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UMBAND

O CRUZAMENTO DAS

GNOSTIC
LINHAS, OS CORPOS E SEUS
OUTROS NAS RELIGIÕES DE
MATRIZ AFRICANA
JOÃO DANIEL DORNELES RAMOS

Doutor em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
Pós-Doutorando em Antropologia Social na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

RESUMO ABSTRACT

N T
este artigo apresento as he purpose of this study is to
conexões que se dão entre show the connections among
diferentes entes, formas different beings, religious
religiosas e cosmo-ontológicas, forms and cosmos-ontological
que ocorrem nas práticas rituais forms that occur in ritual and daily
e cotidianas da religião de Linha practices of the Linha Cruzada
Cruzada. Para tal, articulo religion. The aspects explored are
elementos empíricos oriundos the empirical evidence from the
da experiência etnográfica junto ethnographic experience with two
a duas terreiras localizadas no terreiras (ceremonial places) in the
estado do Rio Grande do Sul. state of Rio Grande do Sul. I assume
Compreendo que a conectividade that the connectivity and the set
e o jogo das diferenças que of differences which compose the
compõem a Linha Cruzada formam- Linha Cruzada are formed by a
se enquanto partes de uma lógica rhizomatic logic and indicate key
rizomática e indicam elementos- elements in order to understand
chave para entendermos outros other modes of existence and
modos de existência e relações cosmopolitic relations involving
cosmopolíticas, que envolvem different approaches.
diferentes perspectivas.

Palavras-chave: Religiões afro-


brasileiras, cosmopolítica, corpo, Keywords: Afro-Brazilian religions,
pessoa, cruzamentos. cosmopolitics, body, person, crossings.

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No Brasil, e em outros países da América de apreensão de substâncias (materiais e
Latina, as religiões africanas aliaram-se imateriais), humanas, animais e vegetais, e por
às práticas ameríndias, ao cristianismo determinadas práticas –como as obrigações,
europeu e às ontologias de outros povos e o aprontamento e os sacrifícios rituais, etc.–,
coletividades. As religiões afro-brasileiras que, por sua vez, inclui diferentes entes
podem ser compreendidas como conjunto mediadores.
«heteróclito» e articulado «de práticas e
concepções religiosas cujas bases foram Nos termos de Anjos e Oro (2009), entendo
trazidas pelos escravos africanos e que, ao que é preciso tomar nossas/os interlocutoras/
longo da sua história, incorporaram, em maior es religiosas/os como portadores/as de
ou menor grau, elementos das cosmologias filosofias plenas, colocando em pé de simetria
e práticas indígenas», como também do a filosofia da religiosidade afro-brasileira com
catolicismo popular e do espiritismo de as filosofias ocidentais pois, a «linha cruzada
origem europeia (Goldman, 2009:106). Esses apresenta uma multiplicidade» (Anjos,
elementos transformaram-se à medida em 2006:18). Assim, considero que estamos
que foram sendo combinados uns aos outros: diante de teorias nas quais afro religiosos/
as divindades africanas conjugaram-se a as são tão praticantes como estudiosos/as
diversos entes (espíritos ameríndios, santos de suas práticas. É preciso, então, tomar a
católicos, deuses indianos, etc.). Entretanto, «linguagem dos terreiros» e «fazer com que
não ocorre uma fusão que unificaria todas a filosofia nativa se ocupe da antropologia
essas alianças em uma só religião, pelo como um espírito se ocupa de um cavalo de
contrário, elas foram produzindo diferenças santo» (Anjos, 2008:78).
e variações, multiplicidades e conexões Fui conectando os conceitos criados pelos
(cruzamentos) entre distintos entes, formas coletivos afro religiosos como uma teoria
religiosas e cosmo-ontológicas, que marcam etnográfica, alocando a Linha Cruzada como
as práticas rituais e cotidianas tomadas, de espaço aberto para o (re)conhecimento de
modo geral, enquanto «matriz africana». outros modos de existir nos quais há diversos
Uma delas é a Linha Cruzada, que opera por cruzamentos entre práticas e concepções
diversos cruzamentos, efetuados nela e por diferentes. É afastando-me do entendimento
ela que, ao serem agregados, distribuídos e que trata a religião como «crença» e como uma
dispersados os elementos e as práticas que a «devoção» que sugiro considerá-la enquanto
compõem, se mostra não um fechamento, que uma cosmopolítica, pois nela existe uma
seria unificado em uma religião «sincrética». epistemologia riquíssima que foi (e é) silenciada
Já a ideia de cruzamento, por si só, nos de diversas formas. As religiões de matriz
indica a operação por conexões, muito mais africana são sistemas heteróclitos, voltados
do que sobreposições. Por exemplo, é pelo a aberturas e a fechamentos nos quais se
acionamento do Povo da Rua, Linha que operam políticas alargadas de relações –que
corresponde aos exus e pombagiras, entidades envolvem não somente a incorporação, a cura,
que são tidas por algumas correntes espíritas os sacrifícios, os cruzamentos, mas também
kardecistas como «sem luzes» e «sofredoras», os corpos, os territórios, as substâncias, os
que o cruzamento das Linhas foi e é sempre fluxos e os outros entes partícipes do cosmos.
possível. Para as religiosidades afro-brasileiras, as
encruzilhadas são o «ponto de encontro de
Toma-se, como ponto de partida, os conceitos diferentes caminhos que não se fundem numa
êmicos de cruzamento e aprontamento para unidade, mas seguem como pluralidades»
alargarmos o entendimento sobre a diferença (Anjos, 2006:21), e elas se formam enquanto
e a variação nas e das religiões de matriz ontologias (africana, ameríndia, cristã,
africana. É nas passagens, nos assentamentos, kardecista, do Oriente, Povo Cigano, a Linha
no fazer o chão e nos cruzamentos que de Exus...) que são conectadas, em diferentes
estamos diante de «um pensamento que momentos e práticas.
faz da vida um território» (Anjos, 2006:19).
Nas religiões de matriz africana, em geral, é
possível estabelecer relações com objetos,
pedras, entidades, orixás, entre outros, o que
constitui modos de existência feitos por meio

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A LINHA CRUZADA de existência, presentes nas ações rituais e
cotidianas e que envolvem as diferentes cosmo-
ontologias. O que na religião se estabelece está
A Linha Cruzada agrega, no mínimo, três muito mais no âmbito das relações, que se
linhas: o Batuque ou a Nação (dos orixás), operam entre humanos e extra-humanos, do
a Umbanda (dos caboclos, pretos-velhos e que no escopo das «crenças» ou da religião.
crianças) e Quimbanda ou a Gira (dos exus,
pombagiras, Povo Cigano e Povo do Oriente). Assim, nos cruzamentos, ao invés das
Conforme Oro (1994:47), o Batuque «apoia- diferenças se dissolverem e se unificarem, elas
se em elementos mitológicos, axiológicos, se conectam subsistindo «como tais», ou seja,
linguísticos e simbólicos das tradições banto e no dizer de Anjos, «um caboclo permanece
sobretudo jêje-nagô» e «seus cultos centram- diferenciado de um orixá mesmo se cultuados
se nos orixás». Já a Quimbanda «gira em torno no mesmo terreiro e sob o mesmo nome
dos Exus e das Pombagiras, entidades de próprio (como, por exemplo, Ogum)» (Anjos,
intermediação entre os homens e os orixás. 2006:22). Os rituais e cerimônias das linhas são
Seu lugar estratégico são as encruzilhadas independentes, como no caso da Linha Branca,
(cruzeiros) e os cemitérios». Essas entidades na Umbanda, que também dá passagem para
são «ambíguas», pois sua «função é a de abrir a linha de caboclos e a linha de pretos-velhos.
ou trancar a comunicação com os deuses» (Oro, É por esta lógica da encruzilhada que, o foco
1994:51). É nos rituais de Quimbanda que «a de atuação da religião e de suas práticas está
experiência religiosa imanente é exacerbada». pautado pela produção de diferenças, e isso
Nela se agregam «dimensões subjetivas» que é percebido a partir do que as pessoas fazem
permitem aos seus membros mostrarem «o que ritual e cotidianamente.
são individualmente» (Oro, 2012:561). Sobre a
Umbanda, Oro (1994) indica que seu panteão A Linha Cruzada produz as diferenças de modos
«é formado sobretudo por espíritos de “pretos de existência ao mesmo tempo em que conecta
velhos”, “caboclos” e “ibeji” (“cosmes”)» e que, diversos elementos, operando em composição
no «ideário da Umbanda, os pretos-velhos são fractal (Strathern, 2009; Wagner, 1991) tanto
espíritos de negros, reais ou imaginários, que, da religião enquanto tal como da pessoa, dos
em sua existência, foram escravos, benzedeiros, corpos, entidades e territórios. Conectar os
pais-de-santo». Os «caboclos são representados elementos diversos é um exercício onde há
como bravos, arrogantes, valentes, guerreiros, fluxos: por exemplo, a substância sangue, do
insubmissos, fortes, originais donos da terra animal sacrificado, agencia a relação entre
e vivendo harmonicamente com a natureza. pessoa, animais e a divindade (orixá) que está
Ou seja, trata-se de um índio idealizado». E, no acutá (pedra), quando essa pedra recebe o
por fim, os «Ibeji (Cosme e Damião –crianças) sangue que está carregado com axé. Ocorre
representam a pureza e a inocência» (Oro, uma conexão nesta relação entre pessoa e
1994:53-54). Assim, a Linha Cruzada constitui extra-humanos (sangue, pedra, animal, orixá...).
uma religião «prática, pragmática, de serviço», Portanto, para aquilo que chamamos como
em que há variações em seu interior-exterior, «objetos» da religião, há intensidades e não
que devem ser compreendidas enquanto representações. Tanto os assentamentos –
possibilidades de modos de existência em acutás, ferros, plantas...–, como aquilo que
diferença (Oro, 2012:562). é utilizado nos rituais –as vestimentas das
pombagiras, a espada do Ogum Beira-Mar,
Cada uma dessas religiões tem seus rituais o cigarro de palha do preto-velho, o chapéu
e cerimônias independentes, que podem se do exu, entre outros–, são operadores das
conectar com outros lados ou linhas: orixás relações estabelecidas entre humanos e extra-
africanos e santos católicos são relacionados humanos. O assentamento do orixá é onde o/a
na Umbanda; pontos de caboclos e de pretos- orixá está: é a própria divindade que está ali;
velhos possuem referências cristãs, ameríndias portanto, ele não a «representa», pois o acutá
e africanas; concepções advindas do espiritismo «não remete para um poder que do além se faz
kardecista, como evolução, aparelho e representar num mediador simbólico. O acutá
médium, são usadas largamente nas terreiras; –essa pedra sagrada aqui e agora– já carrega
espíritos ciganos e do Povo do Oriente chegam de imediato a totalidade do ser da divindade.
na Linha dos Exus... Esses cruzamentos e o jogo Esta pedra sagrada, aqui e agora, é o Xangô, o
das diferenças, que compõem a Linha Cruzada, Ogum, a Iemanjá» (Anjos, 2008:89). A pedra é
nos permite compreender outros modos feita (aprontada), embora ela tenha a potência

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orixá desde sempre e não está representando segmentos são acionados e outros não. As
algo, ela tem vida. diferenças podem ser conectadas, mas não
são colocadas como unidade. Há uma forma
As estatuetas –chamadas de imagens e que, rizomática nessa conectividade que opera «em
geralmente, são esculpidas em gesso– são oposição ao pensamento arborescente que
figuras dos orixás, santos e das demais entidades caracteriza a definição de sincretismo (usual
(caboclos/as, exus, pombagiras, ciganas/os...). na definição das práticas religiosas africanas no
Por exemplo, a orixá das águas doces, Oxum, é Brasil)»:
esculpida como uma mulher negra, utilizando
as roupas de cor amarela e carregando numa A ideologia da democracia racial
das mãos um espelho. Mas, ela pode também fecundou toda uma imagem do
ser a figura de uma mulher branca, com manto Brasil como o país do sincretismo, da
na cabeça (Nossa Senhora da Conceição), miscigenação racial. Para essa ideologia,
enquanto uma passagem de Oxum. Já Ogum, a imagem do cruzamento das diferenças
orixá guerreiro e ligado ao ferro, é tanto está mais próxima de certo modelo
o cavaleiro cristão e branco (o São Jorge), biológico, em que espécies diferentes
montado em um cavalo e lutando contra um se mesclam numa resultante que
dragão, como também pode ser um guerreiro seria a síntese mulata. A religiosidade
africano, negro, empunhando uma espada longa afro-brasileira tem um outro modelo
e usando um escudo. Oxum, Ogum e muitos para o encontro das diferenças, que é
outros operam como diferenças e também rizomática: a encruzilhada como ponto
como a multiplicidade delas: o cavaleiro cristão de encontro de diferentes caminhos
pode ser chamado de São Jorge e de Ogum, e que não se fundem numa unidade,
a virgem branca usando um manto na cabeça mas seguem como pluralidades (Anjos,
é chamada de Oxum e, também, de Nossa 2006:21).
Senhora da Conceição. Elas são multiplicidades
porque existem como passagens. As imagens O sincretismo pode ser visto como relação
possuem intensidades de orixás, santos conflituosa entre mundos, que emerge das
católicos, caboclos, pretos-velhos, exus, gramáticas e práticas «nativas», tal como
pombagiras, ciganos/as, entre outras, e diferem discutem Anjos e Oro (2009:57), partindo
dos acutás no aprontamento (modo de feitura). da observação da Festa de Nossa Senhora
Enquanto um acutá precisa, necessariamente, dos Navegantes, em Porto Alegre, em que
receber sangue periodicamente, as estatuetas se cruzam os ícones de Iemanjá e Maria. São
recebem sangue em algumas ocasiões. Tanto múltiplas possibilidades que se abrem a cada
as imagens como os acutás fazem parte das cruzamento, em que os atos dos praticantes
conexões e encadeamentos de regimes de devem ser tomados «como experimentações
existência, perpassados pelas diferenciações de pensamentos, modos de existência e
que o conceito êmico passagem atribui. problematizações de alcance e consequências
potencialmente inesgotáveis».
O agenciamento de substâncias como o sangue
e de outros elementos constituem a composição Portanto, o cruzamento das Linhas é
de pessoas e de outros entes. Os humanos pensado enquanto uma lógica na qual se
apreendem territórios, potências, forças por produzem diferenças tanto nos âmbitos
meio das relações com extra-humanos que, sóciocosmopolíticos como também no âmbito
necessariamente, também participam. Assim, ontológico, em que a própria composição dos
com as religiões de matriz africana, estamos corpos e das pessoas opera-se em multiplicidade
diante de uma «série de intrincados sistemas de diferenças, por meio de relações entre
de classificação», no qual se forma enquanto humanos e extra-humanos. A Linha Cruzada
uma ontologia que «comporta uma metafísica mostra a existência de um sistema aberto, que
e uma filosofia da natureza e da sociedade […] potencializa corpos, pessoas, territórios e outros
Em certo sentido, o mar é Iemanjá, o raio e o agenciamentos. É por isso que dois elementos
vento são Iansã, e a doença é Omolu. Natureza, importantes para os/as umbandistas, como o
cultura, seres humanos, o cosmos, tudo parece cruzamento e o aprontamento, mostram-nos
articulado nesse sistema» (Goldman, 2005:8). outras respostas possíveis para o encontro das
diferenças, que não se deixa capturar pela ideia
Não há unificação, nem das formas, nem das de «miscigenação» das raças.
forças/intensidades. Em cada linha, alguns

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CRUZAMENTO obrigações que se afirmariam como diferentes
existências, enredadas, e que o compõem
O cruzamento é o que impulsiona os elementos (Stengers, 1997:74). A questão cosmopolítica
lógicos na Linha Cruzada, pois distribui as forças «não é o de um “re-encantamento do mundo”,
e atravessa/corta/passa segmentos. Esta lógica mas de um colocar em coexistência práticas
separa, conecta e opera por multiplicidades diferentes, correspondentes a entre-capturas
e produção de diferenças. O conceito de distintas, caracterizadas por restrições lógicas
cruzamento mostra possibilidades de existência e sintácticas diferentes» (Stengers, 1997:79).
das diferenças. Em uma Roda de Batuque, por Na cosmopolítica afro-brasileira, segundo
exemplo, chegam orixás, ou seja, as divindades Anjos (2006), estamos longe de uma imagem
ocupam os corpos das pessoas. Neste momento, de bem comum, em que a agregação dos entes
não chegam entidades caboclas, assim como constituiria um cosmo «livre» de oposições,
na linha dos exus, pombagiras e do Povo do de conflitos, tornando-se «simetricamente»
Oriente, não há incorporação de pretas/os- fechado. Há a separação entre os mundos, e
velhas/os, nem de orixás, nem de caboclos/as, há uma intensa obra de diplomacia cósmica
pelas pessoas. Mas tudo isso pode ser cruzado que é realizada para que se possam dar ou
se as próprias intensidades presentes em cada não, os encadeamentos (possíveis) e, também,
momento operarem conexões e, ainda, se for as dispersões necessárias. Ocorrem embates
necessário fazer os cruzamentos por parte das e conflitos que envolvem as diferenças e, por
entidades, das divindades: um/a orixá pode dar isso mesmo, há necessidade de intermediações
passagem para um/a caboclo/a chegar na Roda, entre os entes. As práticas e noções
e uma pombagira pode dar passagem para uma afroreligiosas, como as de proteção, segurança,
cigana incorporar na pessoa que pertence a ela limpeza, entre outras, operam em estrita
durante uma Gira. consonância com essa dimensão cosmopolítica
Em um cruzamento, as diferenças, as alteridades, e de co-existência de mundos. A cosmopolítica
vão se conectando e, com isso, a produção das ocorre quando, por exemplo, se realiza a
diferenças vai atingindo dimensões moleculares proteção contra eguns, espíritos que podem
e disjuntivas (Deleuze; Guattari, 2007). Ou seja, causar problemas aos humanos; quando ocorre
com a conexão entre diferenças e posições no a inclusão destes espíritos na linha de Umbanda
cosmos, se produzem as multiplicidades de ou do Povo da Rua, para que estes possam
modos de existência. Assim, conforme Ávila ser lapidados na Religião; quando se tem a
(2011:63), «cada ritual tem seu devido lugar. agregação de espíritos ciganos e do Povo do
Essa é a lógica da encruzilhada: são pontos que Oriente (onde chegam Astecas, Maias, Hindus
se cruzam, se tocam, mas não se fundem». E, e outros povos), entre outros procedimentos.
ainda, o que aponta Barbosa Neto (2012:42), Portanto, é possível entendermos a existência
«cruzar […] não é tornar idênticos, mas sim de dimensões de racionalidade política na Linha
fazer propagar uma forma ritual, a saber, Cruzada partindo da percepção sobre corpos e
usar a ação que se encontra aí implicada para pessoas como percursos diversos, nomádicos e
transformar uma outra ação». O cruzamento em composições constantes, em que há sempre
é intensamente ligado à abertura, enquanto a possibilidade de transformação?
produção de diferenças, e ele não se opera Foi pensando nos diferentes agenciamentos,
apenas no território ou nos modos nos quais a nos «regimes de existência» (Anjos; Oro,
religião funciona, ele está também no próprio 2009) e nas possibilidades de «coexistência»
corpo. (Stengers, 1997) –nos quais os corpos diversos
É possível entendermos a forma da (humanos e extra-humanos), as forças
encruzilhada, do cruzamento, como uma cósmicas (como as entidades e o axé) e as
possibilidade de encadeamento cósmico diferentes intensidades se relacionam– que
e como operação cosmopolítica. Para tomo o conceito de aprontamento como uma
Stengers, o «cosmo» ressoa a questão de um das operações cosmopolíticas efetuadas pelos
desconhecido, que a nossa tradição política corpos umbandistas, algo que se dá ao longo da
ocidental desclassifica. O Cosmos não teria iniciação da pessoa na religião.
uma exigência de fundação, já que haveria
«modos de coexistência possíveis, sem
hierarquia» e conjuntos de invenções, valores e

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APRONTAMENTO Iansã ou de outras orixás femininas no mesmo
corpo. No Batuque, a compreensão é de que
Alargando a concepção de política a outras toda pessoa tem, quase sempre, o Orixá Bará
formas de existência é importante atentar nas pernas.
para a maneira como diferentes actantes Há uma compreensão de divisão nos corpos,
extra-humanos interferem no cotidiano e nas pois cada parte do corpo humano tem um/a
composições corporais na Linha Cruzada. dono/a: a cabeça pode ter um/a orixá, mas
Dependendo da linha na religião, existem pode ter mais de um/a; o corpo tem mais de
diferentes aprontamentos, o que define o um orixá, ele é multidimensional: cada parte
processo de iniciação. No caso do Batuque, do corpo está relacionada a uma divindade; em
o corpo e a pessoa são aprontados junto a momentos precisos, as partes do corpo juntam-
pedras (acutás), vegetais, substâncias e orixás. se e, em outros, separam-se. As singularidades,
Esse processo é denominado ir ao chão, ou ser quando a pessoa se apronta, não são isoláveis,
aprontado no Batuque: pois operam em multiplicidades. Isso difere
O batuqueiro pode assentar um ou vários consideravelmente da concepção ocidental de
orixás a cada ida ao chão, sendo considerado indivíduo, como essências separadas da mente/
pronto na religião quando tiver assentado espírito e da matéria/corpo. Aqui, estamos
os doze (Bará, Ogum, Iansã, Xangô, Obá, diante de uma outra noção de pessoa, segundo
Xapanã, Odê, Otim, Osaim, Oxum, Iemanjá, a qual existem as diferentes passagens,
Oxalá) e tiver ganho o axé de faca, búzios como numa encruzilhada, que é formada por
e fala. Podendo fazer sacrifícios para os diferentes caminhos. Portanto, as passagens
orixás, tendo o poder da adivinhação por de orixás (infância, adulto e velhice), mas,
meio dos búzios e tendo um orixá com também, de outras entidades (caboclos, exus,
direito à fala no momento em que se ocupa, pombagiras), que estão ligadas à suas vidas
o batuqueiro pronto pode abrir sua própria «terrenas» anteriores, são moduladas a partir
casa e ter seus próprios filhos-de-santo de intensos cruzamentos feitos na religião.
(Anjos, 1995:138). Ainda, ocorrem passagens quando um caboclo
(Sete Encruzilhadas, por exemplo), deixa que
A Linha Cruzada quebra com o dualismo entre, outra entidade (exemplo: uma Cabocla Jurema)
de um lado, o dado (dom) e, de outro, o feito incorpore uma pessoa.
(iniciação): falar que «ou nasce com o dom, ou
aprende na iniciação» não se opera aqui. Ela Além das obrigações, o aprontamento diz
nos mostra que a pessoa já nasce com o dom respeito a outros fatores que não apenas rituais.
(vem de berço) e deve, concomitantemente, Por exemplo, os alimentos que a pessoa poderá
desenvolver-se, aprontar-se na religião. Nesse consumir ou não durante o processo em que ela
processo, devem ser realizadas obrigações, que está no chão e, mesmo, no decorrer de sua vida
conformam as relações entre pessoas e extra- enquanto iniciada, serão variados, conforme
humanos e que vão desde a primeira revelação, as situações e o que for encadeado, cruzado
pelos búzios, de quem é/são o/a(s) orixá/s de nos procedimentos. Em diversos momentos, as
cabeça e de corpo da pessoa, passando-se pelo pessoas e outros existentes estarão agregados
Amaci de ervas, até os sacrifícios dos animais pelas obrigações e aprontamentos. E, estas
de quatro pés (carneiro, cabrita...). O orixá de agregações podem ser efetuadas, por exemplo,
cabeça é o/a orixá que vai comandar a pessoa em virtude de debates e ações políticas
que tem, em seu corpo, no mínimo, mais quatro de reivindicação social realizadas pelos/as
passagens de orixás. Todo aprontamento de umbandistas, como no caso das demandas pelo
uma pessoa no Batuque diz respeito à feitura reconhecimento quilombola das comunidades
de um/a orixá de cabeça e dos/as orixás de da região onde se localiza uma das terreiras
corpo. Não há ambiguidades na compreensão pesquisadas. Agregar não é supor uma coesão
filosófica entre dado e feito, pois, como dizem ou uma socialização de pessoas pois elas e
os interlocutores afro-religiosos, o tempo todo, outros entes fazem e desfazem relações.
o aprontamento é algo feito constantemente e Aprontar o corpo, agenciando relações
que dura para a vida toda. Uma pessoa pode ter entre humanos e extra-humanos, é fazer
orixá de cabeça mulher (Iansã, por exemplo) e cosmopolítica. A composição do corpo revela
ter no corpo orixás homens (Ogum, Xangô, uma relação que agencia outros actantes –
Oxóssi...) e, ainda, ter outras passagens de espíritos, objetos, substâncias, fluidos, vegetais,

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animais, pedras... O aprontamento se constitui operar outras composições ou fornecer meios
como parte e como ação da cosmopolítica, de proteção às pessoas e, ainda, se lapidarem.
entendido como modo pelo qual o corpo Assim, o Povo da Rua e o Povo do Oriente nos
e as pessoas tornam-se entes compósitos, mostram a possibilidade de existirem elementos
agregados a outros partícipes do cosmos. transformacionais porque as energias são
Entretanto, não só as pessoas se tornam nômades e cruzadas.
fractais, mas também as entidades, os espíritos,
os locais, os objetos, as substâncias, etc. São É pelo fato de que as energias se cruzam, se
essas relações o ponto chave para a constituição refazem e se desfazem, porque operam por
de territórios e corpos cosmopolíticos na Linha fluxos, que podemos entender os processos
Cruzada. operados pela Linha Cruzada em compor
mundos e relações que não possuem como
fundo a unidade ou a permanência estática.
OS CORPOS E SEUS OUTROS Dito de outro modo, é nos cruzamentos que
diferentes entidades são agenciadas e operam
Nas religiões de matriz africana, se relacionam relações éticas e políticas, em práticas e modos
os corpos humanos com outros elementos do por meio dos quais as linhas funcionam. Neste
cosmos, fazendo com que todas as pessoas sentido, a própria atuação das entidades,
possam ser ocupadas por entidades. Porém, há intensivamente, produz nos corpos das pessoas,
processos de variação em grau dessas e nessas múltiplos modos de existência.
incorporações. As mediações entre energias e
fluxos são constantemente operacionalizadas: No caso das pombagiras, o que ocorre é,
há cortes, rupturas e também firmações também, uma ligação estreita que esta entidade
(quando o corpo se prepara para incorporar), estabelece com a pessoa que a incorpora
aprontamentos, modos pelos quais entidades (assim como ocorre com exus, caboclos, etc.).
podem parar (chegar) em determinados A pombagira é «o inverso da pureza da santa
corpos... Enfim, o corpo humano suporta o da igreja» (Anjos, 2006:87). Conforme Mãe
acontecimento de uma incorporação por um Irma, minha interlocutora-chave, uma pessoa
exu, uma pombagira, de uma ocupação por pode trabalhar com uma pombagira, mas pode
orixá, pois: ser que outra [pombagira] encoste na pessoa
para querer trabalhar. A pombagira da pessoa,
Nos rituais afro-brasileiros, o corpo aquela que a pessoa sempre recebe (incorpora)
é o centro visível da ação divina, é a pode, ou não, dar passagem para essa outra, o
manifestação por excelência dessa que, depende muito. Para esta mãe-de-santo,
presença, via transe possessivo. Odores, a pombagira dela, Dona Sete, para ela dar
cores, sons: os sentidos são chamados à ação passagem para outra, é difícil! Elas se deitam
num movimento de exterioridade. [...] A voz (se ligam fortemente) na gente e não deixam
gutural, os braços retorcidos acabando em as outras trabalharem! E a pessoa fica, então,
mãos que se crispam como garras, o mancar tombando, e não incorpora a outra, porque
dolorido de um Exu Caveira, as gargalhadas é uma outra [pombagira] querendo entrar
das pombajiras. O corpo expressa e atualiza naquele corpo, e a que já está [encostando]
um discurso mítico, rende-se à entidade não deixa. As pombagiras também indicam
que «o ocupa», que «o possui» (Rodolpho, para a pessoa que elas incorporam, o que elas
1995:156). preferem: quais roupas preferem usar, o que
gostam de bebidas, de cigarros... Como disse
Na religião, por exemplo, ao cruzarem a linha Mãe Irma, a minha moça não gosta de cigarro
dos ciganos com a linha dos exus, precisa-se ruim! Ela fica reclamando se o cigarro não
de uma pessoa cujo corpo (cavalo-de-santo, presta!
outro termo para médium) possa ser ocupado
por uma entidade cigana. Esta linha é, então, Essa força operada pelas pombagiras pode ser
potencializada, mesmo que isso ocorra numa ligada a ideia do devir minoritário, proposta por
outra linha. Chegando na linha de Exu, não Deleuze e Guattari (2007): «as mulheres, as
quer dizer que entidades não «evoluem»: elas crianças, e também os animais, os vegetais, as
trabalham de modo diferente, com outros moléculassãominoritários.Étalvezatéasituação
agenciamentos, com outras formas, aliando- particular da mulher em relação ao padrão-
se a outros espíritos e acionando forças que homem que faz que todos os devires, sendo
vêm de fora de sua linha para que possam minoritários, passem por um devir-mulher»

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(Deleuze; Guattari, 2007:87-88). A luta dessas da rua, nem este texto seria possível.
entidades femininas contra o padrão-homem
(uma pombagira tem sete maridos, ela é mulher Logo, um exu pode chegar numa linha de
da vida, ela é sensual, entre outras dimensões Caboclo, na sua passagem de caboclo e, ali,
expressas na religião sobre essas entidades) trabalhar e ele pode dar a passagem para
move-se quando as pombagiras chegam nas um/a caboclo/a chegar num corpo humano.
terreiras, num território existencial onde não Pode estar encostado durante a Linha de
é mais a força masculina que é dominante. No Caboclo e chegar somente na sua Linha, de Exu,
caso pesquisado, elas transformam as relações para descarregar tudo no final da sessão de
no momento mesmo em que elas acontecem, Umbanda.
pois essas relações são moleculares: em uma Assim como na África, onde ninguém passaria
conversa entre uma pessoa e uma entidade, por um cruzamento sem falar ou dar algo à
na terreira, movem-se aspectos indiscerníveis Legba, ao Exu, nada se faz sem as entidades
nos quais a força feminina das pombagiras atua do Povo da Rua na Linha Cruzada. Esta linha
de forma contundente. Na terreira de Mãe é a passagem intensiva das encruzilhadas. A
Irma, na linha dos Exus, é a pombagira Dona importância dos exus é vivida, não apenas
Sete a chefe, ela ferve, ou seja, ela comanda pelas imagens, festas a eles consagradas e aos
todas as outras. Ela agita as ações e sensações sacrifícios a eles realizados, mas também pelas
naquele momento. É que o devir-mulher da formas possíveis de cruzamento de mundos,
mulher –aquela que toma sua pombagira como de corpos, de linhas (Ramos, 2016). Nessa linha
potência, que ferve na terreira e no seu corpo mensageira, linha entre mundos, entrelinhas,
feminino– opera devires-moleculares. E, esses que é a dos Exus, chegam as entidades ciganas,
devires perpassam também os homens que as pombagiras, os exus e, em alguns casos, os
recebem essas entidades femininas e devêm- eguns.
mulheres, pois «um devir está sempre no meio
[…]», ele «não é um nem dois, nem relação de Então, se a Umbanda, no Brasil, foi acionada
dois, mas entre-dois, fronteira ou linha de fuga» pelo Caboclo Sete Encruzilhadas, vemos que
(Deleuze; Guattari, 2007: 91). suas linhas são cheias, repletas de variações e
de passagens:
Devir não é certamente imitar, nem identificar-
se; nem regredir-progredir; nem corresponder, Seu Sete [Encruzilhadas] trouxe mesmo
instaurar relações correspondentes; nem todos os caboclos [para a Umbanda], mas
produzir, produzir uma filiação, produzir por ele trouxe até os de porta de Calunga, não
filiação. Devir é um verbo tendo toda sua é? Ele trouxe o Ogum Megê, que trabalha na
consistência; ele não se reduz, ele não nos Calunga, na porta do cemitério. Mas o Seu
conduz a «parecer», nem «ser», nem «equivaler», Sete, que é da mata, ele trabalha até mesmo
nem «produzir» (Deleuze; Guattari, 2007:19). no cruzeiro. Ele vem cruzado às vezes. E, na
Linha Cruzada, ele trouxe todas as falanges
Ao devir-mulher, o homem e a própria mulher, (Mãe Irma, Mostardas, 24 de maio de 2013).
na relação entre a pessoa e as suas entidades,
percorrem devires moleculares entre corpos, As entidades defendem o corpo da pessoa
substâncias, espíritos... Operam-se devires daquilo que não deve ser agregado, daquilo que
entre a pessoa que presenteia a pombagira não causa um bom encontro para ela, daquilo
com uma carteira de cigarros, entre o cigarro que deve ser afastado de seu aparelho e de onde
que ela vai fumar e usar na limpeza, ou seja, essa pessoa frequenta (da terreira). Portanto, a
quando tiver fazendo a assepsia de uma pessoa existência de entes que são verdadeiramente
que com ela vem conversar, entre as entidades perigosos é acionada quando afro religiosos
–que vão beber uma champagne e que vão falam dos eguns: eles podem ser espíritos
oferecer um gole da bebida a uma pessoa que zombeteiros, que causam desequilíbrios, mas
vai «beber» (não apenas do líquido, mas algo podem ser os que precisam de luz. Esses espíritos
que a pombagira vai dizer a ela). entram na Linha dos Exus, nessa linha que é
mais ligada aos humanos, e eles aparecem na
A Linha de Exus, onde chegam as pombagiras, é Linha de Umbanda para buscar a luz. A variação
intensamente necessária à religião. Com ela, as que coloca essa outra série de espíritos como
coisas são possíveis de serem mobilizadas em possível não evoca apenas o sentido kardecista
múltiplas intensidades, cruzamentos e devires. falando de espíritos com e/ou sem luz e que
Por isso, sem exu, não se faz nada e, sem o povo precisam ser doutrinados na religião, pois estes

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compõem uma especificidade de entes. Como há cortes, rupturas e também firmações
expressa Paulo d’Ogum, um outro importante (quando o corpo se prepara para incorporar),
interlocutor da pesquisa, a Umbanda abriu aprontamentos, modos pelos quais entidades
portas para todo mundo. Por isso, há espíritos podem parar (chegar) em determinados
que podem procurá-la para buscar a luz. corpos... Enfim, o corpo humano suporta o
acontecimento de uma incorporação por um
Os eguns são espíritos que não são maus em exu, uma pombagira, de uma ocupação por
essência, até porque não há uma essência orixá, pois:
que coloca os termos como bons ou maus na
Linha Cruzada. O que há é uma percepção da Nos rituais afro-brasileiros, o corpo é o centro
pessoa pronta, no caso, a mãe de santo, que visível da ação divina, é a manifestação
vai se relacionar com esses tipos de espírito por excelência dessa presença, via transe
e intermediar a relação precisa, ou afastá-los possessivo. Odores, cores, sons: os sentidos
de uma pessoa, com a ajuda do guia protetor são chamados à ação num movimento de
dela. O que é ressaltado pelas mães de santo exterioridade. [...] A voz gutural, os braços
interlocutoras desta pesquisa, em relação retorcidos acabando em mãos que se crispam
ao tratamento com os eguns, tem a ver com como garras, o mancar dolorido de um Exu
uma política, uma maneira ética de relacionar Caveira, as gargalhadas das pombajiras. O
os entes, na qual há a separação e o devido corpo expressa e atualiza um discurso mítico,
impedimento de uma intensidade de um morto, rende-se à entidade que «o ocupa», que «o
ou seja, de um espírito, num corpo humano. As possui» (Rodolpho, 1995:156).
mães de santo mobilizam ações que buscam
a menor afetação possível entre o egum e as Na religião, por exemplo, ao cruzarem a linha
pessoas que elas atendem, e entre o egum e a dos ciganos com a linha dos exus, precisa-se
sua própria terreira. de uma pessoa cujo corpo (cavalo-de-santo,
outro termo para médium) possa ser ocupado
Nesta relação, há também um lado agonístico, por uma entidade cigana. Esta linha é, então,
no sentido de esses espíritos causarem conflitos. potencializada, mesmo que isso ocorra numa
O que as mães de santo travam é uma luta, outra linha. Chegando na linha de Exu, não
contra as doenças, contra os feitiços e contra quer dizer que entidades não «evoluem»: elas
estes espíritos que podem entrar na linha de trabalham de modo diferente, com outros
Exu, pois esta linha é relacionada às Almas, à agenciamentos, com outras formas, aliando-se
Calunga, ou seja, aos cemitérios. Por isso, há a outros espíritos e acionando forças que vêm
toda uma sabedoria ética e política da pessoa de fora de sua linha para que possam operar
que é pronta, que é mãe ou pai de santo, para outras composições ou fornecer meios
perceber o que deve ou não ser feito quando
isso ocorre. Nas diferenciações entre o que é
um espírito sofredor e o que é uma entidade
de luz, as mães de santo (ou pessoas prontas ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
na religião) podem exercer uma dosagem nas
relações que se dão com esses espíritos. Elas
O que denomino como cosmopolítica afro-
podem distinguir se quem chega na terreira é
brasileira não é o entendimento de criação de
um exu ou se é um egum e, fazendo isso, elas
um mundo comum, onde teremos por fim último
podem mobilizar outras potências, outros
a realização de integração, de unidade entre os
modos de atuação –que impedirão que a pessoa
diferentes seres, de consenso a priori ou uma
afetada por um egum corra riscos.
complementação de sistemas. A cosmopolítica
afro-brasileira é a percepção de que mundos
OS CORPOS E SEUS OUTROS diversos e conflitantes podem ser acionados
e ligados a séries diferenciantes, sem que se
Nas religiões de matriz africana, se relacionam crie uma unidade de mundos e de práticas. Por
os corpos humanos com outros elementos do isso, o cruzamento não coloca os elementos
cosmos, fazendo com que todas as pessoas cruzados como soluções: eles operam como
possam ser ocupadas por entidades. Porém, há perspectivas, como possibilidades que só serão
processos de variação em grau dessas e nessas atualizadas, enquanto regimes de existência,
incorporações. As mediações entre energias e se as forças evocadas e as práticas da Linha
fluxos são constantemente operacionalizadas: Cruzada forem possíveis.

João Daniel Dorneles Ramos 65


Tanto o aprontamento como o cruzamento e ações da religião como, por exemplo, afastar
confeccionam modos de existir em diferenças. os espíritos que causam maus encontros, nos
Dependendo do lado na religião, existem corpos e na terreira.
diferentes aprontamentos: por isso o
entendimento de que existe uma lógica, que Assim, se vai aprontando o corpo: a pessoa
é rizomática e que opera por produção de precisa aprontar-se constantemente, pois
diferenças. Cada terreira é oriunda de uma ela ganha mais potência a cada passo na
outra, assim como cada filho/a de santo é sua vida e nas relações que estabelece na
aprontado/a por sua mãe ou seu pai de santo na religião. Vemos que a pessoa existe se, no
terreira que a pessoa frequenta. seu aprontamento, participarem outros
elementos extra-humanos, como os animais.
Nessas relações, produzem-se noções outras O animal sacrificado será oferecido para um
sobre a concepção de pessoa e de corpo. Dizer determinado orixá. As divindades precisam
que alguma pessoa pertence a um/a orixá, ser alimentadas constantemente, ainda mais
por exemplo, é levar em conta a potência de após o aprontamento que a pessoa faz. Esse
atuação de uma divindade num corpo que alimento da divindade (sobretudo, as ervas e o
pode ser preparado, aprontado e cruzado sangue de animais) será derramado no acutá
para que as diferentes potencialidades possam e no corpo, que é onde o orixá come, tanto no
trabalhar e fazer o que precisa ser feito. É que, momento do apronte como também ao longo
além de haver diversos entes extra-humanos da vida da pessoa iniciada (e de seus/suas
(objetos, substâncias, animais, plantas, orixás). Fazer o aprontamento (algo que envolve
espíritos, divindades, etc.) que participam da o corpo humano, relacionado a outras agências)
composição do corpo no aprontamento, há, é a cosmopolítica no corpo. Quem é pronto
consequentemente, a conceitualização desse deve seguir as suas obrigações (fazer sacrifício
processo, que é operada em constante formação animal para orixás e, no caso de quem fez o
criativa. Logo, além de uma prática, o aprontar- apronte cruzado, deve sacrificar para os exus,
se é também apreender os fundamentos da para as pombagiras; também, é preciso reforçar
religião, que nunca é no sentido essencialista a relação com caboclos da Umbanda, com
de «origens». O fundamento sempre opera, nas pretos-velhos, por meio do amaci de ervas...).
religiões de matriz africana, como elemento E, a pessoa que se tornará mãe ou pai de santo,
ligado ao processo de feitura –seja este de uma após a primeira ocasião de apronte, deve estar
pessoa, de uma entidade ou de um outro modo sempre preparada para aprontar mais pessoas
de existência. Ele tem a ver com o criar e recriar (filhos/as de santo), continuando os diversos
procedimentos e, o aprontamento, é um dos acontecimentos que agregam ao seu corpo,
elementos-chave e compósito do fundamento, humano, diferentes potências extra-humanas.
que é parte de um fazer (apronte) e é, ao mesmo Essa pessoa vai fazendo seu aprontamento por
tempo, ligado ao ter (a pessoa que apronta meios de diversos reforços ao longo da vida.
outra pessoa, tem que ter fundamento).
O corpo, nesse sentido, opera como local onde
Vimos que o corpo, na Linha Cruzada, a partir ocorrem os acontecimentos: cria-se o corpo
do aprontamento, está sendo composto por e vai se fazendo o aprontamento. O corpo é
diferentespotências.Apessoaeosacutás(orixás) criado para receber a incorporação, para estar
são iniciados conjuntamente. Esses processos preparado para tal, pois é nos corpos que os
de iniciação podem ser compreendidos como acontecimentos irrompem. Ocorre um vaivém
modo de socialidade (Strathern, 2009), pois entre ser um corpo e ter um corpo, um percurso
as pessoas e os outros entes envolvidos no qual o corpo é percebido, sentido, pelos
nesses processos fazem relações –que serão outros corpos, pelas pessoas e pelas entidades.
o ponto chave para a constituição de corpos. Mas, nas religiões de matriz africana, o corpo
O apronte é mais do que a potência religiosa pode e deve ser feito, constantemente.
que a pessoa pode adquirir, ele opera como
uma arte política. A mãe de santo faz a ligação AGRADECIMENTOS
entre mundos possíveis: sendo pronta, ela pode
(deve) aprontar outras pessoas, ela opera uma Agradeço à Josiane Wedig e à Tiago Lemões
«diplomacia cósmica». Além disso, ela apreende pela atenta leitura realizada deste trabalho e
potências extra-humanas em seu corpo e pode, as importantes considerações feitas. À Stella
junto com estas, mobilizar diversos percursos Pieve, agradeço por ter realizado a tradução do
resumo para o inglês.

66 Trama, año8, nº 8, pp (57-68), Montevideo, Diciembre de 2017


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Social, PPGAS, Museu Nacional, Universidade 1
As palavras grafadas em itálico dizem respeito
Federal do Rio de Janeiro. aos conceitos, termos e falas êmicas. Já os termos
em negrito referem-se aquilo que o autor destaca.
Deleuze, G. e Guattari, F. (2007). Mil Platôs:
Capitalismo e Esquizofrenia. São Paulo: Editora 2
Desenvolvo maiores considerações sobre isso
34, vol. 4. em Ramos (2015b).
Goldman, M. (2005). Formas do Saber e Modos 3
Todas as reflexões aqui apresentadas resultam
do Ser. Observações Sobre Multiplicidade e da minha experimentação etnográfica de
Ontologia no Candomblé. Religião e Sociedade, pesquisa de doutorado, realizada entre os anos de
25 (2), 102-120. 2011 e 2015. Após um período de trabalho como
professor substituto na Universidade Federal de
________ (2009). História, devires e fetiches das Pelotas (2015-2017), retomei os estudos (em pós-
religiões afro-brasileiras: ensaio de simetrização doutorado) para dar continuidade à pesquisa.
antropológica. Análise Social, 44 (190), 105-137.
4
Segundo Ávila (2011:53, nota 31), a «obrigação
Oro, A. P. (org). (1994). As religiões Afro-brasileiras é o termo utilizado para os rituais de oferenda
do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: EDUFRGS. de animais aos orixás. Nesses rituais se oferece o
________ (2012). O atual campo afro-religioso axorô, ou seja, o sangue que simboliza o axé de
gaúcho. Civitas, 12 (3), 556-565. vida». A «noção de obrigação não se restringe
somente ao ritual de corte, mas também se trata
Ramos, J. D. (2015a). Quilombolas de Beco da relação permanente com o orixá assentado,
dos Colodianos: Identidade, diferença e dos cuidados com a água nas quartinhas [...]»
territorialidades. Curitiba: Appris. (Ávila, 2011:119).
________ (2015b). O Cruzamento das Linhas. 5
No interior de cada uma das linhas há inúmeras
Aprontamento e Cosmopolítica entre diferenças, podendo, por exemplo, existir no
umbandistas em Mostardas. Tese de Antropologia Batuque o lado do Candomblé. As linhas são
Social, Universidade Federal do Rio Grande do também, comumentemente, chamadas de lados.
Sul, Porto Alegre.

João Daniel Dorneles Ramos 67


6
Oro (1994) identifica esta modalidade de
religião com uma aproximação à Macumba de
outras regiões do Brasil.
7
Outra referência para a pessoa que incorpora
uma entidade, que recebe um espírito.
8
Eguns são os espíritos de pessoas mortas e que
ainda podem estar vagando pelo mundo. Eles
podem ser manipulados por outras pessoas ou,
ainda, podem procurar uma terreira de Umbanda
ou de Linha Cruzada buscando a luz.
9
A terreira de Mãe Irma –uso a nomeação feminina
tanto para corroborar com interlocutoras/
es a referência como para agregar a noção
de Casa, outra forma na qual afro religiosas/
os se referem aos templos– está localizada no
município de Mostardas, litoral do Rio Grande
do Sul. Este município possui três comunidades
negras rurais que reivindicam o reconhecimento
como remanescentes de quilombos. Esta
mãe de santo nasceu numa das comunidades
quilombolas, chamada Beco dos Colodianos.
Ela, frequentemente, atende as comunidades
quilombolas e/ou moradores/as destas com
benzeduras, assim como sua avó, Colodiana, fazia
no passado. Ver Ramos (2015a).

68 Trama, año8, nº 8, pp (57-68), Montevideo, Diciembre de 2017

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