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Introdução
A expansão monástica
➢ Enquanto São Bento viveu, sua obra contava apenas três mosteiros: o de Monte Cassino, o
de Subiaco e o de Terracina. Os ataques lombardos em 580 obrigaram os beneditinos a se
refugiarem em Roma, de onde a Regra foi levada, para a Inglaterra, pelos missionários
àquela nação enviada por São Gregório Magno em 596. Da Inglaterra, a Regra Beneditina
foi levada para à Alemanha por São Bonifácio em cerca de 700. Na Espanha penetrou ao
longo do século VII e, durante o século VIII, suplantou todas as outras regras na França.
Tornou-se a Regra de todos os mosteiros do Império Carolíngio em 817.
➢ A proliferação dos conventos e mosteiros é um dos mais relevantes marcos da Igreja nos
tempos bárbaros. A partir do século VI e durante muitas gerações, reis, bispos, nobres e
ricos rivalizarão no zelo por fundá-los, seja na França, na Espanha, na Inglaterra, na
Alemanha, na Itália.
➢ Impressiona, ainda, a quantidade de vocações: comunidades de 200 monges eram comuns.
Alguns mosteiros contavam com mil monges, vindos de todas as classes, desde reis até
gente humilde, que tudo deixavam para viver inteiramente para Deus. Vimos, na aula
retrasada, o exemplo fabuloso da rainha Santa Radegunda, que deixou o estado matrimonial
para viver no convento que fundou em Poitiers e que seria um dos mais importantes
mosteiros de toda a Idade Média.1
1
Sobre Santa Radegunda, ver aula 70.
2
Ver aula 39.
➢ Os mosteiros dos tempos bárbaros destacaram-se, sobretudo, por seu papel intelectual e por
terem preservado a cultura.
➢ Isso se deu, primeiramente, pelo trabalho dos chamados “copistas”, os “amanuenses”,
expressão que vem de “ad manu”, “à mão”. O trabalho de copiar manuscritos para legá-los à
posteridade começou provavelmente na Irlanda e na Inglaterra, onde se multiplicaram as
escolas de calígrafos, e depois no continente. Mas se o trabalho dos monges enquanto
copistas foi importante, sua contribuição civilizacional o ultrapassou. Com efeito, escreveu
Chateaubriand que “os conventos se converteram numa espécie de fortaleza em que a
civilização se abrigava debaixo da bandeira de um santo, ali se conservou o cultivo da alta
inteligência”.
➢ Cassiodoro, por exemplo, estimulava seus discípulos a dedicarem-se à vida do espírito e
orgulhava-se de sua rica biblioteca. São Cesário de Arles estabelecia para suas religiosas
duas horas e meia de leitura por dia, e até mesmo São Columbano não queria que seus
monges fossem ignorantes. Calcula-se que um beneditino dispunha para sua formação
intelectual 1.265 horas por ano, o que o permitia devorar uns 8.000 livros em uma vida
monástica de cinquenta anos.
➢ Não dando São Bento em sua Regra foco na vida intelectual, por que sua ordem se tornou
tão indiscutivelmente intelectual? Graças, sobretudo, ao seu discípulo São Mauro, por cuja
influência os beneditinos passaram a se dedicar cada vez mais ao cultivo do espírito.
➢ O único ensino razoavelmente sério que existia era o ministrado nos mosteiros. Como diz
Dawson (A formação da Cristandade, p. 274-275): “Ao longo do tempo, os mosteiros
produziram todos os frutos da alta cultura – arte, música e erudição – e transmitiu-os, via
atividade educacional, para a sociedade ao redor. De fato, do século VII ao X, os
monastérios foram a única força educacional eficaz que sobreviveu no mundo ocidental”.
➢ Naturalmente, o declínio civilizacional pós-invasões também atingiu os mosteiros, de modo
que não se deve imaginar que esses mosteiros dos tempos bárbaros eram intelectualmente o
que seriam os grandes centros de cultura na Cristandade. Em todo caso, não é pouca coisa
que, mesmo nas piores épocas, essas casas católicas eram virtualmente o único lugar em que
se manteve o gosto pela sabedoria e em que se buscou meios de salvá-la.
➢ O Ocidente, entre os séculos III e V dera à luz Santos Padres como São Cipriano, Tertuliano,
São Jerônimo, Santo Ambrósio, Santo Agostinho e São Leão Magno. E se o nível dos
grandes pensadores caiu quando do início da Idade Média, do mesmo modo como a Igreja
esforçou-se para ordenar moralmente as sociedades bárbaras do Ocidente,3 fê-lo igualmente
no âmbito intelectual, logrando manter acesos alguns faróis de luz enquanto a cultura geral
decaía.
➢ O movimento aqui estudado trata-se, com efeito, do terceiro e último período da Patrística,
inferior ao anterior tanto em grandes nomes quanto em grandes obras, mas que possibilitou
que a chama da civilização, da cultura, da sabedoria cristã não se apagasse.
➢ Do século VI ao século XIII, um período de oitocentos anos, nenhuma atividade literária
relevante será produzida na Europa que não dentro dos quatros da Igreja. E, nos tempos
3
Ver aulas 68, 70 e 71.
bárbaros, não se poderá citar um só nome de um grande intelectual que não seja ou bispo, ou
padre, ou monge, à exceção, é claro, do primeiro, que era leigo: Boécio.
➢ Estes homens serão os educadores da Idade Média.
➢ Anício Mânlio Torcato Severio Boécio, do qual já falamos,4 nasceu em Roma, de uma
família antiga e tradicional, na década de 470. Dotado de muitas qualidades intelectuais,
começou seus estudos na Itália e continuou-os em Atenas, onde adquiriu vasta formação
literária, filosófica e científica.
➢ Quando retornou à Roma, caiu nas boas graças do rei ostrogodo Teodorico, o Grande, sendo
por ele nomeado cônsul em 510, seguido de seus dois filhos, nomeados cônsules em 522.
Porém, a colaboração com Teodorico só foi possível enquanto este fosse tolerante com os
católicos – afinal, Teodorico era um rei ariano e Boécio, católico
fervoroso. Quando Teodorico mudou de postura para com os
católicos da Itália, acreditando que eles conspiravam com os
bizantinos contra seu próprio reino, e julgando que Boécio
fizesse parte da conspiração, mandou prendê-lo.
➢ Foi condenado à morte entre 524 e 526 quando não tinha mais
do que 46 anos. Morreu em Pavia, cuja diocese recebeu
autorização para cultuá-lo como santo pelo Papa Leão XIII em
1883. Está sepultado na belíssima basílica de San Pietro in Ciel
d’Oro, uma das mais belas igrejas de Pavia, ao lado do túmulo
de Santo Agostinho.
➢ O que nos importa aqui não é tanto a vida, mas a obra de Boécio
(se é que é possível separá-las). Procurando não apenas atingir
Boécio
largos conhecimentos filosóficos, Boécio buscou restaurar o
ensino da filosofia no Ocidente. Por isso traduziu, comentou e colocou ao alcance dos
ocidentais os grandes filósofos do Oriente, como Aristóteles, Platão e Porfírio. Suas obras
filosóficas são mais ou menos vinte, incluindo obras originais dele e traduções para o latim
de obras gregas nunca lidas no Ocidente. Um dos seus grandes objetivos era reabilitar em
definitivo a filosofia, mostrando que os grandes filósofos como Platão e Aristóteles não se
4
Ver aula 61.
opunham entre si no essencial. Desejou fazer uma grande síntese entre eles, mas a prisão e a
morte impediram.
➢ No entanto, o trabalho que começou aproveitou muitíssimo os que viriam, sobretudo entre
os escolásticos, que viriam em Boécio seu precursor. Afinal, como diz Hermas em “O
Pastor”, a Igreja é como uma grande torre na qual cada um coloca sua pedra, e como diz
Sertillanges: “A humanidade cristã é composta de personalidades diversas, dentre as quais
nenhuma abdica sem empobrecer o grupo e sem privar o Cristo eterno de uma parte de seu
reinado. O Cristo reina pelo seu desdobramento. Toda vida de um de seus membros é um
instante qualificado de sua duração; to do caso humano e cristão é incomunicável, único e
por conseguinte necessário da extensão do ‘corpo espiritual’. Se alguém for designado
como porta-luz, que não vá encobrir com seu
anteparo o brilho diminuto ou resplandecente
que se espera dele na casa do Pai de família.”
(A Vida Intelectual, p. 22).
➢ Boécio escreveu obras teológicas cuja
autenticidade é certa, e um opúsculo chamado
“De Fide Catholica”, de autenticidade
contestada. Em suas obras filosóficas e
teológicas ele precisou com clareza as noções
filosóficas de substância, natureza, suposto,
pessoa, eternidade, felicidade, noções que
seriam fundamentais para o desenvolvimento da
teologia e da filosofia católicas. Sempre que
pôde, procurou explicar o dogma a partir das
noções e dos princípios de uma metafísica
adequada. Se isso não o torna um escolástico,
Boécio na prisão
diz o Padre Insuelas, o torna ao menos um
precursor da teologia escolástica (p. 614).
➢ Mas sua obra fundamental é o “De Consolatione Philosophiae”, “Da Consolação da
Filosofia”, que escreveu na prisão, logo antes da morte, e na qual demonstrava – sem abjurar
de sua fé cristã – encontrar na filosofia um remédio eficaz para seus sofrimentos amargos.
Trata-se de um diálogo entre o próprio Boécio e a Filosofia, dividido em cinco livros:
b) Cassiodoro (490-581)
tempos não eram, ainda, propícios para tal. Seja como for, Cassiodoro e seus monges
fizeram a semeadura: depois dele, a cultura monástica do Ocidente se tornou profundamente
intelectual.
➢ As obras que ele deixou incluem tratados históricos bem vastos (como a história dos godos
e a história eclesiástica tripartida), obras filosóficas (como o “Da alma”), obras
educacionais e pedagógicas (como as suas “Instituições do estudos divinos e humanos”,
que trata tanto dos estudos das Escrituras quanto das sete artes liberais) e obras
doutrinárias (como os seus comentários ao Novo Testamento).
➢ Morreu por volta de 570, com mais de 90 anos, e a seu respeito diz Insuelas (p. 622) que “O
estudo da sua vida e das suas obras mostra que ele foi um homem providencial, que veio na
ocasião oportuna para, com o pavio da luz antiga, acender a candeia da civilização nova.”
5
Ver aula 71.
575), Livros V e VI (575-584), Livros VII a X (584 a 591). Essa obra, apesar dos defeitos
linguísticos que a posteridade sempre enfatizou, é uma fonte preciosa e única da história dos
acontecimentos do século VI. Pouco conheceríamos da história merovíngia e da história da
Igreja do Ocidente nos tempos bárbaros sem os registros deste santo.
➢ A aula 69 foi inteiramente dedicada à vida e ao pontificado de São Gregório Magno, o maior
papa dos tempos bárbar os e um dos maiores de toda a
história. Em meio a tantas tarefas e apesar de sua saúde
debilitada, São Gregório Magno encontrou tempo de
dedicar-se à escrita. Sua obra literária foi vasta e pode ser
agrupada em quatro grupos:
o Comentários e Homilias sobre a
Escritura: Seu comentário mais conhecido
é o que escreveu ao livro de Jó, conhecido
como “Moralia” por ser uma síntese
completa da moral cristã. Escreveu esta
obra antes de ser papa, concluindo-a em
590, ano de sua eleição. Neste autêntico
manual de teologia moral e ascética que são
Papa São Gregório Magno
as “Moralia”, oferece uma explicação
histórica, alegórica e moral do Livro de Jó. Em razão deste livro, se diz que
São Gregório Magno foi para a moral o que Santo Agostinho foi para o dogma.
Sobreviveram dele ainda 22 homilias sobre Ezequiel, e 44 homilias sobre o
Evangelho.
o Obras ascético-pastorais: Simultaneamente monge e pastor de almas, São
Gregório Magno soube unir perfeitamente ambas as vocações. Essa união se
expressa sobremodo na “Regra Pastoral”, dirigida ao bispo João de Ravena.
Este prelado censurara o papa pela resistência que opusera à aceitação do
papado e, para responder, defender-se e ensinar a João, compôs a Regra
Pastoral, obra voltada sobretudo aos sacerdotes, na qual mostra as grandezas
da dignidade sacerdotal, a importância dos deveres do sacerdote e dá conselhos
➢ Santo Isidoro, arcebispo de Sevilha é uma das mais notáveis figuras dos tempos bárbaros.
Além de exercer juntos aos reis e bispos visigodos
uma influência excepcional, foi o homem mais
brilhante da Espanha visigótica, deixan do uma
quantidade impressionante de obras sobre os mais
variados assuntos.
➢ Escreveu obras enciclopédicas, como: (a) as
Etimologias, principal de seus livros, no qual
trabalhou até a morte e que não conseguiu completar.
Trata-se de uma enciclopédia na qual estão resumidos
todos os conhecimentos da humanidade em todos os
domínios possíveis – gramática, retórica, dialética,
medicina, direito, história, ofícios eclesiásticos, Deus,
os anjos, a Igreja, as heresias, as línguas, os orações, o
Santo Isidoro de Sevilha
homem, os animais, o mundo, a terra, os metais, a
guerra, as construções, o vestuário, a culinária, os diversos utensílios. As Etimologias estão
divididas em 20 livros e prestaram à Idade Média valiosíssimos serviços. Alguns consideram
esse livro como que o testamento científico da Idade Antiga à Idade Média; (b) Dois livros
da propriedade das palavras; (c) Dois livros de Sinônimos; (d) Da natureza das coisas; (e)
O Tratado da ordem das criaturas.
➢ Escreveu obras históricas como (a) A Crônica, que conta a história do mundo desde a
criação até o ano de 616; (b) A história dos reis godos, vândalos e suevos; (c) O Dos
Homens Célebres.
➢ Santo Isidoro escreveu ainda comentários à Sagrada Escritura; obras teológicas e morais,
como o “De Fide Catholica, contra os judeus”; livros de liturgia e de ascética.
➢ Essa profusão de obras fizeram com que seus contemporâneos o chamassem de “A
Maravilha do Século”, e menos de vinte anos depois de sua morte o VIII concílio de Toledo
o proclamou “o grande doutor da nossa época, o maior sábio destes últimos séculos”. Mais
tarde, quando comparado a Santo Tomás de Aquino em razão das grandes sínteses que fez,
Santo Isidoro foi chamado “Santo Tomás da Espanha”.
➢ Não foi, é verdade, um pensador profundo ou um teólogo consumado, diz Insuelas. No
entanto, procurou salvar da ruína a sabedoria dos séculos, fazendo, sem o saber, a transição
do conhecimento antigo para o da Idade Média, transmitindo para o mundo bárbaro as
riquezas da cultura e da civilização latino-cristã.
➢ Como diz Cayré, “Santo Isidoro foi o homem providencial, que convinha à sua época e aos
séculos seguintes”. Acrescenta Insuelas que, de fato, a época de Santo Isidoro não carecia de
grandes especulações – ela carecia de homens cultos, dotados de senso prático e capazes de
fazer o que Isidoro fez, a saber, fundir os elementos latino, cristão e bárbaro para fundar,
assim, uma só cultura: a da civilização cristã do Ocidente Medieval.
➢ Não sem razão, se diz que, com Cassiodoro, Boécio e São Gregório Magno, Santo Isidoro
foi o grande educador da Idade Média.
➢ Foi proclamado Doutor da Igreja em 1722 pelo Papa Inocêncio XIII.
➢ Na aula 65, na qual tratamos da conversão da Inglaterra, dissemos que um dos grande
milagres daquela nação foi ter, assim que se viu convertida, se tornado viveiro de
missionários, dos quais o maior foi São Bonifácio. No entanto, a igreja na Inglaterra nos
séculos VII e VIII não se destacou apenas como missionária, mas também como luzeiro da
civilização.
6
Ver aula 87.
7
Sobre Santo Alfredo ver aula 93.
➢ Com estes seis personagens podemos constatar como “a idade das trevas” foi repleta de
focos de luz. Ao lado deles poderíamos mencionar tantos, outros como São Cesário de
Arles, São Paulino de Nola, São Sidônio Apolinário, São Venâncio Fortunato, Santo Enódio
de Pavia, Santo Elói, Santo Ouen, Virgílio o Gramático e, Carripio, o Africano.
➢ O que estes mestres representaram — sobretudo Boécio, Cassiodoro, Gregório Magno,
Gregório de Tours, Isidoro e Beda — foi tanto a salvaguarda da civilização quanto a base
sobre a qual se estruturaria toda a cultura cristã. Todos, em menor ou maior grau
influenciados por Santo Agostinho, continuaram a obra do gênio de Hipona e foram, com
eles, os mestres da Idade Média.
➢ O que eles fizeram foi salvar um tesouro (da Igreja e da Civilização Clássica), com o
objetivo de servir à causa de Cristo e da Igreja. Salvando, com este objetivo, o legado dos
filósofos e dos Santos Padres do passado, alicerçaram as bases culturais dos futuros
renascimentos católicos, como o Renascimento Carolíngio entre os séculos VIII e IX e o
grande Renascimento do século XII.
➢ Isso mostra, como enfatiza Christopher Dawson que, apesar da tragicidade de tantos
aspectos dos tempos bárbaros, nós como cristãos devemos estimar com verdadeiro espírito
de piedade estes homens que lançaram os fundamentos do cristianismo no Ocidente e dos
quais nossos ancestrais receberam, pela primeira vez, a fé católica (A Formação da
Cristandade, p. 271), e acrescenta: “Agora percebemos a importância dos dinâmicos
períodos criativos da história, quando um novo começo surge de pequenas causas, já que
para um historiador o período da semeadura é mais importante e merecedor de mais
estudos que o da colheita. Desse ponto de vista, a idade, que não injustamente foi chamada
de ‘das trevas’, é a mais interessante de todas, uma vez que contém o germe de mil anos de
desenvolvimento cultural”.
Referências
➢ Altaner: p. 463-469.
➢ Cayré, Patrologie, t. II.
➢ Daniel-Rops, T. II: p. 282-286, 310-312.
➢ Dawson, A Formação da Cristandade: p. 370-274.
➢ Dawson, Criação do Ocidente: p. 79-96.
➢ Insuelas: p. 585,-588, 612-628, 639-647.
➢ Villoslada e Llorca, Tomo I: p. 626 e 639-643; Tomo II, p. 309-310.