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Introdução
O presente artigo tem como objetivo apresentar questões que vêm sendo discutidos na
pesquisa intitulada “Dois Mundos: entre o pragmatismo da Umbanda e o Salvacionismo
Espírita – Um Estudo de Caso”, no intuito de propor um diálogo com o pensamento de alguns
autores da Antropologia Clássica, demonstrando como o conhecimento teórico pode
contribuir com a pesquisa que está sendo desenvolvida, e como o campo empírico pode
demonstrar a complexidade e a versatilidade das relações que se estabelecem em um campo
aberto, indo de encontro da proposta da objetividade fornecida pela teoria. Desta forma, a
proposta é trazer o pensar antropológico da Escola Social Britânica, desenvolvida através do
método funcionalista a priori, para contribuir ao entendimento de como as sociedades e
grupos sociais são descritos etnograficamente, considerando que a formação da Escola
Britânica é marcada por um novo paradigma, em que o trabalho de campo passa a ser
reconhecido cientificamente, e a prática etnográfica passa a ser legitimada. A partir daí, as
sociedades primitivas recebem a influência do antropólogo que passa a vivenciar a vida social
do outro em busca da alteridade. Nesse cenário, a experiência, através da observação
participante, opera como prática de fundamental importância para a produção e impressão do
outro que é sempre diferente. Em suma, a escolha deste pensar antropológico é justamente
pela valorização que o campo recebe e as críticas que nascem por meio desse novo
enfrentamento teórico vai dar luz a algo muito específico referente às impressões decorrentes
da experiência de campo vivenciada pela autora deste artigo.
Certamente, cabe esclarecer que a ideia não é apresentar a pesquisa que está sendo
realizada, e sim trazer especificamente duas questões referentes a propostas metodológicas e
outra apresentada pela situação recorrente que sem dúvida deu vida e cor a esta pesquisa, pois
as construções iniciáticas da pesquisa só ocorreram por conta deste fato extremamente central
na análise proposta.
1
Aluna do Programa de Pós-Graduação – Mestrado – em Antropologia da UFGD. Artigo apresentado à
disciplina de Teoria Antropológica I como requisito de avaliação.
Ao deter-se mais sobre a pesquisa, considera-se que ela contempla o campo religioso1,
o qual pertence às Religiões de Possessão de um modo geral, e em específico o campo das
Religiões Afrodescendentes. As restrições se limitam nas modalidades de culto da Umbanda e
do Espiritismo. Mas deve-se esclarecer que o objeto em análise não é a religião em si, e tais
cultos serão investigados conjuntamente enquanto continuidades pendulares entre um e outro,
explicitando que uma modalidade convive com a outra sobre inúmeras formas extremamente
dinâmicas, plásticas, e ainda com inúmeros fatores dialéticos entre mudanças e permanências,
continuidades e rupturas, aproximações e afastamentos, ressignificações.
Logo, o objeto desta pesquisa é o continuum religioso. Esse conceito vem sendo
estudado por Arthur Ramos (1934), Ferreira Camargo (1961), Stefânia Capone (1988). A
ideia de continuum foi analisada a partir das noções de Pureza e Mistura em que havia
presença de uma supervalorização de cultos do Candomblé Jeje-Nago dos povos sudaneses,
tidos como superiores (mas ainda assim inferiores), em detrimento dos cultos de negros de
origem Banto (Congo, Cambinda), os quais eram vistos como degenerescência e/ou
misturados, logo, eram inferiores. Desta forma, inicialmente, o continuum religioso tinha
como princípio os povos puros como referência de culto a um constante sincretismo de povos
que recebem outras influências e passam a ser vistos como continuidades da matriz Ioruba
Nagô.
Vistos assim como descaracterização da pureza Nagô e inferiores por alterar e deixar
de ser puro. Logo a diante, Stefania Capone retoma a ideia de continuum sob uma nova
perspectiva em que se têm dois extremos marcados, de um lado o Candomblé Nagô, e do
outro o Espiritismo. O que marca tais extremidades é a africanização e o embranquecimento.
Dentro desta lógica de continuidade, existem inúmeras modalidades de cultos religiosos
afrodescendentes que se situam dentro deste continuum, uns se aproximam mais do modelo
africano, outros mais do modelo Espírita, e quanto mais se permanece próximo à África mais
africano, quanto mais se aproxima do Espiritismo mais branco torna-se.
Essa lógica de continuum está muito ultrapassada, pois ainda sim há o entendimento
de contenção e fossilização em que cada culto ocupa o seu lugar, o que ocorre é que tais
continuidades são dialógicas e dinâmicas, e a vida vivida é tão versátil, complexa e flexível,
que este modelo de continuum não dá conta de explicar tamanha metamorfose ambulante. Por
isso, a noção de rede se encontra mais adequada para explicitar e explicar teoricamente estes
fenômenos de influências rituais.
O conceito de rizoma, o qual retoma a noção de campo aberto, plural e dinâmico,
fornece a ideia de rede para dar conta de tamanha flexibilidade. Assim, objetiva-se propor um
entendimento sobre rizoma nas religiosidades de possessão, mas aqui não é o caso.
Desta forma, não se trata de um estudo sobre um culto mantido em situação de
isolamento e imobilidade, mas sim de um estudo que se propõe a entender a forma dialógica
em que religiões distintas se unem como complementaridade em vias de sobrevivência e
manutenção dentro de um mercado de bens simbólicos, não-simbólicos, materiais e não-
materiais. (BOURDIEU, 2007)
Esboço Teórico
As duas casas, aqui expostas, não podem ser analisadas em isolamento e contenção,
pois em um dado momento estas casas passaram a dialogar entre si, e muitos adeptos do
MEFA passaram a frequentar o Terreiro, e os adeptos do terreiro passaram a frequentar o
MEFA. Este encontro começa a produzir inúmeras alterações no campo dos rituais
simbólicos, e muitos elementos contidos estritamente em uma das Casas migram
paulatinamente para a outra e vice-versa. Assim, inúmeras mudanças começam a ocorrer e
estes fatos são marcados por mudanças e continuidades, rupturas e permanências,
ressignificações, aproximações e afastamentos. Essas mudanças estão revestidas de conflitos e
dinâmicas.
Cabe aqui considerar a capacidade intrínseca de dois grupos sociais distintos
construírem relações dialógicas tanto em seus próprios rituais, como nas relações com outras
casas enquanto buscam por complementaridade, tendo em vista que no que se refere às duas
casas, a Umbanda e o Espiritismo convivem e se influenciam mutuamente. Além disso, esta
relação dialógica só pode existir em situações de contraste. Assim, as ideias de isolamento e
autocontenção, neste caso, são uma fantasia. Logo, alguns autores, como Victor Turner
(2005), considera que as sociedades, bem como aldeias e grupos sociais possuem mobilidades
e circulam entre outros espaços, promovendo rupturas e fragmentações ao longo do tempo.
Essas situações foram extremamente importantes para estudiosos da África Central, que
registraram grandes mobilidades de um lugar para o outro, reconhecendo e enfrentando as
situações de adaptabilidade social e cultural, mudanças e dinâmicas sociais. (TURNER, 2005,
p.31)
O que se propõe discutir, neste momento, é a desconstrução que alguns autores foram
fazendo com relação à sociedade coesa, harmônica, contida, descontinua e anticonflituosa.
Essa ideia é reproduzida desde Malinowski com o advento da potencialização do campo
através da observação participante, a qual Edmund Leach fará inúmeras criticas no que tange
à forma de descrever as sociedades no campo do ideal. Isto porque à medida que caminhamos
ao entendimento da inexistência de sociedades isoladas e as interações sociais são geradas sob
mecanismos extremamente conflitantes, cabe destacar a facilidade e a habilidade da dinâmica,
e as influências que promovem mudanças e continuidades que geram relações conflituosas e
abalam a todo o momento a imobilidade e/ou essencialidade. Buscar-se-á apresentar autores
que contribuíram com a promoção destas mudanças nos paradigmas do pensar antropológico.
Preocupado em promover explicações sincrônicas, Emile Durkheim buscava análises
que expressassem dados que pudessem ser diretamente observados. Seu pensamento permeia
o entendimento de que as sociedades eram sistemas que funcionavam dentro de uma lógica
coesa e integrada, onde todas as partes só poderiam ser compreendidas se estivessem
relacionadas às outras, formando a manutenção de um todo. Para este autor, o conceito de
sociedade era definido como um organismo social, e apresentava a ideia de conviviabilidade
como um conceito positivo. A expressão do pensamento durkheimiano está voltado à
sociedade, suas instituições e organizações, em detrimento de mitos, cultura e símbolos.
(DURKHEIM, 1978)
Este entendimento de vida social passa a ir de encontro a uma constante situação de
contato, em que a diversidade passa a emergir não enquanto condição de isolamento no que se
refere à homogeneização. Nesta as diferenças são pensadas enquanto ilhas, mas parte-se da
compreensão de que as especificações compõem um mesmo quadro social, e a diversidades
culturais passam a ser vivenciadas a partir das interações entre os povos. Assim, geram-se
sociabilidades, desconstruindo a ideia de socialidade, em que as relações passam a ser
marcadas por tensões e conflitos instituídos na vida social. Ao passo que as diferenças
culturais são encaradas como uma resposta frente às novas condições sociais, passa-se a
privilegiar a análise das relações. (cf. WAGNER, 2010; Barth, 2000)
Isso ajuda a compreender que em se tratando do campo religioso, as relações são
instrumentos de manutenção e sobrevivência; em que diferentemente do que supunham
muitos antropólogos, a convivência torna possível o diálogo entre duas modalidades de cultos
distintos como complementos, o que não exclui a possibilidade de conflitos que fomentam
mudanças e continuidades.
Ao retratar a mobilidade e o dinamismo que se apresenta a partir das relações, faz-se
necessário compreender que o ideal não condiz necessariamente com a situação vivenciada na
prática, e que os próprios informantes inseridos neste contexto social em análise possuem um
quadro idealizado da sua própria realidade. Edmund Leach propõe inúmeras reflexões sobre
estas inconsistências contatadas e descritas em análises antropológicas. Desta forma, propõe-
se apresentar considerações fornecidas pelo Funcionalista convicto Edmund Leach, trazendo
elementos empiricamente colhidos nas experiências de campo.
Tendo em vista que as críticas de Leach foram sustentadas através das descrições de
sistemas de parentesco, considera, a exemplo das terminologias de parentesco jinghpaw, que
as sociedades são descritas a rigor de uma orientação idealizada de sociedade. Além disso, ao
tecer uma análise sobre como a vida funciona realmente em uma aldeia jinghpaw, demonstra
a existência pouco correspondente entre “realidade” e “situação ideal” no que se refere à
terminologia (LEACH, 1996, p.22).
Referindo-se a Radcliffe-Brown, o autor faz uma crítica que caminha para a conclusão
de que: “... o tipo de análise por ele preconizada postula uma rigidez formal que ignora a
prática, de tal forma que é necessário se perguntar em que medida os comportamentos
verdadeiros estão representados pelas simplificações formais”. (LEACH, p.22, 1996). Isto
pode dar luz à compreensão de que o ideal nativo não corresponde aos fatos empíricos
observados.
Muitas discussões podem ser feitas tendo em vista as ideias de Edmund Leach, e
apesar de o modelo que ele se utiliza para transmitir suas inquietações epistemológicas
caminhe em direção às terminologias e estruturas de relações de parentesco, pode-se
transplantar esta noção crítica para pensar os fragmentos que estão sendo discutidos com
relação a uma pesquisa de campo em andamento.
Voltando a discussão sobre a ideia de que adeptos de diferentes religiosidades
compõem um quadro de mobilidade e transitação, pode-se pensar em duas categorias que
Leach utiliza uma vez para se referir a sua crítica central quanto às descrições antropológicas.
São elas realidade e situação ideal, dizendo que uma não faz correspondência a outra, pois o
que é posto no campo do discurso não é vivido efetivamente na vida prática.
Considerações Finais
É o que acontece entre as duas casas que estão em relações dialógicas como
complementaridade, pois, ao mesmo tempo em que as pessoas transitam de uma casa para
outra, e convivem mutuamente com duas modalidades de práticas distintas
(Umbanda/Espiritismo), elas possuem classificações e identidades próprias quanto à escola
religiosa da qual participa. Ou seja, mesmo frequentando ou trabalhando com práticas
ritualísticas da Umbanda, eu sou “Espírita”; em contrapartida, mesmo os que se identificam
como “Umbandistas”, ao frequentar uma casa Espírita, sua identidade ainda continua sendo a
anterior. Logo, Católicos, Umbandistas, Candomblésistas, Espíritas, não possuem
estabilidade, e embora frequentem outros campos de religiosidades, que nem sempre são
correspondentes, não alteram suas identificações próprias.
Assim, o que se encontra na situação ideal é aquilo que sou enquanto senhor do meu
próprio discurso, “sou isso e não vou mudar”. Mas basta verificar no campo pragmático que a
mobilidade e a flexibilidade na materialização da fé, para entender a longa distância que
percorre o campo do discurso para o campo da prática. Um exemplo: Uma senhora que se
considera “Católica Apostólica Romana” no campo do discurso, e vai à missa todo domingo,
frequenta roça de Candomblé toda sexta-feira com bastante tranquilidade. Esta senhora não
vai enfatizar a coexistência de duas religiões distintas em sua vida, mas vive
independentemente do que idealiza. Portanto, cabe ao antropólogo analisar e detectar estes
imponderáveis, que são invisíveis aos olhos, mas indubitavelmente pertinente para se chegar
ao máximo da verossimilhança de um sistema social específico.
A ideia do dito e do vivido é um campo extremamente importante, que pode garantir
boas reflexões no que se refere à análise etnográfica e etnológica. O que as pessoas dizem
parte do campo ideológico; o que as pessoas vivem parte do campo pragmático da vida. Ao
analisar e posicionar estes discursos distintos entre fala e prática, é possível chegar ao
entendimento do que se pretende chamar de Antropologia. Contrastando-os à produção
etnológica, a partir de uma colheita de dados etnógrafos, ganha-se dimensões muito
importantes e relevantes para uma pesquisa.
Na casa em que chamei de Casa (1) – MEFA, a maioria das pessoas se considera
Espírita. Ouço muitas falas, e discursos para os outros de que o Espiritismo é extremamente
necessário para a vida que se quer bem vivida. Mas, o MEFA incorpora práticas da Umbanda
em seus rituais diários. Porém, o discurso Umbandista nunca aparece, sendo impossível
detectar sua presença no “falar” das pessoas. Contudo, ao adentrar nos rituais e na prática
ritualística da casa, a Umbanda se mostra em suas mais diversas facetas no campo ritualístico.
Logo, o discurso pertence ao dito, a Umbanda ao vivido. Entretanto, existem
complementaridades entre estes dois elementos que, a priori distintos, convivem a partir de
ressignificações cotidianas. Algumas conclusões podem ser feitas.
Deve-se considerar a importância da fundamentação teórica para explicar a realidade
da vida social. E de fato, cumpre um papel extremamente importante. No entanto o abismo
existente entre vivido e dito, torna a teoria bastante vulnerável e inaplicável às complexidades
que se apresentam nas relações a partir de constantes interações, onde relações dialéticas e
dialógicas são construídas diariamente. O objetivo é se manter e sobreviver em meio ao
dinamismo social configurado diante de tensões conflitos e negociações.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS