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A Ordem da Cartuxa em Portugal Victor M Tomás Henriques

Fundação da Ordem Cartuxa

Uma das Ordens religiosas mais austeras da Igreja Católica é indubitavelmente a Cartuxa; e, no
entanto, apesar dos seus mais de nove séculos de existência, ela é praticamente desconhecida
da generalidade das pessoas, e mesmo de muitos dos próprios católicos.
O seu fundador, S. Bruno, de Colónia, na Alemanha, nascido em 1042, foi cónego, professor e
reitor da Escola da Catedral de Reims, em França. Chocado com a vida mundana do alto clero
seu contemporâneo, em Junho de 1084, com mais seis companheiros retirou-se para a solidão
de Saisse-Fontaine, na diocese de Langres e, posteriormente para um sítio selvagem entre altos
penhascos, numa região temerosa – a Chartreuse, ou Cartuxa, a duas léguas a norte de
Grenoble – atraídos pela santidade do bispo da diocese, S. Hugo de Chateauneuf, que lhes
concedeu o ermo.

Foi nesta solidão, propícia para o maior recolhimento, que S. Bruno e seus companheiros
construíram pequenas celas, separadas umas das outras a pouca distância, e reforçaram a regra
de S. Bento com o silêncio quase contínuo, hábito grosseiro e incómodo, abstinência perpétua
de carne e outras grandes austeridades. Toda a alimentação dos monges cartuxos consta de
legumes, pão e água. Repartiam o tempo entre a oração, a meditação, os trabalhos no campo e
a transcrição de livros de estudo. Reuniam-se só ao sábado, para se confessarem e tratarem
dos problemas gerais da comunidade. A Cartuxa, portanto, era um misto de vida
contemplativa e de vida ativa, talqualmente viviam nos primeiros séculos da Igreja, os eremitas
de Tebaida, no Egipto, e na Palestina.

Na primavera de 1090 o Papa Urbano II – que tinha sido um antigo aluno de S. Bruno em Reims
- chamou Bruno à Cúria Romana para seu conselheiro e pretendeu fazê-lo Arcebispo da diocese
de Reggio, no sul da Itália, mas ele, declinando a oferta, preferiu fundar uma nova Cartuxa em
Torre, na Calábria, e aí veio a falecer em 06 de Outubro de 1101 em odor de santidade. O prior
Pedro Guigo, quinto Superior-Geral da Ordem, falecido em 1137, escreveu as regras da Ordem,
deixando aos monges um excelente legado, a "Escola dos Monges", onde lhes recomenda os
quatro degraus da vida ascética: leitura, meditação, oração e
contemplação. A pedido do prior Gui, a Ordem foi aprovada em 1176, pelo Papa Alexandre III –
o mesmo Pontífice que, três anos depois havia de reconhecer Afonso Henriques como Rei de
Portugal e tomaria sob a sua defesa e especial proteção o então jovem reino peninsular.
Ao tempo da sua maior expansão, e quando a frivolidade mundana considerava a vida
contemplativa como uma insanidade, a Ordem chegou a contar com 198 mosteiros. Cem anos
após a sua fundação a Ordem Cartuxa contava já com 56 mosteiros.

A entrada dos Cartuxos em Portugal

D. Teotónio de Bragança – sobrinho de D. João III - terceiro Arcebispo de Évora desde 1578
escreveu ao Papa Gregório XIII a 1 de Janeiro de 1583 a seguinte carta: "Beatíssimo Padre:
Com particular estima venerei e prezei sempre todas as ordens religiosas, porém, minha
inclinação e afeto foi, em especial, pela santíssima Ordem da Cartuxa, não só pelo conhecimento
que tenho do seu contínuo exercício em todas as virtudes, senão pela experiência do cuidado
da sua primitiva regra e modo de viver angélico. Com ocasião de ter passado muitas horas nos
seus mosteiros, pude alcançar conhecimento dos insignes varões que possui, que são muitos, e
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de rara piedade e santidade. Havendo eu habitado por algum ano na famosa cidade de Paris,
contraí estreitíssima amizade e familiaridade com estes religiosos. Por que possa introduzir neste
reino de Portugal esta sagrada Ordem, fabricando-lhe, a expensas minhas, algum mosteiro, o
que será de grande consolação para mim, e para este Reino um grande benefício".

Decerto com autorização papal, o Capítulo Geral da Ordem Cartusiana, celebrado em 1587,
enviou o prior da Cartuxa espanhola de "Scala Dei" em Tarragona, D. Luis Telm, amigo de D.
Teotónio, para fundar a primeira Cartuxa portuguesa, com os padres D. Jerónimo Ardio e D.
Francisco Ardio Monroig, e os irmãos conversos Juan Velis, Silvestre, Palau, e o donato Juan
Juncosa – precisamente também sete, o mesmo número aquando da fundação da primeira
Cartuxa por S. Bruno.

O "deserto" Cartuxo no Paço Real de S. Francisco

A exemplo da primeira fundação cartusiana nas montanhas de Chartreuse, em Grenoble, D.


Teotónio julgou ser a Serra de Portel o ermo ideal para a primeira Cartuxa portuguesa, iniciando
ali as fundações. Porventura porque desejava conviver amiúde com os monges, como depois se
viu, desistiu daquele local situado a 32 quilómetros de Évora, optando pela herdade do Azinhal,
a cerca de cinco quilómetros desta cidade, perto do convento paulista de Santa Margarida. Mas
também este não lhe agradou, pelo que optou pela atual localização entre o antiquíssimo
mosteiro de monjas cistercienses de S. Bento de Castris e a recente fundação do
convento capucho de Santo António da Piedade à junto ao Aqueduto de Água da Prata.
Dado o empenho de D. Teotónio em receber os cartuxos em Évora, o piedoso Arcebispo
conseguiu do Rei Filipe I (II de Espanha) autorização para a hospedagem deles no Paço Real
de S. Francisco, onde adaptou parte dos aposentos e celas, para viverem o mais perfeitamente
possível a vida eremítica e monástica até à sua transferência para a nova Cartuxa.
Foi portanto, provisoriamente no paço real eborense, que no dia de Natividade de Nossa
Senhora, 8 de Setembro de 1587, os primeiros sete monges cartuxos espanhóis iniciaram a vida
monástica no nosso país, em Évora. Nesse mesmo dia, entrava para a Cartuxa o primeiro monge
cartuxo português, um pároco da cidade, que recebeu o nome de Frei Pedro Bruno. Em Fevereiro
do ano seguinte, já eram 17 os monges, com os que haviam entretanto vindo do mosteiro de
Tarragona.

Em Junho de 1588, o Capítulo Geral da Ordem nomeava prior da nova comunidade cartusiana
em Portugal um condiscípulo de D. Teotónio de Bragança na Universidade de Paris, D. Jerónimo
Marchant; e confirmava a ereção da Cartuxa de Évora dedicada a Santa Maria Scala Coeli
(Escada do Céu), em memória da Cartuxa Scala Dei (Escada de Deus) de Tarragona, que dera
os primeiros monges à primeira Cartuxa portuguesa. A devoção de Nossa Senhora ocupa um
lugar privilegiado na espiritualidade cartusiana, pois os mosteiros são-lhe geralmente dedicados.
Tendo adoecido, D. Luís Telm, em 1594 pediu a exoneração do cargo, e D. Teotónio mandou-o
aos médicos de Lisboa. Foi a ocasião providencial para ele fundar a segunda Cartuxa de
Portugal, Santa Maria Vallis Misericordiae, em Laveiras, perto de
Lisboa, de que se falará mais à frente.

A Ordem nomeou então o segundo prior da Cartuxa eborense D. Juan Bellot, que antes viera
fazer a visita canónica; mas só exerceu um ano no cargo, na medida em que a Cartuxa espanhola
donde proviera elegeu-o seu prior. Ainda assistiu à benção da primeira pedra do novo mosteiro
por D. Teotónio em 25 de Abril de 1593. O Arcebispo de Évora pediu logo ao Superior-Geral da
Ordem um prior bastante letrado, mas ficou surpreendido com a nomeação do terceiro prior, tão
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simples e cândido como os seus antecessores espanhóis. No entanto, mais tarde viria a fazer
dele os melhores elogios. Sob este prior, a 15 de Dezembro de 1595, a
comunidade passou ao novo mosteiro da Cartuxa, ainda em construção, mas já habitável.
Realizado o seu sonho, D. Teotónio de Bragança bem podia cantar o seu "Nunc dimittis", como
o velho Simeão: a 2 de Julho de 1602 falecia em Valladolid (Espanha), com 72 anos de idade,
sendo transladado para Évora, onde ficou sepultado, não na Cartuxa (onde não podem ser
sepultados senão os monges, no claustro), mas na igreja dos capuchos da Piedade, também
sua fundação. Foi tamanho o afeto que D. Teotónio teve pelos cartuxos, que não só os chamou
a Portugal e iniciou a construção do mosteiro, que enriqueceu com preciosa biblioteca, como
praticamente se tornou o seu superior, tanto no paço real como no novo mosteiro, substituindo
no governo dos monges tanto o Prior como o Procurador.

Disto se queixava o terceiro prior, D. Bertrand Moal, o qual dizia que, "naquela altura, o Prior
parecia ter apenas o título, de modo que ao seu cuidado só ficava o Ofício Divino; igualmente o
cargo de Procurador só comportava o ler os estatutos antes do colóquio e servir o incenso na
igreja. De facto, aquele piedosíssimo Arcebispo tinha reservado para si tudo o mais: o cuidado
de vestir, alimentar e afervorar os religiosos, a tal ponto que ele mesmo entregava pessoalmente
as ofertas, e visitava os monges e os dirigia, e visitava assiduamente a construção do novo
mosteiro, chegando apagar de mão própria aos operários".

Os primeiros priores portugueses na Cartuxa de Évora

Após a morte de D. Teotónio, os monges cartusianos eborenses exerceram, pela primeira vez,
o direito de eleger prior. E elegeram precisamente o primeiro a entrar para a Cartuxa no dia da
sua inauguração em Évora: o padre frei Pedro Bruno, capelão de D. Teotónio e da igreja de
Santa Marta, em Évora. Foi prior durante três anos e viveu com fama de santidade. Mais cinco
sacerdotes portugueses entraram para a Cartuxa na primeira década de Seiscentos. Frei Pedro
Bruno teve também a dita de dar o hábito, em 24 de Janeiro de 1609, ao mais célebre cartuxo
português e chantre ilustre da Sé eborense, o Dr. Baltasar de Faria que, conforme consta do
"Livro das Lembranças do Cabido", "se meteu frade na Cartuxa de Scala Coeli nesta cidade",
onde tomou o nome de D. Basílio de Faria. O ex-chantre da Catedral de Évora foi simples
professo na cartuxa de Évora até 1613, sendo então eleito prior da Cartuxa de Laveiras. Daí o
chamaram os seus co professos de Évora, elegendo-o prior em 1621. Durante quatro anos do
seu priorado eborense foi digno continuador da atividade prodigiosa realizada na Cartuxa de
Lisboa e, principalmente, da grandiosa obra iniciada por D. Teotónio de Bragança em Évora. Foi
D. Basílio de Faria o construtor do monumental claustro da Cartuxa, de 98 metros de lado
(o maior do país), ligando as 20 celas monásticas, e iniciou a construção da nova igreja a partir
do elegante pórtico de cinco arcos de mármore de Estremoz, classificado como monumento
nacional e atribuído ao arquiteto italiano Filippe Terzi. Com 56 anos apenas faleceu este insigne
filho de S. Bruno, considerado como o segundo fundador da Cartuxa de Évora. Os
seus restos mortais, inicialmente sepultados no cemitério no claustro do mosteiro da Cartuxa,
devem ter sido transladados para a igreja, quando concluída, pois nela foi também sepultado seu
sobrinho, o chantre Manuel Severim de Faria, sendo as cinzas de ambos transladadas em 1839,
após a extinção das Ordens Religiosas, para a Catedral de Évora, onde jazem na nave ao lado
do claustro.

Tendo a igreja da Cartuxa sido transformada em Hospital de sangue pelo exército espanhol,
durante os assédios por eles feitos a Évora, em 1633, os monges pediram ajuda para a sua
reconstrução a D. Pedro II, protetor da Cartuxa, que se encarregou de completar a presente
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fachada marmórea com colunas de três ordens clássicas – dórica, jónica e coríntia - sobrepostas
pela formosa escultura de Nossa Senhora "Scala Coeli". O seu sucessor, D. João V, em 1729
enriqueceu a igreja com o magnífico retábulo barroco, dourado e mármores coloridos embutidos
(dos irmãos eborenses Manuel e Sebastião do Ó) na capela-mor e telas que se perderam, ao
serem arrancadas das molduras e levadas, juntamente com centenas de outros quadros dos
conventos eborenses pelo liberalismo "libertador", para o claustro da Academia das Belas Artes,
em Lisboa, onde ficaram empilhados, até apodrecerem, tendo acabado por serem destruídos.

A Cartuxa eborense morta

Após o infame, prepotente e intolerante decreto de 30 de Maio de 1833, que extinguiu as Ordens
Religiosas em Portugal, o edifício da Cartuxa, por força dos Estatutos do fundador no caso de
extinção, deveria passar À posse do Recolhimento de Nossa Senhora da Piedade, em Évora.
Como por sua vez, os bens desta instituição passaram à posse da Casa Pia de Évora, fundada
em 11 de Agosto de 1836, a Cartuxa foi por ela vendida ao Estado por 13 mil escudos
para ali abrir uma Escola de Agricultura.

Abolidas estas Escolas em todo o país em 1869, José Maria Eugénio de Almeida, par do Reino,
nesse mesmo ano adquiriu a desocupada Cartuxa em hasta pública. Seu filho, Carlos Eugénio
Maria de Almeida, herdou-a em 1872, destinando-a a exploração agrícola sem contudo reparar
os edifícios em ruínas. Por sua morte, a viúva, D. Maria do Patrocínio Barros Lima Eugénio de
Almeida embora mantendo ao culto a primitiva e atual capela interior do século XVI nada fez para
evitar a maior degradação dos restantes edifícios. Tendo falecido em 1940, os seus filhos José
Maria Eugénio de Almeida, conde de Vilalva e João Maria Eugénio de Almeida, conde de Arge,
a Cartuxa coube em testamento ao seu neto, o Eng.º Vasco Eugénio de Almeida.

Do espólio do mosteiro salvou-se grande parte da riquíssima biblioteca de D. Teotónio de


Bragança, que foi parar às Bibliotecas e Arquivos Nacionais, como o "Atlas" de Vaz Dourado,
manuscritos de D. Duarte e livros japoneses. Muitas espécies da Biblioteca da Quinta da
Manizola, pertencente ao Visconde da Esperança, foram adquiridos pelo Estado, já no século
XX, e repartidas pela Faculdade de Letras, de Lisboa, e pela Biblioteca Pública de Évora.
Do recheio da igreja seiscentista conserva-se na Catedral de Évora a imponente banqueta de
talha dourada do altar-mor, com as simbólicas sete estrelas; e no Museu de Arte Sacra, a
formosa casula de seda branca e veludo vermelho com a imagem de Nossa Senhora e o Menino
no topo da Escada do Céu, bordada a ouro no sebasto, e que pertenceu a D. Teotónio de
Bragança, o qual decerto a ofereceu ao mosteiro. As dalmáticas, do mesmo estilo, encontram-
se na arrecadação do Museu de Évora, antigo Paço Arquiepiscopal, usurpado pelo Estado por
força da lei de Separação de 1911. No cemitério dos Remédios, em Évora, há um cruzeiro e uma
coluna com a imagem marmórea de S. Bruno, que possivelmente teriam vindo de Scala Coeli.

Fundação e extinção da Cartuxa de Lisboa (Laveiras-Caxias)

Os filhos de S. Bruno eram conhecidos e estimados em Portugal antes mesmo da sua vinda para
Évora em 1587. Compreende-se, por isso, o ciúme da Capital do País, ao sabê-los instalados na
Província. Imediatamente se falou em fundar uma segunda Cartuxa em Lisboa. A Ordem
Cartusiana, por sua parte também o desejava. O ensejo apresentou-se quando em 1594, D. Luís
Telm, primeiro prior de Scala Coeli adoeceu gravemente, tendo de renunciar ao priorado e fixar
residência em Lisboa com o propósito de se curar. Em Lisboa, foi acolhido e protegido por D.
Jorge de Ataíde, bispo de Viseu e Capelão-mor de Filipe I, que o alojou numa sua casa na
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Pampulha (Santos-O-Velho), Lisboa. Acrescentamos que D. Luís Telm é considerado como um


dos cartuxos mais santos daquela época. O seu vigário em Scala Coeli escreveu que qualquer
outra Ordem teria promovido a sua canonização em Roma. A fundação lisboeta começava, pois,
espiritualmente, santamente. Mas os primeiros anos iam decorrer à procura doterreno para
edificar. E D. Luís lutou denodadamente por uma quinta deixada em herança por uma certa viúva
rica. Dona Simoa Godinho, senhora negra, natural da ilha de S. Tomé, viúva de um nobre
lisboeta, deixara os seus bens à Santa Casa de Misericórdia de Lisboa com certas condições ou
vontades expressas no testamento. Uma era que a quinta que possuía em Laveiras deveria
destinar-se a religiosas pobres, ou se não, a religiosos. Como a solidão do vale desaconselhava
instalar ali um convento feminino, os cartuxos pediram o terreno à SCML para edificar nele o seu
novo mosteiro. Mas então os Franciscanos Arrábidos também o reclamaram, alegando que para
substituir "religiosas pobres", deveriam ser frades de uma ordem mendicante e não frades de
uma ordem monástica. Ora se por um lado não havia candidaturas de religiosas, e por outro,
dado ser uma fundação recente em Portugal, os Cartuxos eram pobres; ainda que os Arrábidos
fossem também recentes, tinham enriquecido rapidamente, como se prova pelo número de casas
fundadas com respectivos bens: Barreiro, Dafundo, Algés, Sintra, Loures, Torres Vedras.

Em 1595 o Rei, Filipe I, em Madrid, chegou a escrever uma carta ao Provedor da SCML pedindo
que a quinta fosse entregue aos Cartuxos. Mas o Provedor replicou não lhe ser possível, em
consciência tomar essa decisão. Somente uma bula papal, em 1597 do Papa Clemente VIII,
desatou o impasse a favor dos Cartuxos.

Batizou-se o local: Sancta Mariae Vallis Misericordiae, Cartuxa de Santa Maria do Vale da
Misericórdia. Um tributo mariano, na melhor tradição da Ordem, mas também uma doce
lembrança de quem fora dona das terras: a Santa Casa de Misericórdia de Lisboa.
A nova fundação cartusiana, ao contrário da de Évora, não iria ter o patrocínio benemérito de um
D. Teotónio e da Diocese eborense. Por isso, Vallis Misericordiae foi uma casa pequena, com
uma comunidade exígua, abaixo do normal na Ordem. Em Caxias, as celas foram custeadas,
uma por uma por benfeitores particulares. As duas primeiras celas foram pagas por D. Jorge de
Ataíde, o prelado protetor dos cartuxos em Lisboa, no seu início. A terceira, pelo primeiro
professo, o padre João Coelho, natural do Porto. Outras três por D. Beatriz de Mendonça e
Barreto, dama da Rainha D. Margarida – mulher de Filipe II; e uma outra por D. Manoel de
Vasconcellos, Ministro da Justiça. Por fim, a oitava cela do lado esquerdo foi oferecida por D.
Francisco de Castro, bispo da Guarda. Outro generoso benfeitor foi o Cardeal D. Luís de Sousa,
Patriarca de Lisboa, que custeou a arcaria do claustro, tal como ainda hoje se encontra. É preciso
contudo reconhecer que o principal protetor da Cartuxa de Caxias, foi o mesmo da de Évora, ou
seja, a Casa de Bragança. D. João IV, em 1652 ordenou que uma renda prometida por Filipe I,
mas nunca paga, começasse a ser atribuída. E D. João V, por volta de 1736, contribuiu à
edificação da igreja conventual, de ampla fachada, onde no alto, um grande nicho serve de trono
à Virgem Misericordiosa, Santa Maria Vallis Misericordiae, que tem o menino Jesus ao colo.
Danificada com o terramoto de 1755, foi restaurada a igreja pelo arquiteto austro-húngaro Carlos
Mardel, estando atualmente aberta ao culto ao serviço da Paróquia de Caxias. A terminar este
breve registo sobre as edificações, conta-se um curioso episódio, que se revelou uma
oportunidade frustrada de esta Cartuxa crescer. Em 1696, o cardeal Jorge Cornaro, Núncio
Apostólico em Lisboa visitou a Cartuxa em Caxias ainda incompleta. Lamentou vê-la inacabada
e prometeu que ele próprio a terminaria… se chegasse a Papa. No conclave que se seguiu à
morte de Clemente IX, o cardeal Cornaro teve votos, mas não alcançou a maioria. Caxias perdeu
aqui a oportunidade histórica de ter tido o seu Escorial.
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"Os povos felizes não têm História", disse alguém. E assim viveram, ao longo dos anos essa
exígua comunidade de monges cartuxos em Caxias, que nunca passou dos 16 membros.
Viveram apenas a sua vocação, nada havendo a assinalar até à sua saída em 1833. No dia 24
de Julho de 1833, último dia da comunidade monástica em Caxias, a comunidade era composta
por 11 monges: 5 padres e 6 irmãos. O País encontrava-se mergulhado numa guerra civil e nesse
dia, a meio da tarde o exército liberal de D. Pedro entrava em Lisboa. Um pouco
antes, por volta do meio-dia, a comunidade após ter celebrado Missa e onde procederam ao
consumo da Eucaristia, reuniu e decidiu abandonar o mosteiro.

A Cartuxa de Santa Maria do Vale da Misericórdia nunca mais voltaria a ouvir o canto gregoriano
dos monges cartuxos. E os últimos monges cartuxos portugueses do século XIX passaram o
resto dos seus anos sonhando com um regresso ao lar, que nunca se deu para
eles.
Militares ocuparam o mosteiro como caserna, até que em 1903, um santo sacerdote, o padre
António de Oliveira, pensou em ali instalar um Reformatório para menores delinquentes,
instituição que chegou a ser modelar no seu género. Desalojadas as famílias que se instalaram
nas antigas celas monásticas; na tarde do dia 31 de Maio de 1903, deu entrada no antigo
convento da Cartuxa, o pessoal e os jovens reclusos provenientes da Casa de Detenção e
Correção das Mónicas, Lisboa.

Ressurreição da Cartuxa Scala Coeli

Coube ao Eng.º Vasco Maria Eugénio de Almeida, Conde de Vilalva, a glória da restauração
material e espiritual da Cartuxa Scala Coeli em 1960. Proibido pelo Estado em Portugal, o espírito
cartuxo levou para as Cartuxas espanholas aqueles portugueses que sentiam a vocação para a
vida contemplativa de S. Bruno. Um deles, ateu convertido, pertencia à importante família
Guedes, de Lisboa, era pintor impressionista de renome, e na Cartuxa de Burgos, onde entrara
em 1924, tomou o nome de Frei Miguel. Outro, o padre açoreano João Machado de Lima, entrou
para a Cartuxa de Zaragoza, onde tomou o nome de D. Bruno Maria. Foi este, que em 1940,
escreveu ao Eng.º Vasco Maria Eugénio de Almeida, sugerindo-lhe a restauração do mosteiro
da Cartuxa de Scala Coeli. O Conde de Vilalva respondeu-lhe que era precisamente esse o seu
desejo, e deitou logo mãos à grandiosa reconstrução.
Apaixonado pela Ordem Cartuxa e pela espiritualidade eremítica dos monges que um dia tinham
habitado aquele mosteiro, na altura em completa ruína, o Eng.º Vasco Maria Eugénio de Almeida
percorre diversas Cartuxas de Espanha, França e Itália, com o objetivo de colher elementos para
restaurar a Cartuxa de Évora com a máxima fidelidade religiosa, histórica e artística. Regressado
a Portugal, meteu denodada e dedicadamente mãos à descomunal obra do restauro das ruínas
do velho mosteiro. Foram assim ressurgindo as várias celas do grande
claustro - cheio de odorosas laranjeiras - com o quarto de dormir, a casa de trabalho e de oração,
o corredor para receber e comer as refeições (só aos Domingos e Festas os monges têm a
refeição no refeitório comum), a casa de banho e o pequeno quintal.
No claustro pequeno, com bons lambrins de azulejos setecentistas; foram restauradas as
pequenas capelas para as missas celebradas individualmente pelos monges sacerdotes; a Casa
do Capítulo e a do Refeitório. O Conde de Vilalva só não restaurou a monumental igreja, porque
os monges mostraram desejo de serem eles a fazê-lo; no entanto a restauração da rica talha
joanina representava um encargo que, só o Instituto Português do Património Cultural
poderia assumir, e que só veio a suceder nos anos de 1995-1999.
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Para corresponder aos desejos dos fiéis, que não podem entrar na clausura da Cartuxa,
construiu-se também uma capela externa, onde se colocou a admirável imagem de S. Bruno em
contemplação, que esteve inicialmente na capela primitiva e, depois na monumental igreja de S.
Francisco, na cidade de Évora. Completado assim o restauro da Cartuxa, em que o Conde de
Vilalva teve até o cuidado de a tornar mais "deserto" amortecendo o ruído da cidade através da
florestação de dezenas de eucaliptos; e tendo plantado junto à entrada do mosteiro, sete
ciprestes em honra dos sete primeiros cartuxos da Grande Chartreuse (1084) e dos sete
fundadores da cartuxa eborense (1587), o benemérito restaurador ofereceu o mosteiro
restaurado à Ordem da Cartuxa, em 1960. Portugal acolhia de braços abertos os monges de S.
Bruno. O simples facto do seu regresso ao mosteiro eborense já atraía a atenção do País. Um
género de vocação tão original e elevada acordava o interesse dos bons católicos e a curiosidade
dos afastados.

A vida actual da Cartuxa de Évora

Em 14 de Setembro de 1960, isto é, 473 anos após a sua primeira entrada em Portugal, e 126
anos desde a sua arbitrária e injusta expulsão, sete monges cartuxos vieram de Espanha para
restaurar a vida cartusiana em Évora. Entre eles encontrava-se o monge pintor português, frei
Miguel Guedes. No dia anterior, tinham estado no Santuário de Fátima, onde foram implorar as
bênçãos da Santíssima Virgem no aniversário da sua quinta aparição. Ali os recebera
jubilosamente o então Arcebispo de Évora, D. Manuel Trindade Salgueiro, e o seu bispo auxiliar,
D. José Joaquim Ribeiro - mais tarde Bispo de Dili - que os acompanharam ao mosteiro de Scala
Coeli. À chegada, um formoso arco-íris coroava o mosteiro, o que motivou a D. José Ribeiro este
comentário: "A paz para a Terra vai ser doravante implorada ao Céu pelos monges brancos de
Scala Coeli".

O primeiro superior provisório tinha o título de Reitor. Somente volvidos três anos, viria a ser
nomeado o primeiro prior, D. Pedro Maria Domecq, pertencente a uma sobejamente conhecida
e abastada família espanhola. Sucederam-lhe no cargo D. José Manuel Rodrigues, D. Xavier
Maria Figueiras (ambos espanhois) e D. Bruno Maria Rodrigues, o primeiro português após a
restauração. Corria então o ano de 1963, em que o Concílio Vaticano II preconizara a renovação
dos Institutos Religiosos pelo Decreto "Perfectae Caritatis". Recomeçava, portanto na linha
conciliar a vida monástica da Cartuxa de Maria, "Escada do Céu".

Solidão e convivência na Scala Coeli

O rigor da vida monástica cartusiana, assustadora de tantos que porventura quereriam abraça-
la, não é propriamente o que a define, muito menos o que prejudica a sua saúde, que é
geralmente mais vigorosa do que a daqueles que vivem no stress da vida mundana.
O facto de cortarem o primeiro sono da noite para celebrarem o Ofício Divino; o absterem-se
sempre de carne; o jejuarem a pão e água às sextas-feiras, e comerem só uma refeição por dia
desde a Festa da Exaltação da Santa Cruz, 14 de Setembro, até à Páscoa, não são as
penitências mais rigorosas para o monge cartuxo. Vem a propósito referir o que se conta do Papa
Urbano VIII, que pretendeu mitigar o conhecido rigor da Ordem. Sabedores disso, uma
embaixada constituída por 16 monges cartuxos, cuja idade mínima era de 88 anos, apresentou-
se ao Papa pedindo-lhe que deixasse continuar a austeridade na Ordem. Perante tal embaixada,
o Sumo-Pontífice desistiu da reforma mitigadora da sua austeridade. Por isso, até hoje – dizem
os cartuxos – "Cartusia nunquam reformata, quia nunquam deformata".
Quando D. Augustin Maria Hospital, bispo resignatário na China e monge cartuxo, veio visitar a
Cartuxa Scala Coeli durante as obras de recuperação do mosteiro, foi convidado pelo Reitor do
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Seminário de Évora para falar aos seminaristas acerca do carisma da Ordem. Com relutância
inicial aceitou o convite, porquanto os monges brancos não costumam falar em público. Acedeu,
por fim, e contou que houve monges que não sabiam ter havido uma 2.ª Guerra Mundial, nem
quem eram Estaline ou Hitler. No entanto, é através do Prior que lhes são transmitidas notícias
importantes ou recomendadas às suas orações. O que caracteriza a vida cartusiana, mais do
que o rigor, é a vida eremítica na solidão e na convivência, com que S. Bruno doseou o equilíbrio
psicológico e espiritual dos seus monges. Dentro desses parâmetros o cartuxo vive rezando,
meditando e trabalhando. Reza e medita na solidão da sua cela, e reza, medita e canta, na sua
igreja três vezes ao dia. Os padres trabalham estudando e cultivando o pequeno jardim anexo à
sua cela. Os irmãos, além da cela com o seu quintal, trabalham na oficina e no campo, para
sustentarem a comunidade. A vida litúrgica é muito importante para o cartuxo. Levanta-se perto
da meia-noite para cantar Matinas que, nos dias de Festa, podem demorar até três horas da
noite. Os livros litúrgicos
conservam as melodias gregorianas, mas as leituras são em português, tendo sido feitas na
Cartuxa eborense as primeiras traduções em vernáculo, já adotadas também pela primeira
cartuxa brasileira filha de Scala Coeli, como no século XVI foi a do Vale da Misericórdia, em
Laveiras. As orações de Matinas na igreja à meia-noite, e enquanto os mundanos se divertem,
são as delícias noturnas dos monges brancos, que dialogam com os anjos e santos da Cartuxa
celeste. O mesmo se pode dizer das Laudes e das Vésperas. Cantadas sempre sem órgão, com
tal devoção, que o canto pausado da doxologia Gloria Patri et Filio et Spirituo Sancto,
acompanhada por uma vénia profunda, é certamente um eco festivo da Liturgia celeste. O sino
da Cartuxa, sobretudo pela calada da noite e de madrugada, ressoando pela planície e entrando
pelas ruas da cidade, é um apelo divino e irrecusável a elevar o coração às alturas.
O clímax da Liturgia cartusiana é indubitavelmente a Santa Missa, em que todos os monges
comungam, havendo concelebração nos dias festivos. Os braços em cruz e as prostrações são
característicos da Missa cartusiana.

O trabalho do cartuxo é outra componente da sua vida contemplativa, porque o exemplo da


máxima de S. Bento, cuja regra os cartuxos adotaram – Ora et Labora – faz do trabalho a oração
contemplativa. Antes da invenção da tipografia por Guttemberg, no século de Quatrocentos,
também como os beneditinos, os padres cartuxos copiavam os códices; depois dedicaram-se ao
estudo dos livros, pelos quais se preparam para a formação ascética e mística própria e dos
irmãos leigos. O melhor testemunho desta formação intelectual foi a valiosíssima biblioteca do
mosteiro eborense, a que já se fez referência. Nem se deve olvidar a grande atividade artística
do já falecido frei Miguel Guedes, que em Portugal fez cinco exposições de pintura muito
apreciadas: duas em Lisboa, duas em Évora e uma em Coimbra. Mostrou a sua gratidão aos
Arcebispos de Évora D. Manuel Trindade Salgueiro e D. David de Sousa pintando-lhes os
retratos, para a Galeria dos Arcebispos desta cidade.
Quanto à exploração agropecuária dos monges da Cartuxa Scala Coeli, geralmente orientada
pelo padre Procurador (o terceiro na ordem hierárquica, depois do Prior e do Vigário) bastará
recordar que o gado vacum apresentado, a pedido da Câmara Municipal de Évora, na Feira de
S. João, em 1970, recebeu quatro prémios; e um charolês, em 1982, recebendo a Medalha de
Ouro Internacional da Herd Boot Charolais Française – a primeira da Península Ibérica.
A produção de galinhas e de ovos da Cartuxa não se esgota em Évora, mas é colocada nos
mercados de Lisboa.

Ao próprio Conde de Vilalva, apesar de experimentado lavrador, ouviu-se-lhe dizer que nunca
tinha conseguido tão grandes êxitos na exploração agropecuária como os monges da Cartuxa
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conseguiram.
Duas grandes reportagens tornaram mais conhecida e admirada junto do grande público, a atual
Cartuxa eborense. A primeira foi a da extinta revista "O Século Ilustrado", de 14 de Fevereiro de
1970, cujos repórteres haviam sido encarregados de fazerem apenas umas
perguntas e tirarem duas fotografias; mas ficaram de tal maneira fascinados e impressionados
com o que encontraram e viram, que pediram e obtiveram autorização da sua Redação para a
longa reportagem publicada no número acima referido. A mais notável, porém, foi a filmagem de
meia-hora, que a RTP transmitiu a 18 de Abril de 1982 na rubrica "Setenta vezes Sete", e que
foi considerado o melhor programa religioso desse ano pelos responsáveis europeus
das emissões religiosas televisivas. Tiveram também repercussão nacional o círio benzido pelo
Papa João XXIII na Festa da Apresentação do Senhor, e por Sua Santidade oferecido em 4 de
Março de 1961 a Scala Coeli; e a visita do Presidente da República, almirante Américo Tomás,
acompanhado de três dezenas de personalidades, a 27 de Março de 1965 a este "deserto" da
Cartuxa, e que após ter percorrido o mosteiro, vendo os lugares de culto, claustro e entrado numa
das celas, declarou: "Aqui gostava eu de viver".

É este gesto sobrenatural de viver no "deserto" em comunhão intima com Deus, que faz com
que, apesar de todos os aliciantes de uma sociedade materialista e consumista e dos rigores
cartusianos, ainda haja, à distância de nove séculos da sua fundação, mais de 20 Cartuxas com
meio milhar de monges. Depois da sua ressurreição, a Cartuxa Scala Coeli já chegou a ter 22
monges no início da década de 80. Com a saída de alguns para Espanha, França e Brasil (onde
fundaram a primeira Cartuxa brasileira em Rio Grande do Sul em 1984) e a morte de sete
monges, são agora 12 os seus monges: 6 padres e 6 irmãos leigos. No "deserto" cartusiano de
Évora, os monges contemplam também as maravilhas da Natureza e da Arte, e dialogam com a
solidão contemplativa alentejana, quando às segundas-feiras saem dois a dois pelos campos em
redor, em convivência fraternal.

A Cartuxa Scala Coeli é verdadeiramente um para-raios celeste e uma antena parabólica a refletir
as misericórdias do Senhor, através dos seus monges brancos, quais braços de Moisés a
suplicarem incessantemente por Évora, pelo Alentejo, por Portugal, pelo Mundo inteiro, conforme
reza o lema cartusiano: "Stat Crux, Dum Volvitur Orbis". Na comemoração do IV Centenário da
Cartuxa Scala Coeli, a 6 de Outubro de 1987, dia da festa litúrgica de S. Bruno, o senhor
Arcebispo D. Maurílio de Gouveia presidiu à Concelebração Eucarística com os monges
sacerdotes. Na homília salientou que "nas Cartuxas, Deus é acolhido como o Único Absoluto.
Ele possui o lugar central na vida da comunidade. Para Ele é ordenado o tempo. O Seu louvor
ressoa continuamente nas celas e na igreja; envolve os claustros e os campos. O culto divino e
a oração pessoal são duas asas com que os monges voam constantemente à volta de Deus. O
Deus assim amado, louvado e servido pelos cartuxos não é um Deus distante, mas o Deus
revelado por Jesus Cristo, isto é, Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo".

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