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⚜︎ Escola de História da Igreja – História Universal da Igreja

Material de Apoio – Aula 72


A vida cristã nos tempos bárbaros – parte V

Os monges, a preservação da cultura e os últimos Padres Latinos

Introdução

➢ Durante os tempos bárbaros, os monges, sobretudo os irlandeses e beneditinos (de várias


nacionalidades, mas, a princípio, italianos e ingleses), desempenharam duas importantes
funções: a expansão da religião, de um lado, e a preservação da cultura, a reconstrução
civilizacional e a manutenção acesa da chama da fé, de outro.
➢ A partir da aula 63 falou-se do papel missionário dos monges, a começara pelos irlandeses,
que levaram a fé para a Escócia, para as ilhas do Mar do Norte e para vastas regiões da
fronteira franco-alemã, destacando-se o heroico São Columbano. E nas aulas 64 a 67 viu-se
o papel destinado aos monges beneditinos na evangelização da Inglaterra, e depois de áreas
germânicas ainda não alcançadas ou mal alcançadas pelos missionários, concluindo-se com
a evangelização da Alemanha por São Bonifácio, em meados do século VIII.
➢ Houve, no entanto, um outro papel desempenhado pelos
monges nos tempos bárbaros: após desbravarem e batizarem,
os monges reconstruirão a civilização e preservarão a cultura.

A expansão monástica

➢ Em questão de pouco tempo, a Regra Beneditina se tornou a


regra universal dos mosteiros do Ocidente, e todas as antigas
regras, como as de Cassiano e as irlandesas, foram
substituídas por ela.
➢ As características da Regra de São Bento - a clareza, a
estabilidade, a moderação e a flexibilidade para cada
comunidade (sem uma centralização excessiva em torno de
Monte Cassino) -, contribuíram para que todos os milhares de
mosteiros que se espalhavam pelo Ocidente a ela
São Bento escrevendo a Regra
progressivamente aderissem.

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➢ Enquanto São Bento viveu, sua obra contava apenas três mosteiros: o de Monte Cassino, o
de Subiaco e o de Terracina. Os ataques lombardos em 580 obrigaram os beneditinos a se
refugiarem em Roma, de onde a Regra foi levada, para a Inglaterra, pelos missionários
àquela nação enviada por São Gregório Magno em 596. Da Inglaterra, a Regra Beneditina
foi levada para à Alemanha por São Bonifácio em cerca de 700. Na Espanha penetrou ao
longo do século VII e, durante o século VIII, suplantou todas as outras regras na França.
Tornou-se a Regra de todos os mosteiros do Império Carolíngio em 817.
➢ A proliferação dos conventos e mosteiros é um dos mais relevantes marcos da Igreja nos
tempos bárbaros. A partir do século VI e durante muitas gerações, reis, bispos, nobres e
ricos rivalizarão no zelo por fundá-los, seja na França, na Espanha, na Inglaterra, na
Alemanha, na Itália.
➢ Impressiona, ainda, a quantidade de vocações: comunidades de 200 monges eram comuns.
Alguns mosteiros contavam com mil monges, vindos de todas as classes, desde reis até
gente humilde, que tudo deixavam para viver inteiramente para Deus. Vimos, na aula
retrasada, o exemplo fabuloso da rainha Santa Radegunda, que deixou o estado matrimonial
para viver no convento que fundou em Poitiers e que seria um dos mais importantes
mosteiros de toda a Idade Média.1

A contribuição espiritual e civilizacional dos mosteiros

➢ Os monges desempenharam essencial trabalho missionário, mas igualmente tomaram parte


naquele esforço hercúleo da Igreja para fazer a fé católica penetrar de fato nos corações e
nas sociedades.
➢ Sua influência espiritual foi, nesse sentido, imensa. Os mosteiros eram, como sempre
foram desde os cenóbios egípcios,2 centro da mais intensa vida espiritual, abrigo onde a fé e
os costumes podiam defender-se das contaminações do mundo. Cada mosteiro focava em
dado aspecto da vida espiritual: a regra beneditina colocava em primeiro lugar o Ofício
Divino, enquanto os mosteiros de São Columbano, a penitência. Todos eram,
essencialmente, centros de oração, muitos dos quais praticando já algo importado dos
bizantinos – a laus perennis, a salmodia permanente. O dia inteiro dos mosteiros estava
balizado por momentos dedicados à piedade, existindo já a definição das tradicionais horas
canônicas – matinas, prima, terça, sexta, noa, vésperas, completas. De modo que enquanto

1
Sobre Santa Radegunda, ver aula 70.
2
Ver aula 39.

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os missionários lançavam-se à evangelização dos pagãos e lutavam pela cristianização da


sociedade, havia uma multidão de mãos postas intercedendo incessantemente por eles.
➢ Mas deve-se destacar, ainda, seu papel civilizacional. Os monges, com efeito, desbravavam
a terra e a entregavam à civilização. Instalando-se frequentemente em lugares afastados, em
pleno campo ou em plena floresta, os monges “civilizaram as paisagens europeias”:
limparam matagais, arrancaram árvores, drenaram pântanos, recuperaram as lavouras que as
invasões fizeram abandonar. Os Vosges, cadeia montanhosa entre a França e a Alemanha, só
passaram a ser habitados graças aos monges. O Flandres, essa região histórica
importantíssima para a civilização, cujo nome significa “terras inundadas”, só pôde ser
alcançadas pelas civilização porque foram os monges de São Columbano que lá se
instalaram e drenaram as águas invasoras.
➢ Assim como são incontáveis as cidades da Europa Ocidental que surgiram em torno das
paróquias rurais, são igualmente inumeráveis as que nasceram ao redor de um mosteiro.
Algumas dezenas de milhares de cidades na Inglaterra, na Alemanha, na Itália, na França,
nasceram em torno de um mosteiro.
➢ Arremata Daniel-Rops (p. 286), “lançando fortes raízes por toda a parte, os monges
remataram a obra dos missionários e foi graças a eles que o cristianismo ganhou solidez e
pôde manter-se ao longo dos séculos”.

A contribuição intelectual dos mosteiros

➢ Os mosteiros dos tempos bárbaros destacaram-se, sobretudo, por seu papel intelectual e por
terem preservado a cultura.
➢ Isso se deu, primeiramente, pelo trabalho dos chamados “copistas”, os “amanuenses”,
expressão que vem de “ad manu”, “à mão”. O trabalho de copiar manuscritos para legá-los à
posteridade começou provavelmente na Irlanda e na Inglaterra, onde se multiplicaram as
escolas de calígrafos, e depois no continente. Mas se o trabalho dos monges enquanto
copistas foi importante, sua contribuição civilizacional o ultrapassou. Com efeito, escreveu
Chateaubriand que “os conventos se converteram numa espécie de fortaleza em que a
civilização se abrigava debaixo da bandeira de um santo, ali se conservou o cultivo da alta
inteligência”.
➢ Cassiodoro, por exemplo, estimulava seus discípulos a dedicarem-se à vida do espírito e
orgulhava-se de sua rica biblioteca. São Cesário de Arles estabelecia para suas religiosas

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duas horas e meia de leitura por dia, e até mesmo São Columbano não queria que seus
monges fossem ignorantes. Calcula-se que um beneditino dispunha para sua formação
intelectual 1.265 horas por ano, o que o permitia devorar uns 8.000 livros em uma vida
monástica de cinquenta anos.
➢ Não dando São Bento em sua Regra foco na vida intelectual, por que sua ordem se tornou
tão indiscutivelmente intelectual? Graças, sobretudo, ao seu discípulo São Mauro, por cuja
influência os beneditinos passaram a se dedicar cada vez mais ao cultivo do espírito.
➢ O único ensino razoavelmente sério que existia era o ministrado nos mosteiros. Como diz
Dawson (A formação da Cristandade, p. 274-275): “Ao longo do tempo, os mosteiros
produziram todos os frutos da alta cultura – arte, música e erudição – e transmitiu-os, via
atividade educacional, para a sociedade ao redor. De fato, do século VII ao X, os
monastérios foram a única força educacional eficaz que sobreviveu no mundo ocidental”.
➢ Naturalmente, o declínio civilizacional pós-invasões também atingiu os mosteiros, de modo
que não se deve imaginar que esses mosteiros dos tempos bárbaros eram intelectualmente o
que seriam os grandes centros de cultura na Cristandade. Em todo caso, não é pouca coisa
que, mesmo nas piores épocas, essas casas católicas eram virtualmente o único lugar em que
se manteve o gosto pela sabedoria e em que se buscou meios de salvá-la.

Os últimos Padres Latinos, educadores da Idade Média

➢ O Ocidente, entre os séculos III e V dera à luz Santos Padres como São Cipriano, Tertuliano,
São Jerônimo, Santo Ambrósio, Santo Agostinho e São Leão Magno. E se o nível dos
grandes pensadores caiu quando do início da Idade Média, do mesmo modo como a Igreja
esforçou-se para ordenar moralmente as sociedades bárbaras do Ocidente,3 fê-lo igualmente
no âmbito intelectual, logrando manter acesos alguns faróis de luz enquanto a cultura geral
decaía.
➢ O movimento aqui estudado trata-se, com efeito, do terceiro e último período da Patrística,
inferior ao anterior tanto em grandes nomes quanto em grandes obras, mas que possibilitou
que a chama da civilização, da cultura, da sabedoria cristã não se apagasse.
➢ Do século VI ao século XIII, um período de oitocentos anos, nenhuma atividade literária
relevante será produzida na Europa que não dentro dos quatros da Igreja. E, nos tempos

3
Ver aulas 68, 70 e 71.

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bárbaros, não se poderá citar um só nome de um grande intelectual que não seja ou bispo, ou
padre, ou monge, à exceção, é claro, do primeiro, que era leigo: Boécio.
➢ Estes homens serão os educadores da Idade Média.

a) Boécio (ca. 475 – 524 ou 526)

➢ Anício Mânlio Torcato Severio Boécio, do qual já falamos,4 nasceu em Roma, de uma
família antiga e tradicional, na década de 470. Dotado de muitas qualidades intelectuais,
começou seus estudos na Itália e continuou-os em Atenas, onde adquiriu vasta formação
literária, filosófica e científica.
➢ Quando retornou à Roma, caiu nas boas graças do rei ostrogodo Teodorico, o Grande, sendo
por ele nomeado cônsul em 510, seguido de seus dois filhos, nomeados cônsules em 522.
Porém, a colaboração com Teodorico só foi possível enquanto este fosse tolerante com os
católicos – afinal, Teodorico era um rei ariano e Boécio, católico
fervoroso. Quando Teodorico mudou de postura para com os
católicos da Itália, acreditando que eles conspiravam com os
bizantinos contra seu próprio reino, e julgando que Boécio
fizesse parte da conspiração, mandou prendê-lo.
➢ Foi condenado à morte entre 524 e 526 quando não tinha mais
do que 46 anos. Morreu em Pavia, cuja diocese recebeu
autorização para cultuá-lo como santo pelo Papa Leão XIII em
1883. Está sepultado na belíssima basílica de San Pietro in Ciel
d’Oro, uma das mais belas igrejas de Pavia, ao lado do túmulo
de Santo Agostinho.
➢ O que nos importa aqui não é tanto a vida, mas a obra de Boécio
(se é que é possível separá-las). Procurando não apenas atingir
Boécio
largos conhecimentos filosóficos, Boécio buscou restaurar o
ensino da filosofia no Ocidente. Por isso traduziu, comentou e colocou ao alcance dos
ocidentais os grandes filósofos do Oriente, como Aristóteles, Platão e Porfírio. Suas obras
filosóficas são mais ou menos vinte, incluindo obras originais dele e traduções para o latim
de obras gregas nunca lidas no Ocidente. Um dos seus grandes objetivos era reabilitar em
definitivo a filosofia, mostrando que os grandes filósofos como Platão e Aristóteles não se

4
Ver aula 61.

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opunham entre si no essencial. Desejou fazer uma grande síntese entre eles, mas a prisão e a
morte impediram.
➢ No entanto, o trabalho que começou aproveitou muitíssimo os que viriam, sobretudo entre
os escolásticos, que viriam em Boécio seu precursor. Afinal, como diz Hermas em “O
Pastor”, a Igreja é como uma grande torre na qual cada um coloca sua pedra, e como diz
Sertillanges: “A humanidade cristã é composta de personalidades diversas, dentre as quais
nenhuma abdica sem empobrecer o grupo e sem privar o Cristo eterno de uma parte de seu
reinado. O Cristo reina pelo seu desdobramento. Toda vida de um de seus membros é um
instante qualificado de sua duração; to do caso humano e cristão é incomunicável, único e
por conseguinte necessário da extensão do ‘corpo espiritual’. Se alguém for designado
como porta-luz, que não vá encobrir com seu
anteparo o brilho diminuto ou resplandecente
que se espera dele na casa do Pai de família.”
(A Vida Intelectual, p. 22).
➢ Boécio escreveu obras teológicas cuja
autenticidade é certa, e um opúsculo chamado
“De Fide Catholica”, de autenticidade
contestada. Em suas obras filosóficas e
teológicas ele precisou com clareza as noções
filosóficas de substância, natureza, suposto,
pessoa, eternidade, felicidade, noções que
seriam fundamentais para o desenvolvimento da
teologia e da filosofia católicas. Sempre que
pôde, procurou explicar o dogma a partir das
noções e dos princípios de uma metafísica
adequada. Se isso não o torna um escolástico,
Boécio na prisão
diz o Padre Insuelas, o torna ao menos um
precursor da teologia escolástica (p. 614).
➢ Mas sua obra fundamental é o “De Consolatione Philosophiae”, “Da Consolação da
Filosofia”, que escreveu na prisão, logo antes da morte, e na qual demonstrava – sem abjurar
de sua fé cristã – encontrar na filosofia um remédio eficaz para seus sofrimentos amargos.
Trata-se de um diálogo entre o próprio Boécio e a Filosofia, dividido em cinco livros:

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o 1º Livro – Boécio, saturado dos sofrimentos, sente-se tentado a duvidar da


Providência Divina. Aparece-lhe então a filosofia, que o indaga do porquê ele
estar tão acabrunhado. Ele responde narrando seus infortúnios.
o 2º Livro – A filosofia mostra que a fortuna varia, e que a verdadeira e
invariável felicidade é a interior, a que reside na alma e que não depende das
coisas deste mundo.
o 3º Livro – Mostra que Deus é o objeto de toda felicidade e que nenhuma
criatura é capaz de tornar os homens felizes.
o 4º Livro – A Filosofia responde às queixas de Boécio, mostrando que os
triunfos dos maus nesta vida são efêmeros, e que na vida futura Deus
restabelecerá a ordem, retribuindo os méritos de cada um.
o 5º Livro – Boécio harmoniza a Providência divina com a liberdade humana.
➢ Boécio, este grande teólogo, poeta, filosofo e orador foi um dos mais elevados espíritos
daquele tempo nebuloso, e sua obra o tornou um dos grandes mestres de toda a Idade Média.

b) Cassiodoro (490-581)

➢ Apesar de ser também um homem de Estado, e ministro do rei


Teodorico na Itália, Cassiodoro conseguiu sobreviver incólume à
perseguição aos católicos por ele promovida.
➢ Quando tinha cerca de 60 anos, na década de 540, retirou-se da
vida pública para suas terras em Viviers, na Calábria, e lá abraçou
a vida religiosa num mosteiro por ele mesmo fundado.
➢ Uma vez monge, dedicou-se à piedade e ao estudo das ciências
sagradas e profanas, repartindo criteriosamente o tempo entre a
oração e o trabalho intelectual. Ele quis organizar a vida no
Cassiodoro
mosteiro que fundou segundo as tradições monásticas egípcias,
mas acrescentando a elas profunda vida de estudos. Conforme o modelo que fundou, os
monges dariam glória a Deus pela oração e iluminariam a Igreja pelo estudo e pela cultura.
➢ Foi pela iniciativa e pelos esforços de Cassiodoro que o cultivo da vida intelectual penetrou
nos mosteiros, e graças a ele que os estudos se tornaram um elemento de inapreciável valor
na vida monástica ocidental. Sonhava com a fundação, no Ocidente, de um escola de
teologia, onde se pudesse dar e receber alta e completa formação. Mas ele sabia que os

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tempos não eram, ainda, propícios para tal. Seja como for, Cassiodoro e seus monges
fizeram a semeadura: depois dele, a cultura monástica do Ocidente se tornou profundamente
intelectual.
➢ As obras que ele deixou incluem tratados históricos bem vastos (como a história dos godos
e a história eclesiástica tripartida), obras filosóficas (como o “Da alma”), obras
educacionais e pedagógicas (como as suas “Instituições do estudos divinos e humanos”,
que trata tanto dos estudos das Escrituras quanto das sete artes liberais) e obras
doutrinárias (como os seus comentários ao Novo Testamento).
➢ Morreu por volta de 570, com mais de 90 anos, e a seu respeito diz Insuelas (p. 622) que “O
estudo da sua vida e das suas obras mostra que ele foi um homem providencial, que veio na
ocasião oportuna para, com o pavio da luz antiga, acender a candeia da civilização nova.”

c) São Gregório de Tours (538-594)

➢ Foi um daqueles grandes bispos da França merovíngia,5


inteiramente devotado a Deus e aos interesses de seu povo. Sob
este santo, a cidade de Tours, já muito famosa pelo túmulo de
São Martinho, tornou-se o centro religioso da França.
➢ Era muito amado por seu povo, e os reis tinham por ele grande
respeito. A estima que todos lhe dedicavam espalhou-se por todo
o reino franco.
➢ Os seus muitos cuidados no governava de sua diocese não
tiraram de São Gregório grande amor pelos livros e pela escrita.
Encontrou, com efeito, tempo para compor ao menos oito obras,
dentre as quais as mais importantes são duas.
➢ A primeira é sua “Coleção Hagiográfica”, que consiste em oito
São Gregório de Tours
escritos diversos: um sobre a “glória dos mártires”; outro sobre os
milagres de São Julião de Brionde; quatro sobre os milagres de São Martinho de Tours; um
sobre as vidas dos Santos Padres da Igreja com vinte biografias de santos, bispos ou monges
da Gália; e um livro sobre os santos confessores.
➢ A segunda, e sua mais importante obra, é a “História dos Francos”, dividida em 10 livros –
Livro I (de Adão até São Martinho), Livro II (Clóvis), Livro III (até 548), Livro IV (até

5
Ver aula 71.

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575), Livros V e VI (575-584), Livros VII a X (584 a 591). Essa obra, apesar dos defeitos
linguísticos que a posteridade sempre enfatizou, é uma fonte preciosa e única da história dos
acontecimentos do século VI. Pouco conheceríamos da história merovíngia e da história da
Igreja do Ocidente nos tempos bárbaros sem os registros deste santo.

d) São Gregório Magno (ca. 540-604)

➢ A aula 69 foi inteiramente dedicada à vida e ao pontificado de São Gregório Magno, o maior
papa dos tempos bárbar os e um dos maiores de toda a
história. Em meio a tantas tarefas e apesar de sua saúde
debilitada, São Gregório Magno encontrou tempo de
dedicar-se à escrita. Sua obra literária foi vasta e pode ser
agrupada em quatro grupos:
o Comentários e Homilias sobre a
Escritura: Seu comentário mais conhecido
é o que escreveu ao livro de Jó, conhecido
como “Moralia” por ser uma síntese
completa da moral cristã. Escreveu esta
obra antes de ser papa, concluindo-a em
590, ano de sua eleição. Neste autêntico
manual de teologia moral e ascética que são
Papa São Gregório Magno
as “Moralia”, oferece uma explicação
histórica, alegórica e moral do Livro de Jó. Em razão deste livro, se diz que
São Gregório Magno foi para a moral o que Santo Agostinho foi para o dogma.
Sobreviveram dele ainda 22 homilias sobre Ezequiel, e 44 homilias sobre o
Evangelho.
o Obras ascético-pastorais: Simultaneamente monge e pastor de almas, São
Gregório Magno soube unir perfeitamente ambas as vocações. Essa união se
expressa sobremodo na “Regra Pastoral”, dirigida ao bispo João de Ravena.
Este prelado censurara o papa pela resistência que opusera à aceitação do
papado e, para responder, defender-se e ensinar a João, compôs a Regra
Pastoral, obra voltada sobretudo aos sacerdotes, na qual mostra as grandezas
da dignidade sacerdotal, a importância dos deveres do sacerdote e dá conselhos

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sobre a forma de se dirigir as várias categorias de fiéis. Durante toda a Idade


Média essa obra foi para o clero secular o que a Regra Beneditina foi para os
monges. Para os fiéis ele escreveu Os Diálogos, divididos em quatro livros: os
três primeiros contam a vida de grandes santos, dentre eles São Bento,
enquanto o quarto livro trata-se de uma demonstração da imortalidade da alma,
da existência do Purgatório e da possibilidade de sufragar pelas almas.
o Epistolário: São Gregório Magno também é famoso por seu epistolário.
Sobraram 848 de milhares de cartas que ele escreveu.
o Obras Litúrgicas: São Gregório Magno ainda escreveu obras litúrgicas: um
Sacramentário e um Antifonário, na qual estão presentes os elementos
essenciais do Rito Romano tradicional e do canto que recebeu seu nome.
➢ São Gregório Magno é um dos Quatro Grandes Doutores da Igreja

e) Santo Isidoro de Sevilha (560-636)

➢ Santo Isidoro, arcebispo de Sevilha é uma das mais notáveis figuras dos tempos bárbaros.
Além de exercer juntos aos reis e bispos visigodos
uma influência excepcional, foi o homem mais
brilhante da Espanha visigótica, deixan do uma
quantidade impressionante de obras sobre os mais
variados assuntos.
➢ Escreveu obras enciclopédicas, como: (a) as
Etimologias, principal de seus livros, no qual
trabalhou até a morte e que não conseguiu completar.
Trata-se de uma enciclopédia na qual estão resumidos
todos os conhecimentos da humanidade em todos os
domínios possíveis – gramática, retórica, dialética,
medicina, direito, história, ofícios eclesiásticos, Deus,
os anjos, a Igreja, as heresias, as línguas, os orações, o
Santo Isidoro de Sevilha
homem, os animais, o mundo, a terra, os metais, a
guerra, as construções, o vestuário, a culinária, os diversos utensílios. As Etimologias estão
divididas em 20 livros e prestaram à Idade Média valiosíssimos serviços. Alguns consideram
esse livro como que o testamento científico da Idade Antiga à Idade Média; (b) Dois livros

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da propriedade das palavras; (c) Dois livros de Sinônimos; (d) Da natureza das coisas; (e)
O Tratado da ordem das criaturas.
➢ Escreveu obras históricas como (a) A Crônica, que conta a história do mundo desde a
criação até o ano de 616; (b) A história dos reis godos, vândalos e suevos; (c) O Dos
Homens Célebres.
➢ Santo Isidoro escreveu ainda comentários à Sagrada Escritura; obras teológicas e morais,
como o “De Fide Catholica, contra os judeus”; livros de liturgia e de ascética.
➢ Essa profusão de obras fizeram com que seus contemporâneos o chamassem de “A
Maravilha do Século”, e menos de vinte anos depois de sua morte o VIII concílio de Toledo
o proclamou “o grande doutor da nossa época, o maior sábio destes últimos séculos”. Mais
tarde, quando comparado a Santo Tomás de Aquino em razão das grandes sínteses que fez,
Santo Isidoro foi chamado “Santo Tomás da Espanha”.
➢ Não foi, é verdade, um pensador profundo ou um teólogo consumado, diz Insuelas. No
entanto, procurou salvar da ruína a sabedoria dos séculos, fazendo, sem o saber, a transição
do conhecimento antigo para o da Idade Média, transmitindo para o mundo bárbaro as
riquezas da cultura e da civilização latino-cristã.
➢ Como diz Cayré, “Santo Isidoro foi o homem providencial, que convinha à sua época e aos
séculos seguintes”. Acrescenta Insuelas que, de fato, a época de Santo Isidoro não carecia de
grandes especulações – ela carecia de homens cultos, dotados de senso prático e capazes de
fazer o que Isidoro fez, a saber, fundir os elementos latino, cristão e bárbaro para fundar,
assim, uma só cultura: a da civilização cristã do Ocidente Medieval.
➢ Não sem razão, se diz que, com Cassiodoro, Boécio e São Gregório Magno, Santo Isidoro
foi o grande educador da Idade Média.
➢ Foi proclamado Doutor da Igreja em 1722 pelo Papa Inocêncio XIII.

f) São Beda, o Venerável (ca. 673-735)

➢ Na aula 65, na qual tratamos da conversão da Inglaterra, dissemos que um dos grande
milagres daquela nação foi ter, assim que se viu convertida, se tornado viveiro de
missionários, dos quais o maior foi São Bonifácio. No entanto, a igreja na Inglaterra nos
séculos VII e VIII não se destacou apenas como missionária, mas também como luzeiro da
civilização.

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➢ Com a evangelização penetraram na Inglaterra o latim, o direito romano, as escolas


episcopais e monásticas, ou seja, penetrou a semente da civilização. E a semente produziu
frutos, pois os mosteiros anglo-saxões se converteram em reservatórios a partir dos quais os
valores culturais cristãos se espalharam sobre todo o continente, sobretudo nos dias de
Carlos Magno.6
➢ O rei inglês Alfredo, o Grande,7 escrevendo no século IX a respeito dos séculos VII e VIII
dizia que, naquele tempo, “as igrejas inglesas abundavam em tesouros e livros” (Bloch, A
Sociedade Feudal, p. 66).
➢ E não apenas em tesouros em livros, mas também em grandes
mentes como São Beda que, em razão de sua imensa
autoridade científica e religiosa mereceu o título de “o
Venerável”.
➢ Nascido em cerca de 673, Beda foi educado no monastério de
Jarrow, e se apaixonou pelas ciências, sem que sua devoção
pelos estudos esfriasse seu amor pela oração e o ardor com
que vivia sua vocação religiosa. Ele mesmo escreveu que:
“Coloquei todo meu afã na meditação das Sagradas
São Beda, o Venerável
Escrituras, na observância da disciplina religiosa e no ofício
cotidiano de cantar no coro, e sempre me foi doce o aprender, o ensinar e escrever”.
➢ Ele leu, como Santo Isidoro, todos os autores da Antiguidade Clássica e Cristã, e com
amorosa constância foi destilando os seus conhecimentos enciclopédicos em múltiplos
escritos de gramática, retórica, poesia, música, matemática, física, astronomia, história,
hagiografia, teologia e exegese. Sua obra mais famosa é a “História eclesiástica do povo
inglês”, na qual mostra-se um historiador sagaz, exato e elevado, e graças ao qual obteve o
título de “pai da história da Inglaterra”.
➢ Seus comentários aos Livros Sagrados, todos embasados nas obras da época áurea da
Patrística, iluminarão toda a teologia medieval. Sua obra foi tão impactante que, assim como
os demais, foi um dos educadores de toda a Idade Média.
➢ Beda foi reconhecido como mestre ainda em vida, mas gostava de ser recordado como
simples monge. Morreu na sua pobre cela monástica, entoando serenamente: “Glória ao Pai,
ao Filho e ao Espírito Santo”.

6
Ver aula 87.
7
Sobre Santo Alfredo ver aula 93.

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Os mestres dos tempos bárbaros, educadores da Cristandade

➢ Com estes seis personagens podemos constatar como “a idade das trevas” foi repleta de
focos de luz. Ao lado deles poderíamos mencionar tantos, outros como São Cesário de
Arles, São Paulino de Nola, São Sidônio Apolinário, São Venâncio Fortunato, Santo Enódio
de Pavia, Santo Elói, Santo Ouen, Virgílio o Gramático e, Carripio, o Africano.
➢ O que estes mestres representaram — sobretudo Boécio, Cassiodoro, Gregório Magno,
Gregório de Tours, Isidoro e Beda — foi tanto a salvaguarda da civilização quanto a base
sobre a qual se estruturaria toda a cultura cristã. Todos, em menor ou maior grau
influenciados por Santo Agostinho, continuaram a obra do gênio de Hipona e foram, com
eles, os mestres da Idade Média.
➢ O que eles fizeram foi salvar um tesouro (da Igreja e da Civilização Clássica), com o
objetivo de servir à causa de Cristo e da Igreja. Salvando, com este objetivo, o legado dos
filósofos e dos Santos Padres do passado, alicerçaram as bases culturais dos futuros
renascimentos católicos, como o Renascimento Carolíngio entre os séculos VIII e IX e o
grande Renascimento do século XII.
➢ Isso mostra, como enfatiza Christopher Dawson que, apesar da tragicidade de tantos
aspectos dos tempos bárbaros, nós como cristãos devemos estimar com verdadeiro espírito
de piedade estes homens que lançaram os fundamentos do cristianismo no Ocidente e dos
quais nossos ancestrais receberam, pela primeira vez, a fé católica (A Formação da
Cristandade, p. 271), e acrescenta: “Agora percebemos a importância dos dinâmicos
períodos criativos da história, quando um novo começo surge de pequenas causas, já que
para um historiador o período da semeadura é mais importante e merecedor de mais
estudos que o da colheita. Desse ponto de vista, a idade, que não injustamente foi chamada
de ‘das trevas’, é a mais interessante de todas, uma vez que contém o germe de mil anos de
desenvolvimento cultural”.

Referências

➢ Altaner: p. 463-469.
➢ Cayré, Patrologie, t. II.
➢ Daniel-Rops, T. II: p. 282-286, 310-312.
➢ Dawson, A Formação da Cristandade: p. 370-274.
➢ Dawson, Criação do Ocidente: p. 79-96.
➢ Insuelas: p. 585,-588, 612-628, 639-647.
➢ Villoslada e Llorca, Tomo I: p. 626 e 639-643; Tomo II, p. 309-310.

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