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Resumo: Este artigo analisa as atividades Abstract: This paper examines the
e os objetivos da primeira missão jesuíta activities and goals of the first Jesuit
para a região da Guiné, no início do mission to the Guinea region in the early
século XVII. Os esforços de colonização seventeenth century. Jesuit colonization
jesuítas estavam focados em três objetivos: efforts focused on three goals: the religious
a conversão religiosa dos nativos, manter conversion of natives, maintaining a strict
uma estrita divisão teológica entre o theological division between the divine
divino e o diabólico e o estabelecimento and diabolical, and the establishment of
de empresas coloniais como o tráfico de colonial enterprises like slave trading. The
escravos. Os desejos conflitantes da conflicting desires of religion and
religião e do comércio, em última análise, commerce ultimately restricted the
restringiram o sucesso da missão jesuíta success of the Jesuit mission in Guinea.
na Guiné. A propagação do catolicismo The spread of Catholicism was further
foi ainda mais dificultada pela intensa hampered by intense competition with
concorrência com os missionários Islamic missionaries, the Bexerins, who
islâmicos, os bexerins, que estavam mais were more established in the region.
estabelecidos na região.
Palavras-chave: religião; comércio; Guiné; Keywords: religion; trade; Guinea; Sierra
Serra Leoa. Leone.
*
Doutora pela USP. Professora de História da África na Fafich/Universidade Federal de
Minas Gerais. E-mail: vanijacobina@gmail.com
Porque quanto mais noticia tenho de Guiné, tanto tenho maior magoa
do desamparo de tantos milhares de almas, que nenhum conhecimento
tem do beneficio inestimável de sua redenção, porque até agora não
chegou a eles a luz do santo Evangelho, estendendo-se cada vez mais
por aquela partes a maldita seita de Mafamede.2
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Há entre elles huma casta, ou religião a que chamão bexerins, que são
os letrados da Ley, e todos lêm, e escrevem a lingoa arabiga, se bem
tambem com erros, prezão-se de grandes adevinhadores, e feiticeiros, e
Tem esses casizes quase en todo os Reinos huã ou mais aldeias apartadas,
en que vive[m] com muitos privilegios que os Portugueses não te[m].
Saõ muy acatados de todos e consultados nas cousas da guerra e da paz,
tratam em escravos que vendem aos Mouros da Berberia e aos
Portugueses destas partes; e com este titolo entrão aonde quere[m] e
sameaõ suas falsidades; e posto que as outras nações que estão para o
Sul as não seguem en tudo, hé todavia grande impedimento o que lhes
ensinaõ para receber nossa Santa Fee.17
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Alguns negros christãos naturais desta terra, que tornarão à ela da Ilha
do Caboverde, onde foram batizados, com o trato dos gentios vieram
a tanto esquecimento das obrigações de nossa santa fé que tinham
chinas, ou consentiam que as tivessem seus escravos, e tratavam com
elas e lhe encomendavam suas cousas, como fazem os gentios.32
Abraçou-me, dizendo que não podia crer ser eu o que via, e que Deos
me levara lá pera ele me fazer alguns serviços. De que lhe dei os
agradecimentos, dizendo que tambem folgava muito de o ver, pera lhe
dar novas de seu senhor e senhora e conhecidos, mas que me pesava de
ver o vestido com o camisão de Mandinga e com nóminas dos seus
feitiços ao pescoço, ao que ele me respondeu: Eu trago senhor, este
trajo porque eu sou sobrinho do Sandeguil, senhor desta aldea, o qual
os tangomanos chamam duque, por ser a segunda pessoa do rei. Por
morte do Sandeguil, meu tio, [eu] fico herdeiro de todos os seus bens,
e por isso trago os vestidos que Vossa Mercê vê, mas na Lei de Mafamede
não creio, mas antes me aborrece. Na Lei de Jesus Cristo creio, e pera
que Vossa Mercê saiba ser verdade o que digo despio o camisão, ficou
em jubao e camisa ao nosso modo, e do pescoço tirou um rosário de
Nossa Senhora dizendo, todos os dias me encomendo a Deos e à Virgem
Nossa Senhora nesse rosário. E se eu não morrer, e vier a herdar a casa
de meu tio, farei pera por em Santiago alguns escravos, e achando
embarcação hei-de ir viver nessa ilha e morrer antre cristãos. (DONELHA,
1977, p. 146).
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A missão em discussão
Foi escrita, em 1621, a “Relação da Cristandade da Guiné e Cabo
Verde”. Trata-se de um mapeamento dos lugares onde havia igrejas,
missionários, cristãos e gentios. Não consta a autoria do documento,
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O Senhorio que os Reys deste Reyno tem em Guiné (em que se incluem
os Estados do Cabo Verde, Mina, S. Thomé, Angola e parte do Congo)
foi primeiramente concedido aos Reys de Portugal por hua Bulla do
Papa Martinho V, e depois por outras de Eugenio IV, Nicolau V, Sixto
IV e Leão X, nas quaes dizem os Summos Pontífices que dão o dominio
daquellas terras a esta Coroa, com condição que os Reys della proveia
de Sacerdotes, e Menistros do Evangelho que bautizem, e ensinem
nossa Santa Fee aos naturaes da terra, encarregandolhe sobre isso suas
consciências, como se vee do theor de todas ellas.39
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Fonte: MARK, Peter. Portuguese style and Luso-African identity: Precolonial Senegambia,
Sixteenth-Nineteenth Centuries. Bloomington: Indiana University Press, 2002. p. 2.
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Fonte: LOPES, Carlos. Kaabunke: espaço, território e poder na Guiné Bissau, Gâmbia e
Casamance pré-coloniais. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos
Descobrimentos Portugueses, 1999.
Fonte: Mapa de George Brooks (adaptação dos mapas de Teixeira da Mota (1954), Walter
Rodney (1970) e Church (1980). In: BROOKS, George E. Eurafricans in Western Africa.
Ohio: Ohio University Press, 2003. p. 11.
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25
“Carta do Padre Baltazar Barreira ao Cabo Verde”, 1621. MMA, IV, p. 662-665.
Provincial da Companhia de Jesus”, 20/2/ 34
Idem.
1606. MMA, v. IV, p. 108-109.
35
“Apontamentos de Manuel Severim de
26
Francisco Coelho, à época, esteve na Faria sobre a Fundação de Seminários para
região do rio Grande. Diz que os bijagós a Guiné”, janeiro de 1622. MMA, IV, p.
habitavam o reino antigo dos beafares e 666.
foram conquistados em guerra. Vendo-se
atacados constantemente, fugiram em
36
Idem, p. 694: “O autor era doutor em
canoas para povoar as ilhas em frente do rio Cânones pela Universidade de Coimbra e
Grande. Mesmo nas ilhas, os beafares iam Cónego da Sé de Évora. Quando da carta
fazer-lhes guerra. Os bijagós passaram a se aqui publicada fazia parte do Conselho de
defender, de modo que de vencidos se Portugal em Madrid.” Nascido em 1584,
tornaram vencedores. Tiveram várias em Lisboa, foi levado ainda criança para
vitórias e diziam que os beafares eram suas Évora, onde foi educado por um tio,
galinhas. Além de assaltar e escravizar os Baltazar de Faria Severim, cônego e chantre
beafares, passaram a fazer o mesmo com os da Sé de Évora. Nessa cidade, frequentou a
papéis dos rios Cacheu e Geba. (COELHO, Universidade de Évora e se tornou Mestre
Francisco de Lemos. Duas descrições em Artes e Doutor em Teologia, além de
seiscentistas da Guiné [1684]. Lisboa: ter recebido várias ordens sagradas
Academia Portuguesa de História, 1953. p. católicas. Aos 25 anos, sucedeu seu tio no
42-43). Cabido da Sé de Évora. Adquiriu o direito
de receber somas elevadas, fruto de
27
“Carta do rei Bamalá de Guinala a El-
disposições eclesiásticas, que lhe
Rei D. Filipe II”, 1º/5/1607, MMA, IV, p.
asseguraram diversas rendas e outros
255-256.
benefícios. Devido à sua formação
“Carta do padre Manuel Álvares a El-Rei
28
escolástica aplicou seus honorários na
D. Filipe II”, 3/5/1607, MMA, IV, p. 257. aquisição de uma das mais famosas e bem-
29
“Rellação de alguas cousas de Guiné e apetrechadas bibliotecas do seu tempo.
das portas que alli se vão abrindo para novas Destacou-se, não apenas nas áreas da sua
conversões, tirada das cartas do P. Manoel formação (teologia e filosofia) ou como
Álvares da Companhia de Jesu [sic] e de historiador. Também procurou fazer
outras de D. Sebastião Fernandes Cação reflexão e intervenção política. Em 1624,
escrita do Rio Grande em mayo de 607 por exemplo, Severim de Faria escreveu a
[sic]”. MMA, IV, p. 274. obra Discursos vários políticos, na qual
advogou a transferência da sede da Corte
30
“Carta do Padre Baltazar Barreira ao de Madrid para Lisboa. Contudo, a obra
Padre João Álvares”. 1º/8/1606. MMA, IV, mais conhecida e referenciada de Faria é
p. 165-156. Notícias de Portugal. Trata-se de compilação
31
“Carta do Padre Baltazar Barreira ao de vários textos (Discursos) onde se debruça
Provincial de Portugal”, 5/3/1607. MMA, sobre os mais variados temas: milícia,
IV, p. 238. nobreza, moeda, universidades,
evangelização na Guiné, carreira das naus,
peregrinação e também várias biografias de
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