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Unifesp – UC História dos Índios, os índios na história – 2023 – Profs.

Antonio e André
Estudante: Caroline Vitória de Santi – 148750 – Turno: Noturno
Sem fé, sem lei ou rei na mira do Santo Ofício

Introdução

A chegada dos europeus em 1500 no território brasileiro, como chamamos


atualmente, trouxe consigo alterações ao ambiente como um todo, mas principalmente na
maneira de viver dos povos nativos. Este contato proporcionou visões estigmatizadas das
populações indígenas durante o período colonial, que perpetuam e enraízam até hoje
histórias dicotômicas sobre a gente originária. Ainda que gradativamente, estímulos
foram surgindo para alterar esta dinâmica. Agentes importantes da historiografia indígena
brasileira, como John Manuel Monteiro e Manuela Carneiro da Cunha, vêm
desenvolvendo desde o século passado trabalhos relevantes sobre esta complexidade,
empreendendo esforços para elucidar a participação indígena e considera-los como
agentes históricos plenos.

Estes trabalhos nos permitem observar cenários diferentes daqueles que são
apresentados em livros didáticos ou em apostilas preparadas por grupos dominantes -
igreja, instituições educativas, empresários da educação, etc -, que determinam quais
assuntos são legítimos de serem abordados1. As abordagens simplistas e reducionistas
devem ser substituídas por estudos que ilustram uma diversidade de vivências sociais,
considerando que, como aponta Maria Regina Celestino, distante de serem uma
coletividade indistinta, as comunidades indígenas se esforçavam para se reorganizar
diante das interações com os colonizadores, objetivando encontrar meios adequados para
sobreviver no contexto colonial2.

Pensando nisto, este trabalho pretende abordar a reação dos indígenas frente à
imposição religiosa da coroa posta através do projeto colonizador, que culminou
posteriormente à atuação do Tribunal Inquisitorial de Lisboa no Brasil para preservar o
dogma cristão. E também estender-se sobre questões da importância do Ensino de
História Indígena, sobretudo sobre os índios na Inquisição da América portuguesa, na
educação básica.

1
SILVA, Tomaz Tadeu da. Currículo e Identidade Social: territórios contestados. in Identidades Terminais:
as transformações da política da pedagogia e na pedagogia da política. Petrópolis: 1996.
2
ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. “Identidades étnicas e culturais: novas perspectivas para a história
indígena.” IN: ABREU, Martha; SOIHET, Rachel. Ensino de história: conceitos, temáticas e metodologia.
Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2009, p.30.
O Processo Inquisitorial Português

No século XV, com a Inquisição Espanhola, muitos judeus perseguidos na


Espanha fugiram ou foram expulsos com destino para Portugal. “A opção encontrada
pelos perseguidos foi a fuga para Portugal, onde, desde o período medieval, os judeus
gozavam de tolerância e proteção real [...].”3 Entretanto, o desequilíbrio social reverteu
essa posição adotada durante tanto tempo, e Portugal se viu obrigado a se manifestar de
maneira contrária à presença judaica. Com isso, o conflito entre cristãos e judeus se
intensificou, dando início a um processo de batismo forçado e de maneira compulsória
para conversão à doutrina cristã, como uma condição aos judeus que quisessem continuar
no reino de Portugal. Além disso, a ascensão do rei D. Manuel I chegou juntamente com
uma luta pela criação de um tribunal que “julgasse os desvios de fé praticados pelos
cristãos-novos”4.

Após algum tempo de tentativas a Inquisição Portuguesa foi criada em 1536 e


assinada pelo Papa Paulo III, destinada especificamente a combater heresias, considerada
pelo tribunal um erro reiterado da fé. Ou seja, tudo aquilo que se desviasse do que era
defendido pela Igreja Católica era rigidamente reprimido, como o judaísmo e a feitiçaria.
Entretanto, a perseguição não se intensificou somente aos cristãos-novos, sodomitas,
bígamos e outros também eram hostilmente advertidos pelo tribunal.

O Santo Ofício no Brasil

Ainda que de primeiro momento o Tribunal do Santo Ofício português se


dedicasse aos atos hereges cometidos dentro do próprio reino, com o tempo expandiu-se
à perseguição a outras regiões do Império e suas colônias. No Brasil, apesar do Tribunal
não ter sido instalado, a presença inquisitorial era real5. Os alvos principais de perseguição
eram bem parecidos com os da Europa: judeus, cristãos-novos, ciganos e hereges. Ou
seja, a fé verdadeira, conforme defendida pela Igreja Católica Romana, era a única aceita

3
FRANCO, José E.; ASSUNÇÃO, Paulo de. As metamorfoses de um polvo: Religião e política nos
Regimentos da Inquisição Portuguesa (séculos XVI-XIX). Lisboa: Prefácio Editora, 2004, p. 23.
4
SILVA, Alex Rogério. A “Santa” Inquisição de Portugal: trajetória institucional e a perseguição aos
conversos na época moderna (séculos XVI-XVII). Revista Outras Fronteiras, Cuiabá-MT, vol. 4, n. 1,
jan/jul., 2017, p. 173.
5
CRUZ, Carlos Henrique A.; SANTOS, Lidiane Vicentina. dos. Saber colonial: os índios, os “feitiços” e a
Inquisição no Grão-Pará (Séc. XVIII). IN: Anais do XIV Encontro Regional da Anpuh Rio: Memória e
Patrimônio, Rio de Janeiro, 2010.
pelo Tribunal, e as práticas religiosas tradicionais que não se alinhavam com os preceitos
do cristianismo católico português eram motivo de punição.

Apesar dos desafios logísticos e burocráticos enfrentados pelo aparelho


inquisitorial em existir no território brasileiro, o que fez com que a sua efetividade
variasse ao longo do tempo e espaço, ele conseguiu estabelecer presença. A Inquisição
Portuguesa se fez efetiva em várias cidades brasileiras, como Salvador, Rio de Janeiro e
Recife, com registros de prisões, julgamentos, torturas e execuções. Isto porque, 1) havia
visitações pastorais no território, facilitando localizar aqueles que ainda eram praticantes
de religiões pagãs, e 2) existiam pessoas interessadas em ajudar no julgamento dos
hereges, através das denúncias. Então, ainda que com intensidade diferente do processo
inquisitorial estabelecido na própria Lisboa, os métodos eram suficientes para atemorizar
a colônia6.
Indígenas e o Santo Ofício
A ideia difundida por algum tempo que os originários seriam um povo sem fé,
sem lei e sem rei, hodiernamente já se encontra desmistificada. Trabalhos importantes
sobre este assunto surgiram no decurso. Ronaldo Vainfas, por exemplo, desenvolveu um
estudo relevante sobre as idolatrias luso-brasileiras, como ele intitula, e a religiosidade
indígena7.

A primeira atuação do Tribunal Inquisitorial em terras brasileiras aconteceu ainda


no século XVI, com a visita do Santo Ofício, representado pelo licenciado Heitor Furtado
de Mendonça, à colônia. Desta inspeção, Lidiane Vicentina contabilizou 72 registros de
denúncias, “16 contra indígenas e 48 contra mamelucos”8.

A criação da diocese baiana movimentou a atuação dos inquisidores que caçavam


aqueles suspeitos na fé. Foi neste contexto que surgiu o registro do primeiro índio herege.
A Santidade de Jaguaripe, um “último suspiro de resistência tupinambá”9, foi um dos
principais alvos do Santo Ofício na primeira visita. Estes foram julgados e punidos de
acordo com seu ‘pecado’. Já na segunda visita, que ocorreu no século seguinte, apenas
duas acusações a pessoas de procedência indígena foram registradas, ambas receberam

6
SANTOS, Lidiane Vicentina dos. “Terra inficcionada”: as práticas mágico-religiosas indígenas e a
Inquisição na Amazônia portuguesa setecentista. Dissertação (Mestrado - Mestrado em História) -
Universidade Federal de São João del-Rei, 2016, pp. 26-32.
7
Me refiro ao livro: VAINFAS, Ronaldo – A Heresia dos Índios – Catolicismo e Rebeldia no Brasil
colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
8
SANTOS, op. cit., p. 29.
9
VAINFAS, op. cit., p. 14.
não mais que penas espirituais. A terceira visitação, que aconteceu em 1763, foi a maior
em registros de denúncias à prática pecaminosa por parte dos indígenas. Lidiane aponta
que 41,37% dos processos desta visita eram contra índios – 12 processos no total, deles 6
contra indígenas, 2 contra mestiços e 4 contra mamelucos -10.

Uma possível explicação11 sobre este aumento está ligada ao Diretório Pombalino,
que propunha a mistura dos índios com a população branca e portuguesa, a fim de que o
povo nativo abandonasse totalmente suas origens e costumes para se adaptar aos ideais
europeus. Aqui, a considerar as datas – lei do Diretório em 1757 e a terceira visita em
1763 -, poderíamos concluir que esta última visitação serviria para observar se a lei
instaurada estava sendo seguida. O medo do extermínio, indubitavelmente, tornou
inúmeros indígenas sujeitados aos grupos dominantes e às ideias destas elites. Mas os
números de processos contra indígenas não sustentam, de forma alguma, a concepção de
índio como agente passivo, pelo contrário, eles se mostram como atores históricos, que
buscavam preservar suas identidades e lutar por seus direitos.

Vale ressaltar também que a Inquisição teve uma abordagem seletiva em relação
aos indígenas, priorizando a perseguição aos "hereges" europeus. Os indígenas eram
vistos como alvos secundários, com a principal preocupação sendo a conversão dos povos
nativos ao cristianismo. A Igreja Católica desempenhou um papel central na assimilação
cultural e religiosa dos indígenas, visando integrá-los à fé católica e à sociedade colonial.

Portanto, o fato de os indígenas serem alvos, em algum momento, do processo


inquisitorial, exime deles a visão errônea de apenas espectadores ou vítimas passivas da
elite hegemônica. Pois, se por algum tempo, eles foram poupados por serem considerados
puros, inocentes, optando pela catequização do grupo através da ação jesuítica, em outro
momento eles assumiram um papel de destaque, não abrindo mão de suas concepções
religiosas. Alguns conseguiram manter suas práticas religiosas tradicionais de forma mais
discreta, enquanto outros foram mais diretamente afetados pelas investigações e
perseguições da Inquisição.

Índios na Inquisição: uma abordagem na educação básica


Tomaz Tadeu da Silva argumenta que o currículo não é neutro, mas traz narrativas
particulares sobre pessoa ou grupo, e nos constitui como sujeitos, igualmente

10
SANTOS, op. cit., p. 37.
11
Digo ‘uma possível’, pois chegar em uma conclusão sobre as causas desviaria o foco deste trabalho.
particulares12. Portanto, não é raro vermos, em livros didáticos, por exemplo, a ideia
romantizada sobre indígena, que tanto foi repugnada neste texto. Basta folhear
brevemente uma apostila do ensino básico para encontrar inúmeras representações
indígenas má colocadas: cordiais e amigáveis num primeiro encontro; traiçoeiros
posteriormente; coadjuvantes; selvagens; etc.13

Abordar estes personagens durante a Inquisição contribui para uma educação mais
inclusiva, crítica e plural. Primeiro, desconstrói os estereótipos históricos que os
retratavam como um povo homogêneo, incivilizado e inferior, assim permite que os
alunos compreendam a diversidade cultural, religiosa e social das populações indígenas.
Segundo, a abordagem valoriza a perspectiva indígena, permitindo que os alunos
conheçam as experiências, lutas e resistências dos indígenas frente à imposição da fé
católica. Terceiro, possibilita o reconhecimento da história silenciada, evitando o
apagamento e a invisibilização das contribuições e experiências dos povos indígenas. E,
por último, esta discussão estimula e promove o respeito e a valorização da diversidade.

Conclusão
A Inquisição Portuguesa deixou marcas duradouras nas comunidades indígenas
do Brasil. Muito da cultura tradicional delas foi suprimida e perdida ao longo dos séculos,
enquanto o catolicismo europeu foi imposto como religião dominante. Ainda hoje, pode-
se sentir o impacto dessas políticas de conversão forçada, com muitos indígenas lutando
para preservar e revitalizar suas tradições.

Da mesma forma como Maria Regina Celestino abordou em seu estudo14, este
trabalho buscou reforçar a participação indígena, colocando-os como ativos no processo
da Inquisição, e não como meros espectadores de sua própria história.

Além disso, tal como Tomaz Tadeu propõe15, este é um tema que pode ser
explorado na educação básica numa perspectiva de perturbação e subversão das

12
SILVA, 1996, op. cit., p. 165.
13
SILVA, Adriane Costa da Silva. Versões didáticas da história indígena (1870-1950). Dissertação de
mestrado. FEUSP. 2000, pp. 5-22.
14
Me refiro à obra: Metamorfoses indígenas: identidade e cultura nas aldeias coloniais do Rio de Janeiro.
Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2001, em que a autora mostra ser de grande importância colocar o povo
originário como ativos no processo que ela denomina como metamorfose.
15
SILVA, Tomaz Tadeu da. A produção social da identidade e da diferença.in SILVA, Tomaz Tadeu da (org).
Identidade e diferença: a perspectiva dos Estudos Culturais. Petropólis, RJ: Vozes, 2012, p. 100.
identidades existentes, estimulando o ambíguo, ao invés do consensual tratado em livros
didáticos.

Referências Bibliográficas
ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Metamorfoses indígenas: identidade e cultura
nas aldeias coloniais do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2001.
ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. “Identidades étnicas e culturais: novas
perspectivas para a história indígena.” IN: ABREU, Martha; SOIHET, Rachel. Ensino de
história: conceitos, temáticas e metodologia. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2009.
CRUZ, Carlos Henrique A.; SANTOS, Lidiane Vicentina. dos. Saber colonial: os índios,
os “feitiços” e a Inquisição no Grão-Pará (Séc. XVIII). IN: Anais do XIV Encontro
Regional da Anpuh Rio: Memória e Patrimônio, Rio de Janeiro, 2010.
FRANCO, José E.; ASSUNÇÃO, Paulo de. As metamorfoses de um polvo: Religião e
política nos Regimentos da Inquisição Portuguesa (séculos XVI-XIX). Lisboa: Prefácio
Editora, 2004.
SANTOS, Lidiane Vicentina dos. “Terra inficcionada”: as práticas mágico-religiosas
indígenas e a Inquisição na Amazônia portuguesa setecentista. Dissertação (Mestrado -
Mestrado em História) - Universidade Federal de São João del-Rei, 2016.
SILVA, Adriane Costa da Silva. Versões didáticas da história indígena (1870-1950).
Dissertação de mestrado. FEUSP. 2000.
SILVA, Alex Rogério. A “Santa” Inquisição de Portugal: trajetória institucional e a
perseguição aos conversos na época moderna (séculos XVI-XVII). Revista Outras
Fronteiras, Cuiabá-MT, vol. 4, n. 1, jan/jul., 2017.
SILVA, Tomaz Tadeu da. A produção social da identidade e da diferença.in SILVA, Tomaz
Tadeu da (org). Identidade e diferença: a perspectiva dos Estudos Culturais. Petropólis,
RJ: Vozes, 2012, p. 100.
SILVA, Tomaz Tadeu da. Currículo e Identidade Social: territórios contestados. in
Identidades Terminais: as transformações da política da pedagogia e na pedagogia da
política. Petrópolis: 1996.
VAINFAS, Ronaldo – A Heresia dos Índios – Catolicismo e Rebeldia no Brasil colonial.
São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

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