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Mareio Goldman
Introdução
alguma coisa no candomblé sabe muito bem, e desde o tmc10, que é inútil
esperar ensinamentos prontos e acabados de algum mestre, e que deve tratar de
ir reunindo, pacientemente, ao longo dos anos, os detalhes que recolhe aqui e
ali, com a esperança de que, em algum momento, esse conjunto de saberes
adquira uma densidade suficiente para que com ele se possa fazer alguma coisa.
A isso se denomina "catar folhas", e essa concepção se articula com o fato de
o saber e o aprendizado serem colocados sob o signo dos orixás Ossâim e Oxóssi,
o senhor das ervas e o caçador, pois aprender é, acima de tudo, uma busca e
uma captura, que envolvem, claro, um risco.
É, parcialmente, desse modo que também o antropólogo deve proceder.
Parcialmente, claro, porque é evidente que uma pesquisa antropológica não
pode seguir de forma integral esse tipo de procedimento, que demanda um
tempo de que não dispomos. No entanto, e por outro lado, tentar proceder de
outra forma é correr o risco de, na melhor das hipóteses, não chegar a lugar
nenhum e, na pior, de engendrar uma espécie de código ou de doutrina cuja
existência tem poucas relações com a realidade vivida dos fiéis.
As origens históricas do candomblé e das religiões afro-brasileiras em
geral podem, talvez, explicar a inexistência de algo como uma doutrina, bem
como o caráter descentralizado do culto - o fato, como escreveu Roger Bastide
(1978:62), de "cada casa ou terreiro ser autônomo, sob a dependência de um
pai ou mãe-de-santo que não reconhece nenhuma autoridade superior à sua.
Constituem mundos à parte, espécies de ilhas africanas no meio de um oceano
de civilização ocidental". No entanto, e além de observar que essas "ilhas",
claro, possuem seus kulas, é preciso reconhecer que isso não esgota as
particularidades do que significa aprender no candomblé. Para isso, é preciso
levar em consideração várias dimensões de um sistema extremamente complexo
e sofisticado.
humanos - mas também cores, sabores, cheiros, dias, anos etc. - "pertencem"
a diferentes orixás, mas apenas na medida em que com eles compartilham dessa
essência, simultaneamente geral e individualizada. Em certo sentido, cada ser
constitui, na verdade, uma espécie de cristalização ou molarização resultante de
um movimento do axé que, de força geral e homogênea, se diversifica e se
concretiza ininterruptamente.
Em uma linguagem mais diretamente religiosa, é possível, pois, afirmar
que o axé flui a partir de uma fonte comum, fonte que pode ser Olorum ou
Zambi, a divindade suprema que não recebe qualquer culto, ou lroko (ou
Tempo); a árvore sagrada de cuja seiva teriam se originado os orixás; ou outras,
de acordo com distintas versões dos mitos. Esse fluxo de axé é, de alguma forma,
cortado em diferentes pontos, constituindo, sobre determinado plano, o que se
denomina orixás "gerais" (que existem em número finito) e, sobre outro, um sem
número de orixás individuais, aos quais, em última instância, estão ligados todos
os seres humanos (voltarei a esse aspecto crucial do sistema).
Pode-se dizer, em seguida, que essa cosmologia se desdobra em uma
mitologia e em uma série de intrincados sistemas de classificação; ou que essa
ontologia comporta uma metafísica e uma filosofia da natureza e da sociedade.
Os mitos apresentam, sobretudo, o caráter polívoco das divindades:
simultaneamente essências imóveis, forças da natureza (raios, trovões, rios etc.),
instituições culturais (guerra, justiça ... ), indivíduos que viveram no passado
(reis, rainhas, guerreiros ... ). E não se trata aqui apenas - talvez seja preciso
advertir - de representações (o raio representando a o rixá lansã), relações de
propriedade (o mar pertencendo à orixá lemanjá) ou controle (a doença sendo
provocada e controlada por Omolu), mas de uma forma muito complexa de
agendamento. Em certo sentido, o mar é lemanjá, o raio e o vento são Iansã,
e a doença é Omolu. Natureza, cultura, seres humanos, o cosmos, tudo parece
articulado nesse sistema. Os componentes desses diferentes planos podem, assim,
ser agrupados em classes de acordo com o orixá ao qual pertencem, ou seja, de
acordo com a modulação de axé que os constitui. O que torna relativamente
fácil tentar reduzir o sistema a uma lógica classificatória ou mesmo totêmica, na
medida em que são efetuadas repartições do universo a partir da introdução de
descontinuidades ou afastamentos diferenciais em um conjunto inicialmente
homogêneo ou contínuo6 •
Um dos aspectos centrais do candomblé, entretanto, é que também os
seres humanos estão repartidos entre os orixás, o que significa a existência de
um corpo de concepções acerca da natureza do ser humano, uma noção de
pessoa, ou, como eu preferiria denominá-la, uma antropologia, no sentido filosófico
do termo. Esta, como acontece na maior parte das sociedades humanas, postula
que a pessoa é múltipla, composta por uma série de elementos materiais e
imateriais, que incluem o orixá principal à qual ela pertence (de quem é "filho",
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Referências Bibliográficas
Notas
1
Este texto consiste em uma primeira tentativa de retomada de pesquisas sobre o candomblé
iniciadas em 1978 e interrompidas em 1984. Nesse sentido, consiste realmente, por um lado,
em "notas preliminares"; por outro, entretanto, mantém relações de continuidade e ruptura com
Goldman (1984, 1985, 1985b, 1987 e 1990) - o que significa, também, que uma revisão
bibliográfica mais atualizada foi deixada para mais tarde, em benefício da elaboração de alguns
aspectos menos explorados de textos mais "clássicos". Além disso, o artigo retoma, de forma
mais sistemática, comunicações apresentadas em diferentes momentos e locais: em junho de
2003, no Seminário "Formas Primitivas de Classificação, Cem Anos Depois" (organizado por
Emerson Giumbelli, no Departamento de Antropologia Cultural da Universidade Federal do
Rio de Janeiro); em maio de 2005, na 4ª Jornada do Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos;
em setembro de 2005, nos Encontros do Núcleo de Transformações Indígenas e da Rede de
Antropologia Simétrica Abaeté (organizados por Eduardo Viveiros de Castro, no PPGAS,
Museu Nacional, UFRJ), e no Colóquio Internacional "Learning Religion. Anthropological
Approaches" (organizado por Ramón Sarró e David Berliner, no Instituto de Ciências Sociais
da Universidade de Lisboa). Além de a todos que possibilitaram minha presença nessas ocasiões
e aos que nelas comigo debateram, gostaria, também, de agradecer a Luísa Elvira Belaunde e
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Olívia Gomes da Cunha, por seus comentários ao texto, e, em especial, a Martin Holbraad e Tânia
Stolze Lima, cujas observações críticas permitiram ao menos aperfeiçoar um pouco um trabalho
ainda muito imperfeito.
2
Emprego aqui os nomes dos orixás tal qual são conhecidos na nação ketu. O que autoriza a fazê-
lo não é apenas, creio, o fato de serem esses os nomes mais usados na literatura e pelo público em
geral, mas, principalmente, o fato de os próprios praticantes do candomblé de nação angola ou gêge,
nas situações mais cotid ianas e menos formais, costumarem fazer o mesmo.
3
Assim se conta, em geral, a história dos estudos afro-brasileiros (cf. Maggie 1976 e 2001;
Dantas 1989; Capone 2004). Após uma longa fase evolucionista e culturalista - durante as
quais os autores só se preocupariam em encontrar as origens africanas das "tradições" afro-
brasileiras- teríamos finalmente chegado a uma abo rdagem verdadeiramente sociológica, capaz
de conectar as observações etnográficas com o contexto atual e real mais abrangente. Como
este não é o momento para discutir essa versão, limito-me a adiantar que não creio que as coisas
tenham se passado com essa linearidade e essa progressividade. Primeiro, porque é evidente que
análises de cunho mais "cultural" continuam a ser efetuadas, procurando enfatiza r a tradição
como forma de resistência, ou tentando estabe lecer as conexões substantivas (e não meramente
formais ou ideológicas) entre o que se passa efetivamente nos grupos de culto- tanto em termos
sociológicos quanto propriamente religiosos- com contextos sociais mais abrangentes (ver, por
exemplo, Segato 1995; Serra 1995). Em segundo lugar, é muito duvidosa a falta de preocupação
sociológica de autores como Bastide e mesmo Nina Rodrigues. Finalmente, porque a obsessão
em escapar do que se considera evolucionismo e culturalismo pode acabar conduzindo a formas
anêmicas de adaptacionismo funcionalista e a visões manipuladoras das relações sociais, da
produção acadêmica e das conexões entre ambas. Para uma visão crítica dessa interpretação
da história dos estudos afro-brasileiros, ver o importante livro de Ordep Serra (1995).
4 O Tombency é um' terreiro muito diferente do que era o Ilê de Obaluaiê. Fundado, em 1885, pela
avó materna da atual mãe-de-santo, sua organização repousa sobre seus quatorze filhos carnais e
respectiva parentela, configurando um verdadeiro espaço de socialidade onde se cruzam relações
étnicas (um bloco afro está associado ao terreiro), de parentesco e de vizinhança. O Ilê de Obaluaiê,
por outro lado, era um terreiro muito novo e que praticamente só funcionava como casa de culto
nos dias de festa. De toda forma, talvez esta também seja a ocasião para agradecer e para homenagear
a memória de Nivaldo Pereira Bastos, Camuluaji, pai-de-santo do Ilê de Obaluaiê, precocemente
falecido, que ofereceu meu primeiro acesso ao universo das religiões afro-brasileiras. Assim como
a de Dona Ilza Rodrigues, Mameto Mucalê, a mãe-de-santo do Tombency, com quem, até hoje,
ainda aprendo o pouco que sei a respeito do candomblé.
5 "O devir é o ser( ... ), o devir e o ser são uma mesma afirmação" (Deleuze 1999:217).
6
A tentativa mais consistente para elaborar uma análise estrutural do candomblé foi, sem dúvida,
efetuada por Claude Lépine, especialmente em Lépine (1978) (cf. Lépine 1981).
7 Em certo sentido, a posição aqui adotada aproxima-se daquela defendida por Bruno Latour (1996) .
A diferença, crucial entretanto, é que não creio que o candomblé ou o "fetichismo" em geral possam
ser descritos apenas a partir da observação daquilo que seus adeptos aparentemente fazem, sem levar
em consideração as complexas teorias locais subjacentes. Latour tem, provavelmente, toda a razão
ao deixar de lado essas teorias quando estuda os cientistas, uma vez que suas representações tendem
a aparecer como simples verdades aos olhos do antropólogo oriundo de uma sociedade que a elas
confere o estatuto de descrições objetivas. Penso, contudo, que o estabelecimento de uma verdadeira
simetria entre o estudo da ciência e o do candomblé, por exemplo, exige o esforço inverso de tentar
levar, efetivamente, a sério o que seus praticantes não só fazem como dizem e pensam.
Mareio Goldman
Professor Adjunto do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social,
Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro; pesquisador do CNPq
e do Núcleo de Antropologia da Política (NuAP, Pronex); bolsista da FAPERJ;
autor de Alguma Antropologia (1999).
E-mail: marcio.goldman@terra.com.br