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A espiritualidade medieval

Na Idade Média, os mosteiros foram centros de referência espiritual e intelectual.


Os monges levavam uma vida de oração e se dedicavam à cópia e à ilustração de livros religiosos
ou de obras escritas na Antiguidade.

A “vanguarda espiritual da cristandade”: os monges


Desde a época em que as cidades entraram em declínio na Europa ocidental, os
mosteiros dirigidos pelos abades tornaram-se centros de referência espiritual, assistencial e
intelectual. Conservaram as obras de Filosofia, Literatura, Medicina e Agronomia, herdadas da
cultura greco-latina. Eram também um misto de hospedaria e centro de atendimento à população
pobre. Davam pousada aos visitantes e peregrinos e ofereciam pão e vinho aos famintos.

Guardiões das relíquias sagradas e afastados das tentações do mundo terreno, os


monges guiavam suas vidas segundo dois princípios sugeridos por São Bento, fundador da
ordem dos beneditinos, no século VI: a oração e o trabalho.

Com o passar do tempo, a interferência da nobreza na escolha dos abades levou ao


desvirtuamento desse ideal monástico. Em reação, no ano de 910 foi fundada a abadia de Cluny,
na Borgonha. Os beneditinos desse mosteiro (cluniacenses) resgataram a fidelidade aos
princípios da Ordem e levaram o exercício da oração ao extremo: os monges se reuniam sete
vezes por dia para uma oração proferida em coro. A cada dia recitavam cerca de 215 salmos!

O prestígio dos mosteiros atraiu muitas doações dos fiéis, que temiam sofrer as penas
do inferno por seus pecados. O temor dos devotos, fossem ricos ou remediados, enriqueceu as
ordens religiosas. Por volta do ano 1000, quando se completava o milésimo ano do nascimento
de Jesus, propagou-se a crença de que o fim do mundo estava próximo e, em decorrência, o
Juízo Final. Nesse ambiente de angústia generalizada, ocorreram muitas doações de terras e
bens para os mosteiros. O medo do fim do mundo voltou a afligir a população em 1033, quando
se contava mil anos da Paixão de Cristo, resultando em novas doações.

A prática de doar bens materiais às ordens religiosas para compensar os pecados


cometidos fez crescer o patrimônio fundiário dos monges, que eram considerados, por muitos,
mais leais aos princípios de Cristo do que párocos, bispos e arcebispos.

A estratégia de conceder terras à Igreja para conseguir o perdão dos pecados e aplacar
a ira de Deus revelava uma expressão religiosa ainda muito rude. Mas, em função do
empobrecimento dos nobres, que não mais transmitiam aos herdeiros suas terras e bens, a
transferência de riquezas da nobreza para a Igreja foi declinando com o tempo. Paralelamente,
entre os leigos, camponeses e nobres, foram surgindo outras formas de expressar a
espiritualidade, como o retiro para uma vida isolada, casta e simples, e a peregrinação aos
lugares considerados santos, como Santiago de Compostela, na península Ibérica.

Difundiu-se também a autoflagelação, que implicava em castigar o próprio corpo ou


realizar provas físicas exaustivas. Acreditava-se que esse flagelo garantiria a purificação da
alma, conforme tradição cristã surgida desde os primórdios da Igreja.

Em busca do cristianismo primitivo


A influência religiosa dos monges se estendeu por toda a Igreja. Em meados do século
XI, o papa Leão IX iniciou uma grande reforma religiosa, consolidada anos depois por Gregório
VII, pertencente a ordem de Cluny. A Reforma Gregoriana definiu a castidade, a vida
comunitária e o serviço litúrgico como as bases da vida sacerdotal.

Gregório VII condenou o concubinato dos padres (nicolaísmo), isto é, o costume que
muitos tinham de viver com mulheres, como se fossem casados; condenou também a venda de
cargos eclesiásticos (simonia) e a nomeação de bispos e abades pelos senhores feudais, reis e
imperadores.
A valorização da Regra de São Bento e a busca pelos ideais do cristianismo primitivo,
como a humildade, a obediência ao Evangelho e a propagação da fé, marcaram profundamente
a Baixa Idade Média. A ordem de Cister, criada em 1098, por exemplo, conjugava a oração ao
trabalho intelectual e manual. Ao contrário dos religiosos de Cluny, entre os cistercienses os
dormitórios e demais aposentos eram modestos, sem nenhum conforto, como prova da
humildade que deviam observar na vida reclusa. Em sinal de pobreza, usavam um hábito de lã
sem tingimento; eram vegetarianos e faziam apenas uma refeição por dia. A ordem abriu-se
ainda para os camponeses, responsáveis por cultivar os campos e realizar as transações
comerciais do mosteiro. A admissão de camponeses na ordem de Cister contribuiu para que,
progressivamente, o trabalho manual passasse a ser visto como um aprimoramento espiritual.

O ideal de vida dos monges-camponeses atraiu um número significativo de devotos, e a


ordem de Cister se espalhou por várias partes da Europa. Mas, na segunda metade do século
XII, a Ordem experimentou os primeiros sinais de instabilidade. À medida que aumentavam o
patrimônio e as atividades econômicas dos mosteiros, tornou-se tarefa difícil equilibrar pobreza
individual e riqueza coletiva. A enorme distância entre o ideal e a realidade acabou por
comprometer a imagem dos cistercienses.

Ao mesmo tempo, a má fama do clero secular e a crise de algumas ordens religiosas


tradicionais instigaram diversos movimentos espirituais de contestação à Igreja. O papado tratou
esses movimentos como desvios da fé cristã, isto é, como heresias. Os séculos seguintes
seriam, assim, tempos de forte combate a esses movimentos.

Cristandade desafiada
A palavra heresia é de origem grega e significa escolha. Para a Igreja católica, herege
era todo aquele que difundia ou praticava uma crença contrária aos dogmas (princípios e
doutrinas inquestionáveis) do catolicismo, sacramentos e mandamentos da Igreja ou questionava
o poder eclesiástico, sobretudo a autoridade do papa.

O acúmulo de riquezas pela Igreja e o abandono de alguns valores pregados pelo


Evangelho estimularam a formação de grupos heréticos. Nesse conjunto, destacaram-se os
valdenses. O movimento começou com o rico comerciante Pedro Valdo, natural de Lyon, na
França. Em 1173, depois de ler a Bíblia, Valdo impôs-se voluntariamente a pobreza. Abandonou
a família, abriu mão de seus bens materiais e traduziu o Evangelho para o idioma falado na
região, o provençal. Saiu, então, pelas estradas, vestindo uma túnica simples e pregando a
penitência. Baseando-se em uma interpretação pessoal do Evangelho, Valdo afirmava que a
Igreja não seguia os ensinamentos de Cristo. Por isso, os valdenses, também chamados pobres
de Lyon, faziam voto de obediência aos superiores, entre eles o próprio Valdo, bem como aos
“bispos” que ele havia ordenado. O movimento dos valdenses se estendeu por vastas regiões
da Europa. A oposição frontal à Igreja resultou na excomunhão de Valdo e de seus seguidores
(1184).
Outro movimento herético de grande expressão foi o catarismo, que reuniu um número
significativo de adeptos e comunidades em várias partes da Europa ocidental, em particular na
península Itálica e no sul da atual França. Cátaro, em grego, significa puro. O nome revela bem
aquilo que os cátaros pensavam sobre si mesmos. Consideravam-se cristãos perfeitos, herdeiros
do cristianismo primitivo. Por isso, faziam críticas frontais à estrutura da Igreja.

O primeiro movimento de expansão do catarismo ocorreu no século XI. Atraiu justamente


cavaleiros pobres, artesãos e mercadores, desvalorizados socialmente por não terem terras ou
títulos de nobreza e por exercerem trabalho manual.

Os cátaros desprezavam o mundo material e acreditavam que o dever das pessoas era
transformar a realidade e estabelecer uma comunhão com Deus por meio de uma vida moral
irrepreensível. Praticavam jejuns periodicamente, não comiam carne e reprovavam as relações
sexuais, por acreditar que elas tornavam o espírito escravo do corpo.
Segundo os cátaros, Jesus era um anjo que veio ao mundo para indicar o caminho da
salvação. Como não reconheciam a legitimidade da Igreja, foram perseguidos pelas autoridades
laicas e religiosas. Diversas comunidades foram destruídas, principalmente no Languedoc, no
sul da atual França. Nessa região, parte da nobreza e dos artesãos aderiu ao movimento cátaro,
e foi preciso convocar uma cruzada, que durou 20 anos (1209-1229), para combater esse
movimento.
Em 1235, para reprimir o catarismo, foi criado o tribunal da Inquisição, que não deu
trégua aos cátaros.

Em cada pobre, um cristo: as ordens mendicantes


A ordem franciscana, chamada ordem dos frades menores, foi criada em 1210, por
Francisco de Assis, filho de um rico comerciante de tecidos da cidade de Assis, na península
Itálica.

Francisco abraçou a pobreza evangélica com um gesto teatral, diante dos habitantes de
sua cidade: despiu suas roupas e declarou que abandonaria a casa de seu pai e passaria a viver
de esmolas. Ele pretendia seguir fielmente a vida de Cristo e dos apóstolos.

Sua prática, baseada na interpretação literal do Evangelho, mudou a visão social do


pobre e do trabalho manual e atraiu inúmeros seguidores. Sensíveis à miséria, os franciscanos
consideravam cada pobre um cristo, prestando assistência à população marginalizada,
sobretudo nas cidades.

A regra escrita por Francisco era mais rigorosa do que a de São Bento: proibia a
propriedade de qualquer bem material; previa que os franciscanos se dedicariam ao trabalho
manual, podendo mendigar para obter alimento; proibia qualquer reação às hostilidades da
população; e restringia o uso do cavalo a casos de extrema necessidade. Seus frades deveriam
andar a pé, tal como os apóstolos.

A ordem franciscana exemplifica uma importante mudança na atuação dos religiosos


medievais que viviam segundo uma regra monástica ao se propor purificar o cristianismo e
evangelizar os povos. Os franciscanos criaram um novo modelo de ordem religiosa: as ordens
mendicantes, assim chamadas por viverem de esmolas e doações por serviços prestados no
plano espiritual, sobretudo as pregações.

Os conventos franciscanos não eram refúgios de monges que buscavam um isolamento


do mundo para se dedicar exclusivamente à oração e aos serviços litúrgicos. Eram, antes, casas
de religiosos militantes, dedicados a salvar a alma das pessoas e cuidar dos humildes.

No início, Francisco de Assis não contava com o apoio da Igreja, sobretudo por causa
do elogio que fazia à pobreza. Mas a firmeza de seus propósitos, o número de seguidores que
conquistou e sua obediência à hierarquia eclesiástica acabaram por vencer a resistência da
Igreja. Francisco foi canonizado em 1228, dois anos após a sua morte.
A devoção à pobreza expandiu-se para a península Ibérica, onde nasceu a ordem
dominicana, cujo fundador foi Domingos de Gusmão. Filho de nobres castelhanos, Domingos
iniciou a carreira eclesiástica como pregador. Participou de missões para reconciliar os cátaros
com a Igreja, mas irritou-se com o envio da cruzada contra o catarismo, pois pretendia combater
a heresia com argumentos teológicos.
Fundou então, na cidade de Toulouse (na atual França), em 1216, a ordem dos
pregadores, reconhecida pelo papa Honório III, baseada na pobreza mendicante, na pregação
e na educação. Assim como os franciscanos, os dominicanos recusavam a propriedade de bens
materiais e pediam esmolas para obter alimento, mas, ao contrário daqueles, recebiam rigorosa
educação teológica, com o objetivo de esclarecer os fiéis e evitar que a população cometesse
heresias.
A ordem dominicana concentrou-se principalmente em cidades com universidades, como
Paris, Bolonha e Oxford. Nos séculos seguintes, os dominicanos se destacaram como
inquisidores, sendo várias vezes nomeados pelos papas para investigar possíveis desvios da fé.
Alguns escreveram manuais para instruir os inquisidores e livros para identificar feiticeiras. Foi o
caso dos dominicanos alemães Sprenger e Kramer, autores do Martelo das bruxas, escrito no
século XV.

Propaganda da fé: a arquitetura gótica


A catedral é a igreja matriz de uma diocese, comunidade comandada por um bispo. Mas,
antes de tudo, era vista pela Igreja como a morada de Deus, abrigo das relíquias (restos mortais
dos santos), dos corpos dos reis e de seus ilustres benfeitores.

A partir do século XII, a construção das catedrais ganhou impulso com a prosperidade
das rotas comerciais e o desenvolvimento urbano. Por determinação do papa Gregório VII,
transformou-se no coração da cidade.

No século XIII, com o estilo arquitetônico gótico (termo derivado do idioma falado pelos
godos), as catedrais atingiram seu apogeu. Esse estilo se caracterizava pela grandiosidade das
construções, espaços interiores amplos, torres com telhados piramidais, arcos com a forma de
ogivas, pinturas e vitrais produzidos com refinamento artístico. Suas paredes muito altas e
maciças simbolizavam o poder do bispo.

A catedral gótica era a representação material do Paraíso Celeste, e se sobrepôs às


humildes igrejas de estilo românico, características do século XI. Mais do que isso, tornou-se
símbolo medieval da glória de Deus e da Igreja, do aprimoramento das técnicas de construção e
da ascensão das monarquias feudais.

A catedral de Notre-Dame, em Paris, construída a partir do século XII, é a representante


mais importante desse estilo. A luz que atravessa seus grandes vitrais coloridos sugere a
comunicação com o divino. Diante da imensidão do templo, acentuado pela verticalidade,
pretendia-se que o homem comum pudesse admirar a glória de Deus e sua condição transitória
e mortal. As imagens esculpidas em pedra e desenhadas nos vitrais ilustravam personagens e
cenas bíblicas, ensinando os episódios do Evangelho aos fiéis que não sabiam ler. Imponente e
visível a distância, a catedral gótica era, ao mesmo tempo, um centro religioso, artístico,
assistencial e intelectual.

Universidades: o saber a serviço da fé


No século XII, as transformações ocorridas na Europa ocidental resultaram também em
uma revolução na educação. As escolas existentes nos mosteiros passaram a conviver com as
escolas nas catedrais. Paralelamente, vários clérigos atuando individualmente, passaram a
oferecer serviços particulares em troca de remuneração. Os alunos deixaram de ser apenas os
jovens clérigos, os monges e os filhos de nobres; a eles se somaram filhos de mercadores e
todos os que pudessem pagar pelo ensino.
Nas escolas diocesanas, o estudo, assim como a leitura comentada da Bíblia, sofreu
alterações. Autores clássicos como Aristóteles passaram a ser utilizados, por exemplo, no estudo
da Gramática. Os métodos de ensino também mudaram. Pedro Abelardo, teólogo do século XII,
foi um dos primeiros a usar o método novo no estudo das escrituras. O comentário tradicional
pela lógica foi substituído pela formulação de questões ou sentenças a serem resolvidas pelo
aprendiz.

A multiplicação de escolas gerou concorrência entre os mestres e certa confusão na


administração das disciplinas, porque cada um ensinava à sua maneira o que queria. Em 1215,
para evitar essas discrepâncias, formou-se em Paris um agrupamento voluntário de mestres, que
acabou reconhecido pelo papa, com estatutos e privilégios definidos. Era o início da
universidade.
Primeiro, era uma federação de escolas; depois, elas foram reagrupadas em faculdades,
como as de Direito canônico e Teologia, cada qual responsável por organizar o conteúdo das
matérias e zelar pela qualidade do ensino.

A comunidade universitária era, inicialmente, bem diferente das corporações de ofício,


mas era responsável pela redação de seus estatutos, organização de seus cursos, aplicação de
exames e atribuição de graus aos seus formandos. O idioma era o latim e as disciplinas seguiam
um programa semelhante em diversas universidades, destacando o estudo da Teologia.

As universidades mantiveram, desde o início, um vínculo estreito com o Papado,


responsável por confirmar seus privilégios e conceder licenças. Era o papa quem protegia
mestres e alunos das autoridades locais, em troca de fidelidade e disciplina na defesa da doutrina
cristã. Franciscanos e dominicanos se notabilizaram à frente dessas instituições, como o
dominicano frei Tomáz de Aquino.

A Escolástica
Tomás de Aquino nasceu em 1225 em Rocca Secca, no sul da península Itálica.
Ingressou na ordem dominicana em 1244 contra a vontade dos pais. Formou-se depois em
Filosofia na Universidade de Nápoles. Enviado a Paris, estudou com o teólogo Alberto Magno.
Posteriormente, ensinou em diversas universidades, mas se destacou como teólogo, formulando
uma das principais obras do mundo medieval.

Frei Tomás de Aquino elaborou uma síntese entre o cristianismo e o pensamento do


filósofo grego Aristóteles (384-322 a.C). Emprenhou-se em demonstrar racionalmente a
existência de Deus e os fundamentos lógicos da fé cristã; defendia que o uso da razão era um
instrumento para aperfeiçoar a fé, e não o contrário.

Segundo Tomás de Aquino, Deus era a força que impulsionava todas as demais, desde
o princípio do mundo. Como todo efeito tinha uma causa, a primeira das causas só poderia ser
Deus, origem de todas as coisas. Em outras palavras, para Tomás de Aquino, quanto mais o
homem fizesse uso da razão ou do intelecto, mais se aproximaria de Deus.

Tomás de Aquino resumiu sua filosofia religiosa em uma obra intitulada Suma Teológica.
Mais tarde seu pensamento ficou conhecido como filosofia tomista ou Escolástica. Serviu de
base ao ensino teológico nas universidades medievais, marcado pela busca de uma conciliação
entre a fé e a razão.

Por tudo isso, tornou-se conhecido como o Anjo das Escolas ou Doutor Angélico. Faleceu
em 1274 e foi canonizado em 1323, tornando-se São Tomás de Aquino.

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