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doutrina do

santuário

ARTIGOS TRADUZIDOS

SEMINÁRIO ADVENTISTA LATINO AMERICANO DE TEOLOGIA

UNASP 2007

Material originalmente preparado para a disciplina


Doutrina do Santuário
ministrada pelo Dr. William H. Shea em 1994
2

SUMÁRIO

1. REEXAME DO „EREB BŌQER DE DANIEL 8:14 .................................................................... 5


2. IMPORTÂNCIA DA LINGUAGEM CULTUAL EM DANIEL 8:9-14 ........................................ 12
2.1. ESBOÇO DO ARTIGO .................................................................................................... 13
2.2. INTRODUÇÃO ................................................................................................................ 13
2.3. TERMINOLOGIA CULTUAL ........................................................................................... 14
2.3.1. Sumário Parcial ....................................................................................................... 16
2.4. SDQ NA TERMINOLOGIA CULTUAL ............................................................................ 18
2.5. SDQ EM DANIEL 8:14 .................................................................................................... 22
2.6. O DIA DA EXPIAÇÃO E DANIEL 8:14 ........................................................................... 23
CONCLUSÃO ................................................................................................................................. 25
3. FORMA LITERÁRIA E FUNÇÃO TEOLÓGICA EM LEVÍTICO ............................................. 26
3.1. ESBOÇO DO CAPITULO ............................................................................................... 28
3.2. INTRODUÇÃO ................................................................................................................ 28
3.3. CONTEÚDO TEMÁTICO DE LEVÍTICO ........................................................................ 28
3.3.1. Visão Geral: Capítulos 1-16 .................................................................................... 28
3.3.2. Visão Geral: Capítulos 17-27 .................................................................................. 31
3.4. ESTRUTURA LITERÁRIA DE LEVÍTICO (QUIASMA) ................................................... 31
3.4.1. Procedimentos Para se Determinar o Quiasma ..................................................... 32
3.4.2. Bênçãos e Maldições; Votos Dedicatórios (Capítulos 26 e 27) .............................. 36
3.5. ALGUNS VISLUMBRES TEOLÓGICOS ........................................................................ 37
3.5.1. Justificação/Santificação ......................................................................................... 37
3.5.2. Dia da Expiação: Centro Estrutural e Temático de Levítico ................................... 39
3.5.3. Estrutura Literária e Transferência do Pecado ao Santuário.................................. 39
3.5.4. Comparação de Ofertas Pelo Pecado Diárias e Anuais (Dia da Expiação) (Levítico 4 e 16)... 40
3.5.5. “Ofertas Pelo Pecado” - Tradução Sugestiva ......................................................... 44
3.5.6. Perdão Pessoal e Dia da Expiação em Perspectiva............................................... 49
CONCLUSÃO ................................................................................................................................. 49
4. IMPORTÂNCIA TEOLÓGICA DO JUÍZO PRÉ-ADVENTO ................................................... 51
4.1. INTRODUÇÃO ................................................................................................................ 51
5. JUSTIFICAÇÃO E JULGAMENTO......................................................................................... 57
5.1. JUSTIFICAÇÃO PELA FÉ / JULGAMENTO SEGUNDO AS OBRAS ........................... 57
5.2. ESBOÇO DA SEÇÃO ..................................................................................................... 57
5.3. INTRODUÇÃO ................................................................................................................ 58
5.4. RAZÃO E REVELAÇÃO ................................................................................................. 58
5.4.1. Paulo Responde ...................................................................................................... 59
5.5. JUSTIFICAÇÃO PELA FÉ E JULGAMENTO DE ACORDO COM AS OBRAS ............. 59
5.6. JUSTIFICAÇÃO E GARANTIA ....................................................................................... 61
5.6.1. Garantia ................................................................................................................... 63
5.6.2. Deu Glória a Deus ................................................................................................... 65
5.7. JULGAMENTO E GARANTIA ......................................................................................... 66
5.7.1. Nova Conformidade com Deus ............................................................................... 67
5.7.2. Sumário das Principais Verdades dos Textos Acerca do Julgamento ................... 69
5.8. RESOLVIDA A TENSÃO ................................................................................................ 70
5.8.1. Compreensão Superficial da Perfeição ................................................................... 71
5.8.2. Sem o “Bem Está”, Ninguém Entra no Reino ......................................................... 73
5.8.3. Do “Já” ao “Ainda Não”............................................................................................ 74
5.8.4. Sob o Domínio de Cristo ......................................................................................... 75
6. CRISTO: SALVADOR E SENHOR......................................................................................... 77
6.1. ESBOÇO DA SEÇÃO ..................................................................................................... 77
6.2. INTRODUÇÃO ................................................................................................................ 77
6.3. CRISTO: SALVADOR E SENHOR ................................................................................. 78
É Necessária Completa Garantia ................................................................................................... 80
Perdão Real Conduz a Liberdade .................................................................................................. 81
O Cristo Ressurreto Governa ......................................................................................................... 83
6.4. JUÍZO PRÉ-ADVENTO ................................................................................................... 84
Propósito do Juízo Investigativo .................................................................................................... 86
3

6.5. JULGAMENTO NOS ESCRITOS DE JOÃO .................................................................. 87


Devemos Permanecer em Cristo ................................................................................................... 88
6.6. CONCLUSÕES ............................................................................................................... 89
7. TEOLOGIA DO SANTUÁRIO ................................................................................................. 91
7.1. ESBOÇO DO CAPÍTULO ............................................................................................... 92
7.2. INTRODUÇÃO ................................................................................................................ 92
7.3. INTERPRETAÇÃO ATUAL DE HEBREUS .................................................................... 93
7.3.1. Significado Para os Primeiros Leitores e Aplicações Posteriores .......................... 93
7.3.2. Contexto Externo ..................................................................................................... 94
7.3.3. Contexto Interno ...................................................................................................... 95
7.3.4. A Mensagem de Hebreus ........................................................................................ 95
7.4. O SANTUÁRIO CELESTIAL EM HEBREUS .................................................................. 96
7.4.1. Realidade do Santuário Celestial ............................................................................ 96
7.4.2. A Natureza da Realidade Celestial: Precaução ...................................................... 97
7.4.3. A Função é Mais Importante Que a Forma ............................................................. 98
7.5. O MINISTÉRIO CELESTIAL DE CRISTO EM HEBREUS ............................................. 99
7.6. O TEMA DA “DESTRA DE DEUS” ................................................................................. 99
7.7. O TEMA DO “LIVRE ACESSO” .................................................................................... 100
7.8. ALUSÕES AO “DIA DA EXPIAÇÃO” ............................................................................ 102
7.9. MINISTÉRIO EM DUAS FASES E EVENTOS NO TEMPO......................................... 104
7.9.1. Santuários Contrastados - e Não Eras ................................................................. 104
7.9.2. Questões Não Abordadas ..................................................................................... 105
7.10. CONCLUSÕES ......................................................................................................... 106
8. TA HAGIA NA EPÍSTOLA AOS HEBREUS ......................................................................... 107
9. ESTUDOS EM EXPIAÇÃO BÍBLICA II: O DIA DA EXPIAÇÃO ........................................... 114
9.1. O SACRIFÍCIO DO NOVILHO E A MANIPULAÇÃO DE SEU SANGUE..................... 115
9.2. O SACRIFÍCIO DO BODE E A MANIPULAÇÃO DE SEU SANGUE ........................... 116
9.3. O RITO DO BODE EMISSÁRIO ................................................................................... 120
10. ASPECTOS EXPIATÓRIOS NA MORTE DE CRISTO .................................................... 126
10.1. O TESTEMUNHO DOS APÓSTOLOS ..................................................................... 127
10.1.1. A Categoria de “Sacrifício” ................................................................................ 128
10.1.2. Resgate-Redenção ............................................................................................ 132
10.1.3. O Conceito de Reconciliação ............................................................................ 134
10.1.4. Conclusão Parcial .............................................................................................. 137
10.2. OS ENSINAMENTOS DE JESUS CRISTO .............................................................. 137
10.2.1. O Sofredor Servo do Senhor ............................................................................. 137
10.2.2. O “Cálice Que Devo Tomar” .............................................................................. 138
10.2.3. A Vida de Cristo Como Resgate Por Todos ...................................................... 139
10.3. OS SOFRIMENTOS DE CRISTO EM VIDA ............................................................. 140
10.3.1. A Morte de Cristo: Consumação de Sua Vida .................................................. 140
10.3.2. Cristo Sofreu em Vida........................................................................................ 140
10.3.3. O Propósito dos Sofrimentos de Cristo em Vida ............................................... 141
10.4. PONTOS DE VISTA CRISTÃOS QUANTO A EXPIAÇÃO ...................................... 142
10.4.1. As Teorias Clássicas ......................................................................................... 142
10.4.2. O Cenário Contemporâneo ............................................................................... 143
10.5. ELEMENTOS DE UMA DOUTRINA BÍBLICA DA RECONCILIAÇÃO ..................... 145
10.5.1. Expiação Como Resgate ................................................................................... 145
10.5.2. Expiação Como Ato Criativo.............................................................................. 146
10.6. CONCLUSÃO ............................................................................................................ 147
11. O SANTUÁRIO CELESTIAL - FIGURATIVO OU REAL? ................................................ 149
11.1. ESBOÇO DO ESTUDO............................................................................................. 149
11.2. A INTERPRETAÇÃO METAFÓRICA........................................................................ 153
11.2.1. A Interpretação Conceitual ................................................................................ 153
11.2.2. A Interpretação Exegética ................................................................................. 154
11.3. CRÍTICA DA INTERPRETAÇÃO METAFÓRICA ..................................................... 156
11.3.1. Aspecto Conceitual ............................................................................................ 156
11.3.2. Aspecto Exegético ............................................................................................. 157
11.4. A INTERPRETAÇÃO REALÍSTICA (LITERAL) ........................................................ 160
12. ALUSÕES AO DIA DA EXPIAÇÃO .................................................................................. 162
12.1. ESBOÇO DO ESTUDO............................................................................................. 163
4

12.2. O TRATAMENTO DE BALLENGER PARA "ALÉM DO VÉU" ................................. 165


12.2.1. O Termo Hebraico Para "Véu" (Páróket) .......................................................... 165
12.2.2. O Termo da LXX Para "Véu" (Katapetasma) .................................................... 166
12.2.3. Os Termos "Dentro do Véu" e "Fora do Véu" ................................................... 167
12.2.4. O Uso Neotestamentário do Termo "Véu" ........................................................ 167
12.2.5. Resumo da Posição de Ballenger ..................................................................... 167
12.3. ALUSÕES AO DIA DA EXPIAÇÃO EM HEBREUS ................................................. 168
12.3.1. Referências Não-Ambíguas ao Dia da Expiação .............................................. 168
12.3.2. A referência ao Dia da Expiação do VT é não-ambígua. .................................. 168
12.3.3. Possíveis Alusões ao Dia da Expiação ............................................................. 169
12.4. INTERPRETAÇÕES DAS ALUSÕES AO DIA DA EXPIAÇÃO................................ 170
12.4.1. Sob o Principio do Duplo Cumprimento ............................................................ 170
12.5. A EFICÁCIA DO SACRIFÍCIO .................................................................................. 172
12.6. CONCLUSÃO ............................................................................................................ 173
13. AS OITO VISÕES BÁSICAS DO LIVRO DE APOCALIPSE ............................................ 174
13.1. ANÁLISE DE PADRÕES DENTRO DAS OITO VISÕES ......................................... 176
13.2. RESUMO DO CONTEÚDO DAS VISÕES ............................................................... 176
13.3. AS VISÕES HISTÓRICAS ........................................................................................ 177
13.3.1. Visão I, 1:10b-3:22 ............................................................................................. 177
13.3.2. Visão II, 4:1-8:1 .................................................................................................. 177
13.3.3. Visão III, 8:2-11:18 ............................................................................................. 177
13.3.4. Visão IV, 11:19-14:20 ........................................................................................ 178
13.4. AS VISÕES ESCATOLÓGICAS DE JULGAMENTO ............................................... 179
13.4.1. Visão V, 15:1-16:17 ........................................................................................... 179
13.4.2. Visão VI, 16:18-18:24 ........................................................................................ 180
13.4.3. Visão VII, 19:1-21:4 ........................................................................................... 180
13.4.4. Visão VIII, 21:5-22:5 .......................................................................................... 181
13.5. ANALISE ADICIONAL DOS BLOCOS DE TEXTOS, A, B, C E D ........................... 181
13.6. CONCLUSÃO ............................................................................................................ 182
14. AS CENAS DE "INTRODUÇÃO-VITÓRIA" NAS VISÕES DO LIVRO DE APOCALIPSE185
14.1. RESUMO DAS "CENAS DE INTRODUÇÃO-VITÓRIA" ........................................... 185
14.2. INTRODUÇÃO À VISÃO I ......................................................................................... 185
14.2.1. Texto: Apocalipse 1:10b-20 ............................................................................... 185
14.3. INTRODUÇÃO À VISÃO II ........................................................................................ 188
14.3.1. Texto: 4:1-5:14 ................................................................................................... 188
14.4. INTRODUÇÃO À VISÃO III ....................................................................................... 189
14.4.1. Texto: 8:2-6 ........................................................................................................ 189
14.5. INTRODUÇÃO À VISÃO IV ...................................................................................... 190
14.5.1. Texto: 11:19 ....................................................................................................... 190
14.6. INTRODUÇÃO À VISÃO V ....................................................................................... 190
14.6.1. Texto: 15:1-16:1 ................................................................................................. 190
14.7. INTRODUÇÃO À VISÃO VI ...................................................................................... 191
14.7.1. Texto: 16:18-17:3a (associado a base provida por 16:17) ............................... 191
14.8. INTRODUÇÃO À VISÃO VII ..................................................................................... 192
14.8.1. Texto: 19:1-10 .................................................................................................... 192
14.9. INTRODUÇÃO À VISÃO VIII .................................................................................... 192
14.9.1. Texto: 21:5-11a (e referências aos versos 1-4 como ponto de apoio) ............. 192
14.10. ALGUMAS IMPLICAÇÕES DA ESTRUTURA .......................................................... 193
14.10.1. As Cenas Introdutórias e Suas Respectivas Seqüências Proféticas ................ 193
14.10.2. As Figuras do Templo e Seu Significado .......................................................... 194
14.10.3. Elementos Positivos e Negativos nas Cenas Introdutórias .............................. 196
14.10.4. "Movimento" na Apresentação das Figuras ...................................................... 197
14.10.5. Relação das Introduções das Visões I e VIII .................................................... 198
14.10.6. Abrangentes "Estruturas em Envelope" ............................................................ 199
14.11. SUMÁRIO E CONCLUSÃO ...................................................................................... 200
5

1. REEXAME DO „EREB BŌQER DE DANIEL 8:14


Siegfried J. Schwantes
Fonte: DRCS, vol. 2, pp. 462-474

Sinopse editorial. A tradução literal da expressão cronológica de Daniel 8:14 rezaria


assim: “E ele me disse: até tarde („ereb) manhã (bōqer) dois mil e trezentos, então...”
Os eruditos modernos comumente usam esta frase das 2300 tardes-manhãs como
referência ao tāmîd (“regular, contínuo”) sacrifício da tarde e da manhã que era oferecido
diariamente como sacrifício regular por todo o Israel. Pressupõe-se que o texto se refere a
2300 sacrifícios regulares. Uma vez que dois destes sacrifícios eram oferecidos a cada
dia, a cifra é reduzida à metade a fim de se obter aquilo que se imagina ser a extensão de
tempo envolvida, ou seja, 1150 dias.
Desta forma, a conhecida versão “Good News Bible” (TEV), publicada pela
Sociedade Bíblica Americana, interpreta a passagem da seguinte maneira. “Ouvi o outro
anjo responder: “Isto continuará durante 1.150 dias, durante os quais os sacrifícios da
tarde e da manhã não serão oferecidos”. (A interpretação reflete a tentativa popular de
tentar harmonizar as declarações de Daniel com o modelo de Antíoco IV e o período de
dessecração do templo, ocorridas entre 167 e 164 a.C). O autor deste capítulo nega a
validade de semelhante interpretação do número 2300 em Daniel 8:14 e apresenta as
seguintes observações:
1. Em primeiro lugar, não está comprovada a suposição de que a expressão
2300 tardes e manhãs se refere ao sacrifício tāmîd. Esse termo não aparece no texto.
Assim, é necessário supor que “tarde-manhã” se refira a tāmîd.
A palavra hebraica tāmîd efetivamente aparece com bastante regularidade em
conexão com o ritual do santuário. Ela é amplamente utilizada como advérbio
(“continuamente” ou “diariamente”) e como adjetivo (“contínuo, perpétuo”). Seu uso como
substantivo aparece somente no livro de Daniel, onde aparentemente está em relação
com todas as facetas regulares das atividades do primeiro compartimento do santuário.
2. Os eruditos modernos pressupõem adicionalmente que o termo tāmîd pode
ser entendido como aplicando-se a cada um dos dois sacrifícios diários públicos. Mas
esta suposição é claramente negada pelas evidências bíblicas. Quando o termo é
aplicado aos sacrifícios, descreve o duplo sacrifício como uma unidade. O „ōlat tāmîd
(“oferta queimada contínua”) era vista aparentemente como um único sacrifício (embora
apresentado em dois segmentos). Portanto, mesmo que fosse correto supor que a
expressão “tarde-manhã” devesse aplicar-se aos sacrifícios tāmîd, seria incorreto reduzir
à metade a cifra de 2300.
3. Dever-se-ia observar que a seqüência na expressão “tarde-manhã” não é a
expressão utilizada pelo idioma hebraico ao referir se ao seu sistema religioso. A ordem
segundo a qual alguém falava da unidade tāmîd de ofertas queimadas, eram “sacrifícios
da manhã e da tarde”, em que “manhã” sempre precedia “tarde”.
Efetivamente, a expressão “tarde-manhã” é uma frase aplicada a tempo, cujas
raízes mais naturais se encontram em Gênesis 1, onde a unidade de tempo de um dia é
expressa nos mesmos termos e na mesma seqüência de tarde/manhã (Gên. 1:5,8, 13, 17,
23, 31). Portanto a fraseologia de 2300 tardes e manhãs pode ser mais naturalmente
compreendida como abrangendo 2300 dias completos. (Em profecia simbólica, este
elemento de tempo deveria ser entendido como 2300 dias simbólicos.)
4. A expressão “tarde-manhã” é escrita no singular. Este fato favorece o ponto
6

de vista de que a expressão representa uma unidade de tempo, qual seja um dia completo.
5. A Septuaginta, grega, tanto na versão mais antiga quanto na de Teodósio, do
livro de Daniel, compreende a expressão como denotando “dias”. Ambas inserem a palavra
“dia” na passagem e dizem literalmente: “Até dias de tarde e manhã dois mil e trezentos...”
A expressão „ereb bōqer de Daniel 8:14 é interpretada na literatura corrente como
uma referencia aos sacrifícios matinais e vespertinos oferecidos diariamente no Templo. A
omissão de 2300 destes sacrifícios corresponderia a 1150 dias, o intervalo de tempo
durante o qual os serviços do Templo foram suspensos, em seguida à profanação do
mesmo e de seu altar por Antíoco Epifânio. Esta interpretação veio a tornar-se
praticamente normativa, de modo que os modernos eruditos raramente reservam algum
tempo para examiná-la de modo crítico.
Assim, por exemplo, A. Bentzen declara: “2300 tardes-manhãs, ou seja, 1150 dias,
é a forma peculiar de indicar o tempo do qual se está falando, uma vez que o total de
sacrifícios-tāmîd omitidos é fornecido; uma vez que cada manhã e tarde, de cada dia,
testemunhava um tāmîd, a omissão de 2300 destes sacrifícios significa 1150 dias”.1
Bentzen acrescenta a interessante observação de que esta interpretação data
retrospectivamente à época de Ephraem Syrus. A mesma explanação é repetida sem
qualquer preocupação crítica pela grande maioria dos modernos comentaristas. 2
Duas observações poderiam ser feitas aqui. Em primeiro lugar, nenhum destes
modernos comentaristas questiona a exatidão ou correção de que tāmîd efetivamente se
refira a cada um dos dois sacrifícios diários, o da manhã e o da tarde. Em segundo lugar,
a razão proposta por alguns comentaristas para o estranho fato de que “tarde” esteja a
preceder “manhã” em Daniel 8:14, não é sustentável à luz do uso bíblico comum.
Ao se examinar a primeira suposição, ou seja, que tāmîd possa referir-se a cada
um dos sacrifícios diários tomados separadamente, vale a pena observar que a palavra
tāmîd não é empregada como substantivo, exceto no livro de Daniel : 8:11, 12, 13; 11:31;
12:11. Em todo o restante do Velho Testamento o termo é muitas vezes utilizado como
advérbio, no sentido de “continuamente” ou “diariamente”, ou como adjetivo, com o
significado de “contínuo”, “perpétuo”, “regular”, etc. É empregada 26 vezes numa
construção de relação a fim de qualificar nomes, tais como “oferta queimada” “oferta de
manjares”, “fogo”, “pães da proposição”, “festa”, “compensação”, e assim por diante. Uma
vez que tāmîd é usado com maior freqüência para qualificar ofertas ou sacrifícios
queimados, a palavra “sacrifício” foi suprida por diferentes tradutores a fim de completar o
sentido do tāmîd elíptico nos cinco textos de Daniel. A Septuaginta simplesmente traduziu
tāmîd como thusia nestas passagens. Uma vez, porém, que a palavra era usada para
qualificar outros aspectos do serviço do Templo, alem dos sacrifícios, seria mais oportuno
suprir o termo “serviços” em lugar de “sacrifícios” nos mesmos textos. Quando o santuário
foi subvertido pelas atividades do “chifre pequeno”, não apenas os sacrifícios deixaram de
ser oferecidos, como ainda a totalidade dos serviços do Templo cessou.
Entretanto, ainda que a palavra “sacrifício” devesse ser suprida nos diferentes
textos de Daniel em que o termo tāmîd ocorre, dever-se-ia simultaneamente observar que
tāmîd é um termo técnico na linguagem do ritual a fim de designar o duplo sacrifício
queimado da manhã e da tarde, o qual deveria ser apresentado diariamente. A legislação
de Êxodo 29:38-42 é muito precisa. Depois de apresentar uma detalhada prescrição
quanto à oferta diária de dois cordeiros de um ano, sem qualquer mácula, o verso 42
resume todas as instruções ao dizer: “Este será o holocausto contínuo por vossas
gerações...” O texto hebraico apresenta o ponto de modo ainda mais claro: „ōlat tāmîd Ie

1
A. Bentzen, Daniel (Tubingen, 1972), p. 71.
2
J. Montgomery, The Book of Daniel (Edinburgh, 1927), p. 343; Jean Steinmann, Daniel (Paris, 1950), p.
124; N. W. Porteous, Das Danielbuch (Göttingen, 1962), p. 104; O. Plöger, Das Buch Daniel (Gütersloh,
1965), p. 127; M. Delcor, Le livre de Daniel (Paris, 1971), p. 177; André Lacocque, Le livre de Daniel (Paris,
1976), p. 49.
7

dōrotêkem. É evidente que a dupla oferta da manhã e da tarde formava uma unidade,
compreendida pela expressão „ōlat tāmîd.
O texto paralelo de Números 28:3-6 indica o mesmo uso técnico do termo: “dois
cordeiros de um ano, sem defeito, em contínuo holocausto” (verso 3), onde se lê no texto
hebraico: “ „olāh tāmîd, que provavelmente deva ser corrigido para “ „ōlat tāmîd.3 As
instruções precedentes são resumidas da seguinte forma (vs. 6): “É holocausto
contínuo...”, repetindo o termo técnico „ōlat tāmîd. Torna-se claro que na linguagem do
culto as ofertas da manhã e da tarde constituíam um só “holocausto contínuo.”
Nos versos restantes de Números 28 e no capítulo 29 pode-se ler um resumo de
todos os sacrifícios a serem oferecidos ao longo do ano religioso: os que eram
apresentados nos sábados (28:9 e 10); os das luas novas (versos 11-15); os dos sete
dias de pães asmos, festa que vinha após a celebração da Páscoa no 14º dia de Nisan
(versos 16-25); os do dia das primícias ou primeiros frutos (versos 26 a 31); os do
primeiro dia do sétimo mês (29:1-6); os do décimo dia do mesmo mês (versos 7-11); e os
que diziam respeito aos oito dias da festa dos tabernáculos (versos 12-38). Em todos os
casos os sacrifícios especiais deveriam ser oferecidos “além do holocausto contínuo”
(28:9, 15, 23, 31; 29:6, 11, 16, 19, 22, 25, 28, 31, 34 e 38) - ao todo, cerca de catorze
vezes. Sem levar em conta o número de sacrifícios a serem apresentados em ocasiões
de festas, o „ōlat tāmîd jamais deveria ser suspenso. A partir do contexto também se torna
claro que a expressão „ōlat tāmîd envolve o duplo holocausto da manhã e da tarde, sendo
a única exceção encontrada em Números 28:23 - “Estas cousas oferecereis, além do
holocausto da manhã que é o holocausto contínuo”. Estudo cuidadoso desta última
passagem indica que provavelmente o manuscrito tenha problemas, e que o copista,
depois de escrever „ōlat habbōqer, tentou corrigir o erro acrescentando „ aser le „ōlat
hattāmîd, da formula regular. Esta exceção isolada não invalida a regra de que, neste
longo texto, „ōlat tāmîd significa tecnicamente o duplo holocausto da manhã e da tarde.
Nossa afirmação de que o tāmîd aparece como símbolo do duplo holocausto da
manhã e da tarde, à primeira vista parece ser contraditada pelo texto de Ezequiel 46:14 e
15: “Juntamente com ele/cordeiro de um ano... - vide verso 13/ prepararás manhã após
manhã uma oferta de manjares... Assim prepararão o cordeiro, e a oferta de manjares, e o
azeite, manhã após manhã, em holocausto contínuo”. Esta objeção poderia ser
considerada importante se pudesse observar que as ordenanças do culto apresentadas
em Ezequiel, capítulos 45 e 46, pretendiam ser detalhadas e exaustivas - em vez apenas
um esboço simples das características essenciais da nova ordem que ele vislumbrava.
John Skinner, G. A. Cooke e Georg Fohrer tomam o texto para indicar que Ezequiel
nada sabia a respeito de um holocausto da tarde.4 O argumento padrão é que no período
pré-exílico existia apenas o „olāh matinal e o minhāh vespertino. Supostamente isto é
apoiado pelo fato de o rei Acaz haver ordenado ao sacerdote Urias: “Queima no grande
altar o holocausto da manhã, como também a oferta de manjares da tarde...” (II Reis 16:15).
Por outro lado, alguns eruditos têm entendido as instruções cúlticas de Ezequiel
como representando meramente um esboço dos serviços do templo, e não como
prescrições detalhadas. Assim, Johannes Pedersen, ao comentar Ezequiel 45:13-17,
chama a atenção para a omissão de dois importantes ítens na lista de ofertas que
deveriam ser feitas, e apresenta a seguinte explanação:

Provavelmente seja em razão de o plano ser incompleto que se justifique não


serem aqui mencionados o vinho e os bovinos. Deve ser esta mesma razão a
justificativa para que não se mencione a oferta diária, exceto aquela pelo príncipe:

3
Cf. R. Kittel, Bíblia hebraica, 3ª edição.
4
John Skinner, The Book of Ezekiel (Nova Iorque, 1905), pp. 472-73; G. A. Cooke, The Book of Ezekiel
(Edinburgh, 1936), p. 511; Georg Fohrer, Ezechiel (Tübingen, 1955), p. 256
8

um cordeiro como holocausto a cada manhã, junto com produtos agrícolas é


azeite... Temos abundantes evidências de que o diário sacrifício da tarde foi,
5
efetivamente, preservado em tempos pós-exílicos.

Da mesma forma, W. Zimmerli, em seu comentário recente, expressa a opinião de


que a instrução de Ezequiel 46:13-15 é um resumo, antes que uma apresentação
completa dos serviços sacrificais:

Em vista do fato de que no período pré-exílico já eram conhecidos os sacrifícios


da manhã e da tarde, não é provável que Ezequiel 46:15 signifique uma redução
dos serviços plenos. Provavelmente seu editor tenha sido obrigado, pela revisão
do verso 13 e seguintes, e pela combinação de ambos os sacrifícios num só, a
concentrar tudo no tāmîd matutino e a descrever apenas este tāmîd. 6

Que as prescrições rituais de Ezequiel não são mais que apenas um esboço, torna-
se também evidente a partir da referência à celebração da Páscoa no capítulo 45, verso
21. Esta declaração não pode ser tomada senão como uma fugaz referência ao
conhecido ritual, longamente praticado. Diz-se de Josias que ele celebrou a Páscoa com
toda a solenidade no décimo oitavo ano de seu reinado (II Reis 23:21-23).7 Dever-se-ia
conservar em mente que na maioria dos casos Ezequiel não estava inovando, e sim
padronizando antigas práticas de acordo com um plano ideal.
Deve-se acrescentar que o texto de II Reis 16:15 tampouco exclui a possibilidade
de que um sacrifício queimado vespertino estivesse sendo oferecido. O texto faz
referência ao “holocausto do rei, e a sua oferta de manjares”, assim como ao “holocausto
de todo o povo da terra, a sua oferta de manjares, e as suas libações”. Isso torna evidente
que os serviços diários eram compostos por algo mais, mesmo nos dias de Acaz, do que
“o holocausto da manhã /e/ a oferta de manjares”. Os comentários do profeta Isaías,
contemporâneo de Acaz, sobre o cerimonialismo da época, deixa a distinta impressão de
que o número de sacrifícios oferecidos no templo, nesta oportunidade, era imenso (Isa.
1:11-13).8 Não havia falta de zelo cerimonial, e sim uma clamorosa ausência de
moralidade e racionalidade na religião que então se praticava.
Não é possível emitir opinião final sobre a validade do argumento baseado em II
Reis 16:15 antes que se defina claramente o termo minhāh.
N. H. Snaith expressou a opinião de que, com o passar do tempo, minhāh adquiriu o
sentido limitado de “oferta de grãos (cereais)”, mas que poderia também haver conservado o
sentido original de “tributo, presente.” Ele argumenta que, “em virtude disto, poderia o termo
haver sido utilizado num sentido mais amplo, ou seja, referindo-se a toda a cerimônia”.9
Como exemplo deste sentido mais amplo, Snaith refere-se ao „olāt hamminhāh de I Reis
18:29 e 36, evidentemente oferecido à tarde, e ao „olāt hamminhāh de II Reis 3:20,
obviamente oferecido pela manhã. Ele prossegue dizendo que “as duas cerimônias
mencionadas são o tāmîd de Êxodo 29:38 e seguintes e Números 28:3 e seguintes”.
Parece razoável supor que o minhāh de II Reis 3:20, oferecido pela manhã, incluía
o holocausto padrão. Por outro lado, o minhāh a que se refere I Reis 18:29 e 36
certamente incluía, entre outras coisas, o holocausto oferecido naquela tarde pelo próprio
Elias, no topo do Monte Carmelo. Se se concede este sentido mais amplo ao minhāh de II
Reis 16:15, não existe razão para se excluir a possibilidade de que um holocausto
vespertino fosse incluído na cerimônia total conhecida como minhāh.
Temos suposto - corretamente, cremos - que o termo tāmîd de Daniel 8 significa a

5
J. Pedersen, Israel: Its Life and Culture, 3/4 (Londres, 1940):352.
6
W. Zimmerli, Ezechiel (Neukirchen, 1969), p. 1175.
7
Quanto á origem antiga da Páscoa, veja R. de Vaux, Les sacrifices de l‟Ancien Testament (Paris, 1964), p. 22.
8
Cf. as observações de Miquéias, contemporâneo de Isaías, em Miquéias 6:6-8.
9
N. H. Snaith, “Sacrifices in the Old Testament”, VT 7 (1957), p. 315.
9

cerimônia de duplo holocausto, da manhã e da tarde. Os parágrafos anteriores


demonstraram que esta suposição não se invalida através de Ezequiel 46:15, ou pelo
texto freqüentemente citado de II Reis 16:15.10
As evidências providas pelos textos de Êxodo 29 e Números 28 e 29, que são
fundamentais à discussão do significado do tāmîd, deveriam precaver qualquer exegeta
imparcial diante da suposição apressada de que o hattāmîd de Daniel designa cada um
dos sacrifícios separadamente, como se os sacrifícios da manhã e da tarde fossem duas
unidades independentes. O texto de Esdras 3:3-5 é particularmente significativo no
contexto da presente discussão. Após falar da restauração do altar e da apresentação de
“holocaustos ao Senhor,de manhã e a tarde”, o verso 5 resume o diário sacrifício da
manhã e da tarde sob a expressão „olāt tāmîd, evidentemente singular.
Mais que isto, dever-se-ia observar que a palavra tāmîd, por si própria, não é
encontrada em Daniel 8:14. Simplesmente se assume a sua presença com base nas
referências a ela encontradas nos versos 11 a 13. Mas a suposição de que a fórmula
„ereb bōqer é a equivalente ao hattāmîd dos versos precedentes, ignora outro fato
fundamental da linguagem do culto, ou seja, que na descrição dos sacrifícios diários o
termo “manhã” sempre precede o termo “tarde”.
O. Plöger, por exemplo, ao comentar Daniel 8:14, segue inúmeros predecessores
ao afirmar: “Uma vez que o sacrifício era oferecido à tarde e pela manhã, isto significaria
um intervalo de 1150 dias”.11 Dever-se-ia observar, contudo, que a linguagem do ritual
sempre designa o sacrifício da manhã antes do da tarde, sem qualquer exceção. A
pesquisa do Velho Testamento produz as seguintes ilustrações: Êxodo 29:39; Levítico 6:13;
Números 28:4; II Reis 16:15; I Crônicas 16:40; 23:30; II Crônicas 2:4; 13:11; 31:3; Esdras
3:3. “Holocaustos da manhã e da tarde” tornou-se uma frase estereotipada, que
desconhece exceções na literatura bíblica. Ela também é perpetuada no período pós-
bíblico, conforme o exemplo oferecido em Esdras 5:50, onde lemos: “e eles ofereciam
sacrifícios segundo o tempo, e holocaustos ao Senhor tanto pela manhã quanto a tarde”.12
A expressão mé‟ereb „ad-bōqer é usada em Levítico 24:3, mas isto ocorre em
referência ao tempo em que as lâmpadas deveriam arder no santuário. A razão para a
seqüência tarde-manhã neste instante particular é óbvia. As lâmpadas deveriam arder
durante a noite, e não durante o dia. Comentando as cerimônias diárias do templo, J. B.
Segal salienta que “o ritual diário do templo seguia a rotina dia após dia, começando pela
manhã e terminado à tardinha”.13
Alguns estudiosos alegam que a inversão da ordem na expressão „ereb bōqer de
Daniel 8:14 reflete o uso de um novo calendário adotado pelos israelitas em seu primeiro
contato com a civilização babilônica. De acordo com R. de Vaux, por exemplo, a
introdução do calendário lunar babilônico provocou uma modificação na antiga forma
israelita de contar o dia.14 Ao passo que antes do exílio a ordem usual havia sido manhã-
tarde; no período pós-exílico a seqüência tarde-manhã veio a ser normal.Demonstrei em
outro estudo que o argumento de Vaux, baseado no uso da fórmula “dia e noite”, é
insustentável á luz da evidência oferecida pela literatura babilônica. 15 De modo geral se
10
Quanto à menção de tāmîd em Ezequiel 46:14, Zimmerli, à pagina 1168, explica-a como uma intrusão do
verso 15.
11
Plöger, página 127. Entretanto, Porteous, à página 104, é cuidadoso ao observar a ordem manhã-tarde:
“während dieses Zeitabschnittes wäre das tāmîd-Opfer 2300mal am Morgen oder Abend dargebracht worden”.
12
APOT, 1:39. De acordo com R. H. Charles, a data de Esdras poderia ser “a época tardia dos gregos”. A
expressão holokautómata tó kurió to próinon kai to deilinon de I Esdras 5:49 na Septuaginta, não contém
termos técnicos, conforme sugere Montgomery à página 343, mas simplesmente repete os termos já
empregados na Septuaginta de Êxodo 29:39.
13
J. B. Segal, “Intercalation and the Hebrew Calendar”, VT 7 (1957): 254.
14
R. de Vaux, Ancient Israel: Its Life and Institutions (Nova Iorque, 1961), p. 181.
15
S. J. Schwantes, “Did the Israelites Ever Reckon the Day from Morning to Morning?”, The Ministry, Julho
de 1977, páginas 36 a 39.
10

reconhece que na Mesopotâmia o dia era contado de tarde a tarde, o que usualmente é o
caso quando se observa um calendário lunar.16 Conseqüentemente, se de Vaux estivesse
correto, seria de esperar que na literatura babilônica a expressão “noite e dia” fosse muito
mais comum que sua forma inversa “dia e noite”. Mas um conto metódico no Épico de
Gilgamés, o protótipo sumeriano do Dilúvio, que é “A Descida de Inana ao Mundo Inferior”
e também o Épico da Criação, apresentam preponderância da formula “dia e noite”, em
vez de “noite e dia”, mostrando a proporção de 4:1.17
A partir desta pesquisa superficial da literatura babilônica torna-se óbvio que não
existe correlação entre o tipo de calendário utilizado e o uso da fórmula “dia e noite” ou seu
reverso. A preferência universal pela modalidade “dia e noite” reflete, conforme salienta
Segal, “o curso ordinário do comportamento humano. É pela manhã que o homem começa o
trabalho ativo do dia e, por esta razão, a frase presente na boca humana é „dia e noite‟”.18
Não é de surpreender, pois, que a fórmula “dia e noite” seja presenciada com muito
maior freqüência que “noite e dia” na literatura bíblica pré-exílica, independentemente do
tipo de calendário usado. Pela mesma razão é ela que prossegue sendo a mais comum
nos livros pós-exílicos. Assim, Neemias prossegue pregando “dia e noite” (Neemias 1:6).
Em seus dias estabelece-se uma guarda como proteção contra o inimigo “dia e noite”
(Neemias 4:9). Siracide, escrevendo na porção inicial do segundo século a.C., ainda fala
de “manhã até tarde” (Sir. 18:26). Judas Macabeu ordenou ao povo que clamasse ao
Senhor “dia e noite” (II Mac. 13:10). Judite é apresentada como servindo ao Deus do Céu
(Judite 11:17). A fórmula estereotipada prossegue sendo usada continuamente ate o
início da era cristã, conforme o demonstra a literatura de Qumran. 19
A linguagem do Novo Testamento aponta à mesma direção, ou seja, que o uso da
expressão estereotipada “dia e noite”, ou sua forma reversa, não guarda relação com a
forma de se computar o dia. Assim, em o Novo Testamento a fórmula nuktos kai hēmeras
(“noite e dia”) é usada oito vezes (Atos 20:31; Romanos 13:12; II Coríntios 11:25; I
Tessalonicenses 2:9; 3:10; II Tessalonicenses 3:8; I Timóteo 5:5; II Timóteo 1:3), ao passo
que a fórmula reversa hēmeras kai nuktos (“dia e noite”) é usada dez vezes (Mateus 4:2;
12:40; Lucas 18:7; Atos 9:24; 26; 7; Apocalipse 5:8; 7:15; 12:10; 14:11; 20:10). Também
em muitas passagens do Talmude a expressão “dia e noite” é empregada, conforme
salienta C. H. Borenstein.20 E mesmo em nossos dias parece ser pequena a correlação
entre linguagem e sofisticação astronômica ou do calendário.
A evidência destacada acima demonstra que a expressão „ereb bōqer de Daniel
8:14 não poderia haver derivado da linguagem do culto, onde a ordem manhã-tarde é o
padrão em todas as oportunidades. Tampouco existe evidência de que a fórmula cúltica
“manha e tarde”, aplicada aos sacrifícios, foi modificada durante o cativeiro ou nos
períodos subseqüentes. Sendo este o caso, a procedência da expressão „ereb bōqer deve
ser buscada em outra parte, que não a linguagem do culto. É inadmissível que um escritor
tão familiarizado com o jargão do culto, conforme o foi o autor do livro de Daniel, pudesse

16
Veja O. Neugebauer, The Exact Sciences in Antiquity (Harper Torchbook, editor; Nova Iorque, 1962),
página 106; A. Parker é W. H. Dubberstein, Babylonian Chronology, 626 B.C. A.D. 45 (Providence, 1956), p.
26; Jack Finegan, Handbook of the Bible Chronology (Princeton, NJ, 1964), página 8; E. J. Bickermann,
Chronology of the Ancient World (Londres, 1968), páginas 13 e 14.
17
Quanto à fórmula “dia e noite”, veja o Épico de Gilgamesh, Tablet I, 2.24, 4.21, 5.19 (ANET, pp. 74-75); a
versão em babilônia antiga do Tablet II, 2.6 (ANET, p. 77) e X, 2.5,8 (ANET, pp. 89-90); a versão assíria do
Tablet XI, linhas 126 e 199 (ANET, pp. 94-95); o protótipo sumeriano do Dilúvio, linha 203 (ANET, p.44); o
mito sumeriano da descida de Inana ao Mundo Inferior, linha 169 (ANET, p. 55); o Épico da Criação, Tablet
I, linha 50 (ANET, p. 61). Quanto à fórmula “noite e dia”, veja o Épico da Criação, Tablet I, linha 129, e
Tablet III, linhas 19 e 78 (ANET, pp. 62, 64-65).
18
Segal, p. 254.
19
LQM 14:13; veja J. van der Ploeg, “La règle de la guerre: Traduction et notes”, VT 5 (1955): 389, 415.
20
Citado por S. Zeitlin, “The Beginning of the Jewish Day”, JQR 36 (1945-46): 410. Deve-se observar que
Zeitlin favorece a hipótese de que os israelitas contavam o dia de manhã a manhã nos tempos pré-exílicos.
11

cometer um erro tão grosseiro.


O argumento do presente autor é que a pouco usual expressão „ereb bōqer de
Daniel 8:14 deve ser buscada na lapidar linguagem de Gênesis 1. Ali a expressão
padronizada way ehì-‟eréb wayehì-bōqer (“e foi a tarde e a manhã”) é usada para cada dia
da narrativa da criação (Gên. 1:5, 8, 13, 19, 23, 31). R. de Vaux está certo ao chamar a
atenção ao fato de que em Gênesis 1, „ereb assinala o final do ato criativo realizado
durante o dia, e bōqer marca o final da noite de descanso.21Parece razoável que ao
descrever os dias da criação, o destaque seja dado à atividade criativa ocorrida durante a
parte clara do dia, em vez de sobre a noite de descanso.
Sendo assim as coisas, remanesce o fato de que esta maneira de designar um dia
completo não é encontrada em qualquer outra parte do Velho Testamento, exceto em
Daniel 8:14. A prática padronizada é designar o dia de 24 horas pela fórmula “dia e noite”
ou, com freqüência muito menor, “noite e dia”. Segue-se que, se o autor de Daniel tomou
emprestada a expressão „ereb bōqer de Gênesis 1, conforme as evidências parecem
fartamente indicar, não é razoável aplicá-la a meios-dias, conforme tantas vezes se faz de
modo não crítico, e sim a dias completos.
K. Marti reivindica que a expressão „ereb bōqer de Daniel 8:14 deve ser entendida
de acordo com a expressão paralela de Daniel 8:26, onde a existência da conjunção we
entre dois substantivos indica que „ereb bōqer de 8:14 não deveria ser tomada como uma
unidade de 24 horas.22 A conclusão de Marti está aberta a questionamento, uma vez que
o simples fato de que „ereb bōqer, com ou sem conjunção we, se encontra no singular,
representa evidência de que a expressão significa uma unidade de tempo, mais
exatamente, um dia completo. Assim a entendeu a Septuaginta de Teodósio ao
acrescentar hēmerai ao texto. Em todas as demais partes de Daniel os dias, semanas ou
anos são contados sempre no plural e aparecem precedendo o numeral. Assim, na
porção hebraica do livro nós encontramos sanîm (“anos”) 3 (1:5); sanîm (“dias”) 10 (1:12,
14); sābu‟îm (“semanas”) 70, 7, 62(9:24, 25, 26); sanîm (“dias”) 1 290 (12:11 )sanîm
(“dias”) 1335 (12:12). Em contraste, a fórmula „ereb bōqer aparece no singular, tal como o
francês apēs-midi, que também é invariável.
O próprio fato de que a expressão „ereb bōqer apareça excepcionalmente no
singular, em contraste com todas as outras enumerações do livro, favorece o ponto de
vista de que ela representa uma unidade de tempo. Se se reconhecer também que a
expressão „ereb bōqer não poderia haver sido tomada emprestada da linguagem do culto,
mas que com muita probabilidade foi modelada segundo a fraseologia de Gênesis 1, é
praticamente inevitável concluir-se que ela está representando um dia completo.

Traduzido por: Helio Luiz Grellmann


Setembro de 1990.

21
De Vaux, Ancient Israel, p. 181. De Vaux usa a ordem „ereb bóqer como argumento em favor da hipótese
de que em tempos pré-exílicos o dia fosse contado de manhã a manhã. G. Von Rad, Genesis (Philadelphia,
1961), página 51, esboça a mesma conclusão: “O dia parece ser aqui contado de manhã a manhã, em
estranho contraste com sua contagem na lei do culto”. Dever-se-ia dizer, contudo, que Gênesis l não foi escrito
com o propósito de reconhecer ou estabelecer qualquer calendário particular ou método de contagem do dia.
Para um ponto de vista diferente, veja E. A. Speiser, Gênesis (Garden City, NY, 1964), p. 5.
22
K. Marti, Das Buch Daniel (Tübingen, 1901), p. 60.
Reimpresso de AUSS 16 (Outono 1978): 375-85. Usado sob permissão.
12

2. IMPORTÂNCIA DA LINGUAGEM CULTUAL EM


DANIEL 8:9-14
Angel M. Rodríguez
Fonte: DRCS, vol. 2, pp. 527-549

Sinopse editorial. Porventura é exegeticamente correto explanar Daniel 8:14


(“Até duas mil e trezentas tardes é manhãs; e o santuário será purificado”) em
conexão com o ritual do Dia da Expiação de Levítico 16? De acordo com a tese
apresentada neste artigo, isto não apenas é apropriado, como representa uma
questão de necessidade se se deseja compreender corretamente a visão.
O autor examina várias palavras e expressões presentes na passagem (8:9-
14) e que estão direta ou indiretamente relacionadas ao culto hebraico, ou seja, ao
sistema de culto do santuário dos hebreus. (Seguindo o costume de muitos eruditos,
o termo “cultual” refere-se aqui aos sistemas religiosos de adoração dos tempos
antigos. Trata-se de terminologia neutra e não se deve pretender que ele represente
qualquer sentido depreciativo).
Palavras que Daniel emprega nesta passagem, tais como “lugar” (mākôn),
“santuário” (miqdās; qōdes), “costumado sacrifício” (tāmîd), estão diretamente
relacionadas com o sistema de culto hebraico. O mesmo é especialmente verdade
quanto ao verbo “purificar” (sādak) e suas formas adjetivas. O verbo rûm e a
expressão “dele tirou” também possuem vínculos com o santuário. Sādak é usado
por Daniel em sua forma passiva simples, nisdaq (verso 14), mas sua raiz, sdq,
aparece muitas vezes nos Salmos, os “hinos” do culto hebraico. Outros termos que
aparecem na passagem são “exército” (sābā), “chifre” (qeren), “verdade” („emet) e
“transgressão” (pesa‟), podem ser vistos como indiretamente relacionados com o
sistema do santuário. Ou seja, são termos usados em conexão com o culto, embora
possam aparecem igualmente em outros contextos.
Este uso de linguagem cultual - ou do santuário - indica claramente o vinculo
existente entre esta profecia de Daniel e o culto hebraico segundo este é
apresentado em Levítico. O corolário é que terminologia similar sugere conceitos
similares. Em outras palavras, tanto a profecia quanto Levítico lidam com o conceito
e a realidade do santuário. Tendo em vista compreender o uso que Daniel faz dos
termos do santuário, deve o estudante volver-se para Levítico e para o culto
hebraico, à busca de suas explanações adequadas.
Um importante termo usado por Daniel ressalta este procedimento. Esse
termo ou expressão é tāmîd. De acordo com a profecia, o chifre pequeno ataca o
Príncipe do exército. Toma o “tāmîd” do Príncipe celestial e deita abaixo o “lugar” do
“santuário” do Príncipe. Um estudo dos usos de tāmîd no livro de Levítico revela que
o termo se achava intimamente vinculado ao ministério dos sacerdotes no primeiro
compartimento do santuário. Jamais é ele usado em conexão com o ministério do
segundo compartimento. A expressão hattāmîd (“o tāmíd”) em Daniel, portanto, deve
ser mais corretamente traduzida como “contínua, intercessão, em vez de “sacrifício
costumado” ou “sacrifício diário”, segundo comumente aparece em nossas versões.
A profecia de Daniel indica que o Príncipe do exercito é não apenas uma figura
real, como também é uma figura sacerdotal. Assim, ela chama atenção à intercessão do
Príncipe em favor de Seu povo no lugar santo do santuário celestial. É este ministério
que o chifre tenta, exitosamente interromper. Uma vez que o tāmîd se refere apenas ao
ministério do Príncipe no primeiro compartimento, a questão surge naturalmente: o que
13

dizer do trabalho sacerdotal no lugar santíssimo? Porventura o chifre pequeno afeta


também a purificação anual do santuário? Daniel 8:14 responde esta questão.
De acordo com seu uso nos Salmos, o verbo sādaq (“ser justo”) e suas
formas relacionadas, adjetivas e substantivas (no contexto da adoração praticada no
santuário) expressam as idéias de justiça, purificação e vindicação. Uma vez que
termos cultuais e ideologia predominam em Daniel 8:9-14, o autor argumenta que
estamos em liberdade de colocar um uso cultual à raiz sdq nesta passagem
(nisdaq). Conseqüentemente ele traduz nisdap como “ser declarado justo/ser
vindicado/ser purificado”. Sugere ainda que Daniel usou nisdaq, e não tāhēr (“limpar,
limpeza”) - que é outro termo cultual - porque o primeiro apresenta um significado
mais rico e mais amplo, que desta forma abrange mais adequadamente os
processos judicial e salvífico de julgamento, absolvição e salvação que se encontram
envolvidos no escopo cósmico desta profecia apocalíptica.
A expressão “o tāmîd”, utilizada nesta profecia, aponta à atividade sacerdotal do
Príncipe no lugar santo do santuário celestial. Uma vez que o santuário é a estrutura
conceitual da profecia, seria lógico que também ocorresse referência à atividade sacerdo-
tal no lugar santíssimo. Nisdaq prove esta referência (verso 14). A atividade do Dia da
Expiação era realizada no único dia do culto em que o santuário era purificado/vindicado.
A purificação/vindicação do santuário (verso 14) não é uma resposta requerida
pelo ataque do chifre. O chifre pequeno ataca, mas não contamina. A questão do
verso 13, “Até quando?”, tem a ver com o término da atividade do chifre pequeno. A
resposta é: a visão e atividade do chifre prosseguirão até o final dos 2300 dias, até ao
tempo em que o santuário será purificado, ou seja, até ao Dia da Expiação. O chifre
afetaria o trabalho do Príncipe no lugar santo, mas não seria capaz de interferir em
Seu trabalho no lugar santíssimo. Este trabalho deveria começar ao final dos 2300
dias e poria fim às tentativas do chifre em controlar o santuário.
A luz do tipo representado pelo Dia da Expiação, os processos de
vindicação/purificação que devem ocorrer no antitípico Dia da Expiação, envolverão
vários assuntos: Deus e Seu santuário serão vindicados; Seu povo será julgado e
purificado, ou seja, os genuínos receberão confirmação e o registro de seus pecados
será apagado, ao passo que os infiéis serão removidos. Satanás e as agências por
ele empregadas - às forças do mal - serão derrotados para sempre.

2.1. ESBOÇO DO ARTIGO

I. Introdução
II. Terminologia Cultual
III. Sdq na Terminologia Cultual
IV. Sdq em Daniel 8:14
V. O Dia da Expiação e Daniel 8:14
VI. Conclusão

2.2. INTRODUÇÃO

A leitura analítica do texto hebraico de Daniel 8:9-14 revela o importante fato


de que o profeta faz uso de terminologia cultual. Ou seja, ele emprega vocabulário
tomado do sistema de adoração do santuário israelita. Esta terminologia é
especialmente usada em conexão com as atividades do chifre pequeno. Nas
páginas que seguem, iremos analisar os modos cultuais de expressão na passagem
sob discussão, num esforço por clarificar a mensagem do profeta. Conforme
14

veremos, o reconhecimento da presença do vocabulário cúltico no perícope é básico


para uma melhor compreensão da visão.
Em termos de procedimento, discutiremos em primeiro lugar o significado dos
termos cultuais usados na passagem. Especial atenção será concedida ao termo
tāmîd. Finalmente, exploraremos o possível significado cultual da raiz sdq, da qual
obtemos o termo nisdaq 8:14.

2.3. TERMINOLOGIA CULTUAL

1. Lugar do Seu santuário (mekôn miqdāšô). Daniel 8:11. Tanto mekôn


(“lugar”) quanto miqdāš (“santuário”) são termos cultuais em Daniel 8:11. Mākôn (“lugar”)
é usado cerca de 17 vezes no Antigo Testamento. Em T4 dos casos, seu uso se faz em
conexão com o santuário. Em duas das outras três oportunidades o termo é utilizado em
conexão com o trono de Deus, sugerindo um relacionamento indireto com o santuário -
“Justiça e direito são o fundamento /mākôn/ do Teu trono” (Salmo 89:14; 97:2).
Mākôn é usado para designar o santuário. Sob tal uso, o termo poderia
significar “residência” ou “habitação” (Êxodo 15:17; I Reis 8:13; II Crônicas 6:2;
Isaías 18:4). A idéia de “fundamento” ou “alicerce” também pode ser expressa por
mākôn (Salmo 104:5). A palavra parece designar uma base. 23 A tradução “lugar”
poderia então ser entendida como “lugar onde se pode permanecer”. 24 Quando
mākôn é usado em relação com o santuário, pode designar o lugar onde o santuário
de Deus, terrestre (Esdras 2:68; Isaías 4:5) ou celestial (I Reis 8:39, 43, 49; II
Crônicas 6:30, 33, 39; Salmo 33:14) se encontra.
Miqdāš (“santuário”), em Daniel 8:11, é um termo muito comumente
empregado no VT para designar o santuário. Refere-se ao “santuário” como um
todo, Na maioria dos casos denota o santuário terrestre (Êxodo 25:8; Levítico 26:2;
etc.). Todavia, existem algumas passagens nas quais miqdāš se refere à habitação
de Deus no santuário celestial (Salmo 68:33-35; 96:5 e 6).25 Esse termo é também
muito utilizado a fim de identificar o santuário como objeto de ataque por parte dos
inimigos de Deus (Salmo 74:7; Isaías 63:18; Jeremias 51:51; Lamentações 1:10).
2. Santuário (qōdes), Daniel 8:13-14. Este é outro termo usado para a
designação do santuário. Pode referir-se ao santuário em sua totalidade (Êxodo
30:13; Números 3:28; I Crônicas 9:29), ao lugar santo (Êxodo 28:29; 29:30; I Reis 8:8)
ou mesmo ao lugar santíssimo (Levítico 16:2). Qōdes é a palavra usada em todo o
capítulo 16 de Levítico a fim de designar o santuário como objeto de purificação.26
3. Exército (sābā‟), Daniel 8:10-13. Este é um termo militar usado para denotar
um grupamento armado.27 É utilizado com muita freqüência em acepção cultual. De fato,
é até mesmo usado no plural como nome cultual de Deus (Yahweh sebā‟ōt, “Senhor dos

23
Veja James A. Montgomery, A Critical and Exegetical Commentary on the Book of Daniel
(Edinburgh, 1927), p. 316.
24
William L. Holladay, A Concise Hebrew and Aramaic Lexicon of the OT (Grand Rapids, 1971), p.
194, e que daqui para frente será referido como CHAL.
25
Veja Niels-Erik Andreasen, “The Heavenly Sanctuary in the Old Testament”, The Sanctuary and
the Atonement, edição de Arnold V. Wallenkampf e W. Richard Lesher (Washington, DC, 1981), p. 70;
Gerhard F. Hasel , “The „Little Horn‟, the Saints, and the Sanctuary in Daniel 8”, in The Sanctuary and
the Atonement, página 192. Veja ainda, por G. F. Hasel, neste volume, o capitulo 6, “The „Little Horn”,
the Heavenly Sanctuary, and the Time of the End: A Study of Daniel 8:9-14”.
26
Veja Hasel. Em Levítico 16:33 encontramos a frase peculiar miqdaś haqqódeś como designativa do
“Lugar Santíssimo”; veja Martin Noth, Leviticus: A Commentary, The OT Library (Philadelphia, 1977), p. 126.
27
B. W. Anderson, “Hosts, Hosts of Heaven”, IDB 2 (1962): 655.
15

Exércitos”).28 É bastante interessante observar que sābā‟ (“exército”) é utilizado em


relação com o trabalho dos levitas no santuário (Números 4:3, 23, 30; 8:24-25). Portanto,
pareceria existir uma clara conexão entre sābā‟ (“exercito”) e o culto.
4. “Tirou” (huraym), Daniel 8:11. Esta expressão verbal deriva do verbo
hebraico rûm, o qual significa “suspender, levar consigo”. Rûm é usado com
bastante regularidade em ambiente de culto no sentido de “doar, oferecer um
presente” (Números 15:19-21) e de “remover, pôr à parte” (Levítico 2:9; 4:8).29 Neste
exemplo, Daniel usa a forma passiva causativa do verbo rûm. Quando esta formação
verbal é usada no contexto cultual, designa o ato de remover do sacrifício aquela
parte que pertencia em sentido especial a Deus (Levítico 4:10; cf. 22:15), ou ao
sacerdote (Êxodo 29:27). A responsabilidade pela remoção destas partes dos
sacrifícios era atribuída aos sacerdotes.
5. Chifre, verdade, rebelião (qeren, „emet, peša‟), Daniel 8:9-14. Existem
três outros termos em Daniel 8:7-14 que possuem ou podem possuir algum
significado cultual. Um destes termos é “chifre” (qeren) em 8:9. Ele nos lembra dos
chifres nos quatro cantos dos altares no santuário (Êxodo 27:2; 29:12; Levítico 4:7;
16:18). Estes chifres provavelmente eram símbolos do poder de Deus. 30 Outro termo
é “verdade” („emet) em 8:12. Para falar com franqueza, “verdade” não é
necessariamente um termo cultual.31 Ainda assim, pode transmitir ênfase quanto ao
culto. Por exemplo, em Malaquias 2:6 a instrução que o sacerdote deveria transmitir
ao povo era chamada de “lei da verdade”. 32 Finalmente, encontramos o termo
“rebelião/transgressão” (peša‟) em 8:12. Este mesmo termo é usado em Levítico
16:16 a fim de designar os pecados que podiam ser expiados no Dia da Expiação,
caso as pessoas humildemente confessassem seus pecados e se arrependessem.
Costumado (tāmîd) Daniel 8:11-13. Existe mais um termo cultual que necessitamos
analisar: O termo parece ter um significado chave na passagem, que é o tāmîd. Este é
inequivocamente um termo cultual. Usualmente tāmîd é compreendido como significando
“diário”, mas o mais correto seria entendê-lo como “contínuo, incessante”.33
A maioria dos comentaristas traduziram o tāmîd em 8:11-13 como “sacrifícios
diários”.34 A razão básica para esta tradução é que tāmîd é muitas vezes usado em
conexão com os sacrifícios da manhã e da tarde. É bastante comum encontrar tāmîd como
qualificativo dos holocaustos: „ōlat tāmîd - holocausto contínuo (Êxodo 29:42; Números
28:3; Neemias 10:33). Entretanto, em Daniel o tāmîd não está funcionando como adjetivo
ou advérbio. Aparece antes dele o artigo definido, hattāmîd (o tāmîd). Portanto, ele funciona
como substantivo. Este uso absoluto do termo é único; só Daniel o apresenta.
Uma vez que o termo „ōlāh (holocausto) não é usado por Daniel ao lado de
tāmîd, é impróprio suprir o termo na tradução. Além disso, o termo tāmîd não é
usado somente com relação aos sacrifícios do VT. Nós o encontramos vinculado aos
“pães da presença” (Êxodo 25:30; Números 4:7), lâmpadas (Êxodo 27:20; Levítico
24:2), incenso (Êxodo 30:8) e fogo sobre o altar (Levítico 6:13). Limitar o significado
de hattāmîd ao sacrifício, é perder de vista a variedade de usos de tāmîd dentro do

28
Ibidem; H. Wilberger, Jesaja, Biblischer Kommentar Altes Testament (Neukirche-Vluyn), p. 248.
29
Veja Jacob Milgrom; “The Sôq Hatterûmá: A Chapter in Cultic History”, Studies in Cultic Theology
and Terminology (Leiden, 1983), p. 160.
30
Angel M. Rodríguez, “Substitution in the Hebrew Cultus and in Cultic Related Texts, “Th.D.
dissertation (Andrews University, 1979), p. 140.
31
Alfred Jepsen, “„áman”, TDOT 1 (1974):310.
32
Veja André Lacocque, The Book of Daniel (Atlanta, 1979), p. 163.
33
Holladay, p. 391.
34
Arthur Jeffery, “The Book of Daniel”, IB 6 (New York, 1956): 474.
16

culto. Hattāmîd deveria ser entendido nos mais amplo sentido possível.
O estudo de tāmîd no contexto do culto e capaz de revelar que o termo era
usado em muitas atividades que ao sacerdote era ordenado desempenhar
continuamente no santuário. Adicionalmente, o tāmîd era usado como referência as
atividades sacerdotais executadas no pátio e no lugar sagrado (santo) do santuário.
Não deveríamos desprezar a importância do fato de que tāmîd jamais é usado em
conexão com as atividades desempenhadas no lugar santíssimo.
É mais provável que quando tāmîd é usado na forma absoluta, como em
Daniel, refere-se o termo aos atos cultuais desempenhados no lugar santo ou que
possuem relação direta ou indireta com o lugar santo. O conceito teológico
subjacente a estas atividades era o de intercessão. A expressão hattāmîd poderia
ser melhor traduzido como “contínua intercessão”. Neste caso, referir-se-ia ao
contínuo ministério do sacerdote no santuário, em favor do povo.

2.3.1. Sumário Parcial

Façamos uma pausa durante alguns momentos a fim de examinar de que


modo a terminologia cultual que temos estado a estudar até aqui, nos ajuda na
compreensão de Daniel 8:9-14.
Em primeiro lugar, a linguagem cultual encontrada no texto sob discussão torna
claro que existe pelo menos uma “conexão terminológica” (os mesmos termos) entre esta
passagem e o culto, ou sistema de adoração do santuário. Portanto, é apropriado referir-
se a Levítico no esforço por se compreender o que o profeta está tentando ensinar-nos.
Em segundo lugar, deveríamos também conservar em mente que a
terminologia é usada para expor idéias e conceitos. Neste exemplo, o conceito do
santuário. Sendo este o caso, também é correto ver uma “conexão conceitual” entre
Daniel 8:9-14 e o culto hebraico. O profeta pressupõe que seus leitores estão
familiarizados com o sistema de adoração, de modo que ele usa o vocabulário
cultual sem dar-se ao trabalho de explaná-lo.
Em terceiro lugar, a terminologia cultual ajuda na compreensão da natureza e
atividades do chifre pequeno. A passagem ignora as ocupações políticas do chifre
pequeno. E a atitude do chifre diante do culto e da comunidade cultual (o povo de
Deus) o que realmente recebe ênfase no texto. O chifre pequeno é essencialmente
um poder anti-culto. Mas ele não apenas se opõe a qualquer prática cultual. Este
chifre age contra o culto de Yahweh. Ele cresce numa direção em que outras bestas
não cresceram, ou seja, para cima.
O chifre pequeno ataca o “exército dos céus”. Este exército (sābā‟)
provavelmente representa uma guarda do culto, espécie de guarda levítica. Entre os
deveres dos levitas achava-se a responsabilidade de proteger o santuário da
intrusão de pessoas não vinculadas ao culto (Números 3:5-10; 18:1-10; I Crônicas
9:23-27).35 Esta era uma de suas principais responsabilidades. A nenhum custo se
deveria permitir a profanação do santuário.
Quando o chifre pequeno ataca o santuário, em primeiro lugar tem de lutar
contra o sābā‟, aguardando culto. Na luta alguns membros do exército cultual (min-
hassābā‟) são “lançados por terra”. Esta última expressão é usada no VT com o
sentido de derrota.36 O chifre possui, pois, a capacidade de vencer a guarda.
Agora o chifre prossegue à busca do Príncipe do exército (šar-hassābā‟) e do
35
Para uma importante discussão deste assunto, veja Jacob Milgrom, Studies in Levitical
Terminology 1 (Los Angeles, 1970), páginas 5-59.
36
Veja Magnus Ottosson, „“eres”, TDOT, 1: 398.
17

santuário - seu verdadeiro objetivo. Apresenta capacidade suficiente para tirar (rûm,
forma Hophal) do Príncipe o Seu contínuo ministério sacerdotal no santuário, o
tāmîd. Ao tirar do Príncipe o que pertence exclusivamente a Ele, o chifre pequeno
indica que é sua pretensão também agir como sacerdote. Num esforço para obter
exaltação adicional, o chifre “deita abaixo” o lugar do santuário do Príncipe. Isto
sugere uma destruição literal ou metafórica da base do santuário. O chifre pequeno
é bem sucedido e sua atividade anti-Yahweh.
De acordo com 8:12, o chifre efetua algo mais. Existem algumas dificuldades
neste verso. Contudo, a idéia geral é bastante clara.
O verbo tinnātēn (lhe foi entregue) é passivo. Seu sujeito é provavelmente o
chifre pequeno. O objeto do verbo é o “exército” e o objeto indireto parece ser o
tāmîd.37 Uma tradução literal do texto seria mais ou menos a seguinte: “E um
exército foi dado sobre o tāmîd”. O que isto significa? Uma vez que o chifre toma o
tāmîd do Príncipe, ele estabelece seu próprio exército para o controle do tāmîd.
O chifre pequeno exerce completo controle sobre o tāmîd. Ele também possui
uma guarda cultual a fim de “proteger” o tāmîd. O poder anti-Jeová tem a
capacidade de efetuar isto “por causa das transgressões” (bepeša‟). O chifre revolta-
se contra Deus. A rebelião, (peša‟), que poderia ser expiada pelo santuário (Levítico
16:16), neste caso não poderia ser expiada porque o chifre pequeno ataca os
próprios instrumentos da expiação. Isto é rebelião levada a seu grau máximo.
O controle do chifre sobre o tāmîd implica em que ele também controla a tôrāh
(“instrução”). Este inimigo do santuário de Deus é capaz de lançar por terra a verdade
(„emet), a divina instrução que antes se achava sob o controle do sacerdócio. Daniel
7:25 refere-se a mesma atividade, através da tentativa de “mudar os tempos e a lei”.
Torna-se bastante claro que o profeta, através da linguagem cultual, revela a
essência da natureza do chifre e de suas reais intenções. Este poder rebelde ataca o
santuário e controla o tāmîd; é um poder anti-Yahweh.
Em quarto lugar, a linguagem cultual usada em 8:9-14 deixa claro que o chifre
pequeno não contamina o santuário. Neste perícope não existe um único termo
cultual capaz de sugerir a idéia de contaminação.38 O que temos aqui é um ataque
contra o santuário. O anjo-intérprete define esta atividade como uma profanação
(hālal). Lemos em 11:31 - “Dele sairão forças que profanarão /hālal/ o santuário, a
fortaleza nossa, e tirarão o /tāmîd/”.
Este poder não demonstra respeito pela santidade do templo. Trata-o, e a seus
serviços, de um modo vulgar (hālal, “manejar de modo comum”).39 Na utilização
cultual dos termos, “profanação” e “contaminação” não representam a mesma coisa.
Portanto, o chifre não é um agente contaminante, e sim rebelde ou profano.
Em quinto lugar, a linguagem cultual em 8:9-14 deixa aberta a questão: “De
qual santuário está falando o profeta?” Já observamos que os termos usados nestes
versos a fim de designar o santuário podem referir-se tanto ao santuário celestial
quanto ao terrestre. Provavelmente a referência esteja aqui sendo feita a ambos os
santuários a um só tempo. Ainda assim, a referência ao Príncipe parece indicar que
o principal tema com o qual o profeta se ocupa, é o santuário celestial.
A atividade do Príncipe é de significativa importância. O chifre pequeno deseja
controlar a Sua atividade. Atenção particular deveria ser oferecida ao fato de que o

37
Neste passo estamos acompanhando William H. Shea, Daniel and the Judgment (preparado para
o Comitê de Revisão do Santuário, 1980), página 402. Veja também neste volume, o capítulo 9, do
mesmo autor: “Spatial Dimensions In the Vision of Daniel 8”, com comentários sobre o verso 12.
38
Isso também fora destacado por Hasel, p. 205.
39
Veja Friedrich Kauck, “Koinos”, TDNT 3 (1965):190-91.
18

tāmîd pertence ao Príncipe. Já salientamos antes que a atividade tāmîd era


desempenhada pelos sacerdotes israelitas. Assim, é lógico sugerir que o Príncipe é
uma figura sacerdotal. Efetivamente, o termo príncipe (šar) é usado no VT como
designativo do sumo sacerdote (I Crônicas 24:5).40 O chifre assume a autoridade do
ministério sacerdotal do Príncipe.
Entretanto, não deveríamos passar por alto o fato de que o Príncipe aqui
mencionado é mais que um sacerdote humano. Ele é o Príncipe de exército celestial.
De acordo com Josué 5:13-15, este Príncipe é um ser celestial.41 No livro de Daniel
Ele também é identificado como “Príncipe dos príncipes” (8:25), “Ungido, o Príncipe”
(9:25),42 e “Miguel, o grande príncipe” (12:1). Este Príncipe é provavelmente o
mesmo ser identificado como “Filho do homem” no capítulo 7.43 Estes, títulos tendem
também a sugerir que o Príncipe é paralelamente uma figura real. Assim, temos nEle
uma combinação de funções real e sacerdotal.
No capítulo 8 é enfatizada a função sacerdotal do Príncipe. A atividade na
qual Ele se encontra envolvido é interpretada, em termos cultuais, por intermédio do
termo tāmîd. Ou seja, o trabalho que o sacerdote israelita desempenhava
continuamente no santuário, é usado para descrever a atividade do Príncipe. Ele
esta a cargo do tāmîd, a contínua obra intercessória no santuário.
O tāmîd é utilizado apenas em conexão com os lugares santos dos
santuários, e tem a ver com o trabalho do sacerdote nestes lugares. É apropriado,
portanto, inferir que o Príncipe estaria realizando um trabalho equivalente ao
desempenhado pelo sacerdote no lugar santo. Se estivermos corretos nesta
suposição, poderemos concluir que o chifre pequeno de alguma forma afetaria o
trabalho do Príncipe no lugar santo. Disse Daniel que o chifre tiraria do Príncipe o
tāmîd, ou seja, Seu contínuo ministério no lugar santo.
Qualquer pessoa familiarizada com o culto hebraico imediatamente levantará
a questão: “O que ocorre com o trabalho sacerdotal no lugar santíssimo? Porventura
o chifre pequeno afetaria a purificação anual do santuário?” É aqui que o texto de
8:13 e 14 se torna muito importante.

2.4. SDQ NA TERMINOLOGIA CULTUAL

O termo-chave em 8:14 é nisdaq. Traduções comuns ao termo são “será purificado”,


“será restaurado ao seu estado de direito”. A raiz verbal de onde obtemos nisdaq é sādaq,
usualmente traduzida como “estar no direito”, “ser vindicado‟”, “ser justo”.44
A raiz, sdq, em suas formas verbal, nominal e adjetiva, é usada no contexto
cultual, ou seja, em conexão com o santuário e seu ritual. Este é particularmente o caso
no livro dos Salmos. Neste ponto deveríamos relembrar que a maior parte dos Salmos se
apresenta num contexto de culto. É muito provável que a maioria deles tenha sido escrita
com o objetivo de ser usada em associação com rituais específicos e festas religiosas.45
De modo geral, aceita-se que existe uma íntima relação entre os salmos e a adoração no
40
Lacocque, p. 162.
41
Quanto a este aspecto, veja Hasel, p. 189.
42
Aqui o hebraico usa nágîd em lugar de śar. Estes dois termos parecem ser sinônimos. De acordo com
W. H. Shea, Daniel and Judgment, p. 399, nágîd é usado em Daniel como referência ao Príncipe, em
conexão com Suas atividades humanas; e śar aparece quando são mencionadas Suas atividades
celestiais. Veja também, por W. H. Shea, “The Prophecy of Daniel 9:24-27”, DRC Séries, vol. 3, capítulo 3.
43
Assim como Lacocque, p. 162.
44
CHAL, p. 303.
45
Veja Sigmund Mowickel, The Psalms in Israel‟s Worship 1 (Nashville, 1962), páginas 1-41; Leopold
Sabourin, The Psalms: Their Origin and Meaning (New York, 1974), páginas 34-40.
19

santuário. Assim, é um tanto natural constatar que a raiz sdq é utilizada nos Salmos com
uma clara associação cultual, e que ela expressa a ideologia do culto.
Talvez os Salmos que mais claramente expressam a conexão cultual de sdq
sejam aqueles que pertencem à classe conhecida como “Liturgia de Entrada” ou “Torāh
de Admissão”.46 Estes Salmos definem as condições requeridas daqueles que desejam
ter acesso ao santuário. O Salmo 24:3-6 ilustra muito bem o ponto. Ali podemos
detectar aquilo que parece ser uma conversa entre o sacerdote e o adorador:

Adorador: Quem subirá ao monte do Senhor?


Quem há de permanecer no Seu santo lugar?

Sacerdote: O que é limpo de mãos e puro de coração,


que não entrega a sua alma à falsidade,
nem jura dolosamente.
Este obterá do Senhor a bênção,
e a justiça do Deus da sua salvação.

Adorador: Tal é a geração dos que O buscam,


47
dos que buscam a face do Deus de Jacó.

Estes requisitos pressupõem o concerto. Aquilo que se requer do adorador é


uma declaração de lealdade ao concerto, uma expressão de fidelidade à revelada
vontade de Yahweh.48 Embora este Salmo enfatize as demandas éticas do concerto,
uma confissão similar de lealdade também inclui aquilo que poderia ser chamado de
“requisitos rituais” (Deuteronômio 26:13-15).49 Para que pudesse ter acesso ao
santuário, requeria-se do indivíduo a lealdade ao concerto como um todo. A pessoa
que podia fazer tal confissão, era efetivamente justa.50
E o Salmo 15:1 e 2 que torna claro que, a fim de poder ser legitimada a sua
participação no culto, deveria o israelita ser “justificado” (sedeq).51 “Que o Senhor,
habitará no Teu tabernáculo? Quem ha de morar no Teu santo monte? O que vive
com integridade /tāmîm/ e pratica a justiça /sedeq, literalmente, “pratica a justiça”/.
A condição imaculada requerida de um sacrifício animal (Levítico 1:3, tāmîm),
é agora exigida também do israelita. Aqui o termo “integridade” é equivalente, ou
comparado, a “justiça”. Entre tanto, esta justiça não é resultante do esforço humano.
É antes um dom a salvadora graça de Deus para com o homem (Salmo 4:1; 17:1;
35:24; I Reis 8:58 e 61). A “justiça” (sedeq) requerida do adorador não é possível
separada da expiação e do perdão.52
O indivíduo que desejasse ir ao santuário deveria não apenas confessar sua
lealdade ao concerto, como deveria ainda confessar as violações do mesmo, que
houvesse praticado. Aquele que, com o coração humilde e espírito contrito,
confessasse seus pecados, era também uma pessoa justa:

46
Veja Sabourin, páginas 405-10;
47
Este padrão foi sugerido por Mowinckel, p. 178.
48
Gerhard von Rad, Old Testament Theology 1 (New York, 1962): 378.
49
A distinção entre mandamentos éticos e rituais é artificial. O mais provável é que na mente do
israelita esta distinção fosse desconhecida.
50
Cf. A. A. Anderson, The Book of Psalms, New Century Bible 1 (Greenwood, SC, 1972): 203.
51
Gerhard von Rad, “„Righteousness‟ and „Life‟ in the Cultic Language of the Psalms”, The Problem
of the Hexateuch and Other Essays (New York, 1966), p.249.
52
Hans K. Ia Rondelle, Perfection and Perfectionism (Berrien Springs, MI, 1971), páginas 113 e 114.
O autor declara que “os Salmos revelam a necessidade do contínuo perdão e manutenção da
redentora graça de Yahweh”.
20

Salmo 32:1 Bem-aventurado aquele cuja iniqüidade é


perdoada,
cujo pecado é coberto.

32:5 Confessei-Te o meu pecado


e a minha iniqüidade não mais ocultei.
Disse: “Confessarei ao Senhor as minhas
transgressões”.

32:11 Alegrai-vos no Senhor,


e regozijai-vos , ó justos /sadđîqîm/.

Os justos mencionados no verso 11 são aqueles que confessam seus


pecados, as violações do concerto que praticaram, e que foram perdoadas pelo
Senhor.53 Temos aqui um novo pensamento: a justiça não era algo que o adorador
trazia ao templo, e sim algo que no templo lhe era assegurada. 54 Ali recebia ele “do
Senhor a bênção /a bênção sacerdotal/ e a Justiça /a declaração de justiça proferida
pelo sacerdote/” (Salmo 24:5).
Acredita-se, de modo geral, que uma das funções sacerdotais, sendo o
sacerdote representante de Deus, era a proferirão de declarações cultuais depois
que uma investigação das condições de culto fosse feita. 55 Quando um israelita
trazia um animal sacrifical ao santuário, o sacerdote deveria examiná-lo. Expressões
como “é um holocausto” /‟ōlāh hû‟ (Lev. 1:13), “é uma oferta de manjares” /minhāh
hû‟ (Lev. 2:6), “é uma oferta pelo pecado” /hatta‟t hû/ (Lev. 4:21), “ele é imundo”
/tāmē‟ hû‟ (Lev. 13:11), “ele está limpo” /tāhōr hû‟ (13:13 e 17), são declarações
sacerdotais que revelam o resultado de sua investigação cultual.
O sacerdote deveria declarar se a vitima sacrificial era ou não aceitável a
Deus. Se o sacrifício fosse declarado não aceitável, o ofertante não recebia o crédito
(cf. Lev. 7:18). “O julgamento do animal trazido ao culto era sempre identificado com
o do próprio ofertante”.56 A rejeição de um significava a rejeição do outro.
O livro de Salmos sugere que ao o adorador dirigir-se ao templo, recebia ele a
justificação de Deus através de uma declaração sacerdotal. Ezequiel 18:5-9 torna
claro que tal declaração de justificação era conhecida no âmbito do culto. O que ali
encontramos é uma assim chamada “série catequética de mandamentos”57, do
mesmo tipo daqueles que encontramos na “Liturgia de Entrada”.58
Após a lista de mandamentos, encontramos a declaração “ele é justo” /saddîq
hû‟/. Do ponto de vista gramatical, a expressão saddîq hû‟ é a equivalente às
declarações que mencionamos acima. Todas elas são cláusulas nominais
construídas na terceira pessoa singular pronominal, e que funcionam como
predicado. “Ele é justo” e uma declaração sacerdotal.59
Até este ponto sugerimos que o Senhor, por intermédio do sacerdote, declara
como justo o homem que é leal ao concerto. Este era também o indivíduo ao qual

53
Leo G. Perdue, Wisdom and Cult (Missoula, MT, 1977), página 303.
54
Veja Walther Zimmerli, OT Theology in Outline (Atlanta, 1978), página 143.
55
Quanto a declarações sacerdotais, veja Rolf Rendtorff, Die Gesteze in der Priesterschrift
(Göttingen, 1954), páginas 74-76; Gerhard von Rad, “Faith Reckoned as Righteousness”, Problem of
the Hexateuch, páginas 125 a 130; H. Ringgren, “hu”, TDOT, 3:342-43.
56
La Rondelle, p. 127.
57
Von Rad, “Faith”, p. 128.
58
W. Zimmerly declara: “Ezequiel 18 reflete uma ação real, a qual era executada no santuário /em
Jerusalém/, junto à porta do templo” (Ezékiel, Hermenia /Philadelphia, 1979, p. 376).
59
Ibidem; von Rad, “Faith”, p. 128; Ringgren, p. 343.
21

poderiam ser perdoados os pecados. Ele poderia igualmente receber a justificação


no santuário. Por vezes a declaração de justificação era um ato de vindicação. No
Salmo do Inocente podemos encontrar declarações do seguinte teor:

Julga-me, Senhor, segundo a minha retidão /sedeq/,


e segundo a integridade que há em mim].
Cesse a malícia dos ímpios, mas estabelece Tu o justo /saddîq/
(Salmo 7:8 e 9; cf. 35:24 e 25).

Aparentemente havia sido o salmista acusado falsamente de um crime. Ele se


dirije ao santuário à procura do Senhor. Ele deseja ser declarado justo. Neste
sentido, seria ele vindicado.
Os Salmos indicam que o indivíduo que procurava o santuário buscando a
justificação/vindicação recebia-as através de uma declaração sacerdotal de justiça.
O homem a quem era dirigida tal declaração, tinha acesso ao templo.
É interessante e muito importante observar que, de acordo com Levítico, o
que se necessitava para ter acesso ao santuário, era “pureza” (tāhōr). Esta pureza
era obtida através do trabalho sacerdotal. Constatamos, por exemplo, que o leproso,
uma vez declarado impuro, não poderia ir ao santuário (Levítico 13:46). Era somente
depois que o sacerdote o declarava “puro, limpo” (tāhōr) que o acesso ao santuário
se tornava uma possibilidade a ele (Levítico 14:1-20). Aquilo que em Levítico era
uma declaração de pureza ou limpeza, nos Salmos é uma declaração de justiça. Ser
declarado puro (ritualmente), era o mesmo que ser declarado justo (moralmente ).
Estes dois conceitos - justo/puro - são encontrados juntos numa das mais
significativas passagens do VT, qual seja, Isaías 52:13 a 53:12. Ao longo deste poema
encontramos linguagem cultual.60 A experiência do Servo do Senhor é ali interpretada
em categorias cultuais. O Servo é tanto a vítima sacrifical quanto o sacerdote. Estas
duas funções são colocadas lado a lado em 53:11 – “Meu Servo, o Justo, com Seu
conhecimento justificará a muitos, porque as iniqüidades deles levará sobre Si”.
Observe que, como Sacerdote, o Servo possui certo conhecimento que Lhe
permite efetuar a declaração cultual (“com o Seu conhecimento”). Mas Ele é também
a vítima sacrifical. Como tanto, Ele é declarado justo (“o Justo”), e pode declarar,
como sacerdote, que “muitos” são justos (yasdîq,”justificará”). O julgamento feito
sobre a vítima é aquele feito sobre muitos.
Observe também que a declaração de justiça é seguida da expressão:
“/Ele/as iniqüidades deles levará sobre Si”. A expressão “levar as iniqüidades” é uma
expressão cultual que expressa a idéia de perdão e purificação. 61 Estes “muitos” não
são declarados justos pelo fato de serem justos, e sim porque o Servo os purificou. A
declaração cultual de justiça e a purificação dos pecados são a mesma coisa.
Parece haver, portanto, uma conexão teológica entre a justiça (justificação) e
a pureza; uma conexão de tal natureza que ambos os conceitos vieram a tornar-se
praticamente sinônimos, ao menos em contexto cultual. Estudos recentes efetuados
quanto à raiz sdq mostraram que ela é efetivamente usada em paralelismo
sinonímico com formas da raiz thr, “ser limpo, puro” (Jó 4:17; 17:9), e com bōr,
“pureza” (Salmo 18:20). Noutras passagens é ela sinônimo de zakah, “ser puro,
limpo” (Salmo 51:4; Jó 15:14; 25:4).62 É bastante claro que a amplitude semântica da

60
Veja Rodríguez, pp. 283-301.
61
Ibidem, pp. 291-92.
62
Jerome P. Justesen, “On the Meaning of Sādaq”, AUSS 2 (1964): 53-61; W. E. Read, “Further
Observations on Sādaq”, AUSS 4 (1966): 29-36; Hasel, pp. 203 e 204.
22

raiz sdq em termos e conceitos cultuais, representa uma clara indicação de que ela
desempenha um papel significativo no culto.
O livro de Salmos revela o significativo fato de que a raiz sdq se encontrava
no próprio cerne do culto. O culto, em sua inteireza, parece girar em torno do
conceito de sdq: o adorador adentra o templo através das “portas da justiça” (Salmo
118:19)63; ele traz um “sacrifício de justiça” (Salmo 4:5; 51:19; Malaquias 3:3); e o
“sacerdote “vestido de justiça” (Salmo 13 2;9) intercede em favor do ofertante diante
de Yahweh, o Deus da justiça (Salmo 11:7). Como resultado, o adorador recebe no
templo a “justiça de... Deus” (Salmo 24:5). Através do sacerdote Deus declara o
indivíduo como justo. Uma vez que o crente foi declarado justo/purificado/vindicado,
pode participar plenamente do culto e regozijar-se diante do Senhor.

2.5. SDQ EM DANIEL 8:14

Nossa análise anterior demonstrou que a raiz sdq é usada em diferentes


lugares, circundada de vocabulário e ideologia cultual. Portanto, é bastante natural
encontrá-la em Daniel 8:14, cercada de vocabulário cultual. O que torna o uso de
sdq em 8:14 particularmente difícil, é o fato de que sua forma verbal , nisdaq, é única
no VT. Nisdaq é a forma “Niphal” do verbo sādaq. Nesta forma o verbo expressa
uma idéia reflexiva ou passiva. O contexto sugere que aqui o verbo deve ser tomado
como passivo. A questão é: “De que modo deveremos traduzi-lo?” Diferentes
sugestões têm sido apresentadas: “ser purificado”, “ser justificado”, “ser
restabelecido ao seu direito”, “ser trazido de volta ao correto”, “ser vindicado”, etc.
Vimos anteriormente que no contexto cultual a raiz sdq poderia expressar as
idéias de justificação, limpeza, vindicação. Daniel 8:14 pertence a um perícope no
qual predominam e a terminologia e a ideologia cultuais. Conseqüentemente,
achamo-nos na liberdade de atribuir aqui um uso cultuai ã raiz sdq.
Podemos traduzir nisdaq como “ser declarado justo/ser vindicado/ser purificado.”
Daniel utilizou nisdaq e não tāher (“purificar/purificado”) porque sdq “é uma raiz ampla,
significativamente rica em sentidos. Sua capacidade central é de descrever um proces-
so judicial e soteriológico de julgamento, absolvição e salvação”.64 É um termo que se
ajusta muito bem ao escopo cósmico desta profecia apocalíptica.
Daniel 8:14 aponta a um tempo em que o santuário seria declarado
justo/purificado/vindicado. Porventura existia uma tal ocasião no calendário cultual
hebraico? O único momento em que, no culto hebraico, tal pronunciamento era feito,
era o Dia da Expiação. Esta parece-nos, a única conclusão lógica à qual poderia
chegar alguém familiarizado com o culto israelita.
O Dia da Expiação era o único dia de culto em que o santuário podia ser
purificado/vindicado. Adicionalmente, o contexto de Daniel 8 é capaz de oferecer
apoio a esta conclusão. Já salientamos que nos versos anteriores é feita referência
apenas ao trabalho sacerdotal no lugar santo. Seria mais que lógico que também
houvesse referência à atividade sacerdotal no lugar santíssimo. Esta referência é
encontrada em 8:14.
Com muita freqüência se tem imaginado uma conexão entre nisdaq e o chifre

63
A porta do templo é assim chamada não apenas porque era o local correto por onde se deveria
passar (veja Anderson, Psalms, 2:802), como também porque por de trás desta porta a justiça
poderia ser encontrada através do Justo. Mowinckel diz: “O próprio fato de que a congregação fosse
permitido passar pela Porta da Justiça, era ao mesmo tempo uma corroboração de sua justificação e
uma concessão da „justiça‟ e da felicidade”. (Psalms, 1:181).
64
Justensen, p. 61.
23

pequeno. Tem-se imaginado que a purificação do santuário se faz necessária em


virtude das atividades do chifre pequeno. Prosseguiremos explorando esta questão à
luz da linguagem cultual usada em 8:9-14.
Vimos que a atividade do chifre pequeno é anti-cultual. Ele obtém êxito em
vencer o exército, o santuário e em controlar o tāmîd - o trabalho sacerdotal do lugar
santo. Em tudo isto o chifre prospera (8:12). A questão óbvia era: “Até quando?”
(8:13). A resposta veio: “Até duas mil e trezentas tardes e manhãs; e o santuário
será /declarado justo; purificado; vindicado/” (8:14).65
No verso 13 levanta-se a questão que tem a ver com o fim da atividade do chifre
pequeno. A questão está preocupada com o fim do período de tempo. A resposta é
clara: a visão66, e a atividade do chifre prosseguirão até o fim dos 2300 dias, até ao
tempo em que o santuário seria purificado, ou seja, até ao Dia da Expiação.
A purificação/vindicação do santuário mencionada no verso 14 não é trazida a
baila em virtude do chifre pequeno. Já observamos antes que o vocabulário cultual
usado em 8:9-14 não prove qualquer evidência em apoio à idéia de que o chifre
pequeno contamina o santuário. Foi dito a Daniel que o chifre pequeno afetaria
apenas o trabalho do Príncipe no lugar santo. Este poder não seria capaz de
interferir em Seu trabalho no lugar santíssimo. Este trabalho começaria ao final dos
2300 dias e poria fim ao controle que o chifre exercera sobre o santuário.
Se a purificação/vindicação do santuário em 8:14 não e uma necessidade
criada pelo chifre, somos deixados então diante de uma importante pergunta: Por que
necessita o santuário ser purificado? O contexto imediato não responde a questão.
Observe, porém, que o tāmîd é mencionado em versos anteriores, e não nos é dito
por que é ele necessário e importante. Nem mesmo nos é dito o que é ele. Quando
quisemos descobrir o que era o tāmîd, tivemos de reconhecer que se tratava de um
termo cultual. Prosseguimos então examinando seus usos em contextos cultuais. Se
quisermos realmente saber o que é, e por que é necessária a purificação/vindicação
do santuário, temos que examinar o ritual do Dia da Expiação no culto hebraico.
Portanto, é correto deslocarmo-nos de Daniel 8:14 para Levítico 16.

2.6. O DIA DA EXPIAÇÃO E DANIEL 8:14

Existem apenas umas poucas passagens no VT em que é mencionado o Dia


da Expiação (Êxodo 30:10; Levítico 16; 23:26-32; 25:9). As duas mais importantes
estão em Levítico 16 e 23:26-32. Os rituais executados durante aquele dia parecem
ter tido o propósito de expressar pelo menos três idéias básicas.
1. Deus e Seu santuário eram vindicados. A remoção do pecado/impureza
do santuário revelava algo significativo quanto à natureza de Deus e o lugar de Sua
habitação. Através dos diários sacrifícios expiatórios, os pecados confessados eram
transferidos ao santuário, em favor do pecador arrependido.67 Tão somente para
efeitos de expiação do pecado/impureza, permitia-se que este viesse à própria

65
A expressão “tardes e manhãs” não é uma expressão cultual. Não deve ser equipara ao tāmîd.
Quanto a este assunto, veja S. J. Schwantes, “„ereb Bōqer of Dan. 8:14 Re-examind”, AUSS 16
(1978): 375-85. Veja o capitulo 7 deste volume para a reimpressão deste estudo. /NOTA DO
TRADUTOR: Este estudo se encontra traduzido para o português/.
66
Shea, p. 81, sugeriu que, uma vez que o termo “visão” é usado no verso 13, o tempo aí coberto
não se refere apenas ao tempo em que o chifre pequeno estaria em atividade, mas também ao
período necessário ao cumprimento de toda a visão do capitulo 8.
67
Veja Rodríguez, “Transfer of Sin in Leviticus”, The Seventy Weeks, Leviticus, and the Nature of
Prophecy (Washington, DC, 1986).
24

presença de Deus. Mas nem mesmo pecados pelos quais houvesse sido efetuada
expiação poderiam permanecer indefinidamente no lugar de habitação de Deus. O Dia
da Expiação proclamava que a santidade/pureza nada tinha em comum com o
pecado/impureza. Achavam-se separados um do outro de modo permanente,
revelando de forma especial a verdadeira natureza de Deus e de Seu santuário.
Durante aquele importante dia o pecado/impureza não apenas era removido do
santuário, como ainda transferido para Azazel. Esta figura demoníaca parece representar
a própria fonte da impureza. Ao transferi-la para Azazel, Yahweh a fazia retornar à sua
própria fonte. Forças do mal eram vencidas por Yahweh durante o Dia da Expiação.
Enquanto o povo descansava, o Senhor Se manifestava ativamente em seu favor.
2. O povo era purificado. A purificação do santuário e a purificação do
povo achavam-se intimamente relacionadas. Na purificação do santuário, no Dia da
Expiação, a purificação do povo encontrava sua consumação. Seus pecados eram
finalmente removidos da presença de Deus. Agora eles próprios podiam permanecer
na divina presença. O próprio intuito do concerto era então restabelecido: Deus quer
permanecer habitando em meio a Seu povo; Ele quer ser o seu Deus e eles
prosseguirão sendo o Seu povo escolhido.
3. Deus julgava Seu povo. Durante o Dia da Expiação Deus ordenava que
Seu povo descansasse das atividades e afligisse suas almas (Levítico 16:29). Afligir a
alma („ānāh nepeš) significa “humilhar-se”, provavelmente através de jejum. Não trabalhar
e humilhar-se eram atitudes que revelavam completa dependência da misericórdia de
Yahweh. Esta atitude pessoal relacionava-se com a purificação do santuário.
A remoção dos pecados do santuário significava limpeza final somente para
aqueles que permaneciam numa atitude de absoluta dependência da graça e poder
de Deus. Naquele Dia de Expiação Deus passava Seu povo em juízo. O indivíduo que
não se humilhava e não, repousava, era declarado culpado. Esta pessoa era
“eliminada de seu povo”, destruída de entre seu povo (Levítico 23:29-30). Esta fórmula
de exterminação era um veredito negativo pronunciado após a investigação divina. O
veredito positivo era a declaração de pureza. Yahweh estava julgando Seu povo.
Os três conceitos acima discutidos parecem haver sido de fundamental
importância no Dia da Expiação, dentro do culto israelita. Com base em nossa
discussão anterior podemos, pois, argumentar que a proclamação de
vindicação/purificação do santuário em Daniel também significa que:
A. Deus e Seu santuário devem ser vindicados. O ministério sacerdotal do
Príncipe do exército celestial, mencionado em 8:11 era executado em favor do povo
de Deus. Tratava-se de um ministério de intercessão e, portanto, de acordo com a
legislação levítica, de perdão de pecados. A purificação do santuário, citada em 8:14,
tornará patentemente claro que o envolvimento do santuário com o problema do
pecado, foi uma forma eficaz de lidar com o referido problema, e que a transferência
do pecado ao santuário de modo algum afetou o caráter de Deus. Ao remover os
pecados de Seu povo do santuário, Deus Se revela como um Ser santo, puro e justo.
Ele também Se revelará como um Deus Todo poderoso, que triunfa sobre as forças
do mal que operam neste mundo, e o faz de modo definitivo (cf. Daniel 2 e 7).
B. O povo de Deus será purificado. O livro de Daniel olha em direção ao
futuro, ao tempo em que se tornará final a salvação do povo de Deus. Eles já
ocupam a posição de santos do Altíssimo. Entretanto, aguardam ainda a
consumação de sua salvação. A vindicação/purificação do santuário mencionada em
8:14 é também a proclamação de vindicação/purificação do povo de Deus. Seus
pecados são apagados. A purificação deste povo alcançara sua consumação. E
agora que o reino eterno será estabelecido.
25

C. Deus julgará Seu povo. A vindicação/purificação do santuário em Daniel


inclui também um trabalho de julgamento. O verbo usado por Daniel a fim de referir-se à
purificação do santuário (sdq) é um termo legal. Nele os conceitos legais e cultuais são
reunidos. A purificação do santuário acha-se intimamente ligada à declaração cultual de
pureza do povo de Deus. O povo do Senhor foi julgado por Ele. Eles permaneceram
numa atitude de completa dependência de Deus face às mais desalentadoras
circunstâncias. É exatamente isto que encontramos no capítulo 7. A cena de julgamento
encontrada no referido capítulo, constitui adequado paralelismo do que ocorre em 8:14.68
Os santos são julgados e absolvidos (7:9 e 10, 13 e 14, 21 è 22). O registro de seus
pecados é removido permanentemente do santuário. Os infiéis são eliminados (Levítico
23:29 e 30; cf. Mateus 7:21-23; 22:11-14). É deste modo que o santuário é purificado.
O perícope que temos estado a discutir (8:9-14) permitiu que examinássemos
o santuário, onde oficia o Príncipe do exército celestial. Seu trabalho sacerdotal
inclui não apenas serviços diários, como ainda o equivalente ao serviço anual, o Dia
da Expiação. Tendo em vista entender o significado do trabalho do Príncipe no Dia
da Expiação, examinamos brevemente o significado deste ritual no livro de Levítico.
Constatamos que durante o Dia da Expiação Deus Se revelava a Si próprio como
um Deus puro e poderoso, que triunfa sobre as forças do mal. Deus purificava Seu
povo em termos finais, removendo seus pecados do santuário, permitindo que eles
vivessem permanentemente em Sua presença. Aquele era também um dia de
julgamento. As profecias de Daniel, com suas preocupações apocalípticas, avançam
para o futuro, ao tempo em que estes eventos serão finais e alcançarão escala
cósmica, e o mal finalmente será eliminado do universo.

CONCLUSÃO

Nosso estudo demonstrou que Daniel utiliza linguagem cultual ao longo de 8:9-14,
com o propósito de expressar idéias cultuais. Portanto, existe uma conexão entre este
perícope e o culto. O estudo do termo tāmîd indicou que o termo designava a obra
mediatória do sacerdote, desempenhada em favor do povo no lugar santo do santuário.
Nossa investigação da raiz sdq revelou que ela é usada em contexto de culto, e que, na
verdade, representava um conceito chave dentro do culto. O uso de sdq, especialmente
nos Salmos, indica que no culto ela expressava a mesma idéia expressa por tāhēr em
Levítico. Daniel estava consciente deste fato e sentiu-se na liberdade de usar sdq para
referir-se ao trabalho sacerdotal no lugar santíssimo durante o Dia da Expiação.
O chifre pequeno, conforme salientamos, é capaz de assumir o controle do
santuário, numa atitude anti-culto. Ele afeta o trabalho do Príncipe no lugar santo.
Quando chega o tempo de o Príncipe começar Seu trabalho no lugar santíssimo, o
chifre pequeno perde o controle do santuário. Não é capaz de afetar o trabalho do
Príncipe no lugar santíssimo. Este trabalho e seu significado encontram-se descritos
em Levítico 16. Seu trabalho no lugar santíssimo inclui, portanto, a vindicação do
caráter de Deus, a purificação de Seu povo, e o julgamento dos santos antes que o
reino de Deus seja estabelecido na Terra.

Traduzido por: Hélio Luiz Grellmann


Setembro de 1990.

68
Hasel, pp. 206-7.
26

3. FORMA LITERÁRIA E FUNÇÃO TEOLÓGICA EM


LEVÍTICO
William H. Shea
Fonte: DRCS, vol. 3, pp. 131-168

Sinopse editorial. A tese deste ensaio é que a forma literária de determinada


porção das Escrituras inspiradas foi designada a ajudar na explanação da
mensagem. Afirma-se, assim, que “a forma complementa a função”.
Levítico representa uma bem organizada peça da instrução mosaica. A
evidência apresentada neste ensaio sugere que todo o livro foi escrito sob a
configuração literária conhecida como quiasma (ou quiasmo). Esta forma é um
artifício literário que unifica a composição ao arranjar suas partes correspondentes
numa relação invertida, uma à outra.
Neste caso, Levítico evidentemente se acha dividido em metades (capítulos 1-
15 e 16-27). Na primeira metade, três seções discretas (distintas) - legislação cultual
(1-7), história sacerdotal (8-10) e leis pessoais de impureza (11-15) - são vistas
como se equilibrando em ordem inversa com três seções relacionadas a temas na
segunda metade - leis morais pessoais (17-20), legislação sacerdotal (21-22) e
legislação cultual (23-25). Dois capítulos adicionais (26 e 27) encerram o livro, mas
estão fora do quiasma literário.
No fulcro destes dois grupamentos (1-15 e 16-25) do quiasma encontra-se a
legislação que trata do Dia da Expiação. Um arranjo literário cuidadosamente
elaborado, tal como este assegura a unidade do trabalho e indica que o autor foi um
só. O esboço da estrutura do quiasma de Levítico encontra-se mais adiante, neste
mesmo artigo.
O fato de que o ritual do Dia da Expiação jaz no centro literário de Levítico,
enfatiza a sua importância dentro do sistema do santuário. Adicionalmente, esta
posição central indica a sua função como “capa superior” dos rituais sacrificiais
(apresentados na primeira porção do quiasma) e como a transição natural para o
assunto do viver santificado (apresentado na segunda porção do quiasma).
Alguns vislumbres sugeridos pela forma literária podem ser resumidos do
seguinte modo:
1. O cerne teológico da primeira porção acha-se orientado em torno do
assunto da justificação (“o sacerdote fará expiação por ele”, Levítico 5:10). Está
balanceado diante do cerne teológico da segunda porção do quiasma: santificação
(“sereis santos, porque Eu, o Senhor vosso Deus, sou santo”, Levítico 19:2). Este
esquema básico para a experiência espiritual, oferecido ao antigo Israel (no contexto
do simbolismo do santuário terrestre), ainda é válido para o povo de Deus na era
cristã.
2. A posição, literária e temática do Dia da Expiação, em termos de
legislação, reforça o argumento de que os pecados confessados dos israelitas
penitentes eram transferidos ao santuário através de suas ofertas pelo pecado. É
explicitamente declarado que o Dia da Expiação, em seus rituais, funcionava na
purificação do santuário, das transgressões e impurezas dos filhos de Israel (Levi
tico 16:16). Transgressões (Levítico 1-7) e impurezas (Levítico 11-15) são os dois
principais assuntos discutidos na primeira metade do quiasma. As ofensas
cometidas em ambas às áreas recebiam expiação através do sacrifício de ofertas
pelo pecado durante o ano.
27

O Dia da Expiação, quanto ao ritual da oferta pelo pecado (o bode do Senhor)


- e este representava um resumo de todos os rituais de ofertas pelo pecado - dirige-
se agora ao santuário, a fim de limpá-lo das ofensas confessadas, o que representa
um claro reconhecimento da prévia transferência do povo para o santuário.
3. A posição central do Dia da Expiação na legislação levítica também
coloca este ritual no encerramento do livro, onde aparece a apresentação maior dos
sacrifícios. Em tal posição, pode ele ser visto como uma espécie de resumo do
sistema sacrifical. Isto é especialmente verdade quanto às ofertas regulares pelo
pecado, já que o principal sacrifício no Dia da Expiação era ele próprio, uma oferta
pelo pecado (o bode do Senhor).
Várias comparações podem ser feitas entre os dois conjuntos de ofertas pelo
pecado (a regular e a anual). Existem similaridades e dessemelhanças. O Dia da
Expiação era uma atividade corporativa, antes que individual. Parece que o modelo
seguido foi o das ofertas regulares pelo pecado, oferecidas em favor dos sacerdotes
ou da congregação em geral. O sacrifício do Dia da Expiação era oferecido em
relação com o corpo geral de israelitas que confessavam seus pecados e impurezas,
que agora jaziam no santuário. Seu significado simbólico, portanto, estendia-se para
além da experiência do indivíduo.
4. O vínculo temático entre a oferta pelo pecado do Dia da Expiação (o
bode do Senhor) e as ofertas regulares pelo pecado, torna-se mais evidente se o
termo hattá‟ot, na passagem chave de Levítico 16:16 e 21 for traduzido como
“ofertas pelo pecado” em lugar de “pecados” (tal como aparece nas versões
comuns). Bom número de evidências é reunido ao longo deste ensaio a fim de
apoiar esta possibilidade.
Se esta tradução for aceita, estes versos indicam mais claramente que
efetivamente a expiação era feita neste dia especial a fim de remover do santuário
as transgressões e impurezas que os israelitas penitentes haviam transferido ao
longo do ano, através de suas ofertas pelo pecado regulares.
5. A posição temática e literária da oferta pelo pecado do Dia da Expiação
(que ocorria em segundo lugar), em relação com a oferta regular pelo pecado (que
era oferecida em primeiro lugar), e isto no ramo “sacrifical” do quiasma (capítulos 1-
15) faz surgir uma importante questão. Em que momento do tempo se efetivava o
perdão e aceitação, diante de Deus, do israelita arrependido que vinha participar do
sistema do santuário? Era ele perdoado, quando trazida sua oferta particular e
pessoal pelo pecado, ou ocorria isto por ocasião da chegada do Dia da Expiação?
A legislação de Levítico 4-5 indica claramente que ao o penitente trazer sua
oferta pelo pecado ao santuário, confessando seu pecado, ele era perdoado.
Repetidamente a declaração é feita em substância: “o sacerdote fará expiação por
ele pelo pecado que cometeu, e ele será perdoado” (Levítico 5:10).
Em contraste, nenhuma declaração acerca de perdão é jamais apresentada
na legislação do Dia da Expiação. O Dia da Expiação tem a ver com o perdão do
indivíduo, mas somente através de um sentido indireto. Havia um ritual especial para
a purificação do santuário. O indivíduo que havia aceito as divinas provisões para o
perdão e que prosseguia andando humildemente para com Deus (que, efetivamente,
havia assumido sua culpa através do ritual do santuário), havia feito já sua parte;
Podia agora confiar em que a purificação do santuário seria realizada através do
ministério especial do sumo sacerdote no Dia da Expiação, conforme Deus havia
instruído.
É evidente que o ritual do Dia da Expiação - em virtude de sua posição de
“capa final” do sistema do santuário e suportado por sua posição central na estrutura
28

literária de Levítico - foi designado para focalizar a atenção do penitente Israel para
além, do estado de perdão e aceitação pessoal, volvendo-se para os aspectos finais
do divino plano para resolver a questão do pecado: o dia do julgamento final.

3.1. ESBOÇO DO CAPITULO

I. Introdução
II. Conteúdo Temático de Levítico
III. Estrutura Literária de Levítico (Quiasma)
IV. Alguns Vislumbres Teológicos
V. Conclusões

3.2. INTRODUÇÃO

A primeira vista, o observador casual poderá sugerir que os livros bíblicos de


Daniel e Levítico nada parecem apresentar em comum. Levítico lida com a
legislação do sistema sacrifical e com outras leis. Por outro lado, Daniel contém
narrativas históricas e esboços de profecias de longo alcance, que descrevem o
surgimento e queda de reinos ao longo do tempo.
Num exame mais detalhado, entretanto, o leitor observará importantes
vínculos entre estes dois livros. Por exemplo, de acordo com a profecia de Daniel 8,
uma parcela proeminente da batalha descrita entre poderes terrestres e celestiais
focaliza o santuário celestial e a ministração que ali funciona. Uma vez que Levítico
contêm mais informação acerca do sistema do santuário como um todo, do que
qualquer outro “livro do VT, naturalmente se pode esperar que ele lance alguma luz
sobre o livro de Daniel.
O propósito deste ensaio é analisar a estrutura literária de Levítico e observar
algumas implicações teológicas que se erguem a partir desta forma. Tal estudo
poderá servir para prover útil compreensão do livro tendo em vista uma avaliação
adicional de sua mensagem.
O livro de Levítico é um rico depósito de tesouros de verdades acerca do
santuário israelita e do sistema de salvação que ele retratou durante o período em
que desempenhou sua função. Deste modo, o exame desta herança espiritual
oferece assistência ao estudo da operação de nossa salvação - temas que
aparecem subseqüentemente na literatura do VT e encontram seu grande
cumprimento em o Novo Testamento.

3.3. CONTEÚDO TEMÁTICO DE LEVÍTICO

3.3.1. Visão Geral: Capítulos 1-16

A partir do exame de qualquer comentário do livro de Levítico, torna-se


evidente que o mesmo é bem organizado. Com exceção de algumas diferenças de
menor importância, os esboços do livro de Levítico que aparecem nos comentários
bíblicos são bastante semelhantes. O livro divide-se naturalmente em duas metades:
capítulos 1-16 e 17-27. O bloco dos primeiros 15 capítulos, que lidam com vários
aspectos do sistema sacrificial, encontra seu clímax na legislação do Dia da
Expiação, enunciada no capitulo 16. A segunda metade do livro assume um caráter
diferente. O cerne desta seção (capítulos 17-26) é muitas vezes identificado como o
“Código da Santidade”, uma vez que nestas instruções um Deus santo convoca Seu
29

povo a um santo viver.


1. Legislação cultual (capítulos 1-7). Volvemo-nos agora ao objetivo de
examinar o conteúdo das subseções de cada metade de Levítico, a fim de descobrir
quais os padrões que daí emergem. Os primeiros sete capítulos tratam da legislação
cultual pertinente aos sacrifícios.
A legislação principia com uma subseção que fala dos holocaustos
particulares (capítulo 1), ofertas acessórias de manjares (capitulo 2) e uma classe de
sacrifícios conhecidos como sacrifícios pacíficos (capítulo 3).69
A subseção subseqüente (4:1-5:13) lida com o importante assunto das ofertas
pelo pecado (hattā‟t, singular; hattā‟t‟ôt, plural). As categorias de pessoas que devem
oferecer este sacrifício particular são descritas em ordem descendente de
posicionamento social, começando com os sacerdotes (4:3-12) e seguindo-se com a
congregação como um todo (4:13-21), os líderes tribais (4:22-26), e finalmente o
indivíduo comum, enquanto indivíduo (4:27-35). Procedimentos específicos são
apresentados para cada classe. De modo geral, os animais sacrificais usados pelas
duas primeiras categorias eram novilhos; pelas duas últimas categorias, eram usa-
dos bodes e Cabras, respectivamente.
As ofertas pela culpa („āšam) constituem a classe final de sacrifícios
analisados (5:14-6:7). Parece que estas possuíam aplicação mais limitada que as
ofertas pelo pecado anteriormente apresentadas. Não existe uma classificação das
pessoas, apenas de suas ofensas. São três estas ofensas: defraudamento do
Senhor em assuntos de coisas sagradas e ou dons (5:15-16), transgressões
inadvertidas dos mandamentos do Senhor, sem consciência do ato (5:17-19) e o
testemunho falso sob juramento solene (6:1-7). Os animais usados nestes três casos
são ovelhas, jovens ou adultas.
O texto volve-se agora para as especificações de como os sacerdotes devem
lidar com estes sacrifícios (6:8-7:38). A seqüência e a mesma, com exceção dos
versos que lidam com as ofertas pacíficas, que aparecem em último lugar (7:11-21,
28-34). Esta subseção recebe o acréscimo de provisões para os sacerdotes (7:8-10),
algumas instruções avulsas para o povo (7:22-27) e um resumo e conclusão (7:35-
38). Isto encerra a primeira seção de sete capítulos que lidam com a legislação
sacrifical. Seu conteúdo forma um todo lógico e coerentemente arranjado.
2. História sacerdotal (capítulos 8-10). A segunda principal seção de
Levítico cobre apenas três capítulos (8-10). Trata da instalação de Arão e seus filhos
como sacerdotes que têm a seu cargo o santuário. O conteúdo temático da
passagem divide-se em quatro partes: (1) prólogo das instruções (8:1-5); (2)
descrição do início da cerimônia de instalação (8:6-36); (3) descrição da conclusão
da cerimônia, que deveria ocorrer uma semana mais tarde (capítulo 9); e (4) epílogo
(capitulo 10).
Este último capítulo descreve a atividade inapropriada dos sacerdotes
recentemente constituídos, Nadabe e Abiú, e sua sumária execução por Deus (10:1-
11). Após uns poucos versos de legislação sacerdotal (10:12-15), a passagem
encerra com uma narrativa histórica da investigação feita por Moisés no sentido de
haver ou não sido manuseada corretamente a oferta pelo pecado (10:16-20).
É evidente, portanto, que toda esta seção de três capítulos trata com o tópico
principal da instalação do sumo sacerdote e sua família, em seus respectivos ofícios.
Todo o tópico é seguido em seus passos lógicos.
69
Estas ofertas são abordadas outra vez em Levítico 6:9-13, 6:14-18, e 7:11-21 (como na oferta por
ações de graças). Ali a ênfase repousa sobre a administração dos sacrifícios por parte dos
sacerdotes; aqui, a legislação enfatiza mais o papel do ofertante.
30

Alguns comentaristas têm-se empenhado em dificuldade por encontrarem


regulamentações de sacrifícios repetidas nos capítulos 6 e 7, uma vez que o assunto
fora abordado em capítulos precedentes.70 Eu sugeriria que o conteúdo dos
capítulos 8 a 10 prove uma explanação parcial para esta característica do texto. Os
capítulos 6 e 7 têm a ver com a forma como os sacerdotes deveriam lidar com os
sacrifícios em seu ministério em favor do povo. Mas a ênfase das instruções
precedentes dizia respeito ao povo, e a parte que este deveria desempenhar ao
oferecer os referidos sacrifícios. Adicionalmente, esta ênfase relacionada com os
sacerdotes, nos capítulos 6 e 7, conduz de modo lógico aos tópicos dos capítulos 8
a 10.
Em certo sentido, portanto, os capítulos 6 e 7 antecipam os capítulos 8 a 10.
Por outro lado, eles também se voltam para trás, para os aspectos especiais do
conteúdo dos capítulos 1 a 5, Eles não são repetitivos, numa maneira que retrata os
propósitos do livro. Em vez disso, acrescentam uma nova dimensão ao assunto sob
discussão e tornam possível uma transição natural entre as duas partes.
3. Leis pessoais das impurezas (capítulos 11-15). A terceira grande seção
de Levítico aborda o tema da impureza (tāmē‟, verbo) e seu tratamento. Os capítulos
desta seção lidam sucessivamente com a impureza animal (capítulo 11), impureza
decorrente do parto (capítulo 12), enfermidades classificadas como impurezas
(capítulo 13), purificação destas doenças (capítulo 14) e dejetos impuros (capítulo
15).
Uma vez que retornaremos a esta seção, algumas observações rápidas
proverão o pano de fundo. Ao entrar em contato com animais imundos, o israelita
tornava-se imundo até à tarde e deveria purificar-se ao tomar banho e lavar suas
vestes (11:27 e 28, 31 e 32).
A purificação da impureza decorrente de parto ou em conexão com dejetos
requeria o sacrifício do holocausto e da oferta pelo pecado (12:6-8; 15:15 e 30). A
purificação do estado lepromatoso envolvia todo o espectro sacrificial: holocausto,
oferta de manares, oferta pela culpa („āšām) e a oferta pelo pecado (hattā‟t; 14:12 e
13, 19-23).
Um importante ponto a ser observado é que a purificação da impureza não
requeria algum tipo de sacrifício diferente daquele que previamente fora requerido
pelo pecado. Ofertas pelo pecado e holocaustos eram apresentados tanto pelo
pecado quanto pelos tipos mais severos de impurezas. Uma vez mais, esta seção de
Levítico pode ser vista com bastante clareza como constituindo um todo coerente.
4. Dia da Expiação (capítulo 16). Com o capítulo 16, que apresenta a
legislação atinente ao Dia da Expiação e seus serviços, chegamos ao final da
legislação que apresentava os sacrifícios prescritos. Desta forma, o ritual do Dia da
Expiação serve como ponto culminante e clímax do sistema sacrificial esboçado em
Levítico.
O capítulo 16 também constitui uma transição notória entre as duas grandes
partes do livro. Da legislação passa-se agora aos requisitos e obrigações pendentes
sobre os que observavam a lei de Deus. Assim, o Dia da Expiarão, como “camada
superior do sistema, não apenas funcionava como ápice da legislação dos serviços
sacrificiais, como ainda demarca o centro temático e o ponto de mudança do livro de
Levítico.

70
G. J. Wenham, “The Book of Leviticus”, The New International Commentary on the Old Testament
3 (Grand Rapids, 1959), página 117.
31

3.3.2. Visão Geral: Capítulos 17-27

A segunda metade de Levítico tem sido identificada como o Código da


Santidade. Suas estipulações de obrigações estendem-se do capítulo 17 ao capítulo
25. O capítulo 26 pronuncia bênçãos e maldições sobre obedientes e desobedientes,
respectivamente. O capítulo 27 conclui o livro com certas leis relacionadas com
votos dedicatórios.
Tem existido alguma discussão entre os comentaristas a respeito da
existência de uma progressão lógica nas instruções apresentadas no Código da
Santidade. Para o nosso presente propósito, assumiremos que isto ocorre. Uma
coisa, entretanto, é evidente: a segunda metade do livro contém uma coleção de
tipos similares de legislação, e isto se acha em contraste com a legislação sacrificial
encontrada na primeira metade.
Duas outras características unem estás coleções de leis na segunda metade
de Levítico: (1) o uso do mesmo tipo de fórmula introdutória em suas respectivas
seções e (2) o ímpeto teológico para a sua observância, que aparece em
declarações recorrentes: “Santos sereis, porque Eu, o Senhor vosso Deus, sou
santo” (Levítico 19:2). Decorre daí o caráter razoável da identificação desta bem
organizada coleção de leis como sendo o Código da Santidade.
Embora algumas autoridades continuem vendo Levítico como o resultado de
uma evolução através de sucessivos estágios71 – o que representa um curioso
retorno a uma geração passada de eruditos - a evidência de sua organização
sucinta, assim como a estrutura temática e literária integrada, oferecem apoio a sua
unidade e singularidade de autoria.

3.4. ESTRUTURA LITERÁRIA DE LEVÍTICO (QUIASMA)

O presente autor acredita que a evidência permite que se avance um passo


para além do presente esboço de organização de Levítico, encontrado nos
comentários. Ao utilizar as unidades de conteúdo já identificadas pelos eruditos no
passado, estamos agora em condições de vislumbrar estas seções dentro de uma
configuração literária cuja arquitetura é ainda mais precisa e mais estética do que
até então se havia percebido.
Esta forma de organização literária é conhecida como quiasma, um artifício
que unifica a composição (no todo ou em parte) ao arranjá-la em suas partes
correspondentes numa relação invertida, umas em relação às outras. A sugestão do
presente autor é que o livro de Levítico (enquanto peça literária) pode ser disposto
num grande quiasma, que se estabelece ao longo de todo o livro.
O propósito ao se buscar evidência de que este artifício efetivamente foi
usado pelo autor bíblico, é teológico. A conexão teológica é que a forma de um
escrito complementa sua função. O meio definidamente é de valor ao se apresentar
a mensagem, e pode contribuir para a sua compreensão.
A idéia de que os quiasmas podem ser encontrados no livro de Levítico, não é
nova. Bom número de exemplos tem sido isolado. Nenham observa quatro destes
em seu comentário de Levítico (nos capítulos 8, 15, 20 e 24). Sua análise de Levítico
24:1622 pode ser citada como típica.72

71
M. Noth, Leviticus, Old Testament Library (Philadelphia, 19 77), página 12.
72
Wenham, pagina 312.
32

A - estrangeiro residente e israelita nativo (v. 16)


B - tiram a vida de um homem (v. 17)
C - tiram a vida de um animal (v. 18)
D - tudo o que ele fizer, deve ser-lhe feito (v. 19)
D‟ - tudo... que deve ser feito a ele (v. 20)
C‟ - matar um animal (v. 21a)
B‟ - matar um homem (v. 21b)
A‟ - residente estrangeiro e israelita nativo (v. 22)

O uso do quiasma como artifício literário é comum no AT. Parece que ele foi
utilizado freqüentemente a fim de demonstrar a unidade de um evento de duplo
aspecto. O grande quiasma sugerido por Levítico poderia igualmente destinar-se a
enfatizar a unidade de todo o livro.

3.4.1. Procedimentos Para se Determinar o Quiasma

Existem vários pontos diferentes a partir dos quais se pode proceder a


determinação de uma estrutura tipo quiasma: (1) a partir das extremidades opostas
de determinada passagem; (2) a partir de seu ponto central; ou (3) a partir de
elementos potencialmente balanceadores de natureza similar, e que podem ser
distribuídos ao longo das porções paralelas do quiasma.
No caso de Levítico, temos um ponto de partida facilmente identificável a
partir do qual é possível trabalhar, ou seja, a peça legislativa central que trata do Dia
da Expiação (capítulo 16). Uma vez que esta narrativa encerra a primeira grande
seção temática do livro (e, deste modo, serve de introdução à segunda), pode ela
ser usada como o fulcro a partir do qual se elaboram as extremidades opostas do
quiasma. O posicionamento da legislação do Dia da Expiação e, portanto,
significativa, tanto estrutural quanto teologicamente.
As duas metades do livro, que se estendem em ambas as direções a partir
deste ponto central (Levítico 16), consistem de legislação cultual no primeiro caso
(capítulos 1 a 15) e de legislação moral e ética no segundo caso (capítulos 17 a 27).
Desde já estes elementos podem ser vistos como equilibrando-se um diante do
outro, em certa medida como se fossem as duas “pernas” de um quiasma, mas é
necessário examiná-las com maior grau de detalhe a fim de observar
correspondências adicionais. Começaremos examinando o bloco central de material,
localizado em cada uma das porções propostas deste nosso quiasma.
1. B‟ Legislação sacerdotal (capítulos 21 e 22). Quando as duas metades
de Levítico são examinadas individualmente, torna-se evidente que nenhuma é
uniforme em conteúdo. Em particular, a legislação cultual da primeira metade
(capítulos 1ª 15) é partida ao meio pela narrativa histórica que retrata o sacerdócio e
a instalação de Arão e seus filhos neste ofício (capítulos 8 a 10). O exame do Código
da Santidade indica que também ali existe uma seção específica - ou seja, dentro da
segunda metade do livro - em que o assunto é o sacerdócio, qual seja a dos
capítulos 21 e 22. Este material é subdividido em três partes.
A primeira parte (Levítico 21;1 a 22: 9) analisa os requisitos pessoais, sociais
e físicos que um sacerdote necessitava preencher a fim de revelar-se aceitável ao
ofício. Teria ele de evitar coisas que pudessem contaminá-lo. Teria, de ser
circunspecto em sua vida marital, além de fisicamente saudável.
A pureza que o sacerdócio funcionante teria de manter, é apoiada nesta
passagem mediante o uso de termos que designavam impureza. Por exemplo,
33

nestes 33 versos a palavra hebraica para “impuro/impureza” ocorre cinco vezes; o


termo correspondente a “profano/profanar” aparece quatro vezes; e o termo para
“imundo/imundícia” é citado três vezes. Esta terminologia muito se aproxima daquela
que encontramos em Levítico 11 a 15. Contudo, os aspectos de impureza ali
identificados em relação ao adorador israelita, no presente caso foram adaptados no
sentido de corresponder aos casos dos sacerdotes.
A segunda parte (Levítico 22:10 a 16), por outro lado, revela maiores
conexões com o que e encontrado em Levítico 5 a 7. Por exemplo, é o caso de se
proceder mal com os bens sagrados. A abordagem soa similar aquela que aparece
no primeiro dos três casos abrangidos pela oferta pela culpa na primeira metade do
livro (Levítico 5:15 e 16). Até mesmo a restituição do quinto adicional - acrescido ao
que havia sido fraudado - é comum às duas passagens (cf. 5:16 e 22:14).
A seção final (Levítico 22:17 a 33) tem a ver com as qualificações dos animais
aceitáveis como ofertas sacrificais. Aqui encontramos outro conjunto de instruções
que regulamentam a conduta dos sacerdotes diante do sistema sacrifical. Isto se
assemelha bastante a Levítico 6 e 7, onde os sacrifícios são revistos com o objetivo
de descrever em maiores detalhes o modo como os sacerdotes deveriam manuseá-
los.
Assim, ao procurarmos uma passagem, na segunda metade do livro, que seja
paralela em conteúdo aquilo que encontramos em Levítico 8-10 (história sacerdotal),
encontramos Levítico 21-22 (legislação sacerdotal). O primeiro destes dois capítulos
(21) lida com a forma como os sacerdotes deveriam evitar o tornarem-se impuros e,
assim, assemelha-se às provisões aplicáveis ao adorador israelita, encontradas em
Levítico 11-15. O segundo destes capítulos (22) provê instruções adicionais para o
manuseio do sacerdote no tocante ao sistema sacrificial, e possui similaridades com
as instruções encontradas em Levítico 5-7.
Levítico 8-10 preserva a narrativa histórica descritiva da instalação dos
primeiros sacerdotes. Uma vez que esta ocorreu apenas uma vez, não é repetida na
segunda metade do livro. O que o autor fez em termos de estrutura literária, contudo,
foi situado numa posição paralela na segunda metade do livro, e é um bloco de
material legislativo que trata dos sacerdotes que haviam sido empossados e das
condições que eles deveriam preencher a fim de se manterem consagrados.
É de interesse observar que não apenas a legislação sacerdotal da segunda
metade (Levítico 21 e 22) possui uma relação paraleIa com a história sacerdotal da
primeira metade (Levítico 8-10), como também existe uma relação inversa deste
mesmo bloco de materiais com os capítulos 1-7 e 11-15. A questão da impureza
sacerdotal é tratada em primeiro lugar (Levítico 21), pelo fato de a impureza haver
sido o último tópico discutido na primeira metade do livro (Levítico 11-15). A
supervisão sacerdotal dos sacrifícios é discutida em último lugar (Levítico 22),
porque matérias de sacrifícios haviam sido as primeiras a receberem abordagem na
primeira metade do livro (Levítico 1-7). Estas relações acham-se estabelecidas sob a
forma de quiasma, qual seja, A:B: :B:A.
2. A‟ Legislação cultual (capítulos 23-25). Volvemos agora a nossa
atenção ao conjunto de legislações encontrado em Levítico 23-25, o qual possui
caráter cultual. Aqui encontramos leis para a observância dos festivais (Levítico 23),
para o ministério dos sacerdotes em conexão com o mobiliário sagrado do primeiro
compartimento do tabernáculo (Levítico 24:1-9), e para a observância dos anos
sabáticos e jubileu (Levítico 25). Em essência, Levítico 23-25 contém duas
subseções de legislação cultual. Uma das seções trata do sábado e dos festivais
conduzidos durante o ano (sábado; festivais da primavera e do outono). O conteúdo
34

da segunda seção tem a ver com festivais periódicos, os quais ocorriam a cada
sétimo ano e no qüinquagésimo ano (ano sabático; ano do jubileu).
Estes dois tipos de legislação festival (Levítico 23 e 25) se relacionam, no
sentido que o segundo é modelado aproximadamente de acordo com o primeiro. Por
exemplo, o sábado semanal (Levítico 23:1-3) é expandido para o ano sabático
(Levítico 25:1-7). Da mesma forma, a Festa das Semanas-Pentecoste (Levítico
23:15-21) é expandida para o ano jubileu (Levítico 25:8-55). Idéias similares são
novamente repetidas, mas elas recebem diferentes aplicações.
É igualmente esse o tipo de relacionamento existente entre Levítico 1-5 e
Levítico 6-7, na primeira metade do livro. Por exemplo, cinco sacrifícios principais
são apresentados duas vezes. Mas na primeira vez (capítulos 1-5) eles são vistos a
partir do ponto de vista da pessoa que os oferece; na segunda vez (capítulos 6 e 7),
são vislumbrados a partir do ponto de vista do sacerdote que apresenta o sacrifício.
Ambos os grupos de materiais têm conteúdo cultual, já que lidam com o sistema
sacrificial.
De modo semelhante, ambos os grupos de materiais encontrados no final do
livro (capítulos 23-25) são de caráter cultual, embora sejam um tanto diferentes os
aspectos do culto com os quais eles lidam. A extensa lista de sacrifícios oferecidos
nos festivais (veja Números 28-29) ilustra claramente a íntima conexão entre os
sacrifícios de Levítico 1-7 e os festivais de Levítico 23-25.
Entre estes dois capítulos que tratam dos dois tipos de festivais, encontra-se
Levítico 24. Os versos 1 a 9 contém alguma legislação relativa ao tabernáculo; os
versos 10 a 23 registram uma narrativa histórica. Não se percebe unidade literária
entre Levítico 1-5 e 6-7, que corresponda a estes materiais. Contudo, alguns
vínculos de relacionamento podem ser detectados se o material for examinado mais
de perto.
Levítico 24:1-9 prove instruções quanto ao cuidado que os sacerdotes devem
tomar com o candelabro de ouro e suas sete lâmpadas, com a mesa e seus pães - e
ambos estão situados no lugar santo. Para servir em relação atestes objetos,
necessário era que o sacerdote adentrasse o tabernáculo em base regular. Tinha ele
também de entrar no tabernáculo em conexão com certos sacrifícios e para poder
aspergir o sangue diante do véu interior e imprimir um pouco deste sangue nos
cantos do altar de incenso (Levítico 4:5-7, 17-18).
Havia três peças de mobiliário no lugar santo. A legislação de Levítico 4
refere-se ao ministério do sacerdote em conexão com o altar de incenso, ao passo
que Levítico 24 se refere a seu ministério em conexão com o castiçal e a mesa.
Assim, as duas passagens em cada metade do livro complementam-se mutuamente
e completam o quadro. Embora não exista unidade estrutural correspondente, direta,
que permita equilibrar Levítico 1-7 com Levítico 24, uma correspondência temática
acha-se presente em ambas as seções, pois elas se referem ao mesmo local de
ministração, o lugar santo, com suas três peças de mobiliário.
Outro aspecto da relação entre Levítico 1-7 e Levítico 23-25, é a progressão
numérica que os textos demonstram. Por exemplo, nos sacrifícios de Levítico 1-7,
cinco são listados na primeira subseção (capítulos 1-5). Dois outros são adicionados
na segunda subseção (capítulos 6 e 7): a oferta do sumo sacerdote no aniversário
de sua posse (Levítico 6:20-23) e a oferta de ação de graças (Levítico 7:12-21).
Na passagem de Levítico 23-25 são mencionados sete festivais na primeira
subseção (Levítico 23). Estes não são repetidos na segunda subseção (Levítico 25),
mas dois outros elementos são adicionados: o ano sabático e o ano jubileu.
Portanto, os sacrifícios começam sendo cinco, dois outros são adicionados, de modo
35

a serem sete. Por outro lado, os festivais começam com sete e dois outros são
adicionados. Mas os festivais não são repetidos ao serem agregados dois outros, de
modo que, em certo sentido, ocorre um decréscimo, e não acréscimo. Isto resulta
num padrão crescendo: decrescendo entre estes dois blocos de material.
Em Levítico 24:10-23 o autor se afasta brevemente de preocupações cultuais
a fim de recontar um evento ocorrido na peregrinação de Israel, envolvendo um caso
de blasfêmia. Um homem, por um lado descendente de israelita, foi considerado
culpado de blasfêmia contra Deus, havendo sido apedrejado por seu crime. A
narrativa parece interromper a legislação cultual apresentada em Levítico 23-25. Em
certo sentido isto é verdade, mas o evento torna-se também uma ocasião para que
legislação adicional seja apresentada.
Sendo assim as coisas, em termos de estrutura literária é mais importante
observar a natureza deste material. Trata-se primariamente de um recital de um
episódio histórico. Apenas secundariamente relaciona-se ele com a apresentação de
leis naquela ocasião. Embora Levítico seja apresentado numa moldura histórica
(conforme tem sido enfatizado por comentaristas)73,a apresentação de eventos
históricos efetivos é rara, Tem sido salientado que apenas duas narrativas históricas
se encontram registradas em todo o livro (Levítico 8-10; 24:10-23).74 O que
poderíamos aqui salientar, é que estas duas narrativas acontecem nas duas
metades diferentes do livro, de modo que ambas se balançam entre si. Elas não se
correspondem diretamente, em termos de sua localização dentro da estrutura em
quiasma do livro, mas este balanço ocorre no sentido de fazer com que cada metade
de Levítico apresente uma narrativa histórica.
3. C‟ Leis morais pessoais (capítulos 17-20). Os elementos finais do livro
a requererem comparação, encontram-se nas seções de Levítico 11-15 (na primeira
metade do livro) e Levítico 17-20 (em sua segunda metade). Ao passo que os
capítulos 11-15 tratam de leis pessoais de impurezas, os capítulos 17 a 20 abordam
leis morais pessoais.
Ambos os blocos de materiais começam com legislação acerca de alimentos.
Levítico 11 trata de diferentes aspectos de animais, peixes, aves, etc., os quais os
tornam imundos. Depois de tratar deste assunto no sentido de algumas observações
quanto a animais sacrificiais, Levítico 17 acrescenta a proibição do uso alimentar do
sangue dos animais. A passagem de Levítico 17:15-17, acerca do contato com
animais mortos, é quase que uma citação direta de Levítico 11:39 e 40. Também as
penalidades e as instruções quanto à retificação são as mesmas em ambos os
casos.
A seção sobre impurezas da primeira metade do livro prossegue então com
as leis acerca do parto e puerpério (Levítico 12). As leis morais da segunda metade
do livro prosseguem com instruções relativas ao assunto do matrimônio (Levítico
18).
Levítico 13 a 14:32 abrange o diagnóstico e o tratamento (ritual) de 21
diferentes espécies de doenças dermatológicas do ser humano e mais três relativas
a vestuário, alcançando o total de duas dúzias de casos diversos. Levítico 19
encarrega-se de uma série de duas dúzias de leis diferentes, derivadas dos Dez
Mandamentos.75

73
Ibidem, página 6; Noth, página 9.
74
Noth, página 10.
75
Virtualmente todos os Dez Mandamentos são aqui representados por via das aplicações
ampliadas, mas elas não necessariamente ocorrem na ordem oferecida por Êxodo 20. Minha própria
divisão pessoal deste capítulo, tendo em vista chegar a um total de 24 leis principais, começa com os
36

Outro balanceamento de materiais pode ser visto em Levítico 15 e 20. Levítico


15 ocupa-se de impurezas causadas por dejetos, principalmente menstruais ou
venéreas. Da mesma forma, o cerne da legislação de Levítico 20 (versos 10 a 21)
ocupa-se de pecados sexuais. O assunto da menstruação é comum a estes dois
capítulos. Levítico 15 trata da impureza da menstrução (versos 19 a 30), ao passo
que Levítico 20 aplica esta situação ao intercurso sexual (verso 18).
Antes e depois destas leis sexuais de Levítico 20, aparecem algumas
injunções gerais quanto a se observar a lei do Senhor (versos 7-9, 22-26). A última
destas duas passagens conclui com uma forte exortação para que se faça distinção
entre o limpo e o imundo, precisamente a situação abordada em Levítico 11-15.
Levítico 14 contém uma seção acerca de casas imundas (versos 33-57), ao passo
que a primeira parte de Levítico 20 trata de como os israelitas poderiam tornar
impura a casa de Deus através de sua idolātria (Levítico 20:3).
A vista destas observações parece, pois, ser razoável concluir em favor de
uma correspondência direta entre os assuntos destas duas seções, mesmo que elas
tratem de aspectos diferentes de assuntos similares. Os dois grupos de legislação
podem ser esboçados conforme segue:

LEIS PESSOAIS SOBRE IMPUREZAS LEIS PESSOAIS (MORAIS E ÉTICAS)


A – cap. 11 – leis sobre alimentos A‟ – cap. 17 – leis sobre alimentos
B – cap. 12 – leis sexuais: parto B‟ – cap. 18 – leis sexuais: matrimônio
C – cap. 13-14a – doenças variadas C‟ – cap. 19 – leis variadas
D – cap. 14b – casas inundas D‟ – cap. 20a – contaminação da casa
(humanas) de Deus
E – cap. 15 – leis sexuais: dejetos E‟ – cap. 20b – leis sexuais: intercurso

O padrão neste grupamento não é do tipo quiasma dentro das seções em si.
Em lugar disto, cada um deles segue um paralelismo sinonímico, sob o padrão
A:B:C:D:E: :A‟:B‟:C‟ :D‟:E‟. Entretanto, estes dois blocos de materiais estão
localizados em posições do tipo quiasma, uma vez que ocorrem de ambos os lados
da legislação do Dia da Expiação (Levítico 16), que representa o centro do livro de
Levítico.

3.4.2. Bênçãos e Maldições; Votos Dedicatórios (Capítulos 26 e 27)

As duas seções finais de Levítico poderiam ser mencionadas antes de


apresentarmos a informação sob a forma de quadro.
A primeira destas, a das bênçãos e maldições, encontra-se em Levítico 26. O
material acha-se separado das leis de Levítico 17-25 exatamente do modo como as
bênçãos e maldições do concerto correspondem a uma seção separada do
formulário do concerto do Oriente Próximo. 76 Elas servem aqui como adequado
resumo de tudo quanto ocorreu antes no livro.
Estas bênçãos e maldições não se destinam apenas àqueles que observam -
ou não - as leis dos capítulos precedentes. Diziam também respeito aqueles que
participavam - ou não - das ofertas dos sacrifícios descritos na primeira metade de

versos 3a, 3b, 4, 5, 9, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 19, 20, 23, 26a, 27, 29, 30, 31, 32, 33, 35.
76
As cinco principais seções do concerto são: (1) preâmbulo, (2) prólogo, (3) estipulações, (4)
testemunhas e (5) bênçãos e maldições. Para este esboço, veja especialmente George E.
Mendenhall, Law and Covenant in Israel and the Ancient Near East (Pittsburgh, 1955); Idem,
“Covenant”, IDB (Nashville, 1962”).
37

Levítico. Este arranjo muito se assemelha ao do concerto, no qual as precedentes


duas metades do livro, agora vistas como um todo (capítulos 1 a 25), aparecem na
mesma posição que as estipulações do concerto. As bênçãos e maldições servem
como adequada peça final de todo o conjunto legislativo. Por conseguinte, é
apropriado que estejam fora da estrutura em forma de quiasma do livro, ou seja,
após a segunda coluna do quiasma.
Algo semelhante pode ser dito a respeito do capítulo 27, uma declaração de
encerramento que trata dos votos dedicatórios. Não se trata apenas de um apêndice
aleatório e sem sentido; aparece nesta posição com um fim específico em vista. Da
mesma forma como a pessoa poderia entrar em concerto com Yahweh ao assumir o
voto de ser fiel e leal vassalo a Ele (cf. Êxodo 24:3-8), assim esta seção sobre votos
em geral aparece como conclusão natural de todo o relacionamento de concerto
apresentado no livro de Levítico. Uma vez que a resposta ao relacionamento de
concerto que se oferecia, podia ser assumida através de um voto, é apropriado que
esta coleção de votos dedicatórios apareça neste ponto da composição de Levítico.
Do mesmo modo que o capítulo precedente este conjunto de instruções quanto a
votos aparece fora da estrutura em quiasma do livro como um todo.
O relacionamento das diversas partes de Levítico pode ser resumida agora
num quadro, onde se observará a estrutura em quiasma do livro. Observe que o
capitulo 16 (legislação do Dia da Expiação) foi posicionado no centro, na porção
superior do quadro, a fim de denotar sua posição central dentro do livro. As colunas
da esquerda e da direita esquematizam as duas “pernas” do quiasma. A coluna da
esquerda deveria ser lida de baixo para cima (capítulos 1-15), ao passo que a coluna
da direita deveria ser lida de cima para baixo (capítulos 17-25). Observe os seis
grandes grupamentos que são paralelos entre si (três grupamentos em cada coluna)
e a ordem invertida das subseções menores (a, b, c, etc.), diante de suas
contrapartes.

3.5. ALGUNS VISLUMBRES TEOLÓGICOS

3.5.1. Justificação/Santificação

Nossa primeira observação teológica tem a ver com a natureza dos materiais
encontrados nas duas metades de Levítico. Em termos amplos, pode-se dizer que a
primeira metade do livro dá cobertura ao sistema de sacrifícios; a segunda metade
esboça a forma como as pessoas devem viver. O. T. Allis observou que Levítico
pode ser visto como o mais legalista dos livros do VT, uma vez que parece governar
através de preceitos ou princípios todos os aspectos da vida. Ainda assim, nenhum
outro livro do VT enuncia de modo mais claro a redenção que é encontrada em
Cristo.77
O sistema sacrificial da primeira metade de Levítico traz à cena os sacrifícios
expiatórios. Em o Novo Testamento, a morte expiatória de Cristo tornou certa e
segura à verdade da justificação pela fé. Os sacrifícios prescritos em Levítico
antecipavam Sua morte viçária. Podemos assim inferir que esta é a seção do livro
que trata do assunto da justificação, conforme mediada através do sistema do VT.
Anotamos este ponto em nosso quadro ao colocarmos o termo “Justificação” no alto
da primeira seção do quiasma.

77
O. T. Allis, “Leviticus”, New Bible Commentary, 29 edição (Grand Rapids, 1954), página 135.
38

ESTRUTURA EM QUIASMA DO LIVRO DE LEVÍTICO

“JUSTIFICAÇÃO” “SANTIFICAÇÃO”
D
Capítulo 16
Dia da Expiação
LEIS PESSOAIS DE
LEIS MORAIS PESSOAIS
IMPUREZAS
(e a)
Cap. 15, leis sexuais: dejetos Leis sobre alimentos, cap. 17
(d b)
Cap. 14, casas humanas
Leis sexuais: matrimônio, cap. 18
imundas
(c c)
C C‟ Leis variadas, cap. 19
Cap. 13, doenças várias
Caps. Caps.
11-15 17-20

Cap. 12, leis sexuais: Contaminação da casa de Deus,


nascimentos (b d) cap. 20a

Cap. 11, leis sobre alimentos (a e) Leis sexuais: intercurso, cap. 20b
História Sacerdotal Legislação Sacerdotal
(c a)
Cap. 10, mau desempenho Aptidão ao sacerdócio, cap. 21
Cap. 9, fim da inauguração
(b b)
Adequação sacrificial, cap. 22
B B‟
Caps. Caps.
8-10 21-22
Cap. 8, início da inauguração (a o)
Legislação Cultual Legislação Cultual
(b a)
Caps. 6-7, série de sacrifícios Série de festivais A, cap. 23
A A‟
Caps. Caps.
1-7 23-25

(o b)
Sustento do santuário, cap. 24a
História: caso de blasfêmia cap.
(o c) 24b

Caps. 1-5, série de sacrifícios (a d) Série de festivais B, cap. 25


E. Bênçãos e Maldições, cap. 26
F. Votos Dedicatórios, cap. 27

Tanto no Antigo quanto em o Novo Testamento o povo de Deus é chamado a


uma vida santa. Conforme citamos antes, esta ênfase particular foi apresentada no
Código de Santidade da segunda metade de Levítico. As palavras hebraicas e
gregas usadas para descrever este viver santo, podem ser resumidas sob o nosso
termo “santificação”. Conseqüentemente, identificamos a segunda porção do nosso
quiasma sob esse termo.
Uma vez que a justificação recebe extenso tratamento na primeira metade, e
a santificação recebe o mesmo tratamento na segunda metade do livro de Levítico,
podemos ver este livro como formando um todo harmonioso ao prescrever a vida
espiritual total do povo de Deus dos tempos antigos. Embora algumas das
estipulações individuais tenham sido revistas diante da presente era, o projeto
básico da experiência espiritual do povo de Deus em Levítico é ainda válido hoje, em
seus traços gerais. Em certo sentido, é notável que um livro escrito há 3.500 anos
39

seja ao mesmo tempo tão atualizado!

3.5.2. Dia da Expiação: Centro Estrutural e Temático de Levítico

Estruturas em quiasma, tais como a que observamos no arranjo literário de


Levítico, eram usadas por várias razões nos escritos do VT. Uma das principais
razões era a facilidade com que, através deste artifício, o autor conseguia enfatizar o
elemento posicionado na junção ou fulcro do quiasma.
Em Levítico, o fulcro é a legislação atinente ao Dia da Expiação. Esta é uma
maneira de se dizer, através da estrutura literária, que o assunto do Dia da Expiação
jaz no próprio cerne do livro de Levítico. Conseqüentemente, dever-se-ia salientar a
sua importância como centro temático e estrutural da mensagem de Levítico.
Em ponto anterior deste trabalho foi declarado que a narrativa do Dia da
Expiação parecia ser a peça culminante da legislação sacrificial. Nossas
observações posteriores quanto à estrutura literária do livro, tendem agora a
confirmar aquela opinião. Levítico 16 e a culminação temática e clímax do sistema
sacrifical do livro. É também o centro e clímax de sua estrutura literária. Estes dois
fatores se harmonizam entre si e conduzem a uma mútua ênfase.

3.5.3. Estrutura Literária e Transferência do Pecado ao Santuário

Estudos recentes têm demonstrado como sendo bíblico o conceito de que os


pecados dos israelitas arrependidos (culpados e sujeitos à responsabilização) eram
transferidos ao santuário, sempre que os penitentes ofereciam pela fé as ofertas
pelo pecado requeridas pelo sistema. 78 Poderia parecer que tal transferência de
responsabilidade seria capaz de contaminar o santuário. Entretanto, foi observado
que aquilo que poderia parecer uma contaminação “por direito” ou “legal” do
santuário, jamais é explicitamente apresentada como podendo contaminá-lo.
Embora não existam declarações explícitas quanto a isto, existem três modos
a partir dos quais se pode inferir observados os dados de Levítico, que efetivamente
era esta a compreensão da comunidade israelita.
1. Levítico 16:16 declara que no Dia da Expiação o sumo sacerdote “fará
expiação pelo santuário /lugar santíssimo/ por causa das impurezas dos filhos de
Israel e das suas transgressões e de todos os seus pecados; da mesma sorte fará
pela tenda da congregação /lugar santo/, que estará com eles no meio das suas
impurezas”. O resultado desta purificação do santuário, inclusive do altar dos
holocaustos (verso 20), era a purificação do povo – “porque naquele dia se fará
expiação por vos, para purificar-vos; e sereis purificados de todos os vossos
pecados perante o Senhor” (verso 30).
Se a purificação do santuário resultava na purificação do povo, é evidente que
os pecados confessados deste mesmo povo (perdoados através das ofertas
sacrificiais diárias, particulares ou públicas) haviam sido previamente transferidos ao
santuário. Tal compreensão deveria haver reconhecido uma contaminação legal do
santuário ã medida que seus processos rituais eram levados a efeito.
2. Outra abordagem é aquela em que se reconhece que os padrões

78
Veja Gerhard P. Hasel, “Studies in Biblical Atonement I: Continual Sacrifice, Defilement/Cleansing
and Sanctuary”, The Sanctuary and the Atonement. V. Wallenkampf e W. R. Lesher (editores)
(Washington, DC, 1981); Angel M. Rodríguez, “Sacrificial Substitution and the Old Testament
Sacrifices”, The Sanctuary and the Atonement. Veja também o capitulo 6 deste volume, pelo mesmo
autor: “Transfer of Sin in Leviticus”.
40

orientais de pensamento e raciocínio nem sempre são os mesmos que se observam


no Ocidente. Desta forma, deve-se reconhecer o fato de que estamos lidando com
um sistema ritual de sacrifícios no contexto do Oriente Próximo. Aquilo que pode ser
claro ao pensamento oriental, nem sempre será rapidamente aparente diante do
modo pelo qual reage a mentalidade ocidental.
O ensaio do Dr. Alberto Treiyer concede consideração ao paradoxo do
sacrifício hebraico e ao princípio do intercâmbio substitutivo. Na mente dos hebreus,
o sangue sacrificial possuía simultaneamente função de contaminação e de
purificação. Assim, enquanto o sangue dos sacrifícios purificava o pecador penitente,
simultaneamente contaminava os sagrados recintos com os pecados confessados
que, em certo sentido, eram assumidos pelo santuário.
3. Uma terceira abordagem diz respeito à estrutura literária e temática de
Levítico, que foi brevemente examinada por nós.
É declarado em Levítico 16:16 que o ritual, do Dia da Expiação tinha a
intenção de purificar o santuário “por causa das impurezas dos filhos de Israel” e por
causa “das suas transgressões”. Transgressões e impurezas são as duas principais
áreas tratadas nos primeiros quinze capítulos de Levítico. Enquanto as
transgressões são analisadas em Levítico 1-7, as impurezas são tratadas em
Levítico 11-15.
A posição do ritual do Dia da Expiação como ponto mais alto destas seções
que lidam com sacrifícios referentes a impurezas e transgressões, indica uma clara
relação destes com aquele. Esta íntima relação implica em que o Dia da Expiação
servia para purificar o santuário destas transgressões e impurezas, as quais haviam
sido perdoadas e transferidas a ele ao longo de todo o ano, por meio dos rituais
prescritos em Levítico 1-15. Portanto, a função do Dia da Expiação claramente
implica numa contaminação “legal” do santuário pelo sistema sacrificial esboçado na
primeira metade de Levítico.

3.5.4. Comparação de Ofertas Pelo Pecado Diárias e Anuais (Dia


da Expiação) (Levítico 4 e 16)

Uma vez que tanto impurezas quanto transgressões eram tratadas no


sacrifício diário, público ou particular, é lógico considerar a oferta pelo pecado “final”
do ano religioso (Dia da Expiação) como culminação e reunião destas ações
periódicas e repetitivas. O posicionamento da legislação do Dia da Expiação em
Levítico enfatiza esta função final.
Nesta conexão desejamos agora comparar a oferta pelo pecado do Dia da
Expiação - o bode do Senhor (Levítico 16:8, 15) - com as duas primeiras classes de
ofertas pelo pecado em Levítico 4 - pelo sacerdote e por toda a congregação
(Levítico 4:1-21). Uma razão possível para justificar por que a proximidade deste
relacionamento não foi percebido com mais facilidade em estudos anteriores, é o
fato de serem diferentes os animais utilizados pela congregação. O animal escolhido
por Yahweh para a purificação do santuário era um bode (Levítico 16:8); o que era
empregado por toda a congregação na posição paralela era um touro ou novilho
(Levítico 4:14-15). O propósito era o mesmo, contudo, em ambas as ocasiões -
efetuar expiação por toda a congregação (Levítico 4: 13, 20; cf. Levítico 16:17).
Um novilho era usado pelo sumo sacerdote, representando assim todo o
sacerdócio no Dia da Expiação (Levítico 16:6, 33). Da mesma forma, um novilho era
usado pelos sacerdotes como oferta pelo pecado, na condição regular (Levítico 4:3).
Adicionalmente, os novilhos eram sacrificados como ofertas regulares pelo pecado,
41

e novilhos e bodes eram sacrificados como ofertas especiais pelo pecado no Dia da
Expiação - e todos recebiam à mesma designação, qual seja ofertas pelo pecado. Às
ofertas do Dia da Expiação não eram identificadas como ofertas pela “expiação”! O
fato de que ambos os grupos de sacrifícios fossem identificados como ofertas pelo
pecado, indica a similaridade entre ambos.
A identificação destes dois conjuntos de animais sacrificiais em Levítico 4 e 16
pode ser estabelecida de modo ainda mais nítido ao se observar a similaridade no
modo em que o sacerdote manipulava o sangue. Por exemplo, o sangue das ofertas
regulares pelo pecado (pelo sacerdote ou por toda a congregação) era levado ao
santuário. Da mesma forma, o sangue do novilho e do bode sacrificados no Dia da
Expiação era levado para o interior do santuário. Podemos observar quatro outros
pontos de identidade ou correspondência ao revisar os dois rituais:
1. Oferta regular pelo pecado. O sacerdote efetuava quatro coisas
principais com o sangue dos novilhos oferecidos como oferta pelo pecado, pelo
sacerdote ou por toda a congregação (Levítico 4:5-12, 17-20).
A. Levava alguma porção do sangue ao lugar santo do santuário e o
espargia sete vezes “diante do Senhor”, em frente ao véu que
delimitava o lugar santíssimo.
B. Colocava algum sangue nos cornos do altar do incenso, no lugar santo.
C. Derramava o restante do sangue junto à base do altar dos holocaustos,
no pátio do santuário.
D. Ele fazia remover a carcaça e a pele do animal para um lugar fora do
acampamento, onde eram queimados. Nenhuma carne destes
sacrifícios era comida pelo sacerdote.
2. Oferta pelo pecado do Dia da Expiação. Bom número de semelhanças
(e algumas diferenças significativas) podem ser vistas na maneira em que o sangue
do novilho selecionado em favor do sacerdote e sua ordem e o sangue do bode do
Senhor eram manipulados no Dia da Expiação (Levítico 16:11-19, 27-28).
A. O sumo sacerdote tomava o sangue do novilho e então o sangue do
bode e o levava ao lugar santíssimo. Cada um deles era espargido
sobre o propiciatório e diante do mesmo, sete vezes.
B. O sumo sacerdote deveria fazer o mesmo pela “tenda da congregação”
(o lugar santo). Esta parte do ritual não é especificada, mas o contexto
implica em que o procedimento era similar àquilo que era feito no lugar
santíssimo e no pátio. Portanto, podemos supor que ele aplicava algum
sangue do novilho e do bode nos cornos do altar do incenso e também
o espargia sete vezes (cf. Êxodo 30:10).
C. O sumo sacerdote colocava então algum sangue de ambos os animais
sacrificais sobre os cornos do altar dos holocaustos e, assim como
antes, o espargia ali sete vezes.
D. As carcaças destes dois animais, junto com suas peles, eram
removidas para fora do acampamento e quimadas. Nenhuma carne
destes animais podia ser comida pelo sumo sacerdote.
3. Comparações adicionais. Comparações adicionais podem ser obtidas a
partir destas descrições. De momento, poder-se-ia observar que os dois conjuntos
de ritos ocorriam num sentido inverso. No primeiro passo, o sacerdote levava o
sangue para dentro do santuário, ao seu ponto mais distante, ao desempenhar os
ritos: ao véu interior no caso da oferta regular pelo pecado, e ao lugar santíssimo no
caso da oferta pelo pecado apresentada no Dia da Expiação. Começava ele então a
tratar cada área sucessiva à medida que saia do lugar mais íntimo. No Dia da
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Expiação o processo representava uma purificação progressiva do santuário, do


ponto interior para o exterior, à medida que prosseguia trabalhando com o sangue
sacrificial (segundo compartimento, primeiro compartimento, pátio).
Ao passo que a localização precisa da ministrarão das respectivas primeiras
fases difiram (“uma de cada lado do véu interior), são similares em natureza. Em
ambos os casos pode-se dizer que o sangue era aspergido diante do propiciatório
por sete vezes. A aspersão do sangue diante do véu equivalia à aspersão praticada
diante do propiciatório. (Deve-se relembrar que o santuário como um todo era o
lugar de habitação de Deus. O véu, em si mesmo, não era um fim; parece que sua
função era apenas prover uma cobertura protetiva para os sacerdotes enquanto
estes ministravam no primeiro compartimento). Não existe evidência de que o sumo
sacerdote aspergisse o sangue diante do véu no Dia da Expiação. O rito no lugar
santíssimo poderia ter ocorrido durante a primeira fase da oferta regular pelo
pecado. Em virtude deste avanço em termos de localização, o sangue das ofertas
pelo pecado, no Dia da Expiação, era trazido um passo mais perto do Senhor, ou
seja, de Sua lei, que havia sido quebrada.
De acordo com a forma como as preposições são usadas em Levítico 26:14-
15, o sangue era aspergido “sobre” („al) a face do propiciatório. O propiciatório
formava a cobertura da arca e estava, portanto, localizado sobre o “testemunho” - as
tábuas da lei (Êxodo 25:21). O sentido parece ser o de que ao aspergir o sangue
sobre o propiciatório, o sacerdote estava, efetivamente, aspergindo o sangue sobre
as tábuas da lei. Se o propiciatório não estivesse ali, o sangue seria aspergido
diretamente sobre a lei.
Portanto, a expiação dirigia-se - e era efetuada, em termos finais - à lei
quebrada. Esta era a mais direta e íntima abordagem no sentido de que o sangue
podia ser trazido à relação com a lei a fim de efetuar expiação por sua violação.
Embora o Senhor estivesse velado na nuvem sobre o propiciatório (Levítico 16:2), a
ênfase no rito do sangue não dizia respeito a fazer expiação em Sua presença, e sim
em aplicar o sangue expiatório à lei - a expressa vontade de Deus - a qual fora
violada pelos israelitas através de suas transgressões. O sangue era aplicado
diretamente sobre a lei ofendida no Dia da Expiação, e neste dia somente.
A escassez de detalhes nos impede de fazermos maiores comparações entre
os ministérios da segunda fase das ofertas regulares pelo pecado e da segunda fase
da oferta pelo pecado apresentada no Dia da Expiação. Uma vez que no último caso
o sumo sacerdote supostamente fazia no lugar santo a mesma coisa que fizera tom
o sangue no lugar santíssimo, pode-se presumir que o rito envolvia novamente a
aspersão do sangue por sete vezes, Isto poderia ter sido feito sobre o altar de
incenso (cf. Êxodo 30:10). Por comparação, os cornos do mesmo altar de incenso
receberiam a impressão de sangue durante as ofertas regulares pelo pecado
(Levítico 4:7). Havia, portanto, uma semelhança de atividade no lugar santo, entre a
oferta regular pelo pecado e aquela oferecida no Dia da Expiação.
A terceira fase destes dois conjuntos de ritos referentes a ofertas pelo pecado
diferia consideravelmente. Na oferta regular pelo pecado o sangue sacrificial
remanescente era trazido do lugar santo e derramado à base do altar dos
holocaustos. Em outras palavras, ele era despejado num lugar santo depois que
parte do mesmo era usada no propósito ao qual se destinava no lugar santo do
santuário.
Em contraste, o sangue no Dia da Expiação, que dizia respeito às ofertas pelo
pecado, era primeiramente aplicado nos cornos do altar e depois aspergido sete
vezes sobre o mesmo. Em outros termos, havia um ministério do sangue junto a este
43

altar, em vez de uma deposição do mesmo junto à sua base. Assim, a oferta pelo
pecado do Dia da Expiação, no que diz respeito ao rito do sangue, não apenas
purificava o altar dos holocaustos (Levítico 16:19), como ainda o preparava para a
ministração de outra rodada anual de, sacrifícios.
As diferenças básicas entre estes dois conjuntos de ofertas pelo pecado
mostram que o sangue da oferta regular pelo pecado (pelo sacerdote/por toda a
congregação) era usado exclusivamente no lugar santo; já o sacrifício do Dia da
Expiação era ministrado em ambos os compartimentos e no altar exterior. Além
disso, o objetivo imediato era diferente. Na oferta regular pelo pecado o sacerdote ou
a congregação recebia a expiação e a purificação diretamente. No Dia da Expiação
a expiação era feita em favor do santuário, assim como a purificação; a purificação
do povo ocorria indiretamente.
Embora a quarta fase de ambos os conjuntos de rituais de sangue não seja
particularmente importante, poder-se-ia observar que a remoção das carcaças e
couros para um lugar externo ao acampamento, e sua subseqüente consumação
através de fogo, era similar nos dois casos.
Na revisão que fizemos destes dois ritos de ofertas pelo pecado, várias
similaridades foram identificadas. Cada rito passava por um procedimento de quatro
fases, em localizações do santuário que eram essencialmente semelhantes. Ambos
os conjuntos de sacrifícios são designados como ofertas pelo pecado, e de ambos
se diz que efetuavam expiação. Alguns dos detalhes quanto à maneira de
administrar o sangue também são semelhantes.
Estas semelhanças aparecem em marcante contraste com a maneira pela
qual eram manuseadas as demais ofertas do sistema sacrifical. O sangue
proveniente dos outros tipos de sacrifícios não era levado ao santuário e seus
elementos particulares não eram manipulados com a mesma forma detalhada
observada nas ofertas pelo pecado.
O propósito do escritor bíblico ao detalhar estás semelhanças, parece ter sido
o seu desejo de indicar as correspondências entre a oferta regular pelo pecado do
sacerdote e de toda a congregação (Levítico 4) e a oferta pelo pecado oferecida pelo
sacerdócio é aquela apresentada por toda a congregação, no Dia da Expiação
(Levítico 16). A ordem é sempre a mesma. Primeiro vem o sacerdote em Levítico 4,
do mesmo modo como o sumo sacerdote oferecia seu novilho em primeiro lugar no
Dia da Expiação. A oferta por toda a congregação vinha em segundo lugar em
Levítico 4, assim como vinha em segundo lugar o bode apresentado por toda a
congregação para a purificação do santuário, no Dia da Expiação. As ofertas pelo
pecado do Dia da Expiação parecem ser vistas, portanto, como uma extensão às
ofertas pelo pecado apresentadas durante todo o ano, com estas identificadas,
porém avançando para além delas.
Existe um sentido, portanto, em que as ofertas pelo pecado oferecidas no Dia
da Expiação ocupam o lugar, ou substituem, ou resumem todas as realizações
ocorridas até o dia deste festival, representadas pelas ofertas regulares pelo pecado
- e até mesmo os demais sacrifícios. Da mesma forma como as ofertas do Dia da
Expiação eram corporativas (em favor de todo verdadeiro penitente que ocupasse o
acampamento de Israel), eram também corporativas no sentido de que apareciam
em lugar de todas as ofertas pelo pecado que haviam sido oferecidas antes daquela
oportunidade, ao longo do ano. Sua posição de “camada final” dos estratos de
ofertas, na porção sacrificial do quiasma literário do livro, é igualmente sugestiva
disto.
A natureza coletiva destas ofertas pelo pecado deveria ser comparada e
44

enfatizada. Quatro categorias de ofertas pelo pecado (e não duas) são listadas em
Levítico 4. As duas primeiras envolviam o sacerdote e toda a congregação; as duas
últimas envolviam os indivíduos (dirigentes/pessoas comuns). A maneira pela qual
os ritos das duas últimas classes eram conduzidos, era também diferente. Assim, a
oferta pelo pecado do sacerdote ou de toda a congregação é enfatizada pelos
paralelismos com os ritos de sangue do Dia da Expiação. O Dia da Expiação não era
a oportunidade de lidar com indivíduos e seus pecados (embora, do ponto de vista
prático, o perdão se encontrasse disponível através dos sacrifícios da manhã e da
tarde). Em certo sentido, o dia da oportunidade havia vindo e passado durante o ano
cultual. Agora, no Dia da Expiação, era a ocasião de lidar com todos os pecados dos
filhos de Israel numa atividade coletiva.
Por boas razoes, portanto, a oferta pelo pecado (o bode do Senhor)
sacrificada no Dia da Expiação, servia para toda a congregação, à medida que ela
parece haver sido modelada de acordo com a oferta regular pelo pecado oferecida
em favor de toda a congregação (Levítico 4). Era um sacrifício corporativo, em favor
do santuário e do povo. O mesmo é também verdade quanto à oferta pelo pecado
efetuada pelo sumo sacerdote no Dia da Expiação. Tratava-se igualmente de um
sacrifício coletivo, efetuado em favor de todo o sacerdócio (Levítico 16:6, 11, 33).

3.5.5. “Ofertas Pelo Pecado” - Tradução Sugestiva

A aplicação do sangue do bode do Senhor no e diante do propiciatório


(cobertura da arca) era, obviamente, o ponto alto dos serviços do Dia da Expiação.
Levítico 16:16 explana o significado deste ato empreendido pelo sumo sacerdote. A
seguir, a minha própria tradução do texto hebraico:
“Portanto /o sumo sacerdote/ fará expiação pelo santuário, pelas impurezas
dos israelitas e por suas transgressões representadas por todas as suas ofertas pelo
pecado”.
Esta tradução difere de outras no sentido de que as últimas palavras desta
passagem (hattā‟ōt) são traduzidas como “representa das por todas as suas ofertas
peto pecado”, em lugar de “todos os seus pecados”. Uma vez que a tradução deste
termo hebraico se torna bastante importante para a compreensão do que ocorria no
Dia da Expiação, dever-se-ia dedicar alguma atenção a sua tradução. O que gera o
problema aqui é o fato de que o termo, em seu singular (hattā‟t) ou plural (hattā‟ōt)
pode ser traduzido tanto como “pecado(s)” quanto como “oferta(s) pelo pecado”. Isto
faz com que o tema da determinação da tradução correta fica a cargo de conside-
rações de sintaxe e contexto.
Uma forma pela qual se pode examinar o significado desta palavra, é através
de uma abordagem léxica direta. Ou seja, podemos ver de que modo ela é usada
em outros pontos de Levítico 16. Assim, uma pesquisa simples do capitulo indica
que ela é usada dez vezes no singular para referir-se a ofertas pelo pecado (versos
3, 5, 6, 9, 11, 15, 25 e 27). Adicionalmente, o termo ocorre duas vezes na forma
plural, com um indiscutível sentido de “pecados” (versos 30 e 34). Assim, do ponto
de vista do maior número de ocorrências, poder-se-ia argumentar que a forma
singular desta passagem denota a oferta pelo pecado, e que o plural denota
pecados.
Outra forma de examinar o significado desta palavra é através da abordagem
léxica indireta. Ou seja, poderíamos procurar determinar seu sentido nesta
passagem ao se determinar o significado dos verbos e substantivos e outras
categorias gramaticais no contexto relacionado com o termo sob questão. O verso
45

crucial para tal tipo de exame é Levítico 16:16.


1. Verbo relacionado. Este verso começa com o verbo “expiar” (kipper),
seguido da preposição “por” („al) e do objeto desta expiação, “o santuário”
(haqqōdeš, que neste contexto significa o lugar santíssimo). Gramaticalmente
falando, o santuário (lugar santíssimo) é o objeto direto da ação, ou seja, do ato de
expiação (e não os pecados e impurezas de Israel). A preposição “por” („al) acha-se
vinculada a este verbo através de uma formulação bem conhecida. Isto ocorre
também em Levítico 16:18 e cerca de duas dúzias de vezes em Levítico, fora do
presente capítulo.
Outro tipo de formulação gramatical na qual o verbo “expiar” (kipper) é usado
com a preposição “por” (ba‟ad), Isto ocorre quatro vezes em Levítico 16 (versos 6,
11, 17, 24); exemplo desta construção ocorre fora de Levítico, em: Êxodo 32:30;
Ezequiel 45:7; II Crônicas 30:18 e 19.
Um terceiro tipo no qual o verbo “expiar” (kipper) é encontrado, é quando ele é
seguido de um marcador de objeto direto („et), o qual identifica sua função gramatical
de objeto direto (por exemplo, em Levítico 16:20 o marcador de objeto direto e usado
diante de “lugar santo”, “tenda da congregação” e “altar”, indicando três objetos
diretos para a ação verbal).
Entretanto, nenhuma destas três construções ocorre em Levítico 16:16, a fim
de vincular o verbo “expiar” (kipper) com hattā‟ōt. (“pecados/ofertas pelo pecado”) ao
final do verso. Qualquer que seja o significado desta declaração, por certo não será
uma referência clara e direta à expiação de pecados. A vinculação é mais indireta.
2. Substantivos relacionados. Do verbo presente nesta passagem,
podemos passar à investigação dos substantivos aí encontrados. De acordo com
nossa passagem, o lugar santíssimo deveria ser expiado “das impurezas dos filhos
de Israel e de suas transgressões” (tradução literal).
Estes dois principais substantivos (impurezas/transgressões) provêem um
adequado resumo daquilo que fora previamente discutido em Levítico 1-15. Dever-
se-á lembrar que as transgressões foram tratadas nos capítulos 1-7 e as impurezas
nos capítulos 11-15. Deste modo, traduzir hattā‟ōt, que é o termo seguinte, como
“todos os seus pecados”, seria redundante. Pareceria que a palavra estaria a prover
apenas outra sombra de significado para o termo “transgressões”.
Prosseguindo no capítulo, uma mudança ocorre na terminologia (verso 21).
No verso 15, temos a seqüência impurezas/transgressões/ pecados ou ofertas pelo
pecado. No verso 21 a seqüência é de iniqüidades – transgressões – pecados
/ofertas pelo pecado. Quando o sumo sacerdote depõe as mãos sobre a cabeça do
bode vivo, confessa sobre este “todas as iniqüidades („awōnôt) dos filhos de Israel, e
todas as suas transgressões (pesā‟îm). “O termo iniqüidades ocupa o lugar de
“impurezas”, e o termo “transgressões” retém seu segundo lugar na seqüência. A
mesma palavra, hattā‟ōt, segue ambos os substantivos na seqüência. Se ela for
traduzida como “pecados”, torna-se ainda mais redundante no verso 21 que no verso
16, a menos que se lhe designe o sentido de “ofertas pelo pecado”.
A declaração final desta natureza ocorre em referência ao bode vivo que leva
sobre si a “iniqüidade” („awōnôt, verso 22). Nenhum dos outros termos é repetido. O
termo para “iniqüidades” é tomado da declaração principal da confissão do sacerdote
sobre a cabeça do bode (verso 21). A terminologia e o conceito de “levar a
iniqüidade” são muito bem conhecidos em outras partes do Velho Testamento. 79
Portanto, se hattā‟ōt significa “pecados” em lugar de “ofertas pelo pecado”
nestas passagens (versos 16, 21), deduz-se que o texto é bastante redundante. Se,
79
Somente em Levítico, veja, por exemplo, 5:1, 17; 7:18; 10:17; 18:25 e 26.
46

por outro lado, seu significado é de “ofertas pelo pecado”, o texto apresenta muito
mais sentido e representaria algo mais que apenas um sinônimo de mau
procedimento. Esta aparente redundância sugere (embora não prove) que este
termo pode ter sido designado pelo autor para uma função e propósito mais
contrastante, qual seja indicar “ofertas pelo pecado”.
3. Preposições relacionadas. A mais importante linha de evidências
indicativas da função e significado de hattā‟ōt no verso 16 é o modo como as
preposições se vinculam ao termo e a outras palavras do contexto. Existem várias
passagens pertinentes ao presente estudo. Acham-se listadas em ordem e oferecem
aqui em tradução e parcial transliteração, com a tradução sugestiva de “ofertas pelo
pecado”:

Lev. 16:3 - Entrará Arão no santuário com isto: um novilho para


(le) oferta pelo pecado (hattā‟t).
Lev. 16:5 - Da congregação dos filhos de Israel tomará dois
bodes para (le) oferta pelo pecado (hattā‟t).
Lev. 16:16 - Assim fará expiação (kipper‟al) pelo santuário por
causa (min) das impurezas (tume‟ôt) dos filhos de
Israel e das suas (min) transgressões (piš‟êhem) e
de (le) todas (kol) as suas ofertas pelo pecado
(hattō‟tām)
Lev. 16:21 - Arão porá ambas as mãos sobre a cabeça do bode
vivo, e sobre ele confessará todas as iniqüidades
a
(„et-kol-‟ wōnōt) dos filhos de Israel, todas as suas
transgressões (weet-kol-pis‟ehem) e por (le) todas
as suas ofertas pelo pecado (kol-hatto‟tām).
Lev. 16:30 - Naquele dia se fará expiação por vós, para purificar-
vos; e sereis purificados de (min) todos os vossos
pecados (kól-hattō‟têkem).
Lev. 16:34 - Para fazer expiação... pelos filhos de Israel por causa
(min) dos seus pecados (kol-hattō‟tōm).

Nas duas primeiras declarações temos exemplos onde a preposição (l e) é


usada com o termo que temos sob discussão (hattā‟t). Em ambos os exemplos o
termo refere-se claramente a “ofertas pelo pecado”. Isto deveria ser comparado,
pois, com a preposição (l e) que é usada com a forma plural da mesma palavra no
final do verso 16 (ítem 3), que também traduzimos como “ofertas pelo pecado”.
Outro uso similar de (l e) pode ser citado nos versos 6 e 11. Arão foi instruído a
sacrificar um novilho como oferta pelo pecado, a qual seria por ele (lō equals le, mais
o pronome pessoal para “ele”).
Tendo em vista o contraste, os dois últimos casos (números 5 e 6) provêm
claros momentos em que o plural de hattā‟t é usado para indicar “pecados”. Esta é a
única tradução possível. Mas em ambos os casos a preposição usada é min (de,
por), e não le . Este uso também poderia ser comparado com o que aparece no ítem
3. Nesta passagem (verso 16), os dois primeiros objetos indiretos (“impurezas” e
“transgressões”) são também precedidos pela mesma preposição min, em contraste
com l e que precede a ultima palavra, hattā‟ōt, que estamos discutindo. Outro caso de
uso similar de min pode ser encontrado em Levítico 16. Ao aplicar o sangue do bode
do Senhor ao altar do pátio, o sacerdote deveria purificar e santificar o mesmo de
(min) impurezas existentes entre os filhos de Israel (verso 19).
Desta forma, o uso destas duas preposições (le e min) não é aleatória em
Levítico 16. Pelo contrario, seu uso é claro e distinto. L e é usada em seu sentido
comum de “por, para”. E seu uso associa-se com ofertas pelo pecado. Min é usada
47

comumente com o sentido de “de”, e associa-se com “pecados”. Esta distinção prove
uma indicação preliminar de que nossa palavra pode ser traduzida melhor como
“ofertas pelo pecado” em Levítico 16:16. sta hipótese de trabalho conduz a um
exame mais detalhado da passagem em si.
4. Conjunção relacionada, Em adição ao uso destas duas preposições (le
e min), dois outros pontos podem ser observados com relação à nossa palavra
(hattā‟ōt) em Levítico 16:16. Um deles tem a ver com o uso de waw - conjunção (“e”),
a qual vincula os dois substantivos “impurezas e transgressões” (“das impurezas dos
filhos de Israel e das suas transgressões”). As conjunções servem para unir termos.
Se a intenção fosse que hattā‟ōt se vinculasse aos dois termos anteriores a fim de
formar um trio (ou terno), outra conjunção deveria ter sido adicionada „(“impurezas” e
“transgressões” e “pecados”). Mas este não é o caso, conforme pode ser observado
por uma simples leitura do verso /no original/.
5. Adjetivo relacionado. O adjetivo “todos” (kol) é outro termo situado no
contexto de nossa passagem principal. Ele é usado com hattā‟ōt, mas não com os
termos “impurezas” e “transgressões” que o precederam. Aqui o contraste é entre
“as impurezas dos filhos de Israel” e “suas transgressões”, de um lado, e “todas as
suas hattā‟ōt”, por outro. Se o significado das últimas palavras for “ofertas pelo
pecado” em lugar de “pecados”, então o significado poderia abranger muito bem
tudo aquilo que fora tratado dentro das duas primeiras categorias através de seus
respectivos sacrifícios. Neste caso, o termo não seria apenas uma outra categoria de
mau procedimento.
Existem, pois, três principais distinções feitas entre o modo como “impurezas”
e “transgressões” são tratadas gramaticalmente, e o modo como hattā‟ōt é tratado
no mesmo verso (Levítico 16:18). (1) “Impurezas/transgressões” são precedidas da
mesma preposição (min), enquanto hattā‟ōt é separado daqueles termos por uma
preposição diferente (l e). (2) “Impurezas”/transgressões” são unidos por uma
conjunção (“e”), ao passo que hattā‟ōt é separado dos dois termos anteriores pela
ausência de uma conjunção. (3) Hattā‟ōt é mais abrangente pelo fato da adição do
modificador “todos”, ao passo que tanto “impurezas” quanto “transgressões” não
apresentam tal distinção. Estas distinções separam hattā‟ōt do par precedente e
colocam a palavra numa categoria distinta, mais remota e mais isolada em
significado.
Em resumo, podemos dizer que existem dois significados lexicamente
possíveis para hattā‟ōt neste verso - “pecados” e “ofertas pelo pecado”. “Pecados
teria um sentido muito próximo ao de “transgressões”, que e um termo precedente
no verso. Apenas uma sombra de diferença em significado medeia os dois termos.
Se por outro lado, as três distinções, observadas efetivamente separam, esta
palavra dos termos precedentes, tanto gramaticalmente quanto em termos de
significado, então poderíamos examinar com olhos mais favoráveis a alternativa
léxica de significado, qual seja, “ofertas pelo pecado”. É opinião deste autor que a
tradução do termo como “ofertas pelo pecado” deve ser mantida em aberto como
uma possível opção.
Um relacionamento similar obtém-se da sintaxe de Levítico 16:21 (veja o ítem
4 das seis traduções listadas antes). Os três termos envolvidos nesta passagem são
“iniqüidades”, “transgressões” e hattā‟ōt. Também aqui podemos observar três
distinções.
(1) Existe uma distinção feita em termos de preposições. Ao passo que
“iniqüidades” e “transgressões” são objetos diretos do verbo neste verso,
não são precedidos de preposição. Entretanto, hattā‟ōt retém a preposição
48

e
(l ) que a separa dos dois outros termos.
(2) “Iniqüidades” e “transgressões” são ambas precedidas pelo sinal de objeto
direto („et), mas nenhum sinal de objeto direto precede hattā‟ōt.
(3) “Iniqüidades” e “transgressões” são unidas entre si pela conjunção (“e”), ao
passo que hattā‟ōt não se relaciona com as duas palavras anteriores a fim
de formar um termo.
Em virtude destas separações sintáticas entre as duas primeiras palavras e a
última, mais uma vez podemos esperar que o significado desta seja diferente do
daquelas. É o significado “ofertas pelo pecado” que oferece uma distinção mais
direta.
Nossa conclusão, a partir destas considerações, é de que nossa palavra
possivelmente pudesse ser traduzida como “ofertas pelo pecado” em Levítico 16:16
e 21, em lugar de “pecados”. Se tal significado for estabelecido para a palavra,
segue-se naturalmente a pergunta: Qual o sentido particular que um tal significado
traria a passagem?
Durante nossa discussão foi observado que se pode observar uma
identificação entre a oferta regular gelo pecado e as ofertas pelo pecado sacrificadas
no Dia da Expiação. Estas deveriam identificar-se com aquelas no sentido de
servirem como substitutas, resumo e tratamento apical e coletivo das ofertas
regulares. Diante desta espécie de compreensão acerca do relacionamento entre as
ofertas pelo pecado, diárias e anuais, a interpretação de hattā‟ōt como “ofertas pelo
pecado” nos versos 16 e 21, é algo que faria muito sentido.
As ofertas regulares pelo pecado - sacrificadas ao longo do ano - faziam
expiação pelos dois principais aspectos negativos da vida dos israelitas: pecados e
impurezas. Estas duas categorias de ofensas eram expiadas através de ofertas pelo
pecado. Nossa tradução sugestiva de “ofertas pelo pecado” para o texto de Levítico
16:16 e 21 referir-se-ia retrospectivamente às ofertas regulares (ou diárias) pelo
pecado, apresentadas durante todo o ano anterior. O sangue da oferta anual pelo
pecado (o bode do Senhor) aparecia então a fim de completar seu trabalho e
registro, conduzindo-os a um final completo.
A identificação das ofertas regulares pelo pecado e a finalidade que
possuíam, com o propósito último da oferta final pelo pecado no Dia da Expiação,
são fortemente sustentadas pela tradução potencial de hattā‟ōt em seu contexto:
“Assim /o sumo sacerdote/ fará expiação pelo santuário /lugar santíssimo/ por causa
das impurezas dos filhos de Israel e das suas transgressões, por /por conta de, em
favor de/ todas as suas ofertas pelo pecado” (verso 16).
A palavra traduzida como “transgressões” neste verso, convenientemente
sumariza tudo aquilo de que tratou Levítico 1-7. A palavra traduzida como
“impurezas” resume tudo àquilo de que tratou Levítico 11-15. E a palavra que
traduzimos como “ofertas pelo pecado”, de igual modo poderia resumir todas as
ofertas sacrificadas em favor de ambas estas principais condições que foram
tratadas na primeira metade de Levítico (capítulos 1-15), e que agora são coroadas
pela oferta pelo pecado todo abrangente, representada pelo bode do Senhor no Dia
da Expiação (Levítico 16).
Tal tradução indica fortemente que o ritual da oferta pelo pecado do Dia da
Expiação funcionava na purificação do santuário apenas dos pecados confessados
pelos israelitas penitentes. Ou seja, funcionava a fim de remover os pecados que
haviam sido confessados e transferidos ao santuário por intermédio das ofertas pelo
pecado oferecidas durante todo o ano então findo.
Estas são algumas das reações que vêm à tona quando se traduz Levítico
49

16:16 da forma sugerida, e mediante o seu posicionamento como porção apical dos
rituais das ofertas pelo pecado e centro da estrutura literária do livro.

3.5.6. Perdão Pessoal e Dia da Expiação em Perspectiva

Outra importante comparação poderia ser feita entre os rituais das ofertas
pelo pecado, diárias e anuais. Pode-se situar a pergunta: Em que ponto do tempo
ocorria ao israelita penitente o perdão e a aceitação pelo fato de participar do
sistema do santuário?
Esta questão é respondida enfaticamente em Levítico 4 e 5. Quando esta
pessoa trazia sua oferta pelo pecado ao santuário, confessando seu pecado, era-lhe
estendido o perdão. Repetidamente é feita a declaração neste sentido, segundo as
passagens indicadas: “E o sacerdote por eles /pelos pecados/ fará expiação, e eles
serão perdoados” (veja Levítico 4:20, 26, 31, 35; 5:10, 13 e 18).
Em contraste, nenhuma tal declaração acerca de perdão é jamais proferida na
legislação do Dia da Expiação. Diferentes formas do verbo que significa “fazer
expiação” aparecem em Levítico 16 mais de uma dúzia de vezes (versos 6, 10-11,
16-18, 20, 24, 27, 30, 33-34). Contudo, jamais estas passagens indicam que o
perdão resultasse para a congregação como um todo ou para indivíduos.
O Dia da Expiação tinha a ver com o perdão apenas num sentido indireto.
Tratava-se de um ritual especial para a purificação do santuário. O israelita individual
era perdoado ao oferecer sua oferta pelo pecado e ao confessar seu pecado.
Através do processo do ritual do sangue seu pecado e responsabilidade eram
transferidos dele ao santuário onde permaneciam até que fossem tratados em
termos finais no Dia da Expiação. O crente arrependido, apegando-se à graça divina,
era então perdoado ao haver assumido sua parcela no processo. O restante
aguardava a ação de Deus, em cooperação com os sacerdotes que manejavam o
sistema sacrificial de acordo com Suas instruções.
E evidente, portanto, que o ritual do Dia da Expiação, em virtude de sua
posição apical no sistema do santuário (apoiado ainda por sua porção central dentro
da estrutura literária de Levítico), designava-se a focalizar a atenção do israelita
penitente para além do estado de perdão e aceitação pessoal, aos aspectos finais
do plano divino para a solução do problema do pecado. Estes aspectos, a parte
todos os simbolismos, envolvem as fases do julgamento final, o qual é a culminação
do plano da salvação e, ao banir o pecado e seu instigador, salienta a honra de
Deus e completa a redenção de Seu povo.

CONCLUSÃO

Tem sido demonstrado por vários comentaristas, ao escreverem sobre


Levítico, que este livro é muito bem organizado. Este ensaio estende a análise ao
sugerir a idéia de que Levítico foi estruturado propositalmente ao longo de linhas de
um grande quiasma, no qual os vários elementos dos capítulos 1-15, que compõem
o primeiro “braço” do quiasma, se equilibra com os elementos do segundo “braço”,
que abrange os capítulos 17-25, numa ordem inversa. Na posição de centro temático
e literário do livro encontra-se a legislação que trata do Dia da Expiação. Entre
outras coisas, tal arranjo literário argumenta em favor da unidade de Levítico e de
ser um só o seu autor.
A primeira metade de Levítico ocupa-se essencialmente do sistema sacrifical.
50

Uma vez que era a mediação do sangue o que efetuava expiação pelo pecado e
trazia o pecador ao perdão e aceitação de Deus, devemos referir-nos ao seu centro
teológico básico como orientando-se em torno da justificação.
A segunda metade de Levítico gira em torno dos mandamentos ou
orientações pelos quais devia pautar-se a vida de Israel. A motivação para que se
observasse a vontade de Deus, encapsula-se na repetida declaração do Senhor:
“Santos sereis, porque Eu, o Senhor vosso Deus, sou santo” (Levítico 19:2). Por esta
razão, a segunda metade de Levítico por vezes é vista como o Código da Santidade.
Este chamado a santidade era um chamado ao viver santificado. Desta maneira, a
segunda metade de Levítico centraliza-se no tópico geral da santificação.
O ponto focal deste ensaio repousou grandemente sobre o Dia da Expiação,
cujos rituais de sangue apareciam como culminação das ofertas pelo pecado
discutidas em certa porção do primeiro braço do quiasma. A importância do Dia da
Expiação é apoiada por sua posição central, na estrutura literária de Levítico. Varias
comparações significativas podem ser traçadas entre as ofertas anuais pelo pecado
(o bode do Senhor) e as ofertas regulares pelo pecado, sacrificadas em favor dos
sacerdotes e de toda a congregação durante o ano. Isto é especialmente verdade se
a expressão “ofertas pelo pecado” é aceita como tradução válida para o termo
hattā‟ōt, presente nas passagens-chaves de Levítico 16: 16 e 21.
Se esta tradução for aceita, estes versos poderiam indicar mais claramente
que em outros estudos, que a expiação era feita neste dia especial a fim de remover
do santuário as impurezas e transgressões dos filhos de Israel, transferidos para ali
por meio das ofertas pelo pecado, previamente oferecidas durante o ano. Portanto, o
Dia da Expiação lida de maneira final com as duas áreas de comportamento
discutidas no primeiro braço do quiasma transgressões (Levítico 1-7) e impurezas
(Levítico 11-15), onde ambos eram expiados através de ofertas pelo pecado.
Levítico é um definido caso em que a forma complementa a função. Colocado
no centro do livro através de cuidadoso projeto teológico, o Dia da Expiação
completava o ritual sacrificial simbólico do santuário e antecipava a realidade pela
qual Deus completará o plano da salvação através do julgamento final. Servindo
também como fulcro literário do livro, a narrativa do Dia da Expiação provê uma
transição apropriada para a segunda metade de Levítico, que mostra como o povo
perdoado poderia e deveria conduzir suas vidas em responsabilidade, diante de
Deus. A forma complementa a função, numa forma esteticamente apelante e,
teologicamente significativa, na mensagem e meio da mensagem de Levítico.
51

4. IMPORTÂNCIA TEOLÓGICA DO JUÍZO PRÉ-


ADVENTO
William H. Shea
Fonte: DRCS, vol. 3, pp. 323-332

Sinopse editorial. Longe de constituir uma peça de museu da teologia


pioneira, que deva ser relegada aos livros de história do adventismo, o ensinamento
bíblico quanto a fase pré-advento ou investigativa do juízo final, é de vital
importância para o crente dos dias atuais. É uma porção conclusiva da história da
salvação e componente integral da mensagem adventista de advertência e convite
que a igreja é comissionada a pregar “a toda nação e tribo e língua e povo”.
Neste artigo o autor trata de 12 proposições significativas no que concerne a
esta segunda fase do ministério sacerdotal de Cristo no santuário celestial, em
andamento desde 1844:
1. O juízo pré-advento é uma atividade presente de Deus.
2. O juízo pré-advento é um ponto notável de mudança ou de junção na
história da salvação.
3. O juízo pré-advento delimita o “tempo do fim” do fim do tempo.
4. O juízo pré-advento ocupa a primeira de três grandes fases da obra
final de julgamento executada por Deus, que encontrará seu término com o
estabelecimento de Seu reino eterno.
5. O juízo pré-advento focaliza a Cristo e diz algo a Seu respeito em seu
clímax.
6. O juízo pré-advento diz algo a respeito dos ímpios e de sua sorte.
7. O juízo pré-advento diz algo a respeito dos justos e de seu destino.
8. O juízo pré-advento prove uma resposta ao problema do atual estado
dos justos mortos.
9. O juízo pré-advento prove uma demonstração do caráter de Deus.
10. O juízo pré-advento prove uma conclusão lógica à primeira fase da
ministração sacerdotal de Cristo no Céu.
11. O juízo pré-advento coloca forte ênfase sobre as demandas éticas do
evangelho.
12. O juízo pré-advento enfatiza nossa responsabilidade quanto à
observância dos mandamentos de Deus, incluindo-se a guarda do sábado.

4.1. INTRODUÇÃO

Em bom número de estudos recentes, tanto da serie DRC como em outros, os


eruditos adventistas do sétimo dia têm reafirmado as bases bíblicas do ensinamento
de ser o julgamento conduzido no Céu antes do tempo em que Cristo deverá
retornar à Terra. Pelo fato de este julgamento ocorrer antes da segunda vinda de
Cristo, é ele conhecido como julgamento (ou juízo) pré-advento. Pelo fato de os
livros celestiais serem examinados no Céu durante tal julgamento, é ele também
conhecido como juízo investigativo. Um destes títulos refere-se ao tempo de
ocorrência; o outro refere-se a sua natureza.
Uma vez que estudos recentes têm demonstrado que o fundamento deste
ensino se encontra profundamente baseado nas Escrituras, não é necessário citar
aqui as diferentes linhas de evidências examinadas nestes estudos. Esta conclusão
52

pode ser aceita como ponto de partida para a ênfase particular aqui atribuída a este
julgamento: sua importância teológica.
Existem algumas coisas ensinadas pelas Escrituras, tais como a natureza
factual de alguns eventos históricos do passado, que parecem não ser
especialmente importantes para os cristãos da atualidade. Deveria o ensinamento
bíblico quanto ao juízo pré-advento ser relegado a este nível menor de importância?
É essa doutrina, por exemplo, apenas uma posição teológica herdada dos pioneiros
da Igreja Adventista do Sétimo Dia, e que não mais representa para a presente
geração a importância que demonstrou para aqueles?
São enumeradas, a seguir, várias razões para explanar, por que este
ensinamento ainda é de grande importância para a igreja e para o cristão individual
de hoje. Estas razões são apresentadas como proposições individuais, e uma breve
discussão do ponto em questão 5 feita após sua proposição. Não se pretende que a
lista seja exaustiva; julga-se, apenas, que ela é representativa do pensamento
bíblico quanto ao assunto.
1. O juízo pré-advento é uma atividade presente (atual) de Deus.
As aplicações corretas determinadas pelas grandes profecias cronológicas de
Daniel e Apocalipse indicam que estamos vivendo agora naquilo que estas profecias
apontam como o “tempo do fim”. E no “tempo do fim”, mas antes do segundo
advento de Cristo, que esta obra de julgamento esta sendo levada a cabo no Céu.
Uma vez que estamos vivendo agora nesse período profeticamente demarcado, o
significado é que o juízo está ocorrendo presentemente no Céu.
De todas as coisas a respeito de Deus, que os cristãos deveriam estar
interessados em conhecer, uma das mais importantes é quanto ao que Ele esta
fazendo agora. Portanto, sendo uma atividade presente de Deus, o juízo pré-advento
deveria ser assunto de grande interesse por parte dos cristãos contemporâneos.
2. O juízo pré-advento é um ponto notável de mudança ou de junção na
história da salvação.
Na visão de Daniel 7 é mostrado ao profeta o surgimento e a queda de uma
série de grandes reinos da história terrestre da humanidade, assim como a trajetória
de uma entidade político-religiosa. Depois de haver presenciado a atividade do
último destes poderes, a atenção do profeta é dirigida à corte celestial, onde lhe é
dado contemplar o Ancião de Dias e as hostes do Céu no ponto em que começam a
engajar-se na atividade de julgamento final.
Como resultado deste julgamento, uma ordem inteiramente nova da história
humana se abre, uma ordem que se projeta para a própria eternidade, no grande
reino de Deus. O julgamento que Daniel observava em visão, portanto, aparece na
junção da presente ordem da existência humana e a ordem eterna que sucederá a
primeira.
3. O juízo pré-advento delimita o “tempo do fim” do fim do tempo.
O “tempo do fim” é conhecido, a partir das profecias de Daniel, como um
período durante o qual ocorrem vários eventos. O povo pesquisaria o livro de Daniel
neste período, é nesse mesmo período que o rei do norte faria algumas coisas, etc.
O evento mais notável a ocorrer no “tempo do fim” e o julgamento no Céu.
Ao encerrar-se o julgamento, o “tempo do fim”, durante o qual funcionou o
tribunal, chega ao término. Ao isto ocorrer, Deus estabelecera Seu próprio reino
eterno. Chegará também ao fim a história humana tal qual hoje a conhecemos. Isto é
o fim do tempo. Portanto, o “tempo do fim” inicia aproximadamente com o começo do
juízo pré-advento, e o fim do tempo sobrevém quando o julgamento termina.
4. O juízo pré-advento ocupa a primeira de três grandes fases da obra
53

final de julgamento executada por Deus, que encontrará seu término com o
estabelecimento de Seu reino eterno.
O juízo pré-advento descrito em Daniel, não é o único julgamento de escopo
cósmico que conhecemos a partir da Bíblia. Ele é seguido de um julgamento
executado no Céu, por Cristo e Seus santos, durante o milênio (Apocalipse 20:4-6; I
Coríntios 6:2 e 3). Um terceiro julgamento deverá ocorrer diante do grande trono
branco de Deus, ao final do milênio (Apocalipse 20:11-15). Uma vez que essas três
cenas de julgamento fluem de uma para a seguinte, numa sucessão ininterrupta,
podemos vê-las como três fases de uma mesma obra de julgamento final. Mediante
a terceira e última destas fases o plano da salvação é levado a seu cumprimento
final.
Cada uma das fases do julgamento final tem seu próprio objeto de atenção.
Na fase do juízo pré-advento, “encerram-se as contas” de todos os santos, que
viveram em todas as eras, e que participarão do eterno reino de Deus. Durante a
fase milenial do julgamento estes mesmos santos julgarão ou avaliarão os registros
daqueles que não foram aceitos no reino eterno. Depois, ao final do milênio, na
terceira fase, ou executiva, o final veredito sobre os ímpios ser-lhes-á apresentado, e
os justos serão admitidos a sua final recompensa.
Deste modo, todas as três fases do juízo final podem ser vistas como
complementares. O juízo pré-advento começa esta seqüência, a qual findará com a
cena de julgamento em que os justos recebem a posse da Terra feita nova.
5. O juízo pré-advento focaliza a Cristo e diz algo a Seu respeito em seu
clímax.
De acordo com a descrição da visão em Daniel 7, o profeta vê duas diferentes
cenas neste julgamento, Na primeira visão é lhe mostrado o início da obra de
julgamento na corte presidida pelo Ancião de Dias que é Deus Pai.
A conclusão do julgamento é mostrada ao profeta como uma segunda cena.
Nesta cena de encerramento o Filho do homem, Jesus Cristo, recebe o domínio final
sobre toda a Terra e seus habitantes. O grande clímax deste julgamento é então
apresentado ao profeta, e seu centro focal é Jesus Cristo.
Evidentemente isto não significa que Jesus Cristo terá de esperar ate o
julgamento final a fim de descobrir se irá ou não receber o domínio sobre o reino
eterno. Em vez disso, a obra de revisão e sumário conduzida ao longo deste
julgamento, resulta numa grande e final reafirmação de tudo aquilo que Ele executou
através do plano da salvação. Da mesma forma, este juízo representa um resumo e
afirmação da salvação que os crentes individuais obtiveram previamente por
intermédio de seu relacionamento pessoal com Cristo.
6. O juízo pré-advento diz algo a respeito dos ímpios e de sua sorte.
A entidade corporativa daqueles que de modo especial se opõem a Deus, é
representada nas profecias de Daniel 7 e 8 sob o símbolo do chifre pequeno.
Contudo, mesmo aqueles que compartilham da sorte do chifre pequeno podem ter a
garantia de que receberão sua sentença de um Deus justo. As decisões as quais se
chegou em seus casos não resultam de alguma ação arbitrária de Sua parte. Ao
contrário, serão derivadas do exame de seus próprios registros. Este exame não é
conduzido em segredo; ocorre sob o testemunho de toda a hoste angélica.
7. O juízo pré-advento diz algo a respeito dos justos e de seu destino.
O evento que ocorre imediatamente após a conclusão deste julgamento, é a
entrada dos santos do Altíssimo em Seu eterno reino. Em virtude deste íntimo
relacionamento, os dois eventos podem ser percebidos como causa e efeito. Assim,
é evidente que uma das funções deste julgamento é servir como revisão final que
54

definirá o total de membros, súditos, santos de todas as eras, os quais, por


intermédio da graça de Deus, entrarão no reino. Os registros do Céu atestam que
Deus está operando de modo justo e correto a fim de receber estes santos em Seu
reino.
De tempos em tempos alguns destes santos foram considerados culpados de
vários crimes por parte de tribunais terrestres, quando em realidade estavam
servindo fielmente a Deus e aos homens. No juízo pré-advento estas sentenças
injustas, proferidas por cortes terrestres, serão revertidas pela corte celestial. Desta
maneira Deus vindicara os santos, Daniel 7:22 refere-se a este fato ao indicar que a
corte celestial fará julgamento “por” (ou em favor de ) todos os santos. Tendo em
vista oferecer a mais correta sentença, o tribunal celestial evidentemente terá de
estar bem familiarizado com as vidas e os casos dos santos individuais - melhor,
sim, do que o estavam os perseguidores terrestres e os poderes processantes, tais
como o chifre pequeno.
Ao se considerar tal curso de ação, é de bom alvitre conservar em mente que
se Deus esta em favor de Seu povo, ninguém será capaz de lhe apresentar qualquer
oposição significativa (Romanos 8:31-39). Como parte do plano da salvação, o
objeto deste juízo é salvar tantos quantos possível, e não excluir o maior número
imaginável. O falso seguidor, que não é genuinamente convertido em sua professa
união com Deus, compreensivelmente terá de ser rejeitado durante o julgamento
(Êxodo 32:33; Mateus 22:10-14). Mas o anseio da parte de Deus em salvar, é
representado graciosamente no apelo apresentado por intermédio de Seu profeta:
“Convertei-vos, convertei-vos dos vossos maus caminhos; pois, por que haveis de
morrer...?” (Ezequiel 33:11).
Uma bela ilustração desta obra de misericórdia, graça e justificação é nos
oferecida na visão que lida com Josué, o sumo sacerdote dos dias de Zacarias
(Zacarias 3). Este caso é apresentado no santuário e envolve uma decisão ou
julgamento por parte de Deus, em favor do sacerdote. O anjo do Senhor ordena:
“Tirai-lhe as vestes sujas”. E ao mesmo tempo assegura ao penitente Josué: “Eis
que tenho feito com que passe de ti a tua iniqüidade, e te vestirei de finos trajes”
(Zacarias 3:4).
8. O juízo pré-advento provê uma resposta ao problema do atual estado
dos justos mortos.
Segundo uma correta compreensão bíblica quanto à natureza do homem, é
ele mortal. Não possui imortalidade inerente. Ao falecer, dorme no sepulcro. Isto
significa que os justos mortos de todas as épocas ainda dormem em suas
sepulturas, e que a solução final de seu problema no presente estado, ainda precisa
ocorrer.
Ao Cristo voltar outra vez, despertará os santos adormecidos e lhes outorgará
as justas recompensas. Assim a recompensa é determinada antes que Ele venha.
Uma ocasião apropriada para se estabelecer semelhante determinação, é durante o
processo de revisão que ocorre no juízo pré-advento.
Para os não adventistas, tem sido difícil compreender a doutrina do
julgamento pré-advento, conforme ensinada pela Igreja Adventista. Uma das
principais razões para esta falta de compreensão deriva de suas pressuposições
quanto à natureza do homem. Ao se sustentar o ponto de vista de que o homem é
naturalmente imortal, o ponto na vida da pessoa em que seu julgamento ocorre, é
por ocasião de sua morte. Sob este raciocínio, é nesta oportunidade que a pessoa
recebe a recompensa da vida futura, quer seja no Céu, quer seja no inferno.
Conseqüentemente, um juízo pré-advento ocorrendo no tempo do fim - tal
55

como a Bíblia o apresenta - não pode ser reconciliado com a pressuposição acerca
da imortalidade humana. Todavia, se por outro lado o assunto passa a ser visto a
partir da perspectiva bíblica quanto à natureza do homem, este julgamento pré-
advento é uma conseqüência lógica e natural, ou até mesmo um requisito, desta
mais adequada compreensão da Bíblia.
9. O juízo pré-advento prove uma demonstração do caráter de Deus.
Adicionalmente, em virtude do modo como Ele conduz este juízo pré-advento,
a correção, justiça e misericórdia de Deus serão proclamadas pelas inteligências
terrestres e celestiais (Isaías 45:23; Romanos 3:26; 14:10 e 11; Filipenses 2:10 e 11
; Apocalipse 15:3 e 4; 16:5 e 7; 19:2 e 11). Desta forma o amorável caráter de Deus,
que tem estado sob disputa durante a controvérsia com Satanás (Apocalipse 12:7-
9), será vindicado. Esta vindicação última de Deus pode outorgar-nos presentemente
confiança quanto ao tipo de Juiz e Advogado que hoje temos na corte celestial.
10. O juízo pré-advento prove uma conclusão lógica à primeira fase da
ministração sacerdotal de Cristo no Céu.
O divino plano de redenção tem estado a operar desde a queda do homem.
Durante este período de sua atividade, grandes foram os resultados obtidos. É tão
somente lógico e natural, portanto, que as realizações acumuladas do plano da
redenção sejam demonstradas quando de sua conclusão. O juízo pré-advento
oferece a oportunidade de semelhante demonstração. Esta é obtida ao se prover
uma revisão e resumo de todas as realizações do plano, apresentadas diante das
criaturas leais e não caídas do Universo. Trata-se, pois, de uma conclusão lógica do
que veio antes.
Um paralelo pode aqui ser estabelecido com o curso de ministração no antigo
tabernáculo/templo dos hebreus. Durante o decorrer do ano religioso, executava-se
uma “rodada completa” de sacrifícios. Estes serviam ao propósito de efetuar
expiação ou prover reconciliação entre o pecador e Deus. Esta rodada de cerimônias
culminava com os serviços conduzidos ao longo do Dia da Expiação.
No que ao povo dizia respeito, os serviços do Dia da Expiação serviam a dois
propósitos principais: (1) Eles efetuavam a expiação final por todos aqueles cujos
pecados haviam sido confessados, dos quais houvera arrependimento, e pelos quais
sacrifícios houveram sido oferecidos no curso do ano. (2) Aquele dia funcionava
como dia de julgamento para os pecadores impenitentes e endurecidos. Estes
deveriam ser eliminados do acampamento. (O Dia da Expiação servia também para
purificar o santuário e seu equipamento, preparando-os para a nova rodada de
serviços do ano que logo iniciaria). Assim, este dia cultual de julgamento servia
como adequada conclusão para a rodada ministerial que ocorrera no acampamento
e no santuário durante todo o ano prévio.
Da mesma forma, o juízo pré-advento pode ser visto como a fase final da
ministração de Cristo no santuário celestial. Tal ministério de reconciliação e
intercessão iniciou quando de Sua ascensão (Hebreus 8 e 9), Servia também como
a validação daquilo que havia sido alcançado por Intermédio dos serviços do
tabernáculo e do templo terrestres nos tempos do VT (Hebreus 9:15). Com o juízo
pré-advento chega o tempo para o resumo final e para a verificação daquilo que foi
possível conseguir mediante este ministério. Portanto, esta fase serve como
adequada conclusão ao processo anterior.
De passagem, dever-se-ia observar aqui que, pelo fato de haver Cristo
ingressado nesta segunda fase de Seu ministério em 1844, isto não significa que Ele
tenha deixado de desempenhar as funções da primeira fase. A salvação acha-se
ainda disponível aos pecadores arrependidos, Com base nos antigos paralelismos
56

em tipos, pode-se dizer que no anti-típico Dia da Expiação ambas as fases do


ministério de Cristo no santuário celestial - quais sejam, intercessão e julgamento -
podem ser e são executadas ao mesmo tempo em que perdura o tempo de
provação da humanidade.
11. O juízo pré-advento coloca forte ênfase sobre as demandas éticas do
evangelho.
Viver em tempo como este, enquanto o julgamento transpira no Céu, é um
solene pensamento. Deveria isto exercer efeito sobre o modo como vive o povo de
Deus, não em termos de algum esforço por demonstrar justiça a partir das próprias
obras, e sim no que tange a uma profunda e permanente fé no Deus que justifica e
santifica Seu povo, habilitando-o a desempenhar a Sua obra na Terra.
O reconhecimento de que vivemos em tempo tão solene representa, pois,
uma chamado a (1) a adoração do Deus verdadeiro e rejeição do culto falso de
todos os tipos (Apocalipse 14:6-14); o recebimento do evangelho ou boas novas de
salvação através de Jesus Cristo, e ao exercício de salvadora fé nEle (Atos 4:12);
que vivamos em santidade por intermédio do poder do Espírito Santo (I
Tessalonicenses 5:23); e (4) que testemunhemos ante os vizinhos e o mundo como
um todo a respeito do caráter de Deus, daquilo que o plano de redenção tem
alcançado, e da responsabilidade do cristão individual diante de Deus (Mateus
28:19).
Com o evangelho vem igualmente o chamado para um santo viver (Mateus 5
a 7). Portanto, os cristãos não podem prosseguir com uma vida complacente, pois
são responsáveis diante de Deus. Esta necessidade de prestar contas é enfatizada
pelo julgamento que hoje está sendo levado a efeito no Céu. Ao focalizar este juízo
dentro da estrutura profética, e estando esta porção da estrutura situada em nosso
tempo, Cristo atribuiu um particular sentido de urgência em Seu chamado
missionário, dirigido a Seu povo no tempo presente.
12. O juízo pré-advento enfatiza nossa responsabilidade quanto ã
observância dos mandamentos de Deus, incluindo-se a guarda do sábado.
O chamado de Cristo à observância das demandas éticas do evangelho
nesse tempo profético, não pode ser separado de Sua insistência em que
guardemos Seus mandamentos, pelo fato de O amarmos, para que se realize um
julgamento, algum padrão precisa ser estabelecido como regra. Para Deus, este
padrão é a Sua lei, os Dez Mandamentos (Tiago 2:9-12). A função do julgamento
final naturalmente chama a atenção a um dos mais negligenciados aspectos dos
Dez Mandamentos, o chamado à guarda do sábado do sétimo dia que se acha
estabelecido pelo quarto mandamento. Neste mesmo “tempo do fim”, no qual as
profecias de Daniel e Apocalipse localizam o juízo pré-advento, será encontrado
sobre a Terra um povo que expressa sua lealdade a Deus mediante a observância
de todos os Seus mandamentos (Apocalipse 12:17; 14:12).
Este é um tempo profético em que homens e mulheres são especialmente
chamados a adorar à Deus como o seu Criador (Apocalipse 14:6 e 7). O modo mais
diretamente apropriado de adorá-lO como Criador, é ao Lhe prestar culto no dia que
Eles colocou à parte, santificando-o e abençoando-o como o memorial de Sua
criação - o sábado do sétimo dia (Gênesis 2:2 e 3).
Pode-se, pois, estabelecer um vínculo profético entre o sábado e o juízo pré-
advento. Este vínculo chama a humanidade à observância do sábado como verdade
presente a respeito do seu Criador e Redentor.
Traduzido por: Hélio L. GrelImann
Outubro de 1990
57

5. JUSTIFICAÇÃO E JULGAMENTO
Ivan T. BIazen
Fonte: DRCS, vol. 3, pp. 339-338

5.1. JUSTIFICAÇÃO PELA FÉ / JULGAMENTO SEGUNDO AS


OBRAS

Sinopse editorial. Nesta seção e na seguinte o autor examina duas doutrinas


bíblicas especialmente enfatizadas pelo apóstolo Paulo: (1) justificação pela fé e (2)
julgamento segundo as obras. Várias explanações têm sido oferecidas pelos
estudiosos da Bíblia a fim de reconciliar aquilo que parece ser um ponto de tensão
entre estas duas posições doutrinárias da fé cristã.
Alguns argumentam que o conceito de um juízo final é um resquício do
judaísmo de Paulo, destarte irrelevante para o cristianismo. Outros sugerem que as
passagens sobre julgamento do NT destinam-se unicamente a insistir com o pecador
para que este se volva a Cristo em busca de justificação, não possuindo significado
adicional para os crentes. Alguns ensinam que o pecador é justificado inicialmente por
fé, mas que em termos últimos isto ocorre porque, pela graça, ele alcança o padrão de
perfeição. Outros, ainda, vêem o julgamento, tanto quanto diga respeito aos professos
crentes, como não se relacionando com a sua salvação ou perda, mas unicamente
como uma atribuição de recompensas entre o povo de Deus.
Nenhum destes pontos de vista, porém, oferece pleno valor a estes dois
ensinamentos bíblicos. Sendo eles tópicos da revelação inspirada, nenhuma doutrina
pode ser minimizada ou enfraquecida em favor da outra.
A resolução destas duas verdades por parte do presente autor pode ser
designada como o “ponto de vista dinâmico, histórico-salvífico”. Salienta o “já” da
salvação iniciada aqui e agora e o “ainda não” da salvação completada. A essência
deste ponto de vista é que existe apenas uma justificação. Esta acompanha o crente
desde o momento em que a fé começou (o “já”), ao longo de todo o caminho que leva
ao julgamento final, onde sua realidade e vitalidade são testadas e atestadas por seus
frutos (o “ainda não”). No final - no juízo - Deus pede a justificação com seus frutos.
Ele não o faz no sentido da fórmula - “fé mais obras e que salvam” - mas no sentido
de que a justificação é a fonte de frutos santificados.
Embora a bênção da absolvição no julgamento futuro entre em operação
mesmo agora, as Escrituras são claras em afirmar que o que Deus deseja ver no
julgamento final são os crentes justificados que, por intermédio de Sua graça,
entraram em genuína união com Ele e produziram frutos para a Sua glória.

5.2. ESBOÇO DA SEÇÃO

I. Introdução
II. Razão e Revelação
III. Justificação Pela Fé e Julgamento de Acordo com as Obras
IV. Justificação e Garantia
V. Julgamento e Garantia
VI. Resolvida a Tensão
58

5.3. INTRODUÇÃO

Este estudo procura clarificar a relação existente entre justificação pela fé


somente – a qual traz a garantia de salvação - e o julgamento segundo as obras.
Várias tentativas foram empreendidas para se resolver o que era visto como uma
tensão ou contradição entre estas duas doutrinas. Muitas vezes essas tentativas
tomaram a forma de minimização ou negação de um ou de outro destes dois
ensinamentos. É minha opinião de que ambos devem ser firmemente preservados,
uma vez que ambos são ensinados pelas Escrituras; penso ainda que existe uma
unidade íntima entre os dois aspectos, tal como a unidade que existe entre Cristo
como Salvador e Cristo como Senhor.
Uma vez que grande parte da discussão sobre justificação e julgamento é
desenvolvida com base no pensamento do apóstolo Paulo, é também sobre que ele
que se focalizará a minha atenção. Entretanto, existem referências a outras
passagens e a certas declarações do Espírito de Profecia.
Como pressuposição para o debate, este estudo considera em primeiro lugar a
relação existente entre razão e revelação. Prossegue ao discutir a ocorrência e o
significado, nos escritos de Paulo, de (1) justificação pela fé separada das obras e (2)
julgamento segundo as obras. Isto nos leva a uma avaliação das várias tentativas
para se harmonizar as duas doutrinas. Examinaremos então a relação entre Cristo
como Salvador e Cristo como Senhor, entre o dom de Deus e os reclamos de Deus
(seção 2). Nosso objetivo é colocar a discussão sobre a relação entre justificação e
julgamento numa nova chave. O estudo conclui com uma aplicação da discussão do
ensinamento da Igreja Adventista quanto ao julgamento e com a consideração de
aspectos do julgamento na teologia de João.

5.4. RAZÃO E REVELAÇÃO

A princípio, é necessário - com base nas Escrituras - lidar com uma forma
falaciosa de raciocínio, que trata erroneamente os dados da divina revelação. Tal
raciocínio, se não enfrentado e deixado a operar, poderia tornar impossível uma
solução biblicamente balanceada do relacionamento entre justificação e juízo.
Um texto apropriado a esta discussão, pois que pertinente à temática com que
se ocupa o presente estudo, é o de Romanos 3:1-8. Nesta passagem Paulo está
desenvolvendo um debate com o judaísmo, no que diz respeito ao assunto da
fidelidade de Deus. Em Romanos 1 e 2 Paulo demonstrou que os seres humanos
foram infiéis a Deus. Todas as pessoas - não apenas os gentios, mas igualmente os
judeus, muitos dos quais haviam condenados os gentios - eram e são pecadoras
diante de Deus, encontrando-se sob o Seu julgamento (Romanos 2:2) e dignos de
Sua ira. Surge então a pergunta - e ela possui especial relevância no tocante aos
judeus, que eram recipientes dos oráculos de Deus (Romanos 3:1 e 2): Não seria o
caso de a infidelidade humana cancelar a fidelidade de Deus (verso 3)? Em outras
palavras: Não seria o caso de o pecado humano, e em particular o pecado dos judeus,
tornar sem efeito as promessas de Deus? Paulo responde a questão com um
retumbante Não! Deus é genuíno embora todos os seres humanos sejam falsos. Ele
prevalece ao ser julgado em termos de Sua palavra e fidelidade (verso 4).
Com isto a questão ganha uma nova direção, um enredo oposto. Ela não mais
se preocupa com a manutenção da fidelidade de Deus - pois agora já se presume que
este e o caso - e sim com a manutenção da infidelidade humana. A questão não mais
diz respeito ao julgamento que o homem possa fazer de Deus, e sim do julgamento
59

que Deus faz do homem. Se a fidelidade divina não pode ser anulada, não deveria a
infidelidade humana ser cancelada como algo que merece o julgamento? Se a
fidelidade de Deus permanece, mesmo quando todas as pessoas se demonstraram
infiéis, então poder-se-ia pensar que a infidelidade humana não é algo indesejável, ao
contrário - e, de todos os modos, não passível de punição, já que referida infidelidade
apenas coloca em maior destaque a fidelidade de Deus. Não estaria Deus sendo
injusto ao infligir Sua ira sobre alguém (verso 5), ou julgando como pecador esta
pessoa cuja mentira fez com que a verdade de Deus abundasse para a Sua glória
(verso 7)? De fato, não seria até elogiável que o mal fosse praticado para que
“venham bens” (verso 8)? O “bem”, neste caso, provavelmente se referiria em primeiro
lugar a luz favorável sob a qual a maldade humana coloca a bondade de Deus; em
segundo lugar, pode referir-se ao bem, ou graça, que vem de Deus em direção aos
seres humanos que pecaram (veja Romanos 5:20 e 6:1).
Tal espécie de argumentação era utilizada, por parte dos que a empregavam,
com o objetivo de desacreditar a doutrina de Paulo quanto à justificação dos maus, ao
mostrar que ela levaria a uma perpetuação do mal, e até mesmo a um convite à sua
prática, em vez de representar a sua erradicação.

5.4.1. Paulo Responde

Paulo responde ao dizer que se fosse válido este raciocínio quando a “deixar
no gancho” os seres humanos pecadores, “como julgará Deus o mundo?” (Romanos
3:6). Com esta questão Paulo nega a lógica de seus oponentes, não mediante uma
discussão - pois esta virá mais tarde, em Romanos 6, depois que Paulo houver
desenvolvido plenamente seu ponto de vista sobre a justificação pela fé (Romanos
3:21 a 4:25) e suas conseqüências (Romanos 5) e sim mediante o apelo a um dado
dogmático da divina revelação - Deus julgará o mundo.
Se isto é verdade, conforme criam tanto o apóstolo quanto seus oponentes
judeus, não poderia ser válido nenhum tipo de raciocínio que procurasse minimizar ou
eliminar este julgamento. A revelação divina sobrepõe-se à lógica ordinária humana.
(Observe como a objeção judaica apresentada em Romanos 3:5 é acompanha da
pelo comentário de Paulo: “Falo como homem”).
A razão deve funcionar como serva da revelação. É a revelação que ilumina a
razão, e assim é tarefa da razão explicar a revelação e não contradizê-la. Uma vez
que se estabeleça a realidade do julgamento com base na revelação, a revelação
deve Operar no sentido de explanar sua importância, e não no de reduzir ou destruir a
mesma.

5.5. JUSTIFICAÇÃO PELA FÉ E JULGAMENTO DE ACORDO


COM AS OBRAS

Dois elementos herdados em Romanos 3:1-8 emergem claramente. Em


primeiro lugar, Deus é fiel, ou seja, Ele guarda Sua promessa diante dos seres
humanos, mesmo quando estes quebram as promessas que fizeram a Ele (versos 1 a
4). Em segundo lugar, não existe escusa para o pecado humano em vista da
fidelidade de Deus, e nem estímulo para o seu prosseguimento (versos 5-8). Estes
dois pontos podem dar a impressão de que entre eles existe uma tensão, mas para
Paulo eles existem em unidade e devem ser apresentados juntos. Paulo desenvolverá
o primeiro ponto em seu ensinamento da justificação que Deus outorga ao pecador
pela fé, e o segundo ponto será desenvolvido em termos de seu ensino quando ao
60

julgamento segundo as obras.


Estes dois elementos são verdadeiros pilares na teologia paulina. Para o
apóstolo eles permanecem juntos, cada um ajudando a explanar o pleno significado
do outro e a guardar o outro de compreensões errôneas e de falsas deduções.
A justificação pela fé ajuda a guardar o julgamento de falsas idéias no sentido
de que os seres humanos jamais serão capazes de estar em pé no julgamento de
Deus, ou que estar ali em pé com ase na própria justiça, coloca a justiça de Deus sob
obrigação. Em outras palavras, a justificação contradiz o conceito de que os seres
humanos não podem persistir no juízo, ou que podem persistir com base em seus
próprios méritos.
Por outro lado, o julgamento associado com as obras protege a doutrina da
justificação dos pecadores do significado de que a justificação é do pecado. Se existe
um julgamento segundo as obras, então a justificação deve significar que as vidas dos
justificados são chamados a viver por Cristo e que eles são chamados a viver por
Aquele que por eles morreu (II Coríntios 5:14-15).
Quando qualquer um destes dois pilares é enfraquecido ou removido pelo
desejo de se obter uma rápida e fácil unidade de pensamento, teremos afinal não uma
meia-verdade, e sim a completa ausência de verdade. Em termos dos verdadeiros
dados das Escrituras, é uma ficção crer que a justificação não nos relaciona com a
direção de Cristo enquanto Senhor, ou que o julgamento não nos relaciona com a
obra de Cristo como Salvador.
Paulo se revela muito contrariado com aqueles que, de alguma forma, quer por
pensamento, quer por ações, tentavam remover qualquer um destes pilares.
Conforme podemos observar em Gálatas 1:8 e 9 e Romanos 3:8, aqueles que
advogavam qualquer uma destas posições - trabalhar pela justificação ou ser
justificado sem obras - eram igualmente condenados pelo apóstolo em termos taxa-
tivos. Se, conforme afirma Hebreus, “horrível cousa é cair nas mãos do Deus vivo”
(Hebreus 10:31), pode-se ter também a certeza de que algo a se temer era cair nas
mãos do servo de Deus, o esperto e por vezes lívido Paulo!
Uma vez que ambos - justificação pela fé e julgamento segundo as obras -
constituem elementos da revelação divina, resta à razão cristã aceitá-los,
proclamando a ambos, a ambos interpretando e buscando a correlação entre eles. Um
dos ensinamentos são deve ser defendido em detrimento do outro, de modo que a
sua essência e contribuição singular seja negada.
Embora apenas uma breve sugestão possa ser feita aqui, eu gostaria de
afirmar que a necessidade de e a unidade entre justificação e julgamento não devem
ser buscadas em alguma lógica dedutiva e formal, mas se encontram conectadas com
a história da salvação. Falar de justificação e de julgamento é o mesmo que falar
acerca de realidades que existem na continuidade da história da salvação.
Somente no arcabouço do desdobrado drama da salvação de Deus, conforme
revelado nas Escrituras, podem a justificação e o julgamento ser corretamente
avaliados. Isolados da história da salvação e transformados em objetos de debate
lógico, justificação e julgamento podem entrar em colisão um com o outro.
É da capacidade da razão cristã compreender o lugar e a função que
justificação e julgamento possuem no fluxo revelado do plano redentivo de Deus. De
acordo com este plano, Deus veio à Terra na pessoa de Jesus Cristo, Seu Filho, e
ofereceu justificação - uma correta relação com Ele - a todos os que demonstrassem
sua fé no crucificado e ressurreto Cristo. Aqueles que por Deus são justificados
através de Cristo Jesus, Ele os chama para testemunharem de Jesus Cristo por
palavras e exemplo, até à consumação de todas as coisas. Ao chegar o fim, o
61

julgamento apresenta e testifica da realidade da justificação evidenciada pelo fiel


testemunho do povo de Deus. Nesta demonstração, justificação e julgamento não se
situam em termos tensionais ou contraditórios, antes se revelam em termos de
inauguração (começo) e consumação.
O plano de Deus terá desempenhado todo o seu curso quando Seu povo, os
justificados, estiverem diante dEle no fim do tempo, revelando os frutos de seu labor
pessoal (ético) e evangelístico, pelo poder do Espírito. Apresentar-se sem frutos é não
fazer parte - e sim estar separado - do processo redentivo de Deus neste mundo.
O ponto que estou sustentando acerca da relação de correspondência entre
justificação e inauguração, por um lado, e julgamento e consumação, de outro,
encontra elementos de apoio em Filipenses 1:5-11. Paulo diz que se sente agradecido
pela vossa cooperação no evangelho, desde o princípio até agora. Estou plenamente
certo de que Aquele que começou boa obra em vós há de completá-la até ao dia de
Cristo Jesus. Aliás, é justo que eu assim pense de todos vos... pois todos sois
participantes da graça comigo... E também faço esta oração: que o vosso amor
aumente mais e mais em pleno conhecimento e toda a percepção, para aprovardes as
cousas excelentes e serdes sinceros e inculpáveis para o dia de Cristo, cheios do fruto
de justiça, o qual é mediante Jesus Cristo, para a gloria e louvor de Deus.
Ousaria afirmar que as rubricas e conteúdo de nossa teologia deve ser
suficientemente amplo para acomodar todos os dados da divina revelação. Neste
sentido justificação e julgamento poderiam ser concebidos como elementos integrais
do movimento de salvação-história que ora se processa. Nenhum dos dois aspectos
deve ser enfraquecido ou rejeitado. Ambos devem ser aceitos e integrados. Estes
pilares devem permanecer juntos, sustentando o edifício do propósito e da atividade
redentiva de Deus.

5.6. JUSTIFICAÇÃO E GARANTIA

A justificação é pela fé, independente de obras. Isto é, assegurado tão


freqüentemente por Paulo, que sequer é necessário apresentar um catálogo de textos.
Só o texto de Gálatas 2:16 já apresenta várias vezes o ponto. Dois textos, contudo,
são dignos de menção especial, uma vez que eles suprem o raciocínio e perspectiva a
partir dos quais são feitas muitas assertivas de Paulo. Refiro-me a Gálatas 2:21 e
Romanos 3:27.
Com base nesses textos, se fosse perguntado a Paulo como ele sabia que a
justificação não poderia ser concedida a partir de obras, sua primeira resposta não
seria: “Porque as obras humanas têm sido más” - ainda que, efetivamente, Paulo
fosse capaz de pintar um quadro muitíssimo escuro no tocante À universal
pecaminosidade das ações humanas, tal como o faz em Romanos 1:18-3:20. Em vez
disso, sua resposta primária seria oferecida em termos de Gálatas 2:21.
A lógica de Paulo nesse texto é cristológica e se desenvolve mais ou menos
assim: “Se a justiça provém da lei, então Cristo morreu por nada”. Implica isto no
seguinte: “É, porém, inconcebível que Cristo tenha morrido em vão; Ele morreu para
salvar. Portanto, a justiça não pode ser proveniente da lei”. Em outros termos, a
justificação não pode provir de obras da lei em virtude de a revelação indicar e a fé
confessar que ela provém de Cristo.
O mesmo ponto básico acha-se registrado em Romanos 3:27. Quando Paulo
nega que as obras excluem a jactância, este não é o argumento que poderíamos
esperar, uma vez havendo lido a história das más ações, da humanidade em
Romanos 1:18-3:20. Mas, é ai que Romanos 3:21-26, onde se enfatiza a
62

manifestação da graça de Deus e a justificação pela cruz, aparece antes da questão


esboçada no verso 27. Paulo responde que o que em termos
finais excluía jactância não é a presença de más obras, e sim a fé nos feitos
expiatórios de Cristo. Portanto, o ensinamento de que a justificação não ocorre por
obras, é uma dedução cristológica.
Havendo feito esta observação, poderemos considerar de algum valor o
resumo de alguns dos principais elementos da compreensão paulina da justificação.
Romanos, ao lado de textos correlatos, provê a melhor orientação.
Por sobre o sórdido espectro da injustiça humana descrita em Romanos 1:18-
3:20, onde toda a humanidade se encontra “sob o poder do pecado” (Romanos 3:9),
quando todas as bocas se calam, e todo um mundo culpado se encontra diante do
tribunal de Deus (verso 19), a justiça de Deus (Sua atividade redentiva, pela qual Ele
restaura os seres humanos a um correto relacionamento consigo mesmo), a qual
conduz à salvação, é revelada através da proclamação do evangelho (veja o capítulo
1:16) e é efetiva pela fé e pela fé somente (o significado da expressão “de fé em fé”,
do verso 17).
Aquilo que se esboça nos versos 16 e 17, é desenvolvido mais plenamente em
Romanos 3:21-26. A justiça de Deus que está sendo revelada ou oferecida
pessoalmente no evangelho (Romanos 1;17) foi revelada (Romanos 3:21)
historicamente no sacrifício de sangue de Cristo sobre a cruz (verso 25). Os seres
humanos, dentre os quais todos pecaram e carecem da gloria de Deus (verso 23), são
justificados (colocados em ordem com Deus, “tornados justos”) pela graça de Deus
através da redenção (libertação ou liberdade das garras do pecado), efetuada pelo
sacrifício de Cristo (versos 24 e 25). Esta justificadora atividade de Deus cria uma
novo “agora” para os crentes (verso 21), que se sobrepõem à velha era de pecado e
morte (Romanos 1:18-3:20).
A compreensão da natureza da justificação é clarificada em outras seções de
Romanos. Romanos 5:16 e 18 e 8:33 e 34 são textos úteis, pois aqui a justificação é
contrastada com a condenação (veja II Coríntios 3:9) e a apresentação de acusações
contra os eleitos de Deus. O ponto é claro - a justificação que Deus opera em
benefício dos pecadores significa que sua condenação é removida e todas as
acusações contra eles deixam de ser válidas. Isto ocorre porque Deus “é por nós”, e
não “contra nós”, conforme se evidencia pelo fato de que “Ele não poupou a Seu
próprio Filho, antes por todos nós O entregou” (Romanos 8:31 e 32).
Este significado e importância da justificação acha-se em acordo com o que
aparece revelado em Romanos 4:1-8, e esta é provavelmente a mais importante
passagem para se compreender a justificação. Aqui, depois de mostrar aquilo que
Abraão não encontrou, qual seja, uma razão para jactar-se diante de Deus em virtude
de justificação por obras (verso 2), Paulo mostra, pelo uso que faz de Gênesis 15:6,
aquilo que Abraão efetivamente encontrou, ou seja, a imputação de justiça com base
na fé.
O que esta Imputação envolve é expandido em Romanos 4:6-8 através da
aplicação do segundo princípio de interpretação bíblica do rabino Hillel, gezerah
shawah (equivalência de expressões). De acordo com este princípio, uma palavra ou
frase encontrada em um texto das Escrituras pode ser explanada pelo significado que
ela comporta em outro texto bíblico. Uma vez que a palavra “imputar, imputação”
aparece não apenas em Gênesis 15:6, como também em Salmo 32:2, Paulo, em bom
estilo rabínico, mas ainda assim em harmonia com o evangelho, utiliza o último texto
para iluminar o primeiro. Quando isto ocorre, justificação, ou imputação de justiça,
chega a significar o perdão do pecado ou - o que acaba sendo a mesma coisa - a
63

cobertura do pecado ou sua não imputação ao crente (para esta última idéia, veja II
Coríntios 5:19). Perdão pleno e gratuito - isto é justificação. Esta realidade é tão
maravilhosa que aquele que a vivenciou é identificado como “bem-aventurado”, ou
feliz (Romanos 4:7).
Em Romanos 5:9 e 10, dois versos que correm paralelos entre si, justificação é
coordenada com reconciliação. Ambos os termos referem-se à mesma realidade e
são tornados possíveis pelo mesmo mecanismo - através da morte de Cristo - e
conduzem ao mesmo resultado - salvação final. A sinonímia entre justificação e
reconciliação é observada também em II Coríntios 5:18-21, onde reconciliação é
vinculada à não imputação do pecado, tal como em Romanos 4:8, e com a justiça de
Deus. É interessante perceber que estes conceitos são, por sua vez, relacionados
com o da nova criação de que fala II Coríntios 5:17. A idéia de uma nova criação é
ainda encontrada em Romanos 4:17, onde Deus, o mesmo que justifica é descrito
como alguém “que vivifica os mortos e chama à existência as cousas que não
existem”.
De modo geral, quando se introduz o conceito de nova criação, as pessoas
pensam primeiramente em termos de santificação, no sentido de crescimento moral.
Contudo, segundo podemos observar a partir de II Coríntios 5 e Romanos 4, a nova
criação é relacionada de modo imediato com justificação e reconciliação. Entretanto,
segundo é demonstrado em II Coríntios 5:14 e 15, o propósito da morte reconciliatória
de Cristo é que aqueles que vivem como resultado da mesma possam não mais viver
para si, e sim para Aquele que por eles morreu e ressuscitou. A nova criação envolve
a ausência de bifurcação entre a nova vida garantida e a nova vida vivida.
Existem outros conceitos e realidades que lançam luz sobre a justificação. Ao
apresentar sua tese sobre justificação em Gálatas, Paulo chega ao ponto em que
explica a nova situação criada pela justificadora atividade de Deus em termos de
adoção ou filiação (Gálatas 4:5-7; veja Gálatas 3:24-26). O significado da justificação
chega à pungente expressão de exclamação em Gálatas 4:6 - “Aba, Pai!” (“Meu Pai,
meu Pai!”). Essa exclamação torna-se possível pelo Espírito do Filho inundando o
coração do crente.
Efetivamente, a justificação envolve a recepção do Espírito, conforme
claramente se observa aqui e em Gálatas 3:1-5, onde, imediatamente após um dos
maiores argumentos de Paulo em favor da justificação pela fé e não por obras da lei.
(Gálatas 2:15-21), o apóstolo pergunta aos Gálatas se “recebestes o Espírito pelas
obras da lei, ou pela pregação da fé?” Sem qualquer dúvida, a recepção do Espírito
faz parte do evento da justificação. Neste sentido, pode-se mais uma vez observar II
Coríntios 3. Não apenas é o “ministério da justiça” contrastado com o “ministério da
condenação” (verso 9), como também o “ministério do Espírito” é contrastado com o
“ministério da morte” (versos 7 e 8). É óbvio que a ministração de justiça por parte de
Deus (no sentido de Sua ação justificadora) ocorre com a presença do Espírito. Em
Romanos 5:5 a esperança de compartilhamento futuro da glória de Deus por parte do
cristão, baseia-se sobre a presente experiência do amor de Deus, provida através do
Espírito. O significado de o Espírito fazer com que o crente se sinta “em casa”, é que
ao mesmo tempo em que ele é ainda ímpio e fraco (verso 6), pecador (verso 8) e
inimigo (verso 10), “Cristo morreu por nós” (verso 8), e isso tornou possível a nossa
justificação (verso 9), ou reconciliação (verso 10).
5.6.1. Garantia

Em conseqüência do recebimento da justificação estendida por Deus, com


todas as facetas que ela contém, e com todas as metáforas e realidades a ela
64

associadas (redenção, expiação, graça, imputação, perdão, cobertura, reconciliação,


criação, adoção, filiação, Espírito, liberdade, vida, paz e alegria), o cristão sente
confiante esperança de salvação final. Isto é exposto detalhadamente em Romanos 5.
Este capítulo é montado numa base conceitual de “muito mais”. A frase
específica ocorre três vezes (versos 9-10 e 17), mas a idéia impregna o capítulo. Em
resumo, tanto quanto diz respeito à primeira parte do capítulo (versos 1 a 11), se os
crentes têm sido justificados agora, quanto mais serão eles salvos final e plenamente
por ocasião do julgamento final.
No que tange à segunda parte do capítulo (versos 12-21), o argumento é que
se a raça humana, através de Adão, foi afetada pelo pecado, injustiça e morte, quanto
mais - através de Cristo - será ela afetada pela graça, justiça e vida. Se Adão
ocasionou ruína, quanto mais trouxe Cristo vitória. Com o aparecimento da lei no
Sinai, o pecado apenas se multiplicou (verso 20), em vez de ser suprimido, conforme
sustentava o judaísmo. Entretanto, onde o pecado aumentou (ou abundou),
superabundou a graça, “a fim de que, como o pecado reinou pela morte, assim
também reinas se a graça pela justiça para a vida eterna, mediante Jesus Cristo
nosso Senhor” (Romanos 5:20 e 21).
Assim, a seqüência em Romanos 5 conduz da realidade da justificação para o
“muito mais” da glorificação, (Veja os versos 1 e 2). Tal movimento harmoniza-se com
a cadeia progressiva da salvação mencionada em Romanos 8:29 e 30. Aqui, uma vez
mais, a justificação é seguida pela glorificação. E, tal qual em Romanos 5, o
sofrimento representa o prelúdio da glória. De acordo com Romanos 8:17 e 18, somos
“co-herdeiros com Cristo; se com Ele sofremos, também com Ele seremos
glorificados”. Adicionalmente, diz Paulo, “para mim tenho por certo que os sofrimentos
do tempo presente não são para comparar com a glória por vir a ser revela da em
nós”. Os sofredores são instados a confiar em que “todas as cousas cooperam para o
bem daqueles que amam a Deus” (verso 28). E lhes és oferecida a garantia, derivada
do fato de haver Deus oferecido Seu Filho e efetuado justificação por intermédio deste
(versos 32-34), que coisa alguma no Céu ou na Terra será capaz de separá-los do
amor de Deus em Jesus Cristo seu Senhor (versos 35-39). Assim, a realidade da
justificação envolve a realidade de completa e permanente garantia.
A justiça que traz consigo garantia de salvação final ao crente baseia-se na fé.
A doutrina de Paulo é a de justificação pela fé, e não justificação pelo destino80. O que
Cristo fez pela humanidade deve ser apropriado. A justiça de Deus, que a todos é
provida através de Jesus Cristo, é pessoalmente eficaz tão somente pela fé.
E qual é a importância básica da fé? Embora muitas das declarações de Paulo
sejam valiosas, talvez não possa ser encontrada resposta melhor do que a de
Romanos 4:19-21. Nesse texto, que fala de Abraão e sua fé, os elementos da fé
genuína emergem claramente. De acordo com Paulo, a despeito da avançada idade
de Abraão e da esterilidade do ventre de Sara, ele “não duvidou da promessa de
Deus, por incredulidade.” Em contraste com a desconfiança, Abraão estava
“plenamente convicto de que Ele /Deus/ era poderoso para cumprir o que prometera”.
Em vez de duvidar, como resultado da aparente desesperança da situação,
Abraão creu que a palavra de Deus expressa em Sua promessa representava a
realidade última para ele, e isto fez com que “se fortalecesse” pela fé. Ou, utilizando
as palavras de outro autor bíblico, Abraão “não viveu do pão apenas”, isto é, com base
na realidade empírica, e sim “de toda palavra que procede da boca de Deus” (Mateus
80
O autor utiliza aqui um interessante trocadilho, que não pode ser adequadamente mantido
em português: "righteousness by faith" Versus "righteousness by fate". Nota do tradutor.
65

4:4).

5.6.2. Deu Glória a Deus

Finalmente, todo o evento da fé é resumido pelo fato - e neste encontra sua


verdadeira direção e significado último - de que Abraão deu “glória a Deus” (Romanos
4:20). Na força da promessa de Deus, a fé de Abraão tornou-se forte enquanto ele
dava glória a Deus. Tal glorificação de Deus aparece em forte contraste com - e
representa uma reversão de (1) a pecaminosa realidade dos gentios que, de acordo
com Romanos 1, recusavam-se a glorificar a Deus ou a demonstrar gratidão a Ele
(verso 21), antes “mudaram a verdade de Deus em mentira, adorando e servindo a
criatura em lugar do Criador” (verso 25); e (2) a pecaminosa realidade dos judeus
que, segundo as implicações de Romanos 2, gloriavam-se em sua justiça própria. A
posição de fé de Abraão, assumida antes de sua circuncisão, cria a possibilidade de
uma nova humanidade e torna Abraão o pai tanto de gentios quanto de judeus que lhe
seguem o exemplo (Romanos 4:9-12).
Da experiência de Abraão podemos ver, pois, que a fé aceita a Deus como
Deus e confia e depende totalmente de Sua palavra. Esta palavra torna-se, no
argumento de Romanos 4, a palavra do evangelho, a qual fala acerca de Jesus.
Assim como a fé de Abraão na promessa de Deus lhe foi “imputada como justiça”,
assim “a nós igualmente nos será imputado, a saber, a nós que cremos nAquele que
ressuscitou dentre os mortos a Jesus nosso Senhor, o qual foi entregue por causa das
nossas transgressões, e ressuscitou por causa da nossa justificação” (versos 22 e 24-
25). Fé torna-se a aceitação da confiança no evangelho. A fé torna-se também a
confissão do evangelho, conforme deixa claro Romanos 10:9-10: “Se com a tua boca
confessares a Jesus como Senhor, e em teu coração creres que Deus O ressuscitou
dentre os mortos, serás salvo. Porque com o coração se crê para justiça, e com a
boca se confessa a respeito da salvação”.
Em vista do rumo que os dados escriturísticos dão ao significado da fé, é
correto - mas incompleto - identificar a fé como um receptáculo passivo, conforme o
fazem alguns. O valor desta concepção é que ela enfatiza o nosso recebimento das
realizações de Deus, negando, portanto, as próprias realizações como um meio de
justificação.
Depois de haver sido reconhecida esta verdade, contudo, deve-se obter o
quadro mais amplo, devendo-se salientar o elemento dinâmico da fé. A fé é uma
reação à ação e promessa iniciais de Deus. A fé é divinamente estimulada ao se ouvir
à verdade a respeito de Cristo (verso 17), mas ela deve ser exercitada pelo recipiente
desta palavra. Que Abraão não se enfraqueceu em termos de fé (Romanos 4:19), que
ele “não duvidou pela incredulidade”, que “deu glória a Deus” (verso 20), que ele
estava “plenamente convicto” (verso 21), que os cristão deve confessar a Cristo como
o Salvador ressurreto (Romanos 10:9) – todas estas são idéias de ação, nas quais se
destaca a energia da fé. No exercício da fé, as pessoas são envolvidas direta e
pessoalmente com a promessa de Deus.
De fato, Paulo entende a fé tão dinamicamente, que é capaz de descrevê-la
como obediência, significando a submissão à palavra de Deus no evangelho. Atender
o chamado do evangelho para a fé é obedecer a Deus. Tal é o caso em Romanos 1:5
(cf. Romanos 16:26), onde Paulo declara que o próprio propósito de seu apostolado
era levar todas as nações a “obediência da fé”, significando obediência que é fé.
Em outras palavras, o propósito da comissão do evangelho é levar todas as
nações a crerem em Cristo. Ao crerem em Cristo, estão elas fazendo aquilo que Deus,
66

através do evangelho, deseja que façam. Este pensamento é corroborado pelas


palavras de Jesus em João 6. Em resposta à pergunta das pessoas? “Que faremos
para realizar as obras de Deus?” (verso 28), Jesus replicou: “A obra de Deus é esta,
que creiais nAquele que por Ele foi enviado” (verso 29). Evidência adicional de que fé
é obediência, nós a encontramos em Romanos 10:3, onde se diz dos judeus
descrentes que, “desconhecendo a justiça de Deus, e procurando estabelecer a sua
própria, não se sujeitaram à que vem de Deus”. O mesmo é verdade quanto a
Romanos 10:16, que uma vez mais fala do descrente Israel: “Mas nem todos
obedeceram ao evangelho; pois Isaías diz: „Senhor, quem acreditou na nossa
pregação?‟”. Romanos 10 é o grande capítulo da fé, e ainda assim fala de Israel como
não obedecendo ao evangelho. Poderíamos também comparar Romanos 11:23 com
Romanos 11:31 e 32, onde o primeiro texto salienta a descrença é o último a
desobediência. Compare também Romanos 1:8 com Romanos 15:18, onde o primeiro
texto enfatiza a fé e o último, a obediência.
O caráter dinâmico da fé é também visto em I Tessalonicenses 1:3, onde Paulo
elogia os tessalonicenses por causa da “operosidade da vossa fé, da abnegação de
vosso amor e da firmeza da vossa esperança”. Fé, esperança e amor é o que Deus
pede à humanidade através do evangelho. Segundo Gálatas 5:6, o que realmente
importa a Deus é a “fé que opera pelo amor”.
Porventura torna isto a fé uma obra meritória? De modo algum. A fé é tornada
possível somente através de Cristo, e ela possui significado unicamente porque está
direcionada rumo a Cristo. Assim, a possibilidade e a eficácia da fé acham-se em
Cristo. É por isso que salvação pela fé significa, salvação pela graça. A fé nos conduz
a Cristo e lança mão da graça.
Toda a teologia paulina da fé pode ser resumida ao se dizer que a fé é a
submissão ao veredito, dom e reclamos de Deus. A fé submete-se ao veredito de
Deus pronunciado sobre o homem: “Todos pecaram e carecem da gloria de Deus”
(Romanos 3:23). Submete-se ao dom de Deus estendido ao homem: “Sendo
justificados gratuitamente por Sua graça, mediante a redenção que há em Cristo
Jesus” (verso 24). Ela também se submete aos reclamos de Deus sobre o homem:
“Porque se vivemos, para o Senhor vivemos; se morremos, para o Senhor
morremos... Foi precisamente para esse fim que Cristo morreu e ressurgiu: para ser
Senhor, tanto de mortos como de vivos” (capítulo 14:8 e 9).

5.7. JULGAMENTO E GARANTIA

O apóstolo Paulo apoiou fortemente a crença num julgamento vindouro.


Examinemos suas principais passagens a este respeito.
II Coríntios 5:9 e 10. “É por isso que também nos esforçamos, quer presentes,
quer ausentes, para Lhe ser agradáveis. Porque importa que todos nós
compareçamos perante o tribunal de Cristo para que cada um receba segundo o bem
ou o mal que tiver feito por meio do corpo”.
Romanos 14:10 e 12, Aqui o tema de que os cristãos deverão aparecer
universalmente diante do divino tribunal, é colocado e recebe uma aplicação
particular, No significativo contexto da morte e ressurreição de Cristo para ser Senhor
de mortos e de vivos (verso 9), Paulo pergunta: “Tu, porém, por que julgas a teu
irmão? E tu, por que desprezas o teu? pois todos compareceremos perante o tribunal
de Deus” (verso 10). Da mesma forma como a sorte última do cristão é afetada pelo
julgamento em II Coríntios 5:10 - aqueles que são julgados recebem “o bem e o mal” -
assim o é também aqui.
67

Esta implicação é obvia - julgar aos outros ou desprezá-los (ou, de acordo com
Romanos 14:15, causar a “ruína de alguém por quem Cristo morreu”) afetará o
destino da pessoa no julgamento. Isto representa uma reafirmação do ensinamento de
Cristo, de que seremos julgados de acordo com o juízo que aplicarmos. Em vez de o
crente julgar e desprezar os outros, sua atitude deveria ser: “Ora, nós que somos
fortes, devemos suportar as debilidades dos fracos, e não agradar-nos a nós mesmos.
Portanto cada um de nós agrade ao próximo no que é bom para edificação. Porque
também Cristo não Se agradou a Si mesmo” (Romanos 15:1-3). De todos os modos,
Paulo instrui os cristãos a não entreterem julgamento desfavorável de outros, porque
“cada um de nós dará contas de si mesmo a Deus” (Romanos 14:12).
Romanos 2:16. Esse texto fala do dia em que, segundo o ensinamento do
evangelho de Paulo, Deus julgará os segredos dos seres humanos por Cristo Jesus.
Segundo retrata Romanos 2:6-10, Deus dará a cada pessoa segundo as suas obras.
Haverá ira e furor para aqueles que não obedecem a verdade, antes a iniqüidade; e
vida eterna para os que, ao praticarem pacientemente o bem, demonstram que estão
à busca de gloria, honra e imortalidade. Sendo isto verdade, a pessoa não deve
buscar refúgio em apenas ouvir a lei, pois “os que praticam a lei hão de ser justifica-
dos” (verso 13). Ao passo que Romanos 2 tem corno propósito mostrar que os judeus
que se gloriavam em sua justiça própria e criticavam os gentios por agirem mal,
também agiam erradamente (versos 1-3, 21-24) e assim não podiam ser justificados
por suas obras, o capítulo apresenta ainda o verdadeiro paradigma do julgamento.
Entretanto, não se deve confundir o padrão (ou paradigma) do julgamento com
o método através do qual ele é realizado. Paulo gasta o restante da epístola aos
Romanos, a partir de 3:21, na exposição do método. Sua explanação, sugiro eu,
abrange não apenas a porção teológica do livro (até o capitulo 11), onde o indicativo
da salvadora graça de Deus é apresentado como o fundamento da redenção, como
também a porção ética do livro, que inicia com o capítulo 12, onde o divino imperativo,
surgindo da redenção oferecida no evangelho, é apresentado. Isto não significa
misturar justificação e santificação, e sim revelar que a verdadeira justificação sempre
resulta em santificação.

5.7.1. Nova Conformidade com Deus


Somente quando a graça de Deus, que em termos finais prossegue à base da
vida eterna, conduz a uma nova conformidade com Deus (veja Romanos 12:1 e 2),
está o cristão preparado para permanecer em pé no julgamento. A porção ética de
Romanos não é extemporânea e tampouco representa mero apêndice ao quadro das
misericórdias de Deus apresentado em Romanos 1-11. A graça sempre se desdobra e
interpreta a si própria numa nova forma de vida, e somente este movimento total e
aceitável a Deus. Não podemos duvidar de que o cristão necessitará da graça de
Deus até o fim, mas esta graça - ou misericórdia - sempre deve produzir frutos. A vida
recebida de Deus deverá ser a vida que viva para Deus.
Entre os adventistas do sétimo dia e por meio destes, deve a mensagem do
evangelho de Romanos ser ouvida em sua totalidade, tanto como indicativo (a
realidade do dom de Deus) quanto como imperativo (a realidade dos reclamos de
Deus). (Observe uma vez mais como Paulo diz em Romanos 2:16 que sua pregação
do evangelho inclui a mensagem do julgamento). Somente nesta viva conjunção de
dom e reclamos é que se realiza plenamente o “ser restaurado a uma correta relação
com Deus”. (Veja Romanos 2:17).
I Coríntios 3:13. “Manifesta se tornará a obra de cada um; pois o dia a
68

demonstrará, porque está sendo revelada pelo fogo; e qual seja a obra de cada um, o
próprio fogo o provará”. Mais tarde examinaremos a função desse texto em seu
contexto.
I Coríntios 4:5. “Portanto, nada julgueis antes de tempo, até que venha o
Senhor, o qual não somente trará à plena luz as cousas ocultas das trevas, mas
também manifestará os desígnios dos corações; e então cada um receberá o seu
louvor da parte de Deus”.
Embora Paulo saliente o “louvor” na última parte do verso, torna-se claro que a
exposição das “cousas ocultas das trevas” pode, no caso de algumas pessoas,
apresentar resultado oposto. Não é aqui o propósito de Paulo detalhar este ponto,
antes é ele uma legítima inferência a partir da linguagem usada pelo apóstolo. A razão
pela qual ele apenas destaca o “louvor” é algo pessoal. Este louvor aparece em
contraste com a preocupação de Paulo no verso 3, quanto à possibilidade de ser ele
julgado pelos coríntios ou por qualquer corte humana. Ele não está preocupado em
receber o louvor de seus leitores, e sim o de Deus.
O ponto primário do verso, portanto, tem a ver com a vindicação última do
ministério apostólico de Paulo. Entretanto, as implicações do fato de que Deus “trará à
plena luz as cousas ocultas das trevas” estendem-se para um aspecto mais amplo.
Manifestamente, Paulo aplicou linguagem pertencente ao conceito mais amplo do
julgamento, a seu próprio ministério, (Veja Romanos 2:16).
Colossenses 3:5 e 6, “Fazei, pois, morrer a vossa natureza terrena:
prostituição, impureza, paixão lasciva, desejo maligno, e a avareza, que é idolātria.
Por estas cousas é que vem a ira de Deus”.
I Tessalonicenses 4:6. Com relação e suas exortações no tocante à pureza
sexual, diz Paulo: “Ninguém defraude a seu irmão, porque o Senhor, contra todas
estas cousas, como antes vos avisamos e testificamos claramente, é vingador”.
Gálatas 5:21. A forte ênfase quanto à advertência prévia, que apareceu em I
Tessalonicenses 4:6, também é apresentada aqui. Após outra lista de vícios, Paulo
diz: “A respeito das quais /coisas/ eu vos declaro, como já outrora vos preveni, que
não herdarão o reino de Deus os que /as/ praticam”.
I Coríntios 6:9. Este e outro texto com um rol de vícios. Esta “mania” de ênfase
do apóstolo Paulo é instrutiva. “Ou não sabeis que os injustos não herdarão o reino de
Deus? Não vos enganeis”. Certamente vocês sabem disso, diz Paulo. Entretanto, ele
admite que e assunto a respeito do qual a pessoa pode enganar-se. Ele adverte
contra um tal engano.
Efésios 5:5 e 6. O texto apresenta advertência similar quanto a não deixar-se
enganar. “Sabei, pois, isto: nenhum incontinente, ou impuro, ou avarento, que é
idolātra, tem herança no reino de Cristo e de Deus. Ninguém vos engane com
palavras vãs: porque por estas cousas vem a ira de Deus sobre os filhos da
desobediência”.
Gálatas 6:7 e 8. Aqui, o pensamento de não se deixar enganar acompanha
outro pensamento. “Não vos enganeis: de Deus não se zomba; pois aquilo que o
homem semear, isso também ceifará. Porque o que semeia para a sua própria carne,
da carne colherá corrupção; mas o que semeia para o Espírito, do Espírito colherá
vida eterna”.
Esse texto oferece importante contribuição ao informar que de Deus não se
zomba (ou que Deus não Se deixa escarnecer). Certamente seria zombar de Deus a
pessoa pretender haver recebido a Sua aceitação e depois recusar-se a viver de
modo aceitável, através do Espírito. Uma vida desenvolvida deliberadamente a favor
da carne, jamais poderá estar de acordo com a realidade e o propósito da justificadora
69

graça de Deus.
Cada cristão deveria interrogar-se se sua forma de vida não está zombando do
Deus que lhe outorgou a vida. O ponto saliente em Gálatas 6:7 e 8, quanto a ser
enganado e zombar de Deus, encontra notável paralelo em Jeremias 7:8-10: “Eis que
vós confiais em palavras falsas, que para nada vos aproveitam. Que é isso? Furtais e
matais, cometeis adultério e jurais falsamente; queimais incenso a Baal e andais após
outros deuses que não conheceis, e depois vindes e vos pondes diante de Mim nesta
casa, que se chama pelo Meu nome, e dizeis: „Estamos salvos‟; sim, só para
continuardes a praticar estas abominações”.
Romanos 8:5-13. Esse texto estabelece o mesmo contraste entre carne e
Espírito. Diz o verso 13: “Porque se viverdes segundo a carne, caminhais para a
morte; mas, se pelo Espírito mortificardes os feitos do corpo, certamente vivereis”.
Hebreus 2:1-3. “Por esta razão, importa que nos apeguemos, com mais
firmeza, as verdades ouvidas, para que delas jamais nos desviemos. Se, pois, se
tornou firme a palavra falada por meio de anjos, e toda transgressão e desobediência
recebeu justo castigo, como escaparemos nós, se negligenciarmos tão grande
salvação?”
Hebreus 10:26-31. Aquilo que é brevemente citado em Hebreus 2:1-3, é
plenamente desenvolvido no texto de Hebreus 10. O texto fala por si próprio: “Porque,
se vivermos deliberadamente em pecado, depois de termos recebido o pleno
conhecimento da verdade, já não resta sacrifício pelos pecados; pelo contrário, certa
expectação horrível de juízo e fogo vingador prestes a consumir os adversários. Sem
misericórdia morre pelo depoimento de duas ou três testemunhas quem tiver rejeitado
a lei de Moisés. De quanto mais severo castigo julgais vós, será considerado digno
aquele que calcou aos pés o Filho de Deus, e profanou o sangue da aliança com o
qual foi santificado, e ultrajou o Espírito da graça? Ora, nós conhecemos Aquele que
disse: „A Mim pertence a vingança; Eu retribuirei‟. E outra vez: „O Senhor julgará o Seu
povo‟. Horrível cousa é cair nas mãos do Deus vivo”.

5.7.2. Sumário das Principais Verdades dos Textos Acerca do


Julgamento

Ao passo que aqueles que prosseguem dedicados a Cristo não necessitam


sentir qualquer temor diante do julgamento de Deus ou ansiedade concernente à
salvação, três coisas, pelo menos, estão claras a partir destas passagens acerca do
julgamento. O que direi aqui será clarificado mais adiante neste ensaio e posto em
relação com a rica salvação de Deus. (1) Os cristãos, todos aqueles justificados pela
fé, serão julgados. (2) O julgamento é feito de acordo com as obras da pessoa. (3)
Dois destinos acham-se diante dos que professam haver aceitado a Cristo: vida
eterna, por um lado, e morte, do outro. Noutros termos, as pessoas poderão salvar-se
ou perder-se em face ao resultado de seu julgamento.
Ninguém necessita perder-se - evitar isto é a razão pela qual aparecem
advertências em todos os textos concernentes ao julgamento - mas a pessoa poderá
perder-se se permanecer indiferente diante das palavras e da vontade de Deus.
Da mesma forma como os textos bíblicos não apóiam o falso ponto de vista:
“Nunca se considere inteiramente salvo, não importa o que Cristo fez”, assim também
esses textos sobre o julgamento desabonam outra visão errada: “Uma vez salvo,
salvo para sempre, não importa o que você faça”. A salvação é sempre um dom, mas
esse dom não permanece se Deus é rejeitado como o Senhor de nossa vida.
70

5.8. RESOLVIDA A TENSÃO

Várias tentativas têm sido empreendidas para resolver a tensão existente entre
justificação e julgamento.
1. Algumas pessoas argumentam que os textos que falam do juízo de
acordo com as obras, representam um resquício do judaísmo passado de Paulo, no
qual os aspectos apocalípticos desempenharam importante papel. Diriam estas
pessoas que os textos sobre o julgamento são uma espécie de “penduricalho”
apocalíptico. Portanto, deve-se dar preferência aos textos paulinos sobre a
justificação.
De acordo com esta posição, existe na verdade apenas um ponto focal – e não
dois - na pregação de Paulo. Deste modo, a idéia do juízo é pronunciada como não
funcional para Paulo. Este ponto de vista apocalíptico rejeicionista é inteiramente
inaceitável como interpretação do pensamento paulino. Salta à vista a freqüência com
que Paulo cita textos sobre o juízo, assim como a severidade de seu pensamento e a
posição central do juízo em seu argumento.
2. Alguns advogam o que pode ser identificado como o ponto de vista
imperfeccionista. Argumentam que, uma vez que as pessoas jamais poderão ser
perfeitas em virtude do pecado interior, a fé é o único princípio operativo de
julgamento, assim como a atribuição original de justificação. Por esta razão, a única
função real das declarações bíblicas a respeito de julgamento segundo as obras, é
levar as pessoas a correr em busca da justificação pela fé, onde pode ser encontrada
a necessária misericórdia. Assim, o julgamento segundo as obras, não é efetivamente
uma realidade futura, exceto para a pessoa desligada de Cristo. Para o cristão, o
julgamento segundo as obras na verdade significa “de acordo com as obras de
Cristo”, em lugar das obras do cristão.
Este ponto de vista contém um elemento positivo ao sublinhar a primazia da
justificação pela fé, mas no esforço por obter facilmente a harmonia com a justificação,
ele despreza os textos atinentes ao julgamento. De modo muito claro, indicam as
Escrituras que as obras do cristão - tornadas possíveis através de Cristo, sem dúvida -
é que estarão sob julgamento, e que a perda da vida eterna pode ocorrer se a graça
não conduzir ao discipulado. Adicionalmente, este ponto de vista não leva seriamente
em conta o tema “cumprimento da lei”, encontrado nos escritos de Paulo (Romanos
8:4; 13:8-10; Gálatas 5:13-14; 6:2). Onde esse tema ocorre, não diz ele respeito à
imputação da justiça da lei e sim à efetivação de sua justiça na vida do cristão, através
do poder do Espírito. Reconhecemos que esta realização não consegue preencher o
caráter de absoluta perfeição, mas afirmamos que a vontade de Deus chega a
expressar-se em termos concretos na vida do cristão. Mais que isto, a visão
imperfeccionista compreende erroneamente o imperativo de Paulo. Percebe-o como
funcionando apenas ao falar daquilo que não fazemos diante de Deus, em vez de
apresentar a nossa prática da vontade de Deus, o que é realmente a ênfase de Paulo
e outros textos bíblicos.
De fato, a Escritura nos pede tanto, sem quaisquer reservas, que ficamos como
que sem fôlego. Todavia, permanece sendo verdadeiro que através do Espírito (que é
outorgado aos crentes junto com a justificadora graça de Deus em primeira mão; cf.
Gálatas 2:16 e 21 com 3:1-3), os crentes podem deveras “andar em novidade de vida”
agora (Romanos 6:4).
Por meio de Cristo e tal como Ele, pode-se dizer do cristão que a vida por ele
vivida, deve sê-lo para Deus. (Veja Romanos 6:11). A ética bíblica não apenas conduz
a pessoa de volta à justificação, como ainda é o próprio fruto vivo da justificação. Se
71

for verdade que devemos correr continuamente de volta à cruz em virtude do rigor das
demandas divinas, também é verdade que deve mos dirigir-nos ao mundo com a cruz,
na qualidade de discípulos de Cristo que Lhe seguem os passos.
3. A terceira forma de compreensão pode ser identificada como o ponto de
vista “particionista” ou perfeccionistas (Devemos distinguir, desde já, entre a
“perfeição”, à qual a Bíblia nos convoca, e o “perfeccionismo”, que é a pretensão de já
havermos “chegado lã”). De acordo com este ponto de vista, a justificação pela fé
refere-se ao começo da existência cristã, e ao final da mesma encontraremos o
julgamento segundo as obras. Somos justificados inicialmente pela fé, mas finalmente
por alcançarmos, através da graça, o padrão da perfeição. A partir deste raciocínio, na
realidade não se faz necessária a misericórdia no julgamento, pois o crente ter-se-á
separado de todos os procedimentos imperfeitos.
A visão perfeccionista possui elementos positivos: ela reconhece que Deus nos
convoca à perfeição, leva a sério o discipulado e indica o propósito divino de cumprir a
lei através da experiência, e não o de destruí-la.
Não obstante, este ponto de vista apresenta sérias restrições. Em primeiro
lugar, deixa para trás a fé e a justificação, o que Paulo não faz. Para o apóstolo, a fé
que assegura a justificação de Deus representa o fundamento da correta relação com
Deus em todos os tempos - passado, presente e futuro. Isto se encontra inerente na
frase “de fé em fé”, em Romanos 1:17, e é explicitamente ensinado em Gálatas 5:5,
onde é através do Espírito, pela fé, que aguardamos “a esperança da justiça” (com o
significado de “justiça almejada”). Em outros termos, a fé abarca a futura justiça de
Deus, tanto quanto sua presente manifestação. Segundo Romanos 5:1 e 2, a
justificação pela fé nos conduz à glória.
Uma vez mais Paulo, o mesmo que poderosamente apresenta tanto a
justificação pela fé somente quanto o julgamento segundo as obras, recusa-se a
pretender a perfeição - e isto até mesmo no final de sua vida, conforme vemos em
Filipenses 3:12-14. Sabia ele que Cristo o havia tornado plenamente Seu, mas ele
próprio ainda não fizera plenamente suas as infinitas riquezas de Cristo (3:12b).

5.8.1. Compreensão Superficial da Perfeição

Finalmente, este ponto de vista demonstra uma compreensão superficial da


perfeição. Parece não captar adequadamente o “mais e mais” dos ensinos de Paulo.
De acordo com Paulo, podemos estar agradando a Deus e amando uns aos outros,
conforme Deus nos orienta, mas não devemos estar satisfeitos com isto, e sim buscar
fazer isto mais e mais (I Tessalonicenses 4:1, 9 e 10). O padrão da perfeição está
sempre à frente do cristão e jamais se poderá dizer que ele foi plenamente alcançado.
Isto é assim porque o dom de Cristo é infinito, de modo que as suas reivindicações
também devem ser infinitas. Tão completamente quanto Ele Se deu a nós e por nós,
também reclama nossas vidas para o Seu serviço. Dizer que alguém está no caminho
certo, conforme o fez Paulo (Filipenses 3:12-14), é uma coisa; outra, bem diferente, é
dizer que a pessoa já alcançou a perfeição! Esta última posição é rejeitada por Paulo,
mesmo ao ele aconselhar-nos a andar “de acordo com o que já alcançamos”
(Filipenses 3:16). Algo já aconteceu, entretanto mais está por ocorrer. O próprio Céu
tem sido descrito como uma incessante aproximação de Deus.
4. Outro ponto de vista declara que o juízo somente traz recompensas ou
bem-aventuranças aos redimidos, mas sem determinar salvação ou perdição. O que
foi exposto recentemente num periódico religioso chama a atenção a este ponto de
vista: “Os casos dos crentes não se acham sob ameaça no julgamento, pois o seu
72

representante já selou a justificação deles”. A seguinte explanação e apoio é


apresentada no texto do artigo:
“O que dizer dos textos que afirmam que os cristãos serão julgados segundo
suas obras? Porventura não ensina a Bíblia que os crentes serão responsabilizados
pela forma como vivem? É bem verdade que „todos devemos comparecer diante do
tribunal de Cristo‟ (II Coríntios 5:10). Mas ao mesmo tempo que a Bíblia diz que
deveremos ser julgador, de acordo com as nossas obras, ela não ensina que seremos
justificados por conta de nossas boas obras (Romanos 3:20). Os crentes serão
recompensados no devido tempo pelo bem que realizaram através da graça de Deus
(Efésios 6:8; Mateus 25:32-40). Uma vez que já fomos justificados em Cristo, este
acerto final de contas não colocará em risco nossa aceitação diante de Deus. George
Ladd, em A Theology of the New Testament, expõe o tema desta forma:
“ „O crente será julgado por suas obras. Nossa vida será plenamente exposta
diante do divino escrutínio, de modo que cada um receba a adequada recompensa
pelas coisas efetuadas durante a vida através do corpo, de acordo com as coisas que
a pessoa houver praticado, quer o registro da vida seja bom, quer seja mau. Este
julgamento não é uma declaração de condenação, mas uma atribuição de
recompensa, e que envolve não a condenação ou absolvição, mas recompensa ou
perda com base no valor ou falta deste, na vida cristã. O mesmo princípio de
julgamento é exposto em I Coríntios 3:12-15. Paulo fala aqui da obra dos lideres
cristãos, mas o princípio é válido para todos os crentes. O único fundamento sobre o
qual pode ser edificado algo permanente, é Jesus Cristo. Não obstante, nem todos
edificam da mesma forma. Alguns erigem estruturas com ouro, prata e pedras
preciosas; outros edificarão baratas casas de madeira, feno ou palha... Suas obras,
tais como a madeira, o feno e a palha, serão consumidas nas chamas do juízo, de
modo que nada restará como resultado de suas vidas sobre a Terra. Isto não significa
perda da salvação: “ele próprio será salvo”, mas sofrerá a perda do “bem está, servo
bom e fiel”. Aqueles que edificaram fielmente e de modo eficaz, serão recompensados
por seu amor e devoção. Paulo não indica o que será a recompensa. O princípio
envolvido neste julgamento é que ao mesmo tempo que a salvação ocorre
inteiramente pela graça, o cristão não é deixado em dúvida quanto a ser ele
plenamente responsabilizado por Deus quanto à qualidade de sua presente vida‟”.1
O maior problema com este ponto de vista, além do fato de parecer indicar que
existirá uma espécie de “sistema de castas” no reino vindouro, é que ele não se
encontra em harmonia com a clara implicação das passagens bíblicas quanto aos
julgamentos. Omite considerações quanto ao significado de todos esses textos. A
partir da declaração do juízo, torna-se claro que o destino final indubitavelmente é
determinado pelo juízo, e que as obras (alicerçadas na fé, evidentemente) sem dúvida
desempenham uma parte significativa nessa determinação.
Não somente este ponto de vista, representado pelo artigo supracitado, omite
muitas das evidências bíblicas, como também comete o erro de utilizar mal algumas
das passagens citadas. Por exemplo, Mateus 25:32-40, é citado como dando apoio à
pretensão, vista apenas pelo seu lado positivo, de que os “crentes serão
recompensados... pelo bem que houverem feito através da graça de Deus”. (O que
dizer do mal que eles praticaram à parte da graça de Deus?).
A menos que se presuma que dentre os perdidos desta parábola, nenhum
tenha sido crente, ela inequivocamente ensina que a mera profissão de fé não vence
no juízo, e sim somente o fazer a vontade do Pai em termos de feitos de misericórdia.
A menos que Cristo tenha ensinado esta parábola a fim de justificar a nação judaica e
condenar todos os gentios - e, em vez disso, mais parece que ela está tentando
73

mostrar que ser um judeu, um professo crente, sem os feitos de bondade, não oferece
qualquer vantagem, e sim apenas perda em comparação com os “descrentes” gentios
que fazem a vontade de Deus - o claro ensino aqui é o princípio de que os “crentes”
poderão perder-se se não representarem a essência do caráter do reino.

5.8.2. Sem o “Bem Está”, Ninguém Entra no Reino

Utilizando mais uma vez Mateus 25 - desta vez o verso 23 - George Ladd
afirma que o “bem está, servo bom e fiel” não será pronunciado sobre aqueles que, de
acordo com I Coríntios 3:12-15, construíram pobremente sobre o alicerce que é Cristo.
Estas pessoas serão salvas, mas perderão a recompensa que a salvação oferece
aqueles que construíram adequadamente. Ladd faz mau uso tanto do texto de Mateus
quanto da passagem de Coríntios. Deve-se observar que em Mateus 25:23, o “bem
está” é seguido, e representa o pressuposto para o “entra no gozo de teu Senhor”.
Este gozo não é somente um aspecto do reino reservado para algumas pessoas (os
bons edificadores) que entram no reino, e não para outras (maus edificadores) que
também entram no reino. Em vez disso, o gozo é um termo que sumaria o reino como
um todo. Sem o “bem está”, ninguém entra no reino, e de forma alguma estará apto a
participar de qualquer aspecto de seu gozo.
No que tange a I Coríntios 3:12-15, esta passagem é mal compreendida se
usada para ensinar que, não importa o que o crente pratique em sua vida pessoal,
ainda permanece com a salvação garantida no fim do tempo. A declaração, “esse
mesmo será salvo, todavia, como que através do fogo”, não é tanto uma promessa
evidente, e sim uma advertência implícita. Desafia aqueles em posição de liderança,
que estão talvez construindo pobremente o templo de Deus pelo fato de encorajarem
facções em vez de unidade na igreja - e observe que este é o tema de I Coríntios 3, e
não os pecados pessoais de cada membro da congregação, conforme Ladd gostaria
que crêssemos. Representa um desafio para que sejam cuidadosos, pois no fogo do
julgamento divino poderão talvez escapar somente “como que através do fogo”, ou
seja, “pela pele dos dentes”.
O quadro é o de alguém que corre por dentro do incendiado edifício que
construiu, a fim de salvar a vida. Nenhum líder de igreja responsável poderia repousar
confortavelmente diante de uma concepção como esta. A intensidade do pensamento
de Paulo e a fatalidade do juízo chegam a uma expressão apical quando Paulo diz
nos versos imediatamente seguintes a 3:12-15, que a igreja constitui o templo de
Deus e que “se alguém destruir o santuário de Deus, Deus o destruirá”. Aqui não
existe espaço para a salvação incondicional! Que todos tomem cuidado. Edificadores
pobres mal chegarão lá; destruidores de modo algum chegarão.
O ponto de vista de que o julgamento determina somente somas de bênçãos,
entra em conflito com um dos pilares do pensamento de Paulo. O verdadeiro
significado da declaração de Paulo quanto ao julgamento, é frustrado em virtude de
um certo ponto de vista quanto à justificação. Aqui se acha envolvida mera lógica
humana, que opera sem o conjunto de dados das Escrituras.
5. Em minha opinião, o ponto de vista que melhor recomenda a si próprio
diante da totalidade dos dados apresentados no pensamento de Paulo, é aquilo que
poderíamos denominar como ponto de vista dinâmico, salvífico-histórico. Ele
apresenta dois pólos, tão proeminentes em Paulo: o “já” da salvação iniciada e o
“ainda não” da salvação completada. O “já” e o “ainda não” são operacionais tanto na
experiência salvífico-histórica de Deus quanto na experiência individual humana, na
medida em que esta se vincula àquela história. A essência deste ponto de vista é que
74

apenas uma justificação existe, e esta acompanha o crente desde a ocasião em que a
fé inicia (o “já”), ao longo de todo o caminho rumo ao julgamento final, onde sua
realidade e vitalidade são testadas e atestadas por seus frutos (o “ainda não”).
A Bíblia ensina que a justificação pertence as “últimas coisas”, pois ela traz a
almejada sentença de absolvição do julgamento final, ao momento presente. É
interessante observar, contudo, de acordo com as Escrituras, que as próprias coisas
finais têm um começo e um fim. O princípio é: “Aquele que começou boa obra em vós,
ha de completá-la até ao dia de Cristo Jesus” (Filipenses 1:6). Portanto, contradiz-se o
testemunho das Escrituras quando a lógica humana conclui que, pertencendo à
justificação - uma realidade presente, por meio da fé - às últimas coisas, coisa alguma
adicional pode ser pedida ao crente no julgamento final. Embora a bênção da
absolvição no julgamento futuro efetivamente se torne operacional mesmo agora, as
Escrituras são claras em dizer que o que Deus deseja Ver no julgamento final, são
crentes justificados que através de Sua graça, produziram frutos para Sua glória
(versos 9-11).
A nova história que Deus oferece a cada crente, não termina quando ele vem a
Cristo e é justificado; isto é, apenas o começo. No final Deus reclama justificação com
seus, frutos - não sob a fórmula “fé mais obras salvam”, e sim no sentido de que a
justificação é a fonte de frutos santificados.
No julgamento final Cristo, como Salvador e Senhor, pode legitimamente
perguntar aqueles aos quais justificou: “Foste tu, pela força de Minha graça, Meu
verdadeiro discípulo?” A realidade devera responder: “Sim!” Esta resposta não poderia
haver sido dada quando os crentes pela primeira vez vieram a Cristo e receberam a
Sua justificação. O discipulado somente pode iniciar quando a pessoa encontra a
Jesus, o Justificador, mas ele inicia efetivamente quando o crente submete toda a sua
vida futura a soberania do agora presente amor de Deus.

5.8.3. Do “Já” ao “Ainda Não”


Para Paulo, a consumação do plano de Deus ocorre quando a justificação -
primeiro objetivamente revelada na cruz e depois subjetivamente apropriada pela fé -
traçou seu curso e manifestou seu intento completo através da santificação; sua
plenitude se manifesta pela destinação de vida eterna. Esta é a ordem da salvação
encontrada em Romanos 6:15-23 e resumida no verso 22: “Agora, porém, libertados
do pecado, transformados em servos de Deus, tendes o vosso fruto para a
santificação, e por fim a vida eterna”.
O movimento da justificação para a vida eterna é um percurso do “já” para o
“ainda não”. Mas para cada uma das realidades, tanto da justificação quanto da vida,
existe um “já” e um “ainda não”. A justiça de Deus já foi recebida; entretanto, os
crentes ainda aguardam esta esperança (Gálatas 5:5). O que une aquilo que já
ocorreu com aquilo que ainda será, é a fé que opera por amor (verso 6). Somente
quando a fé dos crentes operou por amor é que pode ser final o veredito: “Justo!” No
tocante à vida eterna, um dia será ela uma plena possessão (Romanos 5:21), mas
agora pode ela ser vivenciada por antecipação. (Veja, por exemplo, Romanos 6:4,
“andemos em novidade de vida”, e 6:13, “como ressurretos dentre os mortos”.
Santificação, ou maturação da vida em Cristo, é um vínculo conector entre a vida
como antecipação e a vida como plena possessão.
Na teologia paulina do julgamento segundo as obras, que se apresenta sob a
forma “já ainda não”, encontra-se um aspecto de cumprimento tipo “ainda não” da
justificação pela fé. A graça, que acompanha o crente até ao fim, alcança seu alvo na
75

bondade, e isto é constatado pelo julgamento. A capacidade salvadora de Cristo é


manifestada plenamente em Sua dominação sobre nós. O julgamento interroga se isto
se tornou realidade. O fracasso em se levar em consideração o julgamento segundo
as obras significa, em duas palavras, remover o elemento “ainda não” da teologia
paulina da salvação.
O que estamos procurando dizer aqui é que os últimos eventos não atingem
seu clímax na cruz e na recepção destes pela fé, antes começam eles aqui. Aquilo
que ocorreu na cruz e àqueles que a aceitam, prossegue desvendando sua
importância e aplicação através do contínuo ministério de Cristo, até que a cruz atinja
sua vitória última e Cristo seja Senhor de tudo.

5.8.4. Sob o Domínio de Cristo

O julgamento segundo as obras ensina que a cruz, enquanto evento salvador


coloca-nos sob o domínio ou reinado de Cristo. Recusar o discipulado ou recusar-se a
andar em santificação, a qual, de acordo com Romanos 6, é inseparável da
justificação, é o mesmo que rejeitar a Cristo tanto como Salvador quanto como
Senhor. O julgamento segundo as obras não pede apenas obras isoladas, e sim o
relacionamento do crente com Cristo na dualidade e na unidade de Sua função
salvadora e dominadora.
Se Paulo houvesse sido solicitado a ilustrar através de uma parábola o seu
ensinamento quanto à justificação e o julgamento, poderia muito bem haver escolhido
uma parábola do tipo daquela que retrata o credor incompassivo (Mateus 18:23-35).
Esta representa, de fato, muito bem o que Paulo está procurando ensinar. Tal como o
credor incompassivo, os pecadores são chamados primeiramente pelo rei a fim de
prestarem contas, sendo então perdoados pelo débito que não podem pagar. A
justificação opera desta forma. Contudo, quando aqueles que são perdoados - assim
como o foi o credor da parábola - se recusam a demonstrar misericórdia para com
outros, são novamente chamados a prestação de contas e o rei os sentencia à prisão.
Os que dantes foram perdoados, são agora penalizados! Isto se harmoniza com o
ensino de Paulo quanto ao julgamento segundo as obras.
Caso se pergunte se - com base nesta parábola - as obras representam o
terreno final para que se determine salvação ou condenação, a resposta será: “Não”!
A base da salvação é a misericórdia do rei. A ausência de obras misericordiosas por
parte do servo apenas confirmou que ele não possuía compreensão do que a
misericórdia realmente representava, e que ele a rejeitara como princípio operativo
para a vida como um todo.
A misericórdia jamais poderá ser destinada apenas para a própria pessoa e
guardada como meio de enaltecimento, em vez de ser um instrumento de
restauração. De fato, se Deus é rei, o nosso rei, não é igualmente certo que o caráter
de Seu governo deve também caracterizar-nos? Isto não é sinônimo de nos salvarmos
a nós mesmos pelas obras, e sim de permitirmos que as obras de Deus nos salvem
plenamente. Não somos salvos por nossa própria misericórdia, mas a divina salvação
produz pessoas misericordiosas. “Pois somos feitura dEle, criados em Cristo Jesus
para boas obras, as quais Deus de antemão preparou para que andássemos nelas”
(Efésios 2:10).
O que se encontra sob ameaça na parábola é o gracioso domínio do rei. Ao
provar-nos em termos da pratica da misericórdia, o que em termos finais esta sendo
provado é que a realidade última, que define e influência todas as coisas - inclusive a
nós mesmos - e a misericórdia de Deus. É por isto que a solução final da Grande
76

Controvérsia é dada pelo testemunho universal de que Deus é amor.


Um ponto final nesta parábola que representa o espírito e a motivação do
pensamento de Paulo reside na verdade paradoxal de que a misericórdia destina-se
aos misericordiosos. Em contraste com o ensino do judaísmo, de que no julgamento
final a misericórdia seria afastada e apenas restaria a justiça (veja II Esdras 7:33),
Cristo ensinou que a misericórdia, de Deus estará em plena operação no julgamento
final. Mas ela funcionaria apenas para aqueles que houvessem demonstrado
misericórdia em resposta à misericórdia de Deus.
Aqui surge a questão: se alguém demonstrou misericórdia nesta vida, por que
haveria de necessitar misericórdia no julgamento? A luz de Jesus Cristo, a única
resposta é que ao passo que o caráter de Cristo pode ser imitado e dele nos podemos
aproximar, o infinito caráter de Sua bondade jamais poderá ser igualado. Por
conseguinte, duas coisas devem permanecer verdadeiras quanto ao julgamento: (a)
deverão ser apresentados os santificados frutos da justificação e (b) a justificação
deverá prosseguir sua função perdoadora. A graça não se acha em contradição com
os frutos e nem os frutos com a graça. No julgamento coexistem dois elementos:
“Sobre o pouco foste fiel; sobre o muito te colocarei” (Mateus 25:23).
A conclusão de nossa discussão quanto ao assunto da garantia equivale a
dizer que se a justificação assegura a garantia, o julgamento a protege. Protege-a
diante da ilusão de que a garantia de salvação é possível sem um fundamental
relacionamento com Cristo e o seguir-Lhe comprometidamente os passos. Nossas
obras não nos oferecem a garantia, e sim Aquele a quem, em agradecida resposta
seguimos através de nossas obras. Assim a questão das obras e da certeza de
salvação é uma questão de Cristo. O crente pode sempre ter esta certeza se sua
resposta a Cristo é “sim”. Não existe certeza ao Lhe dizermos “não”, a Ele que antes
nos disse “sim”. Paulo ilustra este ponto em sua exposição de I Coríntios 10:1-13.
Tudo esteve bem com Israel - e também o estará com a Igreja, a contrapartida de
Israel - enquanto este povo seguiu a Rocha, que era Cristo. Mas quando eles
desejaram o mal, foram destruídos pelo destruidor.
O julgamento praticado sobre o espiritualmente privilegiado Israel prova que
aqueles que pensam estar de pé, que imaginam ter a certeza da salvação sem se
preocuparem com a vontade de Deus, deveriam cuidar para não cair (verso 12).
Contudo, ninguém necessita cair, pois Deus sempre é capaz de prover um meio de
escape diante da tentação (verso 13). Assim, os crentes possuem a certeza da filiação
somente como aqueles que são tentados. O ensino bíblico quanto ao julgamento
deveria relembrar-nos disto e oferecer-nos o fundamento adequado para a verdadeira
garantia de salvação - nosso apego a Cristo.
77

6. CRISTO: SALVADOR E SENHOR


Sinopse editorial. Na esfera da redentora graça de Deus, o dom de Deus (a
salvação) e os reclamos de Deus (obediência a Seus mandamentos) acham-se
inseparavelmente ligados entre si. O dom e os reclamos refletem a fundamental
verdade de que Cristo e tanto Salvador quanto Senhor do crente. O relacionamento
de Cristo com aquele que crê ilustra o relacionamento entre justificação e
julgamento.
Ao procurar obras como frutos da fé, o julgamento testifica da realidade da
salvação do penitente. Isto deve ser assim porque o genuíno perdão resulta em nova
criação, em transformação e continua restauração da imagem de Deus no íntimo do
crente confiante. Deste modo, o julgamento segundo as obras, em relação com a
justificação por fé, desdobra a inteireza e unidade do plano da salvação, uma vez
que Cristo e tanto o Senhor quanto o Salvador.
É evidente, portanto, que o julgamento pelas obras não se encontra em
contraditória relação com a justificação, e sim em relação de cumprimento. Rejeitar o
julgamento segundo as obras seria rejeitar a totalidade da intenção do plano
redentivo de Deus. O Cristo da cruz, que justifica, sempre diz, na qualidade de
Senhor, aquele que é justificado: “Toma a tua cruz e segue-Me”. O julgamento atesta
e testemunha da realidade e genuinidade daquilo que segue.
Os adventistas do sétimo dia vêem o julgamento retratado nas profecias
(Daniel 7 a 9) como parte integral do julgamento final. O juízo investigativo no Céu
inaugura o juízo final, que é consumado quando Cristo retorna à Terra e, novamente,
após o milênio. Esta fase inicial do julgamento final revela a verdadeira relação dos
crentes com Cristo, ao passo que a fase última recompensa os crentes de acordo
com a verdadeira natureza de seu serviço por Cristo.
Por vezes os escritos de João têm sido utilizados a fim de tornar sem efeito os
ensinos neotestamentários concernentes ao julgamento final e assuntos correlatos.
A análise do ensino de João, todavia, demonstra que seu pensamento acha-se em
completo acordo com o testemunho do restante das Escrituras.
Em Seu ofício dual - como Salvador e Senhor - Cristo julgou o pecado na
cruz, justifica o pecador com base em sua resposta de fé, e julga a pessoa
justificada por suas obras. A cruz é o meio pelo qual se efetua a justificação. A fé é o
meio pelo qual a justificação é aceita. As boas obras são o meio pelo qual a
justificação é manifestada. Obras de justiça testificam da realidade e da vitalidade da
justificação. Sua ausência revela um relacionamento imperfeito com Cristo.

6.1. ESBOÇO DA SEÇÃO

I. Introdução
II. Cristo: Salvador e Senhor
III. Juízo Pré-Advento
IV. Julgamento nos Escritos de João
V. Conclusões

6.2. INTRODUÇÃO

Devemos desenvolver agora um elemento mencionado anteriormente. O


relacionamento entre justificação e julgamento pode ser visto melhor ao se colocá-lo
78

no contexto da discussão do relacionamento entre Cristo como Salvador e Cristo


como Senhor, entre o dom de Deus e os reclamos de Deus.
Jesus disse em certa ocasião: “O que Deus ajuntou, não o separe o homem”
(Mateus 19:6). Embora o contexto seja um debate quanto ao matrimônio, a
substância de Sua observação parece apropriada no tocante à salvação.
Na esfera da redentora graça de Deus, o Seu dom e os Seus reclamos
acham-se inseparavelmente conectados. Quanto mais exaltarmos o Seu dom a nós
concedido, tanto mais estaremos, ao mesmo tempo, exaltando Seus reclamos em
relação a nós. Quanto mais radicalmente a pessoa perceba e receba o amor de
Deus, tanto mais radicalmente cria-se uma nova ética do amor, uma nova vida de
discipulado e serviço.

6.3. CRISTO: SALVADOR E SENHOR

Não é possível separar em maior grau o dom e os reclamos de Deus, do que


é possível separar a realidade de Cristo como Salvador da realidade de Cristo como
Senhor. A confissão de que Cristo é Salvador e Senhor pertence à própria essência
do cristianismo do NT. Não é possível que a pessoa tenha a Cristo apenas como
Salvador ou apenas como Senhor; Cristo vem a nós com esta dupla “personalidade”.
Existe o mais profundo vínculo entre as duas realidades.
O papel salvador de Cristo é revelado particularmente na cruz, onde o amor
de Cristo, já manifestado durante Sua vida terrestre, alcança sua expressão apical.
Mas é também na cruz que se revela a Sua soberania. Esta é estabelecida
precisamente por intermédio de Seu amor. O domínio de Cristo é a regra de Seu
amor.
Muitas pessoas temem a idéia do domínio ou soberania de Cristo. O conceito
parece sugerir-lhes a idéia de autoridade exigente, opressiva e, talvez, arbitrária,
Mas não é este o quadro do NT em relação a Cristo. Cristo como Senhor somente
pode ser compreendido à luz de Cristo como Salvador. Como Senhor, Cristo
governa a partir da cruz. O abnegado amor de Cristo revelado em Sua vida e morte
representa o próprio cerne de Seu domínio sobre nós. Não existe em Sua coroa
outro princípio senão aquele manifestado na cruz. Falar de Seu domínio é tão
somente dizer que Seu amor sacrifical pretende prevalecer em toda a Terra. Na
qualidade de Senhor Ele reclama nossa inteira vida para o serviço de Seu amor.
Com a indivisibilidade de Cristo enquanto Salvador e Senhor em mente,
podemos facilmente ver que existe uma conexão íntima entre aquilo que Cristo nos
oferece e aquilo que de nós reclama:
Ele vem a nós em amor - a luz e pela força do mesmo, pede-nos Ele que
amemos.
Ele vem a nós em misericórdia - no regozijo e poder da mesma Ele nos pede
que sejamos misericordiosos.
Ele vem a nós com perdão - pede-nos que sejamos também perdoadores.
Ele vem a nós em bondade - pede-nos que sejamos bondosos.
Ele vem a nós em mansidão - pede-nos que igualmente sejamos mansos.
Ele vem a nós em sacrifício - pede-nos que vivamos oferecendo-nos em
sacrifício.
Ele vem a nós como nosso Servo - pede-nos que sejamos servos uns dos
outros.
Tudo aquilo que o cristão deve ser, é revelado em, e é produto de, tudo aquilo
que Cristo por ele fez. Seu dom e tanto o conteúdo de Seus reclamos quanto o
79

poder para cumpri-los.


Existem vários textos que oferecem a base daquilo que os crentes devem
realizar pelo dom, poder e exemplo daquilo que Cristo por eles fez. Por exemplo:

João 13:34 “Amai-vos uns aos outros . . . assim como Eu vos


amei”.
Efésios 5:25 “Maridos, amai vossas mulheres, assim como Cristo
amou a igreja e a Si mesmo Se entregou por ela”.
Efésios 4:32 “Perdoando uns aos outros, assim como Deus em
Cristo vos perdoou”.
Romanos 12:1 “Rogo-vos... pelas misericórdias de Deus /a graça
sacrificial de Deus, descrita em Romanos 1-11/ que
apresentais vossos corpos em sacrifício vivo”.
Colossenses 2:6 “Assim como recebestes ao Senhor Jesus também
andai nEle”.
Gálatas 5:25 “Se ganhamos a vida através do Espírito, vivamos de
acordo com o Espírito”.
Romanos 14:8 e 9 “Se vivemos, vivemos para o Senhor; e se morremos,
morremos para o Senhor; assim, quer vivamos, quer
morramos, somos do Senhor. Para este fim Cristo
morreu e ressuscitou, para que fôssemos do Senhor
de vivos e mortos”.
II Coríntios 5:14-15 “O amor de Cristo nos constrange, pois estamos
convencidos de que um morreu por todos: portanto,
todos morreram. E Ele morreu por todos para que
aqueles que vivem, não mais vivam para si e sim para
Aquele que por eles morreu e ressuscitou”.
Romanos 14:15 “Se teu irmão for prejudicado por aquilo que tu comes,
já não estás andando em amor. Não deixes que
aquilo que comes venha a causar a ruína de alguém
por quem Cristo morreu”.
Romanos 15:2-3 “Que cada um de nós agrade ao próximo para o seu
bem, a fim de edificá-lo. Pois também Cristo não
agradou a Si mesmo; mas, conforme está escrito, „As
injúrias dos que te ultrajavam caíram sobre Mim‟”.
Filipenses 2:5-11 (A humildade e serviço de Cristo) em relação com
Filipenses 2:1-4 (chamado da igreja à humildade e
serviço).

OBS.: Textos em tradução livre (notas81 e 82).

Estes textos e outros semelhantes tornam claro que o ato de auto-doação de


Cristo propiciou a nossa redenção, mas ao mesmo tempo esta auto-doação implica
em nosso discipulado. Perceber e aceitar aquilo que Cristo fez por nós, é conhecer
aquilo que através de nós Ele espera realizar.
Viver em harmonia com Seus reclamos, como conseqüência da realidade de
Seu dom, não é o mesmo que a pessoa salvar-se por suas próprias obras. Em vez
disso, significa aceitar verdadeiramente o Messias e pautar a vida de acordo com a
Sua libertação. Viver em desacordo com Seus reclamos é o mesmo que rejeitar o
Messias e o reino que Ele traz, o governo que Ele estabelece. De que modo pode
Cristo ser nosso rei se nós não somos Seus servos?

81
Referem-se à tradução dos textos bíblicos, páginas 27 e 28.
82
Referem-se à tradução dos textos bíblicos, páginas 27 e 28.
80

É Necessária Completa Garantia

Neste ponto devemos dizer mais uma palavra quanto ã certeza de salvação.
Sem completa garantia de que Deus nos perdoa e aceita, possivelmente não
possamos viver para Cristo e em harmonia com Seus reclamos. Se não
compreendemos plenamente nossa aceitação, não nos é possível a liberdade diante
da preocupação e ansiedade por nós mesmos, a fim de podermos dedicar suficiente
interesse e tempo aos outros. Adicionalmente, sem esta certeza pessoal não
teremos a iluminação interior ou a força necessárias para aceitar plenamente os
demais. De que modo posso compreender a aceitação e realmente aceitar outros se
não conheço a minha aceitação por parte de Cristo?
Aquilo que recebemos de Cristo determina aquilo que por Ele fazemos. O
dom de Cristo só pode ser repassado depois de haver sido vivenciado. Neste
aspecto, é relevante o texto de I João 1:1-3: “O que era desde o princípio, o que
temos ouvido, o que temos visto com os nossos próprios olhos... e as nossas mãos
apalparam, com respeito ao Verbo da vida... anunciamos também a vós outros”.
De acordo com o NT, o evento que assegura nossa absolvição também
assegura a nossa renovação. O perdão acha-se vinculado com a nova criação.
Lembro-me de um telefonema que recebi depois de haver pregado um
sermão que falava sobre perdão e nova criação. Dizia o meu interlocutor: “Durante a
primeira metade do sermão eu pensava: „Lá vem tudo outra vez; outro sermão sobre
o perdão‟. Mas quando o irmão começou a segunda parte, sobre a nova criação,
iniciou a verdadeira pregação do evangelho!” Apreciei o fato de que alguém tivesse o
trabalho de ligar-me para falar do sermão, mas de alguma forma tive a sensação de
que o ponto principal não havia sido captado.
O que eu estava tentando mostrar era que a renovação nasce do perdão.
Sem o perdão não é possível a renovação, e sem renovação o perdão se torna
truncado, ineficaz, mal compreendido.
Ellen White abordou o assunto de modo feliz em duas citações quanto ao
perdão. Escritas a partir de diferentes perspectivas, elas unem-se na visão que
apresentam quanto àquilo que a salvação de Cristo inclui:
“A religião de Cristo significa mais que o perdão dos pecados; significa
remover nossos pecados e encher o vácuo com as graças do Espírito Santo.
Significa iluminação divina e regozijo em Deus. Significa um coração despojado do
próprio eu e abençoado pela presença de Cristo. Quando Cristo reina na alma há
pureza e, libertação do pecado. A glória, a plenitude, a perfeição do plano do
evangelho são cumpridas na vida. A aceitação do Salvador traz paz perfeita, perfeito
amor, segurança perfeita. A beleza e fragrância do caráter de Cristo manifestadas na
vida, testificam de que em verdade Deus enviou Seu Filho ao mundo para o salvar.83
“O perdão, porém, tem sentido mais amplo do que muitos supõem. Dando a
promessa de que perdoará „abundantemente‟, Deus acrescenta, como se o
significado dessa promessa excedesse a tudo que pudéssemos compreender: „Os
Meus pensamentos não são os vossos pensamentos, nem os Meus caminhos os
vossos caminhos, diz o Senhor. Porque, assim como os céus são mais altos do que
a Terra, assim são os Meus pensamentos mais altos do que os vossos
pensamentos‟. Isaías 55:7-9. O perdão de Deus não é meramente um ato judicial
pelo qual Ele nos livra da condenação. E não somente perdão pelo pecado, mas
livramento do pecado. E o transbordamento de amor redentor que transforma o

83
Parábolas de Jesus, páginas 419 e 420.
81

coração. Davi tinha a verdadeira concepção do perdão ao orar; „Cria em mim, ó


Deus, um coração puro, e renova em mim um espírito reto.‟ Salmo 51:10. E noutro
lugar ele diz: „Quanto está longe o Oriente do Ocidente, assim afasta de nós as
nossas transgressões‟. Salmo 103:12”.84
Relevante para nossa discussão quanto ao dom e aos reclamos de Deus, é a
atitude de Paulo quanto a - e seu argumento contra - duas classes de pessoas que
falsificavam o evangelho. Paulo ameaçou com o julgamento a ambas as classes. A
primeira classe sentia que suas obras da lei poderiam contribuir para a justificação,
ao passo que a segunda raciocinava que os justificados poderiam ou deveriam
prosseguir nas obras do pecado.
A primeira classe é descrita na carta aos Gálatas. São aqueles que
pretendem subtrair á Cristo ao Lhe acrescentarem as suas próprias obras. De
acordo com Paulo, a justificação pelas obras em algum sentido, representa o fim da
justificação pela graça em todos os sentidos. “Se a justiça é mediante a lei”,
argumenta Paulo, “segue-se que morreu Cristo em vão” (Gálatas 2:21). A inferência
é clara: uma vez que Cristo morreu por um propósito redentivo, aqueles que
pretendessem ser justificados por obras da lei separavam-se de Cristo e decaiam da
graça (cap. 5:4). Contra aqueles que pretendessem alterar o evangelho da
suficiência unicamente de Cristo, Paulo lança um anátema (1:8 e 9).
Há um outro grupo que se coloca sob a ira do apóstolo. São aqueles que
afirmam que a doutrina paulina da justificação dos injustos por fé, sem obras da lei,
conduz tão somente à continuidade da vida de pecado. Se a graça superabunda
onde o pecado abundou, conforme Paulo afirma, é bom prosseguir no pecado - pois
a situação representa uma oportunidade para que a graça de Deus opere! Esta
objeção está refletida em Romanos 6:1 e 2, onde Paulo diz: “Que diremos pois?
Permaneceremos no pecado, para que seja a graça mais abundante? De modo
nenhum”. Paulo demonstrou especial sensibilidade diante da objeção. Em Romanos
3:8 ele condena tal ponto de vista com a maior ênfase: “E por que não dizemos,
como alguns caluniosamente afirmam que o fazemos: „Pratiquemos males para que
venham bens?‟ A condenação destes é justa.”
Conforme demonstra Romanos 6, enquanto Paulo ensina a justificação dos
pecadores, não está ele ensinando a justificação da pecaminosidade. Longe disto,
ele mostra que o cristão está unido a Cristo e Sua morte e vida ressurreta (versos 3-
8). Portanto, assim como Cristo morreu para o pecado e vive para Deus (verso 10), o
mesmo ocorre com a pessoa unida a Cristo através do batismo.

Perdão Real Conduz a Liberdade

É difícil de ver como pode surgir uma objeção como aquela a que se refere
Romanos 6:1. Certamente a consideração da radical bondade de Deus para
conosco é o fundamento de uma nova ética, e não o seu descarte. Seria possível
que fôssemos verdadeiramente perdoados e então prosseguíssemos ferindo a Deus
e a nossos companheiros humanos? Em vez disso, não é verdade que o genuíno
perdão nos conduz à verdadeira liberdade, não apenas da penalidade do pecado,
como também de seu poder?
É bem claro e triste que, por detrás da objeção de que a graça produz
pecado, em vez de serviço, encontra-se alguém que, pela própria pergunta que faz -
“Pratiquemos males para que venham bens?” – demonstra que possui um

84
O Maior Discurso de Cristo, página 114.
82

relacionamento equivocado com o evangelho. A objeção diz respeito a alguém que


afirma sua aceitação da graça, mas cuja graça não é o poder definitivo de sua vida,
o poder que define e prove substância e forma a toda a sua vida. Tal posição coloca
a graça meramente como o perímetro da vida e faz do cristianismo uma mera ficção
legal, ou seja, um sistema em que o perdão do criminoso que prossegue em seus
crimes se torna o padrão habitual de vida. (Esta era a acusação contra a teologia de
Paulo).
Este ponto de vista não é meramente a redução do cristianismo à mensagem
do perdão somente, mas é a redução do perdão a um ato despido de elemento
criativo, despido do poder de renovação. O perdão, que é o significado essencial da
justificação (veja Romanos 4:6-8), chega a significar tão somente o livramento da
penalidade, e não a positiva reconciliação e o comprometimento com Deus e Seu
serviço - uma nova orientação da vida e um novo princípio para a mesma. Sob este
ponto de vista o evangelho prove um meio para ampliar quantitativamente a vida no
mundo eterno, mas não um meio para uma nova vida sob o aspecto qualitativo no
presente mundo.
Aquele que atribui tal tipo de posição a Paulo ou por si próprio a adota,
transpõe as categorias do pecado e da graça em sua experiência pessoal de uma tal
forma, como se o pecado não fosse fundamentalmente conquistado pela graça na
história da salvação, conforme asseguram os versos de Romanos 5:12 e seguintes.
De acordo com esta passagem, o pecado, que entrou no mundo através de Adão,
era tão forte que nem mesmo a revelação da sagrada lei de Deus no Sinai foi capaz
de detê-lo. O problema não apenas não se reduziu, como ainda agravou-se, e o
pecado multiplicou-se como transgressão (verso 20). Contudo, aquilo que a lei não
podia fazer, uma vez que se achava enfraquecida pela carne, Deus o fez através de
Jesus Cristo (Romanos 8:3). Através de Sua obediência, em contraste com a
desobediência de Adão, adquiriu Ele a vitória sobre o pecado.
O cristão é chamado a participar nesta histórico-salvífica vitória de Cristo em
Sua vida, morte e ressurreição, e não a criar outra vez em sua experiência as
condições que tornaram uma necessidade a histórica vitória de Cristo sobre o
pecado. Permitir que o pecado reine na experiência pessoal de modo a que a graça
possa vir, é, para Paulo, o mesmo que rejeitar aquilo que em Sua graça Deus já fez
historicamente através de Cristo.
A pessoa que exprime esta objeção não compreende a soberania da graça,
nem no sentido em que ela torna possível a nova moralidade, e nem no sentido de
torná-la necessária. A graça não é vista como o radical reclamo de Deus em relação
a toda a pessoa do crente. Algo bloqueia a passagem em termos deste
reconhecimento, pois seria de se esperar que aquele a quem muito foi perdoado,
muito deveria amar em troca (veja Lucas 7:42 e 47), e que tal pessoa procuraria
servir e agradar a quem antes ofendera.
Do ponto de vista paulino, torna-se claro que temos uma compreensão pobre
da graça se dela separamos o chamado ao discipulado. Tinha razão Dietrich
Bonhoeffer ao dizer que “o único homem que tem o direito de dizer que foi justificado
por graça somente, é aquele que tudo deixou para seguir a Cristo”. 85
Efetivamente, com respeito à realidade do discipulado, seria o dom ou seria o
reclamo de Cristo que diz: “Segue-Me” - tal como Ele fez com Mateus? Não seria
isto tanto o dom quanto o reclamo numa só apresentação? Porventura o chamado
de Cristo não é a própria graça - e poderia esta graça ser verdadeiramente recebida
se não nos dispusermos a seguir o Salvador? Similarmente, quando Paulo fala dos
85
The Cost of Discipleship, página 43.
83

“frutos do „Espírito” (Gálatas 5:22), está ele se referindo ao dom ou ao reclamo?


Certamente o fruto do Espírito deve ser dom e reclamo numa só apresentação!
Em resposta aqueles que acusam a graça de Deus ou dela abusam, Paulo
protesta em Romanos 6:2 e 15 com um ressonante “de modo algum”. Esta
expressão encontra seu pleno significado em Romanos 6, no fato de que, tal como
Paulo demonstrara nos capítulos prévios de Romanos que a justiça de Deus
representa graça e vida para o crente, agora mostra ele que a graça de Deus produz
na vida do crente a justiça e uma nova espécie de vida. Se o pecado humano requer
a justiça divina, também esta divina justiça requer a obediência humana a nosso
Senhor, com o qual participamos na morte e na ressurreição. Em contraste com a
objeção “permaneceremos no pecado” (veja o verso 1), Paulo diz: “Não reine,
portanto, o pecado em vosso corpo mortal (verso 12).
Paulo mostra que e precisamente a pessoa justificada pela graça, sem as
obras, que morre para o pecado a fim de viver para Deus. De acordo com Romanos
6:2, “como viveremos ainda no pecado, nós os que para ele morremos?” Esta morte
para o pecado não é um segundo estágio, após a justificação, antes representa uma
realidade coerente com a própria justificação.
O que Paulo quer dizer com o “morrer para o pecado”? Em poucas palavras,
refere-se ele a mua mudança de senhores. Antes era o pecado quem dominava,
agora é Cristo quem o faz. Possuir um novo senhor significa a um só tempo livrar-se
do antigo senhor (isto é o dom) e alistar-se para prosseguir servindo o novo senhor
(isto são os reclamos).
Longe de representar um estado de ausência de pecado, esta mudança
significa, segundo o argumento de Paulo, que sob o novo domínio de Cristo o cristão
desenvolve guerra contra o pecado (versos 12 e 13), o antigo senhor de sua vida.
Pelo próprio fato de se haverem rompido as cadeias do pecado é que ele se
encontra em liberdade para lutar, e uma vez que o pecado prossegue representando
um desafio, a batalha se faz necessária.

O Cristo Ressurreto Governa


O desafio de Romanos 6:12, quanto a não deixar o pecado reinar, significa
que a liberdade adquirida pelo dom de Cristo é a liberdade de ser usado na causa de
Cristo. Obedecer a Cristo como Senhor faz parte de pertencer a Cristo como
Salvador. O Cristo ressurreto governa a partir da cruz sobre todos os que foram
batizados em Sua morte.
Numa palavra, de acordo com Romanos 6, a morte para o pecado significa a
liberdade da tirania do pecado, de modo que a pessoa passa a resistir às
solicitações do pecado. É a libertação do domínio do pecado de modo a poder lutar
contra o pecado como um inimigo.
Com relação ao julgamento, a relevância de tudo quanto foi discutido nesta
seção pode ser resumida conforme segue. Ao procurar por obras como fruto da fé, o
juízo testifica da realidade da salvação. O julgamento segundo as obras em relação
com a justificação pela fé, dá expressão à inteireza e unidade da salvação percebida
na relação entre Cristo como Salvador e Cristo como Senhor, entre o dom de Deus e
os Seus reclamos, entre a libertação diante da autoridade do pecado e a guerra
contra os pecaminosos apelos.
Quando a pessoa percebe a natureza da conexão existente entre estas
relações, pode-se dizer do julgamento em sua relação com a justificação, que sua
posição não é de antítese ou contradição, antes da complementaridade e
84

cumprimento. Rejeitar o julgamento segundo as obras, portanto, seria o mesmo que


rejeitar o conjunto inteiro da intenção redentiva de Deus. O Cristo da cruz jamais
deixa uma pessoa onde a encontrou. Este Cristo crucificado sempre diz àquele a
quem justifica: “Toma a tua cruz e segue-Me”. O julgamento verifica a realidade
deste fato e dela testifica.

6.4. JUÍZO PRÉ-ADVENTO

Os adventistas do sétimo dia crêem que a Bíblia ensina quanto a um processo


de julgamento que ocorre antes do segundo advento de Cristo. Tradicionalmente
este julgamento tem sido identificado como juízo investigativo. Qual a importância
deste julgamento anterior ao advento? Porventura esta idéia se encontra em
contradição com o ensino escriturístico da justificação pela fé e julgamento segundo
as obras? Porventura remove ele a certeza da salvação que é trazida no bojo da
justificação pela fé? Os críticos do adventismo dizem que SIM. Por vezes
apresentações inadequadas do juízo investigativo podem haver sugerido que este
“sim” se justifica.
É minha tese, contudo, que o juízo investigativo, corretamente compreendido,
acha-se em harmonia com a justificação pela fé e o julgamento segundo as obras.
Ele próprio abrange os ingredientes destes dois ensinamentos fundamentais.
A correta compreensão do juízo investigativo não procurará percebê-lo como
um evento independente, algo separado da história da salvação, pois isto o
transformaria em outro caminho para a salvação. Isto representaria um erro muito
grave. Em vez disso, o juízo investigativo pode ser entendido apropriadamente
apenas quando passa a ser visto em relação com o julgamento final, por um lado e,
por outro, com o julgamento do pecado empreendido por Cristo na cruz, o que levou
a justificação do pecador mediante a fé.
Alguns têm pretendido dizer que a apresentação do juízo investigativo feita
por Ellen White em O GRANDE CONFLITO (capítulo 28), reflete mau uso da Bíblia,
pois ela aplica textos relacionados com o juízo final ao juízo investigativo. Outra
interpretação melhor é possível. Ellen White utiliza textos concernentes ao
julgamento final porque em seu pensamento e no pensamento da Igreja Adventista
do Sétimo Dia, o juízo investigativo constitui parte integral do julgamento final.
Duas considerações importantes oferecem apoio a este ponto de vista. Em
primeiro lugar, os pioneiros adventistas do sétimo dia, incluindo Ellen White,
anteviam a segunda vinda de Cristo como muito próxima. A finalização do juízo
investigativo e o aparecimento do Salvador com Suas recompensas vislumbravam-
se como estando no horizonte. Em tal cenário era impossível separar o juízo
investigativo do juízo final, com sua divina recompensa, a qual ocorreria por ocasião
da vinda de Cristo. De fato, o período do juízo investigativo representava um tempo
de preparo especial para o encontro com Cristo e em paz ouvir e presenciar a
execução de Sua justa decisão. Criam eles na mais íntima continuidade entre a
abertura dos livros e a proferição da decisão do juízo pré-advento, e a execução da
decisão, para o bem ou para o mal, por ocasião do julgamento no advento. Tudo
fazia parte de uma sinfonia do julgamento, onde o final era esperado para muito em
breve.
Em segundo lugar, o juízo investigativo e o juízo final lidam com uma questão
básica comum a ambos: É a vida do crente uma vida de contínua fé,
arrependimento, confissão e obediente serviço em amor? Estes termos sumariam as
muitas expressões utilizadas por Ellen White em seu capítulo de O GRANDE
85

CONFLITO quanto ao juízo investigativo a fim de descrever o que Deus espera da


vida daqueles que pretendem haver sido justificados. Em essência, são as mesmas
coisas que as Escrituras apresentam como sendo a expectativa do Juiz em relação a
Seu povo por ocasião do julgamento final. Estes dois julgamentos são em realidade
apenas um, só que ele possui duas fases.
Existe, porém, outro elemento considerado no julgamento investigativo - um
elemento primário - e ele corresponde à realidade da manifestação da justiça de
Deus na cruz (Romanos 3: 21, 24-25) e de Sua justificação do pecador, pela fé
(Romanos 3:22, 25 e 26).
De acordo com o pensamento adventista, quando o pecador arrependido vem
a Cristo e confessa sua fé no sacrifício expiatório do Salvador, o perdão é registrado
ao lado de seu nome nos livros celestiais86. Quando os livros são abertos no juízo,
este registro do perdão pode ser visto. De modo muito claro, o juízo investigativo não
apenas trata dos pecados da humanidade, como também do perdão existente em
Cristo.
Conseqüentemente, quando todo o conjunto é considerado, e justificação pela
fé e futuro julgamento de acordo com as obras são vistos como o conteúdo do juízo
investigativo, pode-se afirmar que duas são as questões que este julgamento
procura responder. A primeira: procurou o pecador o perdão de Cristo para seus
pecados, e recebeu-o? A segunda: trouxe este perdão bons frutos à vida desta
pessoa?
A fim de expandir o combinado conteúdo e efeito destas duas questões tão
fundamentalmente pertinentes ao juízo investigativo, as seguintes perguntas podem
ser colocadas sob a forma de abordagem direta, detalhando os elementos deste
julgamento em relação aos crentes: Tem Cristo sido tanto o seu Salvador quanto o
seu Senhor? O que tem você feito com a cruz de Cristo e a graça ali manifestada?
Tem você afirmado o valor da cruz para toda a sua vida, ou apenas para parte da
mesma? Quando o crucificado Salvador veio a você com Seu dom e Seus reclamos,
submeteu-se você a Ele e seguiu-O, tomando a sua cruz, ou decidiu você escolher
seu próprio caminho - o mesmo que trilhava antes de encontrá-lo? Deixou você que
seus pensamentos e ações fossem levados cativos a Cristo? Ou será que você -
queira Deus que não! - se separou de Sua graça ao negar através de sua vida aquilo
que sempre professou com os lábios? Porventura a libertação da condenação diante
da lei de Deus, vivida por você, levou-o a uma renovada fidelidade à lei, pelo poder
da graça de Cristo? Porventura o amor e o perdão de Cristo se tornaram a base para
que você também amasse e perdoasse os outros?
Tão somente quando a resposta a tais questões houver sido um fundamental
“sim”, é que a final revelação do perdão e da misericórdia de Deus poderão ser
estendidos aos crentes, de acordo com as palavras de Cristo: “Perdoa as nossas
dividas no julgamento futuro assim como nós temos perdoado os nossos devedores
neste mundo” (Mateus 6:12).
Se tal abordagem de Deus ao homem durante o julgamento investigativo
remove a certeza da salvação, conforme alguns têm alegado, então, o mesmo deve
ser dito em relação ao julgamento final. É difícil imaginar como poderia alguém
sustentar o ponto de vista bíblico quanto ao julgamento final e depois levantar
objeções diante das mesmas questões surgindo em relação com o juízo
investigativo. É difícil que alguém possa sustentar que os reclamos de Deus não são
contrários à certeza da salvação do crente no julgamento final, mas que são
contrários à certeza de salvação do crente durante o juízo investigativo. A única
86
O Grande Conflito, página 487.
86

forma de se poder ver assim as coisas, seria ao vislumbrar o julgamento final em


termos da teologia do “uma vez salvo, salvo para sempre”. Tal teologia com a
automática certeza de salvação que ela pretende trazer em seu bojo, obviamente
teria de ser contrária ao juízo investigativo e à garantia que este consigo traz - a
garantia de contínuo apego a Cristo.
Todavia, as passagens bíblicas quanto ao julgamento, tais como as que foram
apresentadas neste artigo, tornam abundantemente evidente que a teologia do “uma
vez salvo, salvo para sempre” é indefensável. Sendo as coisas assim, a questão da
verdadeira natureza da garantia da salvação surge com vigor para todo aquele que
confessa que os crentes devem comparecer “perante o tribunal de Cristo, para que
cada um receba segundo o bem ou o mal que tiver feito por meio do corpo” (II
Coríntios 5:10).
Se dissermos que o chamado à perfeição, apresentado pelo juízo
investigativo retira a certeza ou garantia dos crentes, teremos de responder que as
Escrituras apresentam o mesmo chamado. O texto de I Tessalonicenses 3:13, ao
lado de 5:23, é suficiente para ilustrar o ponto. Mas os crentes podem regozijar-se
porque, não importa quão veemente seja o apelo divino, “fiel é o que vos chama, O
qual também o fará” (I Tessalonicenses 5:24). Podem também os crentes render
“graças ao Senhor, porque Ele é bom; porque a Sua misericórdia dura para sempre”
(Salmo 106:1).
A relação entre o juízo investigativo, a justificação, e o julgamento final, pode
ser representada em sua totalidade da seguinte forma: Por um lado, o juízo
investigativo ratifica e confirma a justificação efetuada por Cristo na cruz e recebida
pelo pecador através da fé. Por outro lado, o juízo investigativo inaugura o
julgamento final, que se consumará quando Cristo retornar pela segunda vez, e
novamente após o milênio. A fase inicial do julgamento final expõe a verdadeira
relação dos crentes com Cristo, e sua fase de encerramento recompensa os crentes
de acordo com a verdadeira natureza de seu serviço para Cristo.

Propósito do Juízo Investigativo


Quando os adventistas do sétimo dia falam de um juízo investigativo, não
deveria isto ser entendido como significando que Deus está à procura de
informações que Ele não possui. Mais que tudo, é Ele o Autor dos livros abertos
quando do julgamento. Os livros não são abertos para que novos conhecimentos
sejam adquiridos por Deus, e sim porque conhecimentos anteriores que Deus
possui, devem agora ser expostos. Assim, o propósito do juízo investigativo por
parte de Deus não é descobrir a realidade e sim revelá-la; não é encontrar a
verdade, e sim demonstrá-la.
Como resultado deste processo de exposição e abertura, os redimidos
clamam:

Grandes e admiráveis são as Tuas obras, Senhor Deus, Todo poderoso!


Justos e verdadeiros são os Teus caminhos, ó Rei das nações!
Quem não temerá e não glorificará o Teu nome, Ó Senhor?
Pois só Tu és santo.
Por isso todas as nações virão e adorarão diante de Ti,
Porque os Teus atos de justiça se fizeram manifestos.
(Apocalipse 15:3 e 4).

Foi assim que Paulo exclamou: “Ó profundidade da riqueza, tanto da


87

sabedoria, como do conhecimento de Deus! Quão insondáveis são os seus juízos e


quão inescrutáveis os seus caminhos! Quem, pois, conheceu a mente do Senhor?
Ou quem foi o Seu conselheiro? Ou quem primeiro Lhe deu a Ele para que Lhe
venha a ser restituído? Porque dEle e por meio dEle e para Ele são todas as cousas.
A Ele, pois, a glória eternamente. Amém” (Romanos 11: 33 a 36).

6.5. JULGAMENTO NOS ESCRITOS DE JOÃO

Será útil que nos volvamos agora para certos aspectos dos ensinos de João
quanto ao julgamento. Por vezes estes ensinos têm sido utilizados a fim de tornar de
pouco ou nenhum efeito o ensinamento geral do NT quanto ao julgamento vindouro
e às questões envolvidas neste julgamento. Assim, o que aqui será dito é relevante
tanto para a fase pré-advento quanto para a fase do advento, do julgamento final.
De acordo com João, o fato é que a cruz representa o julgamento de Deus
sobre o pecado (João 12:31-33; 16:11) e que o julgamento do crente, tanto quanto
do descrente, acha-se no passado. Isto depende da aceitação ou rejeição da luz
trazida por Cristo (João 3:18-21) - e estas verdades deveriam ser amplamente
reconhecidas. Elas contribuem significativamente para a compreensão geral do NT
quanto ao julgamento.
Entretanto, estas verdades joaninas não devem ser levadas a ignorar aquilo
que Paulo e o restante do NT ensinam claramente, ou seja, que ainda está por vir
um dia de julgamento para o mundo, e que até mesmo os crentes serão chamados a
prestar contas diante do Rei. Em outros termos, a realidade pretérita do julgamento
em João não deveria ser utilizada a fim de negar a realidade futura do julgamento,
segundo apresentada em outras partes das Escrituras.
Contudo, falar desta forma é simplificar muito as coisas, pois não se trata de o
julgamento em João ser apenas passado, e apenas futuro nos demais lugares.
Paulo, por exemplo, ensina um julgamento passado tanto quanto um julgamento
futuro. Trata-se de um ensinamento explicito em Romanos 8:3, onde ele diz que
Deus enviou Seu Filho e “condenou... na carne o pecado”. É também esta a
implicação óbvia da justificação pela fé. Justificação pela fé significa que o veredito
do julgamento futuro deslocou-se para o presente, iniciando assim a experiência
cristã (mas sem negar o futuro julgamento de acordo com as obras, conforme, vimos
em ponto anterior de nosso estudo).
João, por outro lado, é capaz de falar de um julgamento futuro, tanto quanto
do presente. De acordo com João 12:48, temos que: “Quem Me rejeita e não recebe
as Minhas palavras, tem quem o julgue; a própria palavra que tenho proferido, essa
o julgará no último dia”. João 5:29 fala daqueles que ressuscitarão “para à
ressurreição do juízo.” Em I João 4:17 lemos a respeito de estar o cristão confiante
no juízo. Assim, tanto Paulo quanto João tem a sua teologia “já ainda não”. Mas nos
ensinamentos paulinos o “ainda não”, do julgamento envolve os crentes, e o
resultado pode ser negativo se Cristo não houver sido honrado através do corpo. O
que ocorre com João? Porventura entram os crentes num julgamento futuro, e,
especialmente, existe a possibilidade de um resultado negativo?
Alguns têm respondido esta pergunta com um enfático NÃO, baseando suas
respostas em João 5:24, onde Jesus diz: “Em verdade, em verdade, vos digo: Quem
ouve a Minha palavra e crê nAquele que Me enviou, tem a vida eterna, não entra em
juízo, mas passou da morte para a vida”. Ao passo que esse texto contém a
maravilhosa notícia de um movimento já realizado, da morte para a vida eterna, por
parte daqueles que ouvem e crêem na palavra de Jesus, várias considerações
88

mostram que seria errado utilizar esse texto a fim de ensinar que João pensava que
os crentes não tinham relação com um julgamento futuro.

1. O texto não necessariamente diz que os crentes não entram em juízo


em nenhum sentido. O substantivo grego para julgamento algumas
vezes apresenta o sentido de “condenação” em João (João 3:19; 5:29;
veja também o uso idêntico do verbo grego em 3:17 e 18; cf. Atos
13:27; Romanos 14:22; e II Tessalonicenses 2:12).

Uma vez que “juízo” é o oposto de “vida eterna” em João 5:24, o texto deve
estar dizendo que o crente não entrará em juízo de condenação, com o significado
de julgamento cujo tema é a condenação. De que modo pode o crente evitar um tal
julgamento? Isso traz à baila o segundo ponto.

2. O que torna possível ao crente escapar do julgamento de condenação


e entrar na posse da vida eterna, é o fato de ele ouvir e crer na palavra
de Jesus. As palavras gregas para ouvir e crer acham-se no tempo
presente, portanto devem referir-se a uma ação contínua, e não
meramente a um ato momentâneo de ouvir ou crer.

É por ouvir e crer continuamente que a pessoa continuamente desfruta da


vida eterna e evita o juízo de condenação que sobrevém àqueles que praticam o mal
(João 5:29). Negar uma das realidades (ouvir e crer) implica necessariamente na
negação da outra (ter a vida eterna e evitar a condenação). Além do mais, não está
o texto de João 3:18 ensinando que aquele que crê em Cristo não é condenado, mas
que aquele que não crê já está sob condenação? A presença do “já” na segunda
porção do verso não faz com que o sentido do texto se restrinja ao passado. Se a
pessoa deixar de crer - e João jamais nega esta possibilidade - o “já” torna-se
operativo. Torna-se aplicável o texto de João 3:36 - “Quem crê no Filho tem a vida
eterna; o que, todavia, se mantém rebelde contra o Filho, não verá a vida.” A menos
que João esteja sob a mentalidade do “uma vez salvo, salvo para sempre”, a
interrupção da fé deve representar a cessação da vida. Vemos assim que a vida
eterna é contingente diante da crena contínua.
Quando João 5:24 usa o tempo presente do grego a fim de retratar a
transferência da morte para a vida, isto não significa que o texto está falando acerca
de uma transferência irrevogável, que nem mesmo a descrença é capaz de alterar.
O crente, como resultado da transferência, acha-se num estado de vida (o signi-
ficado do tempo presente no grego) tão somente enquanto se mantiver ouvindo e
crendo. O texto efetivamente fala de permanência, mas não de uma permanência
separada da permanência na fé.
De modo semelhante, o fato de que em João 10:28 e 29 as ovelhas de Cristo
jamais perecerão e ninguém as arrebatará das mãos de Cristo e do Pai, é
contingente diante da postura destas ovelhas em ouvir a voz do Bom Pastor e de
segui-lO. Coisa alguma sugere que este ouvir e seguir deva ocorrer por necessidade
(preparando o caminho para o conceito de necessidade ou permanência automática
na vida eterna), e sim por simples escolha.

Devemos Permanecer em Cristo


Outros textos de João apóiam fortemente o fato de que os crentes podem ser
89

julgados adversamente. João 15 insiste em que os crentes permaneçam em Cristo e


produzam fruto. O ramo que não produzir frutos será cortado pelo Pai (verso 2). Ou,
em forma ainda mais dramática, “se alguém não permanecer em Mim, será lançado
fora à semelhança do ramo, e secará; e o apanham, lançam no fogo, e o queimam”
(verso 6).
Em I João encontramos vários testes para a presença da vida:

a) Crer em Cristo e confessá-lO (I João 2:22; 4:2 e 3; 4:15; 5:9-13).


b) Permanecer em Cristo (I João 2:24 e 25, 28).
c) Guardar os mandamentos de Deus (I João 2:3-5, 17; 3:21-24; 4:21; 5:2 e 3).
d) Andar como Cristo andou (I João 2:7).
e) Fazer o que é correto e evitar o pecado (I João 2:29; 3:6-7, 10).
f) Amar uns aos outros (I João 2:7-11; 3:11-17; 4:7, 8, li, 16,17, 20, 21; 5:2 e 3).
g) Não amar o mundo (I João 2:15 e 16).

Estes são testes da vida porque, de acordo com João, por sua presença ou
ausência se demonstra se a pessoa possui ou não a vida. Observe, por exemplo, I
João 3:14 (que pode ser comparado com João 5:24): “Nós sabemos que já
passamos da morte para a vida, porque amamos os irmãos; aquele que não ama
permanece na morte. “De acordo com I João 4 :16 e 17, “aquele que permanece no
amor permanece em Deus, e Deus nele”, e assim “no dia do juízo mantenhamos
confiança.” A implicação parece óbvia: aquele que não permanece no amor não
pode ter confiança no dia do juízo.
A luz dos padrões mais amplos do pensamento joanino, assim como a partir
dos pormenores exegéticos mais imediatos de João 5:24, não podemos concluir que
para João não existe relação do crente com o julgamento futuro. Tal conclusão é
fortalecida ao se inquirir de João 5:28 e 29, uma passagem que se relaciona
intimamente com João 5:24. Aqui, seriam aqueles que fazem o bem, e assim
ressuscitam para a vida eterna, os mesmos que apenas creram - e neste caso “fazer
o bem” seria equivalente a “crer” em João 5:24? Ou seriam eles os que teriam
praticado o bem como conseqüência de haverem crido, sendo aqui a inferência de
que se a fé não produzir boas obras, resta apenas à ressurreição do juízo
(condenação)? Seguramente a segunda opção é a melhor. É mais que provável que
o fazer o bem a que se refere João 5:29, diga respeito, pelo menos em parte, a amar
outras pessoas, como em I João 3:14, um texto que, à semelhança de João 5:24,
fala de passar da morte para a vida.

6.6. CONCLUSÕES

Foram já apresentadas as principais considerações deste estudo.


Necessitamos ser claros: justificação e garantia da salvação não podem ser
alcançadas pelas obras humanas ou pela fé mais as obras humanas. Justificação e
certeza tão somente podem provir da toda suficiente obra de Jesus Cristo como
Salvador.
Mas Cristo nosso Salvador é também nosso Senhor. Somente ao contemplá-
lO e ao ver a inseparável conexão entre Sua obra salvadora e Seu domínio sobre
nos, é que podemos explanar corretamente a relação entre justificação e julgamento,
fé e obras. Assim como Cristo não pode ser dividido, assim estas realidades que se
relacionam com Ele não podem ser separadas umas das outras. Por intermédio do
poder do Espírito a fé sempre conduz a produção de frutos nas vidas dos que foram
90

justificados.
Em Seu ofício dual como Salvador e Senhor, Cristo julgou o pecado na cruz,
justifica o pecador pela fé e julga os justificados através de suas obras. A cruz é o
meio pelo qual a justificação é efetivada; a fé e o meio pelo qual a justificação é
aceita; e as boas obras são o meio pelo qual se manifesta a justificação. Obras de
justiça testificam da realidade e vitalidade da justificação. Sua ausência indica um
arruinado relacionamento com Cristo.
Como Salvador, Cristo obedeceu a Deus em nosso favor; como Senhor, insta
em que obedeçamos a Deus por amor a Ele. Como Salvador, Cristo ofereceu Sua
vida por nos; como Senhor, pede-nos que vivamos para Ele.
Quanto mais profundamente a pessoa compreender as riquezas da graça de
Cristo, tanto mais atendera o chamado de Cristo à obediência. O crente atende ao
chamado, porém, não como uma feroz obrigação, e sim como algo que o coração
alegremente aprecia. No contexto do infinito amor de Cristo, cessa a obrigação e o
pesado dever, tornando-se fácil conduzir o jugo de Cristo. O apóstolo Paulo captou o
belo equilíbrio presente na salvação oferecida por Deus ao dizer:
“Porque sou o menor dos apóstolos, que mesmo não sou digno de ser
chamado apóstolo, pois persegui a igreja de Deus. Mas, pela graça de Deus, sou o
que sou; e a Sua graça, que me foi concedida, não se tornou vã, antes trabalhei
muito mais do que todos eles; todavia não eu, mas a graça de Deus comigo” (I
Coríntios 15:9 e 10).
Como resultado de sua aceitação do dom da justificadora graça de Deus, as
palavras de Paulo podem aplicar-se a você: “E também faço esta oração: que o
vosso amor aumente mais e mais em pleno conhecimento e toda a percepção, para
aprovardes as cousas excelentes e serdes sinceros e inculpáveis para o dia de
Cristo, cheios do fruto de justiça, o qual é mediante Jesus Cristo, para a glória e
louvor de Deus” (Filipenses 1:9-11).

Traduzido por: Hélio L. Grellmann


Outubro de 1990
91

7. TEOLOGIA DO SANTUÁRIO
Alwyn P. Salom
Fonte: DRCS, vol. 4, pp. 199-218

Sinopse editorial. O livro de Hebreus, ao lado de Daniel e Apocalipse,


desempenhou importante papel na formulação do fundamento escriturístico do povo
adventista do sétimo dia. Seu ensino primário quanto ao ministério sacerdotal de
Jesus Cristo no santuário celestial, infundiu nova esperança e ação em nossos
pioneiros, até mesmo solucionando a embaraçosa questão: “Por que Jesus não
retornou em 1844, no encerramento da profecia das 2300 tardes e manhãs de
Daniel?” (Veja O Grande Conflito, páginas 415 a 417).
Ao longo dos anos os adventistas têm dedicado extensos períodos de estudo
intensivo ao livro de Hebreus, através das lições da Escola Sabatina. Três trimestres
do período 1889-1890 foram reservados ao exame de Hebreus, utilizando materiais
preparados por J. H. Waggoner. M. L. Andreasen escreveu outra seqüência de três
trimestres de lições para o estudo de Hebreus por parte da igreja em 1948. Em 1976
a igreja mundial estudou a Epístola durante um trimestre, com lições escritas por
Walter Specht. Mais recentemente, em 1986, a igreja mundial uma vez mais revisou
os ensinamentos desta magnífica Epístola através de lições preparadas por W. G.
Johnsson.
Nestes vários estudos de Hebreus nem sempre o enfoque tem sido o mesmo.
O assunto que dominou os três trimestres das lições de Waggoner em 1889-1890
relacionou-se com os concertos. Os escritos mais recentes refletem a resposta à
acusação de que Hebreus nega a compreensão adventista de que o ministério
sacerdotal de Cristo no santuário celestial consiste de duas fases seqüenciais
(intercessão e, adicionalmente, a obra de julgamento a partir de 1844), conforme
tipificadas pelas ministrações que ocorriam em conexão com os dois
compartimentos do santuário israelita. O presente capítulo lida com esta última
preocupação.
Um método correto de interpretação da Bíblia é essencial se quisermos
compreender corretamente o ensino de Hebreus para os nossos dias. Em primeiro
lugar significa isto que devemos descobrir (tanto quanto possível) o modo como os
crentes do primeiro século entenderam a mensagem. Em segundo lugar, significa
que qualquer aplicação válida para o cristão do vigésimo século, deve representar
um genuíno fruto da mensagem original, com ela se harmonizando. Escritos
inspirados possuem mais profunda importância para as gerações subseqüentes,
mas esta importância não pode ser destacada do intento original destes escritos.
A epístola aos Hebreus parece haver sido dirigida a judeus cristãos que se
viam confrontados com a crescente brecha entre o judaísmo e o cristianismo, com
perseguição contínua, com necessidades econômicas e com aquilo que, em sua
percepção, representava um atraso no retorno do Senhor. A tentação para
abandonar a fé cristã e retornar ao judaísmo e a sua religião do Templo, era
bastante forte.
Em resposta o autor de Hebreus exerce preocupação pastoral no sentido de
firmar a enfraquecida fé de seus irmãos no Cristo redivivo que agora ministrava no
santuário. Dois temas principais são enfatizados: (1) A posição central do Calvário
para a salvação. O “sangue melhor” de Cristo através do sacrifício “uma vez por
todas” e, por si só, capaz de eliminar os pecados dos crentes. (2) Acesso direto e
franco a Deus através do ministério sumo sacerdotal de Cristo. Estas grandiosas
92

verdades são elaboradas mediante o contraste das mesmas com os sacrifícios


repetitivos e ineficazes e com a limitada abordagem de Deus, encontradas no
sistema ritual israelita.
Hebreus descerra a realidade do santuário celestial e do ministério de Cristo
em presença de Deus, verdades válidas para os cristãos da atualidade, tanto quanto
o eram para os do primeiro século. O autor parece usar as imagens do Dia da
Expiação para trazer à cena o fato de que a morte e sacerdócio de Cristo abriram
“um novo e vivo caminho” para a presença de Deus; todas as barreiras entre o Céu
e o crente foram removidas.
Entretanto, o rito do Dia da Expiação não constitui um tema de primeira
grandeza na Epístola. Tanto o ritual diário quanto o anual são citados ao lado de
outros elementos do sistema. Não existe a tentativa de desenvolver uma exposição
de um único aspecto do serviço. Em vez disso, o evidente objetivo do autor é
demonstrar a seus ouvintes a total inadequação do sistema típico. Mesmo em suas
mais elevadas e mais solenes funções (como as do Dia da Expiação), o sistema
típico é simplesmente incapaz de resolver o problema do pecado.
O único elemento de tempo citado na Epístola enfatiza a natureza temporária
do santuário israelita. Foi ele designado a funcionar somente até a vinda de Cristo e
os eventos de Sua morte sacrificial e ingresso em Seu ministério sacerdotal como
rei-sacerdote no santuário celestial. E sobre Cristo que a fé dos leitores deve
repousar à medida que eles se empenham na corrida desta vida.
Sendo este o enfoque da Epístola, segue-se naturalmente que, embora
Hebreus proveja valiosos vislumbres à doutrina do santuário, não fala o livro
diretamente do assunto do ministério sacerdotal em duas fases, de Cristo, ou do
tempo profético do início do julgamento final. Contudo, isto não invalida estas
verdades, encontradas em outras porções das Escrituras. O livro de Hebreus prove
outra seção na “laranja” da verdade bíblica, mas não é a laranja como um todo.
Outras verdades possuem seus posicionamentos seccionais, de modo a se obter um
todo harmonioso. Hebreus ergue a fé dos cristãos em direção ao Céu, focalizando
nosso vivo Sumo Sacerdote - uma verdade que necessita ser ouvida mais e mais
vezes.

7.1. ESBOÇO DO CAPÍTULO

I. Introdução
II. Interpretação Atual de Hebreus
III. O Santuário Celestial em Hebreus
IV. O Ministério Celestial de Cristo em Hebreus
V. O Tema da “Destra de Deus”
VI. O Tema do “Livre Acesso”
VII. Alusões ao “Dia da Expiação”
VIII. Ministério em Duas Fases e Eventos no Tempo
IX. Conclusões

7.2. INTRODUÇÃO

Representa um truísmo afirmar que o livro de Hebreus é de grande significado


para a doutrina adventista do sétimo dia do “santuário”. Este livro debate o ministério
celestial de Jesus Cristo, nosso grande sumo sacerdote, com maior freqüência e
mais explicitamente que qualquer outro livro do NT. Fora de Hebreus, aliás, o NT
93

oferece pouca informação direta a respeito daquilo que Cristo tem estado a realizar
desde Sua ascensão.
Portanto, é de considerável importância que Hebreus seja examinado em
detalhe a fim de se descobrir o que é dito em relação a preocupações teológicas
específicas dos adventistas.87
Apresenta ele declarações explícitas relacionadas com a doutrina adventista
do santuário? O que se pode ver legitimamente como implícito em Hebreus, e que
seja relevante para o ensina mento do santuário? E o livro silente diante de pontos
cruciais? Ou chega ele a negar alguma área de ensino adventista? Quais os
refinamentos ocorridos no pensamento adventista ortodoxo quanto a estes assuntos
ao longo dos anos? Estas são questões básicas, que o presente estudo aborda.

7.3. INTERPRETAÇÃO ATUAL DE HEBREUS

O método correto de se chegar a uma interpretação válida das Escrituras


deveria ser aqui compreendido antes de se considerar o que o livro de Hebreus
poderá estar dizendo de relevante para a teologia adventista do século vinte.

7.3.1. Significado Para os Primeiros Leitores e Aplicações


Posteriores

Um princípio primário de interpretação exige que o intérprete trabalhe a partir


da base do significado e intento originais do escritor bíblico. Por exemplo, temos que
perguntar: Qual o cenário histórico no qual foi escrito o documento? Qual a ocasião
deste escrito, e qual o propósito que o autor procurava preencher? Qual o significado
da mensagem para os leitores originais?88 Somente depois de haver sido reunida
esta informação básica (tanto quanto as evidências permitam) é que se torna
possível ao intérprete discernir acuradamente “o mais pleno sentido e o mais
profundo significado”89 do documento bíblico.
Embora o significado original da mensagem seja de importância básica,
também é verdade que Deus pode ter tido significados mais profundos em mente,
com vista às gerações posteriores.

Embora Deus tenha falado as gerações contemporâneas aos escritores dos


livros bíblicos, viu Ele também a necessidade de os leitores destes livros
encontrarem no futuro profundezas de significado e de relevância que
ultrapassariam as circunstâncias locais e limitadas nas quais e para as
quais fora produzido o original.90

Qualquer destas aplicações posteriores deve provir de, e estar em harmonia


com o significado do texto para os primeiros leitores. Diz Gerhard Hasel:

87
A este respeito, veja especialmente os dois estudos de William G. Johnsson, “The Heavenly
Sanctuary - Figurative or Real?” e “Day of Atonement Allusions”. Em virtude da natureza deste
estudo, a documentação se restringiu, tanto quanto possível, apenas a autores adventistas.
88
Veja Donald Guthrie, “Questions on Introduction”, New Testament Interpretation: Essays on
Principles and Methods, edição de I. Marshall (Exeter, 1977, página 114.
89
Gerhard F. Hasel, “Principles of Biblical Interpretation”, A Symposium on Biblical Hermeneutics,
edição de Gordon M. Hyde (Washington, D. C., 1974), página 185.
90
Ibidem, p. 168. Veja também O Grande Conflito, p. 348; Testimonies for the Church, 6:19-20;
Profetas e Reis, p. 731; Educação, p. 183. Dever-se-ia observar que o presente estudo, não anota as
declarações de Ellen White XXXativas a Hebreus. Tais declarações merecem um estudo separado.
94

É importante enfatizar que o significado para a fé dos homens de hoje não


pode ser algo completamente diferente do significado pretendido pelos
escritores bíblicos para os seus contemporâneos. Qualquer tentativa de se
compreender os autores bíblicos, e que falhe em reconhecer a
homogeneidade básica entre o significado do intérprete “agora” e o
significado da mensagem “então”, fracassa em trazer aquelas inspiradas
91
mensagens aos homens de hoje.

Este princípio é de grande importância. Qualquer compreensão para os


nossos dias, derivada do texto bíblico, não deve ser alheia ao significado original e
ao intento da passagem. Em vez disso, deve ela estar em plena simpatia com o
intento do autor. Hasel enfatiza corretamente este princípio de interpretação:

A mais ampla importância e mais profundo significado das Escrituras é o


significado pretendido ou implícito nas palavras da Bíblia, quer o autor
inspirado tenha consciência deste significado ou não. A mais ampla
importância e mais profundo significado não é uma leitura do sentido
literal e significado de idéias alheias ou estranhas a ele. O mais pleno
sentido ou maior importância e mais profundo significado das Escrituras não
é algo alheio ao intento das palavras bíblicas. Ao contrário, é uma
característica da importância mais ampla e do mais profundo significado das
Escrituras mostrar-se homogênea com o significado e sentido literal; ou
seja, representa um desenvolvimento e produto daquilo que o autor
inspirado original colocou em palavras.92

Este princípio, com as limitações que contém, deve ser aplicado às


passagens de Hebreus que possam ter relação com as preocupações adventistas.
Em outras palavras ao se buscar alguma interpretação para estas passagens, é
necessário assegurar-se que a aplicação seja homogênea com o intento original do
autor. A compreensão neste vigésimo século de uma dada passagem deve ser
desenvolvida a partir - e representar um produto - da mensagem original do escritor
bíblico.
Tendo em vista determinar o significado de Hebreus para seus leitores (ou
ouvintes?) originais, e assim estabelecer uma base a partir da qual abordar o texto e
obter uma interpretação válida para os nossos dias é necessário prestar atenção aos
contextos externo e interno destes escritos.

7.3.2. Contexto Externo

O contexto externo ou histórico preocupa-se com as pessoas abordadas, as


circunstâncias que demandaram o escrito, o autor, e, em menor extensão, o lugar e
a ocasião do texto. Dando margem a diferentes interpretações das evidências, e
sem discutir estes argumentos, os seguintes comentários podem ser tomados como
um breve resumo do contexto histórico de Hebreus.93 Possivelmente Hebreus tenha
91
Hasel, p. 183. Veja também as páginas 163, 170, 182; e Hasel, Understanding the Living Word of
God, Adventist Library of Christian Thought I (Mountain View, CA, 1980): 78-79; I. H. Marshall,
“Introduction”, em New Testament Interpretation, p.15.
92
Hasel, “Principies”, p. 185 (ênfase suprida).
93
Quanto a avaliações conservadoras de evidências para o contexto histórico de Hebreus, veja
Donald Guthrie, New Testament Introduction, 3ª edição, revista (Londres, 1970), pp. 685-718; Everett
F. Harrison, Introduction to the New Testament, edição revista (Grand Rapids, 1971), pp. 370-380.
Para uma avaliação adventista destas evidências, veja William G. Johnsson, In Absolute Confidence:
The Book of Hebrews Speaks to Our Day (Nashville, 1979), pp. 15-20, 27-30; Francis D. Nichol,
editor, The SDA Bible Commentary, 7 vols. (Washington, DC, 1953-1957), 7:387-394.
95

sido composto ou apresentado em primeiro lugar como um sermão (13:22: cf.


11:32), ou série de sermões, a uma comunidade judaico-cristã do primeiro século -
talvez antes de 70 A. D. Quer se aceite a autoria de Paulo, ou de um escriba de
Paulo, ou de qualquer outra pessoa, existem problemas complexos a enfrentar.
Pode ser melhor, tal como procede William G. Johnsson, referir-se ao autor
mediante a designação de “o apóstolo”.94 O único verso que fala diretamente da
questão da origem e destino, é ambíguo (13:24).

7.3.3. Contexto Interno

A consideração das circunstâncias que trouxeram a lume os escritos de


Hebreus forma uma ponte entre o contexto externo ou histórico e o contexto interno
ou literário de qualquer passagem do livro. Os primeiros recipientes de Hebreus
defrontavam-se com problemas causados pela crescente brecha que se formava
entre o judaísmo e a emergente igreja, e pela tentação de retornar ao judaísmo. A
demora do Segundo Advento, contínua perseguição e problemas econômicos
acrescentavam maior carga traumática, e os levava a se perguntarem se o
cristianismo valia tudo àquilo que estava custando.95

7.3.4. A Mensagem de Hebreus

Para responder estes problemas, efetua o apóstolo uma série de


comparações entre judaísmo e cristianismo, mostrando em todos os casos a
superioridade deste último. Demonstra ele que o judaísmo se cumpre no
cristianismo, e que este significa a revelação última de Deus ao homem. Cristo é o
“mais perfeito sacerdote” que ministra dentro da estrutura de um “melhor concerto”.
Seu ministério no santuário celestial é contrastado com o ministério dos sacerdotes
levíticos no santuário terrestre.
Dois temas (entre outros) são de especial significado para a compreensão dos
recipientes: a posição central e a singularidade do Calvário, e o “acesso direto” dos
crentes a Deus através de Cristo.96 O Calvário é importante em si mesmo, mas é
também importante por aquilo que significa como precursor do ministério celestial de
Cristo.97 O acesso a Deus é enfatizado repetidamente através do contraste entre o
ministério celestial de Cristo e o sistema levítico.98
Estas são, pois, as questões a serem mantidas em mente à medida que
analisarmos passagens de Hebreus que se relacionam de forma especial com a
teologia adventista do “santuário”. O que pretendia o autor dizer a seus primeiros
recipientes? O que diz ele hoje a nós, diante da “mais ampla importância e mais
profundo significado”? É a nossa interpretação de Hebreus homogênea com a
mensagem original da passagem sob consideração? O que Hebreus diz explicita ou
implicitamente e que seja relevante para a teologia adventista? Porventura Hebreus
silencia, ou até mesmo nega, a teologia adventista em algum ponto? Dedicar-nos-
emos agora ao exame destas questões.

94
Johnsson, In Absolute Confidence, p. 29.
95
Veja Guthrie, New Testament Introduction, pp. 704-5.
96
Hebreus 7:27; 9:12, 26, 28; 10:10.
97
Veja Johnsson, In Absolute Confidence, pp. 114-18.
98
Hebreus 4:14, 16; 6:19-20; 9:11-12, 24 s 10:19-20; cf. 7:23-25; 9:7-8; 10:11-12.
96

7.4. O SANTUÁRIO CELESTIAL EM HEBREUS

7.4.1. Realidade do Santuário Celestial

Hebreus é bastante explícito quanto à existência e realidade do santuário


celestial. Johnsson ressalta este importante aspecto:

Embora ele não faça uma descrição do santuário celestial e sua liturgia, sua
linguagem sugere várias conclusões importantes. Em primeiro lugar,
assegura a sua realidade. Sua preocupação ao longo do sermão é alicerçar
a confiança do cristão em fatos objetivos, conforme vimos. Divindade real,
humanidade real, sacerdócio real - e poderíamos acrescentar, ministério
99
real num santuário real.

Referindo-se ao santuário terrestre como “cópia” (hupodeigma) e “sombra”


(skia /8:5/), o apóstolo descreve o arquétipo como o “santuário” (ta hagia) e
“verdadeiro tabernáculo” (hē skēnē hē alēthinē) “que o Senhor erigiu, não o homem”
(8:2). O adjetivo alēthinos significa “genuíno”, “real”. Esta palavra ressalta a
realidade do santuário celestial. Ele é “verdadeiro no sentido da realidade possuída
somente pelo arquétipo”.100
O capítulo 9 de Hebreus contém várias referências ao santuário celestial. O
verso 8 diz que “o caminho do Santo Lugar /celestial/” ainda não estava aberto,
enquanto “o primeiro tabernáculo” continuava erguido. O verso 11 fala do santuário
celestial como “o maior e mais perfeito tabernáculo, não feito por mãos, quer dizer,
não desta criação”. E o verso 24 afirma que Cristo “não entrou em santuário feito por
mãos, figura do verdadeiro, porém no mesmo céu”. Mais tarde o autor escreve:
“Tendo, pois, irmãos, intrepidez para entrar no Santo dos Santos, peso sangue de
Jesus” (10:19).
Para os recipientes de Hebreus, estas declarações referentes ao santuário
celestial pretendiam oferecer segurança, certeza.101 Em virtude de oposição nacional
e familiar, os cristãos judeus,leitores da epístola, haviam sofrido separação da vida
religiosa do judaísmo. E, conforme parece ter sido o caso, sem destruição de
Jerusalém e de seu templo se, achava próxima, o do que eles mais estariam
necessitando agora seria de segurança. Estes versos lhes indicavam que eles
possuíam acesso a um “templo” superior - um santuário celestial onde Jesus Cristo
ministrava.
A aplicação destes versos aos dias de hoje deve brotar e desenvolver-se do
intento original do autor. Assim como ocorria com os leitores do primeiro século,
temos de receber a reafirmação de nosso lugar de adoração e de nosso acesso ao
trono de Deus no santuário celestial. Numa era que ameaça todos os valores
religiosos, devemos saber que temos “a Jesus, o Filho de Deus, como grande sumo
sacerdote que penetrou os céus” e que podemos achegar-nos “confiadamente junto
ao trono da graça a fim de achar-mos graça para socorro em ocasião oportuna”
(4:14 e 16).

99
Johnsson, In Absolute Confidence, p. 91.
100
William F. Arndt e F. Wilbur Gingrich, A Greek-English Lexicon of the New Testament and Other
Early Christian Literature, 2ª edição revista e ampliada (Chicago, 1979), p. 37.
101
Veja, por exemplo, Hebreus 10:19 (“Tendo, pois, irmãos, intrepidez para entrar no Santo dos
Santos”).
97

7.4.2. A Natureza da Realidade Celestial: Precaução

Ao passo que as passagens acima citadas, de Hebreus 8 e 9, afirmam a


realidade do santuário celestial, contêm elas também advertências inerentes, com
respeito à nossa interpretação de sua natureza. Hebreus 8:1 a 5 oferece várias
destas advertências. Por exemplo, a expressão “que o Senhor erigiu, não o homem”
(verso 2), sugere imediatamente que existe uma diferença crucial entre os santuários
terrestre e celestial. A diferença repousa sobre a natureza do construtor. As
limitações do construtor humano não se aplicam ao Senhor. Assim, pois, o santuário
celestial não deve ser visto com as limitações e restrições que se poderiam esperar
das instalações do santuário terrestre.
As palavras “figura” (hupodeigma), “sombra” (skia) e “modelo” (tupos) do
verso 5 igualmente indicam que o santuário terrestre não poderia formar a base para
qualquer tentativa de reconstrução (ou reprodução) do santuário celestial. O
santuário terrestre é apenas uma sombra ou representação do santuário celestial e
sua realidade. Embora algumas conclusões gerais quanto ao santuário celestial
possam ser derivadas através do estudo do santuário terrestre, cuidado deveria ser
exercido a fim de não levar estes pontos demasiadamente avante. “É necessário
relembrar que uma „cópia‟ terrestre jamais poderá, em detalhes, representar
plenamente o original celestial”.102
O capítulo 9 também apresenta algumas advertências contra o se levar a
extremos os paralelismos entre os santuários terrestres e celestiais. Hebreus 9:9
identifica o “primeiro tabernáculo como um símbolo ou “parábola” (parabolé) . Se
este primeiro tabernáculo está se referindo aqui ao primeiro compartimento ou a todo
o santuário de Moisés, é algo cuja discussão não tem a ver com o presente
propósito.103 O que é significativo, é que este santuário terrestre é descrito como
tendo valor simbólico. Isto nos adverte quanto a argumentar em termos literais a
partir da base do santuário terrestre, a fim de estabelecer a natureza do santuário
celestial.104
Em Hebreus 9:11 nosso autor fala do santuário celestial como “o maior e mais
perfeito tabernáculo, não feito por mãos, quer dizer, não desta criação”. Somos uma
vez mais alertados para o fato de que existem diferenças fundamentais entre os
santuários terrestres e celestiais. O santuário celestial é “maior”, “mais perfeito”, “não
feito por mãos” e “não desta criação”. Pertence ele à ordem da realidade celestial, ao
passo que o santuário israelita pertencia a este mundo (9:1).
Em Hebreus 9:24 o santuário terrestre é descrito como “figura” /antitupos/ do
verdadeiro /alēthinos/. “As inadequações do santuário terrestre como representação
do celestial, acham-se uma vez mais implicadas. Nesse verso também se
estabelece um contraste entre o santuário terrestre e o santuário celestial (“não...
feito por mãos”).105
Johnsson salienta que o autor de Hebreus “não é cuidadoso em sua
descrição do santuário e dos sacrifícios do Velho Testamento. Por exemplo, ele situa
o altar de incenso no Lugar Santíssimo e mistura os vários sacrifícios”.106 Tal atitude
dificilmente seria razoável se fosse pretensão do autor apresentar o santuário

102
The SDA Bible Commentary, 7:445.
103
Ibidem, página 451.
104
Veja Seventh-day Adventists Answer Questions on Doctrine (Washington, D.C. 1957), pp. 365-
368.
105
Cf. Hebreus 9:11.
106
Johnsson, In Absolute Confidence, pp. 16-17; veja também página 32, n. 10.
98

terrestre como uma precisa miniatura do celestial em todos os aspectos. Esta falta
de cuidado sugere que estes detalhes da descrição do santuário terrestres não são
significativos para a compreensão do santuário celestial. Efetivamente, concernente
a tais coisas, diz ele, “não falaremos agora pormenorizadamente” (Hebreus 9:5b).
Embora a escolha de termos feita por ele deixe algo a desejar, Johnsson
acha-se correto ao traçar a distinção entre uma visão “literalista” e “literalizante” do
santuário celestial.107 Ele descreve a interpretação literalista como aquela em que
“cada termo possui valor definido - ou seja, diante do santuário celestial, o terrestre
seria uma miniatura em todos os aspectos”.108 A interpretação literalizante é aquela
em que “a realidade do santuário celestial e seu ministério podem ser mantidos com
que salvaguardando a objetividade do trabalho de Cristo, onde, porém, detalhes
precisos do santuário podem não nos estar claros”.109
Quanto às duas categorias de Johnsson, o peso das evidências oferece apoio
à segunda. “Portanto é aparente que, ao passo que afirmamos a realidade do
santuário celestial no livro de Hebreus, temos comparativamente poucos dados de
interpretação literal quanto ao seu aspecto”. 110 Tal posição é apoiada pelo que
segue? “... não deveríamos permitir que qualquer perplexidade finita na visualização
do santuário celestial diante do terrestre, obscurecesse em nossas mentes as
grandes verdades ensinadas por esta „figura‟ terrestre...”111

7.4.3. A Função é Mais Importante Que a Forma

Os primeiros leitores de Hebreus necessitavam aprender que nenhuma


confiança deveria ser colocada sobre a magnificente estrutura do Templo em
Jerusalém. Sua presença e ritual sem dúvida os tentavam a abandonar a fé cristã.
Necessitavam eles relembrar que mesmo o tabernáculo do deserto, o precursor
espiritual do Templo, era apenas uma “cópia” ou “sombra” da realidade do santuário
celestial. Uma vez que eles eram tentados a atribuir importância a forma externa, o
apóstolo os fez lembrar que mais importante que a estrutura - tanto do santuário
terrestre quanto de sua contra partida celestial - era a sua função. Sua admoestação
é relevante ainda hoje.
Uma vez que o santuário celestial era o “verdadeiro”, o “original”, “deveríamos
ver o santuário terrestre à luz do celestial, e não ao contrário”. 112 O santuário
celestial - o arquétipo - deve constituir a base de nosso raciocínio, e não o objetivo
do mesmo. Conforme elabora Johnsson: “É o celestial, e não o terrestre, que é o
verdadeiro, O terrestre era apenas uma pálida sombra, um artifício temporário que
apontava ao genuíno (Este ponto, aliás, é importante na interpretação: o real deve
explanar a sombra, e não ao contrário)”.113 Assim, ao examinarmos o santuário
terrestre, deveríamos ser compelidos a ver os grandes princípios que ele abrange, e
não os detalhes de sua estrutura.

107
Ibidem, “The Heavenly Sanctuary”, p. 51, neste livro.
108
Ibidem.
109
Ibidem. Observe também: “Não devemos pensar numa tenda literal no Céu, literalmente montada
por Deus.” - The DAS Bible Commentary, 7:444.
110
Johnsson, “The Heavenly Sanctuary”, p. 51, neste livro.
111
The SDA Bible Commentary, 7:468.
112
Johnsson, “The Heavenly Sanctuary”, p. 51, neste livro.
113
Idem, In Absolute Confidence, p. 91. Isto não significa negar que a sombra proveja alguns
importantes vislumbres do ministério sacerdotal de Cristo, tais como seu ministério em duas fases, o
qual corresponde à ministração nos dois compartimentos - Editor.
99

Não pode haver qualquer dúvida quanto à realidade do santuário celestial.


Hebreus nos assegura isto. Ao mesmo tempo, a epístola provê apenas informações
limitadas quanto a natureza desta realidade.

7.5. O MINISTÉRIO CELESTIAL DE CRISTO EM HEBREUS

Os adventistas não são os únicos a reconhecer o valor de Hebreus quanto ao


seu ensino a respeito do atual ministério de Cristo no santuário celestial. Um texto
escolar de caráter conservador, ainda que popular, declarava o seguinte há duas
décadas:

O maior valor singular do livro de Hebreus é seu ensino quanto ao atual


ministério e sacerdócio de Cristo. Existem em o Novo Testamento muitas
referências à Sua ascensão a Seu lugar à direita do Pai, mas com exceção
de Romanos 8:34, nenhum desses textos explica o que Ele está realizando
agora.114

O bispo anglicano Brooke Foss Westcott, em seu clássico comentário de


Hebreus, falou de Cristo como o sumo sacerdote que ministra “em Sua natureza
humana” e do santuário celestial como o “arquétipo” do santuário celestial. 115 Numa
observação quanto a “The Present Work of Christ as High-priest” /O Trabalho Atual
de Cristo Como Sumo Sacerdote/, descreveu ele o trabalho de purificação efetuado
pelo sumo sacerdote levítico. “Ali vemos em figura”, declara Westcott, “o trabalho
sumo sacerdotal de Cristo”.116 Mais recentemente, George W. Buchanan afirmou
que “uma vez que o arquétipo celestial funciona da mesma forma que sua imitação
terrestre”, existe provisão “para a purificação „das coisas celestiais‟ (Hebreus 9:
23)”.117 Nesse contexto, Buchanan fala da “purificação” do santuário celestial do
“pecado e contaminação”.118
Os adventistas têm buscado corretamente o Livro de Hebreus quanto a
informações concernentes ao ministério celestial, de Cristo, já que este livro prove
declarações muito importantes a respeito do presente trabalho de nosso Grande
Sumo Sacerdote. Particularmente nos capítulos 8 a 10, assim como em porções
espalhadas dos capítulos 4, 6, 7 e 13, o autor descreve a atividade celestial de
Cristo.

7.6. O TEMA DA “DESTRA DE DEUS”

Em cinco pontos de Hebreus (1:3, 13; 8:1; 10:12; 12:2) o autor descreve a
Cristo como “assentado à destra do trono de Deus” logo após Sua ascensão. Tal
afirmativa constitui parte de um tema mais amplo do NT, o qual inclui um total de 19
passagens.119 O contexto de três textos - Marcos 16:19; Efésios 1:20; I Pedro 3:22 -

114
Merril C. Tenney, New Testament Survey, edição revista (Londres, 1961), p, 362.
115
Brooke Foss Westcott, The Epistle to the Hebrews: The Greek Text With Notes and Essays, 2ª
edição (Londres, 1892) p. 257.
116
Ibidem, p. 229.
117
George Wesley Buchanan, To the Hebrews, AB (Garden City, NY, 1972), p. 162.
118
Ibidem.
119
Veja também Marcos 16:19; Efésios 1:20; Colossenses 3:1. Apocalipse 3:21 diz a mesma coisa,
com uma pequena variante. As seguintes passagens descrevem a Cristo como estando à direita de
Deus, sem utilizar o verbo “sentar” ou equivalente: Mateus 22:44 (e paralelas - Marcos 12:36; Lucas
20:42); Atos 2; 33-34; 5:31; Romanos 8:34; I Pedro 3:22; Atos 7:55 e 56.
100

indica claramente que Cristo assumiu esta posição quando de Sua ascensão. É
também significativo observar que o contexto de bom número de passagens quanto
à “destra de Deus” é de natureza cultural.120 Isto sugere que a expressão se refere a
algo mais que a inauguração, dedicação e exaltação de Cristo e Sua atividade no
santuário celestial. Por vezes deve ela incluir também uma referência à Sua contínua
atividade sumo sacerdotal.121
A repetição desse tema em Hebreus indubitavelmente pretendia assegurar
aos leitores o significado do ministério celestial de Cristo. Alguns estavam
fraquejando em sua determinação de se manterem fiéis à nova fé. O autor lhes
assegura que Aquele a quem haviam aceitado como Salvador era o mesmo que
ministrava em seu favor na própria presença de Deus.
Tal como muitas vezes ocorre em Hebreus, existe também a implicação de
que se o Sumo Sacerdote Se acha na presença de Deus, existe pleno e livre
acesso, por a partir de Seus seguidores, à divina presença.122 Esta garantia é ainda
hoje provida por estes versos. Primariamente, dizem eles ainda que nosso Senhor e
Salvador de forma alguma está separado do Pai - antes, acha-Se Ele na própria
presença deste.
O tema da “destra de Deus” declara que Cristo tem estado a ministrar na
presença de Deus desde Sua ascensão. Isto não nega a possibilidade de um
ministério de duas fases, no Céu, por parte de Cristo. Entretanto, poderia negar a
visão literalista do santuário celestial, pois esta confinaria a Cristo num
compartimento separado de Deus. O tema focaliza tanto o lugar quanto a natureza
do ministério de Cristo.

7.7. O TEMA DO “LIVRE ACESSO”

7.7.1. Santuário Terrestre? Acesso Limitado a Deus

O culto levítico, ao quais os recipientes de Hebreus estavam sob o perigo de


retornar, caracterizava-se pelo “acesso limitado” do adorador a Deus. O israelita
individual achava-se separado do objeto de sua adoração através da forma como
operava o sistema do santuário. Em parte alguma o assunto é exposto de modo tão
claro quanto em Hebreus 9:6-8. O israelita somente podia vir até o pátio do santuário
ao oferecer seu sacrifício. Não tinha ele acesso ao santuário propriamente dito. O
sacerdote podia acessar o primeiro compartimento do santuário, mas não podia ir
além disso. O sumo sacerdote podia ir até ó segundo compartimento, mas apenas
uma vez ao ano, e mesmo assim, apenas se apresentasse o sangue dos sacrifícios
apropriados. Barreiras ao acesso eram enfrentadas pelo adorador a cada passo.

7.7.2. Santuário Celestial: Livre Acesso a Deus

Os judeus-cristãos, a quem foi dirigida a epístola aos Hebreus, tendiam a


adotar novamente o antigo sistema de adoração com todas as suas limitações
inerentes. Tendo em vista ajudá-los a perceber a futilidade de tal curso de ação, o
autor enfatiza a liberdade de acesso a Deus, agora disponível através do ministério
120
Veja A. P. Salom, “Exegesis of Selected Passages in Hebrews 8 and 9” (ensaio não publicado,
Glacier View, 1980), pp. 22-23.
121
Para um ponto de vista um tanto diferente, veja o relatório do Comitê de Daniel e Apocalipse,
neste livro, p. 4.
122
Veja Hebreus 4:14, 16; 7:19, 25; 10:22.
101

celestial de Cristo, e desafia seus leitores a se disporem a dar este passo. Com a
entrada de Cristo à presença de Deus, um novo e direto método de acesso havia
sido criado. Este é o enfoque das passagens que falam da enteada de Cristo à
presença de Deus.
Hebreus 6:19 e 20 constitui um exemplo do tema do “livre acesso” num
importante contexto.123 O autor assegura a seus leitores de que eles dispõem de
acesso a Deus pelo fato de haver Cristo entrado à presença divina. Com a força de
duas coisas imutáveis - a promessa de Deus (verso 15) e Seu juramento (verso 17)
– é lhes assegurado chegar livremente a Deus, mediante Cristo. Deseja ele que eles
creiam que em Cristo possuem “âncora da alma, segura e firme” (verso 19a). Esta
âncora é a esperança “que penetra além do véu” (verso 19b). Apresenta ele então
sua mais forte garantia. Cristo, tal como a esperança do cristão, também
compareceu diante de Deus, como alguém que faz as vezes de precursor nosso,
“tendo-Se tornado sumo sacerdote para sempre, segundo a ordem de
Melquisedeque” (verso 20). Em virtude do acesso de Cristo à presença de Deus, os
leitores também podem ter livre acesso a Deus.
O contexto imediato (versos 13-20) e o tema do “livre acesso” revelam o
intento do autor em 6:19 e 20. A frase, “alem do véu” (verso 19) pode ser entendida
como uma referência ao Segundo Compartimento 124 sem que represente qualquer
idéia quanto à segunda fase do ministério de Cristo começando quando da
Ascensão.125
O intento original do autor era assegurar a seus leitores do fato de que o
ministério celestial de Cristo providenciara a base para “melhor” forma de adoração
do que aquela vivenciada pelo culto levítico, e que ela lhes provia pleno e livre
acesso a Deus.

Não acreditamos que fosse intenção da frase significar que por ocasião de
Sua ascensão, Cristo houvesse começado um ministério equivalente aquele
que o sumo sacerdote desempenhava, no Velho Testamento, uma vez ao
ano, no segundo compartimento do tabernáculo, no Dia da Expiação,
excluindo assim a fase diária do ministério sacerdotal. “Além do véu” tinha a
intenção, acreditamos-nos de apresentar a convicção de que, desde a
ascensão de Cristo, temos nos livre e direto acesso a própria presença de
Deus. 126

O documento emitido após a conferência de Glacier View declara:

Não existe passo intermediário em nossa aproximação a Deus. Hebreus


salienta o fato de que nosso Grande Sumo Sacerdote acha-Se à mão direita
de Deus (cap. 1:3), “no mesmo céu... diante de Deus” (cap. 9:24). A
linguagem simbólica do Lugar Santíssimo, “alem do véu”, é usada para
assegurar-nos de nosso pleno, direto e livre acesso a Deus (caps. 6:19-20;

123
Veja também Hebreus 10:19-20.
124
Veja Salom, pp. 17-19; e Norman H. Young, “The Checkered History of the Phrase „Within the
Veil‟: Where Did Christ Go?”, Ministry, Dezembro de 1983, pp. 4-7.
125
“Além do véu” refere-se a este quadro simbólico da presença de Deus numa aplicação do
primeiro século, das figuras do Dia da Expiação, em vez de aplicar-se a um cumprimento antitípico do
tipo do Velho Testamento. Esta forma de falar de modo algum obsta nossa compreensão do
ministério mediatório em duas fases, desempenhado por Cristo no santuário celestial... “Declaração
do Documento de Desmond Ford” (Glacier View, CO), Adventist Review, 4 de Setembro de 1980, p.
9.
126
Ibidem, p. 8 (ênfase suprida).
102

9:24-28; 10 :1 - 4).127

7.8. ALUSÕES AO “DIA DA EXPIAÇÃO”

O significado das alusões, em Hebreus, ao Dia da Expiação, tem sido


considerado em vários lugares.128 Cautelosamente, Johnsson identifica três
referências “não-ambíguas” (9:6-7, 24-25; 10:1-1).129 Apenas uma destas (9:24 e 25)
refere-se ao ministério celestial de Cristo. Adicionalmente, vê ele mais oito
“possíveis” alusões (4:16; 5:3; 7:26-27; 9:5, 8, 13, 27-28; 13:10-11). Neste último
grupo, todas - com exceção de 5:3 e 9:5 - referem-se ao ministério de Cristo.130
Forte argumento foi apresentado por Norman Young quanto à existência de
paralelismos entre 9:7, os versos 11 e 12, e o verso 25. 131 Assim, 9:7, que é
patentemente uma referência ao Dia da Expiação, estabelece o padrão para as
outras duas passagens.
A atenção oferecida ao serviço do Dia da Expiação em Hebreus (e
particularmente no capítulo 9), foi indubitavelmente de algum significado aos
recipientes da epístola. Como judeus, antes de sua conversão, haviam eles visto
este dia como sendo de grande importância para suas vidas religiosas, o ponto alto
de sua experiência cultual. Agora consideravam eles a possibilidade de defecção
diante do cristianismo e de retorno ao judaísmo.
Sendo o Dia da Expiação tão importante para os judeus, o autor o separa
para dedicar-lhe atenção especial. Esforça-se ele por mostrar as inadequações do
culto levítico, mesmo em se tratando do ponto alto da religião judaica. Ao mesmo
tempo em que este serviço provia o exemplo supremo de acesso a Deus no ritual do
Velho Testamento, tal acessei era estritamente limitado (9:7). Adicionalmente, era
necessário que tal serviço fosse repetido anualmente (9:7, 25; 10:2 e 3). Mais
importante, porém, era a sua ineficácia, no mais alto sentido, para a expiação dos
pecados (9:9-10? 10:1-4). Entretanto, o Dia da Expiação apontava ao perfeitamente
adequado ministério celestial de Cristo (desde se aceite que os textos seguintes
contém linguagem do Dia da Expiação – 9:11, 12, 14, 24-26). “Todas as barreiras
entre Deus e o homem foram abolidas, de modo que podemos comparecer
audazmente à presença de Deus. Finalmente foi apresentado um sacrifício capaz de
prover a mais ampla purificação dos pecados”. 132
Talvez a passagem mais crucial de Hebreus, em relação à teologia adventista
do santuário, seja a de 9:23-25. Johnsson salientou que “o contexto indica
claramente uma alusão ao Dia da Expiação”.133 O livre acesso provido pelo
ministério celestial de Cristo (verso 24), a superioridade de Seu sacrifício (verso 25)
e sua natureza não-repetível (verso 26) representam os principais pontos fortes
desta passagem para seus leitores originais. Fazem parte do tema das “melhores”
coisas por meio (ou a partir) das quais os leitores eram estimulados a permanecer
127
Comitê de Revisão do Santuário, “Christ in the Heavenly Sanctuary”, Adventist Review, 4 de
Setembro de 1980, p. 14 (ênfase suprida).
128
Veja Norman H. Young, “The Impact of the Jewish Day of Atonement Upon the Thought of the
New Testament” (Dissertação doutoral, Manchester University, 1973); “The Gospel According to
Hebrews 9”, NTS 27 (1981): 198-210; Johnsson, “Day of Atonement Allusions”, pp. 100-115.
129
Johnsson, “Day of Atonement Allusions”, pp. 113-14. Presumivelmente o verso 23 pertença à
referência aos versos 24 e 25.
130
Hebreus 9:7 poderia ser conectado com o verso 8 e 9: 11 e 12 com o verso 13.
131
Young, “The Gospel”, p. 199.
132
Johnsson, “Day of Atonement Allusions”, p. 119; cf. The SDA Bible Commentary, 7:455.
133
Ibidem, p. 113.
103

na fé cristã. Este pano de fundo deve ser mantido em mente à medida que se busca
a interpretação para os dias de hoje.
Os comentaristas têm volvido as costas à visão da necessidade, de
“purificação” do santuário celestial, em correspondência com os serviços do Dia da
Expiação do santuário terrestre. Têm procurado evadir-se à questão ao sugerirem
várias soluções para a elipse do verso 23. O verbo “inaugurar” tem por vezes sido
suprido a fim de preencher o vazio da segunda cláusula. O bispo Westcott,
entretanto, identificou claramente a relação do pecado com o santuário celestial, e
assim a necessidade de sua “purificação”.

Toda a estrutura da sentença requer que seja suprido o termo “purificação”


na segunda cláusula, em relação à primeira, e não mais um termo geral,
como “inauguração”. Em que sentido, pois, pode-se dizer que as “coisas
celestiais” necessitam de purificação?
A necessidade de purificação por parte do santuário terrestre e de seus
utensílios derivada do fato de que eram utilizados pelo homem e assim
compartilhavam de sua impureza (comp. Lev. xvi 16).
De acordo com este ponto de vista, pode-se dizer que mesmo as “coisas
celestiais”, tanto quanto incorporam as condições da vida futura do homem,
adquiriram pela Queda alguma coisa que também requer purificação.134

Da mesma forma como o santuário terrestre era maculado peio pecado e


assim necessitava de purificação, é este o caso do santuário celestial. Assim, ao
passo que o argumento de Hebreus não aborda diretamente a questão da doutrina
adventista do santuário, “podemos dizer, particularmente à luz de 9:23, que o livro
abre margem a esta doutrina”.135
Dever-se-ia observar que o serviço do Dia da Expiação não é o único serviço
do sistema do santuário a receber atenção em Hebreus 9. Existem referências mais
casuais ao sacrifício da “novilha vermelha” (verso 13), a ratificação do concerto
mediante sangue (versos 18-20), à dedicação do santuário (verso 2) e aos sacrifícios
em geral (verso 22). De fato, as alusões ao Dia da Expiação não chegam a constituir
o tema central na argumentação de Hebreus concernentes ao sacrifício. São
meramente parte de um complexo mais amplo de referências ao culto levítico. O
reconhecimento deste fato habilita-nos a perceber estas alusões em sua correta
perspectiva.136
Conforme Johnsson salientou de modo tão claro, a verdadeira questão nesta
seção de Hebreus não é o Dia da Expiação como tal, e sim a superioridade do
sangue de Cristo.137 “Se os sistema sacrificial é inadequado em seu ponto mais alto,
toda a estrutura deve ser francamente inadequada. Mas, diz Hebreus, a boa noticia
é que existe um melhor sangue!”138 Os repetidos Dias da Expiação não podiam
alcançar o que foi alcançado numa só ocasião pelo sacrifício de Cristo no Calvário -
o derramamento do “melhor sangue”. “E em Hebreus é o motivo do haima („sangue‟)
que vincula as várias referências aos sacrifícios diários, da novilha vermelha, da

134
Westcott, p. 270. Buchanan acrescenta: “Também parece um pouco surpreendente pensar no
céu como um lugar onde pudesse haver pecado e se fizesse necessária a purificação da contamina-
ção. Entretanto, o autor de Hebreus não encontrou dificuldade nisto” (p. 162).
135
Johnsson, In Absolute Confidence, p. 116.
136
Veja Hebreus 5:1-3; 7:27; 9:9-10, 12-13, 18-21; 10:8, 11, 29; 11:4, 28; 12:24.
137
William G. Johnsson, “Defilement and Purgation in the Book of Hebrews” (Dissertação doutoral,
Vanderbilt University, 1973), pp. 102-361.
138
Johnsson, “Day of Atonement Allusions”, pp. 118-19.
104

inauguração do concerto e de Yom Kippur”.139


O que, pois, está dizendo Hebreus 9 em relação à teologia adventista do
santuário quando fala da ministração de Cristo no contexto do Dia da Expiação? Em
primeiro lugar deve-se destacar / que existe um relacionamento claro entre o Dia da
Expiação, seguindo suas alusões em Hebreus, e o ministério celestial de Cristo.
“Existe concordância básica de que Cristo, em Sua ascensão, adentrou à própria
presença de Deus, conforme simbolizado pela entrada do sumo sacerdote terrestre
no Dia da Expiação”.140
Contudo, isto não deve ser entendido como significando que Cristo iniciou a
segunda fase de Seu ministério celestial quando da ascensão. 141 A implicação das
alusões ao Dia da Expiação em Hebreus é de que Cristo se localizou, quando da
ascensão, à semelhança do sumo sacerdote no Dia da Expiação, junto à presença
de Deus. Mas perceba-se que Hebreus não aborda, de per si, a questão das duas
fases do ministério celestial de Cristo, e nem o posicionamento de eventos no
tempo. Diz Johnsson:

As referências de Hebreus ao Dia da Expiação, portanto, não pretendem


demonstrar que o dia antitípico da expiação começou quando da
ascensão... Em vez disso, o argumento diz respeito ao valor relativo dos
sacrifícios, contrastando o clímax do culto do Velho Testamento com as
mais excelentes realizações de Jesus Cristo no Calvário.142

7.9. MINISTÉRIO EM DUAS FASES E EVENTOS NO TEMPO

Sem chegar a identificá-la como tal, Hebreus claramente fala da primeira fase
do ministério celestial de Cristo. Hebreus 7:25 discute um tanto explicitamente o
ministério intercessório de Cristo. Adicionalmente, 4:14-16 apresenta fortes
implicações de Sua intercessão para aqueles que se achegam ao trono da graça a
busca de “misericórdia” e “graça”.

7.9.1. Santuários Contrastados - e Não Eras

As questões atinentes a fases de ministério e eventos no tempo, têm sido


levantadas em conexão com Hebreus 6:6-10, especialmente quanto ao verso 8.
Neste verso, tón hagión é melhor traduzido como “santuário”.143 O contexto indica
que a referência se faz ao santuário celestial. Os versos 1 a 7 descrevem o santuário
terrestre e seus serviços, e o autor passa depois a discutir o trabalho de Cristo no
santuário celestial (versos 11 e 12). Assim, é bastante natural que os versos 8-10
formem uma passagem-ponte na qual ele descreve o valor simbólico do santuário
terrestre à luz do celestial.
A frase “primeiro tabernáculo” (tés protes Skēnēs) tem suscitado muita
discussão. Até aqui foi ela utilizada duas vezes (versos 2 e 6) a fim de descrever o
primeiro compartimento do santuário terrestre. É simplesmente razoável imaginar
que ela está sendo usada da mesma forma no verso 8.144
139
Ibidem, p. 118.
140
“Statement”, p. 8 (ênfase suprida).
141
Ibidem.
142
Johnsson, “Day of Atonement Allusions”, p. 119.
143
Veja A. P. Salom, “Ta hagia in the Epistle to the Hebrews”, AUSS 5 (1967): 59-65, 68. Veja o
Apêndice A.
144
Está é uma das opções em The SDA Bible Commentary, 7:451. Para outros comentários, veja
105

Isto tem conduzido alguns à incorreta conclusão de que o primeiro


compartimento, o mais externo, é simbólico da era do VT, ao passo que o segundo
compartimento, ou interior, apontaria à era do NT. Isto faria com que existisse uma
correspondência de todo o período, desde o Calvário, com o Dia da Expiação. 145
Mas o contraste no argumento do autor diz respeito a santuários, e não a eras.
Assim, o compartimento externo, ou primeiro, do santuário terrestre, é representativo
de todo o santuário terrestre, como um sistema de acesso limitado.
Westcott expressou isto nos seguintes termos:

O primeiro tabernáculo, ou externo, o santuário de adoração habitual,


demonstrava do modo mais impressionante os limites aos quais era
submetido o adorador, embora ele figurasse como um lugar divinamente
reconhecido entre as instituições, causava a separação entre as pessoas e
o objeto de sua devoção. Nem tudo era também privilégio dos sacerdotes;
nem todos os sacerdotes tinham o direito de aproximar-se do trono divino.
Assim, o santuário externo era representativo, como símbolo, de todo o
tabernáculo como lugar de serviço.146

Johnsson concorda com isto: “... o „primeiro tabernáculo‟ provavelmente se


refira aqui a todo o santuário em seu velho culto, em contraste com o genuíno ou
„verdadeiro tabernáculo‟ do santuário celestial (Hebreus 8 :1 e 2). Ou seja, o
contraste se estabelece entre os dois santuários, e não entre as duas eras”. 147
O verso 9a acha-se intimamente conectado com o comentário quanto ao
“primeiro tabernáculo” (verso 8). O santuário terrestre, representado pelo primeiro
compartimento, destacava-se pelo limitado acesso a Deus (cf, versos 6 e 7), A
medida que os serviços do Templo prosseguiam, era esta a situação daqueles que,
à semelhança de alguns dos primeiros leitores de Hebreus, achavam-se sob o
perigo de escolher a adoração segundo o sistema do santuário do VT. Portanto o
autor descreve o primeiro compartimento (representativo de todo o santuário
terrestre) como “uma parábola para a presente época”.148
O apóstolo está dizendo que o caminho para o santuário celestial ainda não
está aberto, à medida que ó santuário terrestre prossegue funcionando ou
“mantendo status” (echouses stasin). A luz de cristãos-judeus inseguros, pode ser
que ele esteja falando aqui experimentalmente em vez de historicamente - que a
ênfase recaia sobre a experiência espiritual de seus leitores em vez de referir-se a
eventos no tempo.

7.9.2. Questões Não Abordadas

Hebreus não aborda diretamente a questão do ministério celestial em duas


fases, de Cristo. Não é esta a sua preocupação. Johnsson situa bem o assunto:
“Podemos dizer que Hebreus abre espaço para a obra de Cristo em duas fases, mas
não desenvolve o ponto. O autor faz alusão ao futuro julgamento /9:2 7; 10:30 e 31;

Johnsson, pp. 44-45, 109; Kiesler, pp. 60-62; Davidson, pp. 175-76, neste volume.
145
Veja Desmond Ford, “Daniel 8:14, the Day of Atonement, and the Investigative Judgment” (ensaio
não publicado, Glacier View, 1980), pp. 183-864.
146
Westcott, p. 252.
147
Johnsson, “Day of Atonement Allusions”, p. 114; também: “Assim todo o santuário terrestre, não
meramente o primeiro compartimento, era uma parábola da velha era...” (Idem, “The Heavenly
Sanctuary”, p. 47; The SDA Bible Commentary, 7:451).
148
Embora o resultado final seja o mesmo, o Comitê de Daniel e Apocalipse adotou uma exposição
diferente de Hebreus 9:8. Veja o relatório, pp. 4-5.
106

12:25-27/ mas não vai além - sua preocupação é com aquilo que Cristo já efetuou e
com Seu atual ministério celestial”.149
Este ponto de vista é endossado pelo SDA Bible Commentary quando este,
ao discutir as duas fases do ministério celestial de Cristo, diz: “O livro de Hebreus
dificilmente seria o lugar onde se encontrar uma apresentação definitiva do tema”. 150
Outra declaração adventista recente assumiu posição semelhante! “Também existe
aceitação geral de que nem Daniel, nem o ministério em duas fases são
mencionados na Epístola aos Hebreus”.151
Uma vez mais, Hebreus não faz referência à questão do tempo futuro. A parte
de referências ao Segundo Advento e alusões gerais ao julgamento futuro, o livro
não avança em direção futura. Está mais preocupado em olhar em direção ao
passado, quanto àquilo que foi alcançado no Calvário, e em fazer seu apelo aos
leitores originais com base nisto. “Ele está seguro quanto à realidade do ministério
sumo sacerdotal de Cristo no santuário celestial, mas seu argumento volve-se para o
passado, do ponto em que escreve para aquilo que já aconteceu no Calvário”. 152
Hebreus não oferece “dicas” quanto à questão dos eventos escatológicos no tempo.
“Na verdade, Hebreus não se preocupa com a questão do tempo; em vez disso,
concentra-se na todo suficiência do Calvário”.153

7.10. CONCLUSÕES

Hebreus silencia diante de alguns assuntos que interessam intensamente aos


adventistas. Estes assuntos representam parte de nossas preocupações à medida
que vislumbramos o cenário escatológico. Mas não são estas as preocupações do
autor de Hebreus. São questões nossas, não do apóstolo. Temos de ser cuidadosos
na interpretação deste livro - assim como de toda a Escritura a fim de não sermos
achados a procurar respostas para questões que eram irrelevantes diante das
preocupações do autor.
Hebreus é um tanto explicito em sua discussão, tanto da realidade do
santuário celestial, quanto do ministério de Cristo ali. É bem claro que Cristo abriu
acesso pleno, livre e direto à presença de Deus, e que Ele ministra ali em nosso
favor. É certo que Seu sacrifício proveu “melhor sangue” que os sacrifícios de
animais. Mas Hebreus não discute o ministério celestial em duas fases, de Cristo, ou
qualquer questão envolvendo o tempo relativo a este ministério. “Portanto, o
argumento de Hebreus não nega a doutrina adventista do santuário, porque
basicamente não aborda esta questão”.154

Traduzido por: Hélio L. Grellmann


Outubro de 1990

149
William G. Johnsson, “Hebrews, Adventist Storm Centre”, Collegiate Sabbath School Quarterly, 30
de Setembro de 1981, p. 16.
150
The SDA Bible Commentary, 7:468.
151
“Statement”, p. 8; veja também: “Esta forma de falar de modo algum obsta nossa compreensão
do ministério mediatório em duas fases de Cristo no santuário celestial, que a epístola aos Hebreus
não ensina e nem nega”, p. 9.
152
Johnsson, “Storm Center”, p. 16. “O apóstolo definitivamente não trata aqui da obra de Cristo no
tabernáculo celestial a partir de uma perspectiva de tempo” (Johnsson, In Absolute Confidence, p.
116).
153
“Christ in the Heavenly Sanctuary”, p. 13.
154
Johnsson, In Absolute Confidence, p. 116.
107

8. TA HAGIA NA EPÍSTOLA AOS HEBREUS


Alwyn P. Salom
Fonte: DRCS, vol. 4, pp. 219-227

Ta hagia (e suas variantes) ocorrem cerca de dez vezes NT, e todas elas
estão em Hebreus.155 O exame casual de traduções e comentários torna evidente
que existe considerável confusão de expressão (quando não de pensamento) entre
tradutores e comentaristas em seu manuseio da palavra. A Tabela I ilustra a
variedade oferecida por traduções que vão desde a King James até Phillips. Fez-se
uma tentativa para escolher um grupo representativo, incluindo-se o comitê de
tradução, a tradução em linguagem moderna, e a paráfrase. Das dez traduções
escolhidas, existe completa concordância em apenas um ponto (9:1). Em seis dos
versos sob consideração (9:2, 8, 12, 25; 10: 19; 13:11) existe desacordo quanto a se
ta hagia se refere ao santuário em geral ou a uma parte específica do mesmo. Das
100 traduções representa das na Tabela I, 65-69 são em termos do santuário em
geral, 11-13 são em termos do compartimento externo do santuário, e 20-22 são em
termos do compartimento interior.156 A mesma divisão de opinião foi descoberta
entre os comentaristas,157 onde se julgou necessário explicar que “Lugar Santo” em
alguns casos não se refere ao Lugar Santo, e sim ao Santo dos Santos!
Em vista do fato de que o auctor ad Hebraeos repousou fortemente sobre a
158
LXX, pareceria este o lugar lógico onde se buscar evidência quanto ao significado
que ele atribui ao uso de ta hagia. O estudo da LXX revela os resultados resumidos
na Tabela II. Dos 170 usos desta palavra que faziam referência ao Tabernáculo ou
Templo,159 a dominadora maioria (142) refere-se ao santuário em geral, quando
usada desta forma, ta hagia parecia apresentar-se indiscriminadamente no singular
ou no plural, embora mais de duas vezes mais freqüentemente no plural. 160 Ao

155
Hebreus 8:2; 9:1, 2, 3, 8, 12, 24, 25; 10:19; 13:11.
156
A variação ocorre, em alguns lugares, porque a intenção do tradutor não é clara. Tendo em vista
evitar a confusão introduzida por termos como “Lugar Santo”, “Lugar santo”, “lugar Santo”, “lugares
santos”, etc., a seguinte terminologia passa a ser adotada daqui por diante, sempre que possível:
“santuário” é uma referência ao Tabernáculo ou Templo em geral; “compartimento exterior (ou
externo) e compartimento interior (ou interno)” referem-se ao Lugar Santo e ao Lugar Santíssimo,
respectivamente. O sumário refletido no texto pode ser assim apresentado: 8:2, “santuário” 10 vezes;
9:1 “santuário” 10 vezes; 9:2 “santuário” 3 vezes (?) e “compartimento externo” 7 vezes; 9:3
“compartimento interno” 10 vezes; 9:8 “santuário” 6 vezes, “compartimento interno” 4 vezes; 9:12
“santuário” 5 vezes, “compartimento externo” 3 vezes, “compartimento interno” 2 vezes; 9:25
“santuário” 7 vezes, “compartimento externo” 2 vezes, “compartimento interno” 1 vez; 9:24 “santuário”
10 Vezes; 10:19, “santuário” 6 vezes, “compartimento interno” 4 vezes; 13:11 “santuário” 8 vezes,
“compartimento externo” 1 vez, “compartimento interno” 1 vez.
157
Veja abaixo, página 66 e seguintes.
158
Para uma discussão recente do uso da LXX por Hebreus, veja Kenneth J. Thomas, “The Old
Testament Citations in Hebrews”, NTS 11 (1965), 303-25. Veja também B. F. Westcott, The Epistle to
the Hebrews (Londres, 1903), pp. 469-80; J. van dep Ploeg, “L‟exégese de L‟Ancien Testament dans
I‟Épitre aux Hébreux”, RB 54 (1947), 187 e seguintes; R. A. Stewart, The Old Testament Usage in
Philo, Rabbinic Writings, and Hebrews (tese de M. Ltt. não publicada, University of Cambridge, 1947);
C. Spicq, L‟Épitre aux Hébreux (Paris, 1952), I, 330 e seguintes; F. C. Synge, Hebrews and the
Scriptures (Londres, 1959); M. Barth, “The Old Testament in Hebrews”, Current Issues in NT
Interpretation, edição de W. Klassen e G. F. Snyder (Nova Iorque, 1962), página 53 e seguintes.
159
Adicionalmente houve 16 usos em que a construção utilizou , e 13 nas quais ocorreu
(e suas variantes), Estes casos foram tratados separadamente.
160
A possível razão pela qual o plural foi utilizado com tanta assiduidade não foi pesquisada neste
estudo. Veja F. Blass e A. Debrunner, A Greek Grammar of the New Testament and Other Early
108

mesmo tempo dever-se-ia destacar que quando usada em relação ao compartimento


externo ou interno, seu uso mais freqüente é no singular. Com apenas quatro
exceções, este uso foi articular. Este mesmo padrão geral parece ser seguido (em
escala muito menor) em Hebreus.161 É significativo que em 98 lugares em que esta
expressão da Septuaginta é usada como tradução do hebraico, 36 traduzem o termo
que designa o santuário em geral.162 Tudo isto sugeriria que esta palavra traz a idéia
do santuário como um todo para o seu significado básico em Hebreus, tanto quanto
na LXX.
Poder-se-ia argumentar que, sendo todos os usos de ta hagia de Hebreus 9:8
encontrados num cenário de Dia da Expiação, dever-se-ia fazer uma conexão entre
estes seis usos (no mínimo) e os sete usos da mesma palavra em Levítico 16. 163 É
verdade que estas últimas referências são feitas ao compartimento interior do
santuário.164 Entretanto, dever-se-ia destacar que cada um dos usos em Levítico é
singular, ao passo que em Hebreus (com uma só exceção) elas estão no plural. Se o
autor de Hebreus estava fazendo um empréstimo consciente de Levítico, teria sem
duvida de fazer uso do singular. Adicionalmente, parece muitíssimo mais provável
que ele estivesse sendo influenciado pela tendência geral da LXX (que mostra ser ta
hagia primariamente aplicável ao santuário como um todo), e não a uma parte
específica do mesmo.
Em adição aos usos de ta hagia já considerados, existem duas outras
construções em que o termo aparece na LXX. (e suas
variantes) ocorre 11 vezes referindo-se ao compartimento íntimo do santuário. 165
Sete destas são das ordens citadas acima (ou seja, singular/plural) e quatro são
plural/plural . Todas elas são traduções de MI¦[¡C¨u¢D [£C«W
em Hebreus 9:3 é um exemplo deste uso e refere-se ao
compartimento interior. Embora apareça na LXX mais. freqüentemente na forma
articular (em oito casos), isto não é razão suficiente para eliminar o exemplo de
anarthrous em Hebreus, desta categoria. Parece que o autor de Hebreus tinha uma
razão especifica para a omissão do artigo.166
A construção com é encontrada 16 vezes na LXX, e todas elas
apresentam a palavra no singular.167 Ela não aparece em Hebreus mas é encontrada
em o Novo Testamento, em Mateus 24:15; Atos 26:13; 21:28. Em todos os casos da
LXX, o termo refere-se ao santuário em geral. Todos os três usos no NT também
poderiam ser compreendidos da mesma forma. Atos 21:28 é particularmente

Christian Literature (tradução e revisão de Robert W. Funk, Cambridge, 1961), p. 78; Nigel Turner, em
James Hope Moulton, A Grammar of New Testament Greek (Edinburg, 1963), III, 25-28; J.
Wackernagel, Vorlesungen über Syntax mit besonderer Berücksichtigunq von Griechisch, Lateinisch
und Ueutsch (Basel, 1926), I, pp. 99 e seguintes.
161
Dos nove usos que em Hebreus correspondem a ta hagia (em 9:3 a construção é ),
oito aparecem no plural e sete são articulares.
162
As restantes 62 são traduções de [£C«W, que é paralelo a .
163
Levítico 16:2, 3, 16, 17, 20, 23, 27.
164
Veja especialmente Levítico 16:2, onde “dentro do véu, diante do proprietário” especifica qual a
porção do santuário que está sendo mencionada.
165
Êxodo 26:34; I Reis 6:16; 7:36; 8:6; I Crônicas 6:49; II Crônicas 3:8, 10; 4:22; 5:7; Ezequiel 41:4;
Daniel 9:24. Em adição existem dois usos, o significando dos mesmos sendo discutível: Lev. 16:33;
Num. 18:10.
166
Veja infra, p. 64.
167
Êxodo 29:31; Lev. 6:9 (MT 6:16), 19 (MT 26); 8:31; 10:13, 17, 18; 14:13; 16:24; 24:9; Salmo 23:3
(MT 24:3); 67:6 (MT 68:5); Ecles. 8:10; Isa. 60:13; II Macabeus 2:18; 8:17.
109

Tabela I – Traduções de ta hagia na Epístola aos Hebreus (a)

Goodspeed
Referência

Phillips
Moffatt

Wuest
Grego

Knox

NEB

ERV

ASV

RSV

KJV
8:2 1b 1 1 1 1 1 1 1 10 1
9:1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1
9:2 1 1 2 2 2 2 1 2 2 2A
9:3 1A 1A 3 4 4 4 5 4 4 4
9:8 1 1 1 9 9 1 5 6 7 4
9:12 1 1 1 9 9 2 9 2 4 4
9:24 1 1 1 9 9 1 10 9 10 10
9:25 1 1 1 9 9 2 9 9 10 4
10:19 1 1 1 9 9 1 7 8 4 4
13:11 1 1 1 9 9 1 1 2 4 1
(a)
As traduções estão arranjadas (a partir da esquerda) em ordem de consistência de
tradução. Embora se reconheça que isto não é um sine qua non de tradução, representa, não
obstante, um fator de avaliação e, para o presente propósito, um padrão conveniente de
comparação. O estudo desta Tabela revela alguns resultados esperados, por exemplo, a íntima
conexão entre ERV e ASV, e o grau de inconsistência da tradução na versão “expandida” de Wuest
e na paráfrase de Phillips. Também aparecem algumas surpresas, por exemplo, a consistência da
tradução NEB e a similaridade entre Knox e Goodspeed.
1A = “santuário interior”;
1b = “santuário”;
2= “Lugar Santo”, “Lugar santo”, “lugar Santo”;
2A = “compartimento exterior”;
3= “Lugar Santíssimo”;
4= “Santo dos Santos”, “Santo dos santos”, “santo dos santos”;
5= “Mais santo”, “mais santo”;
6= “Mais santa Presença”;
7= “Mais Santo”, “mais santo”;
8= “santa Presença”;
9= “lugar santo”;
10 = “lugares santos”;

Tabela II: Uso de ta hagia na LXX (a)


Compartimento Compartimento
Santuário
Exterior Interior
Número total de
142 19 9
usos
45 13 8
Singular
97 6 1
Plural
138 19 9
Articular
4 - -
Anarthrous
(a)
A fidedignidade destes números sujeita-se, evidentemente, a fatores como leituras
variantes, usos duvidosos e o fator humano.

significativo, uma vez que é paralelo . O uso desta


construção tanto na LXX como no NT oferece apoio à tese que ta hagia refere-se
primariamente ao santuário em geral.
O uso de em fontes não bíblicas revela que o significado “santuário” ou
“templo” era mais ou menos amplo. No período ptolomaico, foi usado com
110

o sentido de templo na inscrição de Canopus, de Ptolomeu III (239 A. C.). 168 Tanto
Filo169 quanto Josefo170 também a usaram neste sentido. Schlatter salienta que
Josefo a usou parcimoniosamente neste sentido, provavelmente porque ela teria
soado estranha aos ouvidos dos gregos, acostumados a ouvir .171 Procksch172
173
concorda com Flasher , em que e foram introduzidas na LXX a
fim de evitar o uso de, pois esta palavra possuía conotações pagãs.
Somente três dos usos de ta hagia em Hebreus são anarthrous. Destes
casos, Hebreus 9:24 é qualificado pelo termo acompanhante , de modo
que a palavra tem o valor de ser definida, ainda que não articular. Os casos
restantes, em 9:2 ( ) e 9:3 ( ), referem-se ambos às partes
específicas do santuário (o compartimento exterior e o interior, respectivamente),
conforme é claramente indicado pelo contexto. Estava o autor tentando estabelecer
uma distinção entre estes dois usos (deixando-os na forma anarthrous) e os demais
usos em Hebreus, indicando assim que somente estes dois casos se referiam a
partes especificas do santuário? Teria sido este um artifício empregado
deliberadamente, de modo a apresentar uma diferença entre os dois grupos? 174 Se
este foi o caso, isto representa evidencia adicional de que ta hagia deve ser
entendida em Hebreus, exceto em 9:2 e 3, como referindo-se ao santuário como um
todo.
A conclusão geral obtida do estudo da LXX quanto ao uso de ta hagia e a
comparação de seu uso em Hebreus, é que a expressão se refere basicamente ao
santuário em geral. A questão que resta por ser respondida é a que diz respeito à
tradução. De que modo deve a palavra ser traduzida em Hebreus? Deveria ela
permanecer na tradução com a ênfase recaindo sobre seu sentido básico, e deste
modo aparecer todas às vezes como “santuário” (tal como ocorre em Goodspeed e
Knox)? Ou deveria ela ser interpretada à luz do contexto e da teologia da passagem,
sendo traduzida de acordo com a porção específica do santuário que parece estar
na mente do autor naquele instante? É a tese do presente autor que o significado
168
W. Dittenberger, editor, Orientes Graeci Inscriptiones Selectae (Leipzig, 1903-1905), n° 56, linha
59. Veja também U. Wilcken, Urkunden der Ptolemäerzeit, 1 (Berlin, 1922), n° 119, linha 12 (15 A. C.).
169
Legum Allegoriae, iii. 125.
170
Josefo o utilizou tanto para o templo de Jerusalém (Ant., iii, 6.4), para o compartimento interior
(Bell., i. 7.6) e para o santuário com o pátio externo e os muros do templo (Bell., iv. 3.10; vi. 2.1; Ant.,
xii. 10.6).
171
A. Schlatter, Der Evangelist Mattäus (Stuttgart, 1929), p. 12.
172
Otto Procksch, TDNT (Grand Rapids, 1964), I, 95.
173
M. Flasher em ZAW, 32 (1929): 245, n. 2.
174
Westcott, op. cit., p. 245, observou que “a forma anarthrous / em 9:2/ parece ser única neste
sentido”. Ele também a vincula com em 9:3. Entretanto, ele sentia que o texto fixava a
atenção sobre o caráter do santuário. Helmut Koester disputa quanto ao uso de aqui (“„Outside
Camp‟: Hebrews 13:9-14”, HThR 55 /1962/: 309, n. 34), e isto pode ser resolvido pela sugestão
acima. Sua declaração de que “em todas as demais partes o simples é o termo técnico para
„tabernáculo interior‟”, não leva em consideração a peculiar natureza anarthrous da expressão em 9:2,
nem toma em conta o uso desta palavra em 9:1, 24. Sua exposição de 9:2, em termos de
dependência de uma “Vorlage” na descrição do tabernáculo, é tanto insatisfatória. O próprio Koester
parece preferir a sugestão de J. Moffatt, A Critical and Exegetical Commentary on the Epistle to the
Hebrews (Nova Iorque, 1924), p. 133, no sentido de que as palavras de 9:2
estariam em melhor posição imediatamente após . A partir disso, Koester toma o passo
seguinte a fim de sugerir que as palavras são uma glosa marginal “que mais tarde se incorporou ao
texto, e isto num lugar errado”. É verdade que existe alguma confusão textual neste ponto, mas
nenhuma das leituras sugere uma posição diferente para esta cláusula. Deve-se destacar também
embora existam leituras com artigo antes de em 9:2 e de em 9:3, a evidência não é
forte em favor de qualquer destes casos.
111

básico da palavra deve permanecer na mente do tradutor e, provido que tal tradução
faça sentido no contexto, ela é que deve ser usada.175 Portanto, “santuário” deveria
ser a tradução em Hebreus, com exceção de 9:2 e 3. Seria então trabalho do
comentarista, com base em seu estudo do contexto e da teologia da passagem,
decidir a qual parte especifica do santuário (se é que alguma deva ser considerada)
o autor pretendeu aplicar o termo.
8:2 – . Refere-se aqui em santuário celestial como um todo. Tal
posição recebe apoio pela declaração epexegética que segue
176
. É usada mais ou menos regularmente na LXX
onde tanto quanto representam o tabernáculo como um todo, Ao passo que é
argumentado por Koester177 e Hewitt178 que o autor esta falando aqui de duas coisas
separadas, a posição deles não recebe forte apoio. Em vista da evidência já
apresentada por parte da LXX para o uso de ta hagia, pareceria que o significado
primário aqui é do santuário como um todo, e não do compartimento interior (a base
dos argumentos de Koester e Hewitt). Moffatt apóia fortemente esta conclusão.179
No contexto mais amplo do argumento do autor, a ênfase está aqui sendo
posta sobre a existência do santuário celestial Da mesma forma como Israel possuía
seu lugar de adoração e um sumo sacerdote, assim (diz o autor) o cristianismo, em
escala mais ampla, possuía o mesmo. Nas palavras de Moule, “o santuário e o
sacrifício são nossos”.180 É bem verdade que a referência no contexto é quanto à
função do sumo sacerdote (8:1, 3), e que a função singular do sumo sacerdote tinha
a ver com o compartimento interior do santuário. Assim, ao passo que “santuário”
deve ser corretamente entendido como a tradução de num nível
secundário, ao menos, pode-se considerar que o autor tinha em vista referir-se a
uma porção especifica do santuário.
9:1 - Aparecendo como aparece no começo de uma detalhada descrição das
porções e funções do santuário terrestre, a expressão
obviamente se refere ao santuário em: geral, e deve ser traduzida de
acordo com isto. Conforme salienta Bruce, o autor baseia sua descrição “no
tabernáculo do deserto descrito no livro de Êxodo... o santuário do velho
concerto”.181 Westcott salienta que o termo oferece naturalmente “a noção geral do
santuário, sem consideração a suas diferentes partes”.182 O singular não aparece em

175
O princípio geral aplicado à questão da ambigüidade de tradução é analisada nestes trabalhos:
Robert G. Bratcher e Eugene A. Nida, A Translator‟s Handbook on the Gospel of Mark (Leiden, 1961),
pp. 63, 69; Theophile J. Meek, “Old Testament Translation Principies”, JBL 81 (1962): 143-45; F. F.
Bruce, The English Bible: A History of Translations (Londres, 1961), p. 222.
176
Spicp, op. cit., II, 234: “Mais il désigne nettement le temple dans ix, 8, 12; x, 19; xii, 11, et il est
fréquemment l‟équivalent de dans les LXX (cf. Lev v, 15; 1 Macc iv, 36; xiv, 15). De fait, il est
parallèle ici à . “É digno de nota que Filo usa a exata frase (Leg. Alleg. iii. 46),
, de Arão. Ele a utiliza, contudo, no sentido de “coisas santas”.
177
Koester, loc. cit., “Isto não é um hendíades, mas expressa que o ofício de Cristo inclui tanto o
serviço do santuário celestial em si ( ) e a entrada ao passar através das regiões celestiais
( ) = a ascensão!”
178
Thomas Hewitt, The Epistle to the Hebrews (Grand Rapids, 1960), p. 135.
179
Moffatt, op. cit., p, 104; “Mas o autor usa noutras partes (98f, 1019, 1311) o termo para „o
santuário‟, uma tradução favorecida pelo contexto. Com ele quer referir-se, como muitas
vezes ocorre na LXX, ao santuário em geral, sem qualquer referência à distinção (cp. 92f) entre os
compartimentos exteriores e interiores”.
180
C. F. D. Moule, “Sanctuary and Sacrifice in the Church of the New Testament”, JThS, N. S., 1
(1950):37.
181
F. F. Bruce, The Epistle to the Hebrews (Grand Rapids, 1964), p. 182.
182
Westcott, op. cit., p. 244. Veja também Moffatt, op. cit., p. 112; Spicq, op. cit., p. 248 (“il designe
112

qualquer outro ponto de Hebreus; entretanto, é encontrado com bastante freqüência


na LXX.183
9:2 - Desde que seja correta a leitura ( B, sa), este uso é único. O
184
significado disto já foi analisado. Montefiore observa que a forma anarthrous não
encontra paralelo em Hebreus, mas não consegue perceber qualquer significado
nisto.185 Inexplicavelmente (a menos que exista um erro de impressão, ou está ele
usando o Textus Receptus), ele identifica a palavra como e então discute se o
termo é plural neutro ou feminino singular. Ele decide em favor do feminino e
considera que o uso é adjetivo, e qualifica . Entretanto, é mais provável que a
forma seja neutra e o uso seja adjetivo, referindo se ao compartimento exterior
( ) do santuário. O conteúdo do compartimento, conforme descrito
no verso dá apoio a isto.
9:3 - Este é o uso mais claro de ta hagia em Hebreus. A forma
(plural neutro) e equivalente ao superlativo hebraico MI¦[¡C¨u¢ [£C«W (“santíssimo”) e
refere-se, pois, ao compartimento interior do santuário.186 Tal como em 9:2, a
expressão neste verso é da forma anarthrous,187 e tal como em 9:2, refere-se a uma
porção especifica do santuário. Isto, evidentemente, é confirmado pelo contexto
(9:4), o qual descreve o conteúdo deste compartimento.
9:8 - Uma vez mais, o significado básico de ta hagia deve ser considerado na
tradução, de modo que “santuário”, conforme aparece em Goodspeed, Knox, RSV e
NEB, é correto. O significado abrangente, que inclui os compartimentos exterior e
188
interior, justificado uso de . O santuário aqui descrito é o
santuário celestial, do qual é símbolo o compartimento interior do santuário
terrestre.189
O meio de acesso ao santuário celestial esteve historicamente não disponível
enquanto o compartimento externo mantinha (ou retinha) seu status.190 O
compartimento exterior representa o habitual limite de acesso a Deus na experiência
de Israel. O comentário de Westcott é pertinente: “ O santuário exterior /isto é , o
compartimento exterior/ era o símbolo representativo de todo o Tabernáculo como
local do serviço”.191 Quando o santuário celestial cumpriu seu propósito por ocasião
da morte de Cristo, o meio de acesso foi historicamente provido, em relação ao
santuário celestial.
9:12 - As traduções que aparecem na KJV, ERV e ASV (“o lugar santo”), em
Moffatt (“o Lugar santo”) e na RSV (“o Lugar Santo”) definitivamente induzem ao

ice l‟esemble de ce lieu saint sans distinction de L‟une ou l‟autre de ses partfes”).
183
Por exemplo, Êxodo 36:3; Lev. 4:6; 10:18; Num. 3:47; Salmo 62:3 (MT 63:2); Ezeq. 45:18; Dan.
8:11, etc.
184
Supra, p. 64.
185
Hugh Montefiore, A Commentary on the Epistle to the Hebrews (Nova Iorque, 1964), p. 146.
186
P46 apresenta aqui em 9:2. Isto parece ser o resultado de alguma perturbação
antiga no texto.
187
XCB DC K L aparece como . Isto poderia ser uma assimilação do uso que a LXX
faz desta frase, que é sempre particular.
188
(como em 9:2, 6), refere-se ao compartimento externo. Veja Moffatt, op. cit., p.
118; Westcott, p. 252.
189
Spicq, op. cit., p. 253.
190
Bruce, The Epistle to the Hebrews, p. 192, n, 48: “Não está necessariamente implicado que o
santuário terrestre, como estrutura material, não mais existia; o que está implicado é que com a
passagem de Cristo para o Céu (4:14) e para a presença de Deus, a estrutura terrestre perdeu o seu
status de santuário”.
191
Westcott, op. cit., p. 252.
113

erro. O característico serviço do Dia da Expiação ao qual aqui se faz referência (cf.
verso 7), localizava-se no compartimento interior do santuário terrestre. Contudo,
pelo fato de ter o sumo sacerdote de atravessar o compartimento exterior, pode-se
dizer que ele “empregava” (cf. verso 11,
) todo o santuário neste serviço. “Ao
passo que Arão e seus sucessores entravam no Santos dos santos terrestre no Dia
da Expiação... Cristo entrou no santuário celestial”.192 Segue, pois, a sugestão de
que ta hagia, uma vez mais, seja traduzido como “santuário”, referindo-se agora ao
santuário celestial.
9:24 - Se em 9:12 ta hagia deve ser traduzido como “santuário”, claramente o
mesmo deve ocorrer em 9:24, pois o mesmo local é descrito. Não é uma porção
especifica do santuário que está na mente do autor, o que se torna evidente a partir
de sua frase adversativa . Os comentaristas são mais
ou menos unânimes ao considerar este uso de como uma referência ao
santuário celestial em geral.193
9:25 - Assim como em 9:12, a tradução “Lugar Santo” (e suas variantes) induz
ao erro. A referência, no contexto do serviço do Dia da Expiação por parte do sumo
sacerdote, não é quanto ao compartimento externo do santuário. Seu serviço
característico neste dia desempenhava-se no compartimento interior. Entretanto,
uma vez mais pelo fato de todo o santuário estar envolvido no serviço, “santuário”
deve ser a tradução preferida, enfatizando assim o significado básico da expressão.
Isto deixa com o comentarista a tarefa de salientar que o compartimento interior era
o lugar onde residia o significado deste dia.194
10:19 - Inquestionavelmente, o contexto (verso 20) indica que aqui o autor
está se referindo ao privilegio de livre acesso à própria presença de Deus, gozado
pelo cristão. Este acesso era negado tanto ao adorador quanto ao sacerdote comum
no santuário terrestre. Uma vez mais, porém, recomenda-se que a tradução de
seja feita como “santuário”, deixando que o leitor ou comentarista, com
base no contexto literário e teológico, esboce suas conclusões quanto às porções do
santuário que se encontravam particularmente no pensamento do autor.
13:11 - Embora Westcott admita que este verso possa aplicar-se a algo
diferente do ritual do Dia da Expiação,195 é mais provável, particularmente à vista do
capitulo 9, que este dia fosse o que ocupava a mente do autor. De Levítico 16:27 (cf.
verso 2), é possível descobrir que no Dia da Expiação o sangue do animal sacrificial
era conduzido ao compartimento interior do santuário. Assim, era esta parte do
santuário que se achava na mente do autor. Mas a maneira em que a LXX usa o
termo e a forma em que ele é utilizado em Hebreus, levar-nos-iam, uma vez mais, a
utilizar na tradução o sentido neutro, “santuário”.
Traduzido por: Hélio L. Grellmann
Outubro de 1990

192
Bruce, The Epistle to the Hebrews, p. 200. Veja também Montefiore, op. cit., p. 153.
193
Veja Montefiore, op. cit., p. 160; Bruce, The Epistle to the Hebrews, p. 220; Spicq, op. cit., p. 267;
Westcott, op. cit., p. 271 ; F. W. Farrar, The Epistle to the Hebrews, Cambridge Greek Testament
(Cambridge, 1888), p. 123.
194
F. D. Nichol, editor, The SDA Bible Commentary (Washington, DC, 1957), 7: 456: “Ta hagia pode
neste contexto, ser considerado como referindo-se particularmente ao lugar santíssimo, ou num
sentido geral como referindo-se ao santuário como um todo, assim como em 8:2”.
195
Westcott, op. cit., p. 440;
114

9. ESTUDOS EM EXPIAÇÃO BÍBLICA II: O DIA DA


EXPIAÇÃO
Gerhard F. Hasel
Fonte: Arnold V. Wallenkampf e Richard Lesher, editors.
The Sanctuary and the Atonement, pp. 115-133.

O dia da expiação (yôm hakkippurîm)196 é o grande clímax do ano ritual do


antigo Israel, o qual envolve a limpeza/purificação do santuário/templo. 197 Nome
distintivo hebraico yôm hakkippurîm é usualmente traduzido como “dia da
expiação”.198 Alguns eruditos o têm traduzido como “Dia das Purificações”,199 ou tem
sido designado como o “anual „dia da purificação‟“.200 Recentemente foi enfatizado,
com correção, que o dia da expiação tinha como seu “objetivo a purificação do
santuário, e não a purificação do povo”.201 Era celebrado todos os anos no décimo
dia de Tishri (o mês sétimo).202 É digno de nota que este dia de limpeza/purificação
fosse um „„sábado de solene descanso” (sâbbat sâbbātôn)203 e uma “santa
convocação” (miqrāh-qōdes)204 no qual todo israelita tinha de abster-se do
trabalho205 e afligir sua alma,206 ou seja, envolver-se em jejum, 207 ou do contrário
seria eliminado de entre seu povo.208 Os rítos e significado deste dia anual de
limpeza/purificação tornavam-no um dia de julgamento.209 Estipulações detalhadas
são estabelecidas em Levítico 16, sendo ainda oferecidas instruções suplementares
em Levítico 23:26-32 e em Números 29:7-11.
O pano de fundo para os três ritos especiais do dia da expiação é a prévia
196
Estudos significativos quanto ao dia da expiação, a partir de várias perspectivas eruditas, são os
seguintes: A. Edersheim, The TEmple: Its Ministries and Services (Londres, 1874), pp. 263-88; S.
Landersdorfer, Studien zum biblischen Versöhnungstag (Münster, 1924), M. Löhr, Das Ritual von Lev.
16 (Berlin, 1925); G. Orman, Das Sündenbekenntnis des Versöhnungstages (Frankfurt, 1934); I,
Schur, Versöhnungstag und Sündenbok (Helsingsfors/Leipzig, 1934); L, L, Morris, “Day of Atonement
and Work of Christ”, Reformed Theological Review 14 (1955): 9-10; J. Morgenstern, “Two Prophecies
from the Fourth Century B. C. and the Evolution of Yom Kippur”, HUCA 24 (1952/53): 1-74; E,
Auerbach, “Neujahrs - und Versoehnungsfest in den biblischen Quellen”, VT 3 (1953): 337-43; Y.
Kaufmann, The REligion of Israel (Chicago, 1960), pp. 302-309; R. de Vaux, Studies in Old Testament
Sacrifice (Cardiff, 1964), pp. 95-97; M. Noth, Leviticus (Philadelphia, 1965), pp. 115-22; K. Hruby, “Le
Yom ha-Kippurim ou Jour de l‟espiation, L „Orient Syrien 10 (1965); 41-74, 161-92, 413-42; S. Lyonnet
e L, Sabourin, Sin, Redemption, and Sacrifice (Roma, 1970), pp. 182-84, 269-89; B. A. Levine, In the
Presence of the Lord (Leiden, 1974), pp. 53-114; J. Milgrom, Cult and Conscience (Leiden, 1976), pp.
127-28; idem “Atonement, Day of”, IDB (1976): 82-83.
197
Quanto à questão dos serviços sacrificiais que purificavam o ofertante/pecador e contaminavam o
santuário/templo, veja nosso estudo anterior, “Studies in Biblical Atonement I: Continual Sacrifice,
Defilement/Cleansing and Sanctuary”, em capítulo precedente deste volume.
198
Veja Levítico 23:27-28; 25:9.
199
Morgenstern, p. 48.
200
Milgrom, “Atonement, Day of,” p. 82.
201
Levine, p. 76.
202
Levítico 16:29; 23:27.
203
Levítico 16:31; 23:32.
204
Levítico 23:27; Números 29:7.
205
Levítico 23:28; Números 29:7.
206
Levítico 16:29; 23:27, 29; Números 29:7.
207
J. C. Rylaardsdam, “Atonement, Day of,” IDB, I:313; C. L. Feinberg, “Atonement, Day of”, ZPEB,
I:414; Schur, pp. 32-39.
208
Levítico 23:29.
209
Milgrom, Cult and Conscience, p. 128, sugere que o dia da expiação era um dia “de retribuição”.
115

contaminação/poluição do santuário. Concluímos em nosso estudo anterior 210 que o


santuário de Israel podia ser contaminado por apenas uma fonte - o pecado humano.
Este fato aparece em contraste com as noções pagãs de contaminação do
santuário.211 O processo de transferência que libertava o indivíduo de seu pecado
antes do dia da expiação é a primeira fase da expiação, com seus serviços rituais
diários, os quais traziam alivio às consciências israelitas oprimidas pelo
pecado/culpa. Assim era o pecador purificado do mal praticado.
Através de rituais prescritos que, por um lado, traziam limpeza ao ofertante,
mas, por outro lado, contaminavam o santuário por meio dos pecados confessados,
em favor dos quais eram apresentados sacrifícios, o pecado dos israelitas era
depositado no santuário212 até que os ritos do dia da expiação purificassem o
santuário dos pecados do povo de Deus ali acumulados. Estes pecados eram então
removidos do meio de Israel por meio do bode de Azazel. Portanto, consideremos os
principais ritos do dia da expiação e suas implicações quanto ao relacionamento
entre Deus e Seu povo.

9.1. O SACRIFÍCIO DO NOVILHO E A MANIPULAÇÃO DE SEU


SANGUE

Os ritos prescritos em Levítico 16 fazem clara distinção entre o sacrifício do


sumo sacerdote, na forma de “um novilho para oferta pelo pecado” (Levítico 16:3), o
qual deveria fazer Expiação “por si e pela sua casa” (Levítico 16:6, 11), e “o bode da
oferta pelo pecado, que será para o povo” (Levítico 16:15). Estes ritos sacrificais,
com a manipulação do sangue, faziam expiação pelo santuário (Levítico 16:16).
A preparação por parte da figura central do ritual do dia da expiação era
intensa. O sumo sacerdote deveria banhar-se pela manhã neste grande dia (Levítico
16:4), vestindo depois suas vestes sagradas (v. 4). O “holocausto” que precedia a
“oferta pelo pecado” do dia da expiação era particularmente elaborada neste dia
(Números 29:8-11), e funcionava de modo semelhante ao sacrifício diário.
Havendo concluído o sacrifício regular do holocausto, o sumo sacerdote
envolvia-se no primeiro rito distinto do dia da expiação. Apresentava um novilho
como “oferta pelo pecado, para expiação” (hattā‟t hakkippurîm).213 Isto é idêntico à
oferta pelo pecado” particular (hattā‟t) do sacerdote , mencionada anteriormente em
Levítico 4:3-12.
A manipulação do sangue do novilho, contudo, é singular no dia da expiação.
Ao passo que durante os serviços diários o sacerdote mergulhava “o dedo no
sangue”, espargindo “dele sete vezes diante do véu do santuário” (Levítico 4:6), e
também colocava parte daquele sangue “sobre os chifres do altar do incenso
aromático, perante o Senhor, altar que está na tenda da congregação” (v. 7), no dia
210
Veja o n° 2, acima.
211
Foi demonstrado que os santuários pagãos podem ser contaminados por incursões demoníacas
(Milgrom, Cult and Conscience, p. 128). Em Israel existe uma nítida distinção desta noção, uma vez
que o santuário israelita somente pode ser contaminado pelos pecados humanos. Assim a fonte de
contaminação do santuário, no conceito pagão e israelita, é vastamente diferente. Cf. J. Milgrom,
“Israel‟s Sanctuary: The Priestly „Picture of Dorian Gray‟“, RB 48 (1976): 392.
212
Milgrom, Cult and Conscience, p. 128; “Ao alinhar-se com a doutrina da responsabilidade coletiva,
ele afirma que o pecado do indivíduo não é ignorado por Deus, mesmo que o malfeitor não seja
imediatamente punido, mas aquele pecado se acumula no santuário até o dia da retribuição para toda
a comunidade”.
213
Números 29:11; Êxodo30:10. Em Levítico 16 ela é simplesmente identificada como “oferta pelo
pecado” (hattā‟t, versos 6 e 11).
116

da expiação o sumo sacerdote deveria entrar no santuário com incenso (Levítico


16:12-13) e parte do sangue do novilho era levado até o Santo dos santos e
aspergido “com o dedo... sobre a frente do propiciatório” /kapporet 214/ ante do
propiciatório espargirá sete vezes do sangue com 6 dedo” (Levítico 16:14).215
Parte do sangue do novilho, junto com parte do sangue do bode, deveria ser
colocado “nos chifres do altar”, o qual se achava diante do Senhor (v. 18). 216 O
propósito desta manipulação do sangue era “limpar” „(tiharô) o altar e santificá-lo
“das impurezas dos filhos de Israel” (v. 19).

9.2. O SACRIFÍCIO DO BODE E A MANIPULAÇÃO DE SEU


SANGUE

A segunda “oferta pelo pecado” (hattā‟t) consistia de um bode, tomado da


congregação do povo de Israel, escolhido por sortes entre dois espécimes idênticos,
e que era designado como “o bode sobre o qual caiu a sorte para o Senhor” (Levítico
16: 5 e 9).
O sumo sacerdote deveria imolar “o bode da oferta pelo pecado, que será para
o povo” (v. 15). “É curioso que não exista menção a deposição de mãos ou confissão
de pecados sobre o bode apresentado como oferta pelo pecado”.217 A razão218 pode
muito bem ser encontrada no fato de que o bode para o Senhor era empregado para
limpar o santuário dos pecados acumulados do povo ali depositados. Se esta
sugestão for correta, o bode parece não haver servido como vítima transferencial a fim
de trazer o pecado para dentro do santuário. A função é aqui evidentemente de
caráter diferente daquela envolvida no ritual do sacrifício diário.
214
O termo kapporet é um termo técnico no VT para referir; se à tampa de ouro com os dois
querubins, conjunto que cobria a arca no Santo dos Santos. Especulações com respeito à kappōret
como termo substitutivo para a arca em tempos pós exílicos, foram desenvolvidas (veja R. de Vaux,
Ancient Israel: Its Life and Institutions /Londres, 1961/, p. 300). É também desnecessário entrar no
debate filológico a respeito da derivação deste termo; veja M. Görg, “Nachtrag zu kappōret” Biblische
Notizen 5 (1978), pp. 12-27. M. Haran, Temples and TempIe-Service in Ancient Israel (Oxford, 1978),
pp. 246-57, argumenta que “kappōret com seus querubins é o trono de Deus, sendo a arca
propriamente dita escabelo do trono”. H. -J. Zobel, “ „ aron”, Theological Dictionáry of the Old
Testament, editores G. J. Botterweck e H. Ringgren (Grand Rapids, Mich., 1974), I:363-374, sugere
por outro lado que a “arca” propriamente dita é uma “caixa” ou “container”. Deve-se notar também que
Yahweh está entronizado “acima” dos querubins, e não entre eles. Veja G. von Rad, “Zelt und Lade”,
Neue Kirchliche Zeitschrift 42 (1931): 483.
215
Para detalhes quanto ao ritual em época posterior, veja o tratado Mishnah em H. Danby, The
Mishnah (Londres, 1933), pp. 162-72. Metodologicamente é incorreto ler retrospectivamente deste
tratado para o VT, como por vezes tem sido feito.
216
C. F. Keil, “The Third Book of Moses”, Pentateuch (Grand Rapids, Mich., 1949), 11:401, fala da
aspersão de sangue sobre “os chifres dos dois altares”, ou seja, o altar do incenso no santuário e o
altar dos holocaustos na frente do santuário. O texto hebraico, contudo, fala do “altar” no singular.
Não é totalmente certo a qual altar se refere Levítico 16:18-19. A distinção entre “tenda da
congregação” e o “altar” nos versos 20 e 33 parece sugerir que o altar em vista é o altar dos holo-
caustos, diante do santuário (veja F. Maass, “... kpr pi. sühnen”, Theologisches Handwörterbuch zum
Alten Testament /Munique, 1971/, 1:849). Dever-se-ia observar, contudo, que em Levítico 4:7 e 18,
onde a “oferta pelo pecado” é apresentada no serviço diário, o único altar a ser aspergido “o altar que
está na tenda da congregação, diante do Senhor”. Assim, o “altar que está diante do Senhor”, em
Levítico 16:18, pode ser entendido como abreviação de “altar que está na tenda da congregação,
diante do Senhor”, isto é, o altar dentro do santuário. Em Êxodo 30:10 o altar do incenso é
mencionado como sendo purificado no dia da expiação.
217
Morris, p. 14.
218
No Mishnah (veja Yoma 3.8; 4.2; 6.2) tampouco existe menção quanto à confissão de pecados
sobre o bode que era morto.
117

A manipulação do sangue, no caso do bode, é a mesma que para o novilho.


O sumo sacerdote entrava uma vez mais no santuário, levando sangue do bode para
o Santo dos Santos, devendo espargi-lo “no propiciatório, e também diante dele” (v.
15). Ele usava também um pouco do sangue do bode, junto com o sangue do
novilho, para colocá-lo “sobre os chifres do altar ao redor” (v. 18).219
O propósito do sacrifício e da manipulação do sangue do bode é
explicitamente revelado em Levítico 16:16. “Assim fará expiarão pelo santuário
/qōdes/, por causa das impurezas /tum‟ōt/ dos filhos de Israel e das suas
transgressões /pisê‟hem/ e de todos os seus pecados /hatto‟tam/”. A expiação
também deveria ser feita em relação “ao altar que está perante o Senhor” (v. 18). 220
Também a este era aplicada a manipulação do sangue. O altar deveria ser
aspergido com o sangue por sete vezes, de modo a purificá-lo e santificá-lo “das
impurezas dos filhos de Israel” (v. 19).
Existem várias observações significativas a serem feitas em relação ao
propósito declarado em Levítico 16:16 e 19. Em primeiro lugar, volvemos nossos
olhos para o verbo do verso 16. Este verbo é kippēr. Ele aparece 16 vezes221 em
Levítico 16. No verso 16 a preposição cal222 segue o verbo - kippēr cal - e aparece
seis vezes neste capítulo.223 O verbo kippēr aparece na forma “Piel”, que sempre
enfatiza o resultado a ser alcançado.224 De fato, possui ele primariamente um
sentido funcional225 em relação com o resultado a ser obtido.
No contexto cultual a seqüência sintática kippēr cal possui tanto um sentido
de relação, “expiar em relação a” pessoas, lugares, etc., quanto um sentido espacial,
“expiar em favor de, sobre” pessoas, lugar, etc., 226 O sentido de relação é evidente
em Levítico 16:30, “porque naquele dia se fará expiação por vós”, onde seria melhor
dizer “em relação a vós”, ou seja, em relação aos israelitas. Significa que estes ritos,
que limpavam tanto o santuário quanto o altar, relacionavam-se com respeito aos
efeitos que tinham para com os israelitas. O resultado da limpeza do santuário, no
que tinha a ver com os israelitas, era que a purificação do povo era agora final diante
do Senhor (verso 30). De uma outra forma, isto é também enfatizado no verso 33,
onde temos dois usos para kippēr, seguido de objetos diretos (santuário, tenda da
congregação e altar).227 Assim, a construção kippēr cal deve indicar que os israelitas
são os beneficiários últimos: “Fará expiação /kippēr + objeto direto/228 pelo santuário,

219
Veja o n° 216, acima.
220
Veja o n° 216, acima.
221
Levítico 16:6, 10, 11, 16, 17a, b, 18, 20, 24, 27, 30, 32. 33a, b, c, 34.
222
Quatro vezes a preposição becad, “para”, segue kippēr, isto nos versos 6, 11, 17, 24. Entre outros
usos da mesma seqüência, veja Êxodo 32:30; Levítico 9:7; Ezequiel 45:17; II Crônicas 30:18-19. Veja
J. Milgrom, “Kippēr cal/bcad”, Leshonenu 35 (1970): 16-17, mas as suas conclusões são criticadas por
ec
Levine, p, 64, n° 29. Este último sugere que kippér b ad significa “assegurar/realizar expiação em
favor de” (p. 66).
223
Levítico 16:10, 16, 18, 30, 33, 34.
224
E. Jenni, Das hebräische Picel (Zurique, 1968), p. 241.
225
Levine, p. 64.
226
Ibidem, p. 65, quanto às idéias de “de relação” e “espacial”.
227
Veja também kippēr + objeto direto em Levítico 16:20.
228
J. Milgrom, “Atonement in the OT”, IDBS (1976), pp. 78-79, argumenta que kippēr, em textos
rituais, significa “purgar”. Concordamos em que a “oferta pelo pecado” (hattā‟t) purga aquilo a que é
aplicada, mas restringimos isto ao dia da expiação apenas. Nos serviços diários o ofertante é
“purificado”, uma vez que apresenta confissão do pecado, e a manipulação de sangue contamina
aquilo que é tocado pelo sangue sacrificial. No dia da expiação não é mencionada a deposição de
mãos sobre o novilho ou sobre o bode, de modo que a “oferta pelo pecado” exerce uma função
purgadora.
118

pela tenda da congregação e pelo /kippēr + objeto direto/229 altar; também a fará
pelos /kippēr cal/ sacerdotes e por todo o povo” (Levítico 16:33).
Vemos assim que não existe qualquer tensão entre os serviços regulares do
sacrifício diário que “expiavam” tanto os pecados inadvertidos quanto os
intencionais, dos israelitas. Nos serviços diários eram eles transferidos para o
santuário. De acordo com isto o ritual do dia da expiação purificava o santuário em
relação às impurezas dos israelitas.
O sentido espacial da construção de kippēr cal é evidente em Levítico 16:16 -
Assim fará expiação pelo /kippēr cal/230 santuário, por causa das impurezas dos
filhos de Israel, das suas transgressões e de todos os seus pecados”. A ênfase
direta aqui diz respeito ao resultado obtido em termos do espaço que havia sido
contaminado e agora recebia purificação. Os atos rituais de manipulação do sangue
no santuário resultavam na limpeza ou purificação do santuário. Nesta passagem a
construção kippēr cal, expressando um processo espacial, é idêntica a kippēr +
objeto direto do verso 33.231
A segunda observação relaciona-se com o termo que é traduzido como “lugar
santo” em Levítico 16. O termo qōdes232 é usado ao longo de Levítico 16 com o
significado de santuário233 ou santo dos santos,234 exceto no verso 33, onde aparece
o termo miqdaŝ.
Nem sempre é inteiramente definido em que extensão qōdes em Levítico 16
se refere ao santuário como um todo ou a uma área mais específica dentro do
santuário, mais precisamente o santo dos santos. Este problema acha-se refletido na
tradução das versões inglesas.235 O substantivo qōdes pode referir-se ao santuário
em sua inteireza (Êxodo 38:24; Levítico 10:4). Pode também referir-se ao
compartimento exterior, conhecido como lugar santo (Êxodo 26:33) e ao
compartimento interior, conhecido como santo dos santos (Levítico 4:6), o qual é
também designado como qōdes haqqa dāsîm (Êxodo 26:33, 34; I Crônicas 6:49
/verso 34 em hebraico/).236 Evidentemente o sentido “santo dos santos” parece estar
sendo visado em Levítico 16:2. Os outros usos de qōdes em Levítico 16 não são tão
específicos, exceto nos versos 20 e 33, onde mais uma vez qōdes por certo está se
referindo ao santo dos santos, em distinção quanto à “tenda da congregação” e ao
“altar”. Mesmo considerando que o sentido de qōdes em Levítico 16 nem sempre
seja tão claro que não paire qualquer sombra de dúvida, em vários lugares a

229
Levine, p. 65, traduz corretamente como “purificar”. A idéia é claramente a purgação (veja
também Milgrom, Cult and Conscience, p. 127).
230
A idéia de “purificação/limpeza” acha-se mais uma vez subjacente. Veja o n° 229, acima.
231
A construção kippēr‟et em Levítico 16:20, na sentença, “havendo, pois, acabado de fazer
expiação /mikkappēr‟et/ pelo santuário, pela tenda da congregação”, é idêntica ao kíppēr cal espacial
e ao kippēr‟et do verso 33. De fato, o único uso no VT, de kippēr + objeto direto com et, encontra-se
em Levítico 16:20 e 33.
232
Quanto à etimologia de qōdes, veja N. H. Snaith, The Distinctive Ideas of the Old Testament
(Nova Iorque, 1964), pp. 24-32.
233
Levítico 16:2-3, 16-17, 20, 23, 27.
234
Este é evidentemente o sentido em Levítico 16:2.
235
Bom número de versões traduzem qōdes em Levítico 16, consistentemente, como “lugar santo”
(KJV, KSV, NASB), “santuário‟ (NEB, NAB), ou “lugar sagrado” (NJV), ao passo que a NIV traduz
como “Lugar Santíssimo”.
236
Veja F. Brown, S. R. Driver e C. A. Briggs, A Hebrew and English Lexicon of the Old Testament
(Oxford, 1974), p. 871. Em vista deste conjunto de fatos, as referências são incorretas na declaração
de O. Procksch, “ ”, TDNT, I:90 - “Em relação ao templo cdq / qōdes/ vem a significar santuário
em vez de santidade, e dentro dele faz-se distinção entre o santuário (Êxodo 26:33; Levítico 4:6:
haqqōdes) e o santo dos santos (Êxodo 26:34; Números 18:10)”.
119

referência e ao santo dos santos (versos 2, 20, 33), e em outros lugares do mesmo
capítulo é evidente que o ritual do dia da expiação incluía o santo dos santos, a
tenda da congregação e o altar (verso 33). Neste ponto poderíamos observar que
em Daniel 8:14 qōdes é o próprio termo utilizado para “santuário”. Levítico 16 e
Daniel 8:14 acham-se vinculados do ponto de vista terminológico, conceitual e teoló-
gico.237
A manipulação de sangue dentro do santo dos santos,238 no lugar santo239 e
sobre o altar,240 tinha o propósito de purificá-los das impurezas do povo de Israel, A
evidencia apresentada não apóia a teoria segundo a qual este rito anual de limpeza
do santuário dizia respeito apenas a “presumíveis pecados e impurezas /as quais/
não podem ser purgadas pela própria hattā‟t /oferta pelo pecado/ do ofensor”
(Números 1 5 :30-31).241 Levítico 16:16 fala da expiação sendo feita, por “todos os
seus pecados”, e isto milita contra a teoria da “purificação limitada. A abrangente
expressão “todos os seus pecados” aparece uma vez mais no verso 34 de Levítico
16. Parece que os pecados depositados no santuário eram “todos os pecados” que
os serviços regulares (diários) traziam ao santuário, ou seja, os pecados acumulados
de Israel, que haviam sido confessados e pelos quais haviam sido apresentados
sacrifícios nos serviços diários (regulares).
A grande ênfase em Levítico 16 é a purificação do santuário. A função dos
serviços diários (regulares) era libertar o ofensor de seu pecado, impureza e culpa,
pois Deus não pode prosseguir no coração da pessoa que interrompeu o
relacionamento Deus-homem. Portanto, o pecado, a impureza e a culpa eram
transferidos ao santuário, onde permaneceriam e seriam acumulados até o grande
dia da expiação. Uma vez que o pecado e a impureza se acumulam no santuário até
que Deus não mais possa permanecer neste, ordenou Ele que uma vez ao ano seja
este purificado de suas transgressões, pecados e impurezas acumulados, pois do
contrário abandonará Ele Seu povo e o deixará entregue a própria sorte. Assim, o
pecado e o mal jamais passam desapercebidos de Deus, mesmo quando o pecador
individual não é imediatamente punido. O pecador ou ofensor apresenta um
sacrifício por sua ofensa, transferindo assim sua ofensa ou pecado, através da
vítima. Este rito sacrificial não é inerentemente eficaz, ex opere operator. Da mesma
forma, “o rito não é um artifício para contrabalançar os efeitos da magia...” 242
Depende da atitude de remorso do ofensor.
É apropriado relembrar aqui que a legislação mosaica deixava bastante claro
que o pecador deveria apresentar sua confissão enquanto trazia o sacrifício. Isto era
verdade não apenas no caso do pecado intencional (Números 5:8-10), como
também nos casos de pecado não premeditado (Levítico 5:1-6). Isto significava,
entre outras coisas, que mediante a devida atitude de arrependimento e confissão de
qualquer pecado, mesmo aqueles que fossem intencionais e premeditados, podiam
ser perdoados.
Dificilmente poderia o perdão ser concebido como uma conseqüência
automática do ritual sacrificial diário, pois ele sempre aparece sob uma frase

237
Veja o estudo do presente autor, “The „Little Horn‟, the Saints and the Sanctuary in Daniel 8”,
também no presente volume.
238
Levítico 16:14-16.
239
Levítico 16:16-17, onde é possível tomar “tenda da congregação” no sentido de “lugar santo”, isto
é, o compartimento externo do santuário.
240
Êxodo 30:10.
241
Milgrom, “Atonement in the OT”, p. 79.
242
Idem, contra Levine, pp. 77-91.
120

passiva, “para que lhe seja perdoado”.243 244 O perdão depende de Deus. Não e
automático e nem pode ser conquistado.245 O sacrifício não é uma transação tipo
barganha, na qual Deus perdoa como que por consideração. 246 O sacrifício produz
efeitos porque Deus, em Sua misericórdia decide aceitar a oferta do ofensor como
substitutiva de sua própria vida.247 Deus assegura o perdão por conta de Sua graça.
Tal como no rito do sacrifício diário, “na primeira fase do processo de expiação,
assim a purificação do santuário no dia da expiação, com respeito aos pecados do
povo, é necessariamente o objetivo e fase final do processo de expiação, onde o
pecado é apagado e removido248 do santuário, sendo este purificado.
Subjetivamente, o crente sabe que os procedimentos do dia da expiação constituem
a segunda e final fase do processo de expiação. Assim a totalidade do processo de
expiação é alcançado em sua finalidade mediante uma forma irrevogável em favor
do pecador ou ofensor. Então a comunidade pode estar em pé diante de Deus numa
condição que torna possível a comunhão completa.

9.3. O RITO DO BODE EMISSÁRIO

O terceiro rito distinto do dia da expiação é aquele que envolve o bode


emissário.249 Se os sacrifícios do novilho e do bode efetuam a purificação do
santuário em termos das impurezas e transgressões de Israel, o bode emissário é o
veículo que conduz para o deserto os pecados acumulados de Israel. E importante
perceber que o rito de Azazel ocorre após a realização da expiação do santuário em
relação ao povo.
Em contraste com os ritos relativos ao novilho e ao bode, o bode emissário
não era morto250 e seu sangue não era derramado. Não havia manipulação de
sangue, conseguintemente, tampouco existia expiação. Muito difícil justificar, pois, a
afirmativa de que o envio do bode emissário representa um ato de substitutiva
expiação.251
Em conexão com isto, a cláusula, “da congregação dos filhos de Israel tomará
dois bodes para a oferta pelo pecado” (Levítico 16:5), requer atenção. Esta sentença
pode ser considerada como uma frase-resumo, conforme parecem indicar os versos

243
Veja RSV, NJV, NASB.
244
O hebraico wenislah é típico; veja Levítico 4:20, 26, 31. 35; 5:10, 13, 16, 18; Números 15:25-26,
28.
245
H. Thyen, Studien zur Sdridehvergebung (Göttingen, 1970), pp. 34-35.
246
W. A. Quanbeck, “Forgiveness”, IDB, 2:316 - “Sacrifício não é a compra do perdão, e sim o
reclamar da promessa divina de misericórdia”.
247
A dissertação de A. Rodríguez, Substitution in the Old Testament Cultus and in Cultic-Related
Texts (Dissertação de Th. D., Andrews University, 1979), trata em profundidade com a idéia de
substituição.
248
Particularmente impressionante é o uso paralelo, em passagens poéticas, de kippēr, “expiar”, e
māhah, “apagar”, em Jeremias 18:23 (cf. Salmo 51:11 /9/; Isaías 43:25; 44:22). Observe o paralelismo
entre kippēr e hēsir, “remover”, em Isaías 27:9.
249
A literatura quanto ao bode emissário é rica. São exemplos representativos os seguintes: C. L.
Feinberg, “The Scapegoat of Lev. 16”, Bibliotheca Sacra 115 (1958): 320-33; N. Micklem, “Leviticus”,
Interpreter‟s “Bible 2 (Nashville, 1953):77-84; L. Louf, “Caper emissarius ut typus Redemptoris apud
Padres”, Verbum Domini 38 (1960): 262-77; R. de Vaux, Ancient Israel, pp. 507-10;. J. A. Gladson,
The Enigma of “Azazel” in Leviticus 16 (Tese de M. A., Vanderbilt University, 1973); Lyonnet e
Sabourin, pp. 182-84.
250
Contra Landersdorfer, pp. 14-20, com Löhr, pp. 10-12; Levine, pp. 80-81, e muitos outros.
251
Com Maass, col. 849.
121

9-10 e 21.252 Declara-se explicitamente que o bode de Azazel “será apresentado vivo
perante o Senhor, para fazer expiação por meio dele /kipper cal/” (verso 10). A última
parte deste texto por certo não é uma interpolação.253 A expressão “para fazer
expiação por meio dele /le kappēr alaw/” pode ser considerada como significando
“para executar ritos de expiação além destes”, 254 ou em proximidade a estes.255 Do
verso 21 torna-se também claro que não era efetuada expiação por meio do bode
emissário. O rito deste bode era um rito de eliminação do pecado e impureza. 256
A posição no tempo, do rito da eliminação do bode emissário, é
particularmente significativa. Havendo executado a limpeza do santuário com o
sangue do bode “pelo Senhor” (Levítico 16:9), o sumo sacerdote deveria fazer
“chegar o bode vivo”257 (verso 20): “Arão porá ambas as mãos sobre a cabeça do
bode vivo, e sobre ele confessará todas as iniqüidades dos filhos de Israel, todas as
suas transgressões e todos os seus pecados: e os porá sobre a cabeça do bode, e
envi-lo-á ao deserto, pela mão dum homem à disposição para isso. Assim aquele
bode levará sobre si todas as iniqüidades deles para ter a solitária; e o homem
soltará o bode no deserto” (Levítico 16:21 e 22).
Esta é a única vez, nos três ritos singulares do dia da expiação, em que mãos
são postas sobre o animal, Não há dúvida quanto ao rito de deposição das mãos
sobre o bode vivo. Significava a deposição sobre ele, de todos os pecados do povo,
que se haviam acumulado no santuário, de modo que fossem agora levados para o
deserto.258 Não é um ato de benção,259 ou consagração260 ou posse,261 antes de
transferência do pecado, em figura o bode emissário.262 Levítico 16:21 observa, em
particular, que “Arão porá ambas as mãos sobre a cabeça do bode vivo, e sobre ele
confessará todas as iniqüidades dos filhos de Israel, todas as suas transgressões e
todos os seus pecados”.
O que é de particular importância aqui é que a deposição de mãos é
acompanhada de uma confissão oral da totalidade dos pecados do povo de Deus
sobre o bode vivo. Assim todos os pecados, do povo, dos quais o santuário fora
purificado através de confissão oral e deposição de mãos, eram transferidos ao bode
vivo para a eliminação dos mesmos do meio da comunidade israelita. O envio do
252
Com Löhr, p. 10, contra Landersdorfer, p. 14.
253
Veja M. Noth, Leviticus (Philadelphia, 1962), p. 121, e muitos outros exegetas.
254
Levine, p. 80.
255
Ibidem. “O bode emissário permanecia meramente estacionado próximo ao altar enquanto o
sacerdote tomava um pouco do sangue sacrificial /do outro bode/ para uso nos ritos expiatórios”.
256
Mass, col. 849; Levine, p. 81; e outros.
257
O termo hebraico é na verdade hiqrib, que significa literalmente “fará aproximar”, forma Hiphil de
qarab. A tradução da LXX, prosagein, “trazer para a frente”, é correta (assim como a NAB, NJV, NIV),
A tradução “oferecer” (Vulgata offerat; NASB) é incorreta.
258
Morris, p. 12.
259
Assim como em textos não-cultuais, tais como Gênesis 48:18; Isaías 44:3.
260
Veja Números 8:10.
261
Veja Números 27:18, 23; Deuteronômio 34:9.
262
H. G. Schütz, “Hand”, Dictionary of New Testament Theology (Grand Rapids, 1976), II:151; M.
Shepherd, Jr, “Hands, Laying on of”, IDB, II:521; R. K. Harrison, “Hands, Imposition of (Laying on of)”,
Zondervan Pictorial Encyclopedia of the Bible (Grand Rapids, 1977), II:29. Levine, p. 82, sugere que
“o pronunciamento da confissão também fornece alguma evidencia de conflito com as forças do mal,
presentes nos pecados de Israel”. Isto não parece incorreto, mas existe falta de evidência bíblica para
a sua hipótese de “objetivo mágico” tanto para a confissão quanto para a imposição de mãos.: “A
confissão prende o pecado ao passo que a imposição de mãos impele o bode emissário, e este
conduz aqueles” (p. 83). A confissão e a deposição de mãos são procedimentos de transferência,
mas não de aprisionamento e propulsão. O bode vivo não é “impelido”. Deve ele ser conduzido por
um homem até ao deserto, “pela mão dum homem à disposição para isso” (Levítico 16:21).
122

bode ao deserto “pela mão de um homem à disposição para isso” (verso 21) é um
rito de eliminação que simboliza a retirada de todos os pecados acumulados de
Israel , enviados ao deserto (versos 10 e 22).
O que significa Azazel? Os eruditos têm debatido a origem e o significado do
termo cazāzēl, vez após outra, sem chegarem a um consenso.263 Existem varias
hipóteses principais: (1) O termo cazāzēl é o nome próprio do bode vivo, e que
significa “o bode enviado /e que parte/”. Este fato levou à tradução “bode emissário”
nas versões inglesas /e em português/, o que também ocorre em antigas versões
gregas e latinas.264 Entretanto, o bode vivo está sendo considerado “para Azazel
(Levítico 16:8 e 10), de acordo com o texto hebraico. A simetria na expressão “para
Yahweh” e “para Azazel”, nó verso 10, não parece favorecer esta hipótese. (2) O
termo cazā‟zél é um nome (substantivo) comum, com o significado de “precipício”, o
lugar onde o bode vivo era descartado.265 Este ponto de vista é também sustentado
pela maioria dos exegetas rabínicos266 e favorecido pela versão arábica Saadya, que
assim apresenta o texto: jubl cazaz, ou “monte Azaz”.267 Independente de valor
filológico, tem sido objetado que esta posição “realmente não condiz com o texto... A
tradução „para o precipício‟ /NEB/ não parece suficiente para o verdadeiro
paralelismo, pois este demanda que o segundo nome, tal como o primeiro, seja o
nome de uma pessoa”.268 (3) O termo cazā‟zél é o nome de um demônio,269 que no
livro de Enoque é o amotinado chefe dos anjos rebeldes.270 Alguns têm identificado o
demônio com um dos secirim, “sátiros” (RSV)271 ou “figuras semelhantes a bodes” 272
mencionadas em Levítico 17:7, diante de cuja adoração Israel prostituiu-se; este tem
sido sugerido como o “deus-bode Azazel”.273
Mas do ponto de vista lingüístico274 e contextual existe apoio insuficiente para
esta última sugestão e para a identificação do bode com um dos secirim.275 Ainda
assim, o paralelismo entre “para o Senhor” e “para Azazel” (verso 10) sugere o nome
de um ser sobrenatural, “um ser oposto a Yahweh”.276 De fato, Azazel parece um ser

263
Veja o estudo de Gladson (n° 249, acima) quanto a detalhes.
264
A LXX anota tou apopompaion, “o enviado”, e a Vulgata anota caprum emissarium, “bode
enviado”. Certas sugestões com relação a varias raízes (czl, “levar embora”, ou „zl, “retirar-se, ir
embora”) têm sido empregadas (veja W. Gesenius – E. Kautzsch, Hebrew Grammar /Oxford, 1898/, p.
102; Lyonnet e Sabourin, p. 271).
265
G. R. Driver, “Three Technical Terms in the Pentateuch”, Journal of Semitic Studies 1 (1956): 97-
98.
266
T. H. Gaster, “Azazel”, IDB, 1:326; H. Kaupel, Die Dämonen im Alten Testament (Augsburg,
1930), pp. 82-83.
267
Gaster, p. 326, apresenta o arábico como “penhasco escarpado”, ao passo que outros o traduzem
como “monte Azaz”. Veja Landersdorfer, pp. 22-25.
268
de Vaux, p. 509.
269
Veja T. K. Cheyne, “Azazel”, Encyclopedia Biblica (Londres, 1899), I: 397; E. Konig, Theologie
des Alten Testaments (Stuttgart, 1923), p. 230; E. Jacob, Theology of the Old Testament (Londres,
1958), p. 70; W. Eichrodt, Theology of the Old Testament (Philadelphia, 1967), II: 225; e muitos
outros.
270
Enoque 6:7; 8:1; 9:6; 10:4; 13;1; 54:5; 55:4; 69:2
271
Dentre os primeiros a descobrirem uma relação, está H. Grimme, “Das Alter des Israelitischen
Versöhnungstages”, Archiv für Religions-wissenschaft 14 (1911): 130-42.
272
Este é o significado dos sátiros na mitologia grega, de acordo com M. P. Nielsson, Geschichte der
Griechischen Religion (2ª edição, Munique, 1955), I: 233.
273
Lyonnet e Sabourin, p. 272.
274
Para os problemas em se estabelecer uma etimologia, veja H. Cazelles, Le Levitique (Paris,
1951), p. 80.
275
Com Kaupel, p. 89; Kaufmann, p. 114; e outros.
276
Eichrodt, p. 225.
123

demoníaco.277
No passado e no presente Azazel tem sido chamado “adversário de Deus,
figura correspondente a Satanás”. 278 Tem sido argumentado que nenhum ser
maligno subordinado poderia haver sido posto em antítese a Yahweh, e sim apenas
“o próprio demônio, o líder de todos os anjos caídos, que depois da queda foi
identificado como Satanás”.279 Com base no contexto pode ser sugerido, em vista
das expressões paralelas que envolvem Yahweh e Azazel (Levítico 16:8), que o
último pode ser de fato uma designação do ser maligno, o oponente de Yahweh.
Existe uma questão exegética que agora demanda atenção. A frase “para
Azazel”, na sentença, “enviá-lo ao deserto como bode para Azazel” (Levítico
16:10b), dá a impressão de que o bode vivo era enviado ao deserto onde Azazel
residia, ou onde tem o seu domínio. Pode-se sugerir, contudo, que o significado
exato da preposição hebraica “le” na frase Ia cazá‟zél tem uma função diferente.
Entre os amplos usos da preposição “le” no idioma hebraico, acha-se o significado
“no interesse de “280 ou “em favor de”.281 Utilizando este último significado para a
preposição, e seguindo a ordem das palavras na frase em hebraico, a tradução
literal da mesma poderia ser: “Enviá-lo em favor de Azazel ao deserto”.282 A
expressão prepositiva “em favor de” tem sido considerada como significando “em
lugar de Azazel”, ou seja, como substituto deste.283 Se a pessoa entender a
preposição no verso 10b como significando “em favor de” ou expressão equivalente,
então a antítese entre Yahweh e Azazel se mantêm e o mesmo ocorre com os dois
bodes - um é morto num rito expiatório e um é deixado vivo e levado ao deserto
num rito eliminatório. O sentido tipológico dos dois bodes também encontra sua
posição. O primeiro bode é visto como representando a Cristo,284 e o segundo, o
bode emissário, é visto como tipificando o oponente de Cristo, Satanás. 285 O
contraste entre as funções dos dois bodes é do mais alto significado, e dificilmente
poderia ser exageradamente enfatizado.
Podemos resumir os aspectos-chaves do rito de Azazel: (1) Este rito é o
último dos ritos do dia da expiação que ocorriam depois de haver sido efetuada a
expiação pelo santuário e dos pecados acumulados, ali depositados, (2) O bode vivo
277
Veja o n° 74 acima e H. Bietenhard, “Demon”, Dictionary of NT Theology (Grand Rapids,
Michigan, 1975), 1:451 ; Kaufmann, p. 114.
278
K. Galling, em Religion in Geschichte und Gegenwart (2ª edição, Tübingen, 1928), II: 964; veja
também W. Caldwell, “The Doctrine of Satan in the Old Testament”, The Biblical World (1913): 30;
Kaupel, pp. 91, 123-24; de Vaux, p. 509, fala de “um demônio”. Quanto a alguns comentaristas mais
antigos que identificam Azazel com Satanás, veja Questions on Doctrine (Washington, DC, 1957), pp.
393-94.
279
Keil, p. 398.
280
W. Baumgartner, Hebräisches und Aramaisches Lexikon zum Alten Testament II (Leiden, 1974),
p. 484; cf. W. Holladay, A Concise Hebrew and Aramaic Lexicon of the Old Testament (Grand Rapids,
1971 ), p. 168.
281
F. Brown, S. R. Driver e C. A. Briggs, A Hebrew and English Lexicon of the Old Testament
(Oxford, 1974), p. 515.
282
Hebraico: Iesallah cotô La caza‟zel hammidbārāh. A tradução recebe apoio a partir da frase
paralela no verso 21.
283
N. Wyatt, “Atonement Theology in Ugarit and Israel”, Ugarit-Forschungen 8, edição de K.
Bergerhof, M. Dietrich e O Loretz (Kevelaer/Neukirchen-Vluyn , 1976), p. 429.
284
Por exemplo, M. L. Andreasen, The Sanctuary Service (2ª edição, Washington, DC, 1947), p. 206;
Questions on Doctrine, p. 397; E. Heppenstall, Our High Priest (Washington, DC, 1927), p. 79;
“Leviticus”, IBC 775.
285
Veja o n° 94 a seguir, e O Grande Conflito 426; o bode emissário não tipifica a Cristo - veja
Lyonnet e Sabourin, pp. 273-87; A. Schlatter, Kämpfende Kirche, fase. 22, segundo citado por
Lyonnet e Sabourin, p. 284; F. Rienecker, Lexicon zur Bibel (2ª edição, Wuppertal, 1973), p. 122.
124

não era morto, de modo que não funcionava como sacrifício. (3) O bode vivo não se
engajava em ritos expiatórios, antes servia como veículo no rito de eliminação que
livrara Israel da presença do pecado. (4) A deposição de mãos e a confissão de
pecados sobre a cabeça do bode emissário por parte do sumo sacerdote, eram um
ato de transferência simbólica de todos os pecados de Israel, até ali acumulados no
santuário. (5) A remoção do bode vivo para o deserto, onde este deveria morrer,
indicava a permanente remoção do pecado. (6) O bode vivo é um tipo de Satanás,
ao passo que o primeiro bode é um tipo de Cristo.
Resta-nos ainda procurar reunir as principais correntes de pensamento
relativas ao dia da expiação. Este grande dia, celebrado apenas uma vez ao ano, no
final do ano religioso, era o grande clímax do culto do antigo Israel. Deus instituirá os
vários rituais sacrificais que os israelitas poderiam desempenhar no caso de caírem
em pecado inadvertido ou premeditado. A pessoa culpada de uma ofensa poderia
desta forma fazer uso do caminho prescrito a fim de livrar-se do pecado, da culpa e
da contaminação/impureza. Se o respectivo rito fosse seguido, dependendo do
conteúdo ofertado, poderia o ofensor esperar o perdão da parte de Deus e retomar a
certeza da correta relação de concerto com Yahweh. Deste modo o ofensor
experimentava purificação e remoção do pecado e da culpa, estando em ordem com
a comunidade do concerto de Israel. Através deste processo o pecado e a culpa do
ofensor eram figurativamente transferidos para o santuário.
Os ritos do dia da expiação constituem a segunda e final fase da
limpeza/purificação do santuário em relação a todos os pecados acumulados do
povo. Eles eram a fase de encerramento do processo de expiação. Para Israel este
dia era um dia de julgamento. Representava vida para todos aqueles que, durante o
ano cultual, haviam seguido adequadamente as instruções para a obtenção do
livramento do pecado e da contaminação; representava morte para todos aqueles
que, durante o ano cultual, haviam-se recusado a permitir que os ritos divinamente
indicados lhes trouxessem alívio do pecado e purificação da contaminação (Levítico
23:26-32). A pessoa que não afligisse sua alma no dia da expiação seria “eliminada
de seu povo” (verso 29). Isto implica em que Deus esperava que a comunidade do
concerto se unisse totalmente a Ele.
Os ritos sacrificiais para o sumo sacerdote e sua casa (Levítico 16:6, 11)
faziam expiação pelo santuário (verso 16). A manipulação de sangue do primeiro rito
era diferente da manipulação do serviço diário (regular) porque uma parte do sangue
do novilho devia ser aspergida diante do propiciatório (kapporet) sete vezes (verso
14). Esta manipulação de sangue destinava-se claramente ao propósito de
purificação e santificação do mesmo (verso 19).
Os ritos sacrificiais para a congregação do povo de Israel (Levítico 16:5)
envolviam um bode sacrifical e a manipulação de seu sangue era a mesma que para
o caso do novilho (versos 16 e 19). Estes dois ritos sacrificiais, que purificavam tanto
o santuário quanto o altar, possuíam um sentido de relação entre si, no sentido de
que expiavam o santuário e o altar em relação os filhos de Israel (versos 30 e 33). A
expiação dos sacerdotes e do povo era agora final.
Grande ênfase é atribuída ao fato de que os ritos sacrificiais do dia da
expiação envolviam a totalidade dos pecados confessados da comunidade israelita.
Levítico 16:16 refere-se a “todos os seus pecados”. Esta expressão é reenfatizada
várias vezes em Levítico 16 (veja os versos 16, 30, 34). A mesma linguagem todo
abrangente aparece em conexão com o pecado que o bode vivo carrega para o
deserto (verso 22). Evidentemente esta ênfase destaca que os pecados e ofensas
dos quais se ocupava o dia da expiação, eram os pecados acumulados de todo o
125

Israel, por cuja causa haviam sido apresentados sacrifícios e confissões durante o
ano religioso que precederá o dia da expiação. Qualquer coisa menos que isto, tal
como a limitação a “pecados e impurezas presunçosos”,286 “pecados
desconhecidos”,287 “pecados e impurezas do dia a dia”,288 “principalmente impurezas
rituais”,289 ou simplesmente uma “nova consagração”,290 do santuário, não pode
fazer justiça a repetida ênfase quanto a todos os pecados” em Levítico 16. Qualquer
coisa limitada ou parcial não é fiel aos reclamos do texto.
O rito não-sacrificial do bode vivo usualmente identificado como bode
emissário, ocorre após o término da expiação do santuário em relação aos pecados
do povo. O rito do bode vivo não somente era não-sacrificial, como também não-
expiatório. A frase segundo a qual “o bode emissário será apresentado vivo perante
o Senhor, para fazer expiação por meio dele /lekappēr cālāw/” (verso 10), será
melhor entendida como indicativa de que os ritos expiatórios são desempenhados ao
lado deste, ou em proximidade a ele conforme demonstrado acima.
Portanto, em contraste com os ritos sacrificiais do novilho e do bode - pelos
sacerdotes e pelo povo, respectivamente - o rito do bode vivo é um rito de
eliminação do pecado e seu envio para a região desértica, onde não existe vida.
Através da deposição de mãos e confissão, “todos os pecados” (verso 22)
eram transferidos pelo sumo sacerdote ao bode vivo, que seria enviado “ao deserto
como bode por Azazel” (verso 10).291 O bode vivo de Azazel corresponde
tipologicamente a Satanás, ao passo que o bode sacrifical tipificava a Cristo.
No antigo Israel o dia da expiação, com sua ênfase sobre purificação e
julgamento, sobre o pecado e a expiação, sobre o jejum e o repouso solene, era o
dia supremo do ano, o clímax do processo de expiação em favor de sacerdote e
povo. Apresentava com clareza a seriedade do pecado e os benefícios outorgadores
de vida do redentor plano divino, o qual reunificava Deus e o homem através de
confissão e sacrifícios diários, atingindo o clímax de sua finalidade no processo de
expiação que encerrava o desígnio divino para a salvação. Os rituais dos serviços
diários (regulares) encontravam sua complementação e encerramento nos ritos do
dia da expiação. Ambos eram grandes tipos que prefiguravam a antitípica obra
expiatória de Cristo no real (Hebreus 8:17 ou maior e mais perfeito tabernáculo
(Hebreus 9:11), o santuário celestial .

Traduzido por: Hélio L. Grellmann


Novembro de 1990

286
Milgrom, “Atonement in the OT”, p. 79.
287
Keil, p. 395.
288
Kaufmann, p. 210, n. 17.
289
Ibidem, p. 178.
290
A. Medebielle, “Expiation”, Dictionnaire de Ia Biblia: Suplément (Paris, 1938), IV: 61.
291
Veja o n° 87, acima.
126

10. ASPECTOS EXPIATÓRIOS NA MORTE DE


CRISTO
(Uma Introdução as Evidências do Novo Testamento)

Raoul Dederen
Fonte: Arnold Wallenkampf e Richard Lesher, editors.
The Sanctuary and the Atonement, pp, 292-325.

A palavra expiação aparece apenas uma vez na KJV (Romanos 5:11),292 mas na
RSV o original deste verso é traduzido de modo bastante adequado nos seguintes
termos: “Através de quem recebemos agora a nossa reconciliação”. Vemos assim que a
palavra não é propriamente um termo do NT, mas a idéia de que a morte de Cristo lidou
com a alienação humana de Deus, de tal forma que Sua morte (e ressurreição)
possibilitaram uma restauração geral da harmonia, possivelmente represente um dos
temas centrais do NT.293
A centralidade da morte de Jesus é bem ilustrada em face de sua proeminência
no “evangelho cristão”. Este evangelho, que Paulo não apenas recebeu como também
proclamou, começa - no dizer do apóstolo - pela declaração de que “Cristo morreu pelos
nossos pecados, segundo as Escrituras” (I Coríntios 15:3).
Seria difícil exagerar a importância da cruz para os escritores do NT. É ela o fato
notório do qual depende a salvação de todos os que crêem. Conceitos vitais, a exemplo
de perdão, salvação, redenção, justificação, reconciliação e o estado de “estar em
Cristo”, indicam algo da riqueza do pensamento neotestamentário no tocante à morte de
Cristo.
O seguinte ensaio - breve como é, pouco mais que “programático”, segundo
diriam os escritores europeus - representa uma tentativa de investigação no tocante aos
aspectos expiatórios da morte de Jesus Cristo.
O ponto de partida desta investigação é o ensino cristão primitivo atinente ao
assunto. Para este plano dependerei do livro de Atos e das epístolas do NT,
especialmente as cartas paulinas, já que dentre todos os escritores do NT, é Paulo quem
mais deliberada e continuamente reflete sobre a morte de Cristo.
Vira depois um exame da vida e dos ensinos do próprio Jesus, onde tentaremos
descobrir indicações de Seu pensamento a este respeito. Para esta análise, dependerei
do conteúdo dos Evangelhos.
Será então necessário considerar se – e, caso positivo, em que extensão e
sentido - algum aspecto expiatório/reconciliatório pode ser atribuído aos sofrimentos de
Cristo durante Sua vida, em distinção aos sofrimentos vividos na cruz. Para esta informa-
ção, farei uso de muitos escritos do NT.
Depois de uma pesquisa quanto as grandes teorias da expiação que
prevaleceram na igreja crista e das tendências que se desenvolvem na pesquisa
cristológica contemporânea, arriscar-me-ei a sugerir, numa seção final, algumas

292
O texto diz: “E não apenas isto, mas também nos regozijamos em Deus através de nosso Senhor
Jesus Cristo, por meio de quem recebemos agora a expiação.” Na tradição teológica cristã, a obra de
Cristo é “a expiação”. Aqui o termo deve ser entendido como significando o “estar em comum acordo
com”, isto é, estar reconciliado com alguém.
293
Embora este ensaio se limite a morte de Jesus Cristo, deveria a pessoa conservar em mente que
em o NT a morte e a ressurreição de Jesus são proclamadas como pertencendo juntamente ao
próprio coração do evangelho. É somente a luz da Páscoa que a cruz pode ser compreendida como
um evento salvífico.
127

reflexões quanto à importância de uns poucos aspectos da morte de Cristo, os quais me


impressionam como elementos indispensáveis de uma doutrina da expiação centralizada
na Bíblia.294

10.1. O TESTEMUNHO DOS APÓSTOLOS

A morte de Cristo representou um choque para os Seus mais íntimos seguidores.


Em palavras memoráveis que provam este fato, Helmut Thielicke nos faz lembrar que
Jesus não sofreu a morte de um mártir, tal como o radiante Estevão sob as pedras, e
nem como o nobre Sócrates, em “desdenhosa e superior resignação”. Em vez disso,
Sua morte ocorreu sob um “desajudado e desesperado clamor, no mais terrível
isolamento”.295 Os discípulos achavam-se confusos, atemorizados e desnorteados. A
reação deles à crucifixão retratava sua perplexidade e falta de compreensão. As expec-
tativas messiânicas judaicas da época não previam um Messias sofredor e morto,296
especialmente Alguém executado entre os criminosos pelas autoridades romanas, sob a
alegação de insurreição política.297
Poucos anos mais tarde, contudo, os mesmos discípulos encheram o Império
Romano com a mensagem de redenção, na qual a salvação se encontrava vitalmente
vinculada com a cruz.298 O pecador é redimido e reconciliado com Deus pela morte de
Cristo sobre a cruz. Para além e por dentro do histórico evento, os discípulos haviam
descoberto na morte de Cristo um acontecimento de significado teológico. A luz da
ressurreição os cristãos primitivos haviam sido capazes de reestudar o VT ao lado da
vida e ministério de Jesus, percebendo então especial significado em Sua morte.
Aprendemos do Evangelho de Lucas que antes de Sua ascensão Jesus abriu a
mente dos discípulos para a compreensão das Escrituras, no sentido de que o Cristo
deveria sofrer, morrer e ressuscitar dentre os mortos no terceiro dia, e que “em Seu
nome se pregasse arrependimento para remissão de pecados, a todas as nações”
(Lucas 24:47). No começo, portanto, os apóstolos, em suas apresentações, deram
ênfase à morte e ressurreição de Cristo. Estes foram demonstrados como eventos
históricos ordenados por Deus, e com os quais a salvação se vinculava (Atos 2:22-33,
36, 38).299
Existe pouca teologia nestes discursos primitivos. Com respeito à cruz, a
preocupação dos apóstolos - segundo refletida rio livro de Atos - a princípio não parece
ser teológica - raramente existe uma referência ao papel especial da morte de Cristo. Em
vez disso, procuram eles conscientizar seus ouvintes do crime que estes praticaram na
crucifixão do “Santo e Justo” (Atos 3:14).
294
Uma vez que os pontos de vista de Ellen White são considerados em outro ensaio, este limita-se
a uma investigação dos dados bíblicos.
295
Helmut Thielicke, The Silence of God (Grand Rapids, 1962), pp. 67-69.
296
A noção de um Messias sofredor era, de modo geral, estranha aos judeus nos dias de Jesus. R.
Schnackenburg observa que a opinião contrária de Jeremias tem encontrado muito pouca aceitação
entre os exegetas. Cf. “Christologie des Neuen Testamentes”, em Mysterium Salutis 3/1, edição de J.
Feiner e M. Lohrer (Einsiedeln, 1970), p. 240.
297
R. Bultmann pretende que a má compreensão da atividade de Jesus conduziu à Sua crucifixão
pelos romanos, na qualidade de prisioneiro político. Cf. “The Primitive Christian Kerygma and the
Historical Jesus”, em The Historical Jesus and the Kerygmatic Christ, edição de C. E. Braaten e R. A.
Harrisville (Nashville, 1964), p. 24. Ernst Käsemann recusa-se a caracterizar a morte de Cristo como
resultado de incompreensão política, antes a vê como decorrendo da lógica interna de sua própria
atividade. Cf. New Testament Questions Today (Philadelphia, 1969), pp. 50 e seguintes.
298
Veja, por exemplo, Romanos 3:21-29; Gálatas 3:8, 13-14, 21, 26-28; Hebreus 2:14-15; I Pedro
1:18-19; I João 4:9-10; Apocalipse 5:9.
299
Cf. Atos 3:13-17; 4:10-12.
128

Ainda assim, já se percebe a convicção de que, em algum sentido, conforme


Paulo diria mais tarde, “Cristo morreu por nossos pecados” (T Coríntios 15:3); que Ele
havia sido exaltado à destra de Deus a fim de operar a salvação; e que somente através
da fé em Seu nome (Atos 4:12) poder-se-ia obter o perdão dos pecados (Atos 2:39;
3:19), receber-se o dom do Espírito (Atos 2:38) e chegarem “os tempos para a
restauração de todas as cousas, de que Deus falou por boca dos Seus santos profetas
desde a antiguidade” (Atos 3:19-21).
Em breve, através de mais profunda reflexão e pela crescente iluminação do
Espírito, uma interpretação mais definida do relacionamento entre a morte de Cristo e a
salvação humana marcava o evangelho cristão. A morte de Jesus tem sido vista, em
diferentes ocasiões e por diferentes autores, como resgate, vitória, sacrifício, penalidade
e reconciliação.300 Têm eles compreendido isto a luz da linguagem do VT, pois utilizaram
a mesma a fim de expressar o significado da morte de Cristo. Eles a esboçaram através
de rica variedade de termos e analogias; ainda assim, nenhum destes esforços jamais
captou completamente o assunto.

10.1.1. A Categoria de “Sacrifício”

1. Oferta e sacrifício. Algumas passagens do NT interpretam a morte de


Cristo como um sacrifício, associando-a com os rituais e conceitos dos sacrifícios do VT.
Deste modo, muito cedo Paulo descreve a Jesus como o “cordeiro pascal” (RSV)
ofertado sobre a cruz, e esta funcionando como altar (I Coríntios 5:7). Assim como a
Páscoa comemorava a libertação de Israel da escravidão egípcia, Jesus, por Seu
sacrifício, livrou o novo Israel da escravidão do pecado e da morte. Efetivamente Jesus
nos amou “e Se entregou a Si mesmo por nós, como oferta e sacrifício a Deus em
aroma suave” (Efésios 5:2). Pedro expressa um pensamento similar quando lembra a
seus leitores que eles foram redimidos não “mediante cousas corruptíveis, como prata
ou ouro... mas pelo precioso sangue, como de cordeiro sem defeito e sem mácula, o
sangue de Cristo” (I Pedro 1:18 e 19).
Poucos livros do NT são tão explícitos quanto a este ponto do sacrifício, quanto o
é a epístola aos Hebreus. Idéias sacrificiais permeiam cada segmento da carta, cujo
tema central é precisamente o conceito de que Cristo, oferecendo-Se a Si mesmo uma
vez por todas como o perfeito sacrifício pelo pecado, efetuou aquilo que os sacrifícios do
VT eram incapazes de realizar e assegurou a eterna redenção (cf. Hebreus 9:26; 10:10,
14).301 Ele ofereceu “para sempre, um único sacrifício pelos pecados (Hebreus 10:12).
2. Cristo realizando “expiação-propiciação”. Uma das mais claras
declarações do NT quanto a uma interpretação sacrificial da morte de Cristo, é a
afirmativa de Paulo de que os crentes são justificados pela graça de Deus, livremente,
por meio da redenção que está em Cristo Jesus, “a quem Deus propôs, no Seu sangue,
como propiciação, mediante a fé” (Romanos 3:25). A menção de expiação
(hilastēríon)302 e sangue (haima)303 na mesma passagem torna inconfundível esta
300
Veja A. W. Argyle, “The New Testament Interpretation of the Death of Our Lord”, The Expository
Times 60 (1949): 253-256.
301
Em Hebreus o Cristo crucificado é muitas vezes descrito como sacerdote, tanto quanto como
sacrifício pelos pecados. Hebreus 2:17; 3:1-2; 4:14-16; 5:5-6; 6:21; 7:26; 8:1-2; 9:11; 10:21.
302
A AV apresenta: “propiciação”. Quanto ao significado e uso de termos pertencentes a este grupo
de palavras, cf. E. Büchsel e J. Herrmann, “hileós, hilaskomai, hilasmos, hilastērion”, TDNT, III:300-
323.
303
Tentativas têm sido feitas a fim de demonstrar que a palavra “sangue”, nas Escrituras, indica
essencialmente vida, que o significado deve antes ser de vida, em vez de morte. (Veja, por exemplo,
Henry C. Trumbull, The Blood Covenant /New York, 1885/; Frederick C, J. Hicks, The Fullness of
129

declaração sacrificial. Contudo, deve à morte sacrificial de Cristo ser compreendida


como “expiação” ou como “propiciação”, isto é, um sacrifício destinado a aplacar a ira de
Deus e a modificar Sua atitude mental com respeito a nós? Conforme cuidadosos
estudos demonstraram, não existe o conceito de aplacar um Deus vingativo, arbitrário e
caprichoso - conceito este tão proeminente na literatura grega304 - por detrás do uso
neotestamentário de hilastērion e hilasmos, e sim o conceito de cancelamento da culpa e
purificação do pecador, diante de seu pecado. Trata-se primariamente de expiação, de
remoção da culpa incorrida.
Facilmente concordo, pois, que o sentido usual de crua propiciação esta ausente
do ponto de vista bíblico de Deus. Ainda assim me pergunto se as tentativas de C. H.
Dodd e de outros autores modernos, no sentido de eliminar qualquer idéia de ira divina
das Escrituras,305 é um procedimento justificável. A Bíblia utiliza a propiciação num
sentido diferente do uso pagão, pois ela não fala de aplacar um Deus irado. Levando em
consideração a terminologia bíblica tanto no Velho quanto do Novo Testamentos, assim
como o contexto mais imediato da declaração de Romanos 3, não existe boa razão para
negar o uso da palavra propiciação, compreendida em seu sentido bíblico de satisfazer
as demandas adequadas de um Deus justo no julgamento do pecado.306 Estas
demandas foram satisfeitas pelo Filho de Deus na cruz.
É significativo que em Romanos 3:25 Deus seja mencionado como o mesmo que
estabeleceu a Cristo como hilastērion, a expiação ou “sacrifício expiatório”. João lança
luz adicional sobre este ponto de vista que vincula expiação-propiciação com o amor de
Deus, ao declarar: “Nisto consiste o amor, não em que nós tenhamos amado a Deus,
mas em que Ele nos amou, e enviou o Seu Filho como propiciação pelos nossos
pecados” (“I João 4:10).307
Foi Deus, devido a Seu amor por nós, quem enviou Seu Filho para servir como
expiação-propiciação.308 Esta solução, explica Paulo, foi “para manifestar a Sua justiça,
por ter Deus, na Sua tolerância, deixado impunes os pecados anteriormente cometidos;
tendo em vista a manifestação da Sua justiça no tempo presente, para Ele mesmo ser
justo e o justificador daquele que tem fé em Jesus” (Romanos 3:25 e 26).
A morte de Cristo foi: não apenas um ato de amor, mas também de justiça, uma
demonstração de que Deus efetivamente era justo ao tratar o pecado com o juízo que
este demandava. À parte da morte de Cristo, a única manifestação da divina justiça é a

Sacrifice /London, 1930/; Vincent Taylor, Jesus and His Sacrifice /London, 1948/. Mas uma pesquisa
das evidências do NT mostra que os hebreus entendiam habitualmente “sangue” no sentido de morte
violenta, significando o termo essencialmente a vida deposta na morte (Cf. Alan M. Stibbs, The
Meaning of the Word “Blood” in Scripture /London, 1947); Leon Morris, The Apostolic Preaching of the
Cross (Grand Rapids, 1956, cap, III): Philip Edgcumbe Hughes, “The Blood of Jesus and His
Heavenly Priesthood in Hebrews”, Bibliotheca Sacra 130 (1973): 99-109.
304
Poucos fizeram tanto a fim de demonstrar, conforme o fez C. H. Dodd, tanto o fato quanto o
significado desta diferença. Veja sua declaração clássica em The Bible and the Greeks (London,
1935), pp. 82-95. Veja também o artigo de Dodd em JTS 32 (1931): 352-360, onde é examinada cada
ocorrência de hilaskomai na LXX. Dodd conclui que o significado bíblico do Verbo é “executar um ato
pelo qual a culpa ou a contaminação são removidas”, e que, desta forma, “fazer expiação” seria uma
tradução melhor do que “fazer propiciação”.
305
Veja, por exemplo, C. H. Dodd, Romans (London, 1932), pp. 20 e seguintes.
306
Cf. Roger Nicole, “C. H. Dodd and the Doctrine of Propitiation”, Westminster Theological Journal
17 (1955): 117-157; David Hill, Greek Words and Hebrew Meaning (Edinburg, 1967), pp. 23-48;
Morris, pp. 125-185.
307
Ênfase, suprida. Cf. 2:2.
308
Entre os pagãos, imaginava-se a propiciação como uma atividade pela qual o adorador se
tornava apto, por si mesmo, a prover aquilo que induziria a uma mudança da mente da Divindade. Ele
simplesmente subornava seu deus para que este se tornasse favorável a ele. Nas Escrituras a
expiação-propiciação é imaginada como a produção, ou demonstração, do amor de Deus.
130

condenação do pecador à morte. Em virtude da morte de Cristo, a justiça divina e a


divina misericórdia acham-se ambas em perfeita realização. Por Sua justiça Deus julgou
o pecado e lida com ele.
Ao mesmo tempo, por Sua misericórdia Ele absolveu o pecador de toda culpa e o
redimiu da morte.309 Tudo isto deve-se a morte sacrifical de Cristo. De fato, “o aspecto
sacrificial da Expiação é uma das idéias mais vividamente atestadas nos ensinos do
Novo Testamento”.310
3. Representante e substituto. Inteiramente em harmonia com o pensamento
de Cristo como sacrifício, é a idéia do caráter substitutivo de Sua morte sobre a cruz. Ao
submeter-se ao julgamento divino do pecado, Jesus livrou-me desta exata experiência.
Ao sofrer a morte - penalidade do pecado - Ele me livra desta mesma morte. Foi por mim
e em meu lugar que Cristo voluntariamente Se colocou sob a condenação do pecado.
Sua morte foi singular. De todos os homens, somente Jesus “não conheceu pecado” (II
Coríntios 5:21). Sua morte não foi o resultado de qualquer pecado ou culpa dEle próprio
(I Pedro 2:22). Foi sofrida em favor de outros, os quais eram culpados e a mereciam.
Morte, o salário do pecado (Romanos 6:23), caiu sobre Ele, o incontaminado
representante (dikaios huper adikōn, I Pedro 3:18), de modo a poder Ele trazer-nos a
Deus. Em virtude de Sua imerecida morte, os pecadores penitentes são libertados da
sentença de morte e da experiência da ira de Deus, que evidentemente eles
mereciam.311
Além de ser representativa, a expiação efetuada por Cristo é também substitutiva.
Cristo fez algo pela salvação de pecadores, agindo em favor dos mesmos na qualidade
de seu representante. Como Cabeça da nova humanidade, o segundo Adão, readquiriu
Ele para a humanidade aquilo que havia sido posto a perder pelo primeiro Adão
(Romanos 5:18 e 19).312 Obteve a vitória como nosso representante, de modo que
participamos de Sua vitória, pela fé.313 Mas o Seu sacrifício também deve ser
considerado como substitutivo. Vincent Taylor, ao lado de outros eruditos modernos,
rejeita a palavra “substitutiva” como descritiva da morte de Jesus. Pensa ele que admitir
um elemento substitutivo é o mesmo que abrir caminho para todo tipo de interpretações

309
Como demonstração do amor divino, a morte de Cristo designa-se a evocar uma resposta de
amor no coração do homem, conforme consideraremos posteriormente neste estudo.
310
Vincent Taylor, The Atonement in New Testament Teaching (London, 1946), p. 177.
311
Embora suas obras ocultas já estejam presentes e ativas no mundo, a ira de Deus, nas
Escrituras, é essencialmente a “ira vindoura” (I Tessalonicenses 1:10), e inteiramente escatológica (G.
Stählin, TDNT, V:424f). Em sua epístola aos Romanos, Paulo uma vez mais nos oferece o mais
profundo estudo sobre o assunto. A ira de Deus é descrita como a inevitável conseqüência da justiça
de Deus, revelada contra toda impiedade e injustiça humana (Romanos 1:18). Em vista da
universalidade do pecado, toda a raça humana é objeto da ira de Deus (Romanos 3:9-18), tanto os
gentios que já não têm excusa (Romanos 1:18-32), quanto os judeus (Romanos 2). A humanidade
não redimida é “por natureza filha da ira” (Efésios 2:3; cf. 5:6). Cada ser humano, através da dureza
de seu coração, faz com que se estabeleça a ira contra si próprio, “para o dia da ira e da revelação do
justo juízo de Deus” (Romanos 2:5-8). Em Paulo, tanto quanto no NT em geral, a ira de Deus não é
algum tipo de impessoal e “inevitável processo de causa e efeito num universo moral” (C. H. Dodd, p.
23). Pode a pessoa racionalizar o conceito do modo como quiser, mas seria um equívoco imaginar
que os autores do NT assim procederam. A ira de Deus não é o egoísmo, a paixão irracional, a falta
de domínio próprio. É um zelo ardente pelo que é correto, acoplado à divina hostilidade contra o
pecado. Jesus nos livra do que é merecedora a nossa rebelião contra Deus (I Tessalonicenses 1:10).
Veja A. Richardson, An Introduction to the Theology of the New Testament (New York, 1958), pp. 75-
76.
312
Cf. Romanos 5:12-21; I Coríntios 15:21-22, 45-50.
313
Cristo, o poderoso guerreiro, venceu a batalha decisiva contra os poderes do mal que mantinham
o homem em cativeiro: pecado, morte, o demônio e a lei (Romanos 6:16; I Coríntios 15:20, 54-57; I
Coríntios 2:8; Colossenses 2:14-15; Hebreus 2:14-15; Gálatas 3:13; Romanos 5:9).
131

cruamente transacionais e para falsas pressuposições comumente associadas a


algumas formas da teoria da substituição.314
Embora rejeitando estas falsas suposições, falaremos ainda de um elemento
substitutivo na morte de Jesus Cristo.315 Ele não apenas nos incorporou, como ainda Se
fez nosso substituto. E básico no pensamento paulino o fato de que Cristo morreu “pelo”
pecado, e que Ele foi crucificado “pelos” homens. Assim, por exemplo, Cristo “foi
entregue por causa das nossas transgressões” (Romanos 4:25), “morreu pelos nossos
pecados” (I Coríntios 15:3) e “Se entregou a Si mesmo pelos nossos pecados” (Galatas
1:4).316 Dever-se-ia observar, entretanto, que em tais passagens Paulo emprega
uniformemente a preposição huper (“em favor de”,”para beneficio de”), e não anti, que
mais especificamente expressa o pensamento de substituição. A única exceção de
Paulo é I Timóteo 2:5, onde o apóstolo lembra aos leitores que Cristo “a Si mesmo Se
deu em resgate por todos” (antilutron huper pantōn).317
Mesmo a escolha que Paulo faz das preposições, não exclui a dimensão
substitutiva. Sabemos hoje que no grego helenístico a preposição huper era muitas
vezes usada em lugar de anti.318 Observe, por exemplo, a declaração de Paulo em II
Coríntios 5;14 - “Pois o amor de Cristo nos constrange, julgando nós isto: um morreu por
todos, logo todos morreram” (II Coríntios 5:14). Aqui Paulo faz uso de huper, isto é, “em
favor de”. Ele poderia muito bem haver desejado dizer que Cristo morreu em nosso favor
sem (no que à preposição diz respeito) referir-se à maneira em que a morte de Cristo
nos deveria ser vantajosa. Não podemos deixar de perceber, contudo, a inferência que
ele imediatamente estabelece: “Um morreu por todos, logo todos morreram”. Em outras
palavras, a morte de Cristo é a morte deles - é tão valida quanto a morte deles, de todos.
É a morte deles que Cristo morreu. É por isso e desta forma que a Sua morte representa
uma vantagem para eles. Se não fosse este o caso, de que modo poderia Paulo haver
traçado da morte de Cristo a inferência imediata - “logo todos morreram”? Não há
necessidade de se promover querelas em torno das preposições huper e anti. A morte
de Cristo nos beneficia; o ponto de vista paulino é claro a este respeito. Dificilmente
poderia haver qualquer coerência entre as premissas do apóstolo e suas conclusões, a
não ser a partir da suposição de que a morte de Cristo foi realmente a nossa morte, que
Ele assumiu sobre Si mesmo.319
A passagem que acabamos de examinar, a qual afirma que Cristo “morreu por
todos”, assim como outras, a exemplo de Gálatas 3:13 - onde é dito que Cristo “nos
resgatou da maldição da lei, fazendo-Se Ele próprio maldição em nosso lugar”, exigem a
idéia de substituição. “Somente a violência ao contexto pode passar isto por alto”.320
314
Mais particularmente, que o Pai e o Filho estão divididos na expiação, é que a expiação opera
automaticamente sem levar em conta a união de fé com Cristo, a qual resulta em novidade de vida.
Veja Vincent Taylor, The Atonement in New Testament Teaching, pp. 174-176.
315
A despeito de seu veemente repúdio da idéia de substituição (The Atonement in New Testament
Teaching, pp. 74, 125-126, 268), Taylor, de forma interessante, salienta que o ensino de Paulo “tem a
aparência de substituição”, e que “o ensino de Paulo está muito próximo da substituição”, pp. 124,
288.
316
Cf. Romanos 5:4; Romanos 5:8; I Tessalonicenses 5:10; II Coríntios 5:14.
317
Literalmente, “um resgate substitutivo em favor de todos.” Observe o uso de ambas as
preposições, huper e anti.
318
Veja Henry G. Liddell e Robert Scott, A Greek-English Lexicon, edição revista, (Oxford, 1940),
quanto ao uso cIássico de ambas as preposições, e James H. Moulton e George Milligan, The
Vocabulary of the Greek New Testament (London, 1952), quanto a Koine.
319
James Denney, The Death of Christ, Its Place and Interpretation in the New Testament (London,
1902), pp. 140-143; Studies in Theology (London, 1904), pp. 109-110.
320
A. T. Robertson, A Grammar of the Greek New Testament in the Light of Historical Research (3ª
edição, New York, 1910). p. 613. Veja também C. F. D. Moule, An Idiom-Book of New Testament
132

10.1.2. Resgate-Redenção

1. Pagando um preço a fim de “redimir”. Intimamente associado à idéia do


sacrifício expiatório de Cristo, acha-se o conceito de resgate-redenção. Com seus
elementos subjacentes de “libertação de um jugo”, “liberdade de cativeiro ou escravidão”,
“comprar de volta algo perdido ou vendido”, “resgate”, o conceito não é facilmente
entendido pela mente moderna. Ele provém do mundo da lei, e é expresso em grego
pelo grupo de palavras lutron, apolutrōsis (resgate, redenção) e agorazō, exagorazo
(comprar).
Tanto no grego clássico quanto helenístico, o grupo de palavras lutron é usado
em relação ao preço pago para redimir alguma coisa que é dada em penhor, ou ao
dinheiro pago para resgatar um prisioneiro de guerra, ou do dinheiro pago no resgate de
um escravo para a liberdade.321 O termo conserva o mesmo sentido no VT, em sua
versão grega.
Consideremos Tito 2:14, onde Paulo usa o verbo “remir” ou “resgatar”. Nesse
texto Cristo é citado como Aquele que “a Si mesmo Se deu por nós, a fim de remir-nos
de toda iniqüidade.
Perceba que a declaração de. Paulo inclui uma menção específica ao preço do
resgate: Cristo deu-Se a Si próprio, Pedro é ainda mais claro. O preço de nossa
redenção, segundo ele a apresenta, e o “precioso sangue, como de cordeiro sem defeito
e sem mácula o sangue de Cristo”, em contraste com pagamentos em valores materiais,
tais como “prata ou ouro” (I Pedro 2:18-19). A referência é a um processo normal de
redenção.322
Explícito, uma vez mais, é o pronunciamento de Paulo em I Timóteo 2:6. Cristo é
aí descrito como aquele que “a Si mesmo Se deu em resgate /antilutron/ por /huper/
todos”. Uma vez mais é indicado o preço deste resgate, ou seja, Ele próprio. O uso de
anti (em lugar de) ao lado de huper (em favor de) sugere substituição. A morte de Cristo
é apresentada como um resgate substitutivo.
Em várias outras passagens Paulo retrata nossa redenção mediante o uso da
palavra apolutrōsis, naquele que parece ser o seu significado natural, qual seja,
libertação através de resgate. Duas vezes o apóstolo expressa definidamente o preço
pago. Diz ele que somos justificados pela graça de Deus como um dom, “mediante a
redenção /apolutrōsis/ que há em Cristo Jesus, a quem Deus propôs, no Seu sangue,
como propiciação” (Romanos 3:24-25). Escrevendo aos Efésios, enfatiza ele que nEle
“temos a redenção /apolutrōsis/, pelo Seu sangue, a remissão dos pecados” (Efésios
1:7).323 O sangue de Cristo, ou seja, a Sua morte, foi o preço pago pela nossa redenção.
Intimamente associada a esta afirmação, encontra-se a declaração de Hebreus 9:15, de
que, havendo ocorrido “a morte para remissão das transgressões que havia sob a
primeira aliança, recebam /aqueles que são chamados/ a promessa da eterna herança”.
A morte de Cristo redime. A redenção aqui citada é resultado da morte ocorrida. De fato,

Greek (Cambridge, 1953), p. 64.


321
F. Büchsel, TDNT, IV;340.
322
Leon Morris, p, 35.
323
A luz de declarações tão explicitas, não é fácil aceitar o julgamento de Büchsel, de que o
significado etimológico apolutrōsis (isto é, liberação através de resgate) “cai por terra no uso bíblico”
(TDNT, IV: 355); a declaração além original diz: “amortizado‟‟ (Theoloqisches Wörterbuch zum Neuen
Testament /Stuttgart, 1933/, IV:358. Pode ele haver ignorado a evidência bíblica ao escrever que “em
parte alguma de todas estas passagens /isto é, aquelas em que Paulo usa a palavra apolutrōsis/são
mencionados a morte ou o sangue de Jesus” (Ibidem, p. 357). Esta sentença não é traduzida na
edição inglesa do dicionário.
133

a morte de Cristo ocorreu com o fito de operar redenção. É o preço pago para livrar-nos
do pecado.
Existem outras passagens em que, no NT, ocorre o termo apolutrōsis.324 Embora
prossiga sendo impossível determinar com certeza, em cada caso, em que extensão
Paulo possa haver decidido apartar-se do significado original estrito do termo a fim de
optar pelo contexto mais amplo de sua teologia da salvação, o conceito de redenção por
resgate não, desempenha parte menos importante que o da morte sacrificial de Cristo.
Além disso, onde esta libertação está relacionada especificamente com a morte de
Cristo, a intenção de Paulo é claramente a de proclamar tal libertação no sentido original
prolífico de pagamento em dinheiro.325 A ênfase, portanto, repousa definitivamente sobre
o custo da redenção do pecador.326
2. Sendo “comprados por preço”. A redenção e sua metáfora quanto ao
pagamento de um valor é também encontrada em outras passagens em que o termo
grego agorazō, ordinariamente usado no sentido de “comprar”, é empregado. “Não sois
de vós mesmos; porque fostes comprados por preço”, explica Paulo em I Coríntios 6:19
e 20. “Por preço fostes comprados; não vos torneis escravos de homens” (I Coríntios
7:23).
De fato, o preço da compra não é declarado. Ainda assim, o assunto parece
suficientemente claro à mente de Paulo, pois em ambas as ocasiões se faz referência a
um “preço” (timē) antes pago. O que mais poderia ser este preço senão a morte de
Cristo? Em o Novo Testamento não se fala de outro preço ou pagamento (cf. I Pedro
1:19). Efetivamente, nas palavras de despedida de Paulo dirigidas aos irmãos Éfeso, em
Mileto, o apóstolo adverte: “Atendei por vós e por todo o rebanho... para pastoreardes a
igreja de Deus, a qual Ele comprou com o Seu próprio sangue” (Atos 20:28). Temos aqui
uma concepção profundamente paulina, ou seja, que os redimidos são escravos,
comprados por preço. A idéia cristã de redenção não é a de que os crentes são
comprados para uma liberdade centralizada em torno do eu. Em vez disso, havendo sido
comprados por Deus a um custo terrível, eles se tornam Seus servos, a fim de
empreender a Sua vontade.
O mesmo ponto de vista brota ainda da carta de Paulo aos Gálatas, onde a forma
composta exagorazo327 é empregada: “Cristo nos resgatou da maldição da lei, fazendo-
Se ele próprio maldição em nosso lugar, porque está escrito: „Maldito todo aquele que for
pendurado em madeiro” (Gálatas 3:13). O pensamento é que uma maldição repousa
sobre todo aquele que não cumpre a lei (Deuteronômio 27:26). Cristo morreu de uma tal
forma a poder levar sobre Si - ou tornar-Se - a maldição. Assim, nós, que deveríamos ser
amaldiçoados, agora estamos em liberdade, redimidos (comprados por preço) da
maldição. Este pensamento envolve uma vez mais a idéia de substituição. Se eu,
estando sob maldição, acho-me agora livre pelo fato de haver Cristo me redimido, então
o ato de Cristo é do tipo substitutivo. H. Wheeler Robinson reconhece corretamente
nesta passagem “uma das mais claras indicações de que S. Paulo entendia a morte de
Cristo tanto em sentido substitutivo quanto em sentido penal”.328
324
Em duas ocasiões (Efésios 1:14; Colossenses 1:14) não há referência ao preço pago. Em três
ocasiões se faz referência a uma redenção futuro, de significado escatológico (Lucas 21:28; Romanos
8; 23; Efésios 4 :30). Uma vez a referência é geral (I Coríntios 1:30), e uma passagem final refere-se
a uma redenção não-cristã (Hebreus 11:35).
325
Otto Procksch - em contraste com Büchsel - no mesmo artigo de TDNT, simplesmente assume
isto (cf. IV: 335). O mesmo ocorre com W. F. Arndt e F. W. Gingrich, A Greek-English Lexicon of the
New Testament and Other Early Christian Literature (Chicago, 1957), p. 95.
326
W. Sanday e A. C. Headlam, The Epistle to the Romans (Edinburgh, 1895), p. 86.
327
Cf. Büchsel, “agorazō, exagorazō”, TDNT, I:124-128.
328
Redemption and Revelation (London, 1942), p. 231; Leon Morris, p. 55.
134

3. Solene realidade. Não importa quanto tenhamos de precaver-nos contra a


grosseira noção de “compra”, “preço”, ou “pagamento”, como se a salvação realizada por
Cristo fosse uma espécie de transação comercial,329 isto não altera o fato de que o
conceito bíblico de redenção e substituição repousa sobre a solene realidade da
maldição da lei. Não importa quão inadequadas sejam as palavras humanas, um caso
legal existe entre Deus e o homem; uma maldição, que não é apenas alguma força
impessoal e cega que parte de Deus, e sim o cumprimento do divino juízo sobre o
pecado. Neste caso, Cristo aparece “como Mediador e oferece a Si próprio como resgate
por todos (I Timóteo 2:6). Aqui, uma vez mais, a grande pressuposição é de que o
próprio Deus enviou e ofereceu Seu Filho com esta finalidade (Gálatas 4:4-5). Na
qualidade de Enviado por Deus, assume Ele a maldição sobre Si mesmo e morre sobre
a cruz, em lugar dos homens. Conforme observado antes em relação ao sacrifício
expiatório de Cristo, a justiça é vitoriosa em amor, e o amor é vitorioso na justiça. Isto
não deve ser considerado como conseqüência de um esquema de salvação severo e
judicialmente concebido por um apóstolo - ou por vários apóstolos - mas como a
revelação apostólica - sob a inspiração do Espírito - do significado da morte e da vida de
Jesus Cristo.330

10.1.3. O Conceito de Reconciliação

1. Companheirismo rompido. A terminologia da reconciliação (katallassē,


katalassō) ocorre de modo surpreendentemente pouco freqüente em o NT, no tocante
a cruz, e mesmo assim, só nas epistolas paulinas. Isto não significa que o conceito não é
importante. Embora sejam poucas as passagens em que ocorre a – palavra são elas
grandemente significativas (Romanos 5:10-11; II Coríntios; 5:18-20).331 Para Vincent
Taylor, na verdade, “a melhor palavra do Novo Testamento para descrever o propósito
da Expiação, é a Reconciliação”.332
Por definição, reconciliação sugere desavença, alienação. Faz-se ela necessária
entre duas partes quando ocorreu algo que rompeu a amizade, levando uma ou ambas
as partes a se tornar hostil para com a outra. Do ponto de vista bíblico, existe uma
hostilidade fundamental entre o homem não-regenerado e seu Criador. Foi o pecado que
ocasionou isto. O pecado quebrou o companheirismo e criou uma barreira entre o
homem e Deus,333 para nem se mencionar o que ocorreu entre o homem e o homem. A
morte de Cristo é o fundamento sobre o qual - ou o caminho pelo qual - a reconciliação

329
Vez por outra, por exemplo, os cristãos têm levantado a questão quanto a “para quem” é pago o
preço. É significativo que o NT não diz de quem fomos comprados e nem a quem é pago o preço.
Ainda assim, ao passo que não se deve pensar numa transação comercial entre Cristo e o Pai, não
deveria ser menor o cuidado em ver que o caráter objetivo daquilo que em o NT é identificado como
“redimir”, não seja comprometido.
330
Herman Ridderbos, Paul - An Outline of His Theology (Grand Rapids, 1975), pp. 196-197.
331
Katallagē (reconciliação) e katallassō (reconciliar) são ambos encontrados nestas duas
passagens. Reconciliação através da morte de Cristo recebe alusão através do uso do verbo
apokatallasso em Efésios 2:16 e Colossenses 1:20-21. Outras palavras deste mesmo grupo podem
ser encontradas em o NT, mas sem referência a expiação. O conceito também se acha presente, por
vezes, mesmo quando a palavra não ocorre. Por exemplo, quando o NT, ao falar de “fazer a paz”,
abre margem a toda a idéia de paz com Deus.
332
The Atonement in New Testament Teaching, p. 191. É semelhante a posição de T. H. Hughes:
“No NT a idéia básica de expiação, é a de reconciliação (The Atonement, London, 1949, p. 312).
333
Cf. Isaías 59:1-2. Esse estado de inimizade é mencionado em Tiago 4:4; Colossenses 1:21;
Romanos 5:10, onde as palavras “inimizade”, “estranhos”, “hostis” e “inimigos” são empregadas.
135

ocorre. Foi “enquanto ainda inimigos” que nós “fomos reconciliados com Deus mediante
a morte de Seu Filho” (Romanos 5:10).
2. Do pecador com Deus. O exame demorado da linguagem paulina quanto a
reconciliação destaca imediatamente que a reconciliação é do pecador com Deus, e não
de Deus com o pecador. Em parte alguma fala Paulo de Deus reconciliando-Se com o
homem. É este que precisa ser reconciliado. Assim, “Deus estava em Cristo,
reconciliando consigo o mundo” (II Coríntios 5:19).
Por vezes, nos dias de hoje, este texto tem sido empregado no sentido de afirmar
que a inimizade se encontra apenas de um lado. Esta situação torna simples a
reconciliação. Requer apenas que o homem compreenda quão longe ele se apartou de
Deus, se arrependa e retorne a Ele. Reconciliação e paz seguir-se-ão imediatamente.
É verdade que o homem está alienado de Deus. É verdade que se ele admitir,
seu estado e se arrepender; existirá reconciliação. Mas não é verdade que isto é a
história completa. Tal ponto de vista deixa de fora a cruz, ou pelo menos parte desta. E a
cruz deve ter posição central, Foi através da cruz que se operou a salvação do pecador
e se efetuou a sua reconciliação. Não apenas afirma Romanos 5:10 claramente que
enquanto éramos ainda pecadores, “fomos reconciliados com Deus”, mas também que
isto foi realizado “pela morte de Seu Filho”, Da mesma forma, em Efésios e Colossenses
encontramos toda uma série de declarações que estabelecem uma imediata conexão
entre a morte de Cristo e a paz e reconciliação forjadas contra o pecado. “Em Cristo
Jesus vós, que antes estáveis longe, fostes aproximados pelo sangue de Cristo” (Efésios
2:13); “Porque Ele é a nossa paz, o qual de334 ambos fez um... para que dos dois...
reconciliasse ambos em um só corpo com Deus, por intermédio da cruz, destruindo por
ela a inimizade” (Efésios 2:14-16).
Na carta de Paulo aos Colossenses, ele os faz lembrar que através de Cristo
Deus reconciliou todas as coisas, “havendo feito a paz pelo sangue de Sua cruz”
(Colossenses 1:20). “E a vós outros... vos reconciliou no corpo da Sua carne, mediante a
Sua morte” (Colossenses 1:21-22). A preocupação do apóstolo é que todo crente atribua
ao sofrimento e morte de Cristo na cruz o papel que eles merecem, na atividade
reconciliadora de Deus. A morte de Cristo é proferida como sendo um ato de Deus, um
divino ato em favor do homem. Deus não apenas iniciou a reconciliação, como ainda em
Cristo a completou. Reconciliação é obra de Deus. O homem não pode reconciliar a si
mesmo com Deus; ele deve ser reconciliado com Deus através da divina ação em Cristo
Jesus.
3. Dimensão em direção a Deus. Há outro aspecto nestas duas passagens,
sobre o qual maior ênfase deveria ser posto - mais do que usualmente é feito em
conexão com os ensinamentos de Paulo no tocante à morte de Cristo. Embora a
reconciliação seja empreendida em favor do homem e possa, assim, ser descrita como
possuindo uma dimensão que se dirige para o homem, também existe uma direção
rumo a Deus, de modo que me sinto compelido a dizer que existe um sentido em que se
pode afirmar que o próprio Deus Se reconcilia com o homem.
Pode-se alegar, evidentemente, que é necessário que o homem abandone o
pecado, que ao ele assim proceder ocorre à reconciliação com Deus. Entretanto, Paulo
destaca o fato essencial de que primariamente a reconciliação não representa uma
modificação da atitude do homem em direção a Deus. Em vez disso, a reconciliação é
antes de tudo um evento, um evento objetivo, realizado por Deus para a salvação dos
pecadores. As Escrituras efetivamente sustentam que até que a divina oferta de
334
Paulo refere-se aqui especificamente a separação existente entre judeus e gentios. Reconciliação
entre homem e homem, até mesmo abolindo as mais amargas hostilidades raciais, como a divisão
judeus-gentios, é uma conseqüência da reconciliação do homem com Deus “por meio da cruz”.
136

reconciliação seja recebida numa atitude de alegre submissão, nenhum pecador pode
reconciliar-se com Deus. Só então é que a reconciliação se torna efetiva; somente então
é o homem reconciliado com Deus. O amor de Deus, manifestado em reconciliação, não
focaliza o momento em que o pecador individual crê em Cristo e constata haver se
modificado a sua atitude para com Deus, de inimizade em amor. O amor de Deus
manifestado em reconciliação ocorreu muito antes, “quando éramos ainda inimigos” de
Deus, e isto no evento objetivo e histórico da morte de Cristo. O amor para com Deus
evocado nos corações dos pecadores pela revelação do estupendo amor de Deus para
conosco sobre a cruz, não constitui a - antes representa a aceitação da - reconciliação já
efetuada pela cruz, antes que os pecadores ouvissem dela falar e a ela
respondessem.335
Inquestionavelmente, a reconciliação tem a ver com a atitude humana em relação
a Deus. Ainda assim, a dimensão da atitude de Deus para com os pecadores e o pecado
não pode ser ignorada. Nas palavras de Paulo, Deus estava em Cristo reconciliando
consigo o mundo, “não imputando aos homens as suas transgressões” (II Coríntios
5:10).336 As transgressões que deveriam ser imputadas, não mais o foram em virtude de
Cristo. Deus lidou com elas em Cristo Jesus. Ele fez algo em relação a elas.
Reconciliação, no sentido bíblico, não é correr em face da oposição de Deus. Ela vem de
Deus e depende de mais que a resposta do homem à graciosa iniciativa divina. Ela se
fundamenta num ato de Deus, iniciada que é por Seu amor, e em virtude da qual Deus
não mais leva em conta as transgressões do homem contra Ele. Trata-se de urna obra
externa a nós, mediante a qual Deus age de tal modo em Cristo com o pecado do
mundo, que este não mais constituirá uma barreira entre Deus e o homem.
Isto não quer dizer que a morte de Cristo modificou os sentimentos de Deus em
relação a nós. O coração divino, que é eternamente amor, não necessitava de
alterações e modificações. Mas, no dizer de P. T. Forsyth - que estabelece uma distinção
entre mudança de sentimentos e mudança de tratamento - “os sentimentos de Deus em
relação a nós jamais necessitaram ser modificados. Mas o tratamento de Deus para
conosco, o relacionamento prático de Deus para conosco, este tinha de modificar-se.”337
A distinção é importante. O amor de Deus jamais varia. Mas o pecado - a causa do
estremecimento - é posto de lado. A reconciliação sobrepuja o estremecimento, de modo
que os pecadores arrependidos não mais são tratados como inimigos, e sim como
amigos. E o método de efetuar isto, de lidar com o pecado, foi a morte expiatória de
Jesus Cristo.

335
A. W. Argyle, p. 255. Nas clássicas palavras de James Denney, “A obra da reconciliação, em seu
sentido neotestamentário, é uma obra já acabada, na qual nós temos de concordar em ser
completados antes que o evangelho seja pregado. São as boas novas do evangelho, com a qual os
evangelistas avançam, de que Deus operou em Cristo uma obra de reconciliação, que põem à
disposição não menos que o mundo, e da qual o mundo inteiro recebe benefícios. O apelo do
evangelista é - „recebei a reconciliação; consenti que ela se torne efetiva em vosso caso‟”. (The Death
of Christ), pp. 144-145.
336
O conceito de que a ação reconciliatória é do Pai e que a iniciativa se encontra com Ele, requer a
adequada ênfase e reconhecimento. É esta uma das notas características do ensino de Paulo quanto
à reconciliação. Isto aparece diretamente em várias ocasiões em II Coríntios 5:18-21. A distinção de
pessoas nos títulos “Deus” e “Cristo” no verso 18, requer que “Deus” se refira ao Pai, e Ele é
claramente o sujeito da ação denotada pelo verbo “reconciliar”. Uma leitura atenta dos versos 19 e 20
revelarão a mesma ênfase.
337
The Work of Christ (London, 1958), p. 105. Neste ensaio não se tentou lidar com o escopo ou
extensão da reconciliação operada através de Cristo. Esta questão aplica-se ao debate que diz
respeito a expiação limitada ou ilimitada, redenção particular ou universal.
137

10.1.4. Conclusão Parcial

Os resultados de nossa investigação até este ponto nos permitem dizer que a
igreja primitiva, conforme retratada em o NT, aceitou desde o inicio o fato histórico da
cruz. A luz da ressurreição, seus membros reestudaram o Antigo Testamento, e sob a
inspiração do Espírito Santo, descobriram novo significado na morte de Jesus Cristo. Os
escritores do NT repetidamente a apresentam à luz de uma necessidade divina, e não
como uma necessidade cega. Ela é tratada por eles como um assunto de central e
permanente importância para a fé cristã. Por um lado, é o julgamento divino do pecado
humano. Por outro lado, é a suprema revelação das assombrosas profundidades do
amor de Deus pelo homem pecador. É também a decisiva ação de Deus, pela qual
somos livrados de todos os poderes do mal que nos mantinham em escravidão. É a
pedra angular, o próprio fundamento da salvação do crente.
Idéias sacrificiais e expiatórias, intimamente relacionando a morte de Cristo com a
salvação do homem, são freqüentemente assumidas. Um novo vocabulário se
desenvolve. Conforme observamos, houve referências a Cristo como “suportando
nossos pecados”, “morrendo pelo pecado”, “oferecendo-Se como resgate por nós”,
“redimindo-nos”, tornando-Se “expiação/propiciação”, etc. Esta forma mais definida de
conceber tudo aquilo relacionado com a salvação como sendo dependente da eficácia
redentora da morte de Cristo, conduziu a uma nova perspectiva. Acima de tudo, as
mentes volveram-se de modo crescente em direção à Pessoa através da qual à
redenção foi empreendida, à Sua morte como o meio de redenção, e a necessidade de
fé nEle como condição de salvação. O evangelho tornou-se “a palavra da cruz” (I
Coríntios 1:18), e Paulo pode afirmar que decidira “nada saber entre vos, senão a Jesus
Cristo, e este crucificado” (I Coríntios 2:2).

10.2. OS ENSINAMENTOS DE JESUS CRISTO

Deveria estar claro a esta altura que em o NT a morte de Cristo é um assunto


distintamente claro na mente de seus autores. Eles têm muito a dizer a respeito do
evento, e o tratamento que este recebe por parte daqueles é o de um tema de central e
permanente importância para a fé cristã. Contudo, será que temos algo provindo das
próprias palavras de Cristo? De que modo Ele compreendia a Si próprio quanto a este
aspecto?
Seria arrogante pretendermos que nos é possível ler a mente de Cristo ou olhar
diretamente para dentro de Seu coração, vendo tudo o que ali se encontra. Ainda assim,
os Evangelhos não nos deixam sem evidências da auto-interpretação de Cristo quanto a
Sua missão e trabalho aqui na Terra. Não tentaremos estabelecer aqui uma análise
completa do assunto. Em vez disso, mais modestamente, procurarei apresentar um
exame sucinto das palavras e feitos de Jesus e que, embora nem sempre revelassem
amplamente o fato da cruz às pessoas de Seu tempo, claramente refletem Sua
consciência da mesma, à luz dos eventos subseqüentes.

10.2.1. O Sofredor Servo do Senhor

Jesus sabia ser Ele o Messias das profecias e da esperança do VT.338


Compreendia também esta grande vocação e a salvação com a qual ela se conectava -
e isto de modo muito diferente da compreensão generalizada de Seus contemporâneos.

338
Veja, por exemplo, Tiago 4:25-26; Mateus 16:16-17, 20; 26:63-64; Marcos 12:35.
138

Para Ele a messianidade, conforme já se pode ver na experiência da tentação (Mateus


4:1-11), significava a renuncia de todos os motivos voltados para o próprio eu, assim
como uma inabalável determinação de executar a vontade do Pai, a despeito de
quaisquer dificuldades.
Com uma visão tão clara das perseguições, zombarias e morte que aguardavam
Seus discípulos (Mateus 10:16-18), dificilmente poderia Ele ignorar o Seu próprio futuro
(cf. Lucas 13:31-33). Este caminho de auto-renúncia e sofrimento deve ter-se
apresentado a Ele como parte do plano do Pai para a Sua vida, não meramente como
um martírio, senão como um fim necessário ao cumprimento de Seu trabalho,
especificamente a salvação. A base escriturística para o Seu vislumbre era, com muita
probabilidade, Isaías 53, e o reconhecimento de que o Servo Sofredor do Senhor ali
retratado, era uma profecia do Messias.339

10.2.2. O “Cálice Que Devo Tomar”

É bem verdade que publicamente Jesus falou pouco da relação entre Seus
sofrimentos e Sua missão salvadora, e foi somente na porção final de Seu ministério
terrestre que Ele falou abertamente aos discípulos quanto à proximidade de Sua morte.
Depois da cristológica confissão de Pedro, Jesus começou a falar com a clareza de Sua
morte divinamente predita e da ressurreição que deveria seguir. (Mateus 16:21).340 A
partir de então Sua morte passou a receber lugar dominante em Seu pensamento. Era
esta “o cálice” que Ele teria de sorver (Mateus 20:-2), o “batismo” com o qual deveria ser
batizado (Mateus 10:32, 38). Ele Se sentia “angustiado” até que este batismo se
realizasse (Lucas 12:50).
Mesmo assim, o silêncio de Cristo diante do assunto, antes do episódio de
Cesaréia de Filipe, longe estava de ser absoluto, No Evangelho segundo João, por
exemplo, encontramos algumas das mais claras declarações provindas dos lábios de
Jesus, no sentido de que deveria morrer e que Sua morte se relacionaria diretamente
com a salvação do mundo.
Aos fariseus que Lhe perguntavam com qual autoridade purificava Ele o templo,
Sua resposta foi: “Destruí este santuário, e em três dias o reconstruirei” (João 2:19). Sua
resposta, literalmente mal compreendida na época, declarava que Sua morte e
ressurreição eram a autoridade. A Nicodemos, perplexo diante das estranhas palavras
de Jesus, o Senhor replicou que assim como Moisés erguera a serpente no deserto,
“assim importa que o Filho do homem seja levantado, para que todo o que nEle crê
tenha a vida eterna” (João 3:14-15).341 A conexão existente entre a morte de Cristo e a
salvação do mundo, é inconfundível.342 Em Seu memorável discurso em Cafarnaum,
Jesus igualmente salientou que Sua carne seria dada para a salvação do mundo, bem
assim como o derramamento de Seu sangue (João 6:50-59).343

339
C. H. Dodd, According to the Scriptures (London, 1952), p. 94. Veja a lista de passagens citadas
em o NT às páginas 92-94. Mais recentemente, Joachim Jeremias mostrou de que modo Isaías 52:13
a 53:12 está subjacente a cada porção do NT (The Servant of the Lord, Nashville, Illinois, 1957). Em
sua obra The Central Message of the New Testament (New York, 1965), o mesmo autor explana
como Jesus via o cumprimento de Isaías 53 como Sua tarefa divinamente apontada, e que Ele
interpretava Sua morte vindoura, diante de Seus discípulos, como uma morte viçaria em favor das
incontáveis multidões daqueles que faziam sob o julgamento de Deus.
340
Veja também Mateus 17:9, 22-23; 20:18-19.
341
João 3:14-15. Quanto ao “ser levantado”, veja João 12:33.
342
Perceba o uso de Cristo, “importa que”.
343
Tais declarações lançam luz sobre outras, de caráter mais geral. Por exemplo, João 10:11, 15,
17-18; 12:24.
139

10.2.3. A Vida de Cristo Como Resgate Por Todos

Retornando aos Evangelhos sinópticos, encontramos asseverações adicionais


que confirmam a consciência que Cristo tinha da cruz vindoura. Em certa ocasião
comentou que somente depois que fosse “tirado”, é que os hospedes da festa se
lamentariam (Mateus 9:15).344 Noutra oportunidade disse Ele aos escribas e fariseus,
que demandavam um sinal, que nenhum outro lhes seria dado senão o do profeta
Jonas. Vinculava Ele esta declaração com um fato vindouro, ou seja. Sua crucifixão,
sepultamento e ressurreição; afirmou que assim como Jonas permanecera três dias e
três noites no ventre do grande peixe, “assim o Filho do homem estará três dias e três
noites no coração da terra” (Mateus 12:40; cf. Lucas 11:30).
Existe ainda a conhecida declaração, registrada tanto por Mateus quanto por
Marcos, de que o Filho do homem “não veio para ser servido, mas para servir e dar Sua
vida como resgate /lutron/ por muitos /anti pollōn/” (Mateus 20:28; Marcos 10:45).345
Referindo-se a Sua morte, Jesus utiliza a palavra lutron a qual conforme observamos
antes, denota o pagamento de um preço de resgate, de caráter substitutivo. O conceito é
reforçado pelo próprio uso que o Verso faz da preposição anti (em lugar de). O sentido
natural da declaração e o de que a morte de Cristo ocorreria em lugar de muitas mortes.
Devia Ele dar Sua vida (psuchē, todo o Seu ser) em lugar destas pessoas.346
Pouco antes da crucifixão Jesus instituiu uma ceia com a intenção de comemorar
o evento. Da mesma forma como Deus, através de Moisés, dera a Israel a ceia da
Páscoa a fim de lembrar-lhes à libertação do cativeiro, Jesus deu a Seus discípulos a
Ceia do Senhor, a fim de comemorar a libertação que experimentariam, do pecado.
(Êxodo 12; I Coríntios 11:23-26). Durante a Ceia Ele apontou ao pão como sendo o Seu
corpo (Mateus 26:26),347 e ao copo como sendo o Seu sangue (Mateus 26:28; Marcos
14:24). Seu corpo seria “dado” ou “partido”, e Seu sangue “derramado” pelos discípulos
(Mateus 26:28; Marcos 14:24). Nas palavras por ocasião da Ceia o Senhor representou
Sua morte como um sacrifício pela salvação de muitos, definitivamente vinculando o
derramamento de Seu sangue com a remissão dos pecados e o estabelecimento de um
novo concerto (Mateus 26:28).
Poderíamos citar outros textos dos Evangelhos.348 Quando pesamos a
abrangência, força e riqueza de significado que estas afirmações, tomadas em conjunto,
envolvem, vemos quão difícil é negar que, mesmo dentro dos limites dos Evangelhos,
um significado salvífico é atribuído a morte de Cristo. Obviamente a igreja primitiva não
foi deixada sem orientação ao edificar a doutrina da redenção, pois a compreensão que
então tiveram da morte de Cristo, acha-se em perfeito acordo com aquilo que a Jesus se

344
Cf. Marcos 2:19-20; Lucas 5:34-35.
345
Que Jesus pode haver pensado em Sua missão como um “dar a Sua vinda em resgate de
muitos”, é algo que tem sido muitas vezes questionado. O argumento usual é de que a declaração
representa uma inserção de Marcos na teologia paulina quanto ao ensino de Jesus. Mas existem
boas razoes para se aceitar a genuinidade destas palavras. Veja V. Taylor, Jesus and His Sacrifice,
pp. 97-105; Alan Richardson, An Introduction to the Theology of the New Testament (New York,
1958), pp. 220-221.
346
Reconhece-se, de modo geral, que o pensamento na mente de Jesus pode muito bem haver sido
o de Isaías 53:10-11. Cf. W. Manson, Jesus the Messiah (London, 1943), p. 131; A. M. Hunter, The
Work and Words of Jesus (Philadelphia, 1950), p. 100.
347
Cf. Marcos 14:22; Lucas 22:19.
348
Para um estudo adicional dos dizeres de Jesus quanto à Sua morte expiatória e a importância
destas declarações, veja George Smeaton em seu clássico The Doctrine of the Atonement as Taught
by Christ Himself, 2ª edição, 1871 (Reimpressão: Grand Rapids, 1953).
140

atribui nos quatro Evangelhos.

10.3. OS SOFRIMENTOS DE CRISTO EM VIDA

Consideramos os termos nos quais os autores do NT expressam sua


compreensão do significado da morte de Cristo. Porventura atribuíram eles algum
significado expiatório à Sua vida?
Tradicionalmente os teólogos têm apresentado muito mais a luz que irradia do
final da vida de Cristo, isto é, de Sua morte. Com muita freqüência têm eles insistido
tanto na morte de Cristo como sendo o ponto de partida - ou ponto central - que em sua
compreensão da redenção eles têm negligenciado alguns dos mais abrangentes
aspectos da salvação, conforme esta é apresentada nas Escrituras.

10.3.1. A Morte de Cristo: Consumação de Sua Vida

Sem qualquer duvida a ênfase do NT repousa sobre a morte de Cristo. Ainda


assim não se deveria perder de vista que, de acordo com as Escrituras, a cruz é apenas
a consumação daquiIo que foi manifestado na encarnação, ou seja, a humilhação da
Palavra de Deus. A cruz representa a culminação da vida de Cristo, vida que
repetidamente é apresentada em o NT como uma vida de obediência. Ele tornou-Se
“obediente até a morte, e morte de cruz” (Filipenses 2:8). “Embora sendo Filho, aprendeu
a obediência pelas cousas que sofreu” (Hebreus 5:8). Observe aqui a relação estabe-
lecida entre os sofrimentos de Cristo e Sua obediência.
Duas vezes a epístola aos Hebreus menciona os sofrimentos de Cristo. Na
primeira oportunidade aprendemos que foi apropriado que o Autor de nossa salvação
tenha sido aperfeiçoado “por meio de sofrimento” (Hebreus 2:10). Depois lemos que
Jesus “aprendeu a obediência pelas cousas que sofreu” (Hebreus 5:8).
Que os sofrimentos de Cristo devam ser entendidos como referências a Sua
morte, é algo que não deveria surpreender-nos. Nesta mesma epístola, por exemplo,
Paulo fala do “sofrimento da morte” (Hebreus 2:9). Mais tarde ele menciona os
sofrimentos de Cristo numa tal forma, que se torna evidente que é a crucifixão que lhe
está na mente: “Jesus, para santificar o povo, pelo Seu próprio sangue, sofreu fora da
porta” (Hebreus 13:12). Esta é uma referência ao fato de haver a morte de Cristo
ocorrido fora da cidade de Jerusalém (João 19:17, 20). A morte de Cristo pode ser
corretamente considerada como expressão final da obediência de Cristo e de Sua
submissão a vontade do Pai.

10.3.2. Cristo Sofreu em Vida


Mas Cristo também sofreu em vida. Como parte vital de Sua humilhação, ao
vestir-Se da humanidade o Filho de Deus voluntariamente submeteu-Se as limitações da
humanidade (Filipenses 2:6-8). Sofreu dor, fome, sede e cansaço, como qualquer
homem (Mateus 4:2).349 Tornando-Se homem, “nascido sob a lei” (Gálatas 4:4),
aprendeu Ele o quanto custa a obediência. Era Ele o incontaminado em meio a
pecadores, o obediente entre desobedientes.
Ele também sofreu nas mãos de Satanás, quando provado e submetido à
tentação. As Escrituras afirmam que “foi Ele tentado em todas as cousas, à nossa
semelhança, mas sem pecado” (Hebreus 4:15). Embora não pecasse, poderia haver

349
Cf. João 19:28; 4:6.
141

pecado. Enfrentou de modo muito particular a tentação de afastar-Se do cumprimento de


Sua missão como Redentor e desviar-Se do caminho do sofrimento e da morte que Sua
missão messiânica necessariamente incorporava (cf. Mateus 4:8-10).350
Sofreu Ele por mãos de Seus adversários, os quais - embora estudiosos das
Escrituras do VT - O repudiaram e, com o tempo, O crucificaram. Sofreu intensamente
por causa de Seus discípulos, Seus amigos. Estes Lhe causaram sofrimento através de
abandono, negação e covardia. Descrença, falta de interesse, orgulho e ambição não-
santificada pululavam em seus corações mesmo naquela ocasião (Mateus 17:20).351 Um
de Seus mais íntimos seguidores veio a traí-lO, entregando-O as mãos de Seus
executores (Mateus 26:47-56).

10.3.3. O Propósito dos Sofrimentos de Cristo em Vida

Não podem ser negados os sofrimentos é a agonia que acompanharam a vida de


Cristo. De fato, foi Ele um “homem de dores, e que sabe o que é padecer” (Isaías 53:3).
Remanesce, contudo, a questão: Por que Ele sofreu? Qual o propósito de Seus
sofrimentos em vida? Existe algum significado teológico em tudo aquilo que Ele teve de
suportar antes de morrer sobre a cruz?
Tendo em vista responder esta questão, relembremos em primeiro lugar que a
epístola aos Hebreus usa três vezes o verbo “aperfeiçoar” (teleioō) em referência a
Jesus (Hebreus 2:10).352 Em todos os casos Ele é aquele descrito como sendo perfeito.
Este processo de perfeição não envolveu qualquer mudança de Cristo, através do qual
Ele pudesse haver sido trazido de um estado de imperfeição moral, a outro, de perfeição.
Em vez disso, significa a expressão que algo está sendo conduzido a um fim, a um
objetivo pré-determinado, realizando e completando a tarefa. Indica as qualificações da
pessoa para uma função ou oficio.353
Mas... qual função? Qual ofício?
1. Sofrimento e qualidade de Salvador. O primeiro propósito do
aperfeiçoamento de Jesus foi o Seu oficio soteriológico, Seu papel como Salvador. Sua
vida de sofrimento, com tudo que se achava envolvido, serviu para comprovar Sua
elegibilidade como oferta pelo pecado, como perfeito Salvador do pecado. Seus so-
frimentos em vida não representaram um sacrifício, mas provaram que Ele era elegível
ao “cargo” de ofertante de um eterno sacrifício pelo pecado. Paulo declara que o mesmo
que implorou a Deus que O livrasse da morte, “aprendeu a obediência pelas cousas que
sofreu e, tendo sido aperfeiçoado, tornou-Se o Autor da salvação eterna para todos os
que Lhe obedecem” (Hebreus 5:8-9). A percepção de Paulo da relação entre a vida de
sofrimentos e os sofrimentos da morte, de Cristo, é inconfundível.
2. Sofrimento e sumo-sacerdócio. O segundo propósito dos sofrimentos de
Jesus em vida foi qualificá-lO para Seu ofício sacerdotal. Sendo necessário em virtude
da brecha ocasionada pelo pecado, o sacerdote é aquele que comparece diante de
Deus em favor do pecador. Deve ele ser escolhido dentre a raça humana (Hebreus 5:1),
compreender aqueles que são acossados pela fraqueza (Hebreus 5:2) e ser indicado por
Deus para este ofício (Hebreus 5:1). Sendo plenamente homem (Hebreus 2:14, 17),
Jesus Cristo foi indicado por Deus (Hebreus 5:5) e é apto para simpatizar com os
pecadores, pois Ele “em todas as cousas foi tentado, como nós” (Hebreus 4:15).
Conseqüentemente, “não temos sumo sacerdote que não possa compadecer-se das
350
Cf. Mateus 16:21-23; Lucas 22:39-47.
351
Veja também Mateus 26:40; Marcos 9:34; 10:37; 14:31; 14:50; João 6:70.
352
Cf. Hebreus 5:8-9; 7:28.
353
Arndt e Gingrich, p. 817.
142

nossas fraquezas” (Hebreus 4:15), mas “naquilo que Ele mesmo sofreu, tendo sido
tentado, é poderoso para socorrer os que são tentados” (Hebreus 2:18). Seus
sofrimentos inegavelmente contribuíram para com Sua habilidade em simpatizar. Sofreu
de modo a qualificar-Se para assumir Seu ofício como Sumo sacerdote.354
3. Sacrifício perfeito pelo pecado. O sacerdote, “sendo tomado dentre os
homens, é constituído nas cousas concernentes a Deus, a favor dos homens, para
oferecer assim dons como sacrifícios pelos pecados” (Hebreus 5:1). Tendo em vista
eliminar a alienação entre o homem e Deus, era necessário remover a sua base, a sua
causa fundamental - o pecado. Os sofrimentos de Cristo em vida não apenas. O
prepararam para desempenhar Suas funções mediatórias, como ainda O habilitaram a
oferecer o imaculado Cordeiro que tira o pecado do mundo. Ofereceu-Se a Si mesmo,
uma vez por todas, como sacrifício único pelo pecado (Hebreus 7:27),355 “tendo obtido
eterna redenção” (Hebreus 9:12).
Assim como por um ato de desobediência o mal reinou aqui na Terra, assim
também “por meio da obediência de um só muitos se tornarão justos” (Romanos 5:19).
Como Servo do Senhor, Cristo prestou Sua mais ampla obediência ao mandado divino,
e expressou Sua inalterável identificação com o propósito do Pai, em Seu ato de auto-
submissão diante da morte. Em o NT este sacrifício “uma vez por todas” não aparece
como um ato isolado no final da vida de Cristo; ao contrário, soma-se este ato a toda
uma vida de obediência, por Ele vivida. A cruz representa o clímax da vida de Cristo,
mas Sua vida é um elemento essencial dentro dos eventos redentivos.

10.4. PONTOS DE VISTA CRISTÃOS QUANTO A EXPIAÇÃO

Todos os cristãos acham-se unidos no ponto de que Deus operou a salvação da


humanidade em Jesus Cristo. Contudo, existe desacordo - por vezes severo - quanto ao
modo em que Ele o fez, e de que maneira devemos entender o ato de Deus em Cristo,
em nosso favor. Conforme seria de se esperar, a terminologia grandemente diversificada
- usada nas Escrituras em referência à salvação - aparece também na maneira pela qual
a doutrina da salvação foi articulada por pessoas com diferentes idéias, na história da
igreja cristã. Estas teorias quanto à expiação podem ser divididas em três grupos
básicos: a clássica, ou teoria do “resgate”; a latina, ou teoria da “satisfação”; e a
subjetiva, ou da “influência moral”.356 Consideremos brevemente seus principais
aspectos.

10.4.1. As Teorias Clássicas

1. A teoria do “resgate”, No início da Era pós-apostólica alguns Pais da Igreja


desenvolveram a noção de que Cristo, que nos reconciliou com Deus e buscou perdão

354
Thomas Richard Rice, “The Meaning of the Obedience of Jesus Christ” (Estudo não publicado,
Andrews University, 1967), pp. 36-40.
355
Cf. Hebreus 10:10, 12, 14; 13:12.
356
Para a historia das doutrinas quanto à expiação e redenção em inglês, veja o clássico volume: A.
Ritschel, A Critical History of the Christian Doctrine of Justification and Reconciliation (Edinburgh,
1872); J, Riviere, The Doctrine of the Atonement. A Historical Essay (St. Louis, 1909), 2 volumes; H.
Rashdall, The Idea of Atonement in Christian Theology (London 1919). Quanto a literatura mais
recente, veja H. E. W. Turner, The Patristic Doctrine of Redemption (London, 1952); F. W. Dillistone,
The Christian Understanding of Atonement (Philadelphia 1968); Gustaf Aulén, Christus Victor. An
Historical Study of the Three Main Types of the Idea of Atonement (New York, 1969). A maioria das
enciclopédias e dicionários bíblicos, tanto quanto Systematic Theologies, apresentam artigos ou
capítulos referentes às principais teorias da expiação.
143

para nos, conseguiu isto ao pagar um resgate a Satanás. Entretanto, o demônio,


havendo sido enganado na barganha, não foi capaz de reter a alma de Cristo, o Santo.
Mesmo que nos escritos primitivos (Irineu, Tertuliano, Orígenes) a teoria não tenha
avançado para muito além de uma figura retórica, ela cresceu e foi proposta pelos teólo-
gos medievais como uma teoria séria da redenção.357 A maioria destes últimos insistiam
em que o amor de Deus achava-se na origem da obra de reconciliação operada por
Cristo.
2. A teoria da “satisfação”. Um novo capítulo foi escrito na história da
interpretação da morte de Cristo quando Anselmo de Cantebury, em seu breve tratado
Cur Deus Homo (1098) demonstrou a “absoluta necessidade” da expiação. A
pressuposição fundamental de Anselmo é que o homem, ao pecar, ofendeu a honra de
Deus. Embora instigado, por Seu amor, a redimir o pecador, Deus tem de fazê-lo sob
uma forma consistente com a Sua justiça. A “satisfação” requerida era infinita, de modo
que nenhum homem poderia atendê-la. Necessário foi que o Filho de Deus Se tornasse
homem. Submetendo-Se voluntariamente ao sofrimento e à morte, Cristo, sem pecado,
ofereceu a Deus um presente de infinito valor. Sua morte teve um mérito tão
transcendente, que infinitamente contrabalançou toda desonra que o homem ocasionara
a Deus. Sendo Ele próprio sem pecado e sem necessidade de tal mérito, Cristo
repassou a recompensa aos pecadores, sob a forma de redenção.
A essência do ponto de vista de Anselmo, isto é, satisfação substitutiva, é o
conceito que tem dominado o pensamento ocidental. É digno de nota que ele não tenha
encontrado esta satisfação em haver Cristo suportado a pena de nossa maldição, e sim
no contexto da doutrina católica dos méritos supererrogatórios.358
3. A teoria da “influencia moral” tem suas raízes nos ensinos de Abelardo
(falecido em 1142), uma das mais brilhantes mentes medievais. De acordo com este
ponto de vista, o propósito da morte de Cristo de modo algum foi o de pagar um resgate
a Satanás, e nem o de satisfazer a justiça divina, e sim apenas prover um meio para
revelar de forma tão comovente o amor de Deus, que isto seria suficiente para vencer a
inimizade do pecador contra Deus, fazendo brotar amor responsivo em seu coração,
promovendo verdadeiro arrependimento e assim preparando o caminho para o perdão
do pecado. Reconciliação neste contexto, significa unicamente pôr de parte a hostilidade
do homem contra Deus. Da mesma forma, neste contexto, assume-se que a morte de
Cristo ocorreu a fim de conduzir o homem nesta direção, por meio da comovente
demonstração de amor por parte do Pai.
Ao passo que o conceito de expiação de Anselmo tem sido rotulado como judicial
e objetivo, o de Abelardo tem sido descrito como moral e subjetivo.

10.4.2. O Cenário Contemporâneo

Para o propósito deste ensaio não pareceu necessário considerar outros pontos
de vista atinentes a expiação - expressa na morte de Cristo - tais como a dos
reformadores do século XVI, que é a visão “penal”, a “teoria do exemplo” sociniana, a
“teoria governamental” de Grócio, ou à teoria do “arrependimento vicário” de McLeod
Campbell. Com a possível exceção da “visão mística” de Schleiermacher,359

357
Outros proeminentes ensinadores nada desejam ter a ver com isto. Mais particularmente,
Gregório de Nazianzus, Atanásio e Anselmo.
358
Méritos supererrogatorios, são méritos que vão além daquilo que se ensina ser requerido ou
necessário à salvação.
359
O principio básico da teoria de Fr. Schleiermacher é que na encarnação de Cristo - e não em Sua
morte - a vida divina entrou na vida da humanidade. A mudança operada no pecador não é
144

basicamente todas podem ser acomodadas sob uma das três categorias anteriores. Elas
não acrescentam uma nova classe às interpretações já existentes, embora provejam,
sim, algumas novas e por vezes sugestivas representações daquelas aqui esboçadas.
1. A influência de Schleiermacher. No começo do século 19, Schleiermacher
– o pai da teologia liberal - estabeleceu as tendências que ainda agora estão a
desenvolver-se na maioria das teorias cristológicas. Particularmente importantes em
separar a moderna cristologia da cristologia clássica são os seguintes aspectos: (a) O
impulso antropológico na compreensão de Schleiermacher quanto à pessoa de Cristo.
Pensava ele em Cristo como todos os homens - mas distinto destes - não por possuir
uma “natureza divina”, e sim uma constante potência em Sua consciência divina. Esta
seria a própria existência de Deus em Cristo.360 (b) A insistência em que Cristo é nosso
substituto apenas no sentido de que, como arquétipo, serve Ele como nosso exemplo
até que o arquétipo seja plenamente realizado em nós. Ele é nosso substituto no sentido
de ser nosso exemplo; e Sua obra é o fortalecimento da consciência divina nas
pessoas.361 (c) Sua compreensão da expiação como uma modificação psicológica
ocorrendo no homem. Sua opinião era de que coisa alguma na expiação se dirigia a
Deus.
Poder-se-iam mencionar pontos adicionais, mas estas distinções têm sido
determinantes para a maioria dos escritos cristológicos do século passado. Nos dias de
hoje a maioria das iniciativas de Schleiermacher triunfaram no catolicismo e no
protestantismo, embora existam amplas variações no grau de proeminência que
teólogos individuais lhes têm dado.362
2. Advogados de uma expiação objetiva. Poucos eruditos amplamente
conhecidos têm remado contra a corrente, convocando a um retorno à expiação objetiva.
Por exemplo, Emil Brunner, em The Mediator, representa um forte apelo a tal
ponto de vista.363 Karl Barth insistiu em que a expiação é um ato da história, e de que na
cruz o Pai “deu efeito a Sua /de Cristo/ morte e paixão como uma satisfação por nós,
como nossa conversão a Deus, e portanto a nossa redenção da morte para a vida”;364 e
também que nEle Deus, o Juiz, ofereceu-Se a Si mesmo para ser julgado em lugar do
pecador.365
G. C. Berkouwer, de Amsterdã, o mais apto teólogo sistemático do calvinismo

primariamente uma mudança ética em sua vida consciente – tal como ocorre na interpretação da
influência moral - mas uma mais profunda mudança da vida subconsciente, trazida a lume através de
um modo místico. Cristo, o homem ideal, em quem a consciência divina controla a consciência mais
baixa, desde o começo torna-se uma nova levedura na humanidade. Ele libera a consciência divina
do crente da dominação da consciência mais baixa, tornado a pessoa semelhante a Ele. Nesta forma
mística Ele transforma e redime o pecador penitente.
360
The Christian Faith (Edinburgh, 1928), art. 94, p. 385.
361
Ibidem, pp. 425 e seguintes.
362
Para uma introdução à influência do ponto de vista antropológico de Schleiermacher sobre
teólogos contemporâneos enquanto divergentes em seus pontos de vista confessionais, tais como
Karl Rahner, Wolfhart Pannenberg, John A. T. Robinson e John Knox, veja John Macquarrie, “Recent
Thinking on Christian Beliefs. Part I: Christology”, Expository Times 88 (1976):
37-39.
363
Para o teólogo suíço, a morte de Cristo “representa de fato uma transação objetiva, na qual Deus
efetivamente faz alguma coisa, e alguma coisa absolutamente necessária”. Convidando seus leitores
a manter em mente a seriedade do pecado do homem, ele conclui: “Quanto mais séria nossa visão do
pecado, tanto mais claramente percebemos a necessidade de uma objetiva - e não meramente
subjetiva - expiação. Negar esta necessidade significa o nondum consideravisse pondus peccati” (The
Mediator. A Study of the Central Doctrine of the Christian Faith /Philadelphia, 1947/, pp. 439, 451, com
ênfase suprida).
364
Church Dogmatics (Edinburgh, 1936), IV/1:157; cf. II/1:446.
365
Church Dogmatics IV/1:157.
145

clássico no mundo atual, aceita o mistério e o paradoxo das narrativas bíblicas e evita
impor a lógica em pontos nos quais as Escrituras silenciam.366 Leon Morris, de
Melbourne, Austrália, vindica que a redenção em Cristo operou como libertação por meio
do preço de Sua morte.367 T, F. Torrance,368 Gustaf Aulén,369 Vincent Taylor,370 Donald
M. Baillie371 e outros, embora por vezes com grande variação em suas interpretações da
cruz, têm estado a insistir conosco quanto ao retorno à doutrina da redenção que
considera a cruz como um poderoso ato de Deus em Cristo, para modificar todo o
relacionamento objetivo entre Deus e Suas criaturas pecaminosas.
De todos os modos, o ponto de vista mais popular, em nossos dias, é uma ou
outra variação da teoria representativa, segundo à qual Cristo não foi nosso substituto,
nem foi Sua morte um sacrifício como tal, e sim que Ele fez algo que serve como base
para à reconciliação.

10.5. ELEMENTOS DE UMA DOUTRINA BÍBLICA DA


RECONCILIAÇÃO

Nesta brevíssima pesquisa dos materiais bíblicos, aventurar-me-ei agora a


esboçar os principais pontos de uma doutrina dos aspectos expiatórios da morte de
Cristo, mencionando os pontos comumente discutidos pelos teólogos.

10.5.1. Expiação Como Resgate

1. A iniciativa de Deus. O primeiro ponto a ser salientado quanto à expiação é


que ela se originou com Deus. Do inicio ao fim a iniciativa é Sua. É também Ele quem
completa a expiação. Este é o ensino de Jesus, o testemunho da pregação dos
primeiros apóstolos, e a afirmação dos autores do NT. Eles descrevem uma realidade
objetiva que ocorreu por divina iniciativa e ação. Nas palavras de Paulo, “tudo provem de
Deus que nos reconciliou consigo mesmo por meio de Cristo” (II Coríntios 5:18).
O amor do Calvário magnificou o amor de Jesus. Foi ele também o amor do Pai.
Se levarmos seriamente em conta a afirmativa de João, que a Palavra que Se fez carne
e morreu por nós, é a Palavra existente desde o principio, a Palavra que estava com
Deus e era Deus (João 1:13-14), então a pessoa deve reconhecer a Deus no
Encarnado. Deve reconhecer que no Gólgota Deus estava presente. Se a pessoa tomar
a sério a afirmativa da epístola aos Hebreus, de que o mesmo Deus que previamente
falara através dos profetas, falou também por meio de Seu Filho, a única conciliação
possível é de que na cruz o Pai deve ser ouvido, e não apenas o Filho. Isto quer dizer
que na cruz devemos ver a Deus - tanto o Pai quanto o Filho - em sofredor e redentivo
amor.
2. A natureza do pecado. Em segundo lugar, a morte de Cristo nos mostra o

366
Veja especialmente The Work of Christ (Grand Rapids, 1965).
367
The Apostolic Preaching of the Cross e The Cross in the New Testament (Grand Rapids, 1965).
368
Theology In Reconstruction (Grand Rapids, 1966).
369
Em Christus Victor, Aulén recuperou aquilo que ele identifica como os aspectos triunfantes e
Vitoriosos da expiação.
370
Jesus and His Sacrifice; The Atonement in New Testament Teaching; Forgiveness and
Reconciliation (London, 1941). Com a exceção do católico romano Jean Riviere, ninguém, no 20°
século escreveu tão longamente e durante tão grande número de anos sobre o assunto. Taylor
sustenta que a obra de Cristo era “representativa”, mas rejeita o seu caráter substitutivo.
371
God Was in Christ (New York, 1948). Baillie luta com o problema da definição de uma teoria que
seja objetiva e ainda assim evite a noção de sacrifício, substituição e propiciação.
146

que é o pecado, e também do que é capaz o coração humano. Aqui a arrogância última
do ser humano se desmascara. Somos expostos e tornados conhecidos. Temos de
reconhecer que somos criaturas orgulhosas, que desejam ser Deus e senhoras.372 Com
razão observa Brunner: “Somente junto a cruz de Cristo pode o homem ver claramente o
que o separa de Deus... Em parte alguma que não aqui, a inviolável santidade de Deus,
a impossibilidade de se passar por alto a culpa do homem, aparece mais claramente”.373
3. O julgamento do pecado por Deus. Mas a cruz de Cristo não somente nos
revela o que o pecado é, como também declara o que Deus pensa a respeito do mesmo.
Aqui se revelam o pensamento e o julgamento de Deus em relação ao pecado. O
pecado não pode ser tolerado. Se, conforme observamos antes, o amor deve lidar com o
pecado, não deve existir qualquer atenuação quanto à eterna diferença entre o certo e o
errado. De fato, o amor lidou com o pecado sob uma forma que se recusa a minimizar a
gravidade deste. Na cruz, o mesmo ato que mediou o perdão também proclamou o juízo.
A misericórdia não substitui a justiça; antes, tornou-se justiça. O perdão ali estava, pleno
e gratuito; mas a própria maneira de agir da perdoadora graça de Deus, foi a inapelável
condenação do pecado para sempre.374
4. A dimensão substitutiva. Finalmente, na cruz Deus não apenas revela
aquilo que com justiça merecemos, como ainda fez repousar sobre Seu Filho aquilo que
cada pecador trouxe ,sobro si mesmo através da rebelião contra Deus, isto é, a morte,
que de outra forma, teria eliminado a sua existência. Esta solução para o problema do
pecado foi o voluntário sacrifício da parte de Cristo. Voluntariamente Ele suportou os
pecados do mundo e depôs Sua vida de modo a poder trazer vida e imortalidade ao
mundo.
A cruz, portanto, possui uma dimensão objetiva. Na morte de Cristo, Deus
efetivamente empreende algo, e algo absolutamente necessário e que o pecador não
pode fazer de si mesmo - algo que procede do amor de Deus e do amor de Cristo, e que
torna possível ser Deus misericordioso e justo ao mesmo tempo. Se o homem, em
arrependimento, se volve para Deus - não importa quão pecaminosa seja a sua vida -
por conta de Cristo é ele considerado justo. A justiça de Cristo é aceita em lugar do
fracasso do pecador; este é aceito diante de Deus como se jamais houvesse pecado.
Aqui está o ato substitutivo que ocupa posição central em o NT, quanto à
compreensão da cruz. O Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo não é qualquer
outro ser, senão a eterna Palavra através de quem todas as coisas foram criadas. Desta
forma, a expiação foi operada no coração e na vida do próprio Deus. A cruz significa que
é Deus quem, em termos finais, paga o preço por nossos atos repugnantes. Os pregos
cravados nas mãos de Cristo traspassaram o coração de Deus, pois, no dizer de Paulo,
“Deus estava em Cristo” (II Coríntios 5:19). O pecador penitente agora está reconciliado
com Deus.
Parece-me que qualquer conceito de expiação que fracasse em considerar com
seriedade estes aspectos, terá de ser responsabilizado por isto.

10.5.2. Expiação Como Ato Criativo

Neste ponto mais uma dimensão deve ser mencionada. A morte substitutiva de
Cristo não deve ser entendida como uma transação totalmente legal e externa, uma

372
Karl Barth, IV/1:515.
373
E. Brunner, p. 452.
374
J. S. Stewart, A Man in Christ (New York, 1955), p. 233. Em comentário de J. S. Whale, Jemos
que “o perdão não é inteligível e nem mesmo digno de credito a menos que a justiça seja vindicada e
a culpa confirmada” (Victor and Victim /Cambridge, 1960/, p. 190).
147

transferência de montantes em uma espécie de contabilidade espiritual, sem


envolvimento pessoal de parte do homem. Não acredito que possamos fazer justiça à
interpretação neotestamentária da morte de Cristo, a menos que compreendamos que a
redenção por ela trazida não é apenas um resgate, e sim, também, cura.
Como demonstração do divino amor, a substituição que Cristo efetua por nós, é
destinada a produzir amorável resposta nos corações dos pecadores - em nossos
corações. Diante da divina sentença de absolvição, a “palavra da cruz” (I Coríntios 1:18)
espera fé, que é a confiante aceitação da reconciliação oferecida por Deus. A redenção
oferecida por Deus torna-se realidade para mim quando eu a aceito pela fé, aqui e
agora. Redimido passo a desenvolver novo relacionamento com Deus.
Mas o veredito divino que nos declara inocentes, é também um ato criativo. A fé
no Crucificado não pode existir sem a disposição de seguir-Lhe os passos.375 O NT não
reconhece qualquer salvação exceto aquela que é realizada nos pecadores a medida
que Deus , em Cristo Jesus, obtém no coração do pecador uma entrada que Lhe permite
transformá-lo a partir de dentro.376 É minha convicção que o ponto mais débil de
qualquer análise racional da cruz, inclusive da presente, é seu fracasso em representar
adequadamente as demandas da cruz. O que Jesus efetuou por nós e o que Ele efetua
em nos, deve ser mantido em adequado equilíbrio.377 Tanto o dom quanto as demandas
de Deus são, evidentemente, em termos iniciais e finais, a obra de Cristo.
Se a substitutiva morte de Cristo, a justificação e a reconciliação devessem
constituir a totalidade da obra de Cristo, então a salvação seria uma transação externa,
operada fora do crente e nada tendo a ver com sua vida ética e espiritual. Mas na morte
de Cristo o crente encontra não somente uma expiação objetiva do pecado, como
também livramento do poder do pecado. Esta é a verdade presente na teoria subjetiva,
ou da “influência moral”, da expiação - pois ela enfatiza o efeito subjetivo da cruz na vida
do crente, em lugar de sua objetividade operada “uma vez por todas”. A influência moral
da morte de Cristo na vida dos crentes não deve ser ignorada pelo fato de ter havido
abuso deste ensinamento, que erroneamente veio a ser considerado como a verdade
central da expiação.

10.6. CONCLUSÃO

O que devemos dizer de tudo isto? Esta breve investigação das evidências
bíblicas relacionadas com a morte de Cristo e suas subseqüentes interpretações ao
longo de dois milênios de história cristã têm, espero eu, nos impressionado quanto aos
seguintes aspectos: (a) quão deficiente é a melhor das teorias humanas na tentativa de
expressar toda a verdade a respeito deste assunto de central importância; (b) que
praticamente todas as teorias - a legal e objetiva, a moral e subjetiva, a dramática e
vitoriosa - contém certos elementos de verdade, cuja negligência pode prejudicar
seriamente a plenitude do ensinamento bíblico a este respeito; (c) o fato de que as
metáforas bíblicas sobre as quais foram traçadas estas teorias, devem prosseguir
servindo-nos como fonte e corretivo diante de qualquer tentativa de proclamar a “palavra
da cruz”.

375
Na igreja primitiva os discípulos eram seguidores do “Caminho”. Veja Atos 9:2; 16:17; 18:25-26;
19:23; 22:4.
376
Gálatas 2:20 nos faz lembrar que fomos “crucificados com Cristo”; Romanos 6:1-11 diz que fomos
batizados “na morte de Cristo”. Os crentes são também admoestados a reproduzir a mente de Cristo,
sobretudo no tocante a Sua mais completa auto-renúncia (Filipenses 2:5-11). De fato, eles são
descritos como havendo morrido em Cristo (Colossenses 2:20).
377
Frank Stagg, New Testament Theology (Nashville, 1962), pp. 145-147.
148

O homem moderno tem mania de explanação, e ele se amofina quando nem


todas as idéias se submetem a sua análise. Mas a morte de Cristo é maior do que
qualquer definição, mais profunda que qualquer exposição racional. No NT a cruz é um
tema constante, e ainda assim é ela em parte alguma reduzida a um conceito amplo e
final. Circunstâncias históricas variáveis, fizeram com que da comunidade apostólica
procedessem a diferentes metáforas para explicar a cruz. Estas figuras, por sua vez,
evoluíram para teorias quanto à “palavra de Cristo”.378 Mas nenhuma das metáforas do
NT pode ser tomada como abrangendo toda a variedade pensamento da igreja primitiva
diante do assunto.379 O tema da cruz jamais é captado completamente por qualquer
“rede” de expressão verbal .
Tampouco deveríamos tentar reduzir a uma fórmula, ou condenar num único
sistema a compreensão neotestamentária multifacetada da cruz. Mesmo Paulo sabia
que melhor era não empreender semelhante tentativa. No Calvário Deus proferiu mais
do que uma palavra solitária. Sua mensagem foi de inexaurível significado a uma
mensagem de reconciliação pessoal, de muitos aspectos, e em cujo cerne se encontra a
substituição. Nossa maior necessidade é a de continuamente nos volvermos de teorias
humanas para as declarações originais da própria Escritura, a qual, em sua abrangência,
variedade e plenitude, refrigeram e satisfazem como nada mais é capaz de fazê-lo.
“A pessoa não deveria dizer: „Ao lado de muitas outras verdades, encontramos
esta nos Evangelhos‟; Nem mesmo deveria: a pessoa dizer: „Esta é a mais importante
verdade do Evangelho‟. Deveria, sim, a pessoa dizer: „Esta verdade é o Evangelho
propriamente dito‟, e todo o restante do Evangelho, se é que posso usar esta expressão,
é tanto a forma que esta doutrina assume, ou a sua tradução, ou a sua aplicação. Esta
verdade é onipresente nos Evangelhos, assim como o sangue acha-se presente em
todas as partes do corpo humano. Tudo nos faz lembrar dela, tudo a reproduz aos olhos
de quem quer que tenha entendido esta verdade primaria; mesmo onde qualquer outra
pessoa nem chegasse a suspeitar de sua presença, quem a compreendeu poderá vê-la,
poderá senti-la: para onde quer que tal pessoa olhe, qualquer o detalhe que venha a
examinar, qualquer a aplicação que possa considerar, em tudo ela encontra e reconhece
a cruz... Elimine do Evangelho, já nem digo a cruz, e sim o significado evangélico da
cruz, e você tornará absurdos e impossíveis estes dezoito séculos”.380
Uma parte da citação de Vinet, o grande teólogo suíço, aparece no frontispício do
clássico volume de George Smeaton, The Atonement as Taught by Christ. Desejei que
ela também aparecesse na conclusão deste ensaio.

Traduzido por: Hélio L. Grellmann


Novembro de 1990

378
Isto num tempo de estruturas feudais, com a honra prometida pelo vassalo ao senhor, o que
estimulou as imagens da satisfação e formulações de Anselmo; o crescente nacionalismo dos séculos
16 e 17, com seus padrões de lei e justiça, trouxeram à proeminência a metáfora da corte de justiça e
a teoria penal. Dois séculos mais tarde, um período de grande reação contrária ao conceito judicial da
expiação e o desenvolvimento dos aspectos antropológicos na compreensão dos indivíduos quanto à
pessoa de Cristo, preparou a rejeição da expiação objetiva e reconciliação correlata, efetuada através
da modificação das condições morais do pecador.
379
Alguns têm igualmente fracassado em compreender e reconhecer que as analogias bíblicas não
podem ser levadas a corresponder ao quadro real em todos os pontos.
380
Alexandre Vinet, Etudes et méditations évangéliques (Lausanne, 1952), II:248, 255. Tradução de
Roger Nicole, “The Nature of Redemption”, Christian Faith and Modern Theology, edição de C. H. F.
Henry (New York, 1954), p. 222.
149

11. O SANTUÁRIO CELESTIAL - FIGURATIVO OU


REAL?
William G. Johnsson
Fonte: Arnold V. Wallenkampf eW. Richard Lesher, editores.
The Sanctuary and the Atonement, pp. 362-79.

Sinopse editorial. Como deveremos considerar as referências ao santuário


celestial no livro de Hebreus? Porventura possuí este santuário uma existência objetiva,
ou é apenas uma idéia? O autor sugere que as referências ao santuário celestial têm
sido consideradas sob uma das três seguintes formas:
1. Sob forma metafórica. Este ponto de vista nega qualquer realidade
objetiva; aos termos concretos se atribuem significados espiritualizados.
2. Sob forma literalística. Esta perspectiva argumenta que cada termo possui
valor literal (“hard value”, no original – N. do Tradutor). A realidade celestial é construída
em todos os aspectos de tal modo a ter exata semelhança com a estrutura terrestre.
3. Sob forma literalizante. Sob este ponto de vista “a realidade do santuário e
ministério celestiais /é/ mantida como que para salvaguardar a objetividade do trabalho
de Cristo, mas detalhes precisos deste santuário podem não nos ser claros”. Este ponto
de vista afirma a realidade do santuário celestial, mas confessa que dispomos de
poucos dados quanto à aparência desta entidade celestial. A maioria dos adventistas
aceitaria este último ponto de vista.
Ao passo que os eruditos católicos geralmente têm lido na Epístola o que
interessam aos seus aspectos litúrgicos, os estudiosos protestantes tem revelado
tendência a negligenciar a mensagem de Hebreus, a qual focaliza o sacerdócio de
Cristo. Mais grave, contudo, tem sido a posição que relega Hebreus apenas a uma
metáfora sustentada. Sacrifícios, sacerdotes, templos e coisas do gênero são
consideradas como “código” - simples “conversa” metafórica relativa ao santuário, que
por sua vez deve ser espiritualizada, em harmonia com a visão de Filo quanto ao
cosmos.
O presente autor descarta qualquer conexão entre o pensamento de Filo e o de
Hebreus, através da demonstração de que os conceitos expressos na Epístola são
contrários aqueles sustentados por Filo. As passagens as quais se apela, são aqui
demonstradas como não provendo apoio às reivindicações de Filo.
A linguagem do santuário israelita impregna o livro e deveria ser tomada como
seu valor de face. Ela aborda o mui real problema humano da contaminação
pecaminosa. A necessidade religiosa fundamental da humanidade e a necessidade de
purificação do pecado. A Epístola aos Hebreus não lida com as preocupações
cosmológicas de Filo, e sim com os grandes temas da redenção através do sacrifício e
sacerdócio de Jesus Cristo - uma redenção antevista - mas jamais concretizada - nos
rituais típicos do santuário terrestre.
Com esta finalidade, a Epístola aos Hebreus “estabelece uma série de bases
para a confiança cristã - divindade real, humanidade real, sacerdote real, concerto real,
sacrifício real e purificação real, acesso real e, para que se mantenha a mesma postura,
um santuário celestial real e um ministério real no mesmo”.

11.1. ESBOÇO DO ESTUDO


150

I. Introdução
II. A Interpretação Metafórica
III. Critica da Interpretação Metafórica
IV. A Interpretação Realística (Literal)

Que o livro de Hebreus se acha impregnado da linguagem relativa ao santuário,


sacerdócio e sacrifícios, é algo evidente mesmo ao leitor superficial. Tal como
demonstrei noutra parte,381 as expressões - que designaremos como a linguagem
cultual do documento - estendem-se para além da argumentação teológica formal. À
medida que o texto original é pesquisado, as referências cultuais são percebidas como
impregnando toda a obra, avançando para as exortações tanto quanto para a teologia.
Por exemplo, o verbo proserchomai (“aproximar”), utilizado nas exortações de 4:14-16 e
10:19-22, é uma palavra cultual que significa o comparecimento do sumo sacerdote
diante da própria presença de Deus.382
O estudo moderno de Hebreus não tem lidado adequadamente com a sua
linguagem cultual.383 Os protestantes em geral - talvez em virtude de seu não apreço de
aspectos rituais - têm manifestado a tendência de negligenciar os temas de Hebreus
que focalizam a Jesus como sumo sacerdote. Esta é indubitavelmente uma fraqueza de
grande importância, pois desta forma se passa por alto aquele que e declaradamente o
ponto principal ou núcleo (kephalaion, Hebreus 8:1-2) do livro. Por outro lado, os
eruditos católicos têm manifestado, ao longo deste século, profundo interesse pelo culto
de Hebreus. Com muita freqüência as suas obras têm refletido preocupações
dogmáticas, como quando procuram encontrar alusões a missa em Hebreus. 384
Portanto, a questão da interpretação da linguagem cultual de Hebreus não veio ainda à
tona; permanece sendo uma questão oculta.385
Mas a questão é ainda mais complexa. Ao lado da negligência geral dos
protestantes quanto aos aspectos cultuais de Hebreus, tem existido muitas vezes uma
interpretação implícita da linguagem cultual, o que, na prática, destrói a força desta
linguagem. Sustenta-se que a “conversa” quanto à sacerdotes, templos e sacrifícios
representa apenas uma sustentada metáfora para explicar a obra de Cristo.386 Em
outras palavras, Hebreus apresenta um código - ou algo do tipo - e deveríamos decifrar
o código a fim de descobrir o intento da Epístola. Lidar apenas com a linguagem de
sacerdotes, santuário e sacrifícios é o mesmo que perder de vista o propósito do
documento. A “conversa” quanto ao santuário celestial, por exemplo, não se aplica a um
lugar efetivo nó Céu, mas deve ser compreendida em harmonia com o pensamento de
Filo.387 Tampouco devemos visualizar - segundo este mesmo raciocínio - um real
381
William G. Johnsson, Defilement and Purgation in the Book of Hebrews (Dissertação de Ph. D.,
Vanderbilt University, 1973), 1° capítuIo.
382
Veja também Hebreus 7:25; 10:1; 11:6; 12:18, 22.
383
Johnsson, Defilement and Purgation, cap. 2; veja também, do mesmo autor, “The Cultus of
Hebrews in Twentieth-Century “, Exp Tim 89/4 (Janeiro de 1978): 104-8.
384
Veja William G. Johnsson, “Issues in the Interpretation of Hebrews”, AUSS 15/2 (1977), números
67-71, para uma bibliografia de obras católicas recentes sobre Hebreus.
385
Ibidem, pp. 169-87.
386
Para Jerome Smith (A Priest for Ever / London, 1969/), todo o argumento de Hebreus é uma
metáfora ampliada.
387
Os mais proeminentes eruditos que se alinham com este ponto de vista são James Moffatt (A
Critical and Exegetical Commentary on the Epistle to the Hebrews /New York, 1924/); E. Kasemann
(Das Wandernde Gottesvolk /Göttingen, 1939/); F. J. Schierse (Verheissung und Heilsvollendung: Zur
Theologischen Grundfrage des Hebräerbrifes /Munich, 1955/); E. Grässer (Der Glaube im
Heb”aerbrief /Marburg, 1965/); G. Theissen (Untersuchungen zum Hebräerbrief /Gütersloh, 1959/); C.
Spicq (L‟Epitre aux Hebreux, 2 volumes /Paris, 1952/); e J. Hering (The Epistle to the Hebrews
151

trabalho sacerdotal de Cristo, de Seu sangue, como um sacrifício celestial. Esses


termos são apenas parte de uma ilustração - ou modelo - consistente da transcendente
obra de Cristo.388
Esta questão é significativa para a Igreja Adventista do Sétimo Dia, ao
recordarmos o lugar que o santuário celestial real ocupa em nossa herança. Nossos
pioneiros e Ellen White há muito tempo volveram-se para o livro de Hebreus à busca de
fortes apoio para um verdadeiro santuário celestial e uma verdadeira obra celestial por
parte de Jesus Cristo, nosso verdadeiro sumo sacerdote. Dissolver estas realidades,
transformando-as em linguajar metafórico, certamente significaria transformar a doutrina
adventista do sétimo dia. Significaria modificar nossa compreensão da realidade
celestial e nossa posição no divino fluxo de eventos, sobretudo diante do importante
significado atribuído a 1844.
Permitam-me fazer uma breve pausa a fim de apresentar umas poucas
referências a Hebreus, encontradas nos escritos de Ellen White, e que mostram a
interpretação realística da linguagem cultual.
“O serviço sacrifical que apontara a Cristo, passou, mas os olhos dos homens
voltaram-se para o sacrifício verdadeiro pelos pecados do mundo. O sacerdócio
terrestre terminou; mas nós olhamos a Jesus, o ministro do novo concerto, e ao sangue
da aspersão, que fala melhor do que o de Abel. O caminho do santuário não estava
descoberto enquanto se conservava em pé o primeiro tabernáculo, (...) mas, vindo
Cristo, o sumo sacerdote dos bens futuros, por um maior e mais perfeito tabernáculo,
(...) não feito por mãos, por Seu próprio sangue, entrou uma vez no santuário, havendo
efetuado uma eterna redenção Hebreus 12:24; 9:8-12”.389
“Cristo Jesus é representado como continuamente em pé junto ao altar, a todo
momento oferecendo o sacrifício pelos pecados do mundo. Ele é ministro do verdadeiro
tabernáculo que o Senhor erigiu, não o homem. As sombras típicas do tabernáculo
judaico não mais possuem qualquer virtude. Uma expiação típica diária e anual não
mais deve ser praticada, mas o sacrifício expiatório através de um mediador é essencial
em virtude da constante prática de pecado. Jesus está oficiando na presença de Deus,
oferecendo Seu sangue derramado, como se fosse um cordeiro morto. Jesus apresenta
a oblação oferecida por cada ofensa e cada fraqueza do pecador”.390
“A pergunta: - Que é o santuário? - é claramente respondida nas Escrituras. O
termo „santuário‟, conforme é empregado na Bíblia, refere-se primeiramente ao
tabernáculo construído por Moisés, como figura das coisas celestiais; e, em segundo
lugar, ao „Verdadeiro tabernáculo‟, no Céu, para o qual o santuário terrestre apontava. A
morte de Cristo, terminou o serviço típico. O „verdadeiro tabernáculo‟, no Céu, é o
santuário do novo concerto. E como a profecia de Daniel, cápítulo 8, verso 14, se
cumpre nesta dispensação, o santuário a que ela se refere deve ser o santuário do
novo concerto”.391
“Tal era o serviço efetuado como „exemplar e sombra das coisas celestiais‟. E o
que se fazia tipicamente no ministério do santuário terrestre, é feito na realidade no
ministério do santuário celestial. Depois de Sua ascensão, começou nosso Salvador à
obra como nosso Sumo Sacerdote. Diz S. Paulo: „Cristo não entrou num santuário feito

/London, 1970/).
388
CT. Moffatt, página xxxi: “O autor escreve a partir de sua própria filosofia religiosa; ou seja, sua
própria entre os autores do NT. O elemento filosófico de seu ponto de vista quanto ao mundo e a
Deus, é fundamentalmente platônico”.
389
O Desejado de Todas as Nações, pp. 165-66.
390
The SDA Bible Commentary, vol. 6, p. 1077.
391
O Grande Conflito, p. 416 (25° edição).
152

por mãos, figura do verdadeiro, porém no mesmo Céu, para agora comparecer por nos
perante a face de Deus‟” (Hebreus 9:24).
“O ministério do sacerdote, durante o ano todo, no primeiro compartimento do
santuário, „para dentro do véu‟ que formava a porta e separava o lugar santo do pátio
externo, representa o ministério em que Cristo entrou ao ascender ao Céu. Era a obra
do sacerdote no ministério diário, a fim de apresentar perante Deus o sangue da oferta
pelo pecado, bem como o incenso que ascendia com as orações de Israel. Assim
pleiteava Cristo com Seu sangue, perante o Pai, em favor dos pecadores, apresentando
também, com o precioso aroma de Sua justiça, as orações dos crentes arrependidos.
Esta era a obra ministerial no primeiro compartimento do santuário celeste.
“Para ali a fé dos discípulos acompanhou a Cristo quando, diante de seus olhos,
Ele ascendeu. Ali se centralizava sua esperança, e esta esperança, diz S. Paulo, „temos
como âncora da alma segura e firme, e que penetra até ao interior do véu, onde Jesus,
nosso Precursor, entrou por nós, feito eternamente Sumo Sacerdote‟. „Nem por sangue
de bodes e bezerros, mas por Seu próprio sangue, entrou uma vez no santuário,
havendo efetuado uma eterna redenção‟ (Hebreus 6:19 e 20; 9:12).
“Durante dezoito séculos este ministério continuou no primeiro compartimento do
santuário”.392
Em contraste, a interpretação “metafórica” ou “espiritualizante” (utilizaremos
estes termos de forma intercambiável nesse estudo, sempre em oposição à
interpretação “realística” ou “literal”) apresenta os seguintes conceitos: (1) Não existe
real santuário no Céu - o “santuário celestial” é uma metáfora para o “universo”; (2) não
existe real sacerdócio celestial de Cristo - a linguagem é eventualmente interpretada em
termos subjetivos, a fim de significar que experiência cristã da salvação (mesmo alguns
intérpretes conservadores por vezes chegam a esta conclusão);393 (3) não existe
“purificação” do santuário celestial; portanto, não há possibilidade de se fixar 1844 como
indicativo de um evento celestial objetivo, que representasse o início de uma nova fase
do ministério celestial objetivo de Cristo.
É possível que alguns estudiosos adventistas do sétimo dia tenham sido
influenciados, no estudo de Hebreus, pela escola metafórica de interpretação.
Evidentemente a pessoa poderia argumentar que semelhante ponto de vista não
necessariamente sinaliza à um abandono de nossa histórica doutrina do santuário -
seria possível apelar a Daniel e Apocalipse como base de sustentação. Pareceria,
entretanto, que se interpretarmos Hebreus metaforicamente, essa doutrina seria
seriamente enfraquecida; de modo bem claro é Hebreus que, diante de sua exposição,
apresenta as mais poderosas declarações bíblicas em apoio a um verdadeiro santuário
e ministério no Céu.
Neste capitulo, portanto, abordaremos esta questão extremamente básica para a
compreensão de Hebreus: A linguagem cultual de Hebreus deve ser interpretada
metaforicamente (espiritualmente), ou de forma realística (literal)?394 Avançaremos em
três passos: (1) a argumentação em favor da interpretação metafórica (2) uma crítica do
ponto de vista metafórico e (3) a argumentação em favor de uma interpretação
392
Ibidem, pp. 419-420.
393
Observe, por exemplo, como F. F. Bruce, em seu comentário de Hebreus (The Epistle to the
Hebrews /London, 1971/) parece favorecer um santuário celestial real em Hebreus 8:1-5, mas em
10:19-22 alegoriza o véu, apresentando-o como a carne de Cristo.
394
Nota: Este capítulo não apresenta as declarações de Ellen G. White relativas a Hebreus. Estas
declarações por si mesmas levantam algumas questões, embora obviamente sempre relacionadas
com um santuário celestial real. As questões levantadas por suas declarações são analisadas em
outro capitulo de The Sanctuary and the Atonement (editores: A. V. Wallenkampf e W. R. Lesher
/Washington, DC, 1981/).
153

realística.

11.2. A INTERPRETAÇÃO METAFÓRICA

Os argumentos em favor deste ponto de vista podem ser classificados tanto sob
o aspecto conceitual quanto exegético. Ou seja, apela-se numa ampla frente à
cosmologia de Hebreus, enquanto versos específicos envolvendo linguagem cultual são
aduzidos como sendo chaves para o intento metafórico do documento. Analisaremos
cada um destes pontos por vez.

11.2.1. A Interpretação Conceitual

Sustenta-se que o mundo do pensamento judaico-helenístico, e particularmente


os escritos de Filo Judeu,395 provê o pano de fundo para a linguagem cultual de
Hebreus. Quando Filo escreveu de um santuário e uma liturgia celestiais, tinha ele uma
visão cósmica na qual o theios logos (“palavra divina”) era o sacerdote: “O mais
elevado, e no mai s genuíno sentido o santo templo de Deus e, conforme devemos crer,
o universo inteiro, tendo como seu santuário a porção mais sagrada de toda a exis-
tência, o próprio céu, como seus ornamentos votivos as estrelas, como seus sacerdotes
os anjos que servem ao Seu poder, almas sem corpo, são formadas por natureza
racional ou irracional”.396
“Foi determinada, portanto, a construção de um tabernáculo, obra da mais alta
santidade, cuja construção foi atribuída a Moisés sobre o monte por divinos
pronunciamentos. Ele viu com o olho da alma as formas imateriais dos objetos materiais
que deveriam ser preparados, e estas formas deveriam ser reproduzidas em cópias
percebidas pelos sentidos, obtidas do esboço original... e de padrões concebidos pela
mente. Era apropriado que a construção do santuário fosse designada a ele, que era
verdadeiramente sumo sacerdote, de modo que seu desempenho dos ritos
pertencentes ao sagrado ofício estivasse no mais completo acordo e harmonia com a
construção”.397
“Um anjo é uma alma intelectual ou um ser inteiramente mental, totalmente
incorpóreo, feito (para ser) ministro de Deus, e indicado para atender certas
necessidades e o serviço da raça dos mortais, pois estes eram incapazes, por sua
natureza corruptível, de receber os dons e benefícios alcançados por Deus... (Daí) era
necessário que Logos fosse apontado como juiz e mediador, e assim é chamado de
„anjo‟”.
“Uma prova muito clara disto é que o nome divino foi atribuído ao anjo. E este é o
principal soberano e mais notável (ser) que os céus e a terra e o mundo inteiro
conhecem”.398
Pretende-se que Hebreus compartilhe deste mundo conceitual. Em apoio a isto,
pode-se salientar os próprios termos usados em Hebreus na descrição do
relacionamento entre os santuários terrestre e celestial - skia (“sombra”), eikōn
(“Imagem”) e hupodeigma (“exemplo”, “copia”) - pois estes possuem raízes platônicas e
são usados por Filo no mesmo contexto.399 Mais importante, porém, é que Hebreus
395
As datas da existência de Filo são incertas: cerca de 20 AC a cerca de 50 AD.
396
De specialibus legibus, ixii.66, em LCL, Philo, VII: 137,139.
397
De Vita Mosis, II.xx.74, em LCL, Philo, VII: 485,487.
398
Quaestiones et Solutiones in Exodum, II.13, em LCL, Philo, Supp. II:48, 51.
399
Veja Moffatt, xxxi-xxxiv, pp. 104-6, 135; também W. F. Howard, The Fourth Gospel in Recent
Criticism and Interpretation (London, 1955), p. 115.
154

compartilha com Filo e Platão o dualismo cosmológico pelo qual o invisível é, em termos
últimos, o real - aquilo que se percebe é apenas transitório. Hebreus 8:2 fala de
alēthinos - o genuíno, ou real - enquanto que ao longo do capítulo 11 se esboça o
contraste entre o terrestre, que é temporário e, em termos últimos, irreal - ainda que
visível - e o celestial, que é o permanente de Deus e, em termos últimos, real - ainda
que invisível.400
A idéia de ir à procura de Filo a fim de encontrar a chave conceitual para
Hebreus, possui forte tradição entre os comentaristas. Moffatt, no ICC,401 é
provavelmente o mais influente destes. Entretanto, ainda que a relação com Filo não
seja diretamente reconhecida, os exegetas muitas vezes traem pelo menos sua adesão
parcial a esta interpretação.
Recente dissertação em Harvard, The Intermediary World and Patterns of
Perfection in Philo and Hebrews,402 de autoria de, L. K. K. Dey, argumenta
extensivamente em favor do mundo de Hebreus à moda de Filo. Avançando para além
dos velhos argumentos baseados nos capítulos 8, 9 e 11, a análise dos capítulos 1 a 7
raciocina que a discussão de anjos, Moisés, “perfeição”, Arão e Melquisedeque - todos
provêm das bases oferecidas pelas categorias de Filo.403
Assim, pois, se Hebreus estiver utilizando a linguagem do santuário celestial e
sua liturgia do modo como Filo o faz (embora num sentido cristianizado, a fim de
oferecer o lugar de honra a Cristo), seria grave erro entender, a partir do documento,
que existe um templo e um trabalho real /no Céu/.

11.2.2. A Interpretação Exegética

Tem sido afirmado que vários versos e expressões da argumentação cultual de


Hebreus 9:1 a 10518 nos oferecem chaves para a compreensão da linguagem cultual.
1. O santuário terrestre, (hagion kosmikon), (9:1). O termo to hagion, na
LXX, muitas vezes significa o santuário como um todo, tal como em Êxodo 36:3 e
Números 3:38.404 Qual é aqui o significado de kosmikon? Para Filo (assim como para
Josefo)405 o santuário terrestre era simbólico do cosmo. A frase hagion kosmikon
deveria ser vista, então, como “um símbolo da ação efetuada sobre o estágio deste
mundo, a fim de ilustrar o que estava ocorrendo ou deveria ocorrer num plano mais
elevado.”406 Ou seja, kosmikon é visto aqui como um uso predicativo do adjetivo, e a
frase hagion kosmikon deveria ser traduzida como “tabernáculo terrestre com um
projeto cósmico”.
2. O “primeiro tabernáculo” (skēnē hē prōtē), (9:2). Qual é a referência
precisa nesse termo? Embora seja claro do texto eu 9:2-4 que a ênfase recai sobre a
distinção entre o primeiro e o segundo compartimentos do tabernáculo (o que se vê
pela análise do mobiliário), sustenta-se que temos aqui uma chave para compreender a
natureza do santuário celestial. Os dois compartimentos sugerem o contraste entre os
santuários terrestre e celestial: o Lugar Santo com seus objetos mundanos é um

400
Veja especialmente Hebreus 11:1, 2, 6, 7, 10, 13-16, 26-27, 30-40.
401
Veja o n° 387.
402
SBL Dissertation Series 25 (Missoula, MT, 1975).
403
É significativo que Dey não tente abranger Hebreus 8 a 10 em sua tese.
404
A. P. Salom (“ta hagia in the Epistle to the Hebrews”, AUSS 5 /Janeiro de 1967/: 60), sustenta que
dos 170 usos de to hagion, 142 referem-se ao santuário em geral. Veja o Apêndice A para a
reimpressão deste artigo.
405
Ant. III. 6:4; III, 7:7.
406
Moffatt, p. 113.
155

símbolo da Terra; o Lugar Santíssimo é um símbolo do Céu.


3. O “Santo dos Santos” (hagia hagiōn), (9:3). Esta é uma referência ao
santuário celestial. Em apoio a este ponto de vista, faz-se referência a Hebreus 9:8 e 9,
onde o lugar santo é um símbolo da velha era (kairos enestēkōs) e o Santo dos Santos
é um símbolo da nova era (kairon diorthoseōs).407 De acordo com essa interpretação
vemos que Hebreus, embora empregando terminologia do santuário, está atribuindo
significado alegórico à mesma.408
4. O “maior e mais perfeito tabernáculo” (9:11). A interpretação centraliza-se
na força do uso do primeiro dia (“através de” ou “por”) na sentença. Pode o termo ser
tomado como instrumental e, de fato, assim é ele usado no verso 12.409 Este verso
sugere que Cristo obteve acesso a Deus por meio de “um maior e mais perfeito
tabernáculo, um instrumento não feito por mãos”, ou seja, Seu corpo. Assim, skēnē
(“tabernáculo”) corresponde à existência terrestre de Cristo.
Em outras partes do NT o corpo de Jesus é identificado como templo (Marcos
14:58; João 1-14;.2:19; Colossenses 2:9), e o livro de Hebreus argumentara
anteriormente quanto a necessidade da encarnação (2:14-16; 5:7). Ou seja, o corpo de
Jesus torna-se o instrumento para a divina salvação da Terra. U. Luk argumenta
adicionalmente em favor desta posição com base em Hebreus 10:5 e versos seguintes,
sustentando que Jesus, em Sua existência como “templo celestial” trouxe o santuário
celestial para a Terra, através de Sua vida. Assim, Seu serviço sacerdotal sobre a cruz
é executado em Seu próprio corpo enquanto templo; na vida e morte de Jesus, Céu e
Terra se encontram dinamicamente.410
5. “O véu, isto é, Sua carne” (10:19-20). A interpretação metafórica procura
nestes versos o seu mais poderoso apoio. Ao passo que as referências anteriores
requerem cuidadoso raciocínio, pretende-se que aqui encontramos evidências muito
claras do intento “espiritualizante” - o véu do santuário celestial é identificado com a
carne (ou corpo) de Cristo.411
Da mesma forma como o véu representa o limite entre acesso e não-acesso a
Deus no templo judaico, assim a existência de Jesus representou um ponto de fronteira
entre o Céu e a Terra.412 Contudo, o véu tanto esconde quanto provê acesso. Assim,
somente por ocasião da morte de Cristo foi o véu removido e revelado Seu verdadeiro
papel como sacerdote. Claramente, pois, se o véu do santuário celestial representa o
código para a Sua carne, podemos igualmente decodificar toda a descrição do
santuário e não mais pensar que existe aqui a intenção de falar a respeito de um
santuário e uma liturgia celestial literais.
Aparentemente, uma forte argumentação em favor de uma interpretação
espiritualizante da linguagem do santuário, em Hebreus, pode ser montada. Embora a
maior parte dos apoios individuais sejam fracos, o efeito cumulativo é ponderável.
Assim, dediquemo-nos agora a uma critica desta interpretação.

407
O mesmo ocorre em Schierse, pp. 29-33.
408
Veja também U. Luk, “Himmlisches und Irdisches Geschehen im Hebrärief”, NovT (1963), p. 211.
409
Hebreus 9:11-12 forma uma sentença contínua; portanto, argumenta-se que dia deveria ser
usado consistentemente em toda ela (ou seja, de modo instrumental).
410
Luk, pp. 209-10.
411
É interessante observar o modo como G. W. Buchanan (To the Hebrews, AB /New York, 1972/)
manuseia esta passagem. Seu comentário opõe-se rigidamente à visão metafórica em seu todo,
argumentando em favor de uma interpretação extremamente literalística. Aqui, entretanto, ele sugere
que a frase “isto é, Sua carne” representa uma glosa posterior - certamente, esta é uma resposta
fraca!
412
N. Dahl, “A New and Living Way”, Int., 5:401-12.
156

11.3. CRÍTICA DA INTERPRETAÇÃO METAFÓRICA

Procederemos a um exame passo-a-passo da argumentação antes apresentada,


dedicando em primeiro lugar atenção aos dados conceituais, e demorando depois na
exegese detalhada.

11.3.1. Aspecto Conceitual

Somente no sentido mais geral é que podemos concordar em que o mundo do


pensamento de Hebreus esta de acordo com o de Filo. Podemos concordar em que
Hebreus, tal como Filo e Platão, localiza aquilo que em termos últimos é real, fora do
reino do sensório. Entretanto, a idéia de procurar pelo extra-sensorial, ou celestial, em
busca do genuíno, não é terreno exclusivo de Platão e Filo.413 Faz parte da visão bíblica
da realidade. Isto é sucintamente declarado em II Coríntios 4:18 - “Não atentando nós
nas cousas que se vêem, mas nas que se não vêem; porque as que se vêem são
temporais, e as que se não vêem são eternas”.
Em três aspectos o santuário de Hebreus é especialmente digno de nota:
1. Hebreus insiste em que Cristo entra num lugar de ministério celestial - em
4:14 Ele “penetra os Céus”; em 4:15, nós temos um sumo sacerdote; em 4:16, o “trono
da graça” supre ajuda em tempo oportuno; em 6:19-20, Jesus entrou “além do véu”; em
8:1-2, “possuímos tal sumo sacerdote... ministro do santuário e do verdadeiro
tabernáculo”; em 8:6, “obteve Jesus ministério tanto mais excelente”; em 9:12, ele
“entrou... uma vez por todas”; em 9:24, “Cristo... entrou... no mesmo Céu”: em 10:12,
Ele “assentou-Se a destra de Deus”;
Esta preocupação com um lugar específico contraria a idéia de Filo. Para este,
aquilo que em termos últimos é real, é acessível apenas ao intelecto. Assim, falar de
uma entrada real num lugar real, conforme parece ser o caso em Hebreus,
representaria um absurdo.414
2. A ênfase temporal de Hebreus representa uma dinamitação
decisiva e, em minha opinião, incontroversível, da interpretação de Filo. Hebreus não
apenas fala do “genuíno” em oposição ao que é visível, mas também argumenta que o
“genuíno” se relaciona com um ponto no tempo. Observamos em 10:1 que “a lei tem
sombra dos bens vindouros”. Segundo o modelo de Filo, o real eternamente
se justapõe ao transitório, este que é skia (“sombra”); mas em Hebreus, aquilo que é
real em termos finais, possui um aspecto vindouro. Não é este todo o impulso do
argumento que deriva de Hebreus 1:5 a 10:18? É nos mostrada a necessidade do Filho,
tanto para a divindade quanto para a humanidade, “para ser misericordioso e fiel sumo
sacerdote” (2:17). A palavra divina de designação (5:5-6; cf. 7:20-21) faz parte deste
padrão. O mesmo ocorre em Hebreus 8:3- “Era necessário que também esse sumo
sacerdote tivesse o que oferecer”.
O resultado final deste raciocínio é mostrar que Jesus tornou-Se nosso sumo
sacerdote celestial. A afirmação uma vez por todas415 salienta o todo suficiente
sacrifício de Si mesmo segundo apresentado no Calvário. Em virtude desta oferta, são
rompidas todas as barreiras entre Deus e o homem, fazendo desaparecer a
necessidade de sacrifícios animais. Portanto, Hebreus focaliza o aspecto temporal: em
primeiro lugar, o fato de o Filho haver-Se tornado homem (a Encarnação); em segundo

413
Ele pertence, de fato, ao pensamento do antigo Oriente Próximo em geral.
414
R. Williamnson, “Platonism and Hebrews”, SJT 16 (1963): 419.
415
Hebreus 6:4; 9:7, 26-28; 10:2; 12:26-27 (hapax); Hebreus 7:27; 9:12; 10:10 (ephapax).
157

lugar, o Seu auto-sacrifício no Calvário. Estas duas realizações O habilitam a iniciar Seu
ministério celestial.
Diante destas idéias, vê-se que a linguagem de Hebreus diverge fortemente do
modelo de Filo. Não mais podemos prender-nos a uma ordem celestial eterna, imutável
e jamais modificada, vastamente distante e intocada pelos eventos desta Terra.416
3. O terceiro ponto é ainda mais drástico. “Era necessário, portanto, que as
figuras das cousas que se acham nos céus se purificassem com tais sacrifícios, mas as
próprias cousas celestiais com sacrifícios a eles superiores” (Hebreus 9:23). O
pensamento de que houvesse qualquer necessidade de modificar as coisas celestiais, é
algo de fazer titubear a mente, e até se pode entender que confunda por completo a
alguns comentaristas!417 O modelo platônico, sozinho, é claramente inadequado aqui.
Parece assim que Hebreus, embora empregando terminologia e alguns
conceitos paralelos aos utilizados por Filo, possui seu próprio conteúdo de significado
distinto. Deveria a obra ser estudada quanto a seus próprios termos, sem relação com
idéias de Filo. Alguns intérpretes recentes de Hebreus tem reexaminado a alegada
relação com Filo e chegaram a um veredito negativo. Foi esta a conclusão de Ronald
Williamson em sua dissertação, Philo and the Epistle to the Hebrews,418 que versou
sobre esse tópico especifico. A. McNicol, em The Relationship of the Image of the
Highest Angel to the High Priest Concept in Hebrews,419 igualmente argumenta em
sentido contrário a uma base de Filo para a epístola
Temos agora de examinar o material exegético. Havendo já assegurado que a
estrutura conceitual de Hebreus diverge da de Filo, temos ainda de testar a linguagem
cultual a fim de ver se ela está sendo usada sob uma forma espiritualizante. Examinare-
mos, portanto, aquelas passagens previamente identificadas como sendo as que,
pretensamente, apresentam evidência em favor da conexão com Filo.

11.3.2. Aspecto Exegético

1. Hagion kosmikon (9:1). O modo mais simples de se ver esse texto, e


considerando kosmikon como sendo um uso substantivo do adjetivo. Desta forma,
hagion kosmikon é meramente uma referência ao tabernáculo do concerto judaico, e
nada mais. O contexto seguramente aponta nessa direção.
No capítulo 8 a discussão centraliza-se nos dois concertos, com a citação de
Jeremias que predisse um novo diathēkē (concerto). Em 9:1 lemos que “a primeira
aliança... o seu santuário terrestre”, e os próximos nove versos desdobram esta
declaração. Os versos 1 a 5 oferecera um esboço do santuário, e os versos 6-10
descrevem brevemente os seus serviços, e estes se apresentam como permitindo
apenas acesso limitado a Deus. Assim, kosmikon em 9:1, aparece em contraste com
epouranios (“celestial”),420 da mesma forma como 9:1-10 estabelece um estágio para o
relato do ministério celestial de Cristo, cujo conceito é elaborado em 9:11 a 10:18. Da
mesma forma como a primeira diathēkē tinha o seu santuário (o “terrestre”, ou
kosmikon), assim a nova diathēkē, inaugurada pelo sangue de Cristo (9:15-18) possui o
seu santuário (o celestial - 9:24-26). Portanto, trazer à baila uma discussão quanto ao
cosmos em 9:1, é um tanto contrario ao contexto.
2. Skēnē hē protē (9:2). No contexto, o termo existe claramente com o
416
Cf. Buchanan, p. 134.
417
Note, por exemplo, a resposta de Spicq a tal idéia: “sem sentido” (11:267).
418
Leiden, 1970.
419
Dissertação de Ph. D., Vanderbilt University, 1974.
420
Hebreus 8:5; 9:23 (veja também 3:1; 6:4; 11:16; 12:22).
158

propósito de estabelecer distinção entre o primeiro e o segundo compartimentos do


santuário terrestre. O breve resumo quanto ao mobiliário de cada um deixa isto claro. A
questão é se devemos ver significado alegórico nestes dois compartimentos, de modo
que eles tenham referências separadas - hē protē Skēnē significando o primeiro
santuário/era/concerto, e he deutera (“segundo”) skēnē significando o celestial
santuário/nova era/ novo concerto. Se esta é a intenção da passagem, certamente tem
ela sido bem disfarçada. Observamos o seguinte:
a) O modo como a discussão sobre os dois compartimentos cessa abruptamente
com peri hōn ouk estin nun legein kata meros:
“Dessas cousas... não falaremos agora pormenorizadamente” (9:5). Ou seja,
somos desestimulados a procurar por detalhes desses dois compartimentos,
buscando sentidos ocultos.
b) Hebreus 9:6-10 segue imediatamente com uma descrição dos serviços do
santuário terrestre, de modo algum oferecendo apoio a um ponto de vista
alegorizante. O Segundo Compartimento não é apresentado como um lugar de
acesso desobstruído; de fato, sumo sacerdote nele podia penetrar apenas uma
vez ao ano, e “não sem sangue” (9:7). Em outras palavras, toda a passagem
(9:1-10) aparece como um conjunto, na qualidade de descritiva do velho
santuário e seus serviços. Em seu total, o antigo culto era inadequado em dois
aspectos: o acesso limitado e a ausência de aspecto final de seus sacrifícios
(demonstrada por seu fracasso em “aperfeiçoar” a sunēidésis /”consciência”/ do
adorador - veja 9:9).421
c) O argumento subseqüente é que 9:11 a 10:18 mostra como a morte de Cristo e
o ministério no santuário celestial realizam aquilo que não foi possível conseguir
através do antigo culto. A nova experiência tanto quebra todas as barreiras entre
Deus e o homem422 quanto provê um sacrifício todo suficiente, final,423 de modo
que não mais é necessário relembrar os pecados.424 Nesta longa argumentação,
embora por vezes encontremos o contraste entre o velho e o novo culto, 425 não
encontramos este contraste em termos dos dois compartimentos do santuário
terrestre.
Portanto, o santuário terrestre inteiro, e não meramente o primeiro
compartimento, representava uma parábola da antiga era, ainda presente naquele
tempo (ton kairon ton enestēkota), o qual cumpre o propósito de Deus “até ao tempo
oportuno de reforma” (9:10).426
3. O “maior e mais, perfeito tabernáculo” (9:11). Interpretar skēne como a
existência corporal de Jesus, é injustificado. Em todas as demais referências a skēne no
livro de Hebreus (8:1, 5; 9:2, 3, 6, 8, 21; 11:9; 13:10), o significado é claramente
atribuído ao santuário. Tampouco é o substantivo skēne usado em relação ao corpo de
Jesus em qualquer outra parte do NT. O ponto é muito importante porque Hebreus, em
particular - talvez como nenhum outro livro do NT - enfatiza a humanidade de Jesus.
Mas o termo é sarx (2:14; 5:7; 9:10, 13-14; 10:20; 12:9). Em 8:2 Cristo é identificado
como leitourgos (“ministro”) do santuário celestial, e este é imediatamente descrito
421
Desenvolvi com algum nível de detalhe a exegese de 9:1 a 10:18 em Defilement and Purgation, o
capítulo 4 de minha dissertação. Veja uma breve discussão no capítulo 5 deste livro.
422
Hebreus 4:14-16; 6:19-20; 9:6-12, 24-25; 10:19-22; 12:18-24.
423
Hebreus 2:17; 7:27; 8:3; 9:13-14, 15-24, 26-28; 10:4, 11-14.
424
Hebreus 9:9-10; 10:1-4, 15-18.
425
Hebreus 9:6-10, 13:14, 18-23; 10:1-4.
426
A mesma conclusão é obtida por McNicol, pp. 153-58, e por O. Hofius, “Das Erste und das zweite
Zelt - ein Beitrag zur Auslegung von Heb. 9:1-10”, Zeitschrift für die neutestamentliche Wissenschaft
und die Kunde des Urchristentums 61 , n°s. 3-4 (1970): 274-75.
159

como. tēs skēnēs tēs alēthinēs (“do verdadeiro tabernáculo”). Esta referência, sozinha,
pareceria capaz de negar a interpretação metafórica de 9:11.
O que dizer, pois, da força de dia no verso 11? O tantas vezes repetido
argumento da consistência - ou seja, uma vez que no verso 12, dia possui claramente
um sentido instrumental (“pelo Seu próprio sangue”), deve o termo ter o mesmo sentido
no ponto anterior desta longa sentença (ou seja, no começo do verso 11) - não é
correto. Foi claramente demonstrado que em outras partes do NT a mesma preposição
pode funcionar em diferentes sentidos, mesmo quando em sucessão imediata.427
Assim, dia no verso 11 deve ser interpretada localmente. Temos uma descrição de
Cristo ascendendo ao santuário real, o celeste. A passagem é paralela a 4:14, “grande
sumo sacerdote que penetrou os céus”; a 6:19-20, “Jesus... entrou... além do véu”; a
8:1-2, “possuímos tal sumo sacerdote, que Se assentou à destra do trono da Majestade
nos céus”; e a 9:24-25, “Cristo não entrou em santuário feito por mãos... porém no
mesmo Céu.”
4. “Pelo véu, isto é, pela Sua carne” (10:19-20). É aqui que a interpretação
metafórica procura seu último ponto de apoio. Ao exame, contudo, este ponto de vista,
que ao leitor casual da KJV parece convincente, é impossível. Se queremos dizer que
katapetasma é igual a carne, o que faremos com as anteriores referências ao véu? O
“segundo véu” de 9:3 é indubitavelmente uma cortina literal, o divisor entre o lugar santo
e o Lugar Santíssimo do santuário do VT. A passagem de 6 :19-20 , adicionalmente,
não pode ser interpretada alegoricamente. Cristo, como nosso precursor, entrou “além
do véu... tendo-Se tornado sumo sacerdote para sempre, segundo a ordem de
Melquisedeque”. Diante de nenhum esforço de imaginação pode katapetasma (“véu”)
igualar-se aqui à carne de Cristo. Deve-se assegurar um uso local, e observe os
paralelismos entre 6:19-20 e 10:19-20, 22:

6:19-20 10:19-20, 22
Confiança, ”âncora da alma” Plena certeza de fé
Cristo entrou Cristo inaugurou
Sumo sacerdote Grande sacerdote
Véu Véu
Precursor Por nós... aproximemo-nos

Como, pois, deveremos entender a expressão “pelo véu, isto é, pela Sua carne”?
Somente podemos entendê-la mediante o reestudo de 10:19-20 em sua totalidade.
Simplesmente porque “isto é, pela Sua carne” segue imediatamente katapetasmos, não
necessariamente significa isto que esta palavra deve estar vinculada àquela em sentido.
A alternativa é ver hodon (“caminho”) como o ponto de referência, conforme o fizeram
os tradutores da NEB – “Assim, meus amigos, o sangue de Jesus nos torna livres para
entrarmos audaciosamente no santuário pelo novo e vivo caminho que Ele abriu para
nós através do véu, o caminho da Sua carne” (10:19-20).
Argumento adicional foi suprido por Jeremias,428 que convincentemente
destacou a estrutura em quiasma do texto de 10:19-20, e isto mostra que hodon deve,
de fato, ser vinculado com o significado de tout‟ estin tes sarkos autou (isto é, da Sua
carne).

427
O. Hofius, “Inkarnation und Opfertod Jesu nach Hebr 10, 19f.”, Der Ruf Jesu und die Antwort der
Gemeinde, edição de E. Lohse, C. Burchard e B. Schaller (Göttingen, 1970), pp. 132-141.
428
J. Jeremias, “Hebräer 10:20 - tout éstin tés sarkos autou”, ZNW 62 (1971): 31. Este artigo oferece
apoio à conclusão anteriormente alcançada por O. Hofius (n° 46).
160

Verso 19 Verso 20
(a) pelo novo e vivo caminho
(a) para entrar no
(hodon prosphaton kai zōsan)
(eis tēn eisodon)
(b) pelo véu
(b) Santo dos Santos
(dia tou katapetasmatos)
(tōn hagiōn)
(c) isto é, pela Sua carne
(c) pelo sangue de Jesus.
(tout‟ estin tēs sarkos autou)
(en tō haimiti lēsou)

Assim, após o exame de cada uma das passagens de Hebreus que são citadas
como pretensamente oferecendo apoio à interpretação metafórica do culto celestial,
vemos que elas não provêem o apoio tantas vezes imaginado.

11.4. A INTERPRETAÇÃO REALÍSTICA (LITERAL)

Dificilmente haveria necessidade de acrescentar algo aos nossos comentários


anteriores. Vimos na porção inicial do estudo o quanto a linguagem cultual permeia o
livro de Hebreus. Este fator é tão presente, que estamos em posição segura ao declarar
que, a menos que nos sejam dadas convincentes indicações neste escrito, de que esta
linguagem não deve ser tomada em sentido literal (“valor de face”), somos obrigados a
assim considerá-la. Somente se a argumentação cultual deva ser vista como sem
sentido em si mesma, e que poderíamos ser justificados ao “lançar ao espaço” a
interpretação literal de Hebreus.
Mas a interpretação realística de modo algum é sem significado! Demonstrei
noutro estudo429 como o problema do homem, a contaminação, acha-se expressa em
Hebreus sob a maneira mais básica, uma vez que sua necessidade religiosa é de
purificação. Estas idéias encontram-se no próprio cerne de Hebreus, e aparecem em
termos cultuais.
Podemos acrescentar brevemente dois pontos ao que já foi dito. Em primeiro
lugar, a interpretação realística mantém-se em acordo com o propósito homilético de
Hebreus. Esse propósito, conforme demonstrado por um estudo das exortações,430 é
edificar a confiança na obra de Cristo, demonstraria superioridade da religião cristã,
advertir contra a negligência gradual ou a rejeição definida, e estimular a perseverança
até ao fim. Deste modo, estabelece o documento uma série de bases para a confiança
cristã - divindade real, humanidade real, sacerdote real, concerto real, sacrifício real,
purificação real, acesso real e, em harmonia com estes aspectos, um santuário e um
ministério celestiais reais.
Em segundo lugar, não deveríamos supor que todos os judeus do primeiro
século entretinham uma visão metafórica do culto celestial. De fato, torna-se a cada dia
mais claro que muitos grupos judeus criam num santuário e numa liturgia celestiais de
verdade. Os escritos apocalípticos do judaísmo indicam tal concepção; por exemplo: “E
nele /o tabernáculo celestial/ estão os anjos na presença do Senhor, que ministram e
fazem propiciação pelo Senhor por todos os pecados da ignorância dos justos, e eles
oferecem ao Senhor um aroma agradável, uma oferta razoável e sem sangue”.431 “E
que o Senhor te conceda... servir em Seu santuário como os anjos da presença e os

429
Johnsson, Defilement and Purgation.
430
Hebreus 2:1-4; 3:7 a 4:16; 5; 11 a 6:18; 10:32-39; 12:1 a 13:21.
431
Test. of Levi 3:5-7.
161

santos”.432 “Aproxima-te de Deus e do anjo que intercede por ti, pois ele é um mediador
entre Deus e o homem”.433
Ao mostrar estes paralelos, não queremos sugerir que Hebreus depende de tais
fontes não bíblicas. Efetivamente, a apresentação de Hebreus é singular em seu caráter
cristão e cristocêntrico. Em vez de ministros angélicos, o livro reconhece apenas um
Sumo Sacerdote - Jesus Cristo. Em vez de exaltar Melquisedeque, mostra o livro que
este meramente tipificava a Cristo.434 Contudo, estando conscientes destas outras
idéias relativas ao culto celestial, paralelamente ao cristianismo do primeiro século,
vemos sua utilidade em pelo menos dois aspectos: (1) Estamos em melhores condições
de compreender a linguagem cultual de Hebreus; ao passo que o texto compartilha de
conceitos encontrados nos apocalipticistas, assim como dos de Filo, não se pode
considerar que o livro é inspirado em Filo, sem séria qualificação. (2) Podemos
compreender a preocupação de Hebreus em analisar o papel dos anjos e o de
Melquisedeque.435
Finalmente, segundo parece claro, uma interpretação realística/literal da
linguagem cultual de Hebreus é requerida pela evidência do texto. Até que ponto
deveríamos ser literalísticos? Por exemplo, ao lermos sobre o “sangue” de Cristo,436
deveríamos entendê-lo como o Seu sangue real, sendo oferecido no santuário
celestial? Somos conduzidos, assim, a vislumbrar três possíveis formas de interpretar
Hebreus: (1) a visão metafórica ou espiritual, que é deficiente, conforme tentamos
demonstrar no presente capítulo; (2) a visão literalística, na qual cada termo possui
valor literal - diante do santuário celestial, o terrestre seria uma miniatura em todos os
aspectos; e (3) a visão literalizante, na qual a realidade do santuário e do ministério
celestial deveriam ser mantidos para a salvaguarda da objetividade do trabalho de
Cristo, mas em que detalhes precisos deste santuário poderiam não nos ser claros.
Em meu juízo, o livro de Hebreus não nos ajuda decisivamente na solução de 2
e 3, citados acima. Embora o argumento não necessariamente exclua a possibilidade
de ser o santuário celestial uma versão glorificada do terrestre, deveríamos observar o
seguinte: (1) O celestial é o genuíno, o verdadeiro, de modo que deveríamos ver o
terrestre à luz do celestial, e não ao contrario.437 (2) Em 9:24 lemos apenas “céu”,
certamente uma descrição demasiado curta e geral. (3) A falta de interesse em estabe-
lecer linhas de comparação entre o santuário terrestre e o celestial é demonstrada nas
concisas palavras de 9:5. E (4) a ênfase em 9:1 a 10:18 recai sobre o trabalho realizado
por Cristo; parece não haver interesse em oferecer detalhes quanto aos aspectos que
lhe estão à volta. Portanto, é aparente que, ao mesmo tempo em que afirmamos a
realidade do santuário celestial no livro de Hebreus, estamos diante de relativamente
pouco dados literais quanto à sua aparência.

Traduzido Pro: Hélio L. Grellmann


Novembro de 1990

432
Jubilles 31:14.
433
Test. of Dan. 6:2.
434
Existem fortes evidências quanto à exaltação de Melquisedeque no âmbito da seita de Qumran.
435
Um dos Manuscritos do Mar Morto faz referência à obra mediatória de Melquisedeque no
santuário celestial.
436
Hebreus 9:12, 14; 10:19, 29; 12:24; 13:12, 20.
437
Hebreus 8:1-5.
162

12. ALUSÕES AO DIA DA EXPIAÇÃO


William G. Johnsson
Fonte: Arnold V. Wallenkampf e W, Richard Lesher, editores
The Sanctuary and the Atonemént, pp. 380-93.

Sinopse editorial. De que modo devemos entender as alusões ao Dia da


Expiação, encontradas no livro de Hebreus? Porventura a Epístola aponta à cruz
como antítipo do ritual do Dia da Expiação, conforme asseveram alguns? Caso
positivo, de que modo podemos procurar pelo inicio do antitípico dia da expiação - o
julgamento pré-advento - em 1844? Estas são questões sérias, uma vez que dizem
respeito às próprias raízes da Igreja Adventista do Sétimo Dia. Desgraçadamente,
ao longo dos anos alguns ministros e membros tem encontrado o seu "Waterloo
teológico" em Hebreus, perdendo-se no caminho.
O conceito do ministério sacerdotal em duas fases, de Cristo, no santuário
celestial, representou a "chave" que resolveu o amargo desapontamento vivenciado
por nossos pioneiros em 1844. No livro de Hebreus aprenderam eles que nem a
terra, nem a igreja eram o santuário da Bíblia. Em vez disso, perceberam que Cristo.
ministrava em seu favor no santuário celestial, do qual o tabernáculo/templo israelita
era um tipo. A partir do tipo terrestre, captaram eles a importância e significado das
duas divisões de Sua obra.
Portanto, nossos pioneiros chegaram a compreender que em 1844 - a data de
encerramento da profecia dos 2300 dias de Daniel - Cristo adentrou o Lugar
Santíssimo a fim de iniciar a segunda fase de Seu ministério sacerdotal, conforme
antecipado pelo ritual do Dia da Expiação. Completando-se este ministério adicional,
Ele retornará segunda vez à Terra, para buscar Seu povo. A partir deste princípio
nossos pioneiros chegaram a descobrir uma série de verdades entrelaçadas, assim
como as razões proféticas justificadoras do surgimento e missão de um povo
remanescente no fim do tempo.
Em sendo assim as coisas, por que o livro de Hebreus tem levado alguns
adventistas a abandonar a igreja em virtude da doutrina do santuário, já que este
mesmo livro habilitou originalmente nossos pioneiros a explanarem o
Desapontamento? A resposta parece jazer - pelo menos em parte - no fracasso em
captar a principal argumentação da Epístola. Albion F. Ballenger (1861-1921),
ministro que abandonou a igreja em 1905 em virtude da doutrina do santuário, pode
ser tomado como exemplo. O principal argumento que ele obteve de Hebreus, pelo
fato de ver a cruz como o antitípico dia da expiação, foi a expressão "além do véu"
(Hebreus 6:19-20). A partir desta expressão inferiu ele que por ocasião da ascensão,
Cristo iniciou Seu ministério "dentro do véu", ou seja, no Lugar Santíssimo do
santuário celestial.
O presente autor concorda em que os dados lingüísticos (VT em hebraico e a
tradução grega Septuaginta do VT) de modo geral parecem oferecer apoio à
argumentação de Ballenger, de que a frase "além do véu" se refira ao Lugar
Santíssimo. Contudo, ele argumenta que a exegese isolada de Ballenger, do texto
de 6:19-20, levou este último a distorcer a real mensagem de Hebreus e a
estabelecer conclusões equivocadas. Diz o presente autor: "Ele /Ballenger/ falhou
em estudar suficientemente o livro de Hebreus em si mesmo. O primeiro princípio de
exegese convoca o estudante a considerar o contexto. "Tal exame do contexto
poderia havê-lo levado a considerar o propósito pelo qual foram empregadas
alusões ao Dia da Expiação. O propósito do autor em empregar tais alusões é
163

crucial se se deseja obter uma compreensão correta de sua mensagem.


No livro de Hebreus três passagens apresentam de modo não ambíguo a obra
de Cristo no Calvário em contraste com as imagens dos serviços do Dia da Expiação
(Hebreus 9:6-7, 24-25; 10:1-4). É inconclusiva a possibilidade de oito outras
passagens sugeridas, de estarem aludindo ao Dia da Expiação. Entretanto, ainda
que se conceda que o autor está pretendendo estabelecer estas alusões, a questão
importante é determinar o modo como as alusões devem ser entendidas. Talvez
deva ser declarado neste momento aquilo que é axiomático: todos os sacrifícios
rituais - quer diários ou anuais, quer públicos ou particulares – apontavam em
direção à cruz e encontraram seus aspectos sacrificiais na morte de Cristo. Todavia,
outras características dos mesmos poderiam encontrar seu pleno cumprimento tão-
somente em conexão com o ministério sacerdotal de Cristo, subseqüente ao
Calvário.
É evidente que as alusões ao Dia da Expiação de modo algum são centrais
na discussão de Hebreus. O argumento sacrifical (8:1 a 10:18) não é o Dia da
Expiação, e sim o melhor sangue de Cristo. O sangue animal - quer na forma de
sacrificio diário, particular ou anual - não podia efetivamente limpar do pecado (10:4).
Mesmo em seu ponto mais alto - o ritual do Dia da Expiação - os ritos levíticos eram
inadequados.
A boa nova, diz o autor de Hebreus, é que aquilo em que o antigo sistema -
incluindo-se neste o Dia da Expiação - demonstrara fracassar em vista de suas
insuficiências inerentes, foi agora realizado por Cristo no Calvário. Em vez de
sacrifícios repetidos, Ele realizara apenas um, uma vez por todas. Assim, por este
ato único, todas as barreiras entre a Divindade e o homem haviam sido abolidas, de
modo que podemos aproximar-nos ousadamente da presença de Deus.
"As referências ao Dia da Expiação em Hebreus, portanto, não se designam a
mostrar que o dia antitípico da expiação começou quando da ascensão (contrariando
Ballenger), nem a sugerir uma breve entrada no santíssimo a fim de inaugurá-lo
(contrariando Andross), nem a estabelecer o primeiro cumprimento do ponto alto do
VT, iniciando-se o cumprimento pleno em 1844 (não abordado em Hebreus). Em vez
disso, o argumento gira em torno do valor relativo do sacrifício, contrastando o ápice
do culto do AT com as muito melhores realizações de Jesus Cristo no Calvário". A
comparação e o contraste centralizam-se na eficácia do sacrifício de Cristo e no livre
e direto acesso que ele provê a presença de Deus.
Desta forma, o uso que o autor faz das imagens do Dia da Expiação, serve
para destacar o fato de que a morte de Cristo realizou permanente purificação do
pecado e obteve acesso a Deus - consecuções que o antigo ritual, mesmo em seu
ponto mais notável, não conseguiu. Não foi, portanto, propósito primário do autor de
Hebreus prover uma exposição detalhada do significado dos rituais diários ou
anuais, além dos aspectos citados. Tais assuntos são de tremenda importância para
nós, mas eles não fazem parte de sua preocupação pastoral neste ponto de seus
escritos.

12.1. ESBOÇO DO ESTUDO

I. Introdução
II. O Tratamento de Ballenger Para "Além do Véu"
III. Alusões ao Dia da Expiação em Hebreus
IV. Interpretações das Alusões ao Dia da Expiação
164

Bem cedo em sua historia denominacional, os adventistas do sétimo dia


consideraram Hebreus como fonte para a sua compreensão singular do santuário e
ministério celestiais. Conforme argumentei em estudo anterior, a interpretação da
linguagem cultual de Hebreus acha-se pejada de grandes conseqüências para a
teologia ASD. Se assumirmos a posição de que o templo, sacrifício e ministério
celestiais são meramente figurativos, nosso ensinamento quanto ao santuário terá
de ser reordenado.438
Este estudo pressupõe os resultados na apresentação anterior. Ou seja,
sustentamos que a linguagem cultual de Hebreus está de acordo com o modelo do
judaísmo apocalíptico, e não com o modelo de Filo, e aponta a um real templo e
ministério de Cristo no Céu. Entretanto, surge uma nova questão: como devemos
entender as alusões ao Dia da Expiação encontradas no livro de Hebreus? Uma vez
que aceitemos um literal santuário celestial, porventura o livro aponta à cruz como
sendo o antítipo do Dia da Expiação do VT?
A importância da questão é óbvia. Se o Calvário for considerado como o Dia
da Expiação do NT, o que acontece com a nossa ênfase sobre 1844, como sendo o
inicio do dia antítipico da expiação? Se assim for, o livro de Hebreus, ao qual os
adventistas tantas vezes têm apelado em favor de suas doutrinas mais singulares,
provar-se-á o nosso Waterloo teológico.
Não é de surpreender que a história do pensamento ASD seja eivada de
controvérsia quanto ao assunto.439 O mais famoso esforço é o de Albion Foss
Ballenger, através de Cast Out for the Cross of Christ.440 Contudo, em época tão
precoce quanto 1846, O. R. L. Crosier sentiu a força do problema,441 e em 1877
Uriah Smith ofereceu-lhe consideração.442 Também D. M. Canright argumentou que
Jesus entrou no Lugar Santíssimo quando de Sua ascensão, 1800 anos antes de
1844.443 Um líder australiano da Igreja Adventista do Sétimo Dia, W. W. Fletcher,
arrolou este assunto como uma das razões para a sua defecção.444 Outros que
contribuíram com o debate, incluem E. E. Andross, cujo livro, A More Excellent
Ministry,445 procurou responder ao trabalho de Ballenger; W. H. Branson,446 H.
Watson,447 e W. E. Howell.448
A questão tem sido enfrentada com fortes convicções e dolorosos resultados
nas ocasiões em que alguns irmãos de experiência e estatura chegam a partir de
entre nós, em virtude da controvérsia. Assim, requer-se em nossos dias particular
cuidado ao procurarmos entender o pensamento de Hebreus.
Não temos aqui a pretensão de considerar toda a argumentação de
Ballenger.449 Nosso ponto focal neste trabalho é sobre as alusões ao Dia da
438
William G. Johnsson, "The Heavenly Sanctuary - Figurative or Real?", capítulo 3 deste volume.
439
Ao escrever este parágrafo, elaborei sobre material escrito por Norman Young, num artigo não
publicado, intitulado "The Checkered History of the Phrase 'Within the Veil'".
440
Publicado pelo autor, Trópico, CA, sem data.
441
“The Law of Moses", The Day Star (Feveriero 7, 1846), página 41.
442
The Sanctuary and the Twenty-Three Hundred Days of Daniel VIII 14 (Battle Creek, MI, 1877):
221 e seguintes.
443
Seventh-day Adventism Renounced (New York, 1899), p. 122.
444
The Reasons for My Faith (Sydney, 1932), p. 11.
445
Mountain View, CA, 1912.
446
Reply to Can right (Washington, DC, 1933), pp. 222-23.
447
The Atoning Work of Christ (Washington, DC, 1934), pp. 181-91.
448
"The Meaning of the Veil", The Ministry 13/11 (1040): 13 e seguintes.
449
Para um estudo mais detalhado, veja Arnold V. Wallenkampf, "A Brief Review of Some of the
Internal and External Challengers to the Seventh-day Adventist Teachings on the Sanctuary and the
Atonement", The Sanctuary and the Atonement, edição de Arnold V. Wallenkampf e W. Richard
165

Expiação em Hebreus e sua interpretação. De acordo com isto, restringiremos nossa


crítica da tese de Ballenger no que tange ao tratamento por ele proposto a frase
"além do véu", que é o principal argumento por ele suscitado em Hebreus em apoio
à sua visão de que a cruz representa o dia antitípico da expiação. Volver-nos-emos
depois para o texto de Hebreus propriamente dito, a fim de examinar suas alusões
ao Dia da Expiação. Finalmente, tentaremos interpretar estas alusões.

12.2. O TRATAMENTO DE BALLENGER PARA "ALÉM DO VÉU"

Hebreus 6:19-20 é o verso crucial no argumento de Ballenger: "Cuja


esperança temos como âncora da alma, segura e firme, e que entra para dentro do
véu; onde o precursor entrou por nós, Jesus, feito sumo sacerdote para sempre,
segundo a ordem de Melquisedeque". (KJV).
Observe como o seu argumento é construído sobre a ausência de
especificação na frase "dentro do véu": "Ora, se a Escritura em Hebreus 6:19
houvesse dito que Cristo entrara no 'primeiro véu', a questão estaria clara; mas o
texto simplesmente diz que Cristo entrou 'dentro do véu'. Uma vez que o autor usa o
termo sem explaná-lo, assumindo que seus leitores sabiam a que lugar ele se
referia, surge a todo-importante questão: A qual lugar - para dentro do primeiro véu,
ou do segundo - deveria o leitor entender a referência da expressão "dentro do véu"?
Se o termo 'alem do véu' devesse ser entendido como aplicando-se ao primeiro
compartimento, então seria de esperar que ele houvesse sido aplicado de modo tão
universal nas Escrituras do Velho Testamento, que o leitor não hesitasse em aplicá-
lo ao primeiro compartimento, mas quando vim a estudar cuidadosamente o assunto,
constatei que o termo 'dentro do véu', no Velho Testamento, jamais se aplica ao
lugar que está além da porta do tabernáculo", ou primeiro compartimento, mas
sempre ao Santo dos Santos, para dentro do véu que separava o Santo do
Santíssimo. Constatei que as Escrituras hebraicas jamais identificam a cortina junto
à porta do tabernáculo como um „véu', e muito menos 'o véu'. Por outro lado, o termo
'véu' é aplicado a cortina que separa o santo do santíssimo; e o termo 'dentro do véu'
aplicasse unicamente ao Santo dos Santos".450
Em harmonia com o exposto, observamos os seguintes pontos desenvolvidos
em ordem por Ballenger:

12.2.1. O Termo Hebraico Para "Véu" (Pārōket)

Em todos os casos o termo hebraico pārōket aplica-se a segunda cortina,


aquela que separa o lugar santo do lugar santíssimo. Em contraste, a primeira
cortina, em todo o VT, e identificada como "porta do tabernáculo".451 Ballenger cita
as 23 referências a pārōket em apoio a Sua afirmação (Êxodo 26:31, 33, 35; 27:21;
30:6; 35:12; 36:35; 38:27; 39:34; 40:3, 21-22, 26; Levítico 4:6, 17; 16:2, 12, 15;
21:23; 24:3; Números 4:5; 18:7; II Crônicas 3:14).
Ao examinarmos estas passagens, constatamos que em quase todos os
casos a referência é feita claramente ao segundo véu. Em dois lugares, entretanto, o
significado está aberto a questionamento: (1) "Porém até ao véu não entrará, nem se
chegará ao altar, porque tem defeito, para que não profane os Meus santuários;

Lesher (Washington, DC, 1981), pp. 582-603; reimpresso em Frank B Holbrook, editor, Doctrine of the
Sanctuary: A Historical Survey (Washington, DC, 1988), Apêndice B.
450
Ballenger, pp. 20-21.
451
Ibidem, pp. 21-27.
166

porque Eu sou o Senhor que os santifico" (Levítico 21:23); e (2) "Mas tu e teus filhos
contigo atendereis ao vosso sacerdócio em tudo concernente ao altar, e ao que
estiver para dentro do véu, isto é vosso serviço; Eu vos tenho entregue o vosso
sacerdócio por ofício como dádiva; porém o estranho que se aproximar morrerá"
(Números'18:7).
Adicionalmente, deveríamos observar que o segundo véu nem sempre é
designado apenas como "o véu", ou seja, pelo termo pārōket, sem aplicação: "o véu
que está diante do testemunho" (Êxodo 27:21), "véu que está diante da arca do
testemunho" (Êxodo 30:6), "véu do reposteiro" (Êxodo 35:12), "véu do reposteiro"
(Êxodo 39:34), "véu do reposteiro" (Êxodo 40:21), "véu do santuário" (Levítico 4:6),
"véu que está diante do testemunho" (Levítico 24:3) e "véu de cobrir" (Números 4:5).
Assim, embora os dados do VT apóiem Ballenger aqui, ele superestimou o
argumento ao declarar que "o Senhor invariavelmente aplica o termo /'véu'/ à cortina
que separava o Santo do Santíssimo. Jamais Ele identificou a primeira cortina como
'o véu‟ nas Escrituras hebraicas... O Senhor foi cuidadoso em nomear as duas
cortinas, dando a uma delas o nome 'a porta do tabernáculo' e á segunda o nome de
„véu'".452

12.2.2. O Termo da LXX Para "Véu" (Katapetasma)

Ballenger volve-se agora para a Septuaginta: "Jamais na Septuaginta /sic/ é a


primeira cortina identificada como véu exceto nas orientações para a construção e
remoção do tabernáculo, e mesmo assim apenas numa conexão que identifica
claramente a qual cortina está sendo feita a referência".453 A palavra grega em
questão é katapetasma. É verdade que está palavra, que também é usada em
Hebreus 6:19 no sentido de "véu", é utilizada regularmente como referência ao véu
do Segundo Compartimento. Tal como ocorre com pārōket, entretanto, o termo
ocorre com qualificações e sem elas, tal como em Êxodo 27:21 - "véu que esta
diante do testemunho"; e em Êxodo 30:6 - "véu... que está sobre o Testemunho".
Em pelo menos um lugar, contrário ao que afirma Ballenger, o uso não
qualificado refere-se ao primeiro véu, conforme revela cuidadoso estudo de Êxodo
26:31-37. Nos versos 31 a 35 o segundo véu é apresentado com quatro postes,
partes superiores de ouro e soquetes de prata (cf. Êxodo 37:3 e 4, onde o segundo
véu possui quatro postes e soquetes de prata). No verso 37 katapetasma que
aparece sem qualificação, possui cinco postes, partes superiores de ouro e soquetes
de bronze (cf. Êxodo 37:5-6, onde o primeiro véu possui cinco postes e soquetes de
bronze). De modo muito claro, a referência do verso 37 diz respeito ao primeiro véu;
a afirmativa de Ballenger, de que "sempre que o termo aparece na Septuaginta /sic/
sem qualificação, refere-se ele ao véu que separa o lugar santo do lugar
santíssimo",454 é incorreta em pelo menos um caso.
A parte desta falha na pesquisa de Ballenger, seu argumento quanto ao uso
de katapetasma não é tão forte quanto aquele que diz respeito ao uso de pārōket,.
Isto ocorre porque katapetasma é usado na LXX como tradução de pārōket, e
também de masak, e assim pode referir-se tanto à cortina pendente na porta do
pátio (primeiro véu) quanto ao segundo véu.455

452
Ibidem, p. 27.
453
Ibidem.
454
Ibidem, pp. 27-28. Sinto-me endividado para com um estudante doutoral da Andrews University,
Lloyd A. Willis, por haver trazido este ponto a lume.
455
Veja Êxodo 38:18; 39:40; Números 3:26; 4:32; veja também o Apêndice B deste volume.
167

12.2.3. Os Termos "Dentro do Véu" e "Fora do Véu"

Como terceiro argumento, Ballenger estuda o uso de "dentro do véu" e "fora


do véu" no VT. Ele constata que as cinco ocorrências da primeira frase (Êxodo
26:33; Levítico 16:2, 12, 15; Números 18:7), "na mente do estudioso das Escrituras
hebraicas, aplicam-se ao santo dos santos, e não ao primeiro compartimento".456 Ele
procura então os lugares em que ocorre a expressão "fora do véu" ou "diante do
véu" (Êxodo 26:35; 27:20-21; 40: 22, 26; Levítico 4:6, 17; 24:1-3) e conclui que
ambas as expressões "invariavelmente se referem ao lugar santo, ou primeiro
compartimento".457 O argumento, embora forte, e superestimado. Já destacamos
antes que a referência em Números 18:7 é ambígua, mas que o véu é
adicionalmente amplificado em Êxodo 27:21; 40:21; e em Levítico 4:6; 24:3.
Nesta seção não está claro se Ballenger raciocina em termos do texto
masorético ou da Septuaginta. Ele pode haver fortalecido seu argumento ao apelar à
LXX em busca da frase to esōteron tou katapetasmatos ("para além do véu"). Esta
expressão, que é encontrada em Hebreus 6?19, ocorre na LXX somente em Êxodo
26: 33 e em Levítico 16:2, 12, 15; e em todos os casos refere-se ao véu interior. É
interessante observar em Números 18:7 que a LXX diz: to endothen tou
katapetasmatos.

12.2.4. O Uso Neotestamentário do Termo "Véu"

O apelo final de Ballenger dirige-se ao prório NT.458 Suas citações partem dos
três relatórios sinópticos quanto ao "rasgar do véu'' quando da morte de Cristo
(Mateus 27:50-52; Marcos 15:37-38; Lucas 23:44-45). Evidentemente, em todos
estes casos ele encontrará "o véu do templo", e não apenas "o véu". As passagens
provavelmente se refiram ao segundo véu; contudo, esta seção não faz avançar
significativamente o argumento. As três últimas referências a katapetasma em o NT
provêm do livro de Hebreus (6:19-20; 9:3; 10:19-20).

12.2.5. Resumo da Posição de Ballenger

Podemos resumir da seguinte forma aquilo que dissemos sobre o tratamento


de Ballenger à frase "dentro do véu": (1) A palavra usada para "véu" em Hebreus
6:19-20, katapetasma, não é capaz de decidir a questão quanto a qual véu esta
sendo mencionado; (2) A frase "dentro do véu" (to esōteron tou katapetasmatos)
usada em Hebreus 6:19-20, ocorre somente quatro vezes na LXX e refere-se ao
segundo véu; e (3) embora, de modo geral, os dados lingüísticos examinados por
Ballenger ofereçam apoio a sua tese, ele superestimou seu caso.
Até aqui seguimos a trajetória de Ballenger em sua pesquisa do VT a fim de
encontrar a interpretação de Hebreus 6:19-20. Nossa principal crítica é em termos
daquilo que ele fracassou em fazer, em vez daquilo que ele apresentou na discussão
da frase "além do véu", ou seja, ele deixou de estudar suficientemente o próprio livro
de Hebreus. O primeiro princípio de exegese requer que o estudante considere o
contexto. Neste caso, Ballenger não apenas deveria ter efetuado a exegese de

456
Ballenger, p. 29.
457
Ibidem, p. 30 (itálicos supridos).
458
Ibidem, pp. 30-34.
168

Hebreus 6:19-20 de per se; deveria ele haver considerado as alusões ao Dia da
Expiação presentes no livro de Hebreus. É isto que pretendemos fazer agora.

12.3. ALUSÕES AO DIA DA EXPIAÇÃO EM HEBREUS

Procuraremos em primeiro lugar as alusões não ambíguas ao Dia da


Expiação em Hebreus, das quais existem três, e então relacionaremos outras
possíveis alusões no documento.

12.3.1. Referências Não-Ambíguas ao Dia da Expiação

1. Hebreus 9:6-7. "Ora, depois de tudo isto assim preparado,


continuamente entram no primeiro tabernáculo os sacerdotes, para realizar os
serviços sagrados; mas no segundo o sumo sacerdote, ele sozinho, uma vez por
ano, não sem sangue, que oferece, por si e pelos pecados de ignorância do povo".
Estes versos focalizam as preocupações do capitulo até este ponto. Aparentemente
o esboço resumido do santuário do VT com seus dois compartimentos - esboço este
que é concluído um tanto abruptamente no verso 5 ("Dessas cousas... não
falaremos agora pormenorizadamente") - foi apresentado a fim de ressaltar os dois
tipos de serviços, que são apresentados nos versos 6 e 7. O contraste entre os dois
compartimentos e seus respectivos ministérios é óbvio:

Primeiro Compartimento Segundo Compartimento


Continuamente Uma vez ao ano
Os sacerdotes O Sumo sacerdote
(muitos sacerdotes) Somente o sumo sacerdote
Deveres rituais Oferta de sangue

12.3.2. A referência ao Dia da Expiação do VT é não-ambígua.

2. Hebreus 9:24-25. "Porque Cristo não entrou em santuário feito por


mãos, figura do verdadeiro, porém no mesmo céu, para comparecer, agora, por nós,
diante de Deus; nem ainda para Se oferecer a Si mesmo muitas vezes, como o
sumo sacerdote cada ano entra no Santo dos Santos com sangue alheio." A
tradução da RSV, é obviamente defeituosa aqui. O grego ta hagia deve ser traduzido
como "santuário" ou "lugares santos” tanto no verso 24 quanto no verso 25! (A RSV
desloca-se de "santuário" /verso 24/ para "lugar santo" /verso 25/). A tradução "lugar
santo" é especialmente defeituosa, uma vez que o contexto indica claramente uma
alusão ao Dia da Expiação (sumo sacerdote... anualmente... sangue /cf. 9:7/).
3. Hebreus 10:1-4. Ora, visto que a lei tem sombra dos bens vindouros,
não a imagem real das cousas, nunca, jamais pode tornar perfeitos os ofertantes,
com os mesmos sacrifícios que, ano após ano, perpetuamente, eles oferecem.
Doutra sorte, não teriam cessado de ser oferecidos, porquanto os que prestam culto,
tendo sido purificados uma vez por todas, não mais teriam consciência de pecados?
Entretanto, nesses sacrifícios faz-se recordação de pecados todos os anos, porque é
impossível que sangue de touros e de bodes remova pecados. A especificação
"ano após ano", assim como "sangue de touros e de bodes" uma vez mais indica o
ambiente do Dia da Expiação.
Nessas três passagens Hebreus apresenta o sacrifício de Cristo em contraste
169

com o Yom Kippur (Dia da Expiação) do VT. A segunda passagem apresenta


diretamente a comparação. Na primeira passagem, o bloco 9:1-10, que esboça o
santuário e seus serviços, é seguido em contraste pelo bloco 9:11-14, o qual retrata
o sacrifício de Cristo. Da mesma forma, na terceira passagem, o relato dos velhos
sacrifícios no bloco 10:1-4, é colocado em contraposição as realizações de Cristo no
bloco 10:5-18. O significado destes dados em breve será objeto de nossa atenção;
antes, porém, relacionaremos outras possíveis alusões ao Dia da Expiação.

12.3.3. Possíveis Alusões ao Dia da Expiação

1. Hebreus 4:16. O "trono da graça" aqui é apresentado come o antítipo


do propiciatório do velho culto. Era diante do propiciatório que se fazia aspersão de
sangue no Dia da Expiação; portanto, pode-se argumentar que aqui existe uma
alusão a obra antitípica de Cristo.
2. Hebreus 5:3. A exigência de que o sumo sacerdote oferece sacrifícios
por si mesmo, assim como pelo povo, era uma injunção específica do Dia da
Expiação.
3. Hebreus 7:26-27. Uma vez mais está indicada a necessidade de o
sumo sacerdote oferecer sacrifícios por si mesmo. A inclusão de "todos os dias",
entretanto, destrói esta passagem enquanto alusão ao Dia da Expiação, até mesmo
enfraquecendo seriamente os argumentos em favor das passagens anteriores.
4. Hebreus 9:5. A menção do "propiciatório" faz lembrar os serviços do
Dia da Expiação. Mas não está claro que a descrição do mobiliário nos versos 1-4
esta sendo apresentada sob uma maneira tal que sugira o ritual do Dia da Expiação,
de modo que o ponto não e convincente.
5. Hebreus 9:8. Já discutimos antes esta passagem. Argumenta-se que o
ensinamento aqui aponta ao primeiro compartimento (externo) como simbólico da
era do VT, sendo que o segundo (interno) apontaria à era do NT. Isto estabeleceria a
equivalência de todo o período desde o Calvário, com o Dia da Expiação. Conforme
sugerimos, entretanto, o "primeiro tabernáculo" aqui provavelmente indica todo o
santuário do velho culto, em contraste com o genuíno ou "verdadeiro tabernáculo" do
santuário celestial (Hebreus 8:1-2). Ou seja, o contraste faz-se entre os dois
santuários, e não entre duas eras.
6. Hebreus 9:13. Maimonides indica que o sumo sacerdote era aspergido
com as cinzas de uma novilha por duas vezes durante os sete dias de isolamento
que precediam o Dia da Expiação.459 Não existe sugestão de qualquer conexão
entre a cerimônia da novilha vermelha e o Dia da Expiação no VT, contudo.
7. Hebreus 9:27-28. Assim como os antigos israelitas aguardavam pelo
reaparecimento do sumo sacerdote no Dia da Expiação, assim, pode-se argumentar,
os cristãos aguardam pelo retorno de seu Senhor, vindo do Lugar Santíssimo, onde
entrou quando de Sua ascensão. Esta idéia, todavia, claramente não é a intenção
primaria da passagem, representando antes uma extensão questionável da mesma.
8. Hebreus 13:10-11. No Dia da Expiação as carcaças do novilho e do
bode do Senhor eram queimadas fora do acampamento (Levítico 16:27). Mas o
ponto não é claro, pois este procedimento era também seguido quando da
apresentação de algumas ofertas pelo pecado, não relacionadas com o Dia da
Expiação (Êxodo 29:14; Levítico 4:12; 8:17; 9:11 ).
Diante do exame empreendido, portanto, encontramos pelo menos três

459
Veja F. F. Bruce, The Epistle to the Hebrews (Grand Rapids, 1971), pp. 203-4.
170

passagens de Hebreus onde a obra de Cristo no Calvário é posta em contraste com


os serviços do Dia da Expiação do VT. Não é seguro afirmar que outras passagens
sugeridas como alusões ao Dia da Expiação, efetivamente possam ser assim
interpretadas.
Volver-nos-emos agora à consideração do significado das inquestionáveis
alusões que Hebreus faz ao Dia da Expiação.

12.4. INTERPRETAÇÕES DAS ALUSÕES AO DIA DA EXPIAÇÃO

Existem pelo menos duas formas de se entender as referências ao Dia da


Expiação em Hebreus.

12.4.1. Sob o Principio do Duplo Cumprimento

Poder-se-ia sustentar que o Dia da Expiação levítico obteve um cumprimento


inicial junto a cruz, o que de forma alguma diminuiria sua futura aplicação à
purificação do santuário celestial, iniciada em 1844. Isto se harmonizaria com a
tensão “já-ainda não", que permeia todo o Novo Testamento.460 Varias declarações
de Ellen White parecem oferecer apoio a esta interpretação. Embora ela aplique, de
modo não ambíguo, o antitípico dia da expiação aos eventos que começaram em
1844,461 em alguns lugares ela parece perceber um cumprimento na cruz: "Foi feito
o grande sacrifício. Acha-se aberto o caminho para o santíssimo. Um novo, vivo
caminho está para todos preparado. Não mais necessita a pecadora, aflita
humanidade esperar a chegada do sumo sacerdote. Daí em diante, devia o Salvador
oficiar como Sacerdote e Advogado no Céu dos Céus".462
"O propictatório, sobre o qual a glória de Deus repousava no Santíssimo
abriu-se a todos os que aceitam a Cristo como propiciarão pelo pecado, e através
deste meio, são eles trazidos ao companheirismo com Deus. Rasgou-se o véu,
quebrou-se a parede de separação, cancelou-se a letra das ordenanças. Em virtude
de Seu sangue, foi abolida a inimizade. Através da fé, judeus e gentios podem
participar do pão vivo".463
“Um novo e vivo Caminho, diante do qual não existe qualquer véu, é oferecido
a todos. Não mais necessita a pecadora e aflita humanidade aguardar a chegada do
sumo sacerdote".464
Deve-se levantar a questão se estas declarações não representam uma nova
forma dos ensinos de Ballenger. Deve-se recordar que Ellen White escreveu com
relação aos pontos de vista dele: "As provas do irmão Ballenger não são confiáveis.
Caso recebidas, destruiriam a fé do povo de Deus na verdade que nos tornou o que
somos. Temos de ser decididos quanto a este assunto; pois os pontos que ele está
tentando provar pelas Escrituras, não são corretos".465
Porventura Ellen White pretendeu condenar todos os aspectos da

460
Os autores do NT equilibram a esperança da Parousia e o cumprimento final do plano da
redenção com aquilo que foi realizado ou inaugurado pelo Primeiro Advento na cruz, ou seja, o tema
do "reino".
461
Veja Primeiros Escritos, pp. 244, 251-54; O Grande Conflito, pp. 352, 400, 421-22, 433, 480, etc.
(paginação do original).
462
O Desejado de Todas as Nações, p. 727 (139 edição).
463
The SDA Bible Commentary, voI. 5, p. 1109.
464
Ibidem.
465
Carta n° 329, 1905.
171

interpretação de Ballenger? Infelizmente, não temos, nos escritos dela, uma


discussão específica daquilo que ele escreveu.466 Os pontos de vista de Ballenger
cobriram amplo espectro, contudo, incluindo o seguinte? (1) O ministério do
santuário celestial opera desde a queda do homem até a Parousia; 467 (2) O
ministério do primeiro compartimento começou com a queda e terminou com a
crucifixão;468 (3) Cristo não Se tornou sumo sacerdote senão após a Encarnação - o
ministério do primeiro compartimento foi dirigido por Melquisedeque e os anjos;469 (4)
Pelo fato de haver Cristo concordado em suportar o pecado do homem por ocasião
da queda, esteve Ele fisicamente separado do Pai durante 4.000 anos, até à
Ascensão;470 (5) O ministério do Segundo Compartimento iniciou com a ascensão de
Cristo e terminara por ocasião da Segunda Vinda;471 (6) O sangue das ofertas
diárias do VT representavam apenas a confissão dos pecadores e a oração por
perdão, enquanto apenas o sangue aspergido diante do propiciatório representava
uma substituição do sangue do pecador.472
O duplo cumprimento, deve estar sendo óbvio, difere do ponto de vista de
Ballenger. A parte de alguns dos estranhos pontos relacionados acima, este ponto
de vista nega que o Dia da Expiação tenha sido completamente cumprido na cruz,
conforme propunha Ballenger. Comporta este ponto de vista alguma similaridade
com a interpretação de Andross, que vislumbrou uma obra limitada de Cristo quando
de Sua ascensão, ao entrar Ele no Lugar Santíssimo a fim de inaugurá-lo ou ungi-
lo.473
Segundo meu juízo, este ponto de vista oferece um espaço equivocado ao
papel e ênfase das alusões ao Dia da Expiação em Hebreus. Ver estas alusões à luz
do desenvolvimento teológico geral do documento é interpretá-las de modo
diferente, ou seja, em termos da eficácia do sacrifício.

466
Ellen White apresentou reiteradas advertências contra os ensinos de A. F. Ballenger, sem indicar
em que áreas sem particular ele se achava em erro. Ás seguintes declarações são representativas:
"Não existe verdade nas explanações das Escrituras que o irmão Ballenger e seus associados estão
apresentando. As palavras são corretas, mas estão sendo mal aplicadas a fim de vindicar o erro. Não
devemos prestar atenção ao seu raciocínio. Ele não está sendo conduzido por Deus... Sou instruída a
dizer: 'Irmão B., suas teorias, que possuem tantas finas tramas e necessitam de tantas explanações,
não são verdadeiras, e não devem ser apresentadas ao rebanho de Deus'". - MS Release 737 (20 de
Maio de 1905). "Se as teorias que o irmão B. apresenta, fossem recebidas, levariam muitos a se
desviarem da fé. Elas operariam em sentido contrário às verdades sobre as quais o povo de Deus
tem estado em pé durante os últimos cinqüenta anos. Sou instada a dizer, em nome do Senhor, que o
irmão B. está a seguir uma falsa luz. O Senhor não lhe concedeu a mensagem que ele está
apresentando, em relação ao serviço do santuário". - MS 62, 1905 (24 de Maio de 1905). “O irmão B.
pensa que possui nova luz, e sente-se sob o fardo de apresentá-la ao povo; mas o Senhor instruiu-
me de que ele está aplicando mal os textos das Escrituras, dando-lhes uma aplicação errada.
'Arrependa-se da inclinação de distinguir a si próprio como um homem que possui grande luz. Sua
suposta luz foi-me apresentada como sendo trevas, as quais conduzirão a estranhos caminhos'". -
MS 145, 1905. "Assim os irmãos vêem que nos é impossível ter qualquer acordo com as posições
assumidas pelo irmão A. F. Ballenger, pois a mentira não pode estar em companhia da verdade. Suas
provas não pertencem ao lugar em que ele as coloca, e ainda que ele possa levar mentes a crerem
em suas teorias relacionadas com o santuário, não existem evidências de que sua teoria seja a
verdade." - Carta 50 (30 de Janeiro de 1906).
467
Ballenger, p. 45.
468
Ibidem, p. 56.
469
Ibidem, p. 83.
470
Ibidem, pp. 45-46.
471
Ibidem, p. 56.
472
Ibidem, pp. 40-41.
473
Andross, p. 53.
172

12.5. A EFICÁCIA DO SACRIFÍCIO

Em primeiro lugar devemos situar o espaço ou lugar das alusões ao Dia da


Expiação em Hebreus, prosseguindo então em compreender sua função.
1. O papel das alusões ao Dia da Expiação. O tema do Dia da Expiação
não é central na argumentação de Hebreus concernente ao sacrifício. Embora ele
seja importante nas três passagens que já analisamos, de modo algum representa a
ênfase exclusiva. Em vez disso, constitui parte de um complexo de referências ao
culto: 5:1-3, "dons e sacrifícios pelo pecado"; 7:27, o sumo sacerdote oferecia
sacrifícios diários por seus próprios pecados e pelos do povo; 9:9-10, "dons e
sacrifícios... comidas... bebidas e diversas abluções"; 9:12, "sangue de bodes e de
bezerros"; 9:13, "sangue de bode e de touros... cinza de uma novilha"; 9:18-21,
ratificação do primeiro concerto pelo sangue de bodes ,e bezerros; 10:8, sacrifícios,
ofertas, holocaustos, ofertas pelo pecado; 10:11, os serviços diários do antigo
santuário; 10:29, "o sangue da aliança"; 11:4, o sacrifício oferecido por Abel; 11:28, o
sangue da Páscoa; e 12:24, o sangue da nova aliança.
O tema do Dia da Expiação, em Hebreus, deve ser posto dentro deste
contexto cultual mais amplo. Em meu juízo, a primeira interpretação levanta o tema
de um lugar de indevida proeminência. Conforme argumentei em minha
dissertação,474 o tema central do argumento sacrificial em Hebreus (8:1 a 10:18) o
melhor sangue, e não o Dia da Expiação. Conforme o apóstolo dissera previamente,
a melhor exposição, o Filho melhor que os anjos, o melhor sacerdócio, o melhor
concerto, o melhor sumo sacerdote e o melhor tabernáculo, harmonizam-se agora
com o melhor sangue. E o tema do haima ("sangue") que une as várias referencias
aos sacrifícios diários: novilha, inauguração do concerto e Yom Kippur. Percebemos
isto nas três declarações expressas: "não sem sangue" (9:7,18, 22), na lógica de
9:13-14 (se o sangue de bodes e touros muito mais o sangue de Cristo), e no
axioma fundamental da passagem, a "regra do sangue" de 9:22 - sem
haimatekchusia ("derramamento de sangue") não existe aphesis ("remissão"). O
motivo centrando sangue não deve ser substituído e nem subordinado - ele está
presente em toda a exposição quanto a sacrifício, ofertas e Dia da Expiação;
somente ele pode trazer purificação do problema humano básico da contaminação,
que o livro de Hebreus apresenta.
2. A função das alusões ao Dia da Expiação. De que modo, então, o Dia
da Expiação entra no argumento? É porque ele constituía o ponto alto do velho culto.
Era o dia em que o homem (ainda que apenas um) entrava no Lugar Santíssimo; era
o dia da remoção dos pecados dos israelitas. A argumentação de 8:1 a 10:18 é
elaborada no sentido de demonstrar a superioridade do sangue de Cristo. A tese
central é que os sacrifícios do VT não importam quão valiosos pudessem ser, não
eram capazes, em si mesmos de prover o afastamento final do pecado: "Porque e
impossível que sangue de touros e de bodes remova pecados" (10:4). Assim, o
argumento é que os serviços do VT, mesmo em seu mais elevado ponto, eram
inadequados. Eles proviam acesso extremamente limitado a Deus (apenas um
homem) e sua própria repetição demonstrava seu fracasso: "Doutra sorte, não
teriam cessado de ser oferecidos?" (10:2). Assim, mesmo o Dia da Expiação
expunha a necessidade de Israel: acesso limitado, sem o termo final na eliminação

474
William G. Johnsson, Defilement and Purgation in the Book of Hebrews (Dissertação de Ph. D.
não publicada, Vanderbilt University , 1913), capítulo 4.
173

dos pecados.
Foi assim que todo o culto antigo, com o passar do tempo deveria ser posto
de lado, de acordo com o divino plano ("até ao templo oportuno de reforma", 9:10).
Se o sistema sacrifical fica aquém das necessidades em seu mais alto ponto, deve-
se considerar toda a estrutura como inadequada. Entretanto, diz Hebreus, a boa
nova é que existe melhor sangue! Tudo aquilo que o velho sistema falhou em
conseguir, em virtude de suas insuficiências inerentes, tudo o que os repetidos dias
de expiação não foram capazes de realizar, agora foi obtido através do Calvário. Em
lugar de muitos sacrifícios repetidos, existe um sacrifício, apresentado de uma vez
por todas. Por este único ato, todas as barreiras entre Deus e o homem foram
abolidas, de modo que agora podemos comparecer ousadamente a presença de
Deus. Finalmente foi oferecido um sacrifício capaz de prover a mais completa
purificação dos pecados.
As referências de Hebreus, ao Dia da Expiação, portanto, não se destinam a
mostrar que o dia antitípico da expiação começou na Ascensão (contrariando
Ballenger), nem a sugerir uma breve entrada no santíssimo a fim de inaugurá-lo
(contrariando Andross) nem a sugerir o estabelecimento do primeiro cumprimento do
ponto alto do VT, iniciando-se o cumprimento pleno em 1844 (não abordado em
Hebreus). Em vez disso, o argumento gira em torno do valor relativo do sacrifício,
contrastando o ápice do culto do VT com as muito melhores realizações de Jesus
Cristo no Calvário. Do modo como o vejo, o elemento tempo em nenhum momento
está sob exame aqui (9:1-5 já deveria ter-nos afastado da tentativa de raciocinar do
tipo para o antítipo nesta seção). A comparação e contraste, conforme claramente
apresentada em 9:13-14, centraliza-se na eficácia do sacrifício.
Conforme observamos sob a primeira interpretação das alusões ao Dia da
Expiação, Ellen White por vezes emprega a linguagem de Hebreus do “novo e vivo
caminho" e do "véu". Ao assim fazer, ela compartilha as concepções de Hebreus -
um Sacrifício que proveu a total purificação do pecado e o desimpedido acesso a
Deus.

12.6. CONCLUSÃO

É no contexto mais amplo - o fluxo e o refluxo do argumento - que Ballenger


falhou em sua luta por compreender o livro de Hebreus. A pessoa chega à
impressão de que a frase "além do véu" veio por fim a ocupar totalmente o seu
pensamento, até ao ponto de impedi-lo de perceber o desenvolvimento do raciocínio
deste documento cuidadosamente elaborado. Da mesma forma, tentou ele injetar
questões de tipologia e eventos no tempo, o que é estranho às preocupações do
apóstolo em Hebreus.
O raciocínio subjacente a 8:1-10:18 teria resolvido o seu dilema, houvesse ele
lidado suficientemente com ele. Poderia ele haver percebido que, o total da
argumentação cultual, com suas referencias a sacrifícios, santuários e Dia da
Expiação, é formatado a fim de retratar a magnificência do cristianismo - Jesus
Cristo, nosso Sumo Sacerdote, com o seu todo suficiente sacrifício, apresentado
uma vez por todas. Neste caso, "além do véu" teria sido percebido em sua correta
perspectiva - a apresentação sob uma forma elíptica, das realizações de Cristo, que
levaram à dissolução de todas as barreiras existentes entre Deus e o homem.
Traduzido por: Hélio L. Grellmann
Novembro de 1990
174

13. AS OITO VISÕES BÁSICAS DO LIVRO DE


APOCALIPSE
Kenneth A. Strand
Andrews University
Fonte: Andrews University Seminary Studies. Vol. 25, N° 1, pp. 107-121

O livro de Apocalipse é uma peça literária notavelmente bem construída,


contendo ampla multiplicidade de padrões primorosamente elaborados. Tais padrões
representam mais que simples demonstrações de gosto estético e habilidade de
composição, e ele também transcendem o útil propósito de servir como artifícios
mnemônicos. Efetivamente, de uma forma direta e poderosa eles salientam vários
aspectos da mensagem teológica do livro.
Num escopo mais amplo, todo o livro de Apocalipse acha-se estruturado sob
a forma geral de quiasma, no qual prólogo e epílogo são contraposições, e onde as
maiores seqüências ou visões intervenientes também aparecem numa ordem de
quiasma, ou ordem inversa. Desta estrutura ampla sob forma de quiasma, tratei em
ocasiões anteriores, inclusive sua importância, 475 de modo que aqui não se requer
maior elaboração, exceto para destacar duas características específicas: (1) Ao lado
de prólogo e epílogo, existem oito visões ou grandes seqüências proféticas – quatro
que antecedem e quatro que seguem a linha traçada entre os capítulos 14 e 15. (2)
As visões que precedem a linha que divide o quiasma, apresentam basicamente
uma perspectiva histórica (ou seja, relacionam-se com a era crista), ao passo que as
visões que vêm após a linha divisória do quiasma, retratam uma era escatológica, de
julgamento.
Com respeito ao primeiro item acima, deve-se enfatizar que efetivamente
existem oito grandes seqüências proféticas no Apocalipse, e não sete, conforme
vários intérpretes têm suposto.476 Concernente ao segundo item, varias qualificações
devem ser observadas: Da segunda a quarta visões, cada seqüência histórica
conclui com uma seção que retrata o tempo de um julgamento escatológico; nas
visões subseqüentes, que em sua essência provêem uma ampliação da era
escatológica / de julgamento, existem dois tipos de materiais que pertencem à era
histórica - explanações (que obviamente devem ser feitas em termos da perspectiva
histórica do próprio profeta); e exortações ou apelos (que só possuem valor antes do
julgamento escatológico e que, obviamente, serão destituídas de valor por ocasião

475
Por exemplo, edições de The Open Gates of Heaven (Ann Arbor, MI, 1969 e 1972) e de seu
sucessor, Interpreting the Book of Revelation (Worthington, OH, 1976 e Naples, FL, 1979); também
"Apocalyptic Prophecy and the Church", Parte I, em Ministry, Outubro de 1983. pp. 22-23. Veja
especialmente a discussão em Interpreting, pp. 43-51, e o diagrama à pagina 52. A divisão exata
entre blocos de textos, no Apocalipse, tem várias vezes sido modificada levemente, no presente
artigo, em relação à forma em que tais divisões aparecem em publicações anteriores.
476
Tais intérpretes aparentemente chegaram à conclusão de que, sendo o número sete um símbolo
importante no Apocalipse - pois ocorre explicitamente quatro vezes: igrejas, selos, trombetas e taças -
deve ele ser também apoiado por sete visões básicas. Quanto a exemplos da abordagem de sete
visões, veja Ernst Lohmeyer, Die Offenbarung des Johannes (Tübingen, 1926); John Wick Bowman,
The Drama of the Book of Revelation (Philadelphia, 1955) e "Revelation" em IDB 4:64-65; e Thomas
S. Kepler. The Book of Revelation (New York, 1957). Lohmeyer e Bowman encontraram septetos,
igualmente, dentro de suas sete grandes visões, embora eles não concordem nem mesmo quanto ao
que são as sete grandes visões. Kepler, por outro lado, encontrou apenas um total de dez subseções
(identificadas como "cenas") dentro de suas sete grandes visões (cujos limites variam apenas
levemente em relação aos limites das sete grandes visões esboçadas por Bowman).
175

da chegada do julgamento escatológico propriamente dito). Estas qualificações


concernentes a "exceções" do impulso principal ou da cobertura das visões em cada
lado da linha divisora do quiasma, não deveriam, contudo, ser consideradas como
materiais de intersecção. Estes dados são partes importantes de suas próprias
seqüências, encontram-se em posições adequadas onde estão e falam
significativamente no contexto sobre o qual estão fundadas. Mais que isto, elas são
unidades discretas e significativas quanto à natureza, posicionamento e/ou
propósito, dentro de suas próprias visões específicas.
Por questão de conveniência, a abrangente estrutura em quiasma de
Apocalipse em: prólogo, epílogo, e oito visões, aparece como esboço no Diagrama
1, o qual também inclui minhas sugestões quanto aos limites de texto e tópicos
gerais das várias visões. Nesse diagrama e ao longo do restante da discussão neste
artigo, o termo “visões” referir-se-á às oito seqüências proféticas completas, e não a
uma visão individual a fim de identificar a seqüência da visão.
176

O presente estudo tem dois propósitos principais, e os dados pertinentes a


cada um deles serão apresentados em artigos separados. Em primeiro lugar, o
presente ensaio analisa brevemente alguns padrões paralelos para as oito principais
visões do livro de Apocalipse. Um artigo de acompanhamento 477 focalizará com um
pouco mais de detalhe os blocos particulares de textos que introduzem estas oito
visões, e que podem ser identificados como "cenas de vitória-introdução", uma vez
que eles provêem para cada uma das visões um cenário que retrata em termos
dramáticos o atual cuidado de Deus por Seu povo e oferecem segurança de vitória
final aos leais santos de Cristo. Para fins de identificação no presente artigo, os
numerais romanos (I, II, etc.) prosseguirão sendo usados, tal como no Diagrama 1, a
fim de; designar as oito visões. Cada visão, entretanto, possui de duas a quatro
seções ou blocos de textos, e letras maiúsculas (A, B, etc.) servirão para identificar
estas.

13.1. ANÁLISE DE PADRÕES DENTRO DAS OITO VISÕES

A primeira e a última visões (I e VIII) de Apocalipse são compostas de uma


"Cena de Introdução-Vitória" (A), mais um bloco principal de textos (B) que pode ser
chamado de "Descrição Profética Básica". As outras seis visões (II a VII) possuem
os mesmos dois blocos, mas são-lhe acrescentados dois outros blocos (C e D).
Neste ensaio, os terceiros blocos de textos, nas visões II a VII, recebem a
designação básica de "Interlúdio" - um termo aplicado de modo um tanto regular
pelos exegetas a estas seções particulares nas visões II, III e IV, mas igualmente
aplicável as seções correspondentes (ainda que mais curtas) das V, VI e VII. Dever-
se-ia observar, todavia, que embora o termo "interlúdio" freqüentemente sugira uma
interrupção ou hiato a algo, o fluxo de pensamento que estes terceiros blocos de
material exercem nas visões II a VII de Apocalipse, é permitir ou facilitar ou
intensificar o impulso do material imediatamente precedente.478 O quarto bloco pode
ser designado como "Culminação Escatológica"; em certo sentido, este bloco e o
precedente bloco de "interlúdio" representam, na verdade, uma extensão da
"Descrição Profética Básica" iniciada no segundo bloco. Embora venha a ser
necessário acrescentar mais tarde neste artigo alguns refinamentos à precedente
analise básica, neste ponte podemos resumir sob forma de diagrama os resultados
até aqui obtidos. Este resumo é provido pelo Diagrama 2.

13.2. RESUMO DO CONTEÚDO DAS VISÕES

Neste ponto é útil procurar uma visão geral do conteúdo de cada uma das oito
visões. Os sumários aqui apresentados, seguem as linhas gerais de estrutura acima
indicadas. Deve ser enfatizado que estes são realmente resumos, e o leitor
encontrará detalhes ao consultar os textos indicados para cada visão.

477
Apresentado no AUSS, vol. 25, n° 3, pp. 267-288. (Traduzido para o português pelo mesmo
tradutor do presente artigo. - N. do T).
478
Paul S. Minear falou agudamente deste assunto em conexão com o "interlúdio" que ocorre em
16:15. Veja a seguir a referência n° 9 e o material citado, ao qual se refere a nota.
177

I II III IV V VI VII VIII


CENA CENA
DE CENA DE CENA DE CENA DE CENA DE CENA DE CENA DE DE
INTROD INTRODU INTRODU INTRODU INTRODU INTRODU INTRODU INTROD
A A
UÇÃO ÇÃO ÇÃO ÇÃO ÇÃO ÇÃO ÇÃO UÇÃO
VITÓRI VITÓRIA VITÓRIA VITÓRIA VITÓRIA VITÓRIA VITÓRIA VITÓRI
A A
DESCRI DESCRIÇ DESCRIÇ DESCRIÇ DESCRIÇ DESCRIÇ DESCRIÇ DESCRI
ÇÃO ÃO ÃO ÃO ÃO ÃO ÃO ÇÃO
B PROFÉT PROFÉTI PROFÉTI PROFÉTI PROFÉTI PROFÉTI PROFÉTI PROFÉT B
ICA CA CA CA CA CA CA ICA
BÁSICA BÁSICA BÁSICA BÁSICA BÁSICA BÁSICA BÁSICA BÁSICA
INTERLÚ INTERLÚ INTERLÚ INTERLÚ INTERLÚ INTERLÚ
C C
DIO DIO DIO DIO DIO DIO
CULMINA CULMINA CULMINA CULMINA CULMINA CULMINA
ÇÃO ÇÃO ÇÃO ÇÃO ÇÃO ÇÃO
D D
ESCATOL ESCATOL ESCATOL ESCATOL ESCATOL ESCATOL
ÓGICA ÓGICA ÓGICA ÓGICA ÓGICA ÓGICA
DIAGRAMA 2. ESTRUTURAS PARALELAS NAS OITO GRANDES VISÕES DE APOCALIPSE

13.3. AS VISÕES HISTÓRICAS

13.3.1. Visão I, 1:10b-3:22


Bloco A, Cena de Introdução-Vitória, 1:10b-20. Cristo aparece a João em
Patmos sob a forma de Alguém que vive para sempre e é poderoso, que anda entre
os sete candeeiros que representam as sete igrejas.
Bloco B, Descrição Profética Básica, caps. 2 e 3. Cristo apresenta
mensagens de louvor, reprovação, advertência e exortação às igrejas individuais,
conforme requeiram suas condições.

13.3.2. Visão II, 4:1-8:1


Bloco A, Cena de Introdução-Vitória, caps. 4 e 5. João vê um trono
estabelecido no Céu, com um mar de vidro e sete lâmpadas de fogo diante do trono,
e com quatro criaturas viventes e vinte e quatro anciãos circundando o trono. Numa
cena dramática e cheia de suspense, é feita a declaração de que somente o
Cordeiro de Deus, que foi morto, e apto a tomar da mão dAquele que está assentado
no trono um rolo selado com sete selos, e a abrir os selos e o rolo. O Cordeiro
apanha então o rolo e antífonas de louvor ascendem das quatro criaturas viventes e
dos vinte e quatro anciãos, e de todo o universo.
Bloco B, Descrição Profética Básica, cap. 6. São rompidos os seis primeiros
selos do rolo, e como resultado, aparecem quatro cavaleiros, almas sob o altar
clamam "até quando" deverão esperar pelo julgamento e vindicação, e aparecem
sinais no Céu e na Terra, indicando o juízo impendente.
Bloco C, Interlúdio, cap. 7. A seqüência é "interrompida" a fim de permitir que
se focalize o selamento dos 144 mil durante o tempo do fim.
Bloco D, Culminação Escatológica, 8:1. É aberto o sétimo selo, e diante disto
ocorre "silencio no Céu" durante meia hora.

13.3.3. Visão III, 8:2-11:18


Bloco A, Cena de Introdução-Vitória, 8:2-6. Aparecem sete anjos com
178

trombetas, enquanto outro anjo se dirige ao altar de ouro e ali oferece incenso, cuja
fumaça, misturada às orações dos santos, ascende a Deus. Em seguida, o anjo
enche um incensário com brasas vivas do altar e lança-o sobre a Terra, o que
resulta nos símbolos de juízos: vozes, trovões, relâmpagos e terremoto.
Bloco B, Descrição Profética Básica, 8:7-9:21. Soam as seis primeiras
trombetas, liberando forças de devastação que abrangem um temporal de saraiva a
cair sobre a Terra, uma grande montanha ardente lançada no mar, etc. As cinco
primeiras destas trombetas utilizam imagens das pragas do antigo Egito, mas a
sexta trombeta desvia o foco para Babilônia, ao mencionar "o grande rio Eufrates"
em 9:14.479
Bloco C, Interlúdio, 10:1-11:13. Um anjo que segura um rolo aberto anuncia
(10:6) que "já não haverá demora”.480 João recebe ordem de comer o rolo e
obedece, descobrindo um sabor doce na boca, mas algo amargo no ventre; o profeta
é instruído a medir o templo, o altar e as pessoas (uma alusão direta, conforme
demonstrei noutra parte, ao ritual do fim do ano religioso no culto judaico antigo, o
"Dia da Expiação";481 também são descritas a carreira e o testemunho das duas
testemunhas.
Bloco D, Culminação Escatológica, 11:14.18. Soa a sétima trombeta,
resultando no anúncio de que "o reino do mundo se tornou de nosso Senhor e do
seu Cristo";482 ergue-se outro cântico de louvor, o qual salienta, entre outras coisas,
que chegou o tempo do julgamento dos mortos, da recompensa dos santos e da
destruição daqueles que "destroem a Terra."

13.3.4. Visão IV, 11:19-14:20


Bloco A, Cena de Introdução-Vitória, 11:19 - "Abriu-se o templo de Deus no
Céu", tornando visível a "arca da aliança"; então "sobrevieram relâmpagos, vozes,
trovões, terremoto e grande saraivada".
Bloco B, Descrição Profética Básica, caps. 12 e 13. O dragão, a besta
semelhante a leopardo e a besta de dois chifres perseguem o povo de Deus.
Bloco C, I terlúdio, 14:1-13. João vê (1) o Cordeiro e os 144 mil santos
vitoriosos sobre o Monte Sião e (2) três anjos voando pelo meio do Céu e
proclamando mensagens de advertência.
Bloco D, Culminação Escatológica, 14:14-20. Pratica-se a dupla colheita da
Terra - (1) a colheita dos grãos e (2) as uvas que são lançadas no grande lagar da
479
O fenômeno aqui encontrado pode ser designado como tema "Êxodo do Egito" / "Queda de
Babilônia". Ocorre duas vezes, em cada ocasião abrangendo duas visões completas. O primeiro caso
ocorre em Apocalipse 8:2-14:20 inclusive, e o segundo acha-se em Apocalipse 15:1-18:24 inclusive.
Para detalhes adicionais e diagrama, veja K. A. Strand, "The Two Witnesses of Rev. 11: 3-12", AUSS
19 (1981):128-129.
480
A diferença de apresentação não é tão significativa quanto poderia parecer a principio. A
passagem é uma óbvia alusão ao livro de Daniel, que deveria permanecer selado até ao "tempo do
fim" (Daniel 12:4 ; cf. Apocalipse 10:2) e à pergunta do profeta: "Até quando...?" (Daniel 12:6). Cada
uma das traduções desta declaração particular em Apocalipse 10:6 é adequada como resposta à
questão levantada por Daniel, e de fato representa uma proclamação enfática da chegada do
projetado período do tempo do fim - "um tempo, tempos e metade de um tempo" (Daniel 12:7). O
grego desta ultima cláusula de Apocalipse 10:6 diz: hoti kronos ouketi estai. (Cf. com o "até quando"
de Daniel 8:13).
481
K. A. Strand, "An Overlooked Old Testament Background to Revelation 11:1", AUSS 22
(1984):317-325.
482
A partir deste ponto o texto em inglês faz uso da RSV, exceto, possivelmente, para pequenos
excetos de duas ou três palavras.
179

ira de Deus.

13.4. AS VISÕES ESCATOLÓGICAS DE JULGAMENTO

13.4.1. Visão V, 15:1-16:17


Bloco A, Cena de Introdução-Vitória, 15:1-16:1. Os santos, vitoriosos estão
em pé junto ao mar de vidro e entoam cântico de Moisés e do Cordeiro; e quando se
abre o "templo do tabernáculo do testemunho no Céu", aparecem sete anjos, os
quais recebem sete taças "cheias da ira de Deus"; fumaça enche o templo de modo
que ninguém pode ali entrar até que sejam completadas as pragas dos sete anjos, e
finalmente são dadas instruções para que os anjos saiam e derramem suas taças.
Bloco B, Descrição Profética Básica, 16:2-14. São derramadas as seis
primeiras taças de ira, e isto ocasiona efeitos devastadores sobre a Terra, o mar, os
rios, as fontes das águas, etc. (Uma vez mais, tal como no septeto das trombetas, as
imagens relacionadas com as cinco primeiras taças com as pragas do antigo Egito,
sendo que o cenário se desloca para Babilônia à medida que a sexta taça fala do
"grande rio Eufrates" no texto de 16:12).
Bloco C, Interlúdio, 16:15. Na descrição da sexta taça - o secamento do rio
Eufrates e a presença de espíritos demoníacos que enganam os reis da Terra e os
conduzem à "peleja do dia do grande Deus Todo-poderoso" (16: 12 a 14) - insere-se
uma surpreendente e notável bem-aventurança, no verso 15: "Eis que venho como
vem o ladrão. Bem-aventurado aquele que vigia e guarda as suas vestes..."
Acrescenta-se então um comentário que afirma ser Armagedon o nome do lugar da
batalha (verso 16).
Uma vez que estamos agora na seção de Apocalipse que prove visões
quanto ao julgamento escatológico, em vez de aplicar-se à era histórica, é óbvio que
se deveria esperar uma nova espécie de "interlúdio", e este é efetivamente o caso
aqui. Os interlúdios anteriores eram descrições um tanto detalhadas de eventos ou
condições durante a porção final da era histórica. Os interlúdios que ocorrem nas
visões V-VII são antes de uma natureza concisa e exortatória.
Pode-se levantar a questão: Por que tal tipo de interlúdio aqui? Para este em
particular, o de Apocalipse 16:15, Paul S. Minear adequadamente encontrou esta
justificativa: "A expressão revela o terrível perigo em que se encontra o cristão
desatento. Se alguém perguntar, junto com R. H. Charles: 'Como poderia alguém
dormir durante o terremoto cósmico que está ocorrendo?' a resposta poderia ser:
'Este é exatamente o ponto'. Existiam cristãos adormecidos , assim o cria João -
pessoas praticamente imperturbáveis diante do desenlace, sem se darem conta de
que estariam ocorrendo coisas capazes de ameaçar seu tesouro ou deixá-los
expostos e nus. Estar adormecidos seria estar inconscientes da urgente
necessidade e premência do tempo. (Compare isto com a atitude dos discípulos no
Getsêmani, em Marcos 14:26-42.) A bem-aventurança designava-se a sentinelas
que haviam esquecido que uma guerra estava sendo travada".483
Bloco D, Culminação Escatológica, 16:17. A sétima taça da ira de Deus é
derramada, e do trono do templo no Céu ouve-se uma voz a dizer: "Está feito!"

483
Paul S. Minear, I Saw a New Earth (Washington, DC, 1968), p. 150.
180

13.4.2. Visão VI, 16:18-18:24

Bloco A, Cena de Introdução-Vitória, 16:18-17:3a. Ocorrem os tradicionais


indicadores de juízo (vozes, trovões, relâmpagos, terremoto e saraiva), e a "grande
Babilônia" é "lembrada" por Deus no tocante ao seu julgamento. João é levado então
ao deserto a fim de observar o julgamento que desaba sobre Babilônia.
Bloco B, Descrição Profética Básica, 17:3b-18:3. Nos primeiros versos do
capítulo 17 é apresentada uma descrição de Babilônia e também da besta com sete
cabeças e dez chifres, de cor escarlata, sobre a qual Babilônia se assenta (versos
3b-8). Esta cena descritiva é seguida por consideráveis detalhes explanatórios
(versos 9 a 18). Estes culminam numa referência a devastação da prostituta por
parte dos dez chifres da besta (versos 16 e 17), e com a identificação desta
prostituta como a grande cidade que governa sobre os reis da Terra (verso 18). Nos
três primeiros versos do capitulo 18, um recital de vários aspectos da corrupção de
Babilônia prepara o terreno para o apelo do interlúdio e para a descrição da
destruição que vem logo após.
Bloco C, Interlúdio, 18:4-8, 20. Antes da descrição da efetiva destruição de
Babilônia pelo fogo, é dirigido um apelo para que o povo de Deus "saia" de
Babilônia, de modo que eles não se tornem participantes de seus pecados e,
conseqüentemente, recebam também de suas pragas. Em conexão com isto, existe
também uma reiteração, sob forma elaborada do divino decreto de julgamento contra
Babilônia.
Tal como na estrutura em quiasma do material do capítulo 18, o verso 20
representa a contrapartida, em quiasma dos versos 4-8,484 sendo que ambos os
"interlúdios" dentro deste quiasma em particular talvez devam ser considerados
como o "interlúdio" total da seqüência mais ampla, que vai de 17:3b a 18:24. O verso
20 convida ao regozijo diante do fato de que Deus proclamou contra Babilônia o
próprio juízo que ela havia imposto ao povo de Deus.485
Bloco D, Culminação Escatológica, 18:9-19, 21-24. A seção central do
capítulo 18 (versos 9-19) retrata, através de uma tríplice canção melancólica, a
completa destruição de Babilônia pelo fogo; e a seção final do capítulo (versos 21-
24) enfatiza o destino de Babilônia e sua mais ampla desolação depois do exercício
do juízo divino sobre ela.

13.4.3. Visão VII, 19:1-21:4


Bloco A, Cena de Introdução-Vitória, 19:1-20. Num cenário celestial que faz
um paralelo com o cenário do capítulo 4, erguem-se antífonas de louvor a Deus por
haver Ele julgado a grande prostituta Babilônia e vindicado Seu povo; faz se então
referência à noiva do Cordeiro, afirmando-se estar ela pronta para as bodas, e uma
bênção é pronunciada sobre aqueles que são "chamados à ceia das bodas do
Cordeiro". (Dever-se-ia observar que, embora seja o mesmo o cenário do templo dos
capítulos- 4-5 e do capítulo 19, existem diferenças quanto à atividade e perspectiva -

484
Veja William H. Shea, "Chiasm by Theme and by Form in Revelation 18", AUSS 20 (1982):249-
256; e Kenneth A. Strand, "Two Aspects of Babylon's Judgment Portrayed in Revelation 18". AUSS 20
(1982):53-60.
485
Veja Strand, "Two Aspects of Babylon's Judgment", pp. 55-59; para uma versão atualizada e mais
literal de Apocalipse 18:20b, veja idem, "Some Modalities of Symbolic Usage in Revelation 18", AUSS
24(1986): 43 45. Subjacente tanto a Apocalipse 18:4-8 quanto ao verso 20, acha-se a lei do
testemunho malicioso (cf. Deuteronômio 19:16-19; veja também Ester 7:9-10).
181

um fato tornado igualmente claro pelo conteúdo das antífonas das duas visões. A
primeira visão pertence claramente à era histórica, ao passo que a última pertence
de modo igualmente claro a era do julgamento escatológico.
Bloco B, Descrição Profética Básica, 19:11-20:5. É retrata do dramaticamente
o segundo advento de Cristo, sendo também apresentadas as conseqüências do
mesmo. Entre os resultados negativos enumerados, está o banquete das aves, que
consiste da carne dos inimigos de Deus (19:17-18), o destino da besta e do falso
profeta no lago de fogo (19:19 20) e a prisão de Satanás no "poço do abismo"
durante mil anos (20:1-3). Do lado positivo acham-se a primeira ressurreição e a
conseqüente nova vida dos santos martirizados. Eles vivem e reinam com Cristo
durante mil anos (20:4-5).
Bloco C, Interlúdio, 20:6. "Bem-aventurado e santo é aquele que tem parte na
primeira ressurreição; sobre esses a segunda morte não tem autoridade..."
Bloco D, Culminação Escatológica, 20:7-21:4. Os eventos culminantes ao
final dos mil anos são apresentados. Do lado negativo estão a soltura de Satanás, o
reaparecimento de sua obra de engano, o vão esforço de sua confederação maligna
em capturar o "acampamento dos santos", e a final destruição deste grupo pelo fogo.
Pelo lado positivo, está a visão do apóstolo, de "novo céu e nova terra", com a santa
cidade, Nova Jerusalém, descendo do céu a terra, e o próprio Deus estabelecendo o
Seu tabernáculo com Seu povo.

13.4.4. Visão VIII, 21:5-22:5


Bloco A, Cena de Introdução-Vitória, 21:5-11a. Faz-se a proclamação de que
os vitoriosos em Cristo herdarão todas as coisas, e João vê a santa cidade, a Nova
Jerusalém, descendo do céu à Terra. (Como uma espécie de pano de fundo, a
seção final da visão precedente já havia retratado a condição da Terra após a
descida da Nova Jerusalém /21:1-4/).
Bloco B, Descrição Profética Básica, 21:11b-22:5. A santa cidade, Nova
Jerusalém, é descrita em detalhe.

13.5. ANALISE ADICIONAL DOS BLOCOS DE TEXTOS, A, B, C


ED

Com base no que vimos antes, podemos agora partir para algumas
generalizações adicionais concernentes à natureza das respectivas seções (A, B,
etc.), dentro das oito visões. Podemos também sugerir notações adicionais para a
captação destes blocos de textos, além daquilo que já foi indicado nas seções
precedentes deste artigo e no Diagrama 2.
Quando consideramos a "Cena de Introdução-Vitória" de cada uma das oito
visões, constatamos que sempre existe um pano de fundo retratando o templo ou
alguma espécie de quadro do templo.486 Portanto, nossa forma de ver a "Cena de

486
Em alguns casos o templo no Céu é mencionado explicitamente como nas cenas introdutórias às
visões IV e V; em outros casos, a alusão ao mobiliário do templo oferece evidência de ser o templo o
cenário, mesmo que a palavra "templo" não ocorra, tal como nas cenas das visões I, II e III. As únicas
cenas introdutórias que não possuem uma indicação tão clara às imagens do ambiente do templo,
são as visões VI e VIII. No caso da primeira, contudo, existe no verso precedente (16:17, a última
praga, mas também um "elemento de ligação" com o que segue) a menção a uma voz provinda "do
templo, do trono". Com relação à visão VIII, existe uma referência ao que está "assentado no trono" -
identificado previamente como Deus em Seu templo (cf., por exemplo, 4:2-11, 19:1-5); mais que isto,
182

Introdução-Vitória" (Bloco A) pode ser suplementada pela frase - "cenário do


templo".
Quanto aos blocos de textos dois a quatro (blocos B, C e D), uma diferença
de perspectiva deveria ser destacada entre as visões que antecedem a linha
divisória do quiasma (visões I a IV) e as visões que aparecem após a linha divisória
(visões V a VIII). Quanto às primeiras, a "Visão Profética Básica" encontra se na
arena histórica; já as últimas têm o material básico da visão dos blocos B
pertencentes ao julgamento escatológico ou final. Para as visões I-IV, portanto, a
"Descrição Profética Básica" necessita da qualificação adicional, "na história"; e para
as visões V-VIII esta qualificação poderia ser "no juízo final".
Quanto aos terceiros blocos de textos (C) nas visões II a IV, a designação
básica de "interlúdio" pode ser também suplementada com uma frase adicional -
"holofote em eventos finais" (significando antes do segundo advento de Cristo), já
que o "interlúdio" em todos os casos amplia o período de tempo que transcorre
justamente antes da culminação escatológica. Para as visões V-VII a frase
acrescentada, "exortação ou apelo", é apropriada, pois os terrores das cenas de
juízo final são "interrompidas" para a apresentação de breves blocos de textos que
estimulam a fidelidade e/ou apelam ao arrependimento. (Em dois destes casos de
exortação ou apelo, o interlúdio é proferido, conforme já vimos, basicamente sob a
forma de bem-aventurança - 16:16 e 20:4.)
As seções de "Culminação Escatológica" (os blocos D) pertencem todas à
consumação escatológica final, conforme observado antes; mas estas seções de
conclusão, no que tange as visões II-IV provêem uma conclusão apical para as
séries que se relacionam com a era histórica, ao passo que as das visões V a VIII
lidam especificamente com o final ou porção terminal das séries escatológicas de
julgamento, que já estavam em atividade nas seções precedentes destas visões. Os
blocos D das visões II-IV podem, portanto, ser designados como "Culminação
Escatológica: Clímax da História", e os blocos D das visões V-VII podem ser
identificados como "Culminação Escatológica: Final com Julgamento". O Diagrama 3
incorpora os refinamentos acima citados (dos dados expostos no Diagrama 2) e
também inclui minhas sugestões quanto aos limites dos textos para os blocos de
materiais, conforme apresentados na segunda seção do presente artigo.

13.6. CONCLUSÃO

Neste artigo observamos que existe uma estrutura literária muito consistente e
equilibrada no livro de Apocalipse. Esta estrutura não apenas possui valor e
qualidades estéticas e mnemônicas, como ainda fala significativamente da
mensagem teológica do livro. Vários aspectos da teologia serão abordados num
artigo de seguimento que explorará em maiores detalhes as "cenas de introdução-
vitória" das oito visões, mas um ponto focal teológico importante pode aqui ser
citado: A estrutura em quiasma, como um todo, enfatiza um tema de duplo aspecto
que abrange e está subjacente às várias mensagens do livro - (1) Que Cristo é o Alfa

o bloco de texto imediatamente precedente (mais uma vez, uma espécie de "elemento de ligação")
fala de Deus estabelecendo Seu "tabernáculo" na "nova terra" / "Nova Jerusalém", junto a Seu povo
(21:3). Poder-se-ia observar adicionalmente que o bloco de textos seguinte, ou "Descrição Profética
Básica" da visão VIII, declara que o templo na santa cidade ou Nova Jerusalém "é o Senhor Deus
Todo poderoso e o Cordeiro" (21:22). Meu segundo artigo desta série tratará da natureza e
significado teológico das imagens do templo que a parecem nas cenas introdutórias das oito grandes
visões do Apocalipse.
183

e o Ômega e (2) que Ele retornará ao final das eras a fim de recompensar as
pessoas de acordo com suas obras (Apocalipse 1:7-8 e 22:12-13). Em outras
palavras, Ele é um auxiliador confiável, consistente e sempre presente, que apóia
Seus fiéis durante a era histórica de adversidade (cf. Apocalipse 1:17, 8; Mateus
28:20b; João 16:33; Hebreus 12:2a; 13:8); e Ele retornará pessoalmente a fim de
desencadear as séries que destroem os "destruidores da Terra" e que provêem a
Seus fiéis seguidores a herança da "nova terra" e o cumprimento de todo o bem a
eles prometido (veja Apocalipse 11:15-18; 21:1-4, 7, 22-27; 22:1-5).487 As quatro
seqüências proféticas que precedem a linha divisória do quiasma lidam
primariamente com o primeiro aspecto, ao passo que as quatro grandes visões
subseqüentes à linha divisória são devotadas principalmente ao segundo aspecto.
Como palavra final, mais um item pode ser brevemente apresentado aqui: é
digno de nota que nas cenas introdutórias das oito visões, os quadros pictórios do
templo revelam em primeiro lugar um padrão de jurisdição terrestre na visão I
(castiçais que representam as igrejas sobre a Terra), seguido de uma jurisdição
celestial nas visões II-VII (onde aparecem tanto /a/ uma menção explícita ao "templo
no Céu" ou seu mobiliário e/ou /b/ um antecedente que indica este cenário
celestial,488 e seguido finalmente por um novo retorno à jurisdição terrestre na visão
VIII (o tabernáculo de Deus na "nova terra"/Nova Jerusalém /cf. 21:3, 221). Este é
um fenômeno surpreendente, cujo significado teológico e cuja correlação com a
ênfase da teologia geral do Novo Testamento serão apresentados no artigo
subseqüente desta série.

Traduzido por: Hélio L. Grellmann


Novembro de 1990
Veja Diagrama 3 na página seguinte.

487
É digno de nota que os ítens das promessas feitas aos "vencedores" das sete igrejas (2:7b, 11b,
17b, 26-28; 3:5, 12, 21) são em sua maior parte mencionados outra vez especificamente em 21:5-
22:5 como já cumpridos (por exemplo, 21:27, 22:24), e também recebem uma alusão geral na
declaração de que o vencedor herdará "estas coisas" (21:7).
488
Concernente a aparente exceção no caso da visão VI, veja a nota n° 486, acima.
184

DIAGRAMA 3. VISÃO GERAL DA ESTRUTURA E CONTEÚDO DO LIVRO DE APOCALIPSE


VISÕES DA ERA ESCATOLÓGICA / DO
VISÕES DA ERA HISTÓRICA
JUÍZO
I II III IV V VI VII VIII
CENÁRI CENÁRIO CENÁRI
CENÁRIO CENÁRIO CENÁRIO
O DE CENÁRIO CENÁRIO DE O DE
DE DE DE
INTROD DE DE INTRODU INTROD
INTRODU INTRODU INTRODU
UÇÃO- INTRODU INTRODU ÇÃO- UÇÃO-
ÇÃO- ÇÃO- ÇÃO-
VITÓRI ÇÃO- ÇÃO- VITÓRIA VITÓRI
VITÓRIA VITÓRIA VITÓRIA
A VITÓRIA VITÓRIA A
A A
CENÁRIO
CENÁRIO CENÁRIO CENÁRIO
CENÁRI CENÁRIO CENÁRIO DO CENÁRI
DO DO DO
O DO DO DO TEMPLO O DO
TEMPLO TEMPLO TEMPLO
TEMPLO TEMPLO TEMPLO (16:18 TEMPLO
(Caps. (15:1- (19:1-
(1:10b (8:2-6) (11:19) a (21:6-
4/5) 16-1) 10)
-20) 17:3a) 11a)
DESCRI
DESCRI DESCRIÇ DESCRIÇ DESCRIÇ DESCRIÇ DESCRIÇ DESCRIÇ
ÇÃO
ÇÃO ÃO ÃO ÃO ÃO ÃO ÃO
PROFÉT
PROFÉT PROFÉTI PROFÉTI PROFÉTI PROFÉTI PROFÉTI PROFÉTI
ICA
ICA CA CA CA CA CA CA
BÁSICA
BÁSICA BÁSICA BÁSICA BÁSICA BÁSICA BÁSICA BÁSICA
B NO B
NA NA NA NA NO NO NO
JUÍZO
HISTÓR HISTÓRI HISTÓRI HISTÓRI JUÍZO JUÍZO JUÍZO
FINAL
IA A A A FINAL FINAL FINAL
(21:11
(Caps. (Cap. (8:7- (Caps. (16:8- (17:3B- (19:11-
b-
2/3) 6) 9:81) 12, 15) 14, 16) 18:3) 20:5)
32:5)
INTERLÚ INTERLÚ
INTERLÚ INTERLÚ
DIO: DIO: INTERLÚ INTERLÚ
DIO: DIO:
HOLOFOT HOLOFOT DIO: DIO:
HOLOFOT EXORTAÇ
E EM E EM EXORTAÇ EXORTAÇ
C E EM ÃO E C
EVENTOS EVENTOS ÃO E ÃO E
EVENTOS APELO
FINAIS FINAIS APELO APELO
FINAIS (18:4-
(Cap. (14:1- (16:15) (20:6)
(11:13) 8, 20)
7) 13)
CULMINA
CULMINA CULMINA CULMINA
CULMINA CULMINA ÇÃO
ÇÃO ÇÃO ÇÃO
ÇÃO ÇÃO ESCATOL
ESCATOL ESCATOL ESCATOL
ESCATOL ESCATOL ÓGICA:
ÓGICA: ÓGICA: ÓGICA:
ÓGICA: ÓGICA: FINAL
CLÍMAX CLÍMAX FINAL
D CLÍMAX FINAL COM D
DA DA COM
DA COM JULGAME
HISTÓRI HISTÓRI JULGAME
HISTÓRI JULGAME NTO
A A NTO
A NTO (18:9-
(11:14- (14:14- (20:7-
(8:1) (16:27) 19, 21-
18) 20) 21:4)
24)
185

14. AS CENAS DE "INTRODUÇÃO-VITÓRIA"


NAS VISÕES DO LIVRO DE APOCALIPSE
Kenneth A. Strand
Andrews University
Fonte: Andrews University Seminary Studies. Vol. 25, N° 3, pp. 267-288

Este artigo segue-se ao meu ensaio anterior quanto À estrutura literária


básica das oito grandes visões do livro de Apocalipse.489 Tendo em vista a facilidade
de referência, o Diagrama 3 de artigo anterior é aqui reproduzido, sob a
denominação de Diagrama 1.
Os blocos de textos sobre os quais se focaliza nossa atenção neste estudo,
são aqueles designados por "A" no referido Diagrama; especificamente, são aqueles
identificados como "Cena de Introdução-Vitória - Cenário do Templo". Em primeiro
lugar passaremos em breve exame o conteúdo destas cenas nas visões I a VIII,
considerando depois alguns dos seus fenômenos específicos e implicações
teológicas.

14.1. RESUMO DAS "CENAS DE INTRODUÇÃO-VITÓRIA"

Ao prover a seguinte visão geral do conteúdo das oito cenas de introdução-


vitória, apresento tanto um resumo do material textual propriamente dito, quanto uns
poucos comentários preliminares concernentes a este material. Dever-se-ia observar
nestes resumos que nem todos os detalhes das cenas são incluídos;490 contudo
precedendo os resumos propriamente ditos, as apropriadas referências
escriturísticas são apresentadas (tal como ocorre no Diagrama 1), de modo que o
leitor poderá dirigir se ao texto bíblico a fim de obter um quadro mais completo.

14.2. INTRODUÇÃO À VISÃO I

14.2.1. Texto: Apocalipse 1:10b-20


Resumo: Na ilha de Patmos (1:9), o ressurreto Cristo, agora habitando o Céu,
aparece em gloriosa visão a João, revelando-Se a Si mesmo como Aquele que
estivera morto e que agora vivia, e que vive para sempre e possui as chaves do
inferno e da morte, João vê Cristo segurando sete estrelas em Sua mão direita e
caminhando entre os sete castiçais de ouro. As sete estrelas são definidas como "os
anjos das sete igrejas" (verso 20) e os sete castiçais são definidos como "as sete
igrejas" (idem). São elas, especificamente, Éfeso, Esmirna, Pérgamo, Tiatira,
Sardes, Filadélfia e Laodicéia (verso 11).

489
Kenneth A. Strand, "The Eight Basic Visions in the Book of Revelation", AUSS 25 (1987):107-121.
490
Entretanto, cumpre destacar que aqui os resumos são, em muitos casos, bem mais extensos que
os sumários paralelos, geralmente muito breves, providos em ibidem, pp. 112-117 (onde também
procurei preparar resumos para o conteúdo dos blocos B, C e D das várias visões).
186

DIAGRAMA 1. VISÃO GERAL DA ESTRUTURA E CONTEÚDO DO LIVRO DE APOCALIPSE


VISÕES DA ERA ESCATOLÓGICA / DO
VISÕES DA ERA HISTÓRICA
JUÍZO
I II III IV V VI VII VIII
CENÁRI CENÁRIO CENÁRI
CENÁRIO CENÁRIO CENÁRIO
O DE CENÁRIO CENÁRIO DE O DE
DE DE DE
INTROD DE DE INTRODU INTROD
INTRODU INTRODU INTRODU
UÇÃO- INTRODU INTRODU ÇÃO- UÇÃO-
ÇÃO- ÇÃO- ÇÃO-
VITÓRI ÇÃO- ÇÃO- VITÓRIA VITÓRI
VITÓRIA VITÓRIA VITÓRIA
A VITÓRIA VITÓRIA A
A A
CENÁRIO
CENÁRIO CENÁRIO CENÁRIO
CENÁRI CENÁRIO CENÁRIO DO CENÁRI
DO DO DO
O DO DO DO TEMPLO O DO
TEMPLO TEMPLO TEMPLO
TEMPLO TEMPLO TEMPLO (16:18 TEMPLO
(Caps. (15:1- (19:1-
(1:10b (8:2-6) (11:19) a (21:6-
4/5) 16-1) 10)
-20) 17:3a) 11a)
DESCRI
DESCRI DESCRIÇ DESCRIÇ DESCRIÇ DESCRIÇ DESCRIÇ DESCRIÇ
ÇÃO
ÇÃO ÃO ÃO ÃO ÃO ÃO ÃO
PROFÉT
PROFÉT PROFÉTI PROFÉTI PROFÉTI PROFÉTI PROFÉTI PROFÉTI
ICA
ICA CA CA CA CA CA CA
BÁSICA
BÁSICA BÁSICA BÁSICA BÁSICA BÁSICA BÁSICA BÁSICA
B NO B
NA NA NA NA NO NO NO
JUÍZO
HISTÓR HISTÓRI HISTÓRI HISTÓRI JUÍZO JUÍZO JUÍZO
FINAL
IA A A A FINAL FINAL FINAL
(21:11
(Caps. (Cap. (8:7- (Caps. (16:8- (17:3B- (19:11-
b-
2/3) 6) 9:81) 12, 15) 14, 16) 18:3) 20:5)
32:5)
INTERLÚ INTERLÚ
INTERLÚ INTERLÚ
DIO: DIO: INTERLÚ INTERLÚ
DIO: DIO:
HOLOFOT HOLOFOT DIO: DIO:
HOLOFOT EXORTAÇ
E EM E EM EXORTAÇ EXORTAÇ
C E EM ÃO E C
EVENTOS EVENTOS ÃO E ÃO E
EVENTOS APELO
FINAIS FINAIS APELO APELO
FINAIS (18:4-
(Cap. (14:1- (16:15) (20:6)
(11:13) 8, 20)
7) 13)
CULMINA
CULMINA CULMINA CULMINA
CULMINA CULMINA ÇÃO
ÇÃO ÇÃO ÇÃO
ÇÃO ÇÃO ESCATOL
ESCATOL ESCATOL ESCATOL
ESCATOL ESCATOL ÓGICA:
ÓGICA: ÓGICA: ÓGICA:
ÓGICA: ÓGICA: FINAL
CLÍMAX CLÍMAX FINAL
D CLÍMAX FINAL COM D
DA DA COM
DA COM JULGAME
HISTÓRI HISTÓRI JULGAME
HISTÓRI JULGAME NTO
A A NTO
A NTO (18:9-
(11:14- (14:14- (20:7-
(8:1) (16:27) 19, 21-
18) 20) 21:4)
24)

Comentário: O fato de os sete castiçais (ou candeeiros) constituírem figuras (ou


imagens) do templo, é de modo geral reconhecido pelos exegetas, embora existam
divergências de opinião quanto ao segundo plano das mesmas. A questão que
geralmente surge é se a referência está sendo feita ao castiçal único do "Lugar
Santo" (compartimento exterior ou externo) do antigo tabernáculo do deserto (Êxodo
26:35; no templo de Herodes também havia um castiçal) ou aos dez castiçais do
primeiro compartimento do templo de Salomão (I Reis 7:49). Uma terceira
alternativa, geralmente esquecida pelos comentaristas, é o simbolismo do castiçal de
Zacarias 4, o qual desempenha o papel bastante obvio de "pano de fundo" para a
187

posterior visão de Apocalipse 11, "o templo e as duas testemunhas". 491 Podem,
ainda, existir múltiplos cenários de fundo intencionais.492 Para nós, aqui, o principal
ponto, de todas as formas, é que o ambiente desta visão e suas imagens do templo
referem-se à Terra, e não ao Céu. Este fato deve estar claro a partir de duas
considerações principais: o Cristo celeste encontra João na Terra (em Patmos) e os
"castiçais" entre os quais Cristo manifesta Sua presença são igrejas sobre a Terra. O
fato de que a visão seguinte indica uma transição para o Céu, conforme veremos
quando nossa atenção se voltar para referida visão, pode ser considerado como a
terceira evidência a apontar em direção a uma jurisdição terrestre para esta primeira
cena introdutória.
Um ponto adicional digno de nota é que a cena de introdução-vitória
funciona no sentido de prover conforto e segurança aos fiéis seguidores de Cristo:
Sua presença acha-se entre eles, à medida que necessitam enfrentar as forças do
engano e da perseguição. 493 Um aspecto positivo como este é, de fato,
característico de todas as oito cenas introdutórias das grandes visões do
Apocalipse.

491
Existem indicações teológicas que favorecem a hipótese dos castiçais de Zacarias como sendo pelo
menos uma provável origem destas imagens. Veja Kenneth A. Strand, "The Two Witnesses of Rev. 11:3-
12", AUSS 19 (1981):127-135, especialmente 131-134; e cf. idem, "The Two Olive Trees of Zechariah 4
and Revelation 11", AUSS 20 (1982):257-261. Não somente dever-se-iam perceber certas afinidades
teológicas, como ainda deveria ser dada consideração a quadros de fundo adicionais (além de Zacarias 4)
para as imagens de oliveiras/castiçais de Apocalipse 11:4 - quais sejam, os pilares do templo Jaquim e
Boaz (cf. I Reis 7:21; também II Reis 11:12-14 e 23:1-3), e além destes o "pilar da nuvem" na qual o
Senhor aparecia a Moisés e Josué na "entrada" do tabernáculo do deserto (Deuteronômio 33:14-15). Se o
quadro de fundo dos sete candeeiros de Apocalipse aponta a esta direção, é o pátio - e não os dois
compartimentos do tabernáculo ou templo propriamente dito - que estaria sendo aqui focalizado (uma
possibilidade que se amplia através da consideração das implicações teológicas de Apocalipse 11:2 em
relação ao "pátio exterior" do templo). Entretanto, não devemos esquecer o fato ou possibilidade de que
existam múltiplos panos de fundo para este simbolismo dos sete candeeiros, bem como para as outras
imagens do livro de Apocalipse; cf. n° 492, abaixo.
492
Paul S. Minear, "Ontology and Ecclesiology in the Apocalypse", NTS 13 (1965-66): 96, chamou a
atenção para este fenômeno do tipo "múltiplas bases", naquilo que ele identifica como "modelo trans-
histórico" e "modo de ver e pensar abrangente, em lugar de disjuntivo". Tanto neste artigo quanto no livro I
Saw a New Earth (Washington, DC, 1968), p. 102, faz ele referência a Apocalipse 11:8, onde existe a
coalescência de várias entidades - Sodoma, Egito e Jerusalém - numa só imagem, que é a "grande
cidade". Minear sugere que "EXISTE uma cidade que em termos proféticos veio a tornar-se todas as
cidades - Sodoma, Tiro, Egito, Babilônia, Nínive, Roma..." (I Saw a New Earth, p. 102). Em vários
trabalhos e ensaios elaborei adicionalmente este fenômeno, referindo-me a ele como a "fusão" ou "junção"
de imagens. Veja, por exemplo, meu artigo "Na Overlooked Old-Testament Background to Revelation
11;1" , AUSS 22 (1984): 318-319, onde não apenas faço referência às observações perspectivas de
Minear (especialmente o n° 6, à pagina 319), como ainda acrescento alguns exemplos. Confira, da mesma
forma, a discussão em Strand, "Two Witnesses", pp. 130-131, onde mais uma ilustração foi apresenta da
em relação a isto.
493
Engano e perseguição são as duas armas básicas manifestadas pelas forças adversas ao longo do
livro de Apocalipse, da mesma forma como no Evangelho de João estas mesmas duas características
más resumem a atitude do demônio e de seus seguidores (por exemplo, em João 8:44 Satanás é
identificado como "assassino desde o princípio" e o "pai da mentira"). Encontramos proeminente
ilustração, em Apocalipse, nas mensagens às sete igrejas, onde se faz advertência contra o engano (quer
externo, quer auto-imposto) nas cartas a Pérgamo, Tiatira, Sardes e Laodicéia; e onde o risco de
perseguição é particularmente salientado nas cartas a Esmirna e Filadélfia. As atividades do triunvirato
anti-divino em Apocalipse 12 e 13, ilustra adicionalmente, e de modo poderoso, estas armas demoníacas
(observe, por exemplo, os "sinais" enganadores e as atividades de morte e de embargo mencionadas em
13:13-17).
188

14.3. INTRODUÇÃO À VISÃO II

14.3.1. Texto: 4:1-5:14

Resumo: João vê uma porta aberta "no Céu" e ouve uma voz que o convida a
"subir até ali". Ele se recebe imediatamente "no Espírito" e vê "um trono" "no Céu", com
Alguém sentado sobre o trono (ou seja, Deus, segundo o próprio contexto e também de
acordo com outras visões do Apocalipse, que deixam claro o ponto /cf. 4:9-11; 7:10;
19:1-5/). Ao redor do trono estão vinte e quatro anciãos, também assentados em tronos;
diante do trono acham-se "sete tochas de fogo" e um "mar de vidro" semelhante a
cristal; e "no meio" e "ao redor" do trono encontram-se quatro criaturas viventes. Depois
de uma antífona em louvor a Deus por ser Ele o Criador, a cena volta-se para um rolo
selado com sete selos, e que se encontra em Sua mão -. rolo que "ninguém" era capaz
de abrir, nem no Céu, nem na Terra, nem sob a Terra. Todavia, ao progredir o drama,
foi achado um ser digno de abrir o rolo - especificamente, o Cordeiro, "como havendo
sido morto". Quando o Cordeiro toma o rolo da mão dAquele que se assentava no
trono, uma série de antífonas de louvor se erguem.
Comentário: A primeira característica surpreendente com que somos
confrontados nesta cena, é a dupla referência a uma nova jurisdição - o Céu, em
contraste com o ambiente terrestre da cena introdutória da visão I. Este cenário
celestial é, de fato, enfatizado pela dupla referência ao "Céu" - a porta aberta "no céu"
e o trono "no céu". As "sete tochas de fogo" localizariam a cena mais especificamente
no Lugar Santo, ou compartimento externo do templo celestial (o termo "templo no
céu" é usado especificamente em 11:19 e certos outros textos).494 Se o "mar de vidro"
é uma figura baseada na "pia" do tabernáculo do deserto (Êxodo 30:18; 38:8) ou no
"mar de fundição" e/ou nas dez pias do templo de Salomão (I Reis 7 :23-39), conforme
sugerem vários comentaristas, parecer-nos-ia que temos aqui imagens da "área
externa" do templo, em vez de imagens do "primeiro compartimento" do mesmo. Isto,
de per si, não traria qualquer problema quanto à declaração de que o mar está
localizado "diante do trono", pois todas as facetas da construção do templo poderiam
ser consideradas a partir desta perspectiva. É mais provável, contudo, que o pano de
fundo simbólico para este "mar de vidro" seja o "firmamento" acima das criaturas
viventes e sob o trono de Deus, em Ezequiel 1:22-28 e 10:1.495

494
As imagens relacionadas com o mobiliário do templo fornecem "chaves" para a localização e
movimentação, que foram brevemente mencionadas nos sumários de meu artigo anterior, "Oito Visões
Básicas..." pp. 112-117. Aqui elas se tornarão mais visíveis à medida que alisarmos as cenas de
introdução-vitória. Embora os dois compartimentos não sejam especificamente mencionados em conexão
com este arquétipo "templo no Céu", do tabernáculo ou templo do antigo Israel, o "mobiliário" mencionado
por certo relaciona-se a estes dois compartimentos - conforme se pode ver não apenas no VT e nas fontes
tradicionais judaicas, mas igualmente na descrição no livro neotestamentário de Hebreus (veja Hebreus
9:1-5; cf. Êxodo 25:8 e 26:30-35). Poderá parecer que a presença do trono no contexto do "compartimento
exterior", nas imagens mencionadas em Apocalipse 4, reduz o templo celestial a apenas um
compartimento, do ponto de vista "arquitetônico" (ainda que não funcionalmente), mas este não é
necessariamente o caso (e, de todos os modos, não é este aspecto de importância primaria). Veja
também o n° 11, adiante. Para uma discussão muito útil das imagens do "templo celestial" no livro de
Hebreus (discussão esta que possui também considerável importância para o caso de Apocalipse), veja
Richard M. Davidson, Typology in Scripture: AStudy of Hermeneutical TYIIOZ Structures, Andrews
University Seminary Doctoral Dissertation Series, vol. 2 (Berrien Springs, MI, 1981), pp. 336-367.
495
Robert H. Mounce, The Book of Revelation, NICNT, vol. 17 (Grand Rapids, MI, 1977), pp. 136-137,
observou adequadamente isto, e também chamou a atenção para II Enoque 3:3 e Salmo 104:3 (p. 136),
embora não fique claro se o próprio Mounce considera as imagens destas passagens como "pano de
fundo" para o "mar de vidro" em Apocalipse. Para uma análise recente, detalhada, dos quadros pictóricos
189

Esta cena celestial em Apocalipse 4-5 possui obviamente um impulso


positivo. Os temas- gêmeos da criação (4:11) e da redenção (capitulo 5) oferecem
esperança e certeza aos seguidores de Cristo, especialmente quando estes
reconhecem que o Cordeiro é considerado digno de romper os selos e abrir o rolo -
este, que tem sido apropriadamente identificado como o "rolo do destino".496

14.4. INTRODUÇÃO À VISÃO III

14.4.1. Texto: 8:2-6


Resumo: Sete anjos com sete trombetas são vistos por João; antes, porém,
que eles saiam do templo (no Céu) a fim de fazer soar suas trombetas, aparece
outro anjo com um incensário diante do altar de incenso. Uma mistura de orações
dos santos e incenso sobe diante de Deus, no trono. Então o incensário é jogado à
Terra, e esta cena é seguida de típicos símbolos da divina presença e de
julgamento: "trovões, vozes, relâmpagos e terremoto".497
Comentário: O cenário desta visão é, uma vez mais, o do templo celestial, e
prossegue ocorrendo no compartimento exterior do "Lugar Santo". Mas a atividade
deslocou-se agora para mais perto do compartimento interior, pois é junto ao altar de
incenso que os fatos ocorrem.498 Esta cena, tal como as das visões I e II, contém os
típicos elementos de segurança - neste caso, a retratação de que as orações dos
santos ascendem à presença de Deus, em mistura com o incenso. Todavia agora, em
adição a este aspecto positivo, pela primeira vez aparece também um aspecto negativo;
Trata se do uso de símbolos do julgamento, quais sejam, vozes, trovões, relâmpagos e
terremoto, no momento em que o incensário com brasas vivas é lançado a Terra.

de Apocalipse 4 e 5, veja R. Dean Davis, "The Heavenly Court Scene of Revelation 4-5" (Dissertação de
Ph. D., Andrews University, 1986).
496
"Rolo do destino" e "livro do destino" são termos aplicados pelos vários exegetas e comentaristas a
este documento fechado com sete selos. Muitos que não utilizam esta exata terminologia, indicam o
mesmo conceito em suas discussões do rolo. Edwin R. Thiele, Outline Studies in Revelation, edição
revista (Berrien Springs, MI, 1959), p. 97 (a paginação poderá variar em outras edições), utiliza
especificamente o termo "livro do destino". Charles M. Laymon, The Book of Revelation: Its Messages and
Meaning (New York, 1960), p. 77, refere-se à cena de Apocalipse 5 como a "preparação para o destino"; e
Mounce, p. 142, fala do rolo como contendo "o relato pleno daquilo que Deus, em Sua soberania,
determinou como sendo o destino do mundo”. Entretanto, remanesce uma questão fundamental: O que se
pretende designar com o termo destino? Seria a história futura da Terra a partir da perspectiva de João?
Por outro lado, seria a recompensa escatológica que se definirá no final da história terrestre? Ou seria,
talvez, uma combinação de ambos os aspectos? William Hendriksen, More Than Conquerors: An
Interpretation of the Book of Revelation (Grand Rapids, MI, 1940), p. 109, parece haver optado pela
terceira possibilidade: O rolo,se deixado fechado, para ele sugeriria "a ausência da proteção divina para os
filhos de Deus nas horas de mais amarga prova; ausência de julgamento sobre um mundo perseguidor;
ausência do final triunfo para os crentes; ausência de novo Céu e nova Terra; nenhuma herança futura!"
Mounce, p. 142, optou pela primeira alternativa. Ao lado de Thiele, pp. 97-98, eu adoto a alternativa do
meio. Minha base para isto é a probabilidade distinta (em minha opinião) de que o pano de fundo para
este rolo selado com sete selos deva ser encontrado num dos formulários de testamento da antiga Roma,
como também no documento de propriedade de Jeremias (capitulo 32). Thiele, pg. 95-96, chamou a
atenção à documentação do conceito da referência ao testamento romano; adicionalmente, podemos
acrescentar aqui uma referência específica a tal testamento, traduzida para o inglês por Naphtali Lewis e
Meyer Reinhold, Roman Civilization, vol. 2, The Empire (New York, 1955), pp. 279-280.
497
RSV. A partir deste ponto as citações escriturísticas, em inglês, são extraídas da RSV, exceto quanto
a frases curtas ocasionais.
498
Para um estudo em nível de NT, da relação entre este altar de ouro e o compartimento interior ("Lugar
Santíssimo"), veja, por exemplo, a discussão apresentada por Harold S. Camacho, "The Altar of Incense in
Hebrews 9:3-4", AUSS 24 (1986): 5-12.
190

14.5. INTRODUÇÃO À VISÃO IV

14.5.1. Texto: 11:19

Resumo: João vê o "templo de Deus no Céu" aberto, aparecendo em cena a


arca do testamento ou concerto de Deus. Neste momento, "sobrevieram
relâmpagos, vozes, trovões, terremoto e grande saraivada".
Comentário: Esta vitoriosa cena introdutória conduz-nos a um novo cenário
dentro do "templo no Céu", ou seja, ao compartimento íntimo, ou "Lugar
Santíssimo".499 João focaliza ali a arca do testamento de Deus, ou, arca do concerto
(aliança). Com base na analogia com o tabernáculo terrestre, os dois mais
significativos aspectos relacionados com esta arca seriam os dez mandamentos da
lei e o propiciatório (cf. Êxodo 40:20). É, pois, interessante notar que na seguinte
"descrição profética", a importante batalha que os "remanescentes" travam contra o
Dragão, relaciona-se com aquilo que é representado por estas duas características
da arca: os "mandamentos de Deus" e o "testemunho de Jesus" (Apocalipse 12:17).

14.6. INTRODUÇÃO À VISÃO V

14.6.1. Texto: 15:1-16:1


Resumo: João vê sete anjos que carregam as sete últimas pragas da "ira de
Deus". Na primeira seção desta cena ele observa um "mar de vidro misturado com
fogo", sobre o qual estão aqueles que se tornaram vitoriosos sobre a besta, sobre sua
imagem e sobre o número de seu nome. Este grupo entoa o "cântico de Moisés... e do
499
Com respeito à possível "arquitetura" do "templo no céu", podem ser feitas as seguintes
observações (cf. também o n° 6, acima): (1) Entre os exegetas existe a típica noção de que o trono de
Deus acha-se confinado ao Lugar Santíssimo do templo, de modo que as imagens de compartimento
exterior em Apocalipse 4 estariam a indicar que no arquétipo do antigo tabernáculo/templo de Israel a
estrutura de dois compartimentos deste último fundem-se num só compartimento. Um exemplo desta
linha geral de pensamento é o excelente estudo de Mario Veloso, "The Doctrine of the Sanctuary and
the Atonement as Reflected in the Book of Revelation", em The Sanctuary and the Atonement:
Biblical, Historical, and Theological Studies, edição de A. V. Wallenkampf e W. R. Lesher
(Washington, DC, 1981), pp. 394-419. (2) Com base numa possível analogia com o pensamento
expresso no tocante ao "véu" ou" "cortina" em Hebreus 10:20 (e sua muito freqüentemente esquecida
relação com o relato histórico do véu rasgado de alto a baixo em Mateus 27:51), poderia haver no
Apocalipse um conceito subjacente de apenas um compartimento no templo celestial, mas o conceito
funcional de duplo compartimento, e sua importância, são repetidamente apresentados em
Apocalipse, numa dinâmica evidente de cena para cena. (3) Merece atenção uma alternativa sugerida
por C. Mervyn-Maxwell , God Cares, vol. 2, The Message of Revelation for You and Your Family
(Boise, ID, T985), p. 171: "A suposição de que o trono celestial de Deus está localizado apenas no
lugar santíssimo celestial, ignora o fato de que nos tempos VT a presença de Deus nem sempre se
confinava ao lugar santíssimo, antes era por vezes representada no lugar santo". Maxwell cita Êxodo
33:9 e Ezequiel 9:3, referindo-se também aos pães na Presença no lugar santo. (Em outra parte do
presente ensinamento atenção a Êxodo 40:34 e Deuteronômio 31:14-15, textos que ampliam ainda
mais a localização da presença de Deus). (4) Deve ser reconhecido que a localização do símbolo do
"trono" em Apocalipse deve levar em conta o uso que o próprio livro faz, sendo este um símbolo
difuso (por exemplo, o uso representado em Apocalipse 6:16 e 22:3 comparado e/ou contrastado com
o uso que se faz em Apocalipse 4-5). (5) O ponto de primária importância é que o tema do "trono de
Deus" em Apocalipse, significa a presença e autoridade divina, não sendo um indicador específico de
localização (e certamente de modo algum aplicando-se a confinamento "geográfico"!). O conceito não
é de que o "trono" define a localização de Deus, antes ao contrário: Onde Deus está, aí se encontra o
Seu trono! (6) Finalmente, o pano de fundo dos capítulos 1 e 10 de Ezequiel, com um trono divino que
se movimenta, não deveria ser passado por alto ao se interpretar a cena de Apocalipse 4-5.
191

Cordeiro". Na segunda seção desta cena, João observa "o templo" ou "santuário do
tabernáculo do testemunho" no Céu; encontra-se aberto, e dele saem os sete anjos
com as taças da ira. O templo "se encheu de fumaça, procedente da gloria de Deus e
do Seu poder", de tal modo que "ninguém podia penetrar no santuário" até que as
sete pragas cessassem. Então ouviu-se uma voz provinda do templo, ordenando aos
sete anjos que fossem derramar sobre a Terra as taças da ira de Deus.
Comentário: Uma vez mais o ambiente da visão é o do Céu – mais
especificamente, o templo no Céu. É deste templo que emergem os sete anjos com
as taças da ira. E em conexão com este templo que antes havia sido visto o "mar de
vidro" (Apocalipse 4). É este mesmo templo que agora se enche de fumaça, Existe
uma ênfase positiva no fato de que os santos sobre o mar de vidro entoam o cântico
de Moisés e do Cordeiro, do mesmo modo como o antigo Israel havia entoado o
cântico de Moisés após seu libertamento da escravidão do antigo Egito (Êxodo 14 e
15). Existe um duplo aspecto negativo nesta cena: em primeiro lugar, os anjos levam
consigo taças de ira a partir do templo, com instruções para derramá-las sobre a
Terra; em segundo lugar, o templo enche-se de fumaça durante o tempo das pragas,
a ponto de ninguém poder nele penetrar - sem dúvida, uma sugestão de que não
haverá ministério de misericórdia no templo durante este período.500

14.7. INTRODUÇÃO À VISÃO VI

14.7.1. Texto: 16:18-17:3a (associado a base provida por 16:17)

Resumo: Depois de haver o sétimo anjo lançado no ar sua taça, "saiu grande
voz do santuário, do lado do trono", declarando: "Feito está" (16:17). (Este pode ser
considerado como uma espécie de elemento de transição, que conclui a sétima
praga e introduz esta nova cena- de introdução-vitória.501 Imediatamente seguem os
sinais do julgamento divino: "Sobrevieram relâmpagos, vozes e trovões, e ocorreu
grande terremoto, como nunca houve igual desde que há gente sobre a Terra; tal foi
o terremoto, forte e grande". A cidade de Babilônia se divide, as cidades das nações
entram em colapso e cai do Céu grande saraivada, "com pedras que pesavam cerca
de um talento". Depois disto um dos sete anjos que seguravam as sete taças fala
com João, dizendo-lhe que observe o julgamento da grande prostitua (Babilônia,
conforme deixa claro o comentário profético que segue).
Comentário: A primeira vista, parecereria que apenas um aspecto negativo é
enfatizado nesta cena de introdução-vitória, pois ela utiliza imediatamente os simbolismos
do juízo - desta vez ainda mais pesados, enfatizando-se a natureza excessivamente
feroz, tanto do terremoto quanto da saraivada. Embora exista apenas juízo negativo na

500
Esta conclusão se fortalece com os seguintes fatos: (1) As próprias sete pragas são descritas em
15:1 como "últimas" e como completando a "ira de Deus"? (2) a descrição do derramamento desta ira
divina através das taças, encontrada no capítulo 16, não revela qualquer efeito salvífico, e sim
exatamente o contrário (cf., por exemplo, 16:6, 9. 10 e 14); e (3) o julgamento de Babilônia é descrito
em 16:19 como sendo a "lembrança" de Deus, que a faz "beber o cálice do furor de Sua ira".
501
A divisão mais nítida entre as seqüências da primeira grande porção de Apocalipse (visões I-IV)
abre caminho, na segunda grande porção do livro (visões V-VIII) à presença de elementos de
"ligação". É bastante interessante que isto parece fazer paralelismo ao fato de que a natureza
"recapitulatória" das próprias seqüências nas duas grandes porções difere consideravelmente no
aspecto de serem as estruturas "cronológicas" ou de "sucessão" menos distintas na segunda grande
porção do livro. Observe, por exemplo, as implicações decorrentes deste breve resumo oferecido por
Kenneth A. Strand, Interpreting the Book of Revelation: Hermeneutical Guidelines, with Brief
Introduction to Literary Analysis, 2ª edição (Naples, FL, 1979), pp. 48-49.
192

devastação que devera sobrevir a Babilônia em virtude do "cálice do vinho do furor de


Sua ira" (16:19; veja ainda 17:1-2), há que se destacar, não obstante, a segurança
positiva de Deus a Seus santos, implícita nesta cena - isto porque a nefasta atividade de
Babilônia agora chegou ao fim, sendo que ela própria sofre os juízos de Deus em virtude
de seus maus feitos. (Cf. 18:20 quando ao convite para "exultar").

14.8. INTRODUÇÃO À VISÃO VII

14.8.1. Texto: 19:1-10


Resumo: No cenário do trono, os vinte e quatro anciãos e as quatro criaturas
viventes (cf. capitulo 4), João ouve a voz de "grande multidão no Céu", adorando a
Deus por haver Ele julgado a grande prostituta, vingando sobre ela o sangue de Seus
santos. Antífonas adicionais são entoadas e "faz-se o anúncio de que chegou a hora
das bodas do Cordeiro, e de que "a noiva a si mesma se aprontou". E pronúncia da
uma bênção sobre todos os que foram "convidados à ceia" das bodas do Cordeiro".
Comentário: A cena aqui apresentada é obviamente paralela à de Apocalipse 4
e 5 - aparecem o trono, as quatro criaturas viventes, os vinte e quatro anciãos e as
antífonas de louvor em ambas as visões.502 Contudo, ao passo que em Apocalipse 4-5
havia o "rolo do destino" ainda por ser aberto, assim como a efetiva abertura dos selos
deste rolo no capítulo 6 - com o clamor de "até quando" se deveria esperar pela
vindicação divina dos Seus mártires (veja 6:9-11) - aqui no capítulo 19 ocorre uma
notável reversão: ouve-se louvor a Deus por haver Ele efetuado a esperada vindicação.
Mais que isto, na introdução à visão VII aparece a ênfase quanto à "ceia das
bodas do Cordeiro" (verso 9) e referência à "noiva do Cordeiro" (verso 7). As vestiduras
brancas (verso 8) são reminiscência , evidentemente, de imagens similares da visão II,
em relação aos mártires do quinto selo, e à grande multidão da seção "holofote" (6:9-11
e 7:9-17, respectivamente). Dever-se-ia ainda observar que a seqüência da visão VII
conclui - e isto é bastante interessante - com uma referência adicional à "noiva" - ou
seja, a visão que João tem da Santa Cidade, a Nova Jerusalém, descendo de Deus,
desde o Céu, "como noiva adornada para o seu esposo" (21:2).

14.9. INTRODUÇÃO À VISÃO VIII

14.9.1. Texto: 21:5-11a (e referências aos versos 1-4 como


ponto de apoio)

Resumo: No contexto do "novo céu" e da "nova terra", havendo a "santa


cidade, a Nova Jerusalém" descido da parte de Deus desde o Céu, João agora
contempla Aquele assentado sobre o trono. Este ser divino – o próprio Deus, segundo
visões anteriores - declara: "Eis que faço novas todas as cousas". Fala Ele então a
João, dizendo: "Escreve, porque estas palavras são fiéis e verdadeiras", declarando
ainda: "Tudo está feito. Eu sou o Alfa e o Omega... "Declara-se um duplo juízo:
herança de todas as coisas por parte do vencedor; e destruição no lago de fogo, "que
é a segunda morte", para os que não venceram. Então um dos sete anjos portadores
das taças de ira, conduz João a um alto monte, mostrando-lhe a grande cidade, a
santa Jerusalém, descendo do Céu, da parte de Deus, e possuindo a glória de Deus.

502
Para um valioso estudo das antífonas apresentadas nestas duas passagens, veja William H.
Shea, "Revelation 5 and 19 as Literary Reciprocals", AUSS 22 (1984): 249-257 .
193

Comentário: Em contraste comas cenas introdutórias para as visões II-VII,


onde o cenário em cada caso se achava claramente no Céu, aqui aparece o retorno
a um cenário terrestre - situação paralela à da visão I. Na visão VIII, esta cena
introdutória lida efetivamente com um ambiente de tabernáculo ou templo, mas não
está absolutamente claro se a cena apresentada em 21:5-11a pretende assumir uma
perspectiva basicamente terrestre, ou se pretende representar uma transição do Céu
para a Terra (tampouco é isto de importância material para o nosso estudo). Em 21:3
é feita a declaração, obviamente, de que o tabernáculo de Deus acha-se sobre a
Terra após a descida da Santa Cidade (verso 2), e esta porção final da visão VII
pareceria prover o cenário para a abertura da visão VIII (embora ela própria replique
a descrição da descida da Nova Jerusalém /21:10/). De toda forma, o ponto principal
é que o foco desta cena introdutória se deslocou do templo no Céu, de modo a fazer
a ênfase repousar uma vez mais sobre a jurisdição terrestre. As imagens do templo
serão analisa das com mais vagar em ponto posterior deste artigo.

14.10. ALGUMAS IMPLICAÇÕES DA ESTRUTURA

Os resumos apresentados na seção precedente deste artigo trouxeram ao foco


da atenção vários elementos concernentes às cenas introdutórias das oito grandes
visões do Apocalipse. São de notável observação as seguintes características: (1) A
constante presença de figuras do templo nestas cenas; (2) impulsos positivos e
negativos dentro destas cenas; (3) uma certa dinâmica ou movimento nas imagens do
templo e no simbolismo negativo do juízo que aparece nas visões III-VI; e (4) uma certa
similaridade de estrutura e conteúdo entre a primeira e a oitava visões. Queremos
dedicar agora alguma atenção adicional a estes elementos, mas como passo preliminar
observaremos estes brevemente a espécie de relacionamento que as cenas
introdutórias mantêm com suas próprias seqüências proféticas.

14.10.1. As Cenas Introdutórias e Suas Respectivas Seqüências


Proféticas

Em qualquer análise das cenas introdutórias das oito grandes visões do livro
de Apocalipse, a primeira consideração lógica deve ser o fato de que existe íntima
relação entre estas cenas e o restante das seqüências proféticas que elas
apresentam. Assim, no tocante à visão I, a retratação de Cristo como estando a
andar por entre os candeeiros/igrejas, adequadamente precede Seus conselhos às
mesmas igrejas; para a visão II, a cena com o Cordeiro, sendo proclamado digno de
abrir o rolo selado com sete selos, e depois efetivamente recebendo o rolo da mão
dAquele assentado sobre o trono - provê um pano de fundo apropriado para a
efetiva abertura dos selos por parte do Cordeiro.
Estas cenas introdutórias provêem, desta forma, um cenário positivamente
orientado - como se fosse uma mensagem de segurança - que se relaciona com a
seqüência que vem depois. Neste primeiro exemplo, Cristo assegura a Seu povo que
estará com eles em suas lutas contra o engano e a perseguição - batalhas que dEle
requerem palavras de conselho e estímulo, e muitas vezes reprovação (capítulos 2 e 3).
Da mesma forma, na segunda visão existe a certeza de que as forças
liberadas pelo rompimento dos selos acham-se dentro da estrutura redentiva da obra
do Cordeiro morto, efetuada no Céu, e que eventualmente resultará na abertura do
194

livro do destino eterno para os fiéis.503 Os selos são sucessivamente abertos nos
capítulos 6 a 8:1, intensificando a cada passo a progressão, até que um dramático
silêncio ocorre guando finalmente o rolo é aberto. O "interlúdio" do capítulo 7 é
visivelmente um "holofote sobre eventos finais" para esta seqüência particular. Ao
destacar o selamento do povo de Deus, existe neste interlúdio uma espécie de
pratica da terminologia dos "selos". Mas todo o conceito de propriedade e
preservação inerente ao simbolismo do selo, também conecta de modo muito direto
esta cena do capítulo 7 com o rompimento dos selos.504 Os 144.000 selados de
Deus são protegidos contra a selvageria dos cavaleiros dos quatro primeiros
selos,505 e mesmo sob a sorte do martírio retratado sob o quinto selo; podem eles
repousar na plena segurança do cuidado de Deus.506 Esta ênfase no cuidado de
Deus é salientada ainda mais na apresentação das seções b e c do capítulo 7
(versos 9-17), em que aparece a multidão que procede da grande tribulação (estes,
tais quais os mártires do quinto selo, possuem vestiduras brancas!).
Os exemplos analisados ilustram a maneira pela qual existe íntima correlação
entre as cenas de introdução-vitória e o restante das respectivas visões, que estas
cenas introduzem, e não será necessário trabalhar mais do que estes dois casos. De
fato, uma breve revisão do conteúdo principal de cada visão pode ser obtida ao
consultar a segunda seção de meu artigo anterior desta série. A observação
adicional que aqui deveria ser feita, é que embora todas as cenas de introdução-
vitória tenham a nota positiva da certeza de Cristo a Seus fiéis, algumas
especialmente as das visões III-VI (a dupla série dos temas "Êxodo do Egito"/"Queda
de Babilônia") - também retratam aspectos negativos. Este assunto receberá
atenção adicional mais tarde.

14.10.2. As Figuras do Templo e Seu Significado

Conforme observamos, as imagens do templo são "onipresentes" nas cenas


introdutórias das oito principais seqüências proféticas de Apocalipse. No tocante às
visões II-VII, o cenário encontra-se "no templo, no Céu", vindo à baila o mobiliário
deste templo. Na visão I, contudo, as imagens do templo são as de candeeiros que
representam "as sete igrejas" sobre a Terra. Na visão VIII, existe novamente uma
jurisdição terrestre - mas agora no contexto da santa cidade, Nova Jerusalém, e da

503
Cf. n° 496, acima.
504
Os dicionários léxicos e teológicos (tais como TDNT) e obras de referência similares (sphragis)
elucidaram amplamente o significado do "selo" e do processo ou prática de "selamento" no mundo
antigo. Para uma referência sucinta a seis significados possíveis, veja J. Massyngberge Ford,
Revelation, AB 38 (Garden City, NY, 1975), pp. 116-117. Cf. também a análise um tanto detalhada de
"Seals and Scarabs" em IDB 4: 254-259.
505
Os comentaristas em geral perdem de vista este vínculo em virtude do fracasso de observar com
suficiente atenção a base do VT encontrada em Zacarias 6, onde cavalos de várias cores saem para
"percorrer" a Terra (verso 7) e onde, em resposta à pergunta do profeta quanto a identidade dos
quatro grupos de cavalos, um anjo os define como os quatro ruhôt ("ventos") do céu que saem da
presença do Senhor de toda a Terra (versos 4 e 5). Comentaristas que estabeleceram estas
conexões, incluem G. R. Beasley-Murray, The Book of Revelation New Century Bible (London, 1974),
p. 142; e Leon Morris, The Revelation of St. John Tyndale NT Commentaries (Grand Rapids, MI,
1969), p. 113. Infelizmente, nesta passagem a RSV distorce completamente o significado do hebraico
mediante as palavras que usa. "Estes /os grupos de cavalos/ saem para os quatro ventos do céu",
quando na realidade são os ventos (=cavalos) que saem.
506
Para um estudo abrangente do quinto selo, veja agora Joel Nobel Musvosvi, "The Concept of
Vengeance in the Book of Revelation in the Old Testament and Near Eastern Context" (Dissertação
de Ph. D., Andrews University, 1986).
195

"nova terra", em que o próprio Deus estabelece Seu tabernáculo junto a Seu povo
(21:3-4) e com "Deus e o Cordeiro" sendo descritos como o "templo" da Nova
Jerusalém (21:22).
É imediatamente aparente que todas as três principais aplicações
neotestamentárias das imagens do templo vêm à baila nestas cenas introdutórias.
Na primeira visão, temos o conceito neotestamentário da igreja cristã como o "novo
templo". O loci clássico para este conceito é indubitavelmente I Coríntios 3:16-17 e II
Coríntios 6:16-17, mas por certo existem reflexos do mesmo em I Pedro 2:5, e
também na proclamação de Tiago ao Concílio de Jerusalém, mencionada em Atos
15:13-18. Nesta última referência, Tiago faz aplicação da profecia de Amos 9:11-12,
referindo-se ao retorno de Deus para construir outra vez o "tabernáculo de Davi",
que havia fracassado, como referindo-se e aplicando-se diretamente à entrada de
gentios na igreja apostólica.
O paralelo do NT que mais se aproxima do uso refletido nas cenas
introdutórias das visões II-VII no livro de Apocalipse, é aquele que encontramos no
livro de Hebreus. Ali se fala de Cristo como sendo "sumo sacerdote, assentado à
destra do trono da majestade no Céu" - e como "ministro do santuário e do
verdadeiro tabernáculo que o Senhor erigiu, não o homem" (Hebreus 8:1-2; veja
também o verso 5).507
Finalmente, a mais central e mais básica aplicação do NT em termos de
imagens do templo, é aquela ilustrada na cena introdutória e na descrição profética
da visão VIII de Apocalipse, ou seja: uma referência à presença divina direta. No
prólogo ao Evangelho de João, declara-se que Cristo "habitou entre nós"(João 1:14;
cf. a situação na "nova terra" após a descida, do Céu, da Nova Jerusalém, onde se
declara que Deus habitará com a humanidade /21:3/). Talvez uma referência ainda
mais nítida seja aquela em que Jesus declara: "Destruí este templo, e em três dias o
reedificarei". Os judeus entenderam esta declaração como referindo-se ao templo de
Herodes, mas o evangelista explicou que "Ele /Cristo/... Se referia ao santuário do
seu corpo" e que após a ressurreição dentre os mortos, de Jesus, Seus discípulos
lembraram-se de que Ele dissera isto (João 2:19-22).
A presença divina era o foco central da economia do antigo
tabernáculo/templo de Israel.508 Moisés recebeu instrução quanto a construir "um
santuário, e habitarei /Deus/ no meio deles /do povo de Israel" (Êxodo 25:8). Ao
completar - se a construção do tabernáculo, "a nuvem cobriu a tenda da
congregação, e a glória do Senhor encheu o tabernáculo" (Êxodo 40:34). É este
pensamento fundamental - o da divina presença - que da mesma forma perpassa as
cenas introdutórias de todas as oito visões do Apocalipse. O divino e sempre vivo
Cristo é, neste caso, retratado como estando presente com Seu povo na Terra,
sustentando-o 'e provendo-lhe mensagens através de Seu Santo Espírito (visão I);509
então a cena se modifica e passa ao santuário celestial, onde Cristo ministra
ativamente em favor de Seu povo (visões II-VII): finalmente, quando Deus e o
Cordeiro habitam com os seres humanos na "nova terra" e na "Nova Jerusalém", é
trazida a Terra a própria intimidade e tangibilidade da presença divina (visão VIII).
507
Veja novamente a excelente discussão em Davidson, pp. 336-367; veja também, em Davidson,
as estruturas "Excursus" ou tupos para Êxodo 25:40, às páginas 367-388.
508
Para uma boa visão geral deste tema fundamental, veja Angel Manuel Rodríguez, "Sanctuary
Theology in the Book of Exodus", AUSS 24 (1986): 127-145.
509
É interessante observar que cada uma das sete mensagens é iniciada por Cristo e então é
resumida, em cada caso, como "aquilo que o Espírito diz às igrejas" - fazendo um paralelo às
declarações do Quarto Evangelho no sentido de que o Paracleto apresentaria as palavras de Cristo
(veja, por exemplo, João 14:25-26; 15:26; 16:12-15).
196

14.10.3. Elementos Positivos e Negativos nas Cenas Introdutórias

Conforme salientado antes, as cenas de introdução-vitória das visões I e II


contêm apenas um impulso positivo, mas a terceira cena introdutória introduz
também um elemento negativo. Nessa terceira cena, a ênfase positiva é encontrada
na mistura de incenso e orações dos santos que sobe a Deus, ao passo que o
elemento negativo é descrito em termos de o anjo lançar um incensário com brasas
vivas para a Terra, com os resultantes sinais de julgamento: vozes, trovões,
relâmpagos e terremoto.
No artigo anterior desta série salientei que as visões III a VI consistem de um
tema duas vezes apresentado, que pode adequadamente, ser identificado como
"Êxodo do Egito" / "Queda de Babilônia". (Veja o Diagrama 2 para uma ilustração
deste tópico.) É interessante que e precisamente em conjunção com estas quatro
visões que aparecem as mais fortes referências a um julgamento negativo. Existe
também uma progressão de intensidade no simbolismo do juízo, conforme
observaremos brevemente.
As cenas introdutórias das visões VII e VIII retornam parcialmente ao impulso
positivo das seções comparáveis das visões I e II. Contudo, existe pelo menos uma
referência oblíqua (e ainda assim forte) ao julgamento negativo em cada uma destas
visões finais, mesmo em sendo positivo o seu impulso principal. No tocante à visão
VII, Deus é louvado por haver julgado a prostituta e vindicado Seus santos. Em
assim sendo, a bênção da salvação é a nota tônica das antífonas de louvor;
especialmente na referência à noiva do Cordeiro e à sua ceia de bodas, existe
regozijo no mais alto grau! Quanto à visão VIII, insere-se ela num quadro cheio de
felicidade (21:5-11a), mas ainda assim um dos versos faz referência à sorte
daqueles que serão lançados "no lago de fogo" (verso 8) - uma declaração
obviamente assim apresentada a fim de contrastar com a recompensa dos
vencedores mencionados imediatamente antes (verso 7).510
Concernente a este impulso positivo e negativo das cenas iniciais e finais de
introdução-vitória, parece que o impulso totalmente positivo das cenas das visões I e
II não são mantidas em perfeito equilíbrio com suas contrapartidas -- em termos de
quiasma das visões VII e VIII, e existe boa razão para isto: as primeiras referem-se
especificamente ao processo salvífico em andamento, uma grande preocupação
teológica durante a era histórica; mas as ultimas, projetando o contraste, pertencem
a um tempo da era escatológica de julgamento, em que a salvação última e a
glorificação aguardam os santos de Cristo, mas em que os "perdidos" também
determinam plenamente a sua sorte. Estes "perdidos" não podem ser ignorados ao
se apresentar o quadro completo, pois - segundo G. E. Mendenhall salientou num
contexto diferente - a vindicação dos santos de Deus tem os "dois lados da moeda":
enquanto um dos lados representa a salvação dos santos, o lado oposto significa a
condenação daqueles que foram os opressores dos santos.511
510
Não deveria ser perdido de vista o fato de que, do mesmo modo como 21:7 apresenta em termos
amplos a recompensa última dos vencedores das sete igrejas dos capítulos 2 e 3, 21:8 reflete,
também de modo abrangente, a sorte dos "não-vencedores" destas mesmas igrejas. Os termos
"covardes, incrédulos, abomináveis, assassinos, impuros, feiticeiros, idolatras e mentirosos" de 21:8
são reminiscência das descrições e conselhos das sete mensagens, no tocante à fidelidade até à
morte (Esmirna), aos perigos das vilezas de Balaão e Jezabel (Pérgamo e Tiatira) e ao perjúrio contra
os fiéis discípulos de Cristo (Filadélfia), etc.
511
George E. Mendenhall, The Tenth Generation: The Origins Of The Biblical Tradition (Baltimore,
MD, 1973), p. 83. Isto se acha no contexto de um excelente estudo de NQM (a questão da "vingança"
197

14.10.4. "Movimento" na Apresentação das Figuras

Em adição à intrigante dimensão vertical manifestada nas visões do


Apocalipse, existe um certo tipo de movimento horizontal, evidente no uso simbólico
dentro da seqüência das oito cenas de "introdução-vitória". Observamos antes, a
partir de outra perspectiva do deslocamento de um cenário de templo terrestre para
um cenário de templo celestial, e novamente para o templo terrestre (o da "nova
terra", neste último caso). Mas as próprias cenas do templo celestial (nas visões II-
VII) mostram uma interessante progressão em termos de simbolismo.
Examinaremos brevemente este fato, e depois veremos, também com brevidade,
que ocorre igualmente uma progressão nas imagens negativas de juízo, utilizadas
nas visões III-VI.
Imagens do Templo no Céu. Na visão II, as sete tochas de fogo sugerem o
primeiro compartimento ou Lugar Santo. Em Seguida a visão III nos conduz ao altar

de ouro/altar do incenso situado diante do trono, e então a visão IV abre a visão para
a arca da aliança de Deus, no compartimento interior, ou Lugar Santíssimo.512
Assim, no que tange as visões pertencentes à era histórica, temos um movimento
para dentro do templo. Isto parece correlacionar-se com a crescente ênfase quanto
ao tempo do fim na respectiva "Descrição Profética Básica" e nos "Interlúdios",
embora todas estas seqüências cubram a era desde os dias do profeta até ao fim.

ou "vindicação") na literatura bíblica e de outras fontes antigas do Oriente Próximo.


512
Cf. novamente o n° 499, acima.
198

(Este fenômeno foi tratado suficientemente no artigo anterior, de modo que aqui não
se requer elaboração adicional).
Após a linha divisória do quiasma, as imagens do templo não mais incluem o
mobiliário deste, pois as funções representadas por dito mobiliário ou as atividades
salvíficas por eles indicadas - não mais existem. Em lugar deles, o fumo enche o templo
de tal forma que não mais prossegue o ministério da misericórdia (15:8); ocorrem
proclamações e/ou sinais de julgamento, fazendo-se apenas referências gerais à sua
origem no templo, do trono, e/ou ao Céu. (cf. 16:17 e seguintes; 19:1-5; " 21:5).
Imagens Negativas de Julgamento. As quatro visões centrais do Apocalipse -
visões III a VI - possuem introduções que apresentam simbolismo de juízo
fortemente negativo. Uma característica interessante é a intensificação deste
impulso negativo. Os sinais na visão III são trovões, vozes, relâmpagos e terremoto
(8:5): a estes, a visão IV acrescenta "forte saraivada" (11:19); e finalmente, a visão
VI apresenta os mesmos arautos do juízo, mas intensifica consideravelmente tanto
o terremoto ("tal como nunca houve desde que há gente sobre a Terra", 16:18)
quanto a saraivada "cerca do peso de um talento, 16:21). A visão V omite esta série
particular de símbolos de juízo, possivelmente porque inaugura a apresentação da
era escatológica, onde sua ênfase central recai já sobre um aspecto altamente
negativo: a plenitude da ira de Deus sendo conduzida para fora do templo em sete
taças, e o próprio templo aparecendo cheio de fumaça e não-ocupado (15:5-8).
Em todos os casos, as duas primeiras visões com o tema "Êxodo do Egito" /
"Queda de Babilônia" (visões III e IV) começam com uma cena introdutória que já
por si mesma revela uma progressão na intensidade do juízo. Esta intensidade é
adicionalmente destacada pela segunda dupla de visões (V e VI). O significado
teológico aqui parece ser o conceito de que a crescente sorte negativa se relaciona
com contínua e mais flagrante rejeição da oferta de salvação apresentada por Cristo.
Neste caso, isto pareceria uma espécie de comentário ampliado do princípio que
Jesus enunciou ao declarar a sorte, no juízo, de Betsaida, Corazim, Cafarnaum e
outras cidades que rejeitaram Sua oferta de misericórdia, esta seria pior que a de
Sodoma e Gomorra (cf., por exemplo, Mateus 10:14-15 e 11:20-24).

14.10.5. Relação das Introduções das Visões I e VIII

Já analisamos o significado teológico das imagens do templo nas oito cenas


introdutórias de Apocalipse. Aqui devemos oferecer atenção mais específica a uma
característica particular - qual seja, a estrutura "em envelope" na qual as
introduções às visões I e VIII encerram, por assim dizer, as seis outras introduções.
A característica primaria do esquema de "fechamento" é a da jurisdição - terrestre
para as visões I e VIII e celestial para as visões II VII. Assim, a ênfase tanto do
começo quanto do final do livro diz respeito à imanência da presença divina.
Porventura existiria aqui uma sugestão quanto aos dois adventos de Cristo e
seus resultados últimos? Na primeira cena introdutória, João vê a Cristo, que havia
vindo como Deus encarnado em Seu primeiro advento - que fora morto e
ressuscitara, e que ascendera ao Céu depois de quarenta dias. Agora este mesmo
Personagem divino aparece a João como Aquele que fora morto, mas agora vivia
para sempre (Apocalipse 1:17-18), e Se encontra presente, andando entre Suas
igrejas/castiçais. Esta primeira cena de introdução-vitória evidencia, deste modo, a
contínua e íntima presença do próprio Jesus, em relação a Sua igreja na Terra. Sua
vitória durante a encarnação assegurara a existência desta própria comunidade do
concerto, e Sua presença divina remanesce no meio de Seu povo durante a ampla
199

era histórica (por intermédio do Espírito Santo).513 No Quarto Evangelho, o prólogo


refere-se a Cristo como "habitando entre nós" (João 1:14), mas o Discurso do
Paracleto indica que mesmo após a partida de Jesus rumo ao Céu, tanto Ele quanto
o Pai fariam "morada" na vida dos fiéis discípulos de Jesus (veja João 14:15-21, 23).
A contrapartida desta divina presença "aqui e agora" é a plenitude da
experiência da divina presença, dependente da segunda vinda de Jesus com a
finalidade de trazer recompensa a todas as pessoas de acordo com suas obras
(Apocalipse 22:12). Na etapa final destas recompensas, isto é, no "novo céu" / "nova
terra" / "Nova Jerusalém" e suas experiências - Deus e o Cordeiro mais uma vez
"habitarão" com Seu povo, mas então esta habitação estará representada por uma
presença imediata e direta (veja 21:3, 22; e 22:1-4).
Deste modo, no começo e no fim destas cenas de introdução-vitória
encontramos, em certo sentido, uma elaboração do duplo tema de Apocalipse (ao
qual chamei atenção em meu primeiro artigo desta série): A presença de Cristo com
Seu povo na era presente - como "Alfa e Omega" - e Seu retorno, no final da era
histórica a fim de desencadear os eventos que culminarão com Sua presença entre
Seu povo durante toda a eternidade (cf. Apocalipse 1:7-8 e 22:12-13).
Neste caso, qual a função das cenas introdutórias das visões intercaladas?
Ao passo que a imanência é enfatizada nas visões I e VIII, inclusive em suas cenas
de introdução vitória, a transcendência é enfatizada nas demais visões. Estas seis
visões destacam a atividade no Céu, enquanto o povo de Deus se encontra na
Terra. Mas essa transcendência não significa desinteresse, tampouco existe
qualquer falta de contato e preocupação entre o Céu e a Terra. Em vez disso, todas
estas visões (através de suas cenas de introdução-vitória, e também em suas
seqüências descritivas posteriores) revelam uma decisiva e decidida continuidade
vertical. Aquilo que é feito no templo do Céu, o é em beneficio do povo de Deus
sobre a Terra, de modo que a atividade celestial retratada nas cenas de introdução-
vitória encontra uma imediata contrapartida nas forças liberadas sobre a Terra com o
fito de realizar o propósito de Deus para com SEU povo.

14.10.6. Abrangentes "Estruturas em Envelope"

Dever-se-ia fazer breve menção ao fato de que na análise e discussão


precedentes nós chegamos a duas amplas "estruturas em envelope". 514
Lidamos com uma destas e a discutimos na jurisdição das imagens do templo:
para as visões I e VIII, uma jurisdição terrestre (história presente e nova terra,
respectivamente); e para as visões II-VII, um cenário de "templo no Céu". A
outra estrutura em envelope relaciona-se com as "Imagens Negativas de Juízo"
e incorpora o forte impulso negativo, relacionado com julgamento, das cenas
introdutórias das visões III a VI, dentro do impulso francamente positivo das
cenas paralelas das visões I e II, por um lado, e do impulso predominantemente
positivo das cenas das visões VII e VIII, por outro lado. 515 (Estas duas grandes

513
Cf. novamente o n° 509, acima.
514
"Estruturas em envelope" ou "inclusões" são comuns nos padrões literários do Apocalipse. Veja, por
exemplo, William H. Shea, "The Parallel Literary Structure of Revelation 12 and 20", AUSS 23 (1.9.85):
37-54 (especialmente as páginas 44 e 45), para duas surpreendentes ilustrações deste fenômeno.
515
Com respeito ao assunto de aspectos positivos e negativos, nossa referência se faz, por certo,
unicamente as cenas de introduçao-vitória - os blocos designados como "A" no Diagrama 1. Para
outros blocos de materiais nas visões I, II e VII, existem efetivamente muitos aspectos negativos, mas
este fato não afeta o padrão distintivo que observamos nas cenas introdutórias.
200

estruturas "em envelope" são esboçadas no Diagrama 3, na próxima página).


Os dois exemplos inclusão evidentemente oferecem interesse a partir do
ponto de vista de maestria literária. Mas devemos conservar em mente que esta
habilidade não foi vislumbrada como um fim em si mesma; em lugar disso, foi
incorporada devido a - e em relação a sua funcionalidade como elemento que
destaca a perspectiva teológica e os temas que são fundamentais no Apocalipse e
que constituem a preocupação primária do livro.

14.11. SUMÁRIO E CONCLUSÃO

O artigo anterior e o atual esboçaram certas estruturas literárias do


Apocalipse e ofereceram particular atenção às cenas de introdução-vitória das oito
grandes visões do livro de Apocalipse. Torna-se óbvio, em primeiro lugar, que
Apocalipse é uma peça literária primorosamente organizada. Contudo, os padrões
literários representam mais que simplesmente o gosto artístico e a preocupação
mnemônica: eles salientam de forma muito real certos grandes temas e motivações
teológicos. São eles temas e motivos que representam um paralelo e uma
elaboração de aspectos da teologia geral do NT, e são particularmente valiosos ao
oferecerem esperança e segurança aos fiéis seguidores de Cristo em sua luta contra
as forças do engano e da perseguição.

Traduzido por: Hélio L. Grellmann


Novembro de 1990

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