
os por três caminhos diversos a conquistar a pequenina Rora.
Desta vez Giavanelo não logrou salvar sua avassalada vila. Os
habitantes que os soldados não mataram no local, levaram para lançar em
celas de prisões. Giavanelo e seus soldados manobraram para escapar pelas
montanhas para outro vale. Olhando para trás, os guerreiros viram, do topo do
desfiladeiro, o fumo da vila incendiada e, em sua profunda dor, pensaram se
alguma coisa poderia ser feita para salvar seu povo da destruição total.
Os prisioneiros levados para La Torre, incluíam a esposa e três filhas de
Giavanelo. Essa notícia deleitou Pianeza. Escreveu a Giavanelo a seguinte
carta:
“Exorto-o, pela última vez a renunciar a sua heresia. Esta é a única
esperança de vir a obter o perdão de seu príncipe, e de salvar a vida de sua
mulher e suas filhas, agora minhas prisioneiras, e as quais, se você continuar
obstinados, queimarei vivas.”
Na mesma carta ele ameaçava também a Giavanelo, dizendo-lhe que se
ele não se rendesse, seria posto preço a sua cabeça.
Giavanelo não negou sua fé, mas respondeu:

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“Não há tormentos tão terríveis, nenhuma morte tão bárbara que eu não
preferisse a negar meu Salvador. Suas ameaças não me podem fazer
renunciar a minha fé; antes nela me fortalecem. Fizesse o marquês de Pianeza
minha mulher e minhas filhas passarem pelo fogo, isto não consumiria senão
seu corpo mortal; sua alma, encomendo-a a Deus, confiante de que Ele delas
terá misericórdia e de mim, se Lhe aprouver que eu caia nas mãos do
marquês.”
Não representa aquela carta a mais rude derrota infligida por Giavanelo
ao marquês? Não se sabe se ele queimou a mulher e as filhas de Giavanelo,
mas sabe-se que elas nunca mais voltaram ao bravo capitão valdense. Com
um filho a quem ele conseguira salvar, Giavanelo atravessou os Alpes para a
França, onde o deixou aos cuidados de amigos. Volveu então a sua desolada
terra natal. Havendo sabido de suas proezas e admirado sua bravura, centenas
de fugitivos valdenses a ele se reuniram. O cuidadoso treino que ele lhes deu,
tornou-lhes possível derrotar repetidamente o inimigo.
Esquadrões volantes de valdenses começaram a atacar e derribar
pequenos grupos dos soldados do marquês, errantes fora de seus
acampamentos. Muitos dos valdenses também foram mortos, mas o povo
permaneceu invencível em seu espírito inquebrantável. Não há registro de um
único valdense que se unisse à igreja católica.
O futuro, entretanto, afigurava-se sombrio a Giavanelo e aos bravos que
o acompanhavam. Por quanto tempo seria possível aos fugitivos
permanecerem escondidos? Onde poderiam encontrar alimento? Onde se
abrigariam eles ao passar o verão, e chegar o amargo frio do inverno? Deus,
unicamente, poderia trazer-lhes livramento. Dia e noite, corações e vozes
erguiam-se a Ele em oração, a Ele que, tão-somente, tinha poder de salvá-los
da destruição.

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12. HOMENS QUE LUTARAM COMO LEÕES

Ao espalharem-se as notícias da terrível destruição causada pelo


marquês nos vales de Lucerna e Angrogna, centenas de valdenses de outras
regiões alpinas fugiram de seu país. Alguns subiram por elevadas gargantas de
montanhas, chegando afinal à Suíça, onde o povo das terras protestantes
acolheram-nos calorosamente. Em especial Genebra, a cidade de Calvino,
abriu seus lares aos pobres fugitivos. Outros valdenses fugiram em direção ao
oeste, pelos Alpes, para os vales pertencentes à França.
O duque de Sabóia ficou enraivecido ao pensar que seus súditos
estavam escapando Mandou à corte de França um mensageiro para protestar
contra o abrigo que a França estava indo a seus súditos rebeldes, e pedir que
fossem imediatamente enviados de volta a seu país. Mazarino, que dirigia o
governo distante a infância de Luiz XIV, respondeu-lhe que lhe era impossível,
em nome da humanidade, recusar refúgio ao pobre povo fugitivo, mesmo
sendo eles protestantes.
Países protestantes do norte, a Alemanha, a Holanda e, sobretudo a
Inglaterra, receberam as notícias dos massacres com I > imo e horror. Muitos
acharam a princípio impossível crer que tais atos pudessem ser praticados por
um príncipe cristão a seus próprios súditos, mas as histórias que os fugitivos
contavam, bem como os relatos de testemunhas oculares, não podiam ser
negadas. Oliver Cromwell, à testa do governo inglês, proclamou um jejum
nacional e começou a fazer uma coleta para ajudar os valdenses. Ele próprio
fez um donativo individual de dez mil dólares.
Cromwell fez ainda mais. Ditou uma carta ao duque de Sabóia, cujo país
limitava-se com a França, para ver se a perseguição aos valdenses parava
imediatamente. Enviou também Sir Samuel Morland, de sua própria corte, para
dizer ao duque pessoalmente, que a Europa ficara horrorizada com os
tremendos atos praticados por seus soldados.
A tempestade que seu procedimento havia criado através da I ui opa
causou pasmo ao duque. Tentou a princípio negar que houvessem ocorrido
quaisquer massacres, mas a prova esmagou-o. Os vales desolados, as
moradas queimadas e centenas de corpos jazendo ainda insepultos, tornaram-
se provas de sua crueldade. Morland, que passara em pessoa pelos vales a
caminho de Turim, havia se chocado com o que vira. De pé diante do culpado
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duque r de sua mãe, que ajudara a instigar ao massacre, Morland falo ao
príncipe como nenhum outro lhe ousara falar.
- Se todos os tiranos de todos os tempos e séculos revivessem, disse ele, sem
dúvida se envergonhariam ao verificar que coisa alguma bárbara ou desumana,
em comparação com esses atos fora jamais inventados por eles. Ao mesmo
tempo, anjos são possuídos de horror; os homens tonteiam de pasmo; o
próprio Céu assombra-se aos gritos dos moribundos, e a Terra mesma
ruboriza-se com o sangue de tantos inocentes.
O duque prometeu pôr termo às perseguições, e Morland deixou a
Sabóia para visitar a Suíça e a Alemanha a fim de procurar emissários que
pudessem voltar com ele, e ajudar a assegurar uma paz justa para os
valdenses.
Entretanto, porém, continuava a guerra nos vales. Giavanelo e outro
patriota, Giaheri, recrutaram bandos de valdenses que se voltaram com fúria
contra os soldados piemonteses. I Tantos dos valdenses haviam sido mortos,
que ambos os bandos juntos somavam apenas quinhentos homens. Contra
eles havia mais de quinze mil soldados do duque de Sabóia.
Se bem que poucos em número, os soldados valdenses possuíam uma
grande vantagem. Conheciam cada vereda, cada trilho e cada fortaleza em
seus vales. E tinham outra vantagem ainda. Lutavam por uma causa justa e
podiam pedir a Deus auxílio e forças na defesa de seus lares e no conservar a
antiga fé.
Seus inimigos, por outro lado, haviam ido aos vales para matar, destruir,
saquear. Olhavam com pasmo um punhado de valdenses lançando contra eles
poderosas forças, e muitos ficaram convencidos de que Deus ajudava os
hereges. Os valdenses atacavam com tal ousadia, determinação e êxito, que
muitos dos soldados piemonteses perdiam o ânimo.
Os exércitos não travavam agora grandes batalhas, mas dezenas e
dezenas de pequenos combates em vários pontos dos vales. Crescia
gradualmente o número dos grupos valdenses, a i medida que voluntários se
iam a eles reunindo. Vieram huguenotes da França, e outros soldados
protestantes da Suíça, Alemanha, Holanda e Inglaterra.
- Eu sempre havia considerado os valdenses homens, disse
Descombies, um francês que os fora ajudar, mas verifiquei que são leões.

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Coisa alguma podia deter ou fazer recuar os valdenses. Pouco a pouco,
expulsaram seus inimigos dos vales. Quando, porém, a guerra passou para as
planícies do Piemonte, os valdenses perderam muitas de suas vantagens das
montanhas. Ali foi o bravo Giavanelo gravemente ferido em combate, e forçado
a deixar o exército por cerca de dois meses. O comando recaiu em Giaheri,
que procurou manter a causa do chefe ausente.
Certo dia aproximou-se de Giaheri um homem dizendo-se valdense.
Ofereceu-se para conduzir o exército a um lugar em que, com pequeno
esforço, eles poderiam obter o domínio de poderosa fortaleza. Sem nada
suspeitar de mal, Giaheri e seus homens esforçaram-se na marcha, mal
sabendo que seu guia era um comprado traidor. Ele levou os valdenses
diretamente a uma emboscada em que os soldados do duque, atacando de
todos os lados, em grande número, derrotaram-nos completamente. O próprio
Giaheri pereceu nessa luta, e a seu lado caiu seu valoroso filho. A despeito
desse severo revés, os valdenses juntaram-se, e em breve Giavanelo tomou o
comando, conduzindo seus soldados à vitória mais uma vez.
Enviados de Luiz XIV chegaram comissionados a arranjar termos de paz
com o duque e seus súditos protestantes. Havia também representantes da
Suíça, mas os deputados da Inglaterra e da Alemanha não haviam ainda
chegado. Infelizmente, os suíços permitiram que fosse traçado um tratado de
paz, e assinado precipitadamente. Por esse tratado, os valdenses perderam
suas antigas terras à margem do Rio Pelice.
Duros como fossem os termos da paz, os valdenses sentiram alivio em
assiná-los. Tinham paz afinal. Cativos foram libertos da prisão, e algumas das
crianças roubadas foram restituídas. Visto seu país haver sido tão devastado, o
governo concordou em suspender os impostos do povo por cinco anos.
Os valdenses aceitaram esses termos, e o duque perdoou seus súditos
"rebeldes," como os chamava, e tomou-os mais uma vez sob sua proteção. Os
valdenses, porém, haviam-se submundo a um tratado que os colocava mais
uma vez inteiramente sob o domínio do duque de Sabóia, dando-lhe poder de
tornai lhes a vida fácil ou dura. Ele, decidindo tornar aos valdenses impossíveis
rejeitar-lhe nunca mais as ordens, apressou-se a construir uma fortaleza
vigorosa em La Torre, cidade-chave para os vales.
Os vinte anos seguintes demonstraram-se difíceis para os valdenses.
Compreendendo que a perseguição aberta lhe acarretaria a ira da Europa
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Protestante, o duque começou uma unir de tormentos. Novamente começaram
a desaparecer, roubadas e carregadas, as crianças valdenses, para serem
criadas nos mosteiros e conventos de freiras. Os pais que iam a Turim
protestar eram muitas vezes apanhados e atirados nas prisões. Os frades
andavam pelos vales. Construíam muitas igrejas e capelas novas. O duque
acrescentava-lhes novos impostos, os quais se tornavam a cada ano mais
pesados.
Então, um ano, o duque exigiu de repente meio milhão de coroas de
ouro. Os valdenses perguntaram a que se destinava esse tributo. Ele lhes disse
que a guerra para vencê-los custara isso, e agora eles deviam pagá-lo! Os
valdenses protestaram que não se haviam rebelado, mas simplesmente
combateram para defender-se e a suas esposas e filhos. Em sua grande
perplexidade, apelaram para o rei de França! Se bem que Luiz XIV se viesse
depois a tornar um dos maiores perseguidores dos protestantes, que já
governaram na Europa, não estava então na disposição de perseguir os
valdenses. Em resultado, o total da imposição de tributo foi reduzido a 50.000
coroas.
Uma vez mais, porém, os valdenses perderam muitos de seus melhores
pastores. Durante todos os anos da chamada "paz," primeiro um, depois outro
de seus líderes teve ordem de deixar o país e não mais voltar. O duque de
Sabóia e seus conselheiros católicos compreenderam que os pastores eram os
dirigentes do povo. Fossem eles mandados embora, talvez enfraquecesse a
vontade do povo para resistir.
Os valdenses perderam um bom amigo e defensor com a morte de
Oliver Cromwell. Esse inglês levantara em benefício deles mais de duzentos
mil dólares. Apenas metade dessa importância havia sido enviada aos
valdenses ao tempo de sua morte. Isto lhe fora de grande auxílio na
reconstrução de suas habitações e na compra de novos rebanhos de ovelhas e
gado. Ao tomar Carlos II o trono da Inglaterra, porém, declarou que não era sua
obrigação cumprir as promessas de seu predecessor. De modo que fez
reverter aquele dinheiro a seu próprio tesouro.
Em 1675, morreu Carlos Emanuel II, e seu filho de nove anos de idade,
Vítor Amadeu II, tornou-se duque de Sabóia. Enquanto ele foi de menor idade,
sua mãe governou realmente o país. Como um dos primeiros atos do novo
governo foi confirmados os antigos direitos e privilégios dos valdenses,
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assegurando-lhes maior liberdade religiosa do que haviam fruído por muitos
anos. Cessaram por um tempo as perseguições.
O jovem duque empunhara o poder havia apenas um ano quando
rompeu uma guerra entre a Sabóia e o povo de Gênova. Os valdenses
congregaram-se em torno da bandeira de seu príncipe, e ajudaram-no a ganhar
importante vitória. O governo exprimiu-lhe profunda apreciação por seu valor e
dedicação, que ajudara a ganhar a guerra.
Em um país vizinho, no entanto, iam tendo lugar acontecimentos que
trariam grande aflição aos valdenses. Em 1685, Luiz XIV revogou o edito de
Nantes, que dera liberdade aos huguenotes, como eram chamados os
protestantes franceses. O rei declarou que, no futuro, só uma religião, o
catolicismo, poderia ser praticada na França. Ordenou que todo cidadão se
unisse a essa igreja.
Muitos protestantes obedeceram à ordem, e se uniram à igreja católica,
embora não cressem realmente o que ela ensinava. Outros, porém, que se
demonstraram fiéis, foram para esconderijos, de maneira-a poderem continuar
a viver segundo sua Ir. Muitos mais, talvez meio milhão, fugiram da França,
cruzaram as fronteiras e começaram novamente a vida em terras protestantes
da Suíça, Alemanha, Holanda e Inglaterra. Alguns fugiram mesmo para além
do Atlântico, estabelecendo-se nas colônias americanas.
Abaixo, próximo do limite sul da França, estava a terra dos valdenses. O
rei sabia que alguns de seus súditos huguenotes haviam fugido para aqueles
vales, para ali viver. Discutiu o assunto com seus conselheiros, e resolveram
que todos os protestantes nos vales deviam ser forçados a entrar na igreja
católica, ou ser expulsos de suas terras. Um despacho foi enviado ao
embaixador francês na corte de Turim.
Aquele homem aproximou-se de Vítor Amadeu, e informou o de que o
rei de França, havendo livrado seu reino de todos os hereges, sentia ser seu
dever fazer com que o duque fizesse a mesma coisa nas suas terras.
Essa exigência deixou perplexo Vítor Amadeu. Bem conhecia ele a
lealdade dos valdenses; não podia esquecer seu auxílio na recente guerra.
Sabia também que eles defenderiam sua religião com a própria vida. Hesitou
em começar uma guerra contra um povo inocente que, quando cruelmente ata-
cado, humilhara tantas vezes os mais orgulhosos capitães da Sabóia. Mas

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conhecia por outro lado também o tremendo poder de Luiz na Europa e a
grande força de seus exércitos.
O duque passou por alto aquela primeira mensagem de Luiz, na
esperança que isso fosse esquecido. O rei francês, porém enviou outra
mensagem, insistindo em linguagem ainda mais forte para que fosse exigido
dos valdenses entrarem na igreja romana. Desta vez o duque mandou uma
resposta que não satisfez ao rei francês. Prometeu apenas investigar a
questão, e ver o que poderia ser feito.
Pela terceira vez o embaixador de França apareceu perante o duque,
dando-lhe uma mensagem ainda mais incisiva. Seu senhor, o altíssimo e
poderoso rei de França, chegara quase ao fim de sua paciência com Sabóia.
Se o duque não achava que podia limpar os vales da heresia, então o rei de
França mandaria um exército, e fá-lo-ia por si mesmo. Caso o rei não re-
cebesse resposta favorável do duque, os exércitos franceses haviam de
atravessar imediatamente a fronteira, reduzir os valdenses à submissão,
anexando em seguida os vales à França.
Esta última ameaça foi bastante para Vítor Amadeu. A perspectiva de
perder os vales e ver o poder francês estabelecido do lado de cá dos Alpes,
atemorizou-o. Mandou dizer a Luiz XIV que executaria os seus desejos.
Ao mesmo tempo, Luiz prometeu ajudar provendo um grande exército para
cooperar com o do duque nessa campanha.
Um dos mais poderosos exércitos franceses pôs-se em marcha para a
fronteira, para ali aguardar a mensagem do duque de Sabóia de que era tempo
de marchar contra os hereges.

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13. UM POVO EM EXÍLIO

Profunda era a neve nos vales alpinos por uma funesta manhã de
janeiro de 1686. O fumo que ascendia das chaminés em muitas vilas, indicava
que as famílias se estavam aquecendo ao redor de suas lareiras. Subitamente,
um toque de buzina rompeu o silêncio da solidão hibernal. Pessoas
sobressaltadas, correndo às portas viram um soldado montado encaminhar-se
para a casa de oração, saltar do cavalo, e afixar uma longa folha de papel à
porta. Saltando em seguida na sela, galopou afastando-se de caminho para a
próxima vila.
Os valdenses sabiam que o homem devia ser um emissário do governo
de Sabóia. Que notícia poderia ser suficientemente importante para trazê-lo
aos vales em um tal tempo? Os homens envergaram seus sobretudos e
calçaram as botas, e foram à porta da igreja para ler o papel, um edito emitido
pelo duque, de Sabóia.
Um dos anciãos da vila começou a ler em voz alta. O documento
compunha-se de nove parágrafos, cada um deles qual lança atravessando o
coração do povo. O primeiro rezava simplesmente: "Os valdenses cessarão
daqui em diante para sempre todos os exercícios de sua religião." Um surdo
gemido escapou dos ouvintes. O homem prosseguiu na leitura. Êles eram
proibidos de ter reuniões religiosas sob pena de morte e de confiscação de
todos os seus bens. Todos os seus antigos privilégios eram abolidos. Todas as
igrejas, casas de oração e outros edifícios consagrados à pregação da heresia
seriam destruídos. Todo pastor e professor precisava tornar-se católico dentro
de quinze dias, ou deixar o país para sempre. Tôda criança precisava ser
criada como católica romana. Todos os protestantes estrangeiros precisavam
tornar-se católicos ou deixar o país dentro de quinze dias. Os que se
recusarem teriam permissão de vender suas propriedades a católicos antes de
partir.
Por vários meses os valdenses haviam cogitado por que soldados
piemonteses se estavam ajuntando ao longo de sua região. Começaram agora
a suspeitar de que esses soldados haviam sido reunidos a fim de forçá-los à
submissão ao edito do duque. Chegara-lhes aos ouvidos também que um
grande exército bloqueava o caminho de saída dos vales para o oeste. Como
poderiam eles olhar ao futuro com esperança? Como poderiam defender seus
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lares contra tão poderosos inimigos? Mas como poderiam vender suas
propriedades e viajar para novos lugares no inverno?
Por todo o país o povo reunia-se em suas casas de oração para falar
acerca dessas tribulações. Os pastores exortavam-nos a manter a calma e não
fazer coisa alguma em precipitação. Mensageiros rápidos voaram em esquis
pelas nevadas montanhas, levando as notícias do perigo que enfrentavam a
seus amigos protestantes na Suíça.
Outro grupo de mensageiros foi a Turim a fim de protestar ao duque, e
rogar-lhe que suspendesse o edito. Lembraram a seus funcionários que haviam
servido fielmente na recente guerra contra Gênova. Lembraram-lhes o tratado
de paz havia pouco assinado, pelo qual lhes era assegurado que todos os seus
antigos direitos e privilégios seriam respeitados. Não honraria o príncipe sua
promessa?
A todas as suas alegações fez o duque ouvidos moucos, recusando-se
mesmo a ver os deputados. Talvez se sentisse envergonhado de suas ações.
A ameaça de Luiz XIV de tomar-lhe os vales não lhe saía da mente.
Concordou, porém, em adiar a execução do edito por algumas semanas a fim
de dar tempo aos valdenses de conseguir venda para suas propriedades.
Entretanto, grupos errantes do Piemonte, impacientes por começar a
obra de extermínio, principiaram a saquear e matar nas colônias mais próximas
das planícies. Igualmente soldados franceses então aquartelados em Pinerolo
mal podiam ser contidos.
As novas dos valdenses perturbaram grandemente os suíços
protestantes. Vários de seus homens mais capazes atravessaram os Alpes
para conferenciar com eles. Outros enviados suíços foram a Turim protestar e
procurar persuadir o duque a não executar o tremendo edito. Foram dirigidos
ao marquês de San Tomaso, que devia responder pelo duque.
A princípio San Tomaso insistiu em que a falta estava com os valdenses
que haviam pegado em armas contra seu legítimo governador. Os enviados
suíços, porém, rejeitaram-lhe a resposta. Premido para dar uma resposta
verdadeira, San Tomaso reconheceu afinal que a pressão da França era a
razão real do edito. Tomando os suíços à parte, sugeriu que aconselhassem os
valdenses a submeter-se ao edito. Que eles fossem à missa e pusessem seus
filhos sob a instrução de padres católicos por algum tempo. Assim que eles

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houvessem satisfeito o rei francês o duque poderia quietamente permitir-lhes
voltar sem ser molestados a suas práticas religiosas.
Os suíços, no entanto, sabiam que os valdenses não concordariam em
abandonar sua fé, mesmo por um pouco de tempo. Com tristeza, voltaram os
enviados, e relataram aos valdenses o fracasso de sua missão.
Representantes de todos os vales reuniram-se em Chiasso a de março
de 1686, para tratar da situação. Os suíços indicaram a impossibilidade de
resistir aos exércitos bem treinados da Sabóia e da França.
- Como poderíeis combater contra seus canhões? Perguntaram.
- Estais cercados por todos os lados pela terra de vossos inimigos. Não
há nação que vos possa mandar auxílio, pois não seria possível atingir-vos.
Não possuis mais de 3.000 homens em armas, para enfrentar 30.000 soldados
piemonteses e franceses, alguns dos quais são reconhecidos como os
melhores da Europa.
Eles continuaram a sugerir que os valdenses desistissem de qualquer
idéia de resistência, mas deixassem seu torrão natal e se estabelecessem na
Suíça ou entre os Estados protestantes da Alemanha, onde poderiam viver em
paz e conservar sua antiga fé.
Talvez o conselho fosse bom, mas os valdenses não podiam encontrar
em seu coração lugar para ele. Como poderiam eles deixar as montanhas que
haviam sido sua pátria por oitocentos anos? Além disso, não estariam lutando
sozinhos. Lembravam-se das muitas vezes, no passado, em que um punhado
de seus lavradores-soldados, haviam derrotado poderosos exércitos inimigos.
Lembravam-se também do grande massacre de vinte e cinco anos atrás, e de
como Cromwell, o poderoso governador da Inglaterra, havia interferido e posto
fim à matança. Haviam sido então salvos do extermínio. Não poderia isso acon-
tecer outra vez?
Com tristeza indicaram os suíços que as condições da Inglaterra haviam
mudado. Tiago II, católico romano, ali reinava agora. Portanto nenhum auxílio
se poderia esperar daquele país. Todo esforço feito pelas potências
protestantes da Europa a fim de refrear o poder do rei francês, havia sido em
vão. Luiz XIV tinha quatrocentos mil soldados em seus exércitos. Que nação
européia podia esperar desafiar tal força ou sequer ousaria fazê-lo a fim de
salvar um punhado de gente que vivia em distantes vales alpinos?

70
Os valdenses saíram da reunião sem haver chegado a uma conclusão
definida. Alguns sentiam-se plenamente determinados a resistir até à morte às
tropas invasoras estacionadas nas fronteiras. Outros acreditavam ser
desesperada a situação. Sentiam-se aturdidos pela magnitude do perigo que
os ameaçava.
Um mês depois dessa reunião, os inimigos avançaram. O exército
Francês sob o comando do famoso general Catinat, penetrou no vale de S.
Martin, enquanto os soldados do duque miravam no vale de Lucerna. Tomaram
de surprêsa algumas vilas e mataram centenas de pessoas. Em outras regiões,
os valdenses ergueram barricadas e fizeram recuar o inimigo pelo momento.
Sabendo por experiência do passado que qualquer campanha travada nas
fortalezas naturais dos valdenses seria longa e amarga, os comandantes
piemonteses e os franceses queriam experimentar uma aproximação diferente.
Talvez pudessem persuadir o povo a depor as armas sem lutar.
Em S. Germano, o general francês anunciou ao povo do lugar que seus
irmãos do vale de Lucerna haviam deposto as armas, e sido inteiramente
perdoados pelo duque. Agora, eles só, de todos os vales, mantinham-se firmes
contra os soldados de seu governo, e ele os convidava a entregar-se.
O povo de San Germano, sendo claro que sozinhos não poderiam
enfrentar tais inimigos, depuseram as armas, e os franceses entraram ali. Em
lugar de paz, um massacre de centenas de homens, mulheres e crianças, eis o
que se seguiu. Os que não foram mortos ou torturados, foram levados ao
Piemonte I na serem distribuídos entre as prisões nas cidades da planície.
Algumas crianças foram colocadas em mosteiros e conventos.
Dessa maneira, os exércitos submeteram os vales um a um. Dentro de
poucas semanas, a terra estava vazia de seus habitantes. Finalmente, os vales
estavam silenciosos. Não mais subia o fumo de suas chaminés. Os animais
haviam todos sido mortos ou tocados para fora. Os bens do povo, haviam sido
saqueados. As igrejas, profanadas, e muitas delas totalmente destruídas.
A Europa protestante ouviu com horror as notícias desse novo ultraje
contra os valdenses. Protestos foram enviados da Alemanha em particular. Os
suíços mandaram outra delegação ao duque de Sabóia, alegando que um povo
tão antigo como os valdenses não se devia permitir desaparecesse da face da
Terra.

71
Seis meses depois que os valdenses haviam sido tangidos para as
prisões do Piemonte, o duque resolveu ceder aos pedidos da Europa
protestante e libertar os que ainda viviam. Mas, decidiu, não deviam voltar a
seus vales. O povo devia ir para o exílio, para nunca mais voltar.
Doze mil robustos montanheses amantes da liberdade, haviam entrado
nas escuras prisões de seu príncipe. Haviam, por seis meses, vivido e morrido
em horríveis condições. A comida que lhes era dada, achava-se muitas vezes
meio apodrecida, e nem mesmo dessa comida tinham eles suficiente para lhes
manter a vida a todos. Não tinham camas em que dormir — simplesmente
montes de palha estragada, pululantes de milhares de insetos e espalhados no
chão úmido. Não tinham cobertores. O verão transformara-se no inverno, e
acerbo era o frio. Milhares morreram das privações sofridas naquelas prisões.
Ao se abrirem finalmente as portas, dos 12.000 que ali haviam penetrado,
menos de 3.000 arrastaram-se para fora.
A alegria dos valdenses ao serem postos em liberdade foi bem depressa
ensombrada ao saberem que não poderiam voltar aos vales natais, mas deixar
sua terra para sempre. A Suíça, foi-lhes dito, recebê-los-ia, e talvez a seu
tempo eles pudessem ir para outros países.
- Quando precisamos ir? indagaram os dirigentes valdenses.
- Imediatamente, responderam friamente os oficiais.
O povo tremeu ante a expectativa. Dezembro ia adiantado, e profunda
era já a neve que bloqueava os passos das montanhas. Como poderiam as
mulheres e as crianças atravessar as poderosas trincheiras de neve e rocha?
Não poderia seu exílio ser adiado até à primavera? Rogaram a permissão de
permanecer no país por uns poucos meses.
Vítor Amadeu recusou o pedido. Concordou em prover o povo com um
pouco de pão. Então, tangidos pela guarda de soldados, a desamparada
multidão foi caminhando para fora de Turim, dirigindo-se para o norte, em
direção às montanhas. Enquanto subiam, caiu sobre eles uma tempestade.
Quem poderia descrever os horrores daquela noite. Fracas mulheres c crianças
tropeçavam na neve, e caíam para nunca mais se erguer. Os outros
mourejavam para diante, para cima, galgando enfim o cimo. Ali os guardas os
deixaram descer o outro Iido, aos cantões suíços. Os que chegaram finalmente
à Suíça, somavam apenas 2.600.

72
A notícia de que os valdenses vinham chegando, difundiu- se
celeremente de uma a outra cidade da Suíça. Pessoas de coração bondoso
saíram-lhes ao encontro, levando alimento e roupas. Seu coração derreteu-se
ao verem caminhar os lastimáveis refugiados, manquejando pela estrada,
alguns com mãos e pés ulcerados pelo frio, mães com criancinhas nos braços
ou nas costas, tão debilitadas de fome e de fadiga, que mal podiam mover os
passos. Suas roupas, apodrecidas na longa estada nas prisões piemontesas,
pendiam-lhes em farrapos do corpo. O povo suíço ofereceu-lhes alimento,
porém muitos sentiam-se demasiado fracos para comer. Os robustos braços
dos suíços levaram as crianças e as pessoas idosas para abrigos aquecidos.
Genebra em particular manifestou maravilhoso espírito cristãio para com
os exilados. Quase metade da cidade afluiu ao encontro dêles, e entre os que
foram achava-se o idoso Giavanelo, que fora exilado dos vales pelos têrmos do
tratado de paz assinado vinte e cinco anos antes. Ao olhar ao lamentável rema-
nescente de seu povo, ergueu a voz e chorou. Para alguns dos valdenses, o
livramento viera demasiado tarde. Alguns na verdade caíram e morreram às
portas de Genebra.
Os cidadãos suíços acolheram da melhor maneira os refugia dos em
suas cidades. Muitos dos lares ali ainda estavam apinhados com os refugiados
huguenotes que haviam vindo em grande número pelas fronteiras da França
apenas dois anos atrás. Não obstante, não mandaram de volta nem um
valdense necessitado de abrigo e hospitalidade.

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14. A VOLTA GLORIOSA

O povo de Genebra não podia cuidar devidamente de todos os


valdenses que haviam vindo de Sabóia. Assim, eles se espalharam por
diversas comunidades dos cantões suíços. Alguns tinham terras, onde mais
uma vez eles começaram a cultivar o solo, provendo sua própria manutenção.
Alguns dos príncipes alemães convidaram os valdenses para se
estabelecerem em seus territórios. Ante o convite do eleitor do Palatinado,
várias centenas de refugiados foram para seu Estado e estabeleceram-se entre
seus súditos. Suas esperanças de encontrar paz permanente na Alemanha,
entretanto, foram decepcionadas. Em constante busca de novos territórios, o
rei de Trança mandou seus exércitos ao Palatinado. Os habitantes fugiram
diante dos invasores. E os valdenses encontravam-se entre os que foram
forçados a fugir, de modo que uma vez mais se puseram a caminho em busca
de um lugar em que pudessem viver em paz.
Mas fosse aonde fosse que eles se dirigissem, ou quão bondosos
fossem os habitantes do lugar, os exilados não podiam esquecer a terra natal.
Ao crepúsculo, sentavam-se juntos recordando seus antigos lares e falando
dos dias vividos à sombra das grandes montanhas. Lembravam-se de como
cuidavam de seus animais, fazendo-os pastar na luxuriante e verde relva
daqueles vales, abeberando-os nas puras correntes das montanhas. Falavam
dos belos bosques de castanheiros que lhes proviam alimento, a eles e a seus
animais.
Por duas vezes mandaram os valdenses espias disfarçados através das
montanhas a fim de verificar se seus vales se achavam habitados por gente
nova. Os espias voltaram, dizendo que o povo mandado pelo duque para viver
ali não conseguira fazer a terra produzir, e assim se fora embora. Os campos
jaziam incultos, e as vinhas sem podar. Ouviam-se lá apenas os sons da
Natureza. Ouvindo o relato dos espias, mais anelaram os valdenses os seus
vales.
- É melhor morrer em nossa terra natal do que viver no exílio, diziam uns
aos outros.
Por duas vezes buscaram prematuramente retornar aos vales natais,
mas de cada vez os suíços descobriram e impediram seus planos. As
autoridades nos cantões mantinham-se em meia vigilância em torno dos
74
exilados, sabendo que, deixassem eles a Suíça e voltassem aos vales, Luiz
XIV julgaria por certo que eles haviam sido ajudados pelos suíços.
Mas os valdenses não eram gente para ser derrotada. Felizmente,
encontraram um líder, Henrique Arnaud, um de seus pastores, que havia
servido no exército de Guilherme de Orange, da Holanda. Arnaud conseguiu o
fundo financeiro de Guilherme de Orange, que em breve se deveria tornar rei
da Inglaterra, e com o auxílio de alguns exilados huguenotes prepararam outra
tentativa de atravessar os Alpes para os vales valdenses. Em agosto de 1689,
oitocentos homens valdenses e huguenotes reuniram-se às margens do Lago
Leman. Arnaud fizera todos os arranjos. Silenciosamente, sob o manto das
trevas, os homens entraram em barcos, remando para a margem sul. Desta
vez, as autoridades suíças que sabiam do escape não os impediram.
As fortalezas que defendiam os caminhos regulares conduzindo da
Suíça à Itália, forçaram Arnaud a servir-se dos mais perigosos trilhos na
montanha. De vila em vila marcharam eles pelo coração dos Alpes, sem ter
mapas que lhes indicassem o caminho a seguir, mas olhando às estrelas
durante a noite e avançando em direção ao sul e a leste. Êles tomaram a maior
parte dessas vilas de surpresa, levando consigo oficiais dessas vilas ou
monges da localidade como garantias. Tomaram também alguns dos
habitantes delas como guias de uma a outra colônia.
Decidido, prosseguia o pequeno bando, sempre em grande perigo.
Nuvens pousavam por sobre os trilhos da montanha, e por vêzes os homens
perdiam o caminho. Alguns dias, choveu torrencialmente. Nos mais altos
desfiladeiros, eles encontraram até neve e saraiva, cobrindo a neve o chão à
altura de seus joelhos. Só no oitavo dia chegaram os valdenses em contato
com soldados inimigos. A essa altura chegara aos defensores do passo a
noticia de que um pequeno bando de valdenses, abrindo caminho, planejava
invadir os vales.
As novas dessa proposta invasão causou grande divertimento entre os
soldados franceses e piemonteses. Como poderia um povo que havia sido
quase destruído três anos antes nas prisões do Piemonte, depois exilados de
sua pátria, ter esperança de voltar a reconquistar os vales em face do exército
de mais de 20.000 homens?
Ao atingirem os valdenses um estreito desfiladeiro à margem do rio
Dora, chegaram à ponte que havia sido construída através da corrente. Seus
75
espias relataram que uma força de 2.500 soldados franceses entrincheirados,
preparavam-se para deter-lhes a marcha. Arnaud chamou seus homens e
conversou com eles acerca do que poderia ser feito. Esperando até que se
fizesse escuro, eles avançaram o mais silenciosamente possível em direção à
ponte, dispostos a arriscar tudo em uma tremenda luta.
A sentinela francesa, percebendo sons misteriosos na escuridão,
chamou: - Quem vai aí?
- Amigos, responderam os valdenses.
Isto, porém, não iludiu as sentinelas, que ergueram imediatamente o grito: —
Mata-os! Mata-os!
O exército francês, de um salto, pôs-se em ação. As gargantas da
montanha ecoaram o troar de sua infantaria ao se porem em atividade mil
carabinas. Por quinze minutos os soldados franceses fizeram fogo nas trevas.
Arnaud dissera a seus homens o que fazer quando o fogo começasse.
Obedientes, eles estenderam-se de bruços no chão, e esperaram que
cessasse o fogo. As balas assobiavam por sobre as suas cabeças, mas não
lhes causaram dano algum.
Resolvido a destruir esses hereges, o comandante francês mandou dois
grupos de soldados ao redor para cair em cima deles pela retaguarda. Por
momentos, parecia que os valdenses se tinham de entregar. Arnaud viu sua
situação desesperada. Seus homens tinham de vencer ou morrer onde
estavam. Para encorajá-los, um de seus oficiais ergueu o brado: — Coragem, a
ponte está conquistada!
Em verdade, isto não era certo, mas as palavras tiveram efeito
eletrizante sobre os soldados valdenses. Erguendo-se de um salto,
arremessaram-se sobre os homens que guardavam a ponte. Espalharam os
soldados inimigos, pondo-os para fora do campo. Tomaram então a artilharia
pesada dos franceses antes que uma só bala de canhão pudesse ser
disparada por eles.
Na confusão da noite, o comandante francês recebeu perigoso ferimento
na coxa. Olhando em torno através das trevas aclaradas pelos jatos luminosos
dos disparos, viu seus soldados em fuga. Relutante ordenou retirada geral.
Com uma porção de seus oficiais, muitos deles gravemente feridos, foi ele
levado a Briancon; mas como não julgasse que seu exército estivesse a salvo
mesmo aí, foi mais adiante no dia seguinte, a Embrun.
76
- Pode ser possível, exclamou ele que eu tenha perdido a batalha e
juntamente minha honra?
No acampamento francês encontraram os valdenses todas as provisões
que lhes eram necessárias. Destruíram toda comida e munições que não seria
possível carregar.
Na manhã seguinte à batalha, os valdenses contaram seiscentos
homens do inimigo mortos no campo, ao passo que dos seus, apenas quinze
mortos e doze feridos. Seria de admirar que
Arnaud, seu pastor-comandante, os dirigisse em um grande serviço de
ações de graças a Deus, que os ajudara tão poderosamente?
Prosseguiu sua marcha avante. No dia seguinte ao da batalha,
avistaram eles à distância, do cimo do passo no Monte Sei, os picos das
montanhas que circundavam seus amados vales. Ali, na montanha, realizaram
eles outro serviço religioso. No dia imediato, entraram em estreito desfiladeiro
onde encontraram uma companhia de soldados piemonteses preparados para
impedi-los de entrar em San Martin, um de seus mais belos vales. Tão
depressa surgiram os valdenses, misterioso pânico apoderou-se dos soldados
no passo. Fugiram sem dar combate. E agora, após uma ausência de três anos
e meio, pisaram os valdenses uma vez mais seu próprio solo.
No dia seguinte começaram eles a galgar o passo Julien, que os
conduziria lá embaixo ao vale de Lucerna. Ao aproximarem-se do topo,
defrontou-se-lhes forte corpo de soldados piemonteses, postados atrás de
barricadas.
- Venham cá, seus Barbets, gritaram os soldados quando avistaram os
valdenses esforçando-se caminho acima. Nós guardamos o passo, e há 3.000
de nós!
Os valdenses não necessitavam de incitação. Precipitando-se para
diante, assaltaram as trincheiras e puseram em fuga os soldados pelo outro
lado da montanha abaixo. No acampamento de seus inimigos tornaram eles a
encontrar grande quantidade de munições e mantimento. Descendo ao vale,
tomaram posse da cidade de Bóbio, onde pousaram para descansar alguns
dias. Continuaram então sua marcha, até chegarem a Vilaro, cidade que ficava
a meio caminho entre Bóbio e La Torre. Ocuparam Vilaro, mas não lhes foi
possível conservá-la quando uma grande força de soldados franceses os
dominou, forçando-os a retirarem-se para Bóbio.
77
Arnaud dividiu então seus homens em dois bandos. Por várias semanas
mantiveram eles uma luta contínua com os inimigos, como tantas vêzes haviam
feito no passado. Ficavam de emboscada em pontos onde menos eram
esperados, e então, de repente, caíam em cima dos franceses e piemonteses,
pondo os em fuga, e apoderando-se de valiosos suprimentos de comestíveis e
munições.
Se bem que os valdenses em geral ganhassem nessas escaramuças,
perdiam no entanto homens, e suas fileiras se iam tornando mais e mais
reduzidas. Quando caíam dez soldados piemonteses, reforços os substituíam.
Mas se caía um valdense, ninguém havia a lhe tapar a brecha.
Compreendendo que essa espécie de guerra havia seguramente de destruir-
lhes todo o corpo de soldados, Arnaud resolveu mobilizá-los em alguma
fortaleza onde se pudessem defender durante o inverno, e esperar a ver o que
Deus planejara para eles no ano seguinte.
Escolheram uma fortaleza natural conhecida por La Balsiglia, no extremo
superior do vale San Martin. Aí as montanhas salientavam-se em uma
plataforma lavada por correntes de dois lados, na forma de um V. Esta elevada
posição não podia ser atacada por trás, uma vez que as montanhas se erguiam
quase a pique por trás da fortaleza. Para esse lugar levou Arnaud seus
homens, transportando consigo quantas provisões puderam reunir.
Em La Balsiglia os valdenses derribaram árvores e construíram
vigorosas fortificações através de todo caminho ou trilho que pudesse conduzir
a sua fortaleza. Havendo destruído todas as estradas e pontes por milhas ao
redor, Arnaud retirou-se então para esse lugar com seus 400 homens, tudo
quanto restava daquele bravo grupo de homens que ele conduzira da Suíça
três meses antes.
Três dias antes de completar o forte, Arnaud viu as forças francesas
avançando pelo vale. No dia vinte e nove de outubro, vários milhares de
franceses marcharam avante para atacar La Balsiglia por todos os lados. Os
franceses lutavam bem, mas encontraram as fortificações inexpugnáveis, e
foram repelidos com grande perda de vidas. Por trás de suas vigorosas
paredes, os valdenses rebateram todo ataque sem perder um só homem.
A primeira neve do inverno já caíra, e o comando francês compreendeu
que seria impossível tomar a posição valdense sem artilharia pesada. E esta

78
eles não possuíam. Decidiu retirar-se para um lugar em que ele e seu exército
se pudessem abrigar do inverno.
Antes, porém, de desertar do campo diante de La Balsiglia, o general
francês enviou aos valdenses uma mensagem. Sob uma bandeira de trégua,
aproximou-se um oficial, e foi conduzido a Arnaud.
- Tenho uma mensagem para o senhor, da parte de meu comandante.
Êle vai deixar-vos agora, mas voltará no próximo ano, pela páscoa. Então lhes
daremos fim, e não escapareis.
- Estarei aqui à espera de seu comandante, respondeu Arnaud.
O oficial francês curvou-se e deixou a fortaleza.

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15. DEFESA DE LA BALSIGLIA

Todo o tempo em que os exércitos francês e Piemontês haviam


combatido contra Arnaud e seu pequeno bando de' valdenses, haviam
procurado destruir ou carregar todas as provisões de mantimento dos vales. Os
animais que não matavam e comiam, tangiam para as planícies. Os valdenses,
caminhando de vale para vale, escondendo-se muitas vêzes em covas, sofriam
muito com a fome. Passavam muitos dias sem ter o que comer a não ser
castanhas assadas.
Agora, isolados em La Balsiglia, os exilados olhavam para o vale de San
Martin, e notaram a completa desolação da terra. Mal havia uma casa que não
houvesse sido queimada. Não podiam ver um sinal de fumo em parte alguma.
Campos e florestas achavam-se igualmente sob o alvo lençol de uma neve
antecipada.
Arnaud compreendeu que ele e seus 400 homens. em La Balsiglia
teriam a enfrentar longo e rigoroso inverno. Escolhendo um grupo de seus
homens mais ousados e vigorosos, enviou- os acima do desfiladeiro da
montanha, aos vales franceses de Pra- gelas e Queiras. Dias depois, voltaram
eles trazendo sal, manteiga, uma centena de ovelhas e alguns bois.
Então, teve lugar um milagre. Uma onda de calor seguiu- se a primeira
neve da estação. Ao derreter-se essa neve, os valdenses viram lá muito
embaixo no vale, campos de trigo que não haviam sido ceifados. Protegidos
pelo lençol de neve, o cereal havia escapado aos olhos observadores do
inimigo. Jubilosos deixaram os homens sua fortaleza, e colheram o ali mento.
Não seria de admirar acharem eles que o Céu os havia protegido. Pela manhã
e à tarde em La Balsiglia, erguiam as vozes em cânticos e orações a seu Deus.
Alguns daqueles homens que se encontravam em La Balsiglia haviam
nascido no vale de San Martin. Um deles lembrou-se um dia de que, mais de
três anos atrás, o dono do moinho da vila, com auxílio de seus amigos, havia
escondido sua pedra de moer na corrente que fluía em torno de La Balsiglia.
— É melhor escondê-la aqui do que deixar que os papistas venham e
esmaguem-na, dissera ele. Os homens que se achavam no forte resolveram
então fazer uma tentativa para descobrir aquela pedra. Escolhendo alguns
auxiliares, aquele homem guiou-os ao local. Ao quebrarem o gelo, encontraram
a pedra do moinho ainda ali. Vadeando pela corrente gelada, eles manobraram
80
para levá-la à margem. Então, empurrando e impelindo, subiram-na pela
íngreme encosta acima, e para o interior de La Balsiglia, onde a puseram a
trabalhar, moendo o trigo em farinha para os homens famintos.
Arnaüd, porém, tinha dificuldades ainda. Sabia que os franceses
voltariam na primavera, mais fortes que nunca. A menos que Deus mandasse
auxílio, ele e seus companheiros não teriam possibilidade de escape. Todavia,
ao recapitularem os passos pelos quais eles haviam sido conduzidos de volta a
seus vales, e as vitórias que o Senhor os habilitara a ganhar sobre grandes e
bem equipados exércitos, ele disse confiantemente a seus homens que aquele
que os havia guiado até ali não os abandonaria nos dias por vir.
Quando os dias hibernais se tornaram mais curtos, o frio também ficou
mais intenso. Entre tempestades, deixaram os homens sua fortaleza para
cortar árvores nas florestas vizinhas e transformá-las em toros. Arrastaram-nos
pelo solo nevado e encostas acima, a La Balsiglia, onde os empilharam um em
cima do outro de modo a formar vigorosa barricada contra qualquer exército
atacante.
Findou o inverno e ventos cálidos derreteram a neve. Águas
espumantes e rumorosas precipitaram-se corrente abaixo. Pelos desfiladeiros
do lado da França veio um exército de 10.000 soldados. Subindo do vale do
Clisone, apareceram 12.000 soldados piemonteses para a eles se unirem. Os
valdenses, de sua fortaleza, olharam para baixo, e viram 22.000 baionetas
rebrilhando ao Sol!
O Marechal Catinat, um dos mais renomados generais franceses
daquele tempo, comandava o exército conjunto. Traziam muitos carros
carregados de mantimento e munições. Centenas de soldados empurravam e
puxavam poderosos canhões para abater o forte dos hereges. Por último, mas
não sendo o mínimo, Catinat trouxera 400 cordas com que intentava enforcar
cada um dos defensores de La Balsiglia.
— Não temam, incitou Arnaud a seus bravos companheiros.
Lembrem-se de Gideão, com 300 homens, e nós temos cem mais que ele.
Nunca esqueçamos o que ele foi capaz de realizar com o auxílio de Deus.
Catinat estudou cuidadosamente a fortaleza que viera tomar. De um
lado, longo aclive levava à fortaleza. Resolveu servir-se disso para
aproximação de seu exército. Não sabia que Arnaud havia-a fortificado com
paliçadas vigorosamente construídas com toras.
81
— Um dia, observara Catinat a um de seus oficiais, deve ser
suficiente para nosso exército derrotar aqueles montanheses fracamente
armados, famintos e inábeis.
As buzinas francesas soaram cedo na manhã de 1. de maio de 1690.
Os valdenses olhavam fascinados quando os primeiros 500 homens, bandeiras
e pavilhões flutuando ao vento e conduzidos por Catinat a cavalo,
encaminharam-se para ao pé de La Balsiglia. Os franceses ergueram uma
exclamação que ecoou pelas gargantas dos vales. Depois daquele escolhido
grupo de 500, vinham 7.000 hábeis mosqueteiros que deviam derribar a
fortaleza. Com tremenda exclamação, arremessaram-se sobre a paliçada, mas
tudo em vão. Incessante era o fogo das carabinas valdenses, e os soldados
acharam impossível passar além dos maciços toros de árvores que lhes
barravam o caminho.
Quando o inimigo vacilou, um bando de valdenses precipitou-se do forte,
espadas desembainhadas, e sob seus terríveis assaltos de cima, quebrou-se a
linha francesa, e os soldados fugiram aclive abaixo, para o vale. Muito poucos
dos 500 homens que formaram a primeira onda de assalto chegaram ao vale a
salvo. Dos valdenses, nem um havia sido morto, nem mesmo ferido.
Catinat compreendeu que devia formar novo plano. Aquêles grandes
toros precisavam ser destruídos. A única maneira de o efetuar, considerou ele,
eram seus canhões. Do outro lado da garganta, erguia-se um pedaço de
terreno plano. Para ali suspenderam os soldados os canhões um após outro.
Foram precisas duas semanas ao general francês para colocar seus canhões
exatamente onde ele os queria. Sentiu-se então pronto para outra tentativa de
conquistar os valdenses. Desta vez, estava certo, não poderia falhar, e estaria
em breve capaz de fazer funcionar suas cordas.
Na manhã de 14 de maio de 1690, os canhões franceses abriram fogo
na fortaleza. O dia inteiro vomitaram através da garganta uma torrente de balas
contra as defesas do forte. As montanhas ecoavam um som nunca dantes
ouvido naquelas regiões solitárias. Ao cair da noite, as antes sólidas paredes
caíram em ruína; nada havia que impedisse o inimigo de marchar direito para
cima, à fortaleza.
Catinat determinou que os valdenses não deviam escapar. Ordenou
grandes fogueiras naquela noite para cima e para baixo no vale. Elas

82
iluminavam as paredes do passo de maneira que os valdenses não-se
pudessem escapulir da fortaleza pelas montanhas sem ser vistos.
Os homens na arruinada e escura fortaleza enviaram muitas súplicas a
Deus aquela noite. Deus ouviu e atendeu-os à Sua própria maneira. Por volta
das dez horas, as sentinelas nos muros da fortaleza notaram pela primeira vez
que se estava formando neblina em torno dos picos das montanhas próximas.
Essa notícia chegou a Arnaud e a seus homens no interior, e eles saíram a ver.
Muitas vêzes haviam eles escutado a história de como, séculos atrás, Deus Se
servira de um lençol de cerração para cobrir e proteger seus antepassados,
ameaçados de destruição. Aconteceria isso outra vez? Ansiosamente espe-
ravam eles enquanto os lanosos bulcões começaram a descer mais e mais
abaixo da montanha. A neblina espalhou-se de penhasco em penhasco, e
então, dentro de poucos momentos, caiu na garganta do rio San Martin,
fechando-o em completa escuridão. Olhando para fora da fortaleza, os
valdenses não viram uma única fogueira. Restava, porém, ainda, a in-
terrogação — poderiam eles escapar? E se assim fosse, onde ir? Por trás
dêles erguiam-se penhascos que homem algum poderia escalar. Arnaud reuniu
todo o seu grupo, e perguntou se não havia alguém que conhecesse a região
bastante para tentar guiá-los para fora dali. O capitão Poulat, natural do vale,
falou. Ele conhecia uma escarpa aguçada que conduzia para lá das linhas do
inimigo. Sabendo que sua única esperança jazia em escapar de La Balsiglia,
Arnaud e seus homens puseram sua vida nas mãos do guia.
Sem ruído, marchando em fila única, seguiram os homens a Poulat. Em muitos
lugares, tiveram eles de avançar sobre as mãos e os joelhos. Na densa
cerração, não viam senão algumas dezenas de centímetros adiante. Ao longe,
embaixo, ouviam eles o rumor das águas enquanto o rio se arremessava nos
penedos e cachoeiras. Anos mais tarde, muitos deles foram a esse lugar a fim
de seguir a rota de sua escapada naquela noite.
Enquanto olhavam ao trilho que haviam seguido, estremeceram, vendo
que qualquer homem que tentasse passar por ele mesmo à luz do dia, estaria
arriscando sua vida.
Sempre para baixo, foram eles em direção do rio, por todo o caminho
escudados pela cerração amiga. Rastejando para além das linhas francesas,
ouviram os soldados rindo, cantando, e jactanciando-se da gloriosa vitória que
haviam de ganhar na manhã seguinte. Ao fundo da garganta, atravessaram a
83
corrente, e começaram a escalar a encosta da montanha do lado mais distante.
A floresta era escura. Muitas vêzes tropeçaram e caíram, mas não diziam uma
palavra enquanto escalavam mais e mais alto, buscando um passo que os
levasse acima e abaixo para o próximo vale.
Pela manhã o Sol dissipou a neblina. Catinat comandou seu exército, e
ordenou um grande assalto ao longo de toda a linha. Ao se aproximarem os
soldados da arruinada fortaleza, ergueram um grande grito de vitória,
esperando a cada momento serem assaltados por homens lutando pela vida.
Não encontraram, no entanto, oposição alguma. Trepando nas ruínas, pe-
netraram em multidão no forte deserto. Olharam por toda parte, mas não viram
inimigo algum. Fitando as montanhas que se erguiam por todos os lados ao
redor dos vales, um soldado apontou de súbito para cima. Muito além, quase
no cimo, viram eles uma pequena linha de pontos negros em movimento.
Escapara-lhes a prêsa! As cordas não seriam necessárias naquele dia.
Por três dias marcharam os valdenses, gastando muito de seu tempo à
procura de alimento. Quando chegaram a Pra dei Tor, no vale de Angrogna,
foram surpreendidos ao encontrar deputados à sua espera com uma oferta de
paz do duque de Sabóia!
Vítor Amadeu II ficara cansado de receber ordens do rei de França.
Guilherme III, rei da Inglaterra, estivera a insistir com ele por algum tempo para
deixar o lado de Luiz e unir-se à Inglaterra, Holanda e o império austríaco e
alguns dos Estados alemães em fazer guerra ao orgulhoso rei de França.
Quando
estava se resolvendo a fazer isso, o duque lembrou-se de súbito de que os
valdenses tinham em seu poder muitos passos de montanhas. Caso ele
desejasse que essas portas estivessem fechadas e os franceses mantidos do
lado de lá, seria sábio que fizesse as pazes com seu povo da montanha.
A despeito de todo mal que o duque de Sabóia lhes ocasionara, os
valdenses sentiam que ele era ainda de direito seu príncipe. Resolveram
aceitar-lhe o oferecimento. Catinat com suas forças retirou-se então para o
território francês.
Os 400 homens de Arnaud volveram então pelas montanhas acima em
busca do remanescente de seu povo. Apenas metade dos homens que haviam
tão esperançosamente partido no verão anterior voltou à Suíça. O resto
morrera na luta. Não obstante, aquêles que haviam sobrevivido conduziram
84
alegremente o resto dos valdenses através dos Alpes para seus vales natais.
Desta vez, caminharam pelas estradas reais para além daqueles fortes que
uma vez haviam ameaçado destruí-los. E lá se foram de regresso a seus
arruinados vales, para iniciar novamente a desanimadora tarefa de reconstruir
as derribadas habitações, replantar pomares e lavouras, e restaurar as igrejas.
Generosas dádivas vieram da Holanda, da Inglaterra e da Alemanha, e
especialmente dos suíços, entre os quais eles haviam encontrado um lar
hospitaleiro durante os anos de exílio.
Uma vez ainda ergueram-se dos vales os sons de cânticos. Mais uma
vez pais, -sentados ao pé de suas casinhas de campo ao entardecer, enquanto
o Sol poente iluminava os gloriosos picos nevados, chamavam os filhos para
ao pé de si a fim de repetirem juntos as palavras de fé e confiança da pena do
sal- mista na antigüidade:
"Deus é nosso refúgio e fortaleza, Socorro bem presente na angústia

85
16. JOGADOS NOS VAGALHÕES DA GUERRA

Os valdenses voltaram aos vales em 1690 incomparavelmente mais


pobres do que eram antes da perseguição feroz que caíra sobre eles cinco
anos antes. De 15.000, seu número fora reduzido a menos de 3.000. Suas
habitações e campos de lavoura jaziam devastados. Alguns de seus melhores
pastores haviam perecido nas prisões de Turim. Conquanto reconhecidos pela
maneira miraculosa por que Deus os trouxera de volta à sua pátria e ao lar,
choravam ainda por seus muitos amigos e queridos mortos no decorrer dos
cinco anos de luta.
Mais uma vez os países protestantes da Europa manifestaram seu
interesse pelos bravos valdenses. Vinha do rei Guilherme de Inglaterra uma
importância regular de dinheiro a cada ano, para pagamento dos pastores,
costume que o governo inglês continuou por mais de um século. Igualmente a
Holanda levantava fundos para eles, ao mesmo tempo que lhes enviava gado.
Universidades na Suíça, de boa vontade educavam gratuitamente estudantes
valdenses.
Em 1690 o duque de Sabóia entregou aos valdenses o controle da
fortaleza que fora construída nos passos alpinos, que dava passagem da
França para a Itália. Ele procurou por todos os modos possíveis desfazer o
grande dano causado a esse povo. Restituiu-lhes mesmo todos os seus
direitos e privilégios antigos, inclusive o de adorar a Deus segundo o seu
coração.
Entrementes, o rei de França ainda estava perseguindo seus súditos
huguenotes, os quais continuavam a fugir aos milhares de seu país. Os
valdenses acolhiam esses fugitivos, cuja habilidade e atividade se
demonstraram de grande auxílio na reconstrução dos vales. Entre eles foram
alguns dos melhores pastores das igrejas protestantes francesas. Os vales
tinham doze distritos pastorais por volta de 1692, e seus serviços religiosos
haviam sido restaurados.
Muitos dos infortúnios dos valdenses podem ser atribuídos à geografia
de seu país. Situados entre a França e Sabóia, ambos fortemente católicos, os
vales valdenses prosperavam quando esses dois poderes se guerreavam, e
sofriam quando eles se aliavam.

86
Em 1696, Vítor Amadeu II uniu-se mais uma vez ao lado de Luiz XIV, a
quem prometeu expulsar de seus domínios todos os protestantes franceses
fugitivos. Isto significava que o bravo Arnaud, que dirigira a volta gloriosa seis
anos antes, tinha de ir para o exílio, pois seu lugar de nascimento era um vale
do lado francês dos Alpes. O duque ordenou então aos vários milhares de
huguenotes que tão recentemente havia acolhido, a deixarem seus novos lares
dentro de trinta dias. Apenas com os bens que lhes era possível carregar, esse
bando de exilados tomou o caminho, em busca de um lugar de refúgio.
Passando pelos densamente povoados cantões suíços, chegaram os
huguenotes à Alemanha, onde foram bem recebidos, sendo-lhes dados lugares
para morar. Henrique Arnaud foi com eles como seu pastor e mestre-escola.
Guilherme III convidou-os a ir a Inglaterra, prometendo fazer Arnaud oficial no
exército real, porém, ele declinou.
Nos vales, haviam novamente rompido as antigas perseguições.
Crianças eram raptadas e levadas a cidades católicas para serem ensinadas a
negar a fé de seus pais. Pesados impostos oneravam os valdenses.
Cinicamente a contínua generosidade de seus amigos protestantes em outros
países da Europa os habilitava a fazerem face a essas obrigações.
Construíam-se mosteiros e conventos em vários lugares nos vales. Frades e
freiras andavam por toda parte, pregando a fé católica. Até a despesa de
manter instituições católicas era lançada aos valdenses.
Em 1703 rompeu novamente a guerra na Europa. Julgando que com
todo o continente contra Luiz XIV, o rei francês seria seguramente derrotado,
Vítor Amadeu mudou de partido mais uma vez. Os exércitos da Inglaterra e da
Áustria ganharam muitas batalhas contra os franceses no norte, mas os
generais da França derrotaram no sul o duque de Sabóia, tomando Turim, sua
capital. Forçaram-no a retirar-se com pequeno corpo de tropas para as
profundezas dos vales em que viviam os perseguidos mas sempre leais
valdenses.
Certo dia, Penderell Durand, lavrador que residia no vale de Lucerna,
ouviu bater na porta. Ao abri-la, viu o que lhe pareceu um pobre viajante
fatigado, com um pesado fardo às costas.
— Entre! Entre, amigo. Não fique aí fora ao frio.
— Protegerá o senhor um pobre viandante? perguntou o homem
olhando nervosamente ao redor.
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— Naturalmente, respondeu Durand acenando a seu hóspede para
sentar-se. Ajudou o homem a depositar seu pesado pacote no chão.
— Não tenho nenhum desejo de ofendê-lo, mas é importante que me
responda ainda a uma pergunta. Jura-me o senhor não trair minha presença
em seu lar? Necessito descanso, de sono e de alimento.
— Um valdense nunca trai seu hóspede, respondeu bondosamente
Durand, ainda perplexo quanto a quem seria seu visitante.
— Eu sou Vítor Amadeu, vosso príncipe! replicou o estranho, para
assombro de seu hospedeiro.
Os valdenses cuidaram bem do duque, fazendo tudo ao seu alcance
para dar-lhe conforto. Antes de partir, dois dias depois, Vítor presenteou seu
hospedeiro com um copo de prata, o qual a família conservou sempre como
lembrança de seu real visitante.
A onda da guerra virou, porém, trazendo livramento ao duque. Quando o
príncipe Eugênio da Áustria invadiu a Itália com seu exército vitorioso, os
valdenses escoltaram seu duque ao acampamento daquele príncipe. Juntos
trabalharam e lutaram os dois homens até expulsar os franceses da Itália e ver
a paz mais uma vez restaurada nos vales.
O duque de Sabóia desejava ajudar seus súditos valdenses, mas não
era bastante forte para resistir às exigências do papa de que toda a heresia
fosse exterminada em toda parte. Continuaram, portanto, as velhas
perseguições, e começaram muitas novas. Nenhum valdense se devia tornar
médico ou advogado, nem freqüentar universidades ou outras escolas supe-
riores. Nenhum valdense podia entrar ao serviço do govêrno. Frades e padres
andavam tão atarefados como sempre, e as crianças continuavam a
desaparecer.
A rainha Ana da Inglaterra e o rei da Prússia pleitearam ambos com o
príncipe para deixar de maltratar seus irmãos protestantes. O duque mandou
uma resposta formal em que prometia 'conservar e proteger os valdenses e
seus filhos, e sua posteridade em todos os seus direitos e privilégios, bem
como no que se referia a suas habitações, negócios e no exercício de sua
religião para todos os fins."
Êsse compromisso serviu por algum tempo. Depois, quando a rainha
Ana morreu, o papa mandou ao duque uma nota mostrando-lhe que ele não

88
precisava manter sua promessa a favor dos valdenses. Em vista disso,
voltaram por outro século as antigas perturbações.
Grandes mudanças ocorreram depois do rompimento da Revolução
Francesa de 1789. A França deixou de ser a protetora e defensora da igreja
católica na Europa. Não mais empregou ela seus exércitos para esmagar os
vizinhos protestantes. O governo francês subverteu a igreja católica na França,
apoderou-se de suas propriedades, e aprisionou milhares de padres, muitos
dos quais foram mortos.
O povo julgou o rei de França e muitos de seus príncipes e nobres como
inimigos do Estado, executou-os, declarando a França república. Reis de
outros países da Europa ficaram atemorizados, não viesse seu povo a seguir o
exemplo da França. Em 1793, a Inglaterra, a Áustria e a Prússia declararam
guerra à França. O duque de Sabóia a eles se uniu. Tornou-se muito
importante que os passos que conduziam da França ao Piemonte pelos vales
valdenses fossem conservados para manter os exércitos franceses fora da
Itália.
De todos os fortes que guardavam os passos, o mais importante era o
sòlidamente fortificado posto de observação de Mirabouc. Seus canhões
estratègicamente colocados, eram garantia de que nenhum exército, por mais
forte que fosse, o poderia capturar, nem poderia nenhum inimigo passar por ali
sem ser destruído. Quando os franceses chegaram a esse des- filadeiro e
exigiram a entrega do forte, o covarde comandante piemontês decidiu render-
se. Um único soldado no forte protestou, e esse era o único valdense ao
serviço do duque naquela guarnição. Ninguém sabe se os franceses
subornaram o comandante, ou exatamente por que agiu ele daquela maneira; o
fato é que ele entregou o forte, e os franceses penetraram.
Os franceses permitiram que a guarnição piemontesa e seu comandante
voltassem para Turim. Ali, um tribunal de investigação achou o comandante
culpado de corvardia, e condenou-o a ser fuzilado. Observou a ação do
soldado valdense, e elogiou-o altamente por seu esforço para salvar o forte.
O povo do Piemonte ficou indignado ante a entrega do forte. Uma vez
que ele ficava à testa de um dos vales valdenses, alguém espalhou um falso
boato de que sua queda fora ocasionada pela traição de um valdense.
Floresceu a suspeita, e circularam falsos rumores que o povo nunca haveria
acreditado em tempo de paz,
89
Começaram a reunir-se pequenos grupos de homens desatinados, e faziam
indagações. Por que haviam esses hereges de continuar a seguir sua religião
tão livremente e controlar os passos que abriam assim aos inimigos de seu
país? Quanto mais falavam, tanto mais furiosos ficavam. Líderes fanáticos
abanavam as chamas, e por fim resolveram massacrar todos os valdenses que
residiam em La Torre e no vale de Lucerna.
Antes de se separarem, esses homens concordaram em que tudo devia
ser mantido em segredo absoluto, porquanto não desejavam envolver o
governo do duque. Setecentos homens determinados uniram-se à conspiração,
fizeram provisão de armas, e planejaram os detalhes do vindouro massacre.
Pensavam que a conspiração seria fácil de levar a cabo porque, praticamente,
todos os homens valdenses estavam ausentes na fronteira, com o exército,
mantendo outros passos contra os franceses. Concordaram em que o sinal
para o massacre seria dado em La Torre, à meia-noite. do dia 15 de maio,
1793.
A notícia dessa conspiração chegou aos ouvidos de um padre católico
romano, que morava em Lucerna. A idéia de matar inocentes mulheres e
crianças enquanto os homens combatiam na defesa de seu país, encheu o
padre de horror. Procurou o capitão Odeti, comandante em La Torre, e revelou-
lhe todo detalhe do trama, inclusive a data do planejado ataque. Odeti era
católico também, mas como homem cristão de honra, sentiu-se igualmente
horrorizado. Determinou salvar os valdenses de La Torre e Lucerna.
Reuniu primeiro todas as mulheres valdenses, e mostrou- lhes o grande
perigo em que se encontravam. Recomendou-lhes que não saíssem de casa,
particularmente naquela noite. Enviou então uma mensagem ao comandante
do exército do duque em que se encontravam os valdenses combatendo,
insistindo em que fosse enviado imediatamente um contingente de homens a
La Torre para impedir o massacre. As mulheres protestantes de La Torre foram
aconselhadas a levantar barricadas, reunir pedras, e fazer tudo quanto
pudessem para fortalecer o mais possível seus lares.
Os primeiros mensageiros chegaram ao quartel-general do general
Godin, bravo oficial suíço à testa do regimento valdense.
— Simples pânico! declarou ele. Porque algumas mulheres e
crianças ficaram em ataques de medo por alguns fantasmas de sua

90
imaginação, precisam ter pais e maridos e irmãos fora de seus postos para
conjurar o espírito.
O mensageiro, porém, recusou-se a ser despedido assim levemente.
— Tão certo como vós tendes o comando deste exército, é certo que
os súditos protestantes de sua majestade vão cair vitimados por um trama, a
menos que o senhor se interponha, ou se opere diretamente um milagre do
Céu para impedir a catástrofe.
— Impossível! exclamou o general. A natureza humana não é tão
depravada a esse ponto.
— Ah, isso era o que o povo pensava antes do massacre da noite de
S. Bartolomeu em Paris, replicou o mensageiro, com mais ênfase que nunca.
Não preciso multiplicar exemplos. Só lhe repito que o perigo é grande e não
poderá ser evitado a menos que o seja pelo poderoso braço do governo.
— Quando vai isso ter lugar perguntou ele ao mensageiro.
— Hoje à noite!
— Ai, poderemos já chegar demasiado tarde, respondeu o co-
mandante, convencido afinal da veracidade da notícia.
Godin mandou imediatamente chamar os oficiais do regimento valdense
que servia sob seu comando, e esboçou brevemente os perigos que
ameaçavam suas mulheres e filhos em La Torre. Apressando-se, poderiam
vencer a distância até àquela cidade antes da hora fatal da meia-noite.
Não era preciso dizer àqueles homens que se apressassem. Correram
pelo caminho, através dos passos, trepando nas rochas, vadeando correntes,
não se detendo nunca nem por um momento. Mesmo enquanto se
apressavam, mandavam ao Céu suas orações, clamando a Deus que lhes
salvasse as famílias da espada de seus inimigos.
O Sol se pôs atrás das montanhas, e a escuridão cobriu os vales. O
povo de La Torre passou as horas anteriores à meia- noite em terror. Por volta
das nove horas, grande tempestade rompeu sobre os vales. A chuva caiu em
torrentes. Logo tiveram os soldados de vadear correntes com água acima dos
joelhos. Os vividos clarões dos relâmpagos, se bem que mostrando
momentaneamente o caminho que buscavam seguir, ofuscavam-lhes os olhos,
tornando depois mais negra ainda a escuridão.
Se bem que a tempestade retardasse a marcha dos soldados valdenses,
não os deteve. Entretanto, a violência dos elementos aterrou os quase-
91
assassinos. Muitos deles estavam em vilas vizinhas à espera de que a
tempestade cessasse.
Aproximava-se a meia-noite quando os valdenses avistaram Nas distantes
luzes de La Torre brilhando através da neblina. Haveriam chegado demasiado
tarde? Encontraram então mulheres da cidade que se apressavam ao seu
encontro.
— Pressa! oh, pressa! instavam elas com os soldados, que não
necessitavam de incitação. Tão rápido quanto os fatigados pés os podiam
levar, avançaram eles em direção daquelas luzes.
Ao entrarem pelas portas de La Torre, ouviram o sino do convento
começar a soar. Os valdenses arremessaram-se pelas ruas, prontos a ferir
quem quer que buscasse penetrar em seus lares, mas não viram ninguém.
As felizes novas: — Eles chegaram! Eles chegaram! correram de casa
em casa, enquanto as esposas e filhos derramavam-se pelas ruas para saudar
seus libertadores. Os conjurados que estavam dentro das portas de La Torre,
testemunharam a chegada dos soldados valdenses, e conservaram-se
prudentemente fora de vistas.
No dia seguinte, homens, mulheres e crianças reuniram-se na igreja
valdense para erguer louvores a Deus, que os salvara na hora do perigo.

92
17. OS ÚLTIMOS MARCHAM NA VANGUARDA

Por longos anos continuaram a erguer-se e abaixar-se as vagas da


guerra em torno das fronteiras dos vales valdenses. O exército francês sob as
ordens de Napoleão, foi bem sucedido na conquista de quase toda a Itália.
Dois anos mais tarde, porém, quando Napoleão levou seu exército ao Egito,
outro grupo de grandes nações uniu-se para combater a França. Uma dessas
nações, a Rússia, derrotou um exército francês na Itália. O exército vencido,
preparando-se para a retirada de volta à pátria através dos Alpes, viu que tinha
300 homens malferidos que não lhes seria possível levar de volta à França.
Deixaram esses homens com os valdenses de Bóbio.
Roistang, o bondoso pastor valdense daquela cidade, arranjou tudo
quanto lhe foi possível para ajudar os franceses. De sua própria casa forneceu
ele um bezerro e vinte e cinco pães, ao passo que sua esposa rasgou lençóis
da família e fez ligaduras para os soldados feridos. Uma vez que apenas
algumas famílias moravam no vale, não havia comida suficiente para estranhos
e valdenses através do inverno.
O pastor reuniu seu povo, e considerou o problema com eles.
Jamais negou um valdense repartir seu pão com um estrangeiro, quer
amigo, quer inimigo, salientou ele. Todavia, podemos nós tirar o pão de nossos
filhos c dá-lo a esses franceses? perguntou.
Ergueu-se um ancião, e estendendo as mãos ressequidas para os
companheiros de vila, falou-lhes:
— Piores têm sido nossas perspectivas. Nossos pais — sob cir-
cunstâncias em vista das quais as nossas parecem prósperas — tiveram de
travar muitas duras batalhas quando seu abrigo era a caverna, sua comida as
amoras de inverno, as castanhas caídas, ou dispersas espigas de trigo que
colhiam de sob a profunda neve. Todavia tudo isso — fome, sede, fadiga, frio e
contínua vigilância, suportaram eles com plena e inteira confiança de que
aquilo que haviam empreendido como dever a eles ordenado, o Supremo
Diretor dos acontecimentos habilitá-los-ia' a sofrer. Uma inteira confiança em
Deus lança fora o temor. Cumpramos fielmente nosso dever como humildes
crentes em Sua soberana providência, e calmos aguardemos os resultados.
"Lembremo- nos daqueles que se encontram em cadeias como estando em

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cadeias com eles; e daqueles que sofrem adversidade, como o sofrendo nós
mesmos também no corpo.
Essas considerações prosseguiram. Alguns salientaram que pela
metade do inverno, quando nenhum auxílio poderia ser esperado de qualquer
direção, estariam exaustas todas as provisões, e os soldados e seus
hospedeiros pereceriam juntamente à fome.
— Concordo, disse o pastor, que é nosso dever ministrar aos feridos.
Mas por que não restituir todo o destacamento a seu país natal?
— Restituí-los? exclamou o povo. Mas como? Sem meio algum de
transporte? Sem cavalos, nem mulas, nem carros? Carregar 300 homens
montanha acima, em profunda neve, sob iminentes perigos?
— É verdade, continuou o pastor, mas podemos restituí-los a sua
própria fronteira. Conjuguemos à boa causa a energia de nosso vale;
empregue-se toda mão na construção de lixeiras; depositemos nelas os
doentes inválidos, bem protegidos do frio, e nossa própria fortaleza fará o resto.
— O passo, prosseguiu o pastor, se bem que terrível nesta estação para
os tímidos, nunca nos deveria intimidar em tão sagrado dever. Lembrai-vos de
que o Deus que conduziu nosso povo através dos temíveis Alpes e outra vez
nos trouxe de volta, será ainda o vigilante guardião de Seus filhos. Resolvei,
irmãos meus! Não temos senão uma só alternativa — e da maneira por que
decidirmos, dependerá a vida de muitos esta noite.
Um murmúrio de aprovação percorreu a assistência. Então,
responderam juntos: — Estamos resolvidos!
Todos na vila começaram a preparar-se para a temível viagem.
Contaram seus planos aos franceses e, depois puseram-se a fazer as lixeiras.
Os franceses não podiam crer que fosse possível a alguém transportá-los
através das montanhas durante aquela estação, quando a neve cobria
profunda os desfiladeiros. Ao colocarem-nos, porém, os valdenses nas lixeiras,
comoveram-se até às lágrimas, e rogaram as bênçãos do Céu sobre seus
amigos, os valdenses.
Foi na verdade uma horrível viagem. Seguiram estreitas veredas,
atravessaram torrentes espumejantes, e passaram sob escarpada montanha;
olhavam para o alto, e oravam a Deus que segurasse a neve no lugar, e
impedisse a terrível avalanche. Chegaram afinal à cumiada e, atravessando

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espessas florestas de faia, começaram a descer no lado francês das
montanhas.
Rapidamente espalhou-se pelos vales franceses a notícia de sua vinda.
Não tardou, esposas e filhos aglomeraram-se ao redor daqueles a quem há
muito consideravam perdidos. Os feridos soldados franceses louvavam os
valdenses por tudo quanto haviam feito por eles. Meteram-lhes nas mãos
generosos pacotes de mantimento para levarem a suas famílias. Então, lá
foram os valdenses penosamente montanha acima, ansiosos de volver ao lar.
Triste é dizer, no entanto: quando o duque de Sabóia ouviu falar do
incidente, preferiu pensar que os valdenses estavam ansiosos de ajudar seus
inimigos, os franceses. Por causa de seu bondoso feito, acusou-os de
deslealdade.
Ao voltar do Egito, tornou-se Napoleão o soberano da França.
Atravessou os Alpes com seu exército, derrotou os austríacos e incorporou o
território valdense à França, tornando os valdenses súditos seus. Jamais tivera
o povo dos vales fruído tal paz e prosperidade como a que tiveram durante os
anos em que foram súditos do imperador francês. Adoravam a Deus segundo
lhes aprazia, sem restrições. Então, católicos e protestantes fruíam exatamente
os mesmos direitos e privilégios.
Em 1805, Napoleão visitou Turim. Recebeu ali um grupo de delegados
de vários departamentos do norte da Itália. Entre eles, encontrava-se Peyrani,
pastor valdense, bem como moderador de sua igreja. Não se sabe como
Napoleão reconheceu o pastor protestante, mas adiantando-se para ele,
dirigiu- lhe algumas perguntas.
— É o senhor um dos clérigos protestantes?
— Sim, senhor, e moderador da igreja valdense.
— Os senhores são cismáticos da igreja romana?
— Não cismáticos, espero, mas separatistas por escrúpulos de
consciência, com bases que consideramos escriturísticas.
— Tendes alguns bravos entre vós; mas vossas montanhas são a
melhor defesa que tendes. César encontrou alguma dificuldade em atravessar
os vossos desfiladeiros com cinco legiões. É verdade o que ouço acerca da
volta gloriosa de Arnaud?
— Sim, senhor, crendo nosso povo que foi ajudado pela Providência.
— Há quanto tempo tendes formado uma igreja independente?
95
— Desde o tempo de Cláudio, bispo de Turim, por volta do ano 820.
— Que salário tem o vosso clero?
— Não se pode dizer que tenhamos qualquer salário fixo atualmente.
Napoleão perguntou então se eles não haviam uma vez recebido salário
da Inglaterra.
Peyrani concordou que era verdade, mas explicou que os valdenses,
sendo agora cidadãos da França, com a qual a Inglaterra se encontrava em
guerra, não mais recebiam o dinheiro.
Napoleão sugeriu que o pastor elaborasse um memorial quanto à igreja
valdense e lho enviasse a Paris. Recebendo isto, o imperador fez arranjos para
que fosse pago aos pastores protestantes o mesmo salário que era recebido
pelos clérigos católicos de seu país.
Dez anos mais tarde o império de Napoleão jazia em ruínas. Ele fora
exilado para Sta. Helena, mas os valdenses nutriam- lhe carinhosamente a
memória em virtude da liberdade que lhes havia concedido.
No congresso de Viena realizado depois da queda de Napoleão,
resolveram as grandes nações que os valdenses deviam ser mais uma vez
restaurados ao reino do Piemonte. Lembrando-se da aflição que haviam
suportado nas mãos dos anteriores duque de Sabóia, os valdenses sentiram-se
desassossegados acerca dessa decisão.
No esforço de conservar a liberdade que haviam fruído no império
francês, os valdenses redigiram uma petição rogando que não houvesse
mudança em seus direitos religiosos. Pediram mesmo que uma promessa
assegurando-lhes essa liberdade fosse inserida no novo tratado. Colocaram
essa petição nas mãos do duque de Wellington. Infelizmente nada foi feito a
esse respeito, e em breve se encontraram os valdenses mais uma vez
inteiramente à mercê do duque de Sabóia. Uma vez que o duque era
violentamente antifrancês, não é de admirar que ele decidisse não mostrar
favor algum a quaisquer anteriores súditos de Napoleão.
Assim veio a suceder que todas as suas tribulações anteriores
voltassem, agora intensificadas. Os padres enxameavam pelos vales
valdenses. Reconstruíram-se mosteiros e conventos. Desapareciam mais uma
vez crianças, se bem que o duque tomasse medidas pelas quais os pais tinham
permissão de vê-las, uma vez que não fizessem tentativas de reconquistá-las
da religião católica.
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Trinta anos de intermitentes perseguições se seguiram. Depois, em
1848, rompeu a revolução em muitas partes da Europa. O duque de Sabóia
achou que era chegado o tempo de libertar seus súditos protestantes. A 24 de
fevereiro emitiu ele um edito garantindo aos valdenses igualdade de direitos
com todos os outros súditos seus, e prometendo tolerância religiosa. As boas
novas chegaram rapidamente aos habitantes dos vales. O povo aglomerou-se
nas igrejas, em ação de graças a Deus pela libertação do temor.
A proclamação quanto aos valdenses era apenas parte de uma nova
constituição que o rei deu a todos os seus súditos, assegurando-lhes parte
mais ampla no govêrno. Houve então grande parada no Campo de Marte em
Turim, da qual foram convidados os valdenses a participar.
Seiscentos protestantes dos vales, tendo à testa dez pastores,
atenderam ao convite. Ao chegarem ao campo da parada, eles foram saudados
pelos espectadores com aclamações: "Vivam nossos irmãos dos vales!"
Resolveu a comissão encarregada que os valdenses marchassem à frente do
desfile.
— Por longo tempo têm eles sido os últimos! Pelo menos uma vez serão
os primeiros. E à frente do desfile marcharam eles, sendo portanto os primeiros
a saudar o rei, Carlos Alberto, que sentado em plataforma, aguardava seus
súditos. Aos longamente combatidos valdenses, paz viera enfim.
Os valdenses vivem ainda em seus antigos vales. Seus ancestrais
combateram sozinhos por muitos séculos para conservar acesa a chama da
verdade evangélica. Fulgura hoje o registro de sua vida como um monumento
de fidelidade a despeito de perigo, de destruição e da própria morte; exemplo
inspirador a todos os cristãos que ora empunham a tocha do evangelho,
fazendo resplandecer as boas novas da salvação através do mundo.

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