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Religiosidade na América portuguesa

Dayane Cristina Amorim do Nascimento

Universidade Estadual do Piauí – UESPI – Campus Parnaíba

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1 INTRODUÇÃO

 
O presente ensaio tem como objetivo analisar a religiosidade na América Portuguesa
colonial, tendo como fontes a produção historiográfica sobre o referido tema. Povoada por
variados grupos humanos, como por exemplo, povos indígenas, europeus e africanos, que
entre si já eram grupos heterogêneos com diversas formas de religiosidade, a América
Portuguesa foi território onde diversas culturas entrecruzavam entre si e conflitavam.
Tendo em vista essa ampla diversidade humana, diferentes eram os modos de viver, de
festejar, de trabalhar e desenvolver suas atividades, e mesmo, de ver o mundo. Desse modo a
pergunta norteadora do presente texto é: qual a função da religiosidade e como ela agia dentro
do dia a dia de homens e mulheres no que viria a ser o que hoje chamamos de Brasil. As
manifestações religiosas, bem como as devoções nesse lugar eram marcadas por um misto de
vida “profana”, economia do toma lá dá cá e apelo ao sobrenatural para que assim houvesse a
resolução de problemas da vida privada dos moradores da colônia.
Por outro lado, a igreja católica tentava normatizar a vida no Brasil colônia a partir de
suas leis e por meio da Inquisição, além de propagar e assegurar a fé cristã com a
catequização em meio ao território ainda pouco desconhecido e que ao longo dos tempos era
“desbravado”. Na época moderna, a Europa tinha a sociedade marcada pelo maniqueísmo:
bem versus mal; e pelo medo. O medo do outro, o medo do estrangeiro, o medo de doenças, o
medo do diabo e, por conseguinte, do inferno, eram apenas um dos temores que povoavam e
abatiam a mentalidade da Europa moderna. Nesse sentido, a colônia era compreendida pelo
português desse período ora enquanto “inferno na terra”, habitado por demônios e no qual
homens e mulheres que para cá vinham passavam por provações; ora enquanto purgatório, ou
seja, lugar de expiação de pecados, e no qual buscavam obter salvação.
2 RELIGIOSIDADES, INQUISIÇÃO E NORMATIZAÇÃO

 
Na transição entre medievo e modernidade, viviam os homens e mulheres da Europa
ocidental. Nesse ínterim, os estados nacionais modernos aos poucos se formavam, o rei
centralizava os poderes em sua figura e a burguesia comercial se consolidava enquanto grupo
social, buscando expandir suas atividades mercantis. Nesse sentido, de acordo com Fernando
Novais, “a colonização moderna foi um fenômeno global, no sentido de envolver todas as
esferas da existência, mas seu eixo propulsor situa-se nos planos político e econômico”
(NOVAIS, 2018, p. 18). É interessante como a colonização do que viria a ser o continente
americano está intimamente ligada com os processos de formação dos Estados europeus e de
expansão marítima. Desse modo, Portugal primeiro, com a Revolução de Avis (1385), e
Espanha, com o casamento de Fernando de Aragão e Isabel de Castela em 1469, por terem
sido os primeiros a centralizarem o poder na figura real e terem condições políticos e
econômicas, somadas ainda com os conhecimentos sobre navegação e instrumentos, foram os
pioneiros das grandes viagens marítimas.
Nem tão feudais, mas ainda apegados à religiosidade cristã com seus medos e
superstições; por outro lado, nem tão modernos, mas já com uma produção mercantil, eis um
vislumbre de como era apenas um dos grupos humanos que outrora chegou ao Novo Mundo.
Importa lembrar que as colônias eram entendidas como extensão da metrópole, portanto, uma
posse ultramarina da “pátria mãe” (NOVAIS, 2018), não um país estrangeiro. Embora
“achada” em 1500, a Coroa portuguesa inicialmente, pouco teve interesse pelas terras do
Novo Mundo, enviando uma ou outra expedição de exploração ou policiamento pela costa
(SOUZA, 2001).
O comércio do pau-brasil foi a primeira atividade exploratória pelo valor comercial
para a confecção de tinta vermelha, que logo se tornou monopólio português. Devido às
constantes disputas e ameaças com espanhóis, franceses, ingleses e holandeses (SOUZA,
2001), o rei de Portugal, dom João III iniciou a colonização da nova terra com maior vigor a
partir de 1530 por meio da expedição comandada por Martin Afonso de Souza, que veio a
fundar dois anos depois a vila de São Vicente, no atual estado de São Paulo.
A fim de dar continuidade ao processo de efetivação da colonização da América
Portuguesa, que nas palavras de Sérgio Buarque de Holanda foi “sua maior missão histórica”
(HOLANDA, 2003, p. 43). A coroa dividiu a referida possessão ultramarina em quinze
grandes faixas de terras que foram entregues a doze donatários cujas funções eram dentre
outras, proteger o território por meio de força militar, criar vilas e conceder sesmarias, além
de cobrar impostos, e vender e escravizar povos indígenas. Embora tivessem problemas como
as resistências indígenas, dificuldades nas comunicações, em transportes de mercadorias e na
falta de recursos, as capitanias foram importantes para a formação dos primeiros povoados da
colônia. Devido à falta de êxito das capitanias, a monarquia portuguesa centralizou o poder
político na América na figura de um governo-geral que coexistiu com as capitanias até 1759,
quando essas foram extintas.
Os governadores gerais tinham como “missão” incentivar a colonização das terras.
Tomé de Souza, primeiro governador-geral do Brasil (SOUZA, 2001), foi responsável por
fundar Salvador, sede do governo-geral. Com ele vieram colonos, funcionários para auxiliar
na burocracia e jesuítas a fim de catequizar, expandir e assegurar a religião cristã. Nesse
sentido, diversos grupos vieram para a colônia com o intento de “fazer a América”, isto é,
explorar e enriquecer (HOLANDA, 2003). Gilberto Freyre em sua tese sobre a formação
social brasileira, afirmou que “formou-se na América tropical uma sociedade agrária na
estrutura, escravocrata na técnica de exploração econômica, hibrida de índio – e mais tarde de
negro – na composição” (FREYRE, 2003, p. 65). Essa sociedade mista e bastante complexa
do ponto de vista da constituição humana era calcada na economia agrícola monocultora
devido à qualidade da terra para a lavoura (HOLANDA, 2003).
Nessas sucessivas levas, os grupos humanos vindos à América colonial aclimataram e
reformularam suas práticas religiosas, que muitas vezes diferiam do catolicismo oficial. O
maniqueísmo e a luta entre o criador e o diabo aconteciam não apenas na mentalidade de
homens e mulheres da modernidade, mas também “aparece identificada ao surgimento da
colônia luso-brasileira” (SOUZA, 2001, p. 68). Acontece que muitos dos colonos eram
cristãos novos, isto é, judeus convertidos ao cristianismo, ou então descendentes daqueles,
que mesmo há muito não proferindo mais o judaísmo, porém, continuavam suspeitos aos
olhos de autoridades eclesiásticas e inquisitoriais. Para falarmos sobre outros grupos que
formavam a população colonial, vale lembrar que os portugueses ao chegarem na Terra de
Santa Cruz encontraram uma infinidade de sujeitos que foram erroneamente chamados de
índios. As nações indígenas eram várias, cada uma com suas próprias línguas e manifestações
religiosas. Por outro lado, africanos vindos de diversas partes do continente sob a forma de
escravizados também dariam o teor nessa heterogeneidade humana e cultural.
A colonização foi um processo feito por indivíduos miscigenados (FREYRE, 2003) e
de cultura híbrida, em meio a vários obstáculos, sejam eles físicos ou imaginários, pois,
monstros, demônios e criaturas fantásticas eram também, empecilhos. A América era lugar de
riqueza e de temor pelos colonos. Desse modo, para vencer os problemas do dia a dia da
colônia, se recorria à religião, essa cujos “símbolos e dogmas ocupavam espaço considerável
nas preocupações cotidianas do homem colonial” (SOUZA, 1986, p.130). Na América
colonial, negros escravizados recorriam aos seus antigos cultos para sobreviver ou ao menos,
quem sabe, atenuar a sua condição; colonos portugueses recorriam a simpatias, orações e
outras práticas para obterem vantagens, curas ou sucesso em suas empreitadas. Blasfêmias,
profanações, injúrias aos sacramentos e dogmas, ameaças a Deus e santos, também eram
práticas comuns do lado de cá do Atlântico. Talvez, por isso, nos tempos coloniais, como
atestou Freyre, “observou-se a prática de ir um frade a bordo de todo navio que chegasse a
porto brasileiro” (FREYRE, 2003, p. 91) a fim de inquirir e examinar a fé e as práticas
religiosas dos colonos que nos encontros entre cultura indígena, africana e europeia, criavam e
recriavam-nas. O catolicismo dos colonos era desse modo, distante do eclesiástico, tendo uma
leitura muito mais afetiva e particular, reelaborada a partir das crenças já existentes antes da
exploração do Novo Mundo.
A fim de reprimir e combater cultos que fugiam do catolicismo, na América a
Inquisição perseguiu judeus que ainda mantinham suas práticas na colônia (SOUZA, 1986),
protestantes e indígenas que mantinham suas antigas manifestações religiosas. No caso da
América portuguesa, foram enviados representantes do Tribunal da Inquisição:
comissionários e visitações vigiavam os colonos; para além, foi montada ainda toda uma rede
de denunciantes que com o auxílio dos padres, enviavam os suspeitos envolvidos para
responderem a processos no Tribunal do Santo Ofício de Lisboa. As escaramuças com a
Inquisição não eram apenas pelos temores de suas ações, davam-se ainda pelo “desagrado, a
irritação popular contra a religião oficial” (SOUZA, 1986, p. 101).

2.1 Escravidão, religiosidade africana e popular

        
         A economia colonial, baseada na agroexportação, contou com a “incorporação de
estrangeiros como condição fundamental para a sua reprodução ampliada” (FLORENTINO,
AMARINO, 2012, p. 260). Esses estrangeiros eram africanos que foram incorporados sob a
condição de escravizados trazidos cruelmente de várias regiões de seu continente de origem
nas piores condições em navios (FREYRE, 2003). Ao serem transportados contra sua vontade
e trazidos ao novo mundo pelos europeus, os africanos reproduziram nas Américas seus
modos de vida, que foram reelaborados ao longo dos anos.
O tráfico transatlântico se intensificou a partir do século XVII, principalmente para
atender as zonas açucareiras. Para as culturas africanas, as religiosidades eram de grande
relevância e mesmo com a escravidão não foram suprimidas. Para Laura de Mello e Souza, “a
religião africana vivida pelos escravos negros no Brasil tornou-se assim diferente da de seus
antepassados” (SOUZA, 1986, p. 94). Segundo a historiadora, dado o julgo da escravidão, os
cativos africanos reformularam seus cultos, assim, ganhando preferencia os deuses da guerra,
da justiça e da vingança (SOUZA, 1986). Num primeiro momento os cultos africanos na
colônia e seus sincretismos eram debatidos. Ora mal vistos, ora aceitos  até estimulados
(SOUZA, 1986). 
O padre Antonil, jesuíta, defendia ser o sincretismo importante para o controle social e
ideológico (SOUZA, 1986). Com o passar dos anos, os sincretismos começaram a receber
maior atenção pela igreja católica, sendo posteriormente entendidos como manifestações de
idolatria, heresia e feitiçaria, por isso mesmo, combatidos pela Inquisição. A vida na colônia
não era fácil, as vilas eram dispersas entre si, com pouca comunicação e a privação era
constante (NOVAIS, 2018).  Sobrenatural e natural se mesclavam na América portuguesa,
esse lugar habitado pelo diabo e demônios, desse modo, no período colonial acreditava-se que
muitas das doenças eram causadas pelo sobrenatural. Havia “um fosso enorme separava a
rigidez religiosa da vigilante Inquisição portuguesa e o catolicismo vivido pelos colonos,
sendo constante a incompreensão mútua dos discursos de cada um” (SOUZA, 1986, p. 149).
A religiosidade colonial era “desviante”, isto é, fugia da matriz europeia, considerada então
como a correta. 
A religiosidade na colônia servia muito mais para resolver problemas do cotidiano
colonial e que era fundamentada num toma lá da cá. Doenças, picadas de cobra, dores de
dente dentre outras mazelas, eram armadilhas da natureza que deviam ser curadas com rezas e
benzimentos, fazia-se necessário buscar curandeiros que “podiam tanto restaurar a harmonia,
restituindo saúde aos que a tinham perdida, como desencadear malefícios'' (SOUZA, 1986, p.
168). Na mentalidade da época, negros e indígenas, talvez pelas suas práticas pré-coloniais,
eram os principais feiticeiros que causavam doenças ou curas. Dado ao hibridismo religioso
oriundo do encontro de diversas crenças, bem como devido à distância da colônia, os que
buscavam esses serviços eram também brancos.
    

  CONSIDERAÇÕES PARCIAIS

O processo de colonização da América Portuguesa foi feito a partir de diversas


culturas e sujeitos. As manifestações religiosas e devoções praticadas na colônia eram
diferentes da europeia, no Novo Mundo a religiosidade, marcada pelo hibridismo, servia para
resolver os problemas do cotidiano dos moradores da colônia. Por serem entendidas como
desviantes, a igreja católica tentava por meio de representantes da Inquisição no Brasil, vigiar
e assegurar a fé cristã, tanto por meio de redes de denunciantes, comissionários, visitações, ou
pela catequização.

 REFERÊNCIAS

FLORENTINO, Manolo; AMANTINO, Márcia. Uma morfologia dos quilombos nas


Américas, séculos XVI-XIX. História, Ciências e Saúde - Manguinhos. Rio de Janeiro, vol.
19, supl., dez. 2012, p.259-297.
FREYRE, Gilberto. Casa grande e senzala: formação da família brasileira sob a economia
patriarcal. São Paulo: Global, 2003.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia das Letras,
1996.
NOVAIS, Fernando. Condições da privacidade na colônia In SOUZA, Laura de Mello
e(Org.). História da vida privada no Brasil: cotidiano e vida privada na América portuguesa.
São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e terra de Santa Cruz: feitiçaria, e religiosidade popular
no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.
______. O nome do Brasil. Revista de História, n.145, p.61-86, 2001.

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